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Justiça e perdão no pensamento de Paul Ricoeur

Pedro Henrique Corrêa Guimarães


01/10/2012 às 18:15
É possível que um ato quando convertido em ato justo se transforme
também em ato perdoável? E é possível que o perdão dado estabeleça
por si só a justiça ao caso?

Justiça e perdão no pensamento de Paul Ricoeur


por Pedro Henrique Corrêa Guimarães
Resumo: Dois elementos centrais no pensamento do filósofo francês
Paul Ricoeur são o perdão e a justiça. O perdão, parte final da obra
Memória, História e Esquecimento e a justiça, norte da obra O justo,
foram alvo de várias análises de comentadores, mas esses dois
componentes não são trabalhados conjuntamente. Quais são as
ralações possíveis entre perdão e justiça? É possível uma justiça no
perdão? Há perdão na justiça?

INTRODUÇÃO
Um dos elementos centrais do pensamento filosófico é a justiça.
Desde seu berço, no ocidente na Grécia, a justiça (diké) foi objeto da
discussão filosófica nas ágoras gregas. Após isso, grandes estudos
foram lançados, passando pelos medievais, Agostinho e Tomás de
Aquino, cruzando a modernidade, Rousseau, Locke, e atingindo até o
pensamento contemporâneo, John Rawls. Mas tão vasta é a
significação de justiça que nenhuma obra conseguiu abranger toda a
complexidade desse fenômeno.

Mas a dificuldade não pode impedir a discussão sobre o justo. A idéia


de justiça é fundamental para manutenção da vida social, é
fundamental para construção de instituições, como o Direito, e é
fundamental como elemento simbólico para significação da existência.

Já o perdão nunca recebeu um olhar muito acurado dos filósofos. O


assunto foi empurrado para a esfera da religião e por lá permaneceu
por muito tempo. O resgate do perdão, como objeto da filosofia, foi
feito pelo filósofo francês Paul Ricoeur, em obras como “O justo” e
“Memória, história e esquecimento” onde o tema do perdão é central.

1
O resgate do perdão foi fundamental para a compreensão dos
fenômenos do testemunho, da narrativa, e da interpretação. Com este
artigo pretendemos lançar as bases para uma nova aproximação.
Como o perdão e justiça se relacionam? Qual a importância do perdão
para a justiça? Como Ricoeur articula perdão e justiça? Essas
perguntas delimitarão a temática desse texto.

1- A JUSTIÇA
Em Paul Ricoeur, não temos uma teoria unitária sobre o que é justiça,
e isso o distingue de autores como, por exemplo, John Rawls [1].Em
uma série de ensaios agrupados no livro “ O justo” [2], o filósofo
descreve vários componentes da justiça, que vão desde o que é
sujeito de direito até as concepções sobre perdão. Em um desses
ensaios “O ato de julgar”, Ricoeur vai discutir o que chama de “uma
espécie de fenomenologia do julgamento”. Diz ele que julgar é um
conceito plurívoco porque engloba desde uma simples opinião até
avaliação de algo como justo.

Em Outramente[3] (Si mesmo como um outro) Ricoeur discute a


questão da alteridade de Emanuel Lévinas. A razão dessa discussão
está em decidir ou não se a alteridade constitui por si só como um ato
de justiça, ou se para haver justiça é necessário haver um terceiro
elemento que aparte o conflito. Ricoeur diz que a proximidade do face-
a-face com o outro não elimina a diferença pré-estabelecida, porque
por mais que aproxime de um outro não poderei jamais substituí-lo.
Além disso, ter que substituir o outro é substituir a reabilitação por um
traumatismo sem medida. Diz o autor:

È por isso que a expiação não é a responsabilidade, na medida em


que o resgate estabeleceria a igualdade, a adequação, a
comensurabilidade, como no perdão hegeliano. Lévinas não quer ser
perdoado dessa maneira. Nem tampouco perdoar” (RICOEUR,1999,
p. 40)

Ricoeur que restabelecer a diferença lingüística entre o dizer e o dito.


A tese é que o dizer nunca pode ser reduzido ao dito, que em termos
de justiça, significa que a aceitação não se iguala ao perdão.

Mais adiante Ricoeur trabalha a questão da justiça para o terceiro,


aquele não submetido à face-a-face de Lévinas, pois se seguíssemos
2
a ética de alteridade não abriríamos espaço para o terceiro elemento.
Ricoeur sustenta que é o terceiro que vai estabelecer o lugar da
justiça.“È a proximidade do terceiro que introduz, com as
necessidades da justiça, a medida, a tematização, o aparecer da
justiça”(RICOEUR,1999, p.43)

Os motivos que levam Ricoeur a se voltar para o terceiro são vários e


se estendem por toda sua obra. Desde “Tempo e Narrativa” [4] o filósofo
francês está interessado numa tessitura da intriga que se dá por meio
da Narrativa. Então, o pressuposto ricoueriano é que a relações
interpessoais não são somente amistosas, mas nelas estabelecem-se
conflitos que precisam ser apartados.

