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PREFÁCIO

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N o início da nossa era, os celtas tinham colonizado grande extensão da


Europa Continental ao sul do rio Reno, bem como as ilhas britânicas.
França, Suíça, Bélgica, Espanha, Portugal, Inglaterra, Gales, Escócia
e Irlanda conservam, ainda hoje, traços marcadamente celtas. Do Haloween às
histórias de bruxas, dos cavaleiros do graal às fadas, a cultural ocidental tam-
bém é influenciada pelo folclore desse povo.
Este guia leva o leitor por um passeio através do mundo celta, a partir da sua
sociedade, das guerras que travaram, sua religião, deuses, deusas e heróis,
numa viagem através do tempo e do espaço a um universo mágico e místico.

Boa leitura!
Claudio Blanc
www.revistaonline.com.br
redacao@editoraonline.com.br
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1. OS CELTAS ......................................................... 6 OS GAULESES .................................................... 16
HALLSTATT ....................................................... 8 A REBELIÃO GAULESA ................................... 16
LA TÈNE ........................................................... 3 UM GRANDE LÍDER ........................................ 18
A SOCIEDADE CELTA ......................................... 10 A ÚLTIMA BATALHA ...................................... 19
MULHERES ...................................................... 13 OS HELVÉCIOS ................................................... 20
BOADICEA ........................................................ 13 A MIGRAÇÃO DOS HELVÉCIOS ....................... 21
A CULTURA GALO-LATINA ............................. 15 2. A RELIGIÃO CELTA........................................... 24
O POLITEÍSMO ................................................ 24
O CRISTIANISMO CELTA ................................. 25
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SÃO PATRÍCIO.................................................. 25
TEMPLOS ......................................................... 26
CULTO ÀS ÁRVORES........................................ 26
OS RITOS CELTAS............................................ 28
NUDEZ ............................................................ 29
OS DRUIDAS..................................................... 30
A CONVERSÃO DOS DRUIDAS ......................... 32
SACRIFÍCIOS HUMANOS ................................ 34

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
G971

GUIA DA MITOLOGIA CELTA / -- [2. ED.]


SÃO PAULO : ON LINE, 2016.
IL.

ISBN 978-85-432-1321-7

1. MITOLOGIA CELTA. 2. CELTAS - FOLCLORE.

16-34384 CDD: 299.16


CDU: 257.6

04/07/2016 04/07/2016

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CULTO À CABEÇA ............................................ 37
ÍNDICE

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OBSERVATÓRIOS MEGALÍTICOS .................... 38
HENGES ........................................................... 39
STONEHENGE .................................................. 39
OGHAM............................................................. 41
OS FESTIVAIS CELTAS DO FOGO .................... 42
SAMHAIN - O ANO NOVO CELTA .................... 42
IMBOLC ............................................................ 42
BELTANE ......................................................... 42
LUGHNASADH ................................................ 43
3. MITOLOGIA ....................................................... 46
VIAGENS .......................................................... 47
CONTOS FOLCLÓRICOS ................................... 47
TUATHA DE DANAN ........................................ 48
A LENDA DE TUAN MACCARELL ................... 49
OS DESCENDENTES DE NEMED..................... 51
OS FILHOS DA DEUSA DANA .......................... 52
OS MILESIANOS ............................................. 53
MABINOGION ................................................... 54
TRÍADES GALESAS ......................................... 55
QUATRO RAMOS DO MABINOGION ................. 55
PWYLL, PRÍNCIPE DE DYFED ....................... 55
BRANWEN, FILHA DE LLYR ........................... 56
MANAWYDDAN, FILHO DE LLYR ................... 57
MATH, FILHO DE MANTHONWY..................... 60
4. DEUSES, DEUSAS, HERÓIS E HEROÍNAS ....... 64
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OS CELTAS
A nação celta era formada por
diversas tribos estabelecidas
ao sul do Reno, desde sua
nascente, até a Irlanda.
Sua cultura guerreira era
semelhante à dos germânicos;
os romanos reconheciam

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muitos dos seus deuses nas
entidades por eles cultuadas

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Textos de Claudio Blanc

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mbora os fenícios tenham sido os primeiros a frequen-
tar as Ilhas Britânicas para se abastecer de estanho,
séculos antes dos gregos, os escritores helênicos são
a mais antiga fonte do conhecimento sobre os celtas,
ou hiperbóreos, como eles os chamavam. Hecateu de Mileto,
no século 6 a.C., foi o primeiro a registrar informações sobre
os celtas. Ele situou o país dos hiperbóreos ao norte dos Alpes
– um fato confirmado pela arqueologia.
Um século depois, Heródoto, o grande historiador grego,
estendeu o domínio da civilização celta aos Pirineus e identifi-
cou sua presença até o oeste da Península Ibérica, onde hoje
é Portugal. O filósofo Aristóteles se referia a eles como keltos
e dá conta que eram belicosos e que mergulhavam os bebês
recém-nascidos na água gelada para fortalecê-los. Outro gre-
go que deixou relatos sobre os celtas foi Éforo, que escreveu
no século 6 a.C. Segundo Éforo, os hiperbóreos multavam os
homens gordos demais. Para isso tinham um padrão autoriza-
do que determinava a largura da cintura. Esse autor também
informa que os celtas habitavam os Países Baixos e que, se-
Broche celta, século 4 a.C.
gundo Olivier Launay, em seu livro A Civilização dos Celtas
“não tinham medo de nada.”
As descobertas modernas confirmam as afirmações de República da Irlanda, a matriz da cultura celta era a área alpina
Hecateu de Mileto e de outros escritores antigos sobre a loca- e o sul da Alemanha. Essa cultura se desenvolveu em duas
lização do “país celta”. Embora tenha dominado toda a área fases durante a Idade do Ferro europeia: a cultura Hallstatt (c.
correspondente à França, Península Ibérica, Ilhas Britânicas e 900 – 400 a.C.) e a La Tène (c. 550-15 a.C.).

A cidade de Hallstatt
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HALLSTATT
A CIVILIZAÇÃO DOS CAMPOS Hallstatt é uma pequena cidade austríaca, a trinta quilôme-
E DOS BOSQUES tros de Salzburg, onde foram encontradas as primeiras evidên-
cias arqueológicas de objetos que caracterizam a cultura celta.
Os celtas chegaram à Europa, durante o se- Nesse primeiro estágio da cultura celta, onde se vivia em casas
gundo milênio antes de nossa era, para ocupar feitas de troncos e os animais domesticados eram os porcos,
nela uma paisagem que tinha sido modelada, carneiros, gado, cães e cavalos, os ritos funerais eram consti-
ao longo de dezenas de séculos de duro labor, tuídos de cremação, embora enterros não fossem incomuns.
com instrumentos de pedra e madeira, pelos
camponeses do neolítico. Eles pouco a modifica-
ram, embora edificassem nela a sua sociedade.

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Essa paisagem apresentava então, como hoje,
três aspectos principais: nas grandes planícies do
Reno, do Meuse, do Tâmisa, do Sena, uma pai-
sagem de campos abertos, cujas longas tiras que
nada separam irradiam ainda ao redor de certas
cidades; as grandes florestas da cadeia herci-
niana às Ardenas e à Brocéliande; o basquete,
de taludes e cercas-vivas nas regiões graníticas,
xistosas ou vulcânicas do Oeste e do Norte. Os
celtas desenvolveram ali uma civilização dos
campos e dos bosques, que não era a dos selva-
gens vestidos de peles de animais dormindo so-
bre as árvores, mas de camponeses habilidosos
que tinham sabido organizar e aperfeiçoar seu
modo de vida sem construir cidades. Efetuavam
cálculos de distância e de superfície. As palavras
francesas arpent e lieue vêm da língua deles
(arepennis, leuga). Os romanos, na Gália e na
Bretanha, edificaram cidades nas encruzilhadas
comerciais e vilas, com aquecimento central, nos
centros agrícolas. Mas, na Gália, o vasto povo
de mãos barrentas permaneceu em seus cam-
pos e, desde a partida dos Romanos da grande
ilha celta, os bretões por seu lado abandona-
ram fóruns, termas e pretorias às raposas e aos
morcegos, para voltar a suas campinas e seus
pequenos burgos.
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas

O termo “celta” engloba


todo o conjunto de povos
que se espalhou por
grande parte do oeste
ĞƵƌŽƉĞƵ͕ƋƵĞƟŶŚĂƐĞƵƐ
idiomas pertencentes à
família indo-europeia, a
qual inclui as principais
línguas da Europa, Irã,
norte da Índia
e Ásia Central Escudo ritual com padrões decorativos La Tène

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Os celtas da cultura Hallstatt não restringiram seu domínio
apenas ao Sul da Alemanha. A moderna arqueologia sustenta ƉĂƌƟƌĚŽƐĂŶŽƐϮϬϬϬĂ͕͘͘
que, no seu último século de desenvolvimento, os celtas já ha-
viam penetrado e se instalado na Península Ibérica, Bretanha,
ŽƐĐĞůƚĂƐĂƟŶŐŝƌĂŵƐƵĂƐ
Ilhas Britânicas e Escandinávia. E é sobre os desenvolvimentos ĐĂƌĂĐƚĞƌşƐƟĐĂƐƉƌŝŶĐŝƉĂŝƐ͘
produzidos durante a fase Hallstatt que surge a cultura La Tène
– a segunda Idade do Ferro da Europa Central e Ocidental. Em
Tratava-se de um povo com
La Tène, uma pequena cidade suíça, foram descobertas as pri- cultura complexa, que habitava
meiras instâncias de uma evolução cultural baseada no período
anterior, isto é, o Hallstatt. O estilo La Tène tem marcas claras
pequenas aldeias lideradas por
dos padrões decorativos gregos, etruscos e citas, com que os chefes guerreiros
celtas mantinham contatos comerciais.

fato originou uma escola de pensamento que afirma que a


língua e a cultura celta se espalhou nessas áreas por meio do
LA TÈNE contato e não por invasões. Os imigrantes, e em alguns casos
Foi durante o período La Tène que os celtas atingiram sua
invasores, que vinham com a “onda celta” se miscigenavam
máxima extensão cultural. A sociedade celta era organizada
com a população que já estava instalada nos locais onde se es-
em torno da guerra – uma estrutura característica de culturas
tabeleciam. O cronista romano Amiano Marcelino, que escre-
em processo de migração. Poderosos guerreiros, habilidosos
veu no século 4 d.C., confirma, por exemplo, que “uma parte
cavaleiros, ferreiros, sitiaram e saquearam a cidade de Roma
da população (da Gália) era nativa, mas alguns haviam vindo
em 390 a.C., e invadiram a Ásia Menor. Também invadiram a
de ilhas e terras além do Reno, deixando seus lares originais
Península Itálica e fundaram Mediolanum, hoje, Milão. Tribos
por conta de guerras e de invasões”.
de cultura La Tène chegaram até o sul da Rússia, mas seu
No final do século 5 a.C., os celtas já haviam se instalado às
grande movimento foi em direção ao oeste, onde ocuparam
margens do Reno e do Elba, e no começo do quarto século an-
os antigos centros dos celtas Hallstatt.
tes de Cristo, a tribo dos bretões (Brythons) e a dos goidélicos
No entanto, não há evidência arqueológica de invasões mi-
(vindos do Norte da Espanha) cruzaram o Canal da Mancha e
litares em larga escala em outras áreas do Oeste europeu. Esse
ocuparam a Inglaterra e a Irlanda. A Gália, a Espanha e o nor-
te de Portugal também foram ocupados por grupos tribais de
cultura La Tène. Os nomes de algumas tribos celtas continuam
Cada chefe gaulês era cercado de vassa- a determinar etnias até hoje, como é o caso dos lusitanos e os
los, que formavam com ele uma fraternidade galegos, em Portugal e na Espanha. Todo o centro e o Oeste
de combate. O vassalo na Irlanda é um cele, da Europa viram florescer uma poderosa cultura que, apesar
denominação cujo sentido é “associado”. Os das inegáveis influências gregas, itálicas e do Oriente Médio,
esposos são ceIe um do outro e não, como no era, nas palavras do mitólogo americano Joseph Campbell
Sul, a mulher propriedade do marido. César (1904 – 1987), basicamente “bárbara”.
pretende que a condição dos vassalos gauleses
era próxima da escravidão. Pode-se duvidar
pois tinham o direito de voto para escolher o

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chefe de guerra. Havia, em realidade, na Gália,
duas classes de vassalos. Uns, os ambactes,
camaradas de combate, que eram os vassalos
francos. Os outros, pastores, tarefeiros, eram
os predecessores dos servos, em geral desclas-
sificados considerados provavelmente por seus
contemporâneos o rebotalho da tribo. Havia,
também, escravos, mas eram poucos, pois os
celtas não faziam prisioneiros: preferiam cortar a
cabeça dos vencidos e ignoravam a piedade. Os
trabalhos mais desagradáveis eram reservados
aos escravos. Pois o trabalho propriamente dito
não era uma ocupação nobre. Nobre era a ação
desinteressada, o jogo, a guerra, o amor, a obra
de arte, a especulação intelectual, as funções re-
ligiosas, a ascese. A sociedade irlandesa dividia-
-se em oito cate gorias, desde o rei supremo até
o plebeu ou servo.
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas
Moeda cunhada pela tribo gaulesa parisi

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Brenn e sua parte no butim,


de Paul Jamin (1893)

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A SOCIEDADE CELTA
Os celtas não eram uma raça

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homogênea, mas, sim, uma nação
com uma cultura comum, dividida
em tribos diferentes. O que unia
essas sociedades tribais era a língua,
o comércio, instituições políticas
semelhantes e a religião. No
entanto, cada tribo tinha seu próprio
corpo de tradições locais

O
termo “celta”, se refere a qualquer membro de um
dos povos europeus que usavam a lingual celta –
do ramo linguístico indo-europeu – e que compar-
tilhavam de uma arte e religião comuns.
A sociedade era tribal e baseada no parentesco. A identi-
Ornamentos de ouro para sapatos, c. 530 a.C.
dade étnica era sedimentada principalmente no grupo tribal
maior, chamado pelos celtas irlandeses, os goidélicos, de tua-
th, ou “povo”. Essa identidade era, por sua vez, determinada comuns. Nos tempos históricos, na Irlanda, sabe-se que os reis
pela unidade familiar, o clã, cenedl, isto é “aparentado”, em eram eleitos por meio de um sistema de sucessão.
irlandês. Além de identidade, o clã garantia proteção: as dis- Embora a sociedade celta fosse guerreira e assim estrutura-
putas entre os indivíduos sempre irradiavam para a esfera do da, a promoção de guerras não era um processo organizado
clã. E como era obrigação do clã proteger os seus, os crimes de conquista territorial. A guerra era travada de uma forma
contra um dos protegidos eram considerados ofensas contra semelhante a dos índios brasileiros e americanos, isto é, incur-
todo o clã. Um dos principais princípios éticos celtas era a con- sões guerreiras motivadas principalmente por vingança, con-
tenda de sangue; um assassinato ou insulto qualquer exigia quista de glória militar ou busca de butim ou de saque. Mas
que cada membro do clã buscasse vingança. A contenda de quando os celtas passaram a ter maior contato com os roma-
sangue era tão comum que surgiu uma classe de mediadores nos, eles modernizaram e adaptaram suas táticas de guerra a
profissionais, chamados na Irlanda de brithem. fim de poder enfrentar exércitos maiores.
Os clãs que formavam as tribos eram liderados por reis,
embora tenham surgido repúblicas oligárquicas em áreas que
tinham contato próximo com a cultura romana. Normalmente,

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a sociedade celta se dividia em três classes: a aristocracia de
guerreiros, a classe intelectual, formada pelo clero, pelos poe-
tas, juristas e outros, e o povo comum.
Júlio César, o primeiro imperador de Roma, é o cronista da
época que mais detalhadamente descreve os costumes dos
celtas La Tène. César combateu os celtas na Gália, a atual
França, e registrou suas impressões sobre eles na sua obra As
Guerras da Gália. César confirma a existência de três classes
entre os celtas da Gália, os gauleses. As pessoas comuns eram
tratadas praticamente como escravos. “A maior parte deles”,
escreveu César, “oprimida por dívidas, pelo peso dos tributos
ou pelas injustiças dos poderosos, permite-se escravizar pe-
los nobres”. César descreveu duas classes superiores, a dos
Cavaleiros e a dos Druidas. Aos primeiros, liderados por um
rei, cabia a defesa da tribo durante as guerras – e os celtas das
diferentes tribos combatiam muito entre si. Eram os cavaleiros
que amealhavam poder e influência política sobre as pessoas Cerâmica celta

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FOSTERAGE
A educação das crianças: o “fosterage” Entretanto, essa
Iiberdade não obnubilava em nada o senso de responsabi-
lidade social. Uma instituição, que não foi somente céltica,
mas que adquiriu entre os celtas importância considerável,
a do fosterage, mostra que nossos ancestrais tinham sobre
a educação das crianças ideias mais profundas do que nós.
Era difundido o hábito de confiar a educacão das crianças a
um pai nutridor, um pai que se houvesse destacado por suas
aptidões educativas. Quando a pensão era paga, um rei pa-
gava até 30 animais de chifre ao preceptor de seu filho, mas
um plebeu somente três. Os rapazes aprendiam os esportes;
as moças, costura. Se o pai nutridor era um filé, um sábio-
-poeta, o caso assumia outra dimensão. Vejamos os escritos
hindus: “Quando um pai e uma mãe, unindo-se por amor,
dão a vida a um filho, não se deve considerar esse nasci- Um torque de ouro, colar típico dos celtas
mento como outra coisa senão um fato humano, porque o
filho se forma na matriz. Mas a vida que lhe comunica o pai Os autores antigos registram que, durante os combates,
espiritual é a verdadeira vida, que não está sujeita à velhice os celtas se postavam diante do exército inimigo, gritando
nem à morte.” o estágio terminava, para os rapazes, aos 17 e batendo as lanças e espadas nos seus escudos. Em geral,
anos, para as moças aos 14. Rapazes e moças regressavam combatiam nus, com o corpo pintado de azul e com cabeças
a suas famílias, ricos com o que haviam aprendido e forta- dos inimigos que abateram em outras batalhas amarradas
lecidos por uma educação que não sofrera por causa das à cintura. Então disparavam a correr em direção dos seus
fraquezas maternais. As crianças conservavam obrigações opositores, berrando durante todo o percurso. Ante a visão
de caráter filial em relação a seus pais nutridores. Deviam estarrecedora de um bando de selvagens assassinos, os ini-
a eles auxílio e assistência. Do mesmo modo, os irmãos-de migos, muitas vezes, abandonavam suas fileiras e fugiam.
leite” permaneciam estreitamente unidos e solidários, o que Os celtas, então, se valiam da vantagem proporcionada por
nem sempre acontecia entre irmãos pelo sangue. Em gaélico, um exército em fuga. Se, porém, as forças contrárias não
eram chamados de comaltae. A mes ma palavra em galês rompessem suas fileiras, os celtas paravam perto do exército,
significa, hoje, amigo” e em bretão, sócio”. retornavam a sua posição original e repetiam o processo.
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas
A segunda classe descrita por César é a dos druidas, os
quais se ocupavam dos cultos, dos sacrifícios – tanto públicos
como privados – da interpretação de desígnios.
Os druidas gozavam de grande prestígio entre
os celtas, assumindo igualmente o papel de
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conselheiros e juízes, decidindo sobre crimes


e disputas de propriedade. “Se uma pessoa ou
pessoas não se atêm às suas decisões”, regis-
trou César, “os druidas os proíbem de fazer
sacrifício, o que constitui sua maior punição”.
Outros escritores da Antiguidade indicam
a ordem religiosa também se dividia em três
classes. Estas pertenceriam, segundo alguns
autores, à ordem druídica. Estrabo afirma na
sua obra Geographica, que “entre todos os
povos da Gália, falando de forma geral, há três
tipos de homem tidos na mais alta honra: os
bardos, os vates e os druidas.” Estrabo segue
explicando que “os bardos eram cantores e
poetas; os vates, adivinhos e filósofos naturais;
e os druidas, além da filosofia natural, também
estudavam filosofia moral”. Os bardos cele-
bravam os feitos dos heróis compondo “ver-
sos épicos”, os quais recitavam acompanhados
O Gaulês Moribundo, cópia em mármore de um original em bronze pela lira, enquanto os vates procuravam expli-
do século 1 ou 2 d.C., retrata a morte de um guerreiro celta ferido car os grandes mistérios da natureza. É deles
em batalha. A escultura enfatiza a bravura do combatente bárbaro que deriva o verbo “vaticinar”.

