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RESUMO
Este texto parte da concepção de que gênero e sexualidade são partes integrantes do
direito à educação estabelecido constitucionalmente no Brasil. Essa premissa é
norteadora para as reflexões propostas em relação aos conflitos recentes envolvendo a
abordagem destas temáticas nas escolas. Desta forma, entre os objetivos principais deste
trabalho estão a exposição sobre os mecanismos legais que o país possui para tratar
estes temas explícita e sistematicamente na educação, bem como a análise acerca do
silêncio da escola em relação à educação em gênero e sexualidade, que vem ocorrendo a
despeito da existência destes dispositivos legais. Para isso, realizou-se levantamento
bibliográfico, em diálogo com referenciais teóricos sobre pânico moral e papel social da
educação. Constatou-se que a não abordagem destas temáticas na escola configuram
uma série de violações ao direito à educação.
RESUMEN
Este texto parte de la concepción de que género y sexualidad son parte integral del
derecho a la educación constitucionalmente establecido en Brasil. Esta premisa está
orientando las reflexiones propuestas en relación a los conflictos recientes que
involucran el abordaje de estos temas en las escuelas. De esta manera, entre los
principales objetivos de este trabajo se encuentran la presentación sobre los mecanismos
legales que tiene el país para abordar estos temas de manera explícita y sistemática en la
educación, así como el análisis sobre el silencio de la escuela en relación a la educación
en género. y sexualidad, que viene ocurriendo a pesar de la existencia de estas
disposiciones legales. Para ello se realizó un relevamiento bibliográfico, en diálogo con
referentes teóricos sobre el pánico moral y el papel social de la educación. Se constató
que la falta de atención a estos temas en la escuela constituye una serie de violaciones al
derecho a la educación.
This text begins with the conception that gender and sexuality are parts of the right to
education constitutionally established in Brazil. This premise is guiding for the
reflections proposed in relation to the recent conflicts involving the approach of these
issues in schools. In this way, among the main objectives of this work are the exhibition
on the legal mechanisms that the country has to deal with these issues explicitly and
systematically in education, as well as the analysis about the silence of the school in
relation to education in gender and sexuality, which comes occurring despite the
existence of these legal provisions. For this, a bibliographic survey was carried out, in
dialogue with theoretical references on moral panic and the social role of education. It
was found that the failure to address these issues at school constitutes a series of
violations of the right to education.
KEYWORDS: Gender. Sexuality. School.
Introdução
Segundo dados da Agência Brasil de 20161, dos jovens entre 15 a 17 anos, 1,3
milhão estavam fora da escola. Dentre estes, mais de 600 mil eram mulheres e 35%
destas já eram mães. Outras pesquisas realizadas pelo Fundo de População das Nações
Unidas (2013) indicaram que 26,8% da população sexualmente ativa (15-64 anos) do
nosso país iniciou sua vida sexual antes dos 15 anos. Essa mesma pesquisa também
revelou que cerca de 19,3% das crianças nascidas vivas em 2010 no Brasil são filhos e
filhas de mulheres de 19 anos ou menos e que em 2009, 2,8% das adolescentes de 12 a
17 anos possuem 1 filho ou mais.
Dados sobre os índices de violência doméstica apontam 606 casos por dia. E uma
pesquisa de 2016 da Organização Mundial da Saúde (OMS) registrava que as taxas de
feminicídio (assassinato de mulheres por serem mulheres) no Brasil eram a 5ª maior do
mundo e em 33,2% dos casos os assassinos eram parceiros ou ex-parceiros das vítimas.
Outras pesquisas mostram ainda que esses dados oficiais são menores que o número real
de casos, dado que a lei do feminicídio é recente (Lei 13.104 de 2015) e portanto tende
a subnotificação dos casos.
Somente em 2017 o Fórum Brasileiro de Segurança Pública registrou 60 mil casos
ou 1642 estupros por dia. Não obstante, como este também é um crime subnotificado,
1 TOKARNIA, Mariana. “Estudo mostra que 1,3 milhão de jovens de 15 a 17 anos abandonam escola”.
Educação. Agência Brasil. Disponível em:
http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2016-02/13-milhao-de-jovens-entre-15-e-17-anos-
abandonam-escola-diz-estudo. Acesso em 10 dez. 2020.
2 AMÂNCIO, Thiago. O Brasil registra 606 casos de violência doméstica e 164 estupros por dia.
Cotidiano. Folha de S. Paulo. 9 ago. 2018. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/08/brasil-registra-606-casos-de-violencia-domestica-e-
com apenas algo entre 7,5 a 10% dos casos sendo registrados, o fórum estima que os
números sejam muito superiores, podendo chegar a algo em torno de 500 mil estupros
por ano. Segundo um Boletim epidemiológico divulgado pelo Ministério da Saúde em
2018, do total dos casos de estupros registrados, apenas em 23,5% dos casos as vítimas
eram pessoas adultas. Em 45% dos casos as vítimas eram adolescentes e em 31,5% 3 dos
casos eram crianças. Destas crianças, 51,2% tinham entre 1 e 5 anos.