Por isso, de certo modo, ficamos chocados quando Paul Ricoeur


dissera, cruamente, que "justiça" significa apartar os conflitantes,
colocá-los em campos separados, dar a cada um o que é seu”
(RUITEMBERGE,2009, 146)

Dessa maneira a justiça não se reduz a uma ética interpessoal, mas é


um fenômeno que aparece na mediação com os outros, na intriga
estabelecida pela diferença.

O sentido da justiça – alega Ricoeur (1995) – não pode ser


inteiramente autónomo de qualquer referência ao bem. O mesmo é
dizer que o nível deontológico, independentemente de ser considerado
o nível privilegiado na ideia de justiça, não pode ser exclusivo nem
completamente autónomo. Defende, portanto, uma abordagem
teleológica da justiça, na filiação de Aristóteles, que se ancora na
reflexão sobre uma vida boa e no terreno de
uma antropologia filosófica, onde são fundamentais a “capacidade”
(de falar, de agir e de ser responsável pelos seus actos) que define o
“sujeito de direito” e a “imputabilidade” das acções ao agente que as
realiza (GARCIA, 2006, p. 21)

Segunda esta leitura, a justiça é parte integrante do desejo de viver


bem: o Justo é objeto de desejo e se enuncia num optativo antes de
enunciar-se num imperativo.

Por aparecer como elemento do viver bem ela (a justiça) não é


instrumental. A justiça de Ricoeur não é instrumental apesar de ela
fazer referência[5] do importante papel que a justiça formal realiza para
a mediação dos conflitos.

Portanto podemos dizer que uma justiça ricoeuriana é uma mescla de


elementos éticos, procedimentais, simbólicos onde o sujeito (capaz de
3
agir, capaz de se responsabilizar) através de atos de julgamento
medeia situações de conflitos. Mas que também é parte integrante de
um viver-bem, de uma vida plena.

2- O PERDÃO
O perdão designa um momento ápice do esquecimento, e como
conseqüência, na própria memória. O perdão é algo que não pode ser
claramente explicado, pois “o perdão é tão difícil de ser dado quanto
compreendido” (RICOEUR, 2000, p. 465). A dificuldade de
compreender o perdão está inserida na dificuldade que temos de
compreender um ato inacabado, pois o perdão é chamado para
resolver os conflitos não resolvidos.

O Perdão Difícil é o capítulo que encerra Memória, História e


Esquecimento. Ele é colocado logo após o tópico da anistia por razões
evidentes:

Com tal foco Ricoeur tinha introduzido a diferença entre anistia e


perdão, principalmente em nível gramatical. A anistia soa ao
imperativo (“deve esquecer!”), enquanto o perdão se coloca como um
desejo, não imposto, expresso sob a forma do optativo (CUCCI, 2009,
p.150)

O perdão difere-se da anistia porque este atua num campo a onde a


espontaneidade dos indivíduos é convoca para selar um conflito.
Diferentemente da anistia, onde o apaziguamento é colocado “à
força”, no perdão a solução se dá pela construção deliberada.

Se tomarmos separadamente os três tópicos dos textos (História,


Memória e Esquecimento), vemos que a importância do perdão se
mostra ao historiador como uma lembrança “ dolorida” Para a memória
o perdão se mostra como elemento que tenta converter a memória
dolorida em memória feliz. Para o esquecimento o perdão se mostra
como um convite ao apagamento.

A dubiedade de perdão que Ricoeur nos tenta mostrar, acontece


porque o perdão se fundamenta na ausência de algo, “a falta é o
pressuposto existencial do perdão” (RICOEUR, 2000, p.497).

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A falta torna o perdão impossível de ser apropriado. O perdão atua
como um horizonte, onde quanto mais se aproxima mais ele se afasta.
Isso ocorre pelos motivos acima expressos, o perdão toma como base
uma memória dolorosa que quer se converter em uma memória feliz,
mas quando ela faz o percurso dessa conversão ela se aproxima do
abismo do esquecimento. Ameaçada pelo apagamento, ela recua e
volta a ser dolorosa.

Em um plano horizontal o perdão designa reconhecimento de culpa.