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Em termos econômicos, a sociedade celta não se basea- BOADICEA
va no comércio. Havia escambo, mas o princípio econômico
Boadicea, ou Boudica, rainha da tribo dos icenos, que vivia
predominante era a reciprocidade. Na economia de recipro-
no Leste da Grã-Bretanha, liderou um insurreição de diver-
cidade, os bens e serviços não são trocados por outros bens
sas tribos contra os invasores romanos. Quando o marido de
ou serviços, mas são distribuídos de acordo com relações de
Boadicea, o rei Prasutagus, morreu, os romanos anexaram seu
parentesco e obrigações.
reino e humilharam a rainha e suas filhas.Os invasores açoita-
Por outro lado, evidências arqueológicas sugerem que os
ram Boadicea e estupraram as moças.
celtas anteriores à invasão romana desenvolveram um com-
Boadicea incendiou toda Inglaterra. Ela liderou uma alian-
plexo de rotas comerciais que chegava a Eurásia. O território
ça de diversas tribos que, entre 60 e 61, ameaçou a perma-
ocupado pelos celtas tinha zinco, chumbo, ferro, prata e ouro.
nência dos romanos na Grã-Bretanha. O exército de Boadicea
Os ferreiros e ourives celtas criavam armas e joias para o co-
destruiu as colônias de Camulodunum, atual Colchester,
mércio, particularmente com os romanos, mas também com
Londinium, a moderna Londres, e Verulamium, presentemente
outros povos. Peças de ouro produzidas na Irlanda pré-romana
Saint Albans, deixando em seu caminho um rastro de destrui-
foram descobertas em sítios arqueológicos da Palestina.
ção que fez cerca de oitenta mil vítimas. O imperador Nero
chegou até mesmo a considerar retirar as forças romanas da
ilha. No entanto, Boadicea foi finalmente derrotada na Batalha
MULHERES de Watling Street, pelas forças consideravelmente menores do
Contrárias às gregas e romanas, as mulheres celtas tinham
governador Suetonio.
uma participação efetiva na sua sociedade. Apesar de ser uma
Quando a revolta começou, o legado Caio Seutônio
cultura centrada na aristocracia guerreira, descobertas arque-
Paulino, com duas das quatro legiões estacionadas na pro-
ológicas indicam que as mulheres podiam gozar de elevado
víncia, tinha acabado de capturar a ilha de Mona (a moderna
status social. Antes da fusão da cultura celta com a romana,
Anglesey), o centro principal do culto druídico. Esta foi uma
as mulheres tinham direito de exigir divórcio e deixar o ca-
das poucas religiões ativamente perseguidas pelos romanos,
samento com as propriedades que possuía quando solteira.
que não aprovavam o papel de relevo dos sacrifícios huma-
Além disso, elas tinham todo o direito de se casar de novo.
nos nos rituais druídicos e que também tinham consciência
Há registros sobre mulheres que tomavam parte na guerra e
de que a religião promovera a união de elementos contrários
no governo do seu povo, embora fossem a minoria. Talvez o
aos romanos na Gália e na Bretanha.
melhor exemplo seja o de Boadicea.
Enquanto Paulino estava ocupado com a invasão de Mona e
com o massacre dos druidas e dos seus seguidores, a rebelião
no leste da província teve tempo de se intensificar. A colônia
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de Camuloduno (Colchester) foi o primeiro alvo dos rebeldes,


pois os locais ressentiam a confiscação das suas terras para
serem dadas aos veteranos romanos lá estabelecidos no final
do seu serviço militar. Alguns dos veteranos conseguiram re-
sistir durante dois dias no grande Templo de Cláudio, mas a
colônia não tinha fortificações apropriadas nem condições de
se defender daquela força. A fúria dos bretões levou a atos de
tortura e mutilação, quando massacraram toda a população
da cidade. Nas semanas seguintes Verulamium (St Albans) e
Londinium (Londres) sofreram o mesmo destino.

César disse que [a poliandria] se praticava


na Bretanha. Isso explicaria por que a palavra
“gwely” (leito) adquiriu, em bretão insular, o
sentido de “família”. Não há fumaça sem fogo.
A lenda irlandesa nos mostra Clothru, esposa si-
multânea de seus três irmãos e, em consequên-
cia, mãe de Lugard, rei supremo - que tem três
pais no ciclo de Cuchulainn - e que ela esposa a
seguir para ter dele um filho que será rei por seu
turno. Certamente, não se deve tomar ao pé da
letra essas histórias, que aliás se contradizem,
mas elas dão certa credibilidade a São Jerônimo
quando deplorava que os irlandeses fizessem
amor com liberdade total.
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas
Boadiceia, por John Opie (c. 1793)

13
Os Gauleses tinham vici, cidades não cercadas
A primeira resposta significativa do exército romano foi di-
de muros, feitas de casas isoladas, de pedra tra-
rigida para o lugar de onde a rebelião se irradiava, esperando
balhada com argila e cobertas de colmo ou de ta-
quebrar a resistência dos bretões com uma demonstração de
buinhas, e de oppida, isto é, cercados fortificados,
força. Em lugar disso, os romanos encontraram um exérci-
refúgios para as populações em tempo de guerra,
to muito mais poderoso do que anteciparam. Talvez numa
mas já também esboço de cidades permanentes, se
emboscada, ou possivelmente num ataque noturno ao seu
podemos chamar assim a simples aglomerações de
acampamento, quase todos os legionários foram mortos e
cabanas ou casinholas rústicas, dispostas sem or-
apenas o legado e alguns membros da cavalaria conseguiram
dem e sem serviços públicos. A nação dos helvécios
fugir do desastre. Paulino pôde chegar a Londinium antes de
tinha 400 vici e 12 oppida. Os biturígios tinham
a cidade cair, mas tinha apenas um pequeno corpo da cava-
menos vici, mas 20 oppida. Os lexovianos tinham
laria sob seu comando, pois tinha deixado a maior parte do
um oppidum de 160 hectares. A maioria não era
exército para trás. Alguns refugiados conseguiram alcançar
tão vasta, muitas não tinham mais do que cinco,
a proteção do governador e da sua cavalaria, mas a maior
10 ou 30. A Irlanda tinha também seus raths ou
parte da população foi massacrada. Quando retirou-se para
duns. A predileção dos celtas por uma vida atlética
encontrar o exército principal, Paulino reuniu algo em tor-
ao ar livre, apesar dos rigores hibernais do clima,
no de dez mil homens. A Legio IX tivera muitas baixas para
explica que cuidassem da aparência exterior até a
continuar a tomar parte na campanha, mas o governador
faceirice, sendo apaixonados pelas roupas de cores
tinha enviado mensageiros com ordens de chamar a outra
vivas e pelas joias preciosas, faziam vir de longe
legião estacionada na Bretanha, II Augusta, da sua base no
objetos de arte que sabiam apreciar, decoravam
sudoeste para reunir-se a ele. Seu comandante, o prefeito
com gosto e habilidade suas armas, mas se conten-
Poênio Póstumo, por algum motivo desconhecido, recusou-
tavam, em matéria de casas, com simples abrigos
-se a obedecer as ordens de Paulino. Desse modo, foi forçado
noturnos, onde a fumaça saía por um buraco,
a confrontar Boadicea cujo exército era muitas vezes maior,
através do teto. Contudo, nas aglomerações mais
apenas com suas próprias tropas.
próximas dos centros de civilização greco-romana,
se revela uma evolução do gosto: melhora-se o ha-
bitat, constroem-se moradias mais vastas, templos,

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piscinas, ruas lajeadas. Quanto mais se subia para
o norte, mais o modo de vida era rude e rústico.
Quando veio a conquista romana, nem os vídu-
casses (os que combatem com a madeira), nem os
eburões (os homens do teixo, a árvore sagrada)
estavam ainda atingidos pelo mal da cidade. Na
Irlanda, as mais antigas cidades, Dublin, Waterford,
Limerick foram construídas pelos Vikings; outras,
mais tarde, pelos conquistadores normandos.
Mesmo na Pequena Bretanha moderna, Brest,
Lorient e, sobretudo, Saint-Nazaire são criações
artificiais. As cidades da Terra Céltica moderna, à
parte as zonas da alta indústria, permaneceram
pequenas e participam intimamente da vida rural.
A paisagem celta: algo semi-sagrado Essa é a razão
do apego do celta a suas paisagens. Estas são o
quadro onde há 10 ou 15 séculos ele luta pela
existência, agarrado desesperadamente a cada
palmo de terreno, a cada campo, a cada rocha, a
cada árvore. É o caso de se falar de osmose. Essa
é a chave do amor passional que o irlandês dedica
a suas verdes campinas, o escocês a seus lochs, os
galeses a suas montanhas e o bretão da França a
suas matas, embora muitas destas, hoje, tenham
dado seu lugar a culturas. As causas muito antigas
desse sentimento não agem mais diretamente, mas
marcaram a hereditariedade psíquica. Como a terra
pertencia à tribo ou a uma família, era impossível
doá-Ia sem doar os homens que estavam sobre ela.
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas O general romano Júlio César, que subjugou
os celtas da Gália, perseguiu os druidas
e escreveu a respeito desse povo

14
A Terceira Guerra Sanita, o nome pelo qual o conflito pas-
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sou para a história, pôs um fim à supremacia celta. Mesmo


assim, os últimos reinos celtas independentes da Itália só
vieram a cair completamente em 192 a.C. No século 1 a.C.,
os romanos conquistaram, sob Júlio César, a Gália celta.
O golpe final foi desferido no século 1 d.C. pelo impera-
dor Cláudio, que estendeu o poder de Roma até algumas
partes da Ilhas Britânicas, particularmente onde hoje é a
Inglaterra. A partir de então, os celtas se tornaram romani-
zados. A língua oficial nesses lugares passou a ser o latim,
e a administração, a arquitetura, os usos, enfim, passaram
a ser o dos romanos. Após a invasão romana da Gália e
da Inglaterra, muito dessa cultura se perdeu, ou melhor, se
mesclou com a influência romana. Uma nova cultura surgiu
baseada no sincretismo celto-romano, ou galo-romano.
Houve, porém, lugares onde a influência de Roma não che-
gou e onde a essência da cultura celta foi mantida até os dias
de hoje. São os chamados países celtas modernos. A Irlanda,
a Escócia e o País de Gales são os que melhor preservaram a
Estátua de Boadicea, em Londres
literatura celta, a qual nos ajuda a reconstituir a vivência e as
crenças desse povo tal como ela era. Os mitos preservados
Paulino escolheu um local onde um desfiladeiro coberto se instilaram no folclore dessas áreas. Principalmente nesses
por bosque oferecia proteção aos seus flancos e retaguar- países, ainda é possível constatar o espírito, a disposição, os
da. O modo como colocou suas forças em formação, com modos e maneiras dos antigos celtas.
as legiões no centro, a infantaria auxiliar nos
flancos e a cavalaria nas alas, era totalmente
convencional. Como Mário em Águas Sextias

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e César contra os helvéticos, ele manteve
seus homens parados e silenciosos enquanto
a massa de bretões avançava em sua direção.
Foi apenas no último minuto que ordenou
que seus homens arremessassem seu pila e
atacassem. A chuva dos dardos pesados di-
minuiu a velocidade dos britânicos, mas os
guerreiros estraram numa formação tão den-
sa ao penetrarem no desfiladeiro para atacar
seus inimigos que não puderam se retirar.
Como o exército romano em Canas, tinham
se tornado uma grande massa incapaz de
manobrar ou de combater com eficiência.
Lenta e continuamente, foram abatidos pe-
los romanos, embora estes tenham pagado
um alto preço pela sua vitória. As forças de
Paulino tiveram poucas baixas. Num único
dia de luta, a espinha dorsal da rebelião foi
quebrada. Boadiceia fugiu, mas logo depois
suicidou-se tomando veneno. Paulino e seus
homens promoveram uma campanha cruel ao
longo do inverno para extinguir todas as bra-
sas que ainda restavam da resistência, o ódio
resultante das atrocidades que os bretões co-
meteram era profundo.

A CULTURA GALO-LATINA
Após dominarem a Europa Ocidental e co-
mandarem incursões até a Ásia Menor, no
século 3 a.C., as forças da coalizão sanita,
celta e etrusca foram derrotadas por Roma.

15
OS GAULESES
O
s celtas que ocupavam o norte da Itália, a França
As tribos gaulesas viviam na região e o Norte da Espanha eram os gauleses. Primeiro
da atual França e chegaram a saquear inimigos, os gauleses acabaram sendo conquista-
dos pelos romanos e passaram a constituir duas
Roma, no período da república. importantes províncias, a Gália Cisalpina, “Gália aquém dos
Conquistados por Júlio César, Alpes” – a região da Itália habitada pelos gauleses e que hoje
corresponde ao norte da Itália – e Gália Transalpina, que en-
foram colonizados pelos romanos, globava os atuais territórios da Bélgica, França e Suíça. Em al-
submetidos à sua política e legislação guns períodos, a Gália Transalpina chegou a cobrir parte do
Norte da Itália e Centro-Norte da Espanha.
As tribos gaulesas, como todas as outras da nação celta, eram
guerreiras, e sua sociedade se organizava em torno da guer-

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ra. Invariavelmente, os cavaleiros do exército gaulês, eram os
membros mais ricos e aristocráticos da tribo, que podiam com-
prar um cavalo e o equipamento adequado. A cavalaria gaulesa
era, em geral, bem formada – os romanos iriam, posteriormen-
te, copiar muitos dos arreios dos cavalos e do treinamento dos
cavaleiros gauleses –, e seus membros eram extremamente co-
rajosos, embora sem sofisticação tática. Esses homens tinham
de justificar sua posição honrada na sociedade demonstrando
coragem na guerra. Por isso, valores como honra e bravura
eram muito considerados entre esse povo.
Os gauleses saquearam Roma em 390 a.C. e a ameaçaram
de novo em 225 a.C., até que, com muita sorte, mais do que
planejamento, os dois cônsules daquele ano conseguiram ata-
car o exército inimigo, um de cada lado, em Telamon. Em 216,
no vale do rio Pó, uma coalizão formada por tribos gaulesas
emboscou e dizimou um exército de duas legiões e duas alas.
Entre os mortos estavam o comandante romano, o pretor
Lúcio Postúmio Albino, um homem muito experiente que já
havia sido cônsul duas vezes e acabava de ser eleito, na sua
ausência, para um terceiro mandato no ano seguinte. Esta foi,
talvez, a derrota de Roma mais espetacular nessa região, ape-
sar de não ter sido a única.
A ameaça gaulesa só terminou quando Júlio César derro-
tou o maior líder gaulês, Vercingetórix, comandante da últi-
ma grande rebelião gaulesa. César também é responsável por
grande parte do conhecimento que temos sobre esses povos,
uma vez que o general romano cuidou de registrar seus usos e
costumes no seu livro As Guerras Gálicas.

