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Baltasar Gracián
Fontes utilizadas: Im Feel DW Pica SC(Capa e Títulos); Im Feel Flowers
Amiri(Esta Página).
Imagem da capa: Jack and His Golden Snuff-Box, por Batten, John Dickson
<http://books.google.com/books?id=FgmTSHFEvrgC&hl=&source=gbs_api>
Desde que igualmente gratuita, toda cópia – Integral ou parcial — deste documento é
permitida e incentivada, aquele que assim fizer será recebido como bom amigo.
MMXXII
Página Intencionalmente Deixada em Branco
Sumário
x
Sumário.................................................................................................................................................................. 5
Ao Leitor............................................................................................................................................................. 11
PRIMOR I..............................................................................................................................................................
Que o Herói Pratique a Incompreensibilidade nas suas Profundezas.......................13
PRIMOR II.............................................................................................................................................................
A Cifração da Vontade................................................................................................ 16
PRIMOR III...........................................................................................................................................................
A Maior Dádiva do Herói........................................................................................... 19
PRIMOR IV...........................................................................................................................................................
Coração de Rei............................................................................................................ 23
PRIMOR V.............................................................................................................................................................
Gosto Relevante.......................................................................................................... 27
PRIMOR VI...........................................................................................................................................................
Eminência no Melhor................................................................................................. 31
PRIMOR VII..........................................................................................................................................................
A Excelência do Primeiro............................................................................................ 35
PRIMOR VIII........................................................................................................................................................
Que o Herói Prefira os Empenhos Aplausíveis..........................................................38
PRIMOR IX...........................................................................................................................................................
Sobre os Quilates do Rei............................................................................................. 41
PRIMOR X.............................................................................................................................................................
Que o Herói Quantifique sua Fortuna ao Empenhar-se............................................44
PRIMOR XI...........................................................................................................................................................
Que o Herói Saiba Descansar, Ganhando com Fortuna............................................48
PRIMOR XII..........................................................................................................................................................
Os Favores das Gentes................................................................................................. 52
PRIMOR XIII........................................................................................................................................................
Da Desenvoltura.......................................................................................................... 56
PRIMOR XIV........................................................................................................................................................
Acerca do Império Natural......................................................................................... 59
PRIMOR XV..........................................................................................................................................................
Acerca da Sublime Simpatia........................................................................................ 62
PRIMOR XVI........................................................................................................................................................
Renovação da Grandeza.............................................................................................. 65
PRIMOR XVII.......................................................................................................................................................
Toda Dádiva sem Afetação.......................................................................................... 69
PRIMOR XVIII.....................................................................................................................................................
Emulação das Ideias.................................................................................................... 71
PRIMOR XIX........................................................................................................................................................
Crítica Paradoxa.......................................................................................................... 74
Começo dando-lhe as satisfações devidas sobre a natureza disto que lê. Digo que prezei
muito pela estilística única e as metáforas datadas neste trabalho, tentei afastar-me das
corrupções forçosas dos textos de Gracián, que tolheriam o leitor de uma experiência completa
sob o pressuposto de uma simplificação; acrescentei somente aquilo que julguei
indispensavelmente complementar, suplementar e hodiernizar o passado perdido quando
irrecuperável. Adaptá-lo indiscriminadamente aos contextos modernos é julgar como parvos
os leitores, incapazes de fazê-lo por si mesmos, uma infantilização. Creio que, se tu
verdadeiramente aspira o heroísmo, poderá realizar o esforço nada hercúleo de portar um
dicionário e uma breve enciclopédia histórica como companheiros na sua leitura, ou até
mesmo abrir uma aba a mais de seu navegador para elucidar-se no desconhecido quando
encarado. Acrescentei notas de rodapé naquilo que achei que traria grandes equívocos e penso
que isto basta para os bons entendedores dedicados.
E que se dediquem bem ao ler, aconselho para que não vejam este livro uma vaidade
pessoal, a qual se deve conceder seu tempo curto numa leitura única e infrutífera, tudo para
depós trancafiá-lo no oblívio de suas prateleiras para o deleite das traças, para que a mão de
Saturno rasgue-o em mil frações de pó. A função dele é ser espelho, deve usá-lo como tal.
Leve-o consigo para onde for necessário conselho de prudência, puxe-o quando notar
dúvidas no menor agir e reflita interiormente sobre como tornar mais lustrosos seus feitos.