Como se esses dados não fossem estarrecedores o bastante, verifica-se também
que na maioria dos casos os estupradores são membros ou amigos da família da vítima.
Segundo o Atlas da Violência 20184, os desconhecidos só passam a ser a maioria
absoluta dos agressores quando falamos de vítimas adultas, que são a minoria dos casos.
Os próprios pais são responsáveis por 12,03% dos casos de estupro contra crianças e
6,54% dos casos de estupro contra adolescentes; os padrastos são responsáveis por
12,09% dos casos de crianças e 7,38% dos casos de adolescentes; e amigos e
conhecidos da família são 30,13% dos casos contra crianças e 26% dos casos contra
adolescentes.
Além disso, informações de 20175 mostram que uma pessoa LGBT é morta a
cada 19 horas no Brasil. Em 2017 foram 445 homicídios em decorrência da orientação
sexual ou da identidade trans da pessoa ou por serem seus parentes. E as que
sobrevivem tem seu direito à educação negado. Uma matéria produzida pela Agência
Brasil6 neste mesmo ano trouxe uma série de entrevistas e de referências a partir de
pesquisa realizada que confirmam a hostilidade do ambiente escolar para travestis e
8 ELLIOT, Douglas. “Projeto de lei na Polônia trata educação sexual como pedofilia”. União Europeia.
DW. 18 out. 2019. Disponível em: https://p.dw.com/p/3RWbM. Acesso em 10 dez. 2020.
9 Ailton Benedito, procurador do MPF-GO famoso por declarações de ódio em suas redes sociais como
associar homossexualidade e pedofilia (The Intercept Brasil, 22 jul. 2018), foi selecionado pelo novo
procurador-geral da República, Augusto Aras, para comandar a Secretaria de Direitos Humanos e Defesa
Coletiva na PGR (O Globo, 27 set. 2019), e também para temporariamente ocupar o cargo tirado de
Deborah Duprat no Conselho Nacional de Direitos Humanos (O Globo, 2 dez. 2019). Orley José da Silva,
autor do blog pró-censura, De olho no livro didático, figura próxima do Escola sem Partido já tendo
representado o movimento oficialmente em vários eventos, tornou-se assessor legislativo do MEC e
mesmo após ser demitido reafirmou seu apoio à política educacional do governo (Jornal Opção, 23 abr.
2019).
10 https://www.dw.com/en/hungarys-university-ban-on-gender-studies-heats-up-culture-war/a-
45944422
na educação. Esperamos que ele sirva de suporte às professoras e professores que ora
lutam pelas suas liberdades básicas enquanto educadores.
Esse direito é atacado pelas políticas antigênero que vedam qualquer debate
sobre gênero e sexualidade em sala de aula sob a pecha de “sexualização precoce” e
“doutrinação LGBT” (MOURA e SALLES, 2018).
Em outro ponto do já citado artigo 205, a Constituição Federal estabelece que a
educação será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho”. Desta forma podemos dizer que a Constituição Federal
estabelece para a educação uma tríade de funções muito similar à como faz Gert Biesta
(2015). A questão dos objetivos da educação permeia praticamente toda a história do
pensamento sobre educação, de maneira mais ou menos explícita; o que nos leva a
mobilizar Biesta neste momento é que este autor se dedica especialmente a questões do
presente neoliberal que nos tocam diretamente. Primeiro, ele divide a educação entre as
funções de habilitação (qualificação para o trabalho), a socialização (exercício para a
É na escola também que, caso haja uma efetiva preocupação com o direito de
todas as crianças e jovens, se desenvolvem ações de combate ao sexismo e à homofobia.
Rogério Junqueira (2013) definiu como “pedagogia do armário” as práticas escolares
baseadas em classificações, hierarquizações e sujeitos que se apresentam no dia a dia
escolar sob o amparo das normas de gênero e da matriz heterossexual. Essas práticas
regulatórias permeiam todo o ambiente escolar, o currículo formal e oculto, a formação
docente e a relação entre os alunos e, muitas vezes, se manifestam por meio de
insinuações, ofensas, ameaças, constrangimentos e agressões físicas como mecanismos
a serviço do controle de um espaço compulsoriamente heteronormativo e violento.
Dessa forma, estas práticas se constituem como complexos mecanismos de controle,
entre eles do gênero e da sexualidade, através, por exemplo, da perpetuação da
heterossexualidade compulsória, como parte de uma normatização social. A “pedagogia
do armário” é exemplo do que Biesta chama de socialização e que conhecemos também
por currículo oculto: a escola está sempre, mesmo que indiretamente, ensinando formas
de ser e agir. Reconhecer isto é necessário para que escolhamos o que efetivamente
queremos perpetuar no futuro.
movimentações. Foi neste cenário que nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)
as relações de gênero foram reconhecidas como constitutivas da identidade de crianças e
jovens. Viana (2004) chama atenção para o fato que a inserção desta temática nos PCNs
não foi um processo linear e sem disputa. Para a autora, a presença de gênero nos
parâmetros oscila entre a timidez e o desvelamento.