A REBELIÃO GAULESA
As intervenções iniciais de César na Gália tinham sido reali-
zadas a pedido dos líderes das tribos gaulesas aliadas. Embora
os povos gauleses compartilhassem uma língua e cultura co-
muns, as tribos eram ferozmente independentes e quase sem-
pre hostis. Nenhuma tribo nem seus chefes que buscavam do-
minar seu próprio povo tinham escrúpulos e buscavam auxílio
externo contra os inimigos ou rivais.
Mas, por volta do inverno de 53-52 a.C., um ressentimen-
to generalizado contra a presença romana havia surgido. Um
grupo de nobres de muitas tribos reuniu-se secretamente e
Guerreiro galo-romano, século 1 d.C. planejou uma rebelião coordenada. Muitos desses líderes es-

16
peravam que a glória obtida ao derrotar Roma lhes traria influ-

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ência política entre sua própria tribo e outras.
O homem que logo emergiu como principal líder da rebelião
foi Vercingetórix, da tribo dos arvernos. Vercingetórix formou um
exército recrutado não apenas entre os membros de sua própria
tribo, mas da maioria dos povos da Gália ocidental e central.
Comparada com os exércitos tribais normais, a força que ele reu-
niu era maior e bem mais organizada e disciplinada, ainda que
inferior aos romanos em termos de organização e disciplina.
A primeira irrupção da rebelião aconteceu bem no início do
ano de 52 a.C., em Cénabo, na terra dos carnutos, onde dois
chefes tribais e seus seguidores massacraram todos os merca-
dores romanos que encontraram na cidade. César, o governa-
dor da Gália Cisalpina, ao saber da rebelião, levou as forças à
sua disposição à Gália Transalpina para enfrentar os rebeldes.
Ainda era inverno e o passo principal nos Alpes era con-
siderado impraticável, por isso os arvernos não esperavam
represálias. Mas César levou seus homens através do passo,
limpando as trilhas cobertas com até dois metros de neve e
lançou um ataque contra o inimigo. A surpresa foi completa e,
durante dois dias, a coluna romana saqueou e destruiu à von-
tade, com a cavalaria auxiliar galopando à frente para espalhar
pânico através da maior área possível.
Logo, Vercingetórix recebeu incontáveis mensagens
de seus conterrâneos exigindo auxílio imediato. Quando
Mapa das campanhas de Júlio César
Vercingetórix avançou para sitiar Gorgobina, a aldeia princi-
pal da tribo dos boios, aliados dos romanos e que tinham re-
cebido permissão para estabelecer-se em território dos éduos O avanço das legiões atraiu Vercingetórix, que buscou se
em 58, César enfrentou um dilema. Seu exército não tinha aproximar do inimigo. César tinha acabado de aceitar a ren-
provisões para uma campanha longa e não podia esperar dição de outra cidade murada, Novioduno, quando o exército
obter quantidades significativas de suprimentos no inverno. gaulês surgiu, reacendendo o entusiasmo dos habitantes da
Contudo, se ele não fosse proteger as tribos aliadas, isso es- cidade para continuar a resistir.
timularia a deserção para o lado inimigo. As cavalarias dos dois exércitos começaram a lutar, com
O general romano decidiu que era melhor assumir imediata- a vantagem passando ora para um lado, ora para outro, do
mente a ofensiva. Ele ordenou aos éduos que reunissem grãos modo usual de tais combates. Finalmente, César enviou seus
e levassem a ele tão logo quanto possível e avançou imediata- cavaleiros germânicos e essa reserva, combinada com a signi-
mente em auxílio dos boios, tomando qualquer fortaleza hostil ficativa vantagem moral que os guerreiros germânicos tinham
pela qual passava em sua rota e confiscando todos os supri- sobre seus pares gauleses provocou a fuga do inimigo.
mentos e animais de carga que encontrava. A cidade se rendeu mais uma vez, e as legiões continuaram
sua marcha para atacar Avárico, uma das comunidades mais
prósperas e importantes dos biturígios. César estava confiante
que a captura dessa cidade, após suas recentes vitórias, seria
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suficiente para persuadir a tribo a capitular.


Vercingetórix decidiu que era melhor, naquele momento,
evitar o confronto direto com os romanos e, em lugar disso
desgastar as legiões, promovendo um bloqueio nas suas linhas
de abastecimento. Ele acampou a cerca de 25 quilômetros de
Avárico e ordenou que sua cavalaria acossasse os grupos de
forrageadores romanos. O comandante gaulês persuadiu os bi-
turigios a retirar ou abater seus animais e destruir seus depósitos
de alimentos para evitar que caíssem nas mãos dos inimigos.
Assim, muitas das suas aldeias e plantações foram incendiadas.
Perseverando, apesar dos revezes, César sitiou Avárico, or-
denando a construção de uma grande rampa de cerco através
do vale entre seu acampamento e a cidade, que era situada no
alto de uma colina.
Na medida em que o cerco continuava, o exército gaulês
Capacete decorado com triskeis, também começou a enfrentar a falta de provisões. A autorida-
importante símbolo celta de de Vercingetórix sobre o exército não era, de modo algum,

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Vercingetórix depõe suas armas diante de César, por Lionel Royer (1899)

absoluta, e os outros chefes foram contra sua decisão de apro- as proximidades da cidade, ergueu acampamento e esperou
ximar-se da cidade e tentar libertá-la. Vercingetórix conseguiu uma oportunidade.
enviar dez mil guerreiros para reforçar a cidade sitiada, mas Durante os dias seguintes, houve frequentes escaramuças
não foi capaz de libertá-la. entre a cavalaria e as tropas ligeiras dos exércitos rivais. Então,
Os gauleses perceberam agora que sua defesa não era pos- depois de algum tempo, César resolveu realizar um grande
sível, porém, uma tentativa feita pelos guerreiros para romper ataque contra uma parte exposta da serra na qual o exército
o cerco foi frustrada. Na manhã seguinte, durante uma pesada gaulês estava acampado.
tempestade, quando o inimigo menos esperava um ataque, Por meio de um estratagema, César realizou um ataque-sur-
César ordenou que seus legionários tomassem a cidade. As presa. O ataque foi bem-sucedido e rápido. Surpreendidos,
muralhas foram rapidamente conquistadas e romanos se con- os gauleses, não ofereceram nenhuma resistência. Os legio-
centraram em tomar os pontos principais das defesas. Os gau- nários, desobedecendo ordens, atacaram, então, as muralhas
leses entraram em pânico. de Gergovia. Num primeiro momento, parecia que o ataque
O saque da cidade foi brutal ao extremo, uma vez que os impetuoso e mal organizado seria bem-sucedido devido ao
cansados legionários deram vazão à sua frustração depois do
seu trabalho prolongado e difícil e produziram outra vingan-
ça por Cenabum. Virtualmente todos os homens, mulheres e
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crianças foram massacrados. O exército permaneceu na cida-


de por vários dias para se recuperar, e César teve o prazer de
descobrir grandes depósitos de grãos dentro das muralhas.

UM GRANDE GENERAL
Apesar da perda de Avárico, que ele havia se mostrado con-
trário a defender, a influência de Vercingetórix foi reforçada
por esse episódio e ele foi capaz de persuadir mais tribos a
participarem da aliança. No entanto, a rápida ação de César
conseguiu sufocar rapidamente a insurreição.
O exército gaulês principal estava acampado no cume de
uma serra, próxima a Gergovia. César levou seu exército até Um carnyx, trombeta de guerra gaulesa

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forte entusiasmo e ao pânico que se espalhou entre os poucos ligeira gaulesa, abandonada pela cavalaria, foi quase que in-
defensores da cidade. teiramente massacrada.
No entanto, os gauleses rapidamente começaram a se re- No dia seguinte, os gauleses atacaram à meia noite. Os
cuperar, e grandes números de guerreiros foram tentar deter guerreiros celtas atacaram em massa, desviando-se dos obstá-
a incursão, entrando em formação em densos blocos por trás culos e passando por sobre as valas, enquanto lançavam uma
das muralhas. Os gauleses massacraram muitos soldados ro- barragem de pedras, flechas e dardos era lançada contra o
manos. César, então, retirou suas forças. baluarte. Os romanos responderam com dardos e pedras. A
luta foi feroz e confusa, pois a escuridão dificultava o controle,
mas os ataques acabaram sendo, finalmente, repelidos.
A ÚLTIMA BATALHA Na manhã seguinte, os gauleses concentraram-se principal-
Depois de suas vitórias, os gauleses rebeldes enviaram pe- mente contra a seção mais vulnerável da linha de defesa. Mas
quenos grupos de cavalaria para ameaçar as linhas romanas Vercingetórix não estava em contato com o exército de refor-
de suprimento que vinham da Gália Transalpina. César tinha ço. No final, os gauleses foram repelidos mais uma vez.
perdido a iniciativa em Gergovia, e seu revés fora suficiente No dia seguinte, enviados gauleses foram até o acampamen-
para encorajar a maioria das tribos gaulesas a juntar-se aos to romano e aceitaram a exigência de rendição incondicional
rebeldes. Para compensar, ele lançou uma contraofensiva. estipulada por César. De acordo com Plutarco, Vercingetórix
Enquanto isso, Vercingetórix foi capaz de aumentar o núme- envergava sua melhor armadura e cavalgava seu mais belo
ro de guerreiros do seu exército principal e encorajou outras cavalo de batalha. Depois de cavalgar ao redor do tribunal,
tribos gaulesas a atacar os romanos onde quer que pudessem. ele desmontou, depositou suas armas no chão e sentou-se na
Vercingetórix reuniu uma grande força de cavalaria para ata- grama esperando em silêncio, para ser levado dali.
car o exército romano em marcha. O número de cativos era enorme – cada soldado do exército
Mas, durante a batalha, a cavalaria romana derrotou seus recebeu um prisioneiro para vender como escravo - aumen-
oponentes, provocando a retirada do resto da cavalaria gau- tando o já grande número de homens aprisionados por César
lesa. Desencorajados pelo fracasso de um ataque executado durante as campanhas na Gália. Plínio acreditava que mais
pelo que eles achavam ser sua arma mais forte, Vercingetórix de um milhão de pessoas foram vendidas como escravos, em
e o exército gaulês retiraram-se para a cidade de Alesia. consequência das conquistas.
César os perseguiu, acossando a retaguarda gaulesa, infli- César tratou os arvernos como e os éduos com clemência,
gindo pesadas baixas. Na manhã seguinte, toda a força ro- permitindo que os guerreiros capturados retornassem às suas
mana dirigiu-se a Alesia, onde encontraram o exército gaulês terras, em vez de serem vendidos como escravos.
acampado no terreno elevado fora da cidade. A atitude de César muito contribuiu para conquistar uma dis-
Com seu exército agora concentrado e bem provisionado, posição amistosa das tribos gaulesas. Quanto a Vercingetórix,
dessa vez César não hesitou em iniciar o bloqueio da cidade e do mesmo modo que muitos outros líderes que tinham enfren-
do acampamento de Vercingetórix. Enquanto sua cavalaria pro- tado Roma, ele não recebeu clemência. Foi mantido prisioneiro
tegia os trabalhos e travava diversas escaramuças com os cava- durante alguns anos. Então, acompanhou a procissão triunfal
leiros gauleses, os legionários começaram a construir uma linha de César e, no final da celebração, foi ritualmente estrangulado.
de fortificações de cerca de dezessete quilômetros de compri-
mento com 23 fortes ligados por uma vala e um baluarte.
Antes de o circuito ser completado, o comandante gau-

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lês ordenou que sua cavalaria se dispersasse, instruindo cada
contingente a retornar às suas tribos e arregimentassem tro-
pas, formando um grande exército de reforço que retornaria
e derrotaria o inimigo.
O comandante romano soube da retirada da cavalaria ini-
miga e da determinação de Vercingetórix de resistir ao cerco.
César aumentou ainda mais a construção das fortificações,
dobrando em escala. Embora Vercingetórix tenha tentado lan-
çar ataques com o objetivo de atrapalhar as obras, não foi
capaz de evitar que as mesmas fossem concluídas. Quando a
fortificação terminou, o exército de César ficou protegido de
ataques de qualquer direção.
Entrementes, as tribos gaulesas estavam reunindo reforços.
Quando essa força chegou Vercingetórix posicionou seus ho-
mens para a batalha e ordenou que os guerreiros que estavam
dentro da cidade saíssem e se unissem a eles.
César dividiu suas tropas para defender-se de um ataque
de qualquer direção e, então, enviou sua cavalaria para lutar
com os cavaleiros gauleses. A cavalaria germânica, uma tro-
pa auxiliar que combatia ao lado dos romanos, foi superior
aos cavaleiros gauleses, desbaratando o inimigo. A infantaria Camponesa celta em relevo romano (c. século 1 d.C.)

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OS HELVÉCIOS
Os helvécios eram a tribo celta que
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habitava a região da atual Suiça.


Mais uma vez, Júlio César descreve
este povo, nos permitindo
conhecê-lo melhor

O
s helvécios, uma tribo celta originária do Sul da
atual Alemanha, estabeleceu-se na região da Suíça
por volta do século 1 a.C. Na medida em que sua
população aumentava, os helvécios empreenderam
novas migrações e acabaram entrando em choque com os ro-
manos. Em 58 a.C., foram repelidos por Júlio César e volta-
ram à Suíça. Décadas depois, a partir de 15 a.C. O Império
Romano fundou colônias na região, estabelecendo a província
da Helvécia. Em 260 a.C., tribos germânicas cruzaram as fron-
teiras e expulsaram os romanos.
Segundo os autores antigos, os helvécios se subdividiam em
outras tribos, como os verbigenos, os tigurinos e os töygenoi.
Como muitas outras tribos celtas, na época em que enfrentaram

No mapa com os nomes originais, em latim, das tribos


Mapa da Gália, com o país dos helvécios ao Norte
gaulesas em cerca de 15 d.C.; os helvécios estão na
região denominada pelos romanos de Gália Belga
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César, os helvécios não possuíam reis. Eram lide-

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rados por uma classe de nobres, a qual os roma-
nos comparavam com a sua classe de cavaleiros,
os équites, a mais baixa das duas classes aristo-
cráticas romanas, abaixo da ordem senatorial.
De fato, segundo César, os helvécios pare-
ciam abominar a instituição real. O general ro-
mano registrou a história de Orgetórix, um dos
nobres helvécios mais proeminentes e ambicio-
sos de seu tempo. Quando Orgetórix tornou-se
rei das tribos helvécias, foi preso, condenado
como traidor e executado.

A MIGRAÇÃO
DOS HELVÉCIOS
No começo da primavera de 58 a.C., os hel-
vécios começou a migrar, seguindo uma rota
que os levaria através do rio Reno e da provín-
cia romana da Gália Transalpina. A migração foi
motivada pelo crescimento da população que
precisava de terra fértil e extensa para cultivar.
Muitas das tribos, especialmente do Sul e do
centro da Gália, estavam evoluindo do sistema
de liderança tribal para Estados organizados
governados por magistrados eleitos. Contudo,
alguns indivíduos da nobreza ainda detinham
considerável poder, baseado nos guerreiros sob
seu comando e apoiados por homens a eles li-
gados por laços de sangue ou por dívidas.
Um desses homens, Orgetorix, que havia
habilmente casado suas parentes com nobres
poderosos das tribos vizinhas para conquistar
influência, originalmente inspirou os helvécios
a migrarem em 61 a.C. No entanto, enquanto
os helvécios preparavam-se para migrar, as am-
Os helvécios obrigam os romanos a passar sob o jugo, de Charles Gleyre (1858)
bições de Orgetorix o puseram em conflito com
os magistrados da tribo.
Depois de uma tentativa fracassada de intimidá-los com uma agem leve, impressionou seus contemporâneos. Ele estava de-
mostra da força à sua disposição, ele foi julgado e executado. terminado a evitar qualquer incursão de bárbaros ao território
Mesmo assim, pelo menos um dos associados de Orgetorix, romano, o que os cidadãos de Roma consideravam uma gran-
seu genro, um nobre da tribo dos éduos chamado Dumnorix, de ameaça. Para atrasar os helvécios, enquanto reunia mais
ajudou a liderar os helvécios durante sua migração. forças, César ordenou que a ponte sobre o Reno, próxima de
Como a determinação de não voltar, incendiaram suas próprias Genebra, fosse destruída.
aldeias e fazendas antes de partir. César afirma que cerca de 368 Uma embaixada dos helvécios foi ao encontro de César
mil pessoas migraram, sustentando que tal número era baseado para pedir permissão para passar através de parte da província
em registros mantidos pelos helvécios e escritos com caracteres romana durante sua jornada, prometendo não causar danos
gregos, os quais seus legionários capturaram no final da sua cam- enquanto atravessavam o território.
panha. Mas não há como comprovar essa estimativa. O general romano pediu tempo para considerar sua res-
Os helvécios, como as outras tribos bárbaras em migração, posta e ordenou aos seus soldados que construíssem uma
não viajavam numa única coluna, mas em diversos grupos se- linha de fortificações que se estendia por cerca de trinta qui-
parados espalhados por uma grande área. É possível imaginar lômetros a partir do lago Genebra até as Montanhas Jura
a extensão da horda em movimento por um relato de César. - uma cordilheira ao norte dos Alpes, na fronteira entre a
O general romano observa que os helvécios demoraram três França, Suíça e Alemanha.
semanas de travessias ininterruptas para cruzar um rio. Quando os enviados dos helvécios retornaram, César in-
César recebeu um relatório da migração enquanto ainda formou não lhes daria permissão para passar pelo território
estava em Roma e partiu imediatamente à Gália Cisalpina. A romano e que resistiria a qualquer tentativa que eles fizessem
velocidade com que viajou, tanto cavalgando como em carru- de cruzar a província.

