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Ciclo de Krebs - Parte 1

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BIOQUÍMICA II | Ciclo de Krebs - Parte 1

INTRODUÇÃO Como vimos na aula anterior, o resultado da genialidade de Lavoisier, somada


ao trabalho de Laplace e Priestley, resultou na seguinte equação geral da
respiração celular:

Matéria orgânica + O2 CO2 + H2O + ENERGIA

Mas a história não parou por aí. A partir de agora você conhecerá outros
personagens da história da Bioquímica. Eles contribuíram para a descoberta
dos passos da respiração celular.

A HISTÓRIA DO CICLO DO ÁCIDO CÍTRICO

Comecemos com O TTO WARBURG , um eminente bioquímico


alemão durante a primeira metade do século XX. Filho de militar da
mais alta patente do exército, era possuidor de uma disciplina rígida e
personalidade forte. Alguns relatos contam que, para dar continuidade
a seus experimentos no período recessivo da Primeira Grande Guerra,
dividia boa parte de seus ganhos com a alimentação de suas cobaias.
Estava interessado em entender as etapas da equação de Lavoisier,
em diferentes tecidos. Para esta finalidade, desenvolveu, por volta de
OTTO HEINRICH
WA R B U R G 1918, um método manométrico (baseado em medidas de pressão) para
Prêmio Nobel de medir o consumo de oxigênio e a produção de CO2. Este aparelho foi,
Fisiologia e Medicina
em 1931, por suas mais tarde, batizado de respirômetro de Warburg, em sua homenagem
descobertas a respeito
(Figura 13.1).
da natureza e do
modo de ação das O respirômetro de Warburg teve ampla aplicação na Bioquímica e,
enzimas respiratórias.
ainda hoje, é utilizado na determinação de CO2 produzido por diferentes
preparações biológicas.
Em 1935, Albert Szent-Györgyi, um pesquisador húngaro,
começou a publicar uma série de importantes trabalhos sobre a
respiração de suspensões de músculo de peito de pombo. Sendo um
músculo muito solicitado no vôo, ele requer muita energia e possui uma
capacidade oxidante excepcionalmente alta. Szent-Györgyi estudou, em
particular, o comportamento metabólico dos ácidos dicarboxílicos C4
(ácidos com quatro carbonos que possuem dois grupos carboxílicos). Ele
também estava interessado em estabelecer a conexão entre fermentação
e oxidação, como fica claro na seguinte passagem:

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AULA
OXIDAÇÃO E FERMENTAÇÃO

Tomemos como exemplo a fermentação láctica em células


musculares. Neste processo, a molécula de hexose é fragmentada
em duas moléculas de ácido láctico. Juntas, estas duas moléculas
de ácido láctico contêm menos energia que a molécula de hexose
ALBERT SZENT-
original. Esta pequena diferença de energia é o ganho da célula.
GYÖRGYI
Alternativamente a molécula de hexose pode ser submetida
Nasceu em Budapeste.
Em 1937 recebeu à combustão, gerando CO2 e H2O. No último caso, grande
o Prêmio Nobel quantidade de energia livre é desperdiçada.
em Fisiologia e
Medicina por suas A fermentação é o mais simples dos dois processos. Ao mesmo
descobertas na área
dos processos de tempo ele é pouco econômico, pois a maior parte da energia da
combustão biológica, molécula de hexose permanece nas moléculas de ácido láctico.
particularmente com
respeito à vitamina C e
Por volta de 30 vezes mais energia é liberada por oxidação.
ao ácido fumárico. Ele Conseqüentemente, a fermentação pode manter somente as formas
não é uma gracinha? É de vida mais simples. Nesse ponto, pode existir uma pequena dúvida
o meu favorito.
de que a fermentação não é somente o mais simples, mas também
o processo mais antigo, precedendo a oxidação na história da vida.
O desenvolvimento de formas de vida mais complexas tornou-se
possível somente depois que a oxidação pelo oxigênio molecular foi
“inventada” pela natureza. Esta seqüência de eventos se reflete em
nossas células, nas quais nós encontramos oxidação e fermentação
intimamente misturadas e entrelaçadas em um sistema produtor
de energia.