Consideres em verdade fazer-se reflexo das máximas aqui delineadas a fim de pugnar seus
vícios particulares e exaltar o que mais te aproxima do Altíssimo, zênite da grandeza.
Dir-lhe-ei o que é verídico: uma vez que puder enxergar teu semblante em cada página de
sabedoria aqui escrita, todo penar valerá anóveas no cérulo rol da magnanimidade.
Quão singular é o que lhe desejo! Comprometo-me a formar um homem gigante com
um livro anão e com pequenas frases feitos imortais. Tirar o máximo de um homem; isto é
milagre em perfeição, não por reinado da natureza, mas por suas juras é o proveito.
Aqui terá uma – não politica nem ainda econômica –, senão uma razão de estado de ti
mesmo. Uma bússola guiante à excelência, uma arte de ser ínclito com poucas regras de
discrição.
Corto por aqui meu parco pensar. Não quero mais obstá-lo para que caminhe adiante.
– Baltasar Gracián
O Herói
PRIMOR I
Que o herói pratique a incompreensibilidade nas suas profundezas
Se deseja que te admirem, não permita que homem culto algum sonde-
lhe o fundo de suas correntezas. Formidável é um rio até que se encontre
seu vau, e venerado é um homem até que se encontre os limites de sua
capacidade; pois ignorada e presumida a profundidade sempre manteve,
com receio, o crédito.
Mas quem deslumbrou este epicentro dos raios da prudência que era o
grande restaurador da monarquia Goda, fora, quando mais, a sua heroica
consorte, seguida da corte do palácio. Desveladamente tentavam sondar
seu fundo e medir-lhe. Todavia ele estava advertido no ceder e permitir,
Fernando fazia-os com cautela, negava-se a eles para ao final ganhar-lhes.
1 Originalmente a obra faz referência a uma velha brincadeira nativa da região de Gracián (Diz-se “desterrar una barra”),
a metáfora for a desconstruída aqui para que se houvesse inteligibilidade, já que o jogo não transcende às nossas terras.
2 Aqui é referido Fernando II de Aragão
Ó varão ingênuo de fama! Tu que aspiras grandeza, atenta-se ao
conselho. Que todos lhe conheçam, mas que ninguém alcance tuas
profundezas. Com esta artimanha o moderado parecerá muito, o muito
será infinito e o infinito ainda mais.
PRIMOR II
A Cifração da Vontade
Está tão creditada esta parte da sutileza que sobre ela Tibério e Luiz
ergueram toda sua máquina politica.
Este primor ensina a entender e não ser entendido. Passa adiante, ensina
a ocultar todo defeito das atalaias que vigiam os descuidados e
deslumbrando os linces que habitam na obscuridade do outro.
3 Ambas foram ninfas da mitologia grega, condenadas a tornarem-se monstro pelos seus malfazejos.
Aquela amazona Católica4, pela qual a Espanha nada teve a invejar
Zenóbia, Tômiris, Semíramis e Pantafilea5 pode ser oráculo destas sutilezas.
Quando estava para dar a luz, abrigou-se no quarto mais obscuro e se zelou
com decoro natural. A inata majestade trancou seus suspiros para dentro
de seu seio real para que não se escutasse nenhum “ai” e o véu de trevas
cobrisse seu semblante. Quem mais assim menosprezou tão escusáveis
dores com os mesmos escrúpulos do crédito?
Cardeal Madruzzo não classificava como néscio aquele que faz uma
necedade, mas aquele que, ao cometê-la, não sabe afogá-la.
Muitas vezes, vale-se mais a muitos campeões uma perspicácia que todas
o ferro de seus esquadrões armados; sendo prêmio da perspicácia a vitória.
Até mesmo nos tribunais bárbaros assiste-se o que é o sol dela. Compete
com a de Salomão a prontidão daquele grande turco. Penalizando-o
usuramente, pretendia um Judeu cortar uma onça de carne de um Cristão.
Insistia nisso com igual teimosia ao seu príncipe, que perfídia a seu Deus.
O grande juiz mandou que se trouxesse peso e faca, condenando a
degolação caso cortasse-se mais ou menos. Terminou por dar um golpe
certeiro na disputa e deu ao mundo um milagre de engenhosidade.
É a prontidão oráculo nas maiores dúvidas, esfinge nos enigmas, fio de
ouro nos labirintos e frequentemente tem portar de leão, que guarda seu
maior potencial para situações de aperto.
São os ditos e feitos dos outros um fértil solo para que se semeie astúcia,
pelas quais, fecundado o engenho, multiplica a colheita de prontidão e
abundância de perspicácias.