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Júlio César e Divico negociam, depois da Batalha do Saône

Com a cooperação de Dumnorix, os helvécios tomaram uma guintes seguiu o inimigo, com sua vanguarda permanecendo
rota alternativa através das terras dos sequanos, outra tribo a cerca de dez quilômetros atrás da tribo mais próxima.
gaulesa que vivia na cordilheira do Jura. César, por sua vez, re- A certa altura, os batedores de César reportaram que os
tornou à Gália Cisalpina para buscar reforços e, então, voltou helvécios tinham acampado à noite numa planície dominada
pela rota mais curta. por terreno elevado a cerca de quinze quilômetros do acam-
Os helvécios continuavam a avançar, saqueando as terras pamento romano. Uma patrulha foi enviada para examinar
das tribos aliadas de Roma. Assim que cruzou o Reno, César essas colinas e as trilhas que levavam a elas. Descobriu-se
avançou contra os migrantes, alcançando as colunas mais à que eram fáceis de atravessar, e César decidiu lançar outro
retaguarda, constituídas principalmente pelos tigurinos, às ataque surpresa sob a proteção da escuridão. César armou
margens do Saône. uma emboscada. Ordenou que seu legado, um general do
À frente das três legiões, o general romano deixou o acam- exército romano, Tito Labieno, e duas legiões, guiados por
pamento durante a noite e lançou um ataque repentino. A homens que tinham tomado parte na patrulha anterior, ocu-
surpresa foi completa, e os helvécios foram massacrados ou passem uma área de terreno elevado. Labieno recebeu or-
dispersados com poucas perdas para os romanos. dens estritas para não entrar em batalha até que ele visse o
O exército romano cruzou, então, o rio Saône e seguiu o resto do exército chegando para a operação. O próprio César
corpo principal dos helvécios. Enviados das tribos helvécias pe- comandou a força principal.
diam agora que os romanos lhes concedessem terras, afirman- Ao amanhecer, Labieno já tinha dominado o térreo eleva-
do que se estabeleceriam com prazer onde quer que tais terras do e César estava a mais de dois quilômetros de distância.
lhes fossem dadas. No entanto, recusaram de imediato a exi- Os helvécios, que, como muitos exércitos celtas, moviam-
gência que César fez de receber reféns em troca da concessão. -se desordenadamente e tomavam poucas precauções para
No dia seguinte, os helvécios retiraram-se, porém, sua proteger-se de ataques surpresa, ainda não tinham percebido
cavalaria em número inferior à dos romanos, infligiu uma a presença das forças romanas.
derrota vergonhosa nos cavaleiros auxiliares de Roma que Mas a tentativa de surpreender o acampamento inimigo fra-
os perseguiram sem tomar as devidas precauções. Houve ru- cassou por um problema de comunicação entre César e seu le-
mores de que o ataque foi liderado por Dumnorix e seus ho- gado Labieno, que atrasou o ataque e permitiu que os helvécios
mens. Encorajados, alguns dos helvécios se detiveram para em marcha prosseguissem, escapando, sem saber, da cilada.
oferecer batalha. César declinou e pelas duas semanas se- Àquela altura, o exército romano estava ficando com

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pouquíssimos suprimentos e, como os éduos não tinham provisado, enquanto outros arremessavam objetos entre as
ainda entregue os grãos prometidos, César resolveu levar o rodas, mas no final os legionários forçaram essa defesa e a
exército até o local onde estavam os suprimentos, marchan- romperam.
do para a sua principal cidade, Bibracte, a cerca de trinta As baixas romanas foram bastante pesadas. Os romanos
quilômetros de onde estava. passaram os três dias seguintes cuidando dos feridos e enter-
As notícias dessa mudança foram levadas aos helvécios por rando os mortos. As baixas gaulesas foram, como é comum
alguns cavaleiros auxiliares gauleses que desertaram o exército para um exército derrotado, consideravelmente maiores e
romano. Os celtas interpretaram a manobra como medo dos diversos prisioneiros distintos caíram nas mãos dos romanos,
romanos e decidiram que agora era o melhor momento de inclusive uma das filhas de Orgetorix.
livrar-se de seu perseguidor. Assim, os helvécios passaram a Os helvécios retiraram-se até o território dos lingones, mas
seguir os romanos, atacando repetidamente a retaguarda. César havia enviado mensageiros até estes instruindo-os a não
César levou seus homens a uma colina e, enviando a cava- prestar qualquer auxílio ou dar alimentos aos fugitivos, do con-
laria para atrasar o inimigo, colocou suas legiões em formação trário teriam de enfrentar um ataque romano. Ameaçados pela
de batalha. César, montado em seu cavalo, colocou-se bem à fome, os helvécios mandaram enviados para pedir a paz e dessa
vista de todos e fez um discurso encorajador – provavelmente, vez submeteram à exigência de deixar reféns com os romanos.
várias vezes, pois não teria sido possível dirigir-se à toda a O poder dos líderes nas sociedades tribais raramente era
linha simultaneamente. absoluto, e, pode ter sido essa independência de espírito
Conforme os romanos preparavam-se para batalha, os que estimulou um grupo de cerca de seis mil pessoas a fugir
helvécios formaram uma densa linha de guerreiros aos pés durante a noite. César enviou mensageiros informando as
da colina. Atrás dos guerreiros estavam seus familiares em tribos por cujas terras os fugitivos passassem para prendê-
carroças para observar a luta e testemunhar o comporta- -los. César afirma que todos foram detidos e enviados a eles
mento de seus homens. e vendidos como escravos.
Os helvécios estavam extremamente confiantes e avança- O remanescente dos helvécios recebeu instruções de retor-
ram de pronto colina acima para atacar a linha romana que nar às suas terras de origem. Os alóbroges, um povo celta vi-
aguardava. Os legionários esperaram até que estivessem ao zinho que vivia dentro da província romana, receberam ordens
alcance de seus pesados dardos, chamados pila (singular pi- de dar aos helvécios uma quantidade considerável de grãos
lum), e, então, os arremessaram. As pequenas pontas em for- para sustentá-los enquanto reconstruíam suas comunidades e
ma de pirâmide das armas pesadas perfuravam os escudos, e semeavam plantações para o ano seguinte.
as longas e finas hastes passavam através do orifício e atin- César afirma que apenas 110 mil helvécios retornaram
giam o guerreiro. aos seus lares, porém, devido ao desejo dos romanos de
Alguns helvécios foram mortos ou gravemente feridos, e mensurar o sucesso militar com números espetacularmente
muitos outros tiveram seus escudos cravados com o pesado grandes e aparentemente precisos dos mortos e capturados,
pilum, que não podia ser retirado com facilidade, fazendo o historiador militar britânico Adrian Goldsworthy observa
com que os largassem e lutassem sem proteção. que “devemos tratar com extremo ceticismo a implicação
A combinação do avanço morro acima e o devastador de que cerca de 258 mil pessoas pereceram ou foram escra-
lançamento de dardos dos romanos tinha quebrado a for- vizadas na campanha”.
mação dos helvécios e tirado muito do ímpeto
do seu avanço. Quando os romanos sacaram
suas espadas e atacaram morro abaixo em

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formação ordenada, tinham uma vantagem
marcante.
Mesmo assim, demorou algum tempo até
que os helvécios começassem a desistir. Eles
recuaram cerca de oitocentos metros, e as
legiões avançaram para retomar a batalha.
Contudo, os romanos encontraram, de repen-
te, uma nova ameaça. Os boios e os tulingos,
dois subgrupos gauleses que acompanhavam
os migrantes, tinham formado a retaguarda
e, em função disso, chegaram mais tarde na
batalha. Agora, eles ameaçavam o flanco ex-
posto dos romanos.
Segundo César, a luta continuou por cer-
ca de cinco horas, os romanos gradualmente
forçando os helvécios cada vez mais morro
abaixo. Os boios e os tulingos conseguiram
chegar às carroças de carga, onde as usaram
para formar uma barricada. Alguns guerreiros
lançaram dardos do alto desse baluarte im- Soldado romano retratado na Coluna de Trajano

23
A RELIGIÃO
CELTA

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Três deusas celtas em relevo
na fonte Coventina O POLITEÍSMO
O politeísmo celta, como o próprio termo sugere, é o conjunto de
crenças, práticas e representações religiosas dos antigos povos celtas,
O mundo celta era povoado localizados por várias das regiões da Europa Ocidental, que viriam a se
tornar a Irlanda, País de Gales, Escócia, Grã-Bretanha, como também por
de criaturas sobrenaturais, regiões da Alemanha, Bélgica, Holanda, Dinamarca, França e Espanha.
como as fadas que habitam os Apesar das origens dos povos celtas serem controversas, devido à es-
cassa quantidade de documentos originais, é fundamentada, contudo, a
bosques e os leprecaus que afirmação de que os povos celtas são ainda mais antigos do que os pró-
guardam seu pote de ouro no prios gregos e romanos antigos, datando desde, aproximadamente, 4000
anos a.C., sendo o primeiro povo civilizado da Europa desde 1800 a.C.
fim do arco-íris. Um universo O politeísmo celta era animista (do latim animus, “alma”), ou seja,
mágico, no qual os deuses acreditava que animais, plantas, rochas e fenômenos climáticos possuí-
am uma essência espiritual. Os ritos eram quase sempre realizados ao ar
interagem com os homens livre, pois viam a natureza como a manifestação mais sublime da Deusa-
por meio dos elementos e Mãe, divindade mais profunda de todas. Esta filosofia animista visava o
equilíbrio. Para alcançá-lo, a vida humana deveria conectar-se à fonte
dos seres que os cercam. espiritual, através do contato com a Natureza.
Os celtas acreditavam na Como a essência-prima era feminina, enxergavam na mulher um
ser com maior domínio sobre as forças da natureza, embora a cultura
imortalidade da alma e na celta não fosse matriarcal.
transmigração do espírito Os povos celtas eram muito variados entre si, conforme localização
e etnia, e também as práticas religiosas diferiam para cada um destes
de um corpo para outro e “subpovos”, apesar de existirem características em comum a todos estes.
observavam os desígnios dos Os celtas perderam seu poder após a invasão dos romanos, durando
homens no caminhar dos cerca de dois séculos, do séc. 1 a.C. ao 1 d.C. Após tal período sangrento
de resistência e conflitos, já no início da Idade Média, a cultura e arte
astros através do céu celtas ressurgiam, porém agora em ambiente católico e cristão.

24
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-se arte e conhecimento. Os manuscritos ornamentados com
iluminuras são a principal síntese da onda cultural desse tempo,
a Renascença Celta. A maior figura do esforço missionário do
cristianismo celta foi São Patrício, o Apóstolo da Irlanda

SÃO PATRÍCIO
São Patrício, o Apóstolo da Irlanda, escreveu na sua auto-
biografia, Confissão, ter nascido em 377, num lugar chamado
Bonaven Taberniae – uma aldeia não identificada pelos historia-
dores, talvez na França ou Escócia. Membro de uma família de
clérigos (naquela época os padres podiam casar), admitiu que
não se sentia inclinado à vida religiosa. Isso mudou quando,
ainda adolescente, foi raptado por piratas e vendido como es-
cravo. Então, a solidão e o desamparo do cativeiro o fizeram se
voltar a Deus. Seu senhor, Milchu, era um grande druida, e, nos
seis anos que passou escravizado, Patrício se familiarizou com a
língua e o misticismo celta. A Igreja Irlandesa que fundou tem,
segundo diversos autores, muitas reminiscências do druidismo.
Patrício fugiu do cativeiro, reencontrou a família, mas foi cap-
turado e vendido como escravo por mais duas vezes. Depois
do último cativeiro, ele foi viver na abadia de São Martinho de
Tours, onde passou quatro anos. Foi aí, por inspiração divina, se-
gundo contou na sua Confissão, que ele decidiu ir catequizar a
Irlanda. O abade do mosteiro recomendou-o, e Patrício embar-
cou para a ilha para substituir seu antecessor, o bispo Paládio,
assassinado pelos “hereges”. O futuro santo, apesar da opo-
sição dos druidas, acabou tendo sucesso. Seus conhecimentos
de druidismo o ajudaram. Segundo alguns estudiosos, Patrício
simplesmente revestiu os preceitos místicos dos celtas com sím-
bolos cristãos. Prova disso é que seus mais fiéis discípulos eram
bardos – os antigos poetas e músicos celtas. Uma precondição
para se tornar druida era ser um bardo – os guardiões da tradi-
ção e conhecimentos celtas. De fato, muitos mosteiros funda-
dos por Patrício acabaram se tornando centros de poesia celta.
Patrício não morreu mártir, mas em paz, no dia 17 de março
de 461, depois de 30 anos de apostolado na Ilha dos Santos –
como a Irlanda veio a ser chamada depois dele. Solidificada, a
obra de Patrício continuou por si só. A fundação de mosteiros
e de escolas monásticas e o uso da escrita trouxeram grande
São Patrício em vitral da igreja de Nossa expansão cultural ao país. Durante os séculos 6 e 7, essas es-
Senhora Stela Maris, em Cork, Irlanda colas estavam entre as mais importantes do mundo ocidental.
Por influência de Patrício, enquanto todo o resto da Europa vi-
via a Idade das Trevas, a Irlanda passava pela sua Era de Ouro.
O CRISTIANISMO CELTA
Ao mesmo tempo em que o cristianismo se espalhava pelo
Império romano, populações de áreas não conquistadas da
Escócia, Irlanda e País de Gales passaram a adotar espontanea-
A ERA DE OURO DA IRLANDA
mente o cristianismo. Era, porém, uma versão própria da religião No século 6 d.C., a Irlanda viveu sua Era do
de Jesus, independente da Igreja de Roma, uma forma conheci- Ouro. Estudantes de toda a Europa iam para a
da como cristianismo celta. A conversão dos habitantes celtas ao Irlanda em busca de conhecimento, evitando
cristianismo, a fundação de mosteiros e de escolas monásticas ou fugindo dos bárbaros que saqueavam os
e o uso da escrita trouxeram grande expansão cultural às Ilhas despojos de Roma e de suas colônias na Europa
Britânicas. Durante os séculos 6 e 7 d.C., essas escolas estavam Central e Ocidental. Nos mosteiros irlandeses,
entre as mais importantes do mundo ocidental. Estudantes de que eram independentes da Igreja Romana,
toda a Europa iam para a Irlanda em busca de conhecimento, produzia-se arte e conhecimento. Os manuscri-
pois o continente, pilhado e saqueado pelos bárbaros depois da tos ornamentados com iluminuras são a principal
queda de Roma – em 476 –, iniciava sua Idade das Trevas. Nos síntese da cultura desse tempo.
mosteiros irlandeses independentes da Igreja romana, produzia-

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rando seus galhos de forma que fossem se entrecruzando na
TEMPLOS medida em que cresciam. Nos dias de festa, os aldeões içavam
Embora seja comum a ideia de que os povos celtas não plataformas de madeira e as colocavam sobre os galhos. E era
construíam templos e que suas práticas religiosas ocorriam sobre esses tablados em meio às árvores que a festa, a música
apenas em altares e bosques, arqueólogos encontraram vá- e as danças aconteciam.
rias estruturas de templos em regiões da Irlanda, País de Gales
e outras regiões, outrora povoadas pelo povo celta. Após a
invasão romana, templos celto-romanos surgiam com caracte- CULTO ÀS ÁRVORES
rísticas mescladas de ambas as culturas. Normalmente, a forma mais comum de se venerar uma ár-
A vida ritualística celta era centrada quase sempre em luga- vore sagrada em particular era nela amarrar faixas, fitas ou
res da natureza. A paisagem tinha uma influência muito gran- panos. Quase sempre isso era feito por aqueles que buscavam
de na mística desse povo. Havia templos, mas não eram tão a cura para algum mal. A oferenda tinha de ser amarrada à ár-
comuns quanto as catedrais naturais, isto é, bosques, nascen- vore com lã crua, pois os celtas acreditavam que esse material
tes e poços, onde realizavam seus cultos. As fontes e florestas era capaz de absorver substâncias maléficas. Algumas vezes,
eram os locais mais cultuados. O poder contido na natureza se porém, as fitas ou panos eram pregados na árvore.
relaciona, também, a um dos aspectos mais proeminentes da Há no folclore irlandês um exemplo famoso dessas árvo-
religião dos celtas: o culto às árvores. Vistas como deusas – as res votivas. O Carvalho de Maelrubha era coberto de pregos,
árvores sagradas eram guardadas por fadas – cada tipo de ár- nos quais se fixavam faixas. Mas também havia moedas, me-
vore tinha determinado atributo e poder. Eram habitadas por dalhões, fivelas e ferraduras pregados nessa árvore lendária.
um espírito da natureza que, como tal, passava de um ser a Também entre os gauleses havia o célebre carvalho Lapalud.
outro, ou de um elemento da paisagem – rocha, fonte, cascata Todos os homens cuja ocupação empregava o martelo, isto é,
– a outro. Venerar a árvore equivalia a honrar a divindade que ferreiros, carpinteiros ou pedreiros, cravavam um prego em
a habitava e cultuar o poder que ela incorporava. Os nomes Lapalud quando passavam por ele pela primeira vez. De acor-
de reis e heróis irlandeses, muitos ainda em uso, dão teste- do com Nigel Pennik, um correspondente de Lapalud, chamado
munho ao caráter divino que as árvores evocavam: MacCuill, “Stock-im-Eisen, é preservado até hoje, ainda cheio de pregos,
um rei lendário, quer dizer “Filho da Aveleira”, outro herói, numa redoma de vidro no pátio de um edifício de Viena”.
McCulinn, é o “Filho do Azevinho.” O espírito que habita a árvore não é, necessariamente, o
O culto às árvores fez surgir construções que as incluíssem Espírito da Vegetação. Um dos locais que os celtas conside-
como elementos arquitetônicos Na Inglaterra, o folclore de ravam mais sagrados e onde normalmente buscavam a cura
certas regiões preserva relatos de palácios ou templos cons- de alguma doença, eram os poços, olhos-d’água e nascentes.
truídos em torno de árvores sagradas. Também costumavam Essas fontes naturais eram manifestação de alguma divindade.
plantar o que o escritor Nigel Pennik chamou de “aldeia-ár- A água estava, assim, imbuída do poder daquele espírito. No
vore” . Na região oeste da Inglaterra, a que mais preserva entanto, quando um poço sagrado era profanado, ele secava.
a influência celta, plantavam-se carvalhos e olmeiros, amar- A divindade migrava, então, para uma árvore nas proximida-

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Monumento funerário
celta na Alemanha

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des e passava a habitá-la. Dessa forma, as árvores absorviam

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o poder das fontes e se tornavam “árvores-poço”.
Entre todas as árvores, o carvalho era a mais sagrada. De acor-
do com James Frazer, autor do monumental O Ramo Dourado,
o carvalho “não era apenas a árvore sagrada, mas o principal
objeto de culto dos celtas”. Durante as festividades e cerimônias
cujo objeto era a fazer o sol brilhar e os frutos da terra crescerem,
os celtas acendiam e alimentavam os fogos cerimoniais com ma-
deira de carvalho. Ainda é comum hoje em dia, fazer fogueiras de
carvalho durante os festivais de verão, como os Fogos de Beltane
que continua a acontecer todo dia 1 de maio, na Escócia.

