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O abraço (1917), de Egon Schiele.

| Fonte: Reprodução

Pornografia e educação sexual


Os desdobramentos do consumo de conteúdo adulto na educação
sexual dos jovens

Equipe Mídium · Follow


Published in Mídium - Comunicação em Movimento · 10 min read · Jul 31, 2018

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Por Davi César, Ingrid Campos e Lucas Freire Falconery

No dia 27 de março de 2018, a Fundação Abrinq lançou a quinta


edição do Caderno Legislativo da Criança e do Adolescente, que
avalia projetos na Câmara e no Senado que envolvem os direitos de crianças
e adolescentes. A fundação usou para a avaliação as 25 proposições
legislativas consideradas prioritárias para a proteção dos direitos da
população menor de 18 anos, com base nos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS). Entre as propostas consideradas negativas para a
instituição, existe o PL 3.010, de 2011, do deputado Aguinaldo Ribeiro
(PP/PB), como um acréscimo ao art. 79 da Lei nº 8.069/1990, que dispõe
sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e “veda o uso de imagens
eróticas, pornográficas ou obscenas no material escolar”. O projeto ainda
propõe uma classificação indicativa para as vedações:

“Para menores de 12 anos de idade quando existirem diálogos, narrações ou


cartelas gráficas sobre sexo, em qualquer contexto; para menores de 14 anos
de idade quando existirem imagens, diálogos e contextos eróticos, sensuais
ou sexualmente estimulantes; e para menores de 18 anos de idade quando a
imagem contiver sexo com incesto, sexo grupal, fetiches violentos e
pornografia em geral.”

Porque a Abrinq reprova essa medida


1. Ao se privar de tratar dos temas citados no último grupo etário citado
acima, as escolas não terão como fazer um trabalho preventivo sobre o
estupro coletivo e o abuso sexual na família e na internet.

2. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) já protege esse público da


exposição a imagens com conteúdo relacionado ao sexo que fujam ao seu
entendimento, como o que acontece em revistas eróticas.

3. No texto da medida não fica claro quem avaliaria a adequação dos


materiais didáticos sobre o assunto, abrindo margem para que “qualquer
conteúdo que aborde a sexualidade humana seja proibido de ser
disseminado e/ou ensinado nas escolas”.

4. Segundo a Fundação, a proposta de lei impacta negativamente os


Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 3 e 5, relacionados à
promoção da saúde e do bem-estar e à igualdade de gênero.

5. Se for aprovada, descumprirá a Meta nº 3.7, que assegura “o acesso


universal aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo o
planejamento familiar, informação e educação, bem como a integração
da saúde reprodutiva em estratégias e programas nacionais”.

6. Segundo o Ministério da Educação (MEC), as crianças constroem sua


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sexualidade a partir dos grupos sociais em que estão inseridas, como
família e escola,Search
e, principalmente, com base no que é exposto na mídia
Write

que, muitas vezes, reproduz discursos (sejam verbais ou não verbais)


danosos ao desenvolvimento da sexualidade.

Em Lolita (1997), a personagem de 14 anos que dá nome ao filme é apresentada de forma sexualizada, não deixando
claro que a história é narrada sob a visão do pedófilo, diferente do que se observa no livro homônimo de Vladimir
Nabokov, que esclarece e problematiza esse ponto. Casos como esse contribuem com a cultura de sexualização
feminina desde cedo. | Fonte: Reprodução

A especialista em sexualidade humana Débora Britto comenta que o projeto


de lei faz com que a educação sexual de crianças e adolescentes seja
negligenciada: “ De repente eu tenho uma criança que vivenciou uma
situação sexual vil e aí eu não vou abordar aquele assunto com ela porque
teoricamente ela não tá preparada? A vida infelizmente foi cruel com ela e
colocou à sua disposição aquele tipo de vivência.”

Eu trabalho num serviço de violência sexual que a gente interrompe a gestação de


meninas de doze anos que sofreram violência sexual, e o mesmo serviço faz pré-
natal de meninas que engravidaram de seus companheiros também aos doze anos,
o que é considerado estupro de vulnerável”.