A temática aparece de forma mais evidente nos “Temas Transversais”: Ética,
Meio Ambiente, Saúde, Pluralidade Cultural e Orientação Sexual. O documento ainda
sugere a divisão do trabalho do professor em três eixos: “Corpo Humano, Relações de
Gênero e Prevenção às Doenças Sexualmente Transmissíveis/AIDS” (BRASIL, 1997,
v.8, pp. 31-34). O eixo referente às Relações de Gênero, segundo o próprio documento,
visa: “propiciar o questionamento de papéis rigidamente estabelecidos a homens e
mulheres na sociedade, a valorização de cada um e a flexibilização desses papéis”. Ou
seja, neste momento se reconhecia coletivamente a escola enquanto uma instituição que
perpetua desigualdades entre os gêneros e buscava mudar suas práticas, destacando a
dimensão de subjetivação presente em toda educação.
O trabalho sobre relações de gênero tem como propósito combater
relações autoritárias, questionar a rigidez dos padrões de conduta
estabelecidos para homens e mulheres e apontar para sua
transformação. Desde muito cedo são transmitidos padrões de
comportamento diferenciados para homens e mulheres. A
flexibilização dos padrões visa a permitir a expressão de
potencialidades existentes em cada ser humano e que são dificultadas
pelos estereótipos de gênero. Como exemplo comum, pode-se lembrar
a repressão das expressões de sensibilidade, intuição e meiguice nos
meninos ou de objetividade e agressividade nas meninas. As
diferenças não precisam ficar aprisionadas em padrões
preestabelecidos, mas podem e devem ser vividas a partir da
singularidade de cada um. (BRASIL, 1997, p. 322)
Nesse mesmo contexto foi apresentado pelo MEC, sob o governo de Fernando
Henrique Cardoso, o projeto do Plano Nacional de Educação (cuja vigência seria de
2001-2011) a ser encaminhado ao Congresso Nacional. O documento enviado ao
Congresso contou com a participação da sociedade civil em sua elaboração e havia um
processo em curso onde diversos movimentos e representantes do campo educacional
vinham debatendo uma proposta de PNE, rechaçada pelo governo. Valente e Romano
(2002) comparam os dois documentos produzidos. O primeiro que ficou conhecido
11 Fazia parte do Programa Brasil sem Homofobia o Projeto Escola sem Homofobia e a elaboração do Kit
anti-homofobia do MEC. O material que gerou forte polêmica ao ser propagandeado pelos
conservadores e fundamentalistas religiosos como Kit gay teve sua distribuição suspensa pela então
presidenta Dilma Roussef.
Portanto, temos os PCNs que nos garantem abordar estas temáticas a partir do
nível de escolaridade que hoje corresponderia ao sexto ano, pois seu texto sugere a
abordagem destas temáticas a partir da quinta série. Além da transversalização, a
Orientação Sexual também pode ser trabalhada um espaço específico, ou seja, na forma
de uma hora-aula semanal ou fora da grade horária existente, através de projetos.
Da quinta série em diante, os alunos já apresentam condições de
canalizar suas dúvidas ou questões sobre sexualidade para um
momento especialmente reservado para tal, com um professor
disponível. Isso porque, a partir da puberdade, os alunos também já
trazem questões mais polêmicas sobre sexualidade e já apresentam
necessidade e melhores condições para refletir sobre temáticas como
aborto, virgindade, homossexualidade, pornografia, prostituição e
outras. (Parâmetros Curriculares Nacionais, 5ª a 8ª série, Tema
Transversal de Orientação Sexual, 1998, p. 308).
Assim, é importante evidenciar que apesar das perseguições e das notícias falsas,
as questões de gênero e sexualidade não só fazem parte oficial do currículo escolar,
como são recomendadas pela legislação brasileira que passem a fazer parte dos Projetos
Políticos Pedagógicos escolares. As DCN para o ensino fundamental, por exemplo,
estabelecem que as escolas ao abordarem as questões relacionadas com a Saúde, a
Sexualidade, por meio suas propostas pedagógicas, contribuirão para um projeto de
nação. Já as Diretrizes para o Ensino Médio apontam a inserção dos temas através de
13 Em seu site esta organização se descreve da seguinte forma: “Nossa missão: a Ascend prepara os
jovens para fazer decisões saudáveis em uma relação e na vida promovendo o bem-estar através de
uma estratégia de prevenção primária, e enquanto uma associação nacional e uma organização de apoio
que serve, guia, representa e equipa o campo de Prevenção de Riscos Sexuais (Sexual Risk Avoidance)”.
(tradução livre). Disponível em: https://weascend.org/about-us/our-mission/. Acesso em 10 dez. 2020.
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ailton-benedito-podera-ocupar-lugar-24114162.
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