Máximo era o de César, que não achava meio termo entre tudo e nada.
Não brilha tão ufano o quase eterno diamante no meio dos vorazes
carbúnculos6, como sole (se assim se pode dizer um fazer de sol) um
augusto coração em meio aos perigos e riscos.
6 Espécie de pedra preciosa, uma variação de granada também conhecida como almandina
admiração universal dizendo que não há melhor companhia nos maiores
apertos que um grande coração.
Supre a sobra dele a falta do resto, sendo sempre o primeiro que vai até a
dificuldade e vence-a.
7 Pois antes de ser tornar rei de toda a França o monarca era o duque de Orleãs.
Há sobeja margem para interpretar este aforismo, gosto de interpretá-lo como uma superação do estado anterior. Uma vez
tendo o coração ascendido já não interessam e tampouco competem a ele a solução de apoquentos menores
PRIMOR V
Gosto Relevante
Bom é o elogio oportuno. Dizem alguns que o aquele que não cansa de
elogiar acaba em vitupério. Eu diria que as obras da bajulação são mínguas
em capacidade, e que aquele que demais o faz ou ri de si mesmo ou ri dos
outros.
O mundo estava cheio de suas proezas, dele que foi alvorecer do maior
sol, refiro-me as vitórias de Dom Fernando Alvares de Toledo. Com o
conquistar do mundo não era satisfeito nem sequer metade seu gosto,
estranhavam muito o porquê. Disse ele que, em quarenta anos de vencer,
tendo toda a Europa como campo de batalha, tendo brasões drapejantes
hasteados como as empresas de seu tempo, tudo parecia-lhe nada; pois
Este primor não lhe afasta de ser um homem culto, isto é destemperança
insuportável, mas sim a ser integro censor daquilo é mais valioso. Alguns
fazem o juízo escravo do afeto, impedindo os oficios sob o sol e sob as
trevas.
Das dadivas, umas vem dos céus, outras são liberadas com a construção
interna. Somente as primeiras nem tão-somente as segundas bastam para
concretizar um sujeito. Quando o céu lhe destituir as naturais deixe que a
diligência supra nas adquiridas. Aquelas são filhas do favor, estas do
louvável esforço, e não costumam ser as menos nobres.
Pouco é mister ao indivíduo, muito para o universal. Estes são tão raros
que comumente se nega a realidade caso se conceda ao conceito.
Muitas mediocridades não bastam para agregar uma grandeza, mas uma
eminência sobra para demonstrar superioridade.
Nunca houve herói sem eminência em algo, porque ela faz parte de um
grande caráter. Quanto mais qualificado seu emprego, mais glorioso seu
aplauso. É a eminência dádiva avantajada e fração da soberania, pois simula
como se dará sua veneração
Chegado o Rei em Xerez e a sua casa, não o achou nela, porque Vargas,
ensinado a acampar, enganava nos campos sua generosa inclinação. Para o
Rei, que não se incomodara em ir da corte até Xerez, não foi incomodo ir
donde estava até a alqueira. De lá descobriram-no à léguas, com uma foice
em suas mãos, a podar as vinhas com dificuldade. Afonso mandou que
seus homens ficassem em guarda e escondessem-se. Desceu do cavalo e,
com majestosa galanteria, começou a recolher os sarmentos que Vargas,
descuidado, derrubava. Este fora assertivo ao virar a cabeça, alertado por
algum ruido feito pelo Rei, ou – o que é mais provável – por algum
impulso fiel de seu coração. Quando reconheceu que era sua majestade
catando sua poda, disse-lhe:
“Prossiga, Vargas”, disse o Rei Afonso, “Pois para tal podador deve-se
haver tão bom sarmentador.”
Ó triunfo de eminência!
O raro varão anseia-a com segurança de que o que ela custará de fadiga
trará de lucros em celebridade.
Alguns tem sido fênix de seus oficios, outros não avançaram adiante.
Grande vantagem é ser o primeiro, se fô-lo com eminência a vantagem é
dobrada. Quem vencer por essa mão ganha em igualdade.
São tidos por imitadores daqueles passados os que os seguem. Por mais
que derramem suor em seus esforços, não podem se purgar da presunção
imitadora.
Sê, pois, eminente fidalgo nos assuntos expostos ao teatro universal; isso
é conseguir augusta aplausibilidade.