Para ela, o objetivo principal de abordar a sexualidade nas escolas é educar


para a tomada de decisão, que vai desde a percepção sobre si mesmo até o
uso de preservativos e a escolha da parceria, por exemplo. A sexóloga ainda
cita a pesquisa How Young is Too Young (Quão Jovem é Tão Jovem, em
tradução literal), da Organização Mundial da Saúde (OMS):

Ingrid Campos
Dr. Debora Britto explica sobre a tomada de … Compartilhar


Privacy policy

Enquanto o Congresso discute o cerceamento de métodos didáticos de


conhecer e de falar sobre sexualidade, crianças e adolescentes a descobrem
por meios menos educativos e mais desconectados da realidade, como a
pornografia.

O mercado pornográfico
No Brasil, conforme a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios
Contínua (Pnad) divulgada em novembro de 2017, o acesso à internet
alcança 63,3% dos lares do país. Outro dado da pesquisa mostra que em
92,3% dos lares brasileiros pelo menos um morador possuía celular em 2016.
Com o acesso à internet mais facilitado, o consumo de informações é
largamente ampliado em sites de buscas, redes sociais, portais de notícias,
de compras online e, entre os mais procurados, sites de conteúdo adulto. O
Pornhub, por exemplo, figura na posição 34 da lista dos sites mais acessados
do mundo, segundo dados publicados trimestralmente pela Amazon.

O Pornhub publica relatórios anuais de acesso, como o montante de vídeos


enviados à plataforma ou a preferência de conteúdo por faixa etária. No
último ano foram enviados quatro milhões de vídeos para o site, entre
grandes produtoras de filmes pornográficos e amadores. Abaixo, o número
de visitas ao site Pornhub nos últimos cinco anos:

Dados anuais do Pornhub, em bilhões de visitas.

O Pornhub foi criado em 2007, e no ano passado montou um infográfico


celebrando os 10 anos do site. Conforme o material, já em 2008, ficou na lista
dos sites mais visitados e dois anos depois possuía mais de 100 milhões de
vídeos disponíveis. Em 2011, o vídeo íntimo de Kim Kardashian alocado no
site gerou grande repercussão.

Ainda segundo o especial, atualmente 75% do número de acessos vêm de


smartphones, e entre os vídeos mais enviados no mundo, destacam-se as
categorias: amador, gay, sexo oral, hardcore (ou intenso, em tradução livre) e
jovens. O portal tem mais de 22 milhões de usuários cadastrados e 75
milhões de visitantes diários.

Em análise dos dados da plataforma o Pornhub identifica o perfil de seus


usuários que, em sua maioria, é composta por jovens de 18 a 24 anos (31%),
sendo a presença do público com mais de 65 anos em torno de 4% do total de
usuários. Ainda conforme o site, em 2015, o Brasil foi o oitavo país que mais
utilizou a plataforma, e destacou que o público feminino brasileiro
corresponde a 35% dos visitantes atuais.

Analisando as temáticas mais buscadas podemos apontar características do público consumidor | Infográfico: Lucas
Falconery (Equipe Mídium)

Lucros

A indústria pornográfica movimentou em 2006 cerca de US$ 90 bilhões, com


a reprodução em DVDs. Já em 2012, com a oferta de material gratuito na
internet, esse número foi reduzido para US$ 10 bilhões. Existem,
atualmente, cerca de 25 milhões de sites relacionados a pornografia, o que
representa 12% dos sites da internet e 30% do tráfego online. Nessa nova
realidade, o setor busca alternativa de lucros em conteúdos exclusivos,
premium (sem anúncios), vídeos em alta definição e live cams que oferecem,
por exemplo, o serviço de conversar com atores específicos. Em
contrapartida à crise do setor, o serviço de live cam no ano de 2016 faturou
cerca de 10 bilhões de reais, em que mulheres e homens fazem uma
performance online.

A nova educadora sexual


A disponibilidade de conteúdo adulto na internet instiga a curiosidade de
pessoas de todos os públicos. Em pesquisa realizada na Universidade de
Nebraska, nos Estados Unidos, foi observado que a idade média da primeira
exposição à pornografia é de 13 anos, com cinco anos sendo a idade mais
precoce e 26 a mais tardia. O estudo também revelou que quanto mais cedo
um homem começa a consumir pornografia, mais chances tem de
apresentar comportamento mais dominante em relação ao sexo oposto.