BOSQUES SAGRADOS
Os bosques, ainda mais do que os lagos e
rios, eram lugares de presença divina. Lucain
conta como César arrasou, perto de Marselha,
um bosque sagrado, onde troncos de árvo-
res eram esculpidos para representar deuses.
Empenhado em fornecer a seus compatriotas
um álibi civilizador, acrescenta que ali se prati-
cavam ritos bárbaros e que as árvores estavam
salpicadas de sangue humano. Por toda parte
onde os romanos descobriam um bosque onde
os celtas se reuniam para celebrar seu culto,
eles o destruíam. O que restou não foi poupado
pela Igreja cristã, embora às vezes de maneira
mais diplomática. Certo magnífico carvalho da
floresta bávara, objeto de fervor popular, que
os marcomanos haviam herdado dos helvécios,
torna-se docemente o “Carvalho de Maria”
e está hoje coberto de piedosos ex-votos. O
bosque estava tão intimamente ligado à cultura Cruz céltica
dos celtas que não lhes era possível dissociá-Io
de seu afã de repelir o estrangeiro. Os romanos
Associado ao culto do carvalho, estava a importância do vis-
o tinham compreendido imediatamente: abater
co. Trata-se, na verdade, de um parasita do carvalho. O visco
os santuários florestais dos celtas era tão impor-
que cresce nos carvalhos era visto como o espírito da árvore.
tante como desbaratar suas tropas no campo
Se alguma coisa acontece com a alma, o corpo é afetado. A
de batalha. Em sua desesperada luta contra os
lenda de Balder – um símbolo do carvalho –, que, apesar de
Saxões, no século 6, os bretões do norte apela-
ser nórdica, é congruente com a visão celta, ecoa essa crença.
ram para o Criador. “Tornaí a forma de árvores”,
Nada podia afetar o supostamente invulnerável Balder, a não
respondeu-Ihes ele, “e ficai em linha de batalha,
ser o visco. O significado disso é que “a matéria é afetada pelo
para assim frustrar os inimigos no terrível corpo-
espírito”. De fato, Balder é abatido por um ramo de visco.
-a-corpo.” Então eles foram transformados em
A ideia do visco como a alma que sustenta o carvalho vem
árvores e, à espera de se tornarem de novo eles
de uma percepção singela. Enquanto o carvalho perde as folhas
mesmos, ergueram a voz em ondas de harmo-
durante o outono e o inverno, o visco sobre ele permanece sem-
nia, em pleno combate. Os amieiros à testa da
pre verde. “No inverno, a visão das suas folhas verdes entre os
tropa formavam a vanguarda, os salgueiros e
galhos nus deve ter sido cultuado pelos fiéis como um sinal de
sorveiras se dispunham em ordem a seguir. “ ...
que a vida divina, a qual tinha parado de animar os galhos, ainda
O espinheiro armado com seus espinhos feria as
sobrevivia no visco, como o coração daquele que dorme que con-
mãos, a faia cortava as cabeças e foi ela própria
tinua a bater enquanto o corpo permanece imóvel”. O visco está
podada na confusão ... O rápido carvalho, em
intrinsecamente associado aos druidas, os quais se embrenhavam
sua marcha, fazia tremer a terra ... “ Foi o com-
nos bosques com suas foices de ouro em busca dessa planta. Era,
bate de Godeu, que teve seu igual na Irlanda.
portanto, justamente o visco que conferia ao carvalho seu lugar
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas de destaque no culto às árvores. Ao observá-lo crescendo sobre
o carvalho, os celtas – e outros povos europeus – concluíam que
a árvore “não só era imortal, mas invulnerável.”

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Além da imortalidade e invulnerabilidade, o carvalho também

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estava vinculado à ideia de justiça. No templo do deus Essus, o
deus gaulês que elaborava e mantinha as leis, crescia um car-
valho através de uma abertura no teto do templo, no qual os
criminosos que incorreram em faltas repetidamente eram exe-
cutados. O culpado era pendurado num dos ramos do carvalho
e seu ventre era cortado de forma a expor o estômago.
A falsa ideia de que os celtas não construíam templos prova-
velmente se deve ao fato de que a maioria dos ritos religiosos
acontecia em altares fundados em bosques e florestas.
As árvores eram contempladas e consideradas sagradas. O
azevinho, por ser de coloração vermelha, era comparado ao
sangue menstrual, assim como o as brancas frutas do visco
simbolizavam o sêmen.
A importância das árvores na religião celta é nítida. São
vários os desenhos de árvores, entrelaçados pelos nós celtas,
assim como também são várias as reverências a tais plantas.

RITOS
Triskell, um importante grafismo celta
O rito, nas religiões antigas, não proporcio-
nava uma expansão da alma. Era o desenrolar de
Enxergavam nelas, além da essência da vida, formas para
uma técnica comprovada, criada para obter o fe-
prever o futuro, levando em conta a inteligência suprema da
nômeno desejado. O sacerdote pagão não pedia
natureza, observando como a queda das folhas gerava, para-
fé no dogma, mas respeito ao rito. A prece, que,
doxalmente, os melhores brotos.
no nível superior, é a busca de uma união mística
As árvores proporcionavam o lar, sombra, lenha e o sustento
e, no nível inferior, o apelo à misericórdia divina,
de aves que poderiam vir a ser alimento a tribo.
era desconhecida. A união com o cosmos era
percebida sem esforço em todos os atos da vida,
e a submissão às forças naturais sem discussão
nem recurso. Os modestos monumentos mate-
OS RITOS CELTAS
Os rituais celtas consistiam em três leis principais:
riais do culto druídico nos são conhecidos. São
pequenos templos de madeira, uma peça simples z Cultuar os deuses;
contendo uma efígie divina, cercada por um z Não praticar o mal;
peristilo, o fanum, amiúde estabelecidos sobre z Ser forte e corajoso.
uma elevação e circundados por uma paliçada ou
um fosso. Eram mais abrigos do que igrejas. As
cerimônias do culto se efetuavam nas clareiras de

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bosques consagrados, que tomavam o nome de
nemeton, santuários. Uma floresta dos arredores
de Ouimper ainda tem esse nome: Névet. O ato
cultual por excelência era o sacrifício.
Outras cerimônias tinham um colorido mágico
que as apartava um pouco da religião propria-
mente dita. O deus Borvo se associava às águas
termais, como testifica Bourbonne-Ies-Bains.
Sua cabeça, achada na Inglaterra, contém uma
cavidade no topo, provavelmente destinada a
libações simbólicas. A palavra “cantaan”, que se
acha nas estelas funerárias, pode ser o nome de
uma cerimônia funerária, pois, na Irlanda, todas
as fórmulas encantatórias eram cantadas. Em
bretão, kentel tomou o sentido de lição, pois na
origem as lições eram cantadas. Aqui, a linguística
lança suas luzes sobre a arqueologia.
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas
Prendedor de capa gaulês

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A Defesa das Gálias,
de Theodore Chasseriau (1855)

A tese de que aconteciam sacrifícios durante os ritos celtas


é duvidosa – ao menos em larga escala – visto que esta se ba-
NUDEZ
seia em escritos romanos. Muitos historiadores atuais, contudo, A nudez tinha papel relevante nos ritos celtas, embora não
creem que os sacrifícios eram extremamente raros. Afinal, a ar- com certeza entre os druidas, que são inseparáveis de suas
queologia tem informações extremamente escassas quanto aos túnicas brancas. Contudo, metade dos deuses que a estatuária
sacrifícios, insuficientes para afirmar tal suposição com certeza. celta sobrevivente representa estão nus. O deus Cernuno de
A cultura celta não é considerada uma cultura histórica por Gundestrup está vestido, mas o deus de Bouray não. O histo-
não ter uma história escrita. Sua escrita era rudimentar, basea- riador e geógrafo grego Políbio (203 – 120 a.C.), ao narrar a
da em traços horizontais e verticais. Batalha de Telamon, descreve os Gesates marchando nus para
Suas histórias eram transmitidas oralmente. O historiador o combate, brandindo os escudos. “Trata-se provavelmente
Estrabo descreveu os cronistas celtas como “vates”, cujo signifi- de um ritual, concedendo à nudez um poder de imunização
cado é “inspirado”. contra os ferimentos e a morte. Infelizmente, não teve êxi-
Algumas de suas histórias eram repassadas através da músi- to”, observa o historiador francês Oliver Launay. Na lenda de
ca, facilitando a memorização das palavras exatas em questão. Cuchulainn, mais de uma vez mulheres nuas são enviadas a

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Gália. São eles, prossegue César, “que decidem quase todas as
AS MULHERES ENSINAM disputas; e se algum crime foi cometido, ou assassinato, ou se
há alguma disputa sobre herança e propriedade, eles também
A GUERRA decidem isso, determinando recompensas e penalidades.” Os
No mundo celta, há uma relação entre o druidas, porém, tinham um líder, o grão-mestre – a maior au-
guerreiro e a mulher, a guerra e a união sexual. toridade da ordem. Quando este morre, “qualquer um que
As mulheres guerreiras não são excepcionais na seja proeminente o sucede, ou, caso haja vário na mesma
Terra Céltica, mas constituem uma sociedade posição, eles são eleitos pelo voto de outros druidas ou, até
à parte, como as mulheres-sacerdotisas, com a mesmo, disputam a posição pelas armas”, relatou César.
diferença que a vocação para matar concedida Os druidas costumavam ter reuniões anuais, onde decidiam
a seres cujo destino natural é ter filhos, as dota questões sobre a ordem e ouviam as reclamações do povo. Os
de um caráter anormal e inquietante. Elas são encontros eram determinados pelo movimento dos astros nos
olhadas como feiticeiras. Mas junto a este título céus, assim como eram os festivais que eles realizavam. “Em
elas possuem aptidões tais, que os melhores dos certas épocas dos anos, esses druidas se reúnem próximos a
jovens guerreiros vêm a elas para aperfeiçoar Carnutes (a moderna cidade francesa de Chartres), cujo territó-
seus conhecimentos das armas. É entre elas rio é tido como o centro da Gália e têm um conclave num lugar
que Cuchulainn adquire sua ciência temível. Ele sagrado”, diz César. “Para ali vão todos aqueles que têm dis-
vai primeiro a Dordmair, que lhe ensina difíceis putas e eles obedecem às decisões e julgamentos dos druidas.”
proezas, como equilibrar-se sobre a ponta de César também dá conta dos privilégios que os druidas goza-
uma espada sem se ferir. Mas, quando ela quer vam e relata sobre o treinamento que recebiam. “Normalmente
dar a seu curso um caráter mais íntimo, ele a os druidas se mantêm distantes das guerras e não pagam im-
repele, pois “com seus grandes joelhos, seus postos de guerra; são dispensados do serviço militar e isentos de
calcanhares para a frente e seus pés atrás”, ela todas as obrigações. Atraídos por essas grandes compensações,
era horrorosa. Estamos inclinados a acreditar muitos jovens buscam ser treinados nessa ordem; outros são
que sim. Tendo ouvido dizer que a feiticeira que enviados por seus pais e familiares.” O treinamento dos druidas
sabia mais que todas as outras era Scatach, na era tão rigoroso quanto longo. “Os relatos dizem que nas es-
Escócia, ele se apresenta a seguir em casa dela. colas dos druidas eles decoram um grande número de versos e,
Mas é preciso primeiro passar por uma ponte. portanto, algumas pessoas ficam vinte anos sendo preparadas”,
“Quando se saltava sobre ela, ela se encolhia
até ficar tão estreita como um fio de cabelo e

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tão escorregadia como uma unha.” Entretanto,
consegue superar a ponte, que, tendo encontra-
do seu senhor, o deixa passar.
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas

ele para acalmar sua fúria e se opor à carnificina. Em outra


aventura desse herói irlandês, uma velha, Riches, que, para
vingar seu filho, se despe diante do melhor guerreiro da tribo
dos ulates, no momento em que Cuchulainn ataca. Ele, porém,
é detido. Cuchulainn exclama: “Enquanto essa mulher estiver
nessa postura, não poderei levantar-me!” Ele teria morrido,
se seu fiel cocheiro não tivesse partido os rins da mulher com
uma pedra que atirou. Liberto, Cuchulainn se lança contra seu
adversário e corta sua cabeça.

OS DRUIDAS
Júlio César, um dos mais importantes cronistas a relatar os
costumes dos celtas da Gália, registrou a proeminência da or-
dem druídica entre esse povo. Os druidas representavam o
clero organizado e exerciam grande poder sobre a sociedade,
julgando questões de propriedade e de direito, mantendo a
relação entre as esferas da sociedade e cuidando do aspecto
espiritual em geral
Os druidas “se ocupam com o culto divino, a correta execu-
ção dos rituais, tanto públicos como privados, e a interpreta-
ção de questões rituais”, escreveu César em seu As Guerras da Arqui-druida em ilustração de 1815

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Apesar de não conhecermos os nomes dos antigos deuses
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celtas, a não ser os preservados pela literatura mítica irlandesa


e escocesa, César também registrou a devoção que os celtas
dirigiam às suas divindades. O general romano usou, porém,
o nome em latim correspondente para se referir ao panteão
celta. Assim, sabemos que “entre os deuses, o mais cultua-
do é Mercúrio”. Esse deus, correspondente ao grego Hermes,
era excepcionalmente esperto e eloquente; deus dos ladrões,
protetor dos viajantes e dos mercadores, era ele quem condu-
zia as almas à sua morada final. Depois do romano Mercúrio,
identificado por Tassilo Orpheu Spalding como o celta Dumias,
os deuses mais cultuados pelos gauleses eram, segundo César,
“Apolo [o deus gaulês Belenos], Marte, Júpiter e Minerva”.
César confirma também a semelhança entre essas divindades
e suas contrapartidas greco-romanas: “sobre esses deuses, ele
têm quase as mesmas ideias mantidas pelas outras nações:
Apolo [Belenos] traz a cura de doenças, Minerva fornece os
primeiros princípios das artes e profissões, Júpiter mantém o
império dos Céus e Marte controla a guerra”.
Os druidas também sustentavam que os homens descen-
diam de um pai comum, Dis, a quem os romanos chamavam
de Dis Patter. De acordo com César, como Dis é senhor do
submundo, seu culto “determina todos os períodos de tempo

Na tradição druídica as
ƐĂĐĞƌĚŽƟƐĂƐ͕ŽƵĚƌƵŝĚŝƐĂƐ͕ĞƌĂŵ
altamente respeitadas pelos
celtas, pois conheciam o poder
A druidisa, de Alexandre Cabanel (s/data)
ĚĂƐƉĂůĂǀƌĂƐ͕ƉĞĚƌĂƐĞĞƌǀĂƐ͘
atesta César. Era importante que os druidas conservassem os ƐƐĂĐĞƌĚŽƟƐĂƐĐĂŶƚĂǀĂŵĂŽƐ
ensinamentos, fórmulas mágicas e poemas na memória, pois moribundos para os adormecer,
nada do conhecimento druídico era escrito. De acordo com o
escritor britânico Robert Graves (citando a maior autoridade faziam encantamentos,
sobre os celtas antigos, o general romano Júlio César), “eles ƉƌŽĨĞĐŝĂƐ͕ĨĞŝƟĕŽƐ͕ĂũƵĚĂǀĂŵ
não julgam apropriado registrar as palavras (do seu conheci-
mento) por escrito, embora para praticamente todos os outros nos nascimentos e faziam curas
assuntos, nos seus registros públicos e privados, eles usam letras
gregas”. Não se sabe exatamente o motivo desse costume. A
história demonstrou que as grandes doutrinas foram corrompi- pelo número de noites, em vez de pelo número de dias, e na
das depois de terem sido escritas. Grandes mestres espirituais, sua observação dos aniversários e o começo dos meses e dos
notadamente Buda e Jesus de Nazaré não escreveram seus ensi- anos o dia sucede a noite.”
namentos para preservá-los na sua forma mais pura. Foram seus A doutrina druídica já foi comparada à de Pitágoras e à bra-
discípulos – Ananda, no caso do primeiro, e os seguidores de mânica, uma vez que as três têm traços comuns. O ponto con-
Jesus, inclusive Maria Madalena – que registraram aquilo que gruente dessas tradições de sabedoria diz respeito à imortalida-
seus professores pregavam. Depois de escritas, tanto a doutrina de da alma e da transmigração. “A doutrina principal que eles
budista como a cristã foram interpretadas de formas diferentes, [os druidas] ensinam é a de que a alma é imortal e que, após
originando diversas seitas. César declara sua opinião pessoal a morte [do corpo físico], passa para um outro corpo; eles sus-
para explicar porque os druidas não utilizavam a escrita para tentam que essa crença, porque o medo da morte é deixado de
documentar sua tradição de sabedoria: “creio que eles adota- lado, é um grande incentivo à bravura.” , escreveu César
ram essa prática por dois motivos – porque eles não querem que A mesma identificação da crença druídica da imortalidade
sua regra se torne propriedade comum e porque não querem com o ensinamento pitagórico foi feita por Valius Maximus
que aqueles que aprenderam a regra confiem na escrita a ponto na primeira metade do século 1 d.C. “Um velho costume dos
de negligenciar o cultivo da memória; e, de fato, normalmente gauleses”, escreveu ele, “é emprestar somas em dinheiro que
acontece que a ajuda da escrita tende a relaxar a diligência da serão pagas no próximo mundo, tão convencidos eles estão de
ação da memória.” que as almas dos homens é imortal; e eu diria que são tolos, a