Num plano vertical o perdão designa um ato de graça. Se voltássemos
a adotar a linguagem de Tempo e Narrativa, podemos dizer que o
perdão é difícil de ser configurado, e, portanto difícil de ser narrado.
Talvez essa dificuldade do dizer e do fazer o perdão o tenha colocado
tão longe do campo da especulação filosófica e tão perto da
linguagem religiosa.

Mas apesar de ser difícil de ser compreendido e realizado o perdão


não é impossível. Ricoeur tenta então mostrar, se não o significado do
perdão, pelo menos o seu sentido. E ele faz isso através de um
calculo.

3- O PERDÃO DA JUSTIÇA E A JUSTIÇA DO PERDÃO.


O perdão e a justiça são elementos decisivos para a configuração
narrativa e para o saudável funcionamento da memória e do
esquecimento. Eles se aproximam, pois ambos têm o intuito de tecer
uma intriga, de selar um conflito estabelecido. Porém, não se pode
confundir o perdão com a justiça. Mesmo na nossa linguagem de dia a
dia estabelecemos a diferença quando dizemos: “perdoei alguém, mas
acho que o que ele fez não é justo” ou o inverso “esse ato foi justo,
mas não é possível perdoa-lo”.

A justiça é complexa porque a linha que separa o justo do injusto é


muito tênue. O perdão é difícil porque ele é uma luta contra a dor, é
uma digestão bem feita de algo difícil de ser digerido.

A justiça nem sempre sela o nosso desejo de vingança, e o perdão


nem sempre sela o nosso ressentimento com o passado. Justiça e
perdão envolvem-se com um reconciliação do passado.

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Em “Condenação, Reabilitação e Perdão”[6], Ricoeur discute a punição
e a absolvição dentro da esfera jurídica. Ele quer fazer mostrar que
justiça e vingança não são co-dependentes. Para ele a frase que diz
que a vingança é a justiça com as próprias mãos é carente de sentido.
Pois, se a justiça fosse possível de se fazer sem um elemento
intermediário, um terceiro (no caso do processo, o juiz) nunca
conseguiríamos estabelecer uma justa posição definitiva entre o justo
e o injusto.

Para tanto, Ricoeur dá destaque ao papel do debate, que modifica o


papel do acusado e da vitima, passando a figurar como partes. Além
disso “ sua função é conduzir um causa pendente de um estado de
incerteza para um estado de certeza” (RICOEUR 2008, p.186). Outro
elemento a receber destaque é a sentença, pois essa marca a
suspensão definitiva da vingança e “reconhece como atores
exatamente aqueles que cometeram a ofensa e sofrerão a pena”
(RICOEUR 2008, p. 187).

Sendo assim, a condenação e a reabilitação, temas do ensaio, são


instâncias intermediárias na busca da justiça como justa posição entre
vítima e ofensor. Porém a condenação não consegue fazer pleno o
restabelecimento do direito ofendido, porque mesmo que a palavra da
lei seja recomposta, a indignação pública seja expurgada, é sempre
possível que uma ponta de mágoa ainda exista, pois a indignação é
“mal distinguida da sede de justiça”. Além disso, mesmo que a vitima é
vista, dentro do cenário público, como ofendida, isso não é garantia
que ela se se reconcilie com si mesma. Reconciliar consigo mesmo é
a função do luto, e o luto não pode ser imposto, mas somente
deliberado pela própria pessoa.

A condenação também não consegue fazer o culpado se reconhecer


como culpado, pois para esse a pena imposta sempre será maior que
a ofensa cometida.

A incapacidade de a condenação ser totalmente eficaz abre espaço


para a reabilitação. A reabilitação tem como pressuposto a re-inserir o
culpado na sociedade. A reabilitação pretende “curar” o culpado.
Porém por máculas do sistema de execução penal e pela estruturação
prisional esse intuito não é cumprido.

Como a condenação e a reabilitação são ineficientes para dar a justa


posição entre justiça e vinganças criaram-se as figuras do
esquecimento forçado: a anistia e a graça. Para Ricoeur “Trata-se [a
anistia], pois de uma verdadeira amnésia institucional que convida a

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agir como se o acontecimento não tivesse ocorrido”(RICOUER, 2008,
p. 188)

A anistia e a graça são esquecimentos comandados e são figuras


políticas. Elas não existem para solucionar um conflito, mas para dar
fim a ele.

Mas diferentemente da anistia e da graça, o perdão exige memória.


Ele é um ato particular da vítima de um dano. Não é um ato
comandado ou imposto, mas é espontâneo, “o perdão não pertence á
ordem jurídica; ela nem sequer pertence ao plano do direito”
(RICOEUR 2008, p.196).

O perdão é uma figura difícil de compreender e difícil de acontecer.