Aquele que disse ensinou a verdade, apesar de ser poeta 10: “Não
empreendas tu assunto no qual contradiga Minerva”; Porém não há coisa
mais difícil que desiludir alguém de suas próprias capacidades.
10 Refere-se a Horácio (Quintus Horatius Flaccus), magnânimo poeta romano conhecido por muito refletir do epicurismo
em seus textos. A referida “Minerva” é considerada no panteão romano como a deusa dos artesanatos.
Se o monarca tivesse de repartir as tarefas mecânicas, dizendo: “Sede vos
lavrador! Sede vos marinheiro!” Render-se-ia logo a impossibilidade.
Ninguém iria se contentar, nem mesmo aqueles com os melhores encargos;
enquanto quando deixados para escolher por si, cegam-se na busca pelo
mais parvo.
Tinha César sua fortuna bem tomada pelo pulso quando gritava em
ânimo ao seu barqueiro enfastiado: “Não temais, isto insulta a fortuna de
César!” Não se achou ancora mais segura que seus dizeres. Não temeu mais
os ventos contrários ele que levava na poupa os alentos de sua fortuna. O
que apoquentam os importunos do ar se o céu está sereno? Quem há de se
importar com os bramados do mar se as estrelas sorriem?
Para muitos soa como temeridade algum empenho, mas não é nada
senão destreza, atendendo ao favor da fortuna. Perderam outros, o
contrário, grandes oportunidades celebres por não terem compreensão de
sua sorte. A ela até o cego jogador consulta ao precipitar-se.
O pai sagaz supre com ouro a fealdade de sua filha, o universal supre sua
fealdade de engenho com boa ventura.
Desejou Galeno a que seu médico fosse afortunado, que Vegécio 12 fosse
capitão e Aristóteles fosse seu monarca. O correto é que todo herói se
apadrinhe da coragem e da fortuna, ambos eixos do heroísmo.
12 Flávio Vegécio, escritor militar romano do século IV. Seu principal trabalho é conhecido como Epitoma Rei Militaris,
mas também pode ser encontrado como De Rei Militaris. Além deste, conta com uma obra sobre veterinária chamada
Digesta Artis Mulomedicae.
Contudo, quem de ordinário provou os dissabores desta madrasta,
neutralizadora de todo empenho, não sejais teimosos, pois geralmente ela
leva o desfavor a ti.
Tinha ele todo o globo suspenso por sua fortuna, assaz satisfeito com
sua coragem declarou-se galã desta grande princesa em sua primeira
oportunidade. Falo daquela tão imortal para aos seus companheiros
quanto mortal para seus inimigos, a batalha de Norlinga 13, com todos os
finos progressos na França e em Flandres, com o resto de toda sua graça em
Jerusalém.
13 Evento decisivo para a guerra dos trinta anos protagonizado por Dom Fernando em Norlinga (Nördlingen), Alemanha
Solimão14 previu grande felicidade por parte nosso Marte católico, o
quinto dos Carlos. Temia sua fortuna sozinha mais do que seus terços 15 ao
ponente, contemplação de outros.
Retirou-se ainda a tempo e isto valeu a pena, não pela reputação, mas
pela coroa que mantinha.
Não tanto foi Francisco I da França, que pecou com ignorar sua fortuna
e a daquele César. Sendo delinquente na prudência foi condenado a prisão.
14 Solimão, o Magnífico. Califa Otomano que – apesar de nunca ter encontrado com ele pessoalmente – aliou-se com o rei
francês, Francisco I, durante a década de 1530 contra o Sacro Império Romano-Germânico.
15Formação militar majoritariamente utilizada pelos exércitos ibéricos. Caracterizava-se por empregar um terço de lanças,
junto arcabuzes e mosquetes na mesma infantaria; era extremamente efetivo em neutralizar avanços por cavalaria. Outra
batalha, a Cerignola em 1503 foi onde se provou seu valor estratégico e é tida por muitos como uma das primeiras batalhas
onde a pólvora fez-se arma efetiva.
PRIMOR XI
Que o Herói Saiba Descansar, Ganhando com Fortuna
16 O imperador do Sacro Império que retirou-se no Mosteiro de São Jerónimo de Yuste, morrendo tranquilamente pouco
depois. Eugene Delacroix capturou o momento com sua ilustre pintura “Charles-Quint au monastère de Yuste”
Belisário cegou-se para que outros abrissem seus olhos, a Lua da
Espanha17 eclipsou-se para dar a luz a muitos.