Em termos de reprodução de comportamento, é importante frisar que o sexo


é um assunto híbrido em áreas de conhecimento, não restrita apenas ao
campo da biologia. A sexóloga norte-americana Yana Tallon-Hicks — que
trabalha ministrando workshops para adolescentes sobre sexualidade — em
palestra para o TedxVienna, fala sobre como o tema é apresentado para esse
público:

“A primeira coisa que gosto de lhes perguntar é ‘o que vocês têm aprendido
nas suas aulas de educação sexual?’. Essa pergunta é usualmente seguida por
um longo silêncio […] algumas vezes, eles me falam ‘sobre DST’s, penetração
de pênis e vagina e gravidez’, mas a maioria deles diz ‘nada’”. E piora:

“A próxima coisa que eu gosto de lhes perguntar é


‘onde você aprendeu sobre o prazer sexual?’ e eles
sempre me dão a mesma resposta: ‘no pornô’”.

Segundo Tallon-Hicks, enquanto todo o aparelhamento social falha em


ensinar esses jovens sobre o real prazer sexual, a pornografia, que está cada
vez mais acessível para eles por causa dos smartphones, potencializa-se
como educadora sexual.

A ausência do diálogo acerca da sexualidade entre pais e filhos e na escola favorece a desinformação e a
inexperiência de adolescentes para lidar com o tema. | Fonte: Reprodução

Muitas vezes, os vídeos disponibilizados em sites de conteúdo adulto fazem


referência ao incesto, ao estupro e à pedofilia, alimentando e naturalizando
esses crimes entre os seus consumidores. Além disso, práticas sexuais não
convencionais como gangbang — em que uma pessoa (geralmente do sexo
feminino) faz sexo em posições submissas com várias outras,
simultaneamente — ganham cada vez mais espaço nessas plataformas, com
performances cada vez mais elaboradas. Em artigo para o site ThinkOlga,
Gabriela Loureiro explica esse fenômeno: “Como é um mercado, a
competição impera na indústria pornô, e o conteúdo ‘evolui’ para práticas
cada vez mais ‘ousadas’. O gangbang de três caras com uma mulher de
repente vira o ‘extreme gangbang’, com 10, 20, 150 caras. […] Surgem canais
especializados em surras e outras práticas cada vez mais extremas, ‘extreme
isso’, ‘extreme aquilo’. E assim por diante, com atos cada vez mais violentos e
mais destruidores de corpos femininos”.

Alguns títulos encontrados no site Xvideos (acesso em 15 de abril de 2018). Fonte: Reprodução.

Ainda, em grande parte dos vídeos disponibilizados em sites de conteúdo


adulto, no caso de uma relação heterossexual, homens são apresentados
como figuras imponentes, confiantes e que dão ordens durante todo o ato
(muitas vezes, com violência). Já as mulheres estão quase sempre submissas
aos desejos masculinos, resumidas a objetos do prazer masculino. Ou seja:
eles mandam e elas obedecem.

Débora Britto comenta sobre a tentativa de reprodução de determinadas


práticas de vídeos pornográficos no dia-a-dia: “Se eu internalizo isso como
corriqueiro ou adequado, nada mais óbvio de que eu vá procurar viver esse
tipo de experiência no meu cotidiano, e aí eu encontro o outro, que nem
sempre vai estar disponível para esse tipo de prática sexual”. Para ela, as
tentativas de reprodução de certas práticas comuns da pornografia podem
provocar estranhamento e levar os casais à insatisfação.

Ou seja, crianças e adolescentes passam a ter referências de sexualidade a


partir do que aprendem nesses vídeos quando não têm instrução das escolas
e dos pais. “Hoje, muitas vezes, as famílias não dão conta de todas as
demandas que uma criança tem e acabam ficando lacunas, e aí essas lacunas
precisam ser sanadas nas escolas. Se não são sanadas por educadores que
estejam treinados e capacitados para lidar com elas, e uma dessas lacunas é
a sexualidade, então onde serão? Essa informação virá dos amigos, dos
colegas, que estão, muitas vezes, no mesmo grau de maturação biológica e
psicológica que eles, logo não vão ter uma capacidade de julgamento e
compreensão. Ou vão conseguir através da internet, mas eles não vão ficar
sem ter acesso a essa informação”.