A íntima relação entre os dois processos tem ocupado muitos


bioquímicos, como Pasteur, a descobrir suas interdependências
quantitativas, agora conhecidas como “Reação de Pasteur”. Pasteur
descobriu que existe algum tipo de equilíbrio entre oxidação e
fermentação. Se a oxidação é suprimida por remoção do oxigênio,
a fermentação se inicia. Se nós promovemos outra vez a oxidação,
a fermentação cessa. O mecanismo desta relação tem sido um dos
mais atraentes quebra-cabeças da Bioquímica desde então.

ALBERT VON SZENT-GYÖRGYI, Ph. D., M.D.

Professor de Química Orgânica e Biológica,

Universidade de Szeged, Hungria.

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BIOQUÍMICA II | Ciclo de Krebs - Parte 1

HANS ADOLF KREBS, um bioquímico alemão, testou os mesmos ácidos


orgânicos que Szent-Györgyi (ácidos dicarboxílicos C4) em fatias de
córtex de rim e obteve o seguinte resultado (veja a Tabela 13.1):

Tabela 13.1: Oxidação e formação de bicarbonato a partir de ácidos orgânicos em


lâminas de rins de porquinho-da-índia.

Substrato adicionado Consumo de O2 Bicarbonato formado


(µmols/g de peso seco) (µmols/g de peso seco)
Sem adição 670 0
SIR HANS ADOLF Acetato 1340 393
KREBS Succinato 1520 555
Nasceu em Fumarato 1290 705
Hildesheim,
Malato 1340 756
Alemanha. Prêmio
Nobel de Fisiologia e Piruvato 1070 318
Medicina em 1953.

Note que Krebs usou o respirômetro de Warburg e mediu tanto o


consumo de O2, pela diminuição da pressão e conseqüente deslocamento
! da coluna do respirômetro, quanto a formação de CO2, pela medida da
O que sugere este
quantidade de bicarbonato formada no poço central do respirômetro.
experimento?
Desta forma, Krebs mostrou que qualquer um dos substratos utilizados
aumentava a taxa de respiração em relação ao controle (sem adição do
substrato). Como nos músculos de pombo de Szent-Györgyi, Krebs viu
que o rim também era capaz de respirar, utilizando como substratos
ácidos dicarboxílicos de quatro carbonos (succinato, fumarato e malato),
além de acetato (dois carbonos) e piruvato (três carbonos).
Enquanto isso, no laboratório de Warburg, após um acidente
experimental com um de seus respirômetros, os tecidos de músculo foram
carbonizados e, por descuido do seu técnico, o mesmo respirômetro foi
utilizado em um outro experimento. Qual não foi a surpresa de Otto
Warburg, quando constatou um grande aumento na respiração do tecido.
Análises do material contido nas paredes do respirômetro mostraram
altos níveis de um composto orgânico associado ao ferro. Warburg
prosseguiu seus estudos com a intenção de identificar este fator, que
chamou “Atmungsferment” (enzima), pois, uma vez inativado, todo o
processo de respiração cessava.

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A próxima etapa desse quebra-cabeça foi resolvida por David

AULA
Keilin, em 1925, que redescobriu uma substância que ele denominou
cytochrome (CITOCROMO). Esta substância, como o Atmungsferment, CITOCROMOS
estava intimamente ligada aos processos oxidativos. Segundo Keilin, o Os citocromos foram
primeiro descritos
citocromo era diretamente oxidado na sua forma divalente para a forma como mio-hematina
e histo-hematina
trivalente (férrica). Os dois sistemas, Atmungsfermentt e Cytochrome, por MacMunn. Essa
foram denominados sistemas W.K. (sistema Warburg-Keilin). história você verá
com mais detalhes na
Szent-Györgyi sabia do envolvimento do O2 nos processos Aula 15.

oxidativos e ficou intrigado com o fato de que a oxidação do succinato


era especialmente bloqueada por um ácido dicarboxílico (C3), o ácido
malônico. Resolveu, então, investigar o que aconteceria com a respiração
em duas situações: 1) ao bloquear a oxidação do succinato; 2) ao incluir
pequenas quantidades de fumarato, normalmente presente no tecido.
Assim Szent-Györgyi descreveu seus resultados:

“Os resultados foram surpreendentes. Pequenas quantidades de


malonato envenenam a respiração quase como o cianeto. Ácido
fumárico estimula fortemente a respiração. A respiração rapidamente
declinante dos tecidos in vitro pode ser mantida constante por
longos períodos pelo ácido fumárico. Como Baumann & Stare têm
mostrado no Laboratório de Keilin, igualmente alguns poucos γ de
fumarato (γγ = uma milionésima parte do grama) foram ativos.