31
AS ARMAS DRUÍDICAS
não ser pelo fato de esses bárbaros de calças crerem na mesma
O fogo [druídico] era uma arma poderosa nas
fé do grego Pitágoras.”
pequenas guerras entre reinos vizinhos. Assim o
Hipólito, que registrou seu relato por escrito no século 3
Rei Cormac pede a seu druida Cithruadh que aju-
d.C., atesta que os druidas entraram em contato com a dou-
de seus exércitos. “Nada te socorrerá”, responde
trina de Pitágoras por meio de um dos seus discípulos. “Os
Cithruadh, “senão um’ fogo druídico. - E como?,
druidas celtas se aplicavam fielmente à filosofia de Pitágoras,
diz Cormac. - Ouça: que teus soldados vão à
tendo sido incitados nessa busca por Zamolxis, o escravo trá-
floresta e de lá tragam madeira de sorveira, pois é
cio de Pitágoras, que foi dar nessa região após a morte do seu
com ela que se fazem nossas melhores fogueiras.
mestre e lhes deu a oportunidade de estudar esse sistema.”
E é provável que do sul nos respondam da mes-
Clemente de Alexandria vai além. Segundo ele, foi Pitágoras
ma maneira. Quando os fogos começarem a luzir,
que instilou o conhecimento místico que amealhou em suas
cada um observará o seu. E se for para o sul que
viagens e iniciações não só entre os druidas, mas em diver-
os fogos se voltam, será preciso perseguir as gen-
sas outras ordens espirituais da Antiguidade. “Alexandre, no
tes de Munster. Se for para o norte, parti também
seu livro Sobre os Símbolos Pitagóricos relata que Pitágoras foi
vós, pois sereis vencidos, mesmo que resistais.” O
um discípulo de Nazaratus, o Assírio... e afirmou, igualmente,
vento druídico era outra arma temível. Mog Ruith
que Pitágoras aprendeu com os galatas e os brâmanes... Dessa
se vale dela para destroçar o exército inimigo.
forma, a filosofia, uma ciência da maior utilidade, floresceu
“Ele começou a soprar sobre a colina: nenhum
na antiguidade entre os bárbaros, derramando sua luz entre
guerreiro do norte podia aguentar sob sua tenda,
as nações. Chegou à Grécia; e os primeiros em suas cadeiras
tão forte tempestade ... Sempre soprando sobre a
foram os profetas do Egito; e os caldeus, entre os assírios; e os
colina, Mog Ruith diz estas palavras: ‘Eu giro, eu
druidas entre os gauleses; e os samaneanos, entre os báctrios;
volto ... etc.’ A colina então desaparece, e volta
e os filósofos dos celtas; e os magos dos persas...”.
em nuvens negras. O grosso do exército foi assal-
Outro tema central do druidismo, como de diversas outras
tado pelo pavor quando ouviu os gritos da tropa,
classes sacerdotais da Antiguidade, como os sumérios, babi-
o tumulto dos cavalos e dos carros que estrugiu
lônicos, egípcios e hindus, era o da profecia, principalmente,
quando a colina foi golpeada na base. Parte do
através da observação das estrelas. “Eles [os druidas] mantêm
exército sucumbiu aos terrores da agonia, outra
muitas discussões sobre as estrelas e seus movimentos, sobre o
mergulhou no desalento e na desordem ... “ É de
tamanho do universo e o da Terra, a ordem da natureza e sobre
crer que nem todos os druidas eram capazes de
a força e o poder dos deuses imortais”, testifica Júlio César. Para
tal desempenho, pois sabe-se que um deles se
estudar o ciclo dos astros, eram construídos e mantidos grandes
transformou em vaca e chegou ao campo inimigo
observatórios de pedra e madeira. O maior e mais conhecido
onde a vaca foi sacrificada. Mas foi o bastante
desses é o de Stonehenge, em Avebury, Inglaterra. Embora não
para que seu partido conquistasse a vitória. A
tenham sido os celtas, nem seus druidas, que iniciaram a cons-
Batalha de Mag Tured é uma narrativa mítica e as
trução desse templo observatório, eles certamente terminaram
palavras que pronuncia o druida que promete seu
de erigi-lo e o utilizaram em seus rituais e festivais.
auxílio contra os demônios Foimoré nada têm de
Os druidas, ou “adoradores de carvalhos”, eram sacerdotes
histórico. Revelam, porém, que elevado conceito
e sacerdotisas que realizavam seus ritos em florestas de natu-
de si mesmos os druidas gostavam de propalar.
reza intocada, principalmente próximos a carvalhos, originan-
“Serei a causa de três tempestades de fogo se
do o emprego de tal termo. Tratava-se de pessoas com eleva-
abaterem sobre da Escócia. Colocava-o num
do prestígio na sociedade celta. Eram encarregados de tarefas
dilema, pois uma proibição sagrada, um geis, im-
de aconselhamento, medicina, educação, filosofia e direito.
pedia Caier de separar-se dele. Diante de sua re-
Recusavam-se a escrever; a sabedoria druídica era transmi-
cusa, consternada, Nede fez um glam dicinn con-
tida oralmente, através de cânticos filosóficos, fórmulas má-
tra ele: ‘Mal, morte, curta ‘vida a Caier ... Caier
gicas e encantamentos. Todo o conhecimento que ainda se
sob muros, sob a terra, sob a pedra ... ‘ Caier no
tem a respeito dos druidas é, portanto, baseado em relatos de
dia seguinte foi mirar-se na fonte e encontrou
romanos, sob a ótica cristã.
sob sua mão três brotoejas que eram pressiona-
das contra seu rosto depois da sátira: Mancha,
Condenação e Fealdade, vermelho, verde e
branco, as cores consagradas. Perdera ao mesmo
A CONVERSÃO DOS DRUIDAS
O cristianismo se espalhou por várias das regiões povoadas
tempo seu direito de reinar. Envergonhado, fugiu
pelos celtas, principalmente após o século 4 d.C.
e foi se esconder ... “ A música entrava também
St. Patrick (ou São Patrício) o santo padroeiro da Irlanda, foi
na ronda da magia, principalmente a da harpa.
quem converteu os druidas. Sua lenda é muito famosa, devido
Certas árias podiam adormecer, fazer rir ou chorar
ao grande número de escritos durante a Era Medieval.
e também, o que era uma antecipação sobre as
Após ser raptado por piratas, quando criança, foi libertado,
descobertas mais recentes da moderna zootecnia,
se tornando bispo, a fim de responder um chamado divino
triplicar o leite das vacas.
para converter seus sequestradores.
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas A partir de então, estendeu o processo de conversão aos
druidas para o cristianismo.

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Druidas incitando os bretões
a impedir o desembarque romano,
em gravura do final do século 19
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O druidismo, ao contrário
do que se crê, não era
uma religião, mas sim
ƵŵĂĮůŽƐŽĮĂĂŶŝŵŝƐƚĂ͘
Os druidas presidiam os
rituais, mas não eram
mediadores entre os
ĚĞƵƐĞƐĞŽŚŽŵĞŵ͘
Apenas conduziam o
direcionamento dos ritos
aqueles acometidos de doença grave ou os que
enfrentam os perigos das batalhas sacrificam
vítimas humanas ou juram fazer isso, empre-
gando os druidas como ministros para tais sa-
crifícios”, relatou César. Mas César não anotou
apenas aquilo que viu dos costumes gauleses;
ele incorporou às suas observações os relatos
do explorador grego Posidônio, que viajara
através da Gália no final do século 2 a.C., isto é,
meio século ante de César ter invadido a área.
O geógrafo Estrabo e o historiador Deodoro
também relataram os sacrifícios humanos prati-
cados pelos celtas. A combinação das narrativas
traz, portanto, uma boa ideia sobre como esses
ritos eram executados. Conforme James Frazer
afirma em seu O Ramo Dourado, há também
traços desse costume instilado no folclore dos
países celtas modernos, confirmando esse uso
Soldados romanos assassinando druidas na Antiguidade.
O método mais comum de se sacrificar pes-
e incendiando seus bosques sagrados,
soas era por meio do fogo. As vítimas, porém,
ĞŵŐƌĂǀƵƌĂĚĞDŽƐĞƐ'ƌŝĸƚŚƐ
também podiam ser abatidas a flechadas ou im-
paladas em locais sagrados. Os criminosos eram
Sua importância é tão notável ao ponto de cada último do- invariavelmente reservados para esse fim. Os celtas “creem
mingo do mês de julho, milhares de irlandeses se reunirem que a execução daqueles capturados roubando ou cometendo
para saudá-lo. qualquer outro crime é mais agradável para os deuses”, regis-
trou César. Quando não havia criminosos em número suficien-
te, os celtas lançavam mão de prisioneiros de guerra.
SACRIFÍCIOS HUMANOS
Autores gregos e romanos testificam que os celtas pratica-
vam sacrifícios humanos. Nosso olhar moderno condena es- Os bardos eram aspirantes a
sas práticas imediatamente, sem considerar que aqueles que
a executavam estavam num outro estágio de evolução social
druidas, dedicando-se às artes
e cultural. Aubrey Burl, no seu Rites of the Gods (Ritos dos ĞĂŽĐŽŶŚĞĐŝŵĞŶƚŽ͘ƚƵĂǀĂŵ
Deuses), afirma que “o sacrifício humano não pode ser com-
parado com nossa atitude moderna com relação ao assassina-
como conselheiros dos reis,
to”. Para Burl, esses rituais “simbolizam alguma necessidade além de entreter os homens
da sociedade, cuja urgência era afirmada com mais veemência
se o símbolo escolhido fosse um ser humano”.
ĐŽŵŵƷƐŝĐĂĞƉŽĞƐŝĂ͘ůĠŵĚŽƐ
Julio César foi um dos primeiros a descrever os Holocaustos druidas, os bardos também
executados pelos gauleses. “Toda a nação dos gauleses é
muito devotada à observação dos rituais, e, por esse motivo,
lidavam com magia e rituais

34
Havia seis tipos de druidas, distintos de acordo
com suas funções:
Segundo Diodoro Sículo, um
historiador grego que viveu
Druida-Brithem - eram os juízes na sociedade
celta, pois eram os únicos conhecedores das leis,
ŶŽƐĠĐƵůŽ/Ă͕͘͘ŽƐŽǀĂĚŽƐ
que não eram escritas. ΀ŽƵŽǀĂƚĞƐ΁ĞƌĂŵĮůſƐŽĨŽƐ
Druidas-Filid - representavam a mais sublime
classe dos druidas. A função destes era ter con-
ŶĂƚƵƌĂŝƐĞĂĚŝǀŝŶŚŽƐ͘ƌĂŵ
tato direto com os deuses cósmicos. considerados profetas e
Estes mestres tinham uma consciência tão
elevada ao ponto de não morrerem, e apenas
ƉŽƐƐƵşĂŵŚĂďŝůŝĚĂĚĞƐŝŶƚƵŝƟǀĂƐ
desencarnarem, tornando-se ancestrais diviniza-
dos na energia cósmica. va numa pessoa especial, muitas vezes um “rei”. No entanto,
Druida-Liang - eram os médicos e curandeiros. esse rei não tinha um caráter político, mas sim ritualístico. Como
Dedicavam-se por mais de 20 anos em seus a vegetação, que precisa ser ceifada, e como a semente que tem
estudos antes de exercerem a profissão. Eram de descer à escuridão do solo, enfrentar, portanto, seu túmulo,
profundos conhecedores de ervas medicinais o rei da vegetação era sacrificado. O sacrifício do deus, isto é,
que possuíam especializações entre si, tais como da sua encarnação humana, era um passo necessário para a sua
os atuais médicos o fazem. ressurreição numa forma melhor. Conforme James G. Frazer, ele
Muitos destes druidas eram aptos cirurgiões, “tinha de ser morto para que o espírito divino nele encarnado
curando os gravemente enfermos. fosse transferido ao seu sucessor em pleno vigor.” Como o cor-
Druida-Scelaige - eram contadores de histó- po onde a força divina estava encerrado é sujeito a decadência
rias. Como a escrita era proibida, precisavam e corrupção física, a vítima tem de ser sacrificada ainda jovem
decorar todas as histórias e canções, sob o risco e saudável. Posteriormente, na medida em que as sociedades
de perder tal título. Recontavam as histórias foram se desenvolvendo, o Rei da Vegetação passou a ser outro
contadas por outros scelaige, assim como as homem, criminoso ou prisioneiro de guerra.
vivências dos druidas-senchas
Druida-Sencha - percorriam as terras celtas
para acrescentar novas histórias aos druidas-
-scelaige. Recebiam o prestígio de pesquisadores
e guardiões dos segredos.
Druidas-Poetas - decoravam as histórias conta-
das pelos druidas-scelaige. Porém, ao contrário
destes últimos, que repassavam as histórias
apenas aos druidas, eles contavam ao povo,
utilizando de mecanismos da poesia. A função
principal desta classe era fazer com que a cultu-
ra celta perdurasse.

Apesar de muitos sacrifícios terem lugar anualmente, o


maior festival sacrifical acontecia a cada cinco anos. Nessa
ocasião, imagens colossais dos deuses feitas de madeira e vime
eram construídas. Dentro delas, encerravam um número enor-
me de dádivas às divindades, isto é, humanos, gado, cavalos,
gatos ou raposas. Em seguida, os druidas que conduziam a ce-
rimônia ateavam fogo nas imagens, e o fogo consumia tudo,
levando na sua fumaça a essência das vítimas, pronta para ser
absorvida pelas divindades.
O sentido de tal prática era o de obter fertilidade para a terra
e para o povo. Os homens e animais sacrificados representavam
o Espírito da Vegetação e eles eram mortos dessa forma para fa-
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zer com que o sol brilhasse e as colheitas fossem abundantes. O


Espírito da Vegetação tinha o poder de fazer as árvores frutifica-
rem, as colheitas crescerem e garantia a fertilidade dos animais
e homens. Inicialmente, não só entre os celtas, mas nas antigas
sociedades agrícolas em geral, o Espírito da Vegetação encarna- Dois Druidas, gravura de Bernard de Montfaucon (1719)

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Gravura do século 18 mostra
os homens de vime usados
pelos celtas em seus sacrifícios

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Esse costume celta acabou se instilando no folclore de

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vários países habitados anteriormente por esse povo. Ainda
hoje, são celebrados festivais que incluem gigantescas fo-
gueiras, como os Fogos de Beltane, na Escócia. Em diversas
regiões da Grã-Bretanha e da França, durante os festivais
de verão, são construídas grandes figuras de vime, quase
sempre representando um guerreiro, que, depois de uma
procissão, são queimadas. Até meados do século 20, po-
rém, em partes da França e da Alemanha, costumava-se
queimar gatos nas fogueiras dos festivais de verão, e na
Rússia, sacrificava-se um galo branco. Em Luchon, uma ci-
dade dos Pirineus, costumava-se prender serpentes dentro
das imagens de vime queimadas nos festivais de verão. No
entanto, provavelmente o uso de serpentes é um elemen-
to introduzido pelo cristianismo, pois, diferentemente das
serpentes, os animais sacrificados pelos druidas – cavalos,
bois, raposas, galos – as cobras não são símbolos do espí-
rito do grão que deverá germinar as plantações. As ser-
pentes, por sua vez, são vistas pelos cristãos como uma
representação do mal.

O conjunto dos sacrifícios humanos pra-


ticados pelos Celtas na época histórica devia
ficar muito atrás das hecatombes sacrificiais
praticadas pelos Astecas, 15 séculos depois.
O que é certo é que em diversas circuns-
tâncias os druidas sacrificavam um ou dois
touros brancos quando da colheita do agárico
e da festa do deus-touro. Eles oficiavam, na
Gália como na Irlanda, com vestes brancas.
Aliás, tomavam cuidado para que as vestes
litúrgicas não Ihes faltassem. Seu confrade
Mog, em troca de seus préstimos, pedira aos
habitantes de Munster “50 túnicas, belas,
Homem de vime usado no neopaganismo
brancas e fofas”. Mas é preciso confessar
também que as imputações de sacrifícios hu-
manos não têm todas o colorido de fábula. O CULTO À CABEÇA
costume de sepultar o cadáver de uma vítima
Outra forma de sacrifício cultuada pelos antigos celtas es-
nos alicerces de uma muralha conservou-se
tava relacionada ao Culto da Cabeça. O pesquisador Paul
por mais tempo do que seria bom. E a tradi-
Jacobsthal afirma que “entre os celtas, a cabeça humana é ve-
ção dos sacrifícios humanos se perpetuou na
nerada acima de tudo, pois para eles a cabeça é a alma, o cen-
Lenda dourada dos celtas cristãos. Lê-se na
tro das emoções e a própria vida; um símbolo do divino e dos
história de São Columban que, no momento
poderes sobrenaturais.” O culto da cabeça está documentado
de tomar posse do chão da ilha de lona para
tanto em representações esculturais da arte La Tène, como em
lá construir um mosteiro, no século 6, exa-
mitos sobreviventes, como o de Brân. Os heróis dessas histó-
tamente em 563, ele convidou um de seus
rias têm suas cabeças decepadas. Longe, porém, de morrer, as
discípulos para fazer-se enterrar no solo a fim
cabeças separadas do corpo mundano adquirem a capacidade
de santificá-Io. Odran se apresentou como
de enxergar outra realidade, uma dimensão mítica.
voluntário e, em recompensa, sua alma voou
Diodoro Sículo, que no século 1 d.C. escreveu sua obra História,
direto ao céu. Outro exemplo de sacrifício
registrou que os celtas “decepam as cabeças dos inimigos mortos
voluntário é dado por Eimine Ban, que se
em combate e as amarram aos pescoços dos cavalos. Os despo-
sacrificou com 49 de seus monges: para sal-
jos ensanguentados eles entregam aos seus atendentes e pregam
var o rei de Leinster e 49 outros chefes que
esses frutos nas suas casas, da mesma forma como fazem os que
queiram a paz em seus domínios, cedo
exibem certos animais que caçam. Eles embalsamam as cabeças
o compreenderam.
dos inimigos mais distintos em óleo de cedro, as guardam cuida-
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas dosamente num baú e as exibem orgulhosamente aos estranhos,
dizendo que por aquela cabeça um dos seus ancestrais, seu pai,

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Wikicommons Fábula Celta, de
Paul Serusier (1894)

ou ele mesmo, recusou uma grande soma em dinheiro. Alguns


bravateiam que recusaram o peso da cabeça em ouro.” OBSERVATÓRIOS MEGALÍTICOS
Como a cabeça era a sede da alma, possuir o crânio de um O conhecimento astronômico dos celtas também é notório.
inimigo, honradamente ganha em batalha, era um troféu pres- O complexo de Stonehenge, em Avebury, Inglaterra, embora
tigioso para qualquer guerreiro. Os celtas creditavam que se não tenha sido iniciado pelos celtas, mas pelos aquitânios, que
cravassem a cabeça decepada em um maestro ou na cerca ali viviam antes da chegada dos imigrantes ou, em alguns casos,
de sua casa, a cabeça começaria a gritar quando um inimigo dos invasores, foi concluído e utilizado pelo povo que tomou
estivesse se aproximando. Se a cabeça fosse de um inimigo o lugar. Trata-se de um verdadeiro observatório astronômico,
considerado particularmente importante, ela era colocada usado para marcar a passagem dos astros no céu e cronometrar
num santuário e venerada. Para os antigos celtas, a cabeça a vida da Terra com relação aos movimentos estelares e onde
decepada era uma fonte de contínuo poder espiritual. rituais eram executados com base na posição dos astros

38
pedra, a nordeste, a Pedra Altar, onde, especula-se, executava-
Um calendário celta – ainda -se sacrifícios de sangue. Os solstícios de inverno e verão e as

mais preciso que o dos posições norte e sul são particularmente marcadas e os dois
círculos internos permitem contar meses lunares com precisão.
ƌŽŵĂŶŽƐʹĞƌĂŽĚĞŽůŝŐŶLJ͘ A teoria do templo-observatório, desenvolvida pelo finado

O conhecimento astronômico professor Alexander Thom, é a mais aceita. Pesquisas recentes


demonstraram que Stonehenge começou como um santuário
dos celtas denota que lunar, mas, com o tempo, foi modificado para o culto do sol.