17 Gracián aqui referencia o Conde Alvaro de La Luna, numa espécie de trocadilho com seu nome.
Tantos subiram do cutelo à coroa como baixaram da coroa ao cutelo.
Come-se melhor os bons-bocados da sorte com o agridoce de um azar.
Conquistar este favor universal tem algo de estelar, mas mais ainda tem
de diligência própria. Discorreram outros ao contrário, quando perante a
igualdade de méritos correspondem desproporcionalmente os aplausos.
O mesmo que foi um ímã das vontades em um, no outro é feitiço. Mas
sempre considerei-o avantajado o partido à arte.
Um dia este rei perguntou a seus contíguos: “O que faz Guisa para assim
enfeitiçar as gentes?”
Feliz graça seria se fosse ela feita irmã àquela de seu rei. Não há eficiência
alguma em excluírem-se. Por mais que encareça Bajazeto 18, a
aplausibilidade do ministro causa receio ao patrão.
18 Bajazeto I, O Relâmpago Otomano. Ficou conhecido no ocidente por quase tomar Constantinopla e no oriente por sua
forte rixa com Tamerlão.
Em verdade, os favores de Deus, do rei e das gentes são as três mais belas
que puderam ver os antigos. Dão as mãos uma a outra, entrelaçando-se em
nó apertado todas as três. Se há de faltar alguma, que seja por ordem.
19 Afonso V de Aragão, quem firmou o domínio aragonês sobre Nápoles e apaziguou o reino italiano.
Diria eu que dentre a pluralidade de dádivas concessoras de um renome
plausível, esta é a mais alegrante.
20 Matias Corvino, monarca magno, filho do cavaleiro branco da Hungria, tão louvado quanto seu glorioso pai. Ambos são
respeitados como mantenedores da paz e expelidores de otomanos de seu devido solo real.
PRIMOR XIII
Da Desenvoltura
21 Rei francês durante o período das guerras protestantes. Estrategista nato e apaziguador de seu povo, converteu-se ao
catolicismo e garantiu a liberdade religiosa de todos os cristãos em vez de perder sua cabeça
22 Assim teria dito Alexandre, o Grande, quando percebera que seu império alcançava vastidões atingidas antes apenas na
cobiça dos poderosos, apesar de ainda não abranger o mundo todo.
PRIMOR XIV
Acerca do Império Natural
César, cativo de piratas ilhéus, era mais senhor deles do que o contrário,
mandava neles mesmo vencido. Era cativo por cerimônia e senhor por
realidade de soberania.
Homens como estes fazem mais pelo amago23 que outros por sua
diligência. Tem em suas razões um vigor secreto, que os faz alcançar mais
por simpatia do que por luz.
23 Arcaísmo: olhar severo, uma ameaça que obriga alguém a fazer algo. Não confundir com “âmago”.
Sujeitam-se a ele as mais orgulhosas mentes sem saber o porquê, e a eles
se rendem os juízos mais isentos.
Assim, a estes heróis, reis por natureza, o respeito dos demais adianta-se,
antes que se tente desvendar suas profundezas.
24 Grande militar espanhol, conhecido como o Grão Duque de Alba. Liderou diversas campanhas a mando de Carlos V e
Felipe II por todo o oeste europeu. Sendo inclusive o responsável por entregar a coroa portuguesa à Espanha após
descoroar Dom Antônio I.
Isto é muito distante uma falsa gravidade de um tom afetado;
quintessente para o aborrecível, nem tanto se é nativa, mas ainda sim
muito próximo do enfado.
Porém a maior oposição ainda é para com receio de si, com a suspeita da
própria coragem e mais ainda quanto ao abate da desconfiança, que sempre
culmina no se render ao desprezo.
Foi aviso de Catão, e mui próprio por parte de sua severidade, que um
homem deve respeitar-se e ainda temer-se a si mesmo.
Dádiva do herói é ter simpatia com outros dos seus. Basta ser simpática
com o sol para uma planta fazer-se gigante e ter sua flor como coroa do
jardim.
Luís XI fora monstro em realeza, que, mais por natureza que por arte,
estranhava a grandeza e perdia por vezes a categoria politica.
Por vezes esta dádiva augusta se encontra moribunda por não alcançar
os alentos da glória. A calamita não atrai ferro fora de sua região, nem a
simpatia atrai obra fora de sua esfera de ação. É a proximidade a principal
das condições, não assim com intromissão.
Um princípio ousado em estilo faz mais que somente lhe elevar pelos
aplausos, acresce-lhe muito no valor.