Pensando nisso, Erika Lust e Pablo Dobner, produtores de filmes pornôs,


criaram a plataforma “The Porn Conversation” (A Conversa Pornô, em
tradução literal) que ajuda pais, professores e educadores a debaterem com
os filhos sobre sexo e pornografia. Segundo o próprio site, “a pornografia
pode confundir os adolescentes sobre como o sexo se relaciona com a
sensualidade e os relacionamentos, muitas vezes separando o sexo das
emoções. Isso também dá aos adolescentes expectativas irreais sobre como
olhar e agir. Precisamos que você mostre a eles que o sexo é muito mais
complexo do que o que eles veem online”.

Porn: Fact or Fiction


Compartilh…
De um canal com um pro1ssional de saúde
credenciado nos Estados Unidos

Assistir no

No site são disponibilizados guias, cartilhas, palestras e vídeos sobre educação sexual, como mostrado no
vídeo. | Fonte: Reprodução

Apesar de todas as problemáticas que o pornô apresenta, Débora Leitte


lembra que ele também pode ter um bom uso: “A gente usa muito material
de conteúdo adulto na terapia sexual, quando eu preciso trabalhar a
estimulação sexual. Existem mulheres que também têm um desejo ou uma
excitação sexual diminuída, e elas buscam se excitar mais facilmente. E aí
você vai escolher dentro do espectro enorme de material de conteúdo
próprio para adultos aquilo que se aplica a cada situação. Então é sempre
analisar o contexto do conteúdo e do usuário”.

Nessa perspectiva é que figuras como Cindy Gallop, sexóloga britânica,


aparecem: em um cenário em que “a indústria pornográfica é dirigida por
homens, fundada por homens, administrada por homens e direcionada para
homens”, criou o site pornográfico “Make Love, Not Porn” (Faça Amor, Não
Pornô, em tradução literal), para o qual casais enviam vídeos de suas
relações sexuais, mostrando o sexo de forma naturalizada. Segundo Gallop,
os vídeos produzidos pela empresa tem um código de ética e de
remuneração justo, além de contratar também mulheres para a produção
dos materiais. No vídeo abaixo, Cindy explica melhor a plataforma:

Make love, not porn (Adult content) | Cindy Gallop


Compartilh…

Assistir no

Cindy Gallop é criadora do site “Make love, not porn”, que disponibiliza conteúdo pornô, como a própria
costuma dizer, “do mundo real”.

O Diálogo e a Educação Sexual


O debate acerca do sexo, em geral, é carregado de tabus, constrangimentos e
polêmicas, o que faz com que o assunto seja pouco analisado e levando à
desinformação, o que pode gerar relações traumáticas. É importante que
sejam analisadas as variáveis relacionadas à sexualidade para que as pessoas
tomem decisões mais positivas nesse âmbito.

A sexologia apresenta-se como uma área do conhecimento de caráter


multidisciplinar que envolve diversos saberes, como antropologia e
psicologia, estudando o comportamento sexual humano. Para isso, avalia
questões culturais a fim de entender o que é considerado típico para uma
sociedade, por exemplo, bem como as transformações das construções
sociais conforme o período histórico.

A pornografia é um dos alvos de estudo da sexologia, que faz uma


diferenciação de que tipo de conteúdo é considerado pornográfico, quem e
em que condições o está produzindo, assim como a recepção do público
consumidor. Assim, conforme a sexóloga Débora Britto, para classificar
pornografia como algo positivo ou negativo é preciso estabelecer um
referencial em que diferentes variáveis devem ser analisadas.

Sobre educação sexual, a especialista pontua que os responsáveis pela


formação de um jovem, assim como os profissionais de ensino, devem
direcionar o aconselhamento para além da prevenção de DSTs e dos
métodos anticoncepcionais. A reflexão precisa entender a importância da
escolha da parceria e da percepção sobre outro para que seja uma boa
experiência para ambos.

Ferias Mulheres História Da Arte Artes

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