ĞůĞƐƟŶŚĂŵƵŵĂƌĂnjŽĄǀĞů A entrada original do templo se alinhava com o surgimento


mais setentrional da lua no século. Essa preocupação com a
ĐŽŵƉƌĞĞŶƐĆŽŵĂƚĞŵĄƟĐĂ lua tem, provavelmente, ligação com rituais de morte. No en-
tanto, conforme as escavações indicam, os sacerdotes-astrólo-
gos acabaram mudando a entrada do templo 9 graus ao sul,
HENGES alinhando-a, assim, com o surgimento do sol no solstício de
Henges são solitários e evocativos templos pagãos, que, ao verão. Enquanto executava os rituais, exatamente no centro
contrário de outros monumentos megalíticos, só existem nas do círculo de pedra, o sacerdote veria o sol nascer exatamente
ilhas britânicas. Cerca de cem deles ainda desafiam o tem- na pedra-portal, chamada de Heel Stone, ou Pedra Calcanhar.
po, erguendo-se espalhados desde o Arquipélago Orkney,
na Escócia, à Cornualha, no sul da Inglaterra. São estruturas
circulares ou ovais, definidas por um aterro e uma vala, para STONEHENGE
onde há uma ou duas entradas. O aterro é, geralmente, fora Com a propaganda que os romanos fizeram dos antigos ha-
da vala, formando desse modo a fronteira para um espaço sa- bitantes das ilhas britânicas, a associação com sacrifícios de
grado, separado física e espiritualmente do mundo cotidiano. sangue sempre aparece quando se fala da primitiva Inglaterra.
O mais famoso henge é, sem dúvida, Stonehenge, perto da Stonehenge não escapa do estigma. Pelo contrário. Fornece tes-
cidade de Avenbury, Inglaterra. Parece que sua construção co- temunho. De acordo com os arqueólogos, a área está cheia de
meçou há mais de cinco mil anos e continuou pelos 1700 anos evidências. A três quilômetros de Stonehenge, na direção nordes-
seguintes, ficando mais complexa a medida que o conhecimen- te, foi encontrado o túmulo raso de uma menina de três anos e
to astronômico aumentava. São círculos de pedra, buracos e meio, voltada para o nascente e para a entrada do templo. Seu
dolmens que serviam de marco para se observar o surgimento crânio tinha sido, visivelmente, partido em dois por um machado.
do sol ou da lua contra uma reta formada com algum ponto no Esses sacrifícios feitos na fundação de uma construção eram
horizonte. O que resta hoje desse espetacular templo-obser- comuns. Como medida de proteção, costumava-se enterrar
vatório astronômico são só ruínas, mas podem nos dizer algu- cabeças junto à pedra fundamental de templos e fortalezas.
ma coisa sobre ele. Há três círculos: o externo tem 56 posições Outros desses “sacrifícios de fundação” se encontra no santu-
marcadas e os dois internos, 30 e 29. Há também uma grande ário de Avenbury, próximo de Stonehenge. Um adolescente de
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O círculo de pedras de Castlerigg: perímetro sagrado

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quatorze anos marcava um importante alinhamento das colinas

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artificiais, quando esse templo foi reconstruído pela última vez.
Aubrey Burl, no seu Rites of the Gods (Ritos dos Deuses),
afirma que “o sacrifício humano não pode ser comparado com
nossa atitude moderna com relação ao assassinato”. Para Burl,
esses rituais “simbolizam alguma necessidade da sociedade,
cuja urgência era afirmada com mais veemência se o símbolo
escolhido fosse um ser humano”.
Uma famosa história desenterrada no local é o “assassina-
to de Stonehenge”. Em 1978, o corpo de um homem forte,
de aproximadamente 27 anos, datando do início da Idade do
bronze, foi encontrado na vala do henge. Havia três pontas de
flecha no cadáver, no peito e nas costelas. A vítima foi alvejada
de uma distancia curta e, então, tratada com desprezo, sendo
jogada numa cova aberta às pressas, com as flechas ainda cra-
vadas no seu corpo. Quando foi encontrado, ele ainda tinha
sua proteção de pulso feita de couro, o que indica que ele era,
provavelmente, um arqueiro.

O sacrifício podia ter três motivações. O


dom humano era oferecido em contrapartida
do dom divino. Neste caso, a vítima, sempre
voluntária, era honrada pelo mesmo título que
o guerreiro que perde a vida para defender Conforme uma das muitas lendas sobre este
a pátria. Se o sacrifício atingia criminosos ou círculo de pedra, um gigante ajuda Merlin
prisioneiros de guerra, o pensamento era outro. a construir Sonehenge, conforme ilustrado
As vítimas concentravam sobre si mesmas, neste manuscrito inglês do século 14
além da mancha de ser um criminoso ou um
inimigo, todas as manchas da tribo. Como os
Há ainda outros símbolos intrigantes revelados pelos arque-
judeus carregavam com seus pecados o bode-
ólogos. Um chefe guerreiro, por exemplo, enterrado numa das
-expiatório, o rito então se tornava purificador.
colinas funerárias que cercam Stonehenge, levou com ele para
Por último, César nos diz que se sacrificava
o Além as insígnias do seu poder terreno: uma clava feita de
uma vida em troca de outra, para apaziguar os
um tipo raro de calcário, um machado de bronze e duas ada-
deuses. Um manuscrito cristão, o Dindshenchas
gas de bronze e cobre, uma delas com o punho ornado com
precisa que, justamente no tempo de São
incrustações de ouro. Sua riqueza também estava expressa no
Patrício, sacrifícios humanos eram perpetrados
cinturão ornado com ouro marchetado encontrado no túmulo.
ao pé do ídolo de ouro de Cromm Cruaich,
As maças e machados cerimônias de pedras semi-preciosas,
que tinha em torno dele 12 ídolos de pedra.
como a jadeíta, tinham um papel central nos ritos e empresta-
É a ele que eram oferecidos os primogênitos
vam autoridade aos sacerdotes. Muitas delas foram encontra-
de cada ninhada e os primeiros rebentos de
das no templo, bem como bolas de greda e bastões de sílex,
cada clã. É a ele que veio Tigernmas, filho de
os quais o pesquisador Burl acredita serem símbolos fálicos. O
Follach, rei da Irlanda, em Samain, com os
significado menos óbvio é o das taças encontradas no local.
homens e as mulheres da Irlanda para adorá-
Provavelmente, são emblemas da sexualidade feminina.
-Io e todos se prosternaram diante dele. O alto
Stonehenge é envolvido em mistério e lenda e o próprio lu-
de suas testas, as cartilagens de seus narizes
gar onde o monumento foi erguido, com suas colinas funerárias
e as pontas de seus joelhos se quebraram, de
abrigando os restos de heróis neolíticos, exerce um entusiasmo
modo que três quartos dos homens da Irlanda
indescritível. Esse feito da engenharia pré-histórica foi constru-
morreram nessas prosternações ... Em suma,
ído, provavelmente, pelos pictos, o primeiro povo a habitar as
bastante para desgostar definitiva mente os ca-
Ilhas Britânicas e que se retirou para a atual Escócia, conforme a
tecúmenos do paganismo. Essas prosternações
Inglaterra era invadida por sucessivas levas de diferentes povos.
sacrificiais repousam, contudo, sobre um fato
Mas o mistério de Stonehenge está associado aos druidas celtas,
real. Sabemos que os irlandeses praticavam
que certamente usaram o observatório nos seus estudos e práti-
prosternações, sem dúvida menos vigorosas, de
cas religiosas, embora não o tenham construído. Há até uma len-
joelhos, os antebraços colados ao chão, palmas
da que diz que Stonehenge foi trazida da Irlanda para a Inglaterra
para baixo, a face vindo a tocar a terra.
por Merlin, o mais famoso druida, num passe de mágica. Na ver-
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas dade, foi preciso bem mais que mágica para construí-lo. Pedras de
até 50 toneladas foram transportadas de distâncias por terra de

40
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Stonehenge

até 50 km, superando obstáculos naturais que exigiam o esforço


de até 600 homens. As pedreiras, acreditam os pesquisadores,
ficavam a 290 km de Stonehenge, nas Montanhas Prescelly, mas
o trajeto que os pré-históricos faziam era, provavelmente, de 360
km, a maior parte dos quais através de rios e canais navegáveis.
As pedras do templo, chamadas “pedras azuis”, são, na verdade,
doleritas, uma rocha preferida nas construções de santuários pré-
-históricos. Os ancestrais dos modernos ingleses acreditavam que
esse mineral tinha poderes curativos.
De todas as estruturas semelhantes a Stonehenge, nenhuma
é tão complexa ou impressionante. Não se sabe nada além do
que os vestígios nos contam, mas seja lá qual for a respos-
ta para os mistérios de Stonehenge, com suas pedras monu-
mentais, suas colinas funerárias e o impressionante horizonte
que envolve esse templo-observatório, logo se sente que foi e
sempre será um lugar de honra ao deus Tempo.

OGHAN
O alfabeto Ogham da Irlanda e da Escócia tinha um caráter
mais mágico do que prático, sendo usado como oráculo, em
cerimônias e na gravação de túmulos e em pedras mágicas
A tradição era mantida e passada adiante oralmente. Há ra-
ros registros pré-cristãos escritos em língua celta. Os poucos que
restaram lançam mão das letras gregas e latinas. No entanto, no
Sudeste da Irlanda e nas penínsulas britânicas do Sudoeste, foram
descobertas um total de 360 estelas funerárias, datando dos sé-
culos 5 e 6 de nossa era, que traziam inscrições numa escrita até
então desconhecida. Essa escrita era feita de entalhes regulares,
de um lado e de outro ou atravessando a partir de uma das ares-
tas da pedra. A decifração foi fácil graças às inscrições latinas que
muitas vezes acompanhavam as inscrições.
Uma lenda irlandesa indica que, antes de se tornar uma escrita
profana e pública, o ogam, ou ogham, era secreto e reservado só
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aos iniciados. “Core, filho de um rei irlandês, expulso pelo pai,


desembarca na Escócia, onde Gruibne, filho do Rei Fedarach, que
é poeta e iniciado, lhe dá boa acolhida, pois certa vez Core lhe
salvara a vida”, diz a narrativa. “Mas repara numa inscrição com O alfabeto ogam

41
Os sinais do ogam dispunham-se em
famílias de cinco (os cinco dedos da mão, um Segundo Christian Roy, autor renomado sobre antigos festi-
elemento de conta sumamente arcaico), e vais, grande parte da tradição do Halloween se deve ao Samhain,
cada letra levava o nome de uma árvore ou de pois os celtas acreditavam que, nos dias próximos ao festival, as
uma planta, o que a ligava ao mundo vivo, ao almas dos mortos retornavam a suas casas para visitar os familia-
sagrado. A era “pinheiro” (eilm}, B “bétula res, alimentar-se e aquecerem-se no fogo da lareira.
“ (bethe), C “aveleira” (coti), etc. O carva- Nesta época, os celtas diziam conseguir ver elfos, além de
lho, para os druidas que sobre ele colhiam o outras entidades sobrenaturais, pois a fronteira com o Outro
agárico, era particularmente sagrado. Uma lei Mundo desaparecia.
de Marie de France, no século 12, menciona
o galho de aveleira talhado e esquadriado por
Tristan, sobre o qual ele gravou o nome para IMBOLC
advertir Yseult: é a tradição do ogam. O Imbolc é o festival em que se comemorava o início da
primavera, sendo realizado nos primeiros dias de fevereiro.
Historicamente, o festival de Imbolc foi observado na Irlanda,
Escócia e Ilha de Man.
caracteres ogam sobre o escudo que ostenta o proscrito e lê es-
Este festival já era citado nas primeiras literaturas irlandesas,
tupefato: ‘Se chegares um dia à casa de Feda, que tem cortem a
o que confirma que esta data era comemorada desde os tem-
cabeça ao anoitecer, e se for noite, que cortem ao amanhecer.’
pos antigos. É associado à deusa Brighid, também conhecida
Gruibne não hesitou, explicou ao pai que o agam lhe ordenava
como “Deusa da Tríplice Chama”.
dar a filha em casamento ao recém-chegado.”
Os cristãos irlandeses comemoram, nessa data, o dia de
O ogam servia também de meio de expressão a uma lingua-
Santa Brígida.
gem secreta. Outra lenda conta que “Lomma, truão de Finn
Nesta comemoração utilizavam de várias cruzes. A deusa
MacCool, quer revelar-lhe a infidelidade de sua mulher. Para
Brighid é representada em forma de boneca, sob a qual eram
assegurar a discrição da comunicação, serve-se de uma vari-
colocadas diversas oferendas e orações.
nha de quatro faces, que entalha com sinais ogâmicos. Finn lê:
caule de amieiro numa barreira de prata, heléboro no agrião,
o marido de uma mulher louca, louco entre os Feni instruídos,
são urzes sobre as alturas nuas de Luaigne.” Finn compreende
BELTANE
O Beltane é o festival mais alegre dos quatro festivais do
imediatamente de que se trata e age de acordo.
fogo. Os celtas comemoravam o início do verão, dançando
Os pesquisadores não concordam sobre as origens do
alegremente em volta de inúmeras fogueiras. A cerimônia era
ogam. O mais provável é que já existia, nos tempos pré-his-
— e continua sendo — realizada no dia 1 de maio.
tóricos, um sistema mnemônico por pequenos talhes sobre
Segundo Kevin Danaher, esta cerimônia alude à união das
uma varinha. Em seguida, o sistema ogâmico, paralelamente
energias masculina e feminina, a fertilidade da terra e aos fo-
ao sistema rúnico dos germânicos, foi adaptado ao alfabeto
gos do deus Belenos.
greco-romano, que os druidas conheciam bem, para escrever
palavras, servindo-se de entalhes em lugar de letras. Resultou
uma escrita congestionante e pouco prática, mas difícil de
decifrar, o que era o objetivo. Quando ela foi proscrita pela
ůĠŵĚŽƐĨĞƐƟǀĂŝƐĚŽĨŽŐŽ͕
Igreja, foi progressivamente abandonada. ŚĄƚĂŵďĠŵŽƐĨĞƐƟǀĂŝƐ
ƐŽůĂƌĞƐ;ƐŽůƐơĐŝŽƐĚĞŝŶǀĞƌŶŽ
OS FESTIVAIS CELTAS DO FOGO ĞǀĞƌĆŽĞĞƋƵŝŶſĐŝŽƐĚĞ
(Texto de Rodrigo Andrade)
As celebrações celtas utilizam simbolismos para integrar a
primavera e outono), embora
energia dos participantes às estações do ano. Os aclamados não hajam evidências que
festivais celtas do fogo são assim denominados devido ao mo-
vimento de translação terrestre em torno do Sol, comemoran-
comprovem que os celtas os
do, portanto, o início/fim das estações do ano. ĐŽŵĞŵŽƌĂƐƐĞŵ͘ŵďŽƌĂĞůĞƐ
Estas comemorações são ainda praticadas por muitos neo-
pagãos e wiccanos, embora não sejam celebradas pela maio-
os atribuíssem a deuses, não
ria das pessoas, como eram nos tempos antigos. Os quatro ŚĂǀŝĂĐŽŵĞŵŽƌĂĕƁĞƐĨĞƐƟǀĂƐ
festivais do fogo dividem-se em quatro cerimônias: Samhain,
Imbolc, Beltane e Lughnasadh
para celebrar tais fenômenos
ĂƐƚƌŽŶƀŵŝĐŽƐ͘dŽĚŽƐŽƐŽŝƚŽ
SAMHAIN - O ANO NOVO CELTA ĨĞƐƟǀĂŝƐƐĆŽĐŽŶŚĞĐŝĚŽƐĐŽŵŽ
Samhain [literalmente “fim do verão”] é o festival do fogo sabbats, sendo também
em que os celtas comemoravam a virada do ano, no dia 30 de
abril, marcando o início do inverno.
chamados de “A Roda do Ano”