Foram consumidos vários anos de trabalho pesado para ajustar as


observações contraditórias em uma teoria. A teoria é esta: os ácidos
dicarboxílicos C4 são uma ligação na cadeia respiratória entre o
alimento e o sistema W.K. Sua função é transferir o hidrogênio
do alimento ao citocromo e reduzir por este hidrogênio seu ferro
trivalente à forma divalente. Falando mais precisamente, o citocromo
oxida dois átomos de hidrogênio da molécula de ácido succínico.
Pela perda de dois átomos de hidrogênio, o ácido succínico é
convertido a ácido fumárico. Estes dois átomos de H perdidos são
recolocados novamente por hidrogênios oriundos do alimento. O
alimento, entretanto, não cede seus dois hidrogênios imediatamente
ao ácido fumárico. Ele cede seus 2 átomos de hidrogênio para o
ácido oxaloacético, que é também um ácido dicarboxílico (C4). Por
tomar 2H, o ácido oxaloacético volta a ácido málico. Ácido málico,
então, cede seus dois hidrogênios ao ácido fumárico, e, assim, o
ácido fumárico é convertido a ácido succínico. Este pode ser outra
vez oxidado por citocromo, enquanto o ácido málico, após ceder
seus 2Hs, torna-se ácido oxaloacético, que pode tomar hidrogênio
do alimento novamente, e assim o jogo recomeça, hidrogênios
sendo transmitidos todo o tempo do alimento via oxaloacético
– málico – fumárico – succínico ao sistema W.K.”
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O resumo esquemático da história está a seguir:

Fermentação

Ácido láctico

C O HCOH

Esquema 13.1: Esse esquema geral você já conhece.

Respiração

Esquema 13.2

!
Levando em conta o esquema proposto por Szent-Györgyi, que transformações você verifica em cada
etapa desta seqüência de reações?
Qual o papel das trioses nos processos fermentativos e oxidativos propostos por Szent-Györgyi?
O que ocorreria nesta seqüência de reações na presença e na ausência de O2?

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Chegamos então ao primeiro esquema que tentava explicar como

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ocorre a respiração celular (ver Esquema 13.2). O próximo passo foi a
observação de que a adição de pequenas quantidades de ácidos orgânicos
ativava tremendamente essa via. Este efeito, chamado efeito catalítico, já
havia sido observado por Krebs durante a descoberta do ciclo da uréia
(que você conhecerá na Aula 18).
A respeito da oxidação dos ácidos orgânicos e o efeito catalítico
do ácido succínico, Krebs escreveu:

Szent-Györgyi reportou experimentos em 1935 e 1936 que sugeriam


que o ácido succínico e seus derivados ácido fumárico, ácido málico
e ácido oxaloacético cataliticamente promovem oxidação em
tecidos musculares. Provas conclusivas deste efeito catalítico foram
apresentadas por Stare & Baumann em dezembro de 1936. Estes
autores mostraram que pequenas quantidades destas substâncias
eram suficientes para provocar um aumento na respiração e que o
aumento é um múltiplo da quantidade de oxigênio necessária para
a oxidação das substâncias adicionadas. Além disso, a substância
adicionada não foi usada, mas pode ser subseqüentemente
detectada no meio. Assim, não permanece nenhuma dúvida de
que o ácido succínico e substâncias relacionadas podem atuar como
catalisadores na respiração.

Fonte: KREBS H. A.; CAMBRIDGE, M. A.; HAMBURG M. D.


The intermediate metabolism of carbohidrates.

!
De acordo com esta passagem, tal efeito catalítico exercido pelos ácidos orgânicos C4 pode ser explicado
com a seqüência de reações proposta por Szent-Györgyi?
A seqüência de reações de Szent-Györgyi explica convenientemente a equação de Lavoisier?

EFEITO CATALÍTICO DO ÁCIDO CÍTRICO

O passo seguinte foi a descoberta de que o ácido cítrico também


atua como ativador catalítico (Krebs e Johnson, 1937). Adicionado ao
músculo em pequenas quantidades, ele acelera a oxidação de carboidratos
da mesma maneira que o ácido succínico. A análise experimental deste
efeito revelou não somente o mecanismo da ação catalítica do ácido
cítrico, mas também do ácido succínico e compostos relacionados. Em
adição, isto levou à elucidação dos principais passos na degradação
oxidativa de carboidratos.