Consiste ela num silencioso gabo, sendo ele a forma mais certa de um
vitupério a si mesmo.
Os entendidos julgam toda dádiva afetada antes por violenta que por
natural, antes aparente que por verdadeira, e assim dão grande baixa no
próprio estimar.
Por fugir da afetação dão outros em seu centro, pois afeiçoam-se por não
serem afetados.
Deseja-se ainda uma avaliação integérrima aos heróis, mas que engenho
a presumiria? Fácil é apontar-lhes lugar no tempo, difícil é apreciar.
Julgam estes por impossível sua salvação, ainda que sejam gigantes no
esplendor, porque são tantas harpias que quando não acham presa vil
geralmente atrevem-se ao melhor.
Há intenções com peçonha metafísica, que sabem sutilmente
transformar as dádivas e malear as perfeições, dando sinistra interpretação
ao mais justificado empenho.
Seja, pois, artífice politico permitir-se deslize venial que roa a inveja e
distraia o veneno da emulação. Passe-o por elixir político, por antídoto da
prudência, pois nascendo de uma mazela tem por efeito a saúde. Resgate o
coração expondo-se a murmuração, atraindo a si o veneno.
Quem é sol sem eclipses, diamante sem casta, o reino das flores sem
espinhos?
Todo reles luzir descende do Pai, vai dele aos filhos. A virtude é filha da
luz auxiliadora e assim é com a herança do esplendor. O pecado é um
monstro vindo do aborto da cegueira, é herdeiro da obscuridade.
28 Na teologia tomista é o lugar onde Deus criou os anjos. Dá-se, portanto, o título de rainha a ninguém senão a Maria,
Mãe de Deus.
Entre os capitães Godofredo de Bulhão 29, Jorge Castrioto30, Rodrigo
Díaz de Vivar31, o grande Gonçalo Fernandez32, o primeiro de Santa Cruz33
e terror dos turcos; o sereníssimo senhor João da Áustria, há de se
encontrar espelhos de virtude e templo de piedade cristã.
Foi tão cruel a fortuna, digo, justiceira, com ambos Neros 34, quanto
foram eles com seus vassalos.
29 Humilde militar das cruzadas que se recusou a ser coroado rei na mesma cidade que Cristo fora coroado com espinhos.
Teve governo curto entre os homens, mas legado eterno em muitas obras.
30 Por este nome é pouco conhecido, mas por Skanderberg definitivamente eternizado. Defensor da terra albanesa e seu rei
até último suspiro, foi responsável por liderar a revolta contra os invasores turcos, vencer e deixar sua bandeira a
drapejar ao som de suas eternas palavras: “Eu não trouxe a liberdade. Eu a encontrei aqui, entre vocês.”
31 Lendário “El Cid, Campeador”. Guerreiro cristão emblemático na reconquista e tido até o presente como o maior herói
que a Ibéria já viu. Seus feitos estão eternizados no livro de autor anônimo chamado Cantar del Cid
32 Grão Capitão, Gonçalo Fernandez de Córdoba. Apesar de ter morrido esquecido em Granada, for a peça chave no
enxadrismo espanhol pelo domínio da península itálica, e por suas glórias militares é aqui citado.
33 Dom Alvaro de Bazan, decisivo militar na batalha de Lepanto e em muitas outras. Seus sucessos contabilizados não
caberiam a uma simples nota de rodapé.
34 O segundo assume-se sendo Pedro I de Castela, o Cruel.
Monstros foram de lascívia e fraqueza Sardanapalo35, Calígula36 e
Rodrigo37. Portentos do castigo.
35 Seria o suposto último rei da Assíria, mas fortes controversas históricas acerca desta afirmação. Ele é referenciado
dentre estes outros lideres por sua imprudência e degeneração.
36 Imperador romano conhecido pela ser nefasto e imoral em todos os sentidos.
37 Rei Godo da Espanha, a quem é atribuída a culpa pelas invasões mouras dos séculos seguintes a seu governo.
38 Grandíssimo reconquistador Pelágio, comandou rebelião contra seus dominadores e tornou-se rei das Astúrias até sua
morte em 735.
Se a excelência mortal é vinda da ganância, seja a eterna vinda da
ambição.
Ser herói do mundo pouco ou nada é, sê-lo do céu é muito. Por este seja
o grande monarca elogiado, honrado e gloriado.
FIM
v
Se fora a leitura digna de vosso aprouver
BTC –
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LTC –
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