Ela não se localiza em um espaço pré-determinado, e não há critérios
claros para sua obtenção ou seu oferecimento. Não podemos
previamente dizer que há alguém que digno de perdão. Também não
podemos dizer que há casos em que o perdão deve ser oferecido.

E como o perdão não é de fácil mensuração, não podemos dizer que


ele serve a justiça. Retomando aqui a idéia do tópico, o perdão não é
subtipo de justiça e nem mesmo um componente desta. O perdão
transpassa a justiça. Às vezes esse transpassar transforma o ato
ofensivo em ato justo, e às vezes o perdão sela um conflito sem
termos a necessidade de invocar a justiça.

O perdão é um abundancia de algo, é quase uma dádiva. Como diz


Paul Ricoeur:

O perdão escapa ao direito tanto por sua lógica quanto por sua
finalidade. De um ponto de vista que se pode dizer epistemológico, ele
pertence a uma economia da dádiva, em virtude da lógica de
superabundância que o articula e que deve ser oposta a lógica de
equivalência que rege a justiça (RICOEUR 2008, p.196)

Perdão e justiça utilizam-se de lógicas diferentes. A lógica da justiça é


recolocar o conflito dando uma outra posição, que deve tender a ser
uma justa posição. A lógica do perdão é dá futuro à memória. Em
termos não muito apropriados, mas que dão uma distinção clara entre
os dois o perdão é subjetivo e abstrato e a justiça é objetiva e
concreta.

Mutantis mutandi, é possível, voltando a idéia inicial desse tópico, um


perdão feito pela justiça? É possível que um ato quando convertido em

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ato justo se transforme também em ato perdoável? E é possível que o
perdão dado estabeleça por si só a justiça ao caso?

Apesar de afirmar que os dois elementos são essencialmente


distintos, Ricoeur não nega que a aproximação é necessária e
frutífera:

Por fim, gostaria de sugerir a seguinte idéia: não caberá ao perdão


acompanhar a justiça em seu esforço de erradicar no plano simbólico
o componente sagrado da vingança, ao qual aludimos no começo?”
(RICOEUR 2008,p.197)

Entendemos essa pergunta, com tom afirmativo, como uma


possibilidade de o perdão caminhar junto com a justiça no propósito
de combate á vingança. E sendo assim possível, mesmo não sendo o
intuito, mesmo não sendo o propósito, o perdão pode funcionar como
componente para a justiça e a justiça pode transformar um perdão
mais difícil em um perdão mais fácil. Portanto, a justiça facilita o
perdão e o perdão facilita a justiça.

Referencias bibliográficas:
GARCIA, José Luís. Rumos a crianção desenhada dos seres
humanos. IN Revista estudos de sociologia. Recife. Editora da UFPE,
2006. Disponível em: <<
http://www.scientiaestudia.org.br/pt2007/rumo%20a%20criacao.pdf.

CUCCI, Giovani. O perdão segundo Paul Ricoeur. In. La Cilvittá


Cattolica. Tradução Maria Alves Muller. 2009. p.145-153.

PELLAUER, David. Compreender Ricoeur. Tradução Marcus Penchel.


Petrópolis. Editora Vozes 2009.

RICOEUR, Paul. Outramente. Tradução Marcus Penchel. Petrópolis.


Editora Vozes 2009.

______________. O Justo 1 . . Tradução Ivone Benedetti. São Paulo.


Editora Martins Fontes 2008.

_____________. Memória, História e Esquecimento. Tradução Alain


François. Campinas. Editora Unicamp. 2007.

8
Notas
[1] Rawls, Jonh. Uma teoria da Justiça, 1971.

[2] RICOEUR, P. O Justo. V1. Editora Martins Fontes: São Paulo, 2008

[3] RICOEUR, Paul. Outramente,Editora Vozes. Petrópolis 1999.

RICOEUR, Tempo e Narrativa. 3 volumes. Editora Martins Fontes:


[4]

São Paulo, 2010.

[5] Principalmente em O justo. Martins Fontes, 2005.

[6] IN. O Justo1. Martins Fontes. São Paulo, 2008.

FORGIVENESS AND JUSTICE IN THE THOUGHT OF PAUL


RICOEUR.

ABSTRACT : Two central elements in the thinking of French


philosopher Paul Ricoeur is forgiveness and justice. Forgiveness, the
final part of the work “Memory, History and Forgetting”, and justice, on
the work ‘The Just”, were subjected to various analyzes of
commentators, but these two components are not worked together.
What are the possible relations between forgiveness and justice? It is
possible that justice in forgiveness? There is forgiveness in the justice?

KEYWORDS: JUSTICE, FORGIVENESS, RICOEUR, RIGHT.

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