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BIOQUÍMICA II | Ciclo de Krebs - Parte 1

O DESTINO DO ÁCIDO CÍTRICO

O ácido cítrico, por longo tempo, foi conhecido como sendo


facilmente oxidável em tecidos vivos, embora os detalhes de seu
metabolismo intermediário tenham permanecido obscuros até março de
1937, quando Martius e Knoop descobriram que o ácido α-cetoglutárico
é um produto da oxidação do ácido cítrico.

O destino do ácido no corpo já era bem conhecido. Esta substância


tinha grande interesse fisiológico, já que apareceu como um intermediário
na degradação de ácido glutâmico, de prolina e de histidina. Já se sabia
que ele forma, na oxidação, ácido succínico e dióxido de carbono.

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Considerando a junção das duas reações imediatamente anteriores,

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é possível passar do ácido cítrico ao ácido succínico, e esta reação pode
ÁCIDO MALÔNICO ser diretamente demonstrada se ácido malônico é adicionado. ÁCIDO
Ou malonato é um MALÔNICO inibe especificamente a oxidação do ácido succínico, mas não
inibidor da respiração
celular, no passo inibe a degradação do ácido cítrico e ácido α-cetoglutárico.
de formação do
succinato no ciclo do
ácido cítrico.
!
Qual a relação entre tais reações e a seqüência
de reações de Szent-Györgyi?

Krebs sabia que a síntese de ácido cítrico, a partir de ácido


oxaloacético, era conduzida pela condensação com uma segunda
substância, cuja natureza química não era ainda conhecida. Supunha-se
que a segunda substância fosse derivada de um carboidrato e apostava-se
que seria o ácido pirúvico. A condensação desta segunda substância com
o acido oxaloacético para formar ácido cítrico foi formulada da seguinte
maneira por Krebs (veja reação a seguir):

PS. A nomenclatura das moléculas apresentadas é aquela utilizada nos trabalhos da época.

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BIOQUÍMICA II | Ciclo de Krebs - Parte 1

“Este esquema, ainda que suportado por evidência experimental,


é, em parte, hipotético e, por esta razão, vamos abster-nos da
discussão de detalhes; mas deve ser enfatizado que o efeito final,
que é a síntese de ácido cítrico na presença de ácido oxaloacético,
é um fato experimental.

Martius e Knoop

!
Baseado nos resultados mostrados acima e nas
citações, proponha um esquema de reações que
explique o efeito catalítico do ácido cítrico e
do α-cetoglutarato, integrando as trioses nesta
seqüência.

A SUBSEQÜENTE ELABORAÇÃO DO CICLO DOS ÁCIDOS


TRICARBOXÍLICOS

O esquema básico de 1937 tem resistido ao teste do tempo.


Existem evidentemente grandes vazios em relação ao mecanismo da
formação do citrato a partir de oxaloacetato e piruvato.

Citado em H. Krebs (1970) The history of the tricarboxylic acid


cycle. Perspect. Biol. Med. 14: 151-170

A solução deste problema esperou pela descoberta da coenzima A


(CoA) por Lipmann, na década de 1940. No mesmo período, Ochoa e
Lynem mostraram que a acetil- coenzima A (acetil-CoA) é o intermediário
que reage com o oxaloacetato para formar citrato.

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Além disso, a coenzima A foi também encontrada como
participante na formação de succinato a partir de α-cetoglutarato,

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formando succinil coenzima A (succinil-CoA) como intermediário.

!
Com base nessas informações, construa o seu esquema representando o
ciclo do ácido cítrico.

Se você acompanhou o texto e conseguiu construir seu ciclo


com base nas informações apresentadas, parabéns. Isso não é fácil. Se
você não conseguiu, consulte os tutores de Bioquímica e discuta suas
dificuldades com eles. Ao chegar ao final desta aula, você já conhece o
ciclo do ácido cítrico ou grande parte dele. Neste caso, a próxima aula
será apenas para detalhar o que você já sabe. Nela você verá cada reação,
o nome das enzimas, co-fatores e outros papéis metabólicos que o ciclo
apresenta. Não esqueça que os exercícios virão no final do módulo.

RESUMO

Nesta aula nós vimos a história do ciclo do ácido cítrico, seus principais personagens
e as etapas iniciais de elucidação dessa via. A evolução do conceito de Lavoisier
até chegar aos principais intermediários e reações do ciclo.

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