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Entre os celtas, maio era
um mês de liberdade sexual
em honra da Grande Mãe
e do “O dos Chifres” dos
ŽƐƋƵĞƐ;ĞƌŶƵŶŽͿ͘WŽĚŝĂŵ
ser contraídos casamentos
à experiência pelo prazo de
um ano e um dia; o casal se
ŵŽƐƚƌĂƐƐĞŝŶĐŽŵƉĂơǀĞů͕͕ŽƐ
ƉĂƌĐĞŝƌŽƐƉŽĚŝĂŵ͕ĂŽĮŵĚĞƐƐĞ Bonfire em celebração ao Sanhain,
tempo, simplesmente seguir os em Calton Hill, Escócia
ƐĞƵƐĐĂŵŝŶŚŽƐƐĞƉĂƌĂĚŽƐ͘
O fogo era o elemento principal dos Beltanes, mas também
a alegria, coroas de flores, danças e banquetes com alimentos
típicos do verão sempre estavam presentes.
AS GRANDES FESTAS CÍCLICAS
As grandes assembleias populares por oca-
sião das festas cíclicas eram também de caráter LUGHNASADH
religioso. Havia quatro principais. Conhecemos O Lughnasadh encerra os quatro festivais celtas do fogo,
seus nomes em irlandês. A 1.° de fevereiro, comemorando o início do outono, no dia 1 de agosto.
a festa de Imbolg, mais tarde absorvida pelo Este sabbat é uma festa de gratidão aos deuses por toda a
aniversário de Santa Brígida. Servia-se nela cada colheita, além de todos os acontecimentos no decorrer do ano.
alimento segundo a ordem”. A 1.° de maio, a Bonecos de palha representavam os deuses, servindo de
festa de Beltaine cujo cardápio era: “cerveja, amuletos de proteção, devendo ser preservados até o ano se-
couve, leite doce e leite coalhado sobre o fogo”. guinte, durante o próximo Lughnasadh, sendo queimados e
A 1.° de agosto, a festa de Lugnasad, “o casa- substituídos pelos novos.
mento de Lug “, onde se provava cada fruta e
cada legume, mas, sobretudo, onde se davam as
célebres corridas de cavalos ... e de mulheres. A
paixão dos irlandeses modernos pelo turfe tem RESQUÍCIOS MODERNOS
seus antecedentes A 1.° de novembro, a festa
Atualmente, as crenças celtas ainda têm forte
de Samhain era o aniversário da grande batalha
influência não somente nas mesmas regiões que
dos deuses em Mag Tuired. Dizia-se que nessa
estes povos habitaram, mas também em outros
noite as comunicações se estabeleciam livre-
lugares do mundo.
mente entre o domínio do além e a terra dos
O Samhain — “festa dos mortos” — ocorria
mortais. Era a noite quando os mortos voltavam,
no dia 1º de novembro. A festa cristã de Todos
conservada pelo calendário cristão. Era a noite
os Santos deriva dessa data comemorativa celta.
da fraternização por sobre todas as barreiras do
No século 19, muitos autores franceses do
destino, da aventura total, em que a embriaguez
romantismo procuraram resgatar a cultura celta
era santificada. Nela eram sacrificados pequenos
em suas histórias, visando fortalecer tais origens
animais domésticos. Era a festa das crenças célti-
através da literatura.
cas mais típicas e nela bebia-se cerveja, comia-
Atualmente muitos festivais ocorrem na
-se chouriço e nozes, à saciedade.
Europa Ocidental sob a temática celta, através
Os jogos que se disputavam ao ensejo das
de danças, vestuários e artes ali dispostas.
festas principais e das festas secundárias, ainda
Muitos músicos estão adotando elementos
mais frequentes, tinham muitas vezes um sentido
célticos em suas composições, como, por exem-
simbólico ou religioso ritual. Devia ser esse o caso
plo, Alan Stivell e o grupo holandês Omnia.
das corridas das mulheres de Lugnasad ou da
Outro exemplo é o fato da renomada banda
dança das espadas que permaneceu na Escócia,
de rock progressivo inglesa King Crimson contar
mas perdeu seu caráter de iniciação guerreira.
com a imagem de um nó celta no encarte de
Oliver Launay, A Civilização dos Celtas seu álbum de 1981, Discipline.

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Festa na noite de Halloween na Irlanda,
retratada por Daniel Maclise (1833)

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MITOLOGIA Cuculan, herói do ciclo
mitológico irlandês, resgata
Ferdiad, ferido em batalha

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A
mitologia irlandesa é o mais completo ramo da mitolo- Convém dizer que o conceito de “rei” para os celtas era
gia celta, entre os que atualmente se conhece. Apesar muito diferente do que para outras culturas. Os reis celtas
de parte de seu material ter desaparecido com a cristia- eram escolhidos de acordo com a sabedoria e valor. Deveriam
nização, é o mais abrangente e detalhista material da ser seres absolutamente íntegros, com nobres virtudes de co-
religião celta a ser estudado, escrito pela literatura medieval ir- nexão com a natureza.
landesa, rica em detalhes e com menor influência romano-cristã. Um texto importantíssimo deste ciclo é a “Loucura de
Através de pesquisas de diversos historiadores, notam-se Suibhne”, onde o rei Suibhne, o Louco, desafia um santo cris-
quatro períodos de registros da mitologia celta irlandesa, mais tão e acaba sendo amaldiçoado por ele, transformando-se em
comumente chamados de Ciclos Mitológicos Irlandeses: um pássaro, voando pelos bosques irlandeses e recitando po-
emas às consagradas árvores.
z Ciclo Mitológico Irlandês;
z Ciclo de Ulster;
z Ciclo Feniano; VIAGENS
z Ciclo dos Reis (ou Ciclo Histórico Irlandês). As viagens, ou immrama, são histórias de jornadas no mar
e as maravilhas ali vistas. Historiadores creem que estes con-
O Ciclo Mitológico Irlandês contém os mais importantes re- tos surgiram de experiências de pescadores com elementos do
latos da mitologia celta irlandesa. O exemplo mais consagrado “Outro Mundo”, ao oeste da Irlanda.
de todos estes escritos é o “Livro das Tomadas da Irlanda” Somente três immramas não se perderam: “A Viagem de Mael
(Léabhar Gábhala na Eireann), também conhecido como Dúin”, “A Viagem de Uí Chorra” e “A Viagem de São Brandão”.
“Livro das Invasões”.
Esta é uma obra complexa, que durou várias décadas para
ser completada, com vários autores diferentes redigindo-a ao CONTOS FOLCLÓRICOS
longo dos anos. Descreve a chegada de vários seres míticos à Muitos escritores do século 19, como Darby O’Gill, Herminie
Irlanda – de forma bem similar à cristã Bíblia Sagrada. Ademais, T. Kavanagh e Lady Gregory, reuniram histórias folclóricas da
seres bíblicos também aparecem, como Adão e Eva, por exem- cultura celta, contribuindo para a preservação de suas lendas.
plo, apesar do foco direcionar aos druidas e deuses celtas.
Neste livro aparecem também os Tuatha de Danann, consa-
grados seres vindos do oeste (ou “Outro Mundo”) que, ao de-
sembarcarem na Irlanda, chegaram a eclipsar o sol por três dias.
O Ciclo de Ulster refere-se a uma das cinco províncias irlan-
desas, localizada ao norte do país, chamada “Ulster”. Também
conhecido como o “Ciclo do Ramo Vermelho”, o qual man-
tém suas histórias preservadas até hoje, com personagens
presentes no folclore da Irlanda e da Escócia, como os heróis
Cuchulainn, Conchobhar mac Nessa e Fergus mac Roich, além
das poderosas mulheres Fedelm, Maedbh e Macha.
Neste período, são retratados com detalhamento os costu-
mes celtas, como irmandade tribal, riqueza representada pela
posse de gado e sociedades guerreiras em busca de prestígio.
Há muitos escritos que evidenciam isto, sendo, provavelmen-
te, a obra “O Roubo do Gado de Cooley” como a mais im-
portante destes.
O Ciclo Feniano alude aos Fianna Eireann, grupo de guerrei-
ros mitológicos liderados por Fionn mac Cumhail, herói consa-
grado pela mitologia irlandesa.
Retrata, sobretudo, a chegada do cristianismo à religião cel-
ta. Um exemplo clássico é encontrado no livro “Colóquio dos
Anciães”, onde o filho de Fionn argumenta com São Patrício,
visando à preservação da cultura celta, defendendo virtudes
como coragem, generosidade, hospitalidade e liberdade.
A mitologia celta, por ser muito ampla, é comumente divi-
dida em três grupos principais, de acordo com suas regiões:
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z Britânica Continental – Europa continental


z Britânica Insular – País de Gales e Cornualha.
z Goidélica – Irlanda e Escócia

O Ciclo dos Reis relata os feitios de diversos reis de peque- A lança mágica de Lugh, em ilustração
nos reinos da Irlanda. de H.R. Millar (1905)

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TUATHA DE DANAN O Ciclo Mitológico, um dos quatro que com-
Os Tuatha De Dana (ou Danann, ou Danu), ou o “povo da põe a literatura mítica e lendária irlandesa (os
Deusa Dana”, são os povos retratados no “Livro das Tomadas outros são, Ciclo das Invasões, Ciclo Ultoniano
da Irlanda” como seres emigrantes do Outro Mundo à Irlanda. ou de Conorian e o Ciclo Ossianico ou Feniano)
O livro relata que, quando eles ali chegaram, foram acompa- traz a história da disputa entre diversos povos
nhados de uma gigantesca nuvem negra, fazendo com que invasores pela posse da Irlanda. Os primeiros
um eclipse solar durasse por três dias a chegar são povos etéreos, habitantes de um
Estes povos aprenderam as grandes ciências com os mes- mundo sobrenatural.
tres de quatro cidades: Falias, Gorias, Findias e Murias. Destas Inicialmente, os Partolanos tomam a ilha.
cidades, levaram quatro respectivos dons mágicos, talismãs Então, imigram os fomorianos e o povo de
como a Pedra do Destino, por exemplo, sobre a qual muitos Nemed; em seguida, os firbolgs e, após estes,
reis se assentaram. Ao sentarem sobre ela, a pedra indicaria se o Tuatha De Danann, O Povo da Deusa Dana,
aquele indivíduo deveria ser rei ou não. presente ainda hoje na cultura ocidental em seres
Pesquisadores estimam que eles simbolizavam divindades como fadas e duendes. Finalmente chegam os
dos celtas goidélicos, indo em contrapartida às traduções de humanos, os Filhos de Miled, vindos da Espanha.
cristãos, que os representam como heróis. E, de fato, tal tese Os Milesianos, ou Povo de Gael, acabam por
tem fundamento: personagens da deusa Danu são associados derrotar o Tuatha De Danann e tomam posse da
a deuses celtas, como Nuada o é em relação ao deus Nodens, ilha. Historicamente, os milesianos, ou gaélicos,
Lug ao deus Lugus, Tuireann ao deus Taranis, além de uma são os celtas goidélicos, que, segundo a lenda,
infinidade de comparações que fortalecem esta afirmação. chegaram à Irlanda via Península Ibérica.
Os povos da Deusa Danu chegaram à Irlanda liderados pelo
rei Nuada, e travaram a Primeira Batalha de Magh Tuiredh,
derrotando os Fir Bolg, povo, que apesar de invasor, era inex-
periente em guerras. Diz-se que Nuada perdeu um braço nes-

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ta batalha; como reis deveriam ser perfeitos, ele foi deposto.
Após certo tempo, um curandeiro substituiu seu membro cor-
tado por um braço de prata, tornando-o novamente rei.
Durante a Segunda Batalha de Magh Tuiredh, agora contra
os Fomorians, Nuada foi morto por Balor, rei do povo adver-
sário, mas Lug assassinou Balor, tornando-se o novo rei dos
Tuatha De Dannan.
A Terceira Batalha ocorreu contra os Milesianos, povos do
noroeste da Península Ibérica, porém os povos da Deusa Danu
desta vez foram derrotados. Forçados a retirar-se, caminha-
ram às colinas subterrâneas (montes do Sídhe), liderados por
um novo rei: Bodb Dearg, o Vermelho. Diz-se que Bodb era
iniciado em todos os encantamentos e mistérios, apesar de
alguns deuses não enxergarem Bodb como o rei ideal para os
filhos de Danu.
Os Tuatha De Dannan são aclamados como “Os Que
Sempre Vivem” — alusão ao domínio da imortalidade.
Possuíam o Banquete da Idade, triunfando sobre o envelhe-
cimento através do consumo de porcos mágicos e cerveja fa-
bricada pelo deus Goban, o Ferreiro, cujas armas eram vistas
como sagradas.
Eles ainda contavam com o médico Diancecht, guardião da
fonte da saúde. Qualquer ferido ou morto era colocado junto
à fonte para regenerar-se. Consideram Diancecht como o sal-
vador da Irlanda, pois advertiu que a criança que Morrighan
deu a luz possuía três serpentes em seu coração. Se estas ser-
pentes crescessem, toda a Irlanda seria destruída.
Uma história muito conhecida dos Tuatha De Dannan cel-
ta é a origem de dois dos principais rios da Irlanda, Boyne
e Shannon, que possuem estas denominações devido a duas
deusas celtas: Boann e Sionnan, respectivamente.
Boann é a deusa da fertilidade, casada com Nechtan, uma
divindade da água. A lenda diz que ela traiu-o com Dagda,
“Deus Supremo e Pai de Todos”, gerando um bastardo. Para O rei irlandês Lyr, na versão de H.R. Millar (1905)

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Bom povo: os Tuatha De Danann na visão de John Duncan (1911)

esconder a traição de seu marido, ela e seu amante fizeram o Conforme César registrou, os celtas acreditavam descender
Sol parar por nove meses, fazendo com que o filho Aengus do Deus do Submundo, o Deus dos Mortos, o gaulês Dis Pater,
fosse concebido, gestado e nascido em um só dia. ou o irlandês Bress ou Breasil. De acordo com esses antigos
Certo dia, Boann aproximou-se do poço de Segais, circun- mitos, Bress e seus súditos viviam em Hy Brazil ou Hy Breasil,
dado de aveleiras, as quais constantemente derrubavam suas às vezes chamada de Moy Mel ou Tir Na Nog, uma ilha move-
avelãs nestas águas, sendo comidas pelos salmões — peixes diça a oeste da Irlanda. Em Hy Breasil a Terra Abençoada, ou
que simbolizam a Sabedoria na cultura irlandesa. Resolveu de- Terra dos Mortos Felizes, a verdade era dúbia e não havia nem
safiar o poder do poço caminhando em sentido anti-horário ao juventude nem velhice, pena ou tristeza, bem ou mal.
redor dele. Isto fez com que suas águas se agitassem violenta- Foi de Hy Breasil que Partholan emigrou. E é Partholan
mente, correndo em direção ao mar, originando o Rio Boyne e quem mantém viva a saga da conquista da Irlanda e suas
arrancando três membros da deusa: perna, braço e olho. muitas batalhas, uma vez que ela a testemunhou por com-
A lenda encerra uma metáfora: não se deve procurar o co- pleto, durante as muitas vidas que viveu. Partholan chegou
nhecimento para satisfazer o ego. Isto sufocará aquele que à Irlanda no dia do deus da morte acompanhado de sua mu-
não estiver preparado para recebê-lo. Boann foi aceita pelo lher, Dalny (Dealgnaid, em gaélico), e de vários colonos e
guardião do poço, mas foi obrigada a sacrificar seu ego e iden- suas esposas. Na época, havia apenas três lagos, nove rios e
tidade para o bem de algo maior. uma planície no país. Num papel que corresponde, até certo
ponto, ao dos titãs gregos, durante o reino dos partolanos,
eles fizeram surgir outros rios, lagos e planícies. O Lago Rury,
A LENDA DE TUAN MACCARELL por exemplo, surgiu quando se cavava o túmulo de Rury,
Tuan macCarell foi um rei irlandês do século 6 d.C., época filho de Partholan.
em que os sacerdotes cristãos viajavam pela ilha, procurando A Irlanda foi, então, invadida por outro povo. Violentos
converter os celtas à nova religião. Certo dia, São Finnen passou e cruéis, os fomorianos eram liderados por Cenchos, o Sem
pelo reino de Tuan para pregar a nova religião. Tuan, porém, Pés. As lendas os descrevem como verdadeiros demônios que
declinou a nova doutrina. Não aceitaria a nova religião. Não ele, macularam a ilha com o mal que trouxeram. Na verdade, os
que tinha visto e vivido todas as invasões da Irlanda. Em lugar fomorianos simbolizam as forças ingovernáveis da natureza.
de se converter, ele contou a São Finnen a saga que presenciara, Partholan e o seu povo lutaram ferozmente contra os invaso-
e o santo a registrou tal como a ouviu numa obra que chamou res e conseguiram expulsá-los para os mares do norte. Do seu
de Livro das Invasões, preservando assim a fantástica memória refúgio, os fomorianos atacavam ocasionalmente a Irlanda,
e os mágicos povos que determinaram, com suas crenças, cul- saqueando os cada vez mais enfraquecidos portolanos.
turas, modos e maneiras, a pré-história irlandesa. Finalmente, mais uma vez no dia do deus da morte, uma peste

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Guerreiros gauleses em
batalha, por Theodore
Chasseriau (s/data)

implacável irrompeu por toda ilha. Partholan e os seus leva- Sozinho, Partholan refugiou-se em fortalezas abandonadas,
ram os milhares de mortos para a Planície de Senmag, para lá grutas, árvores ocas, tentando fugir dos lobos famintos que o
enterrá-los. Mas a peste acabou atingindo a todos. À exceção caçavam. Durante vinte e dois anos ele viveu assim, sozinho,
de Partholan, ninguém sobreviveu. habitando locais desolados. O tempo e a aspereza dos ele-

50
posse da ilha, e naquela mesma noite, Partholan adormeceu e
não acordou mais como Partholan. Quando despertou, era um
cervo, jovem e cheio de vigor. E foi como cervo que Partholan
assistiu ao apogeu e ao fim da raça de Nemed.

OS DESCENDENTES DE NEMED
Na sua memória, Partholan manteve vivo através do
tempo o momento em que Nemed chegou à ilha deserta.
Quando zarpou de seu longínquo país, ele liderava 32 bar-
cos, cada qual com trinta homens e mulheres. Passaram um
ano e meio no mar. E durante esse tempo, em meio às tem-
pestades e à vastidão do oceano, quase todos se perderam,
naufragaram ou padeceram de fome e sede. Apenas nove
pessoas chegaram à Irlanda: Nemed, e mais oito – quatro
homens e quatro mulheres. E esses cinco homens e quatro
mulheres se multiplicaram ao longo das gerações, povoan-
do a ilha com 8.060 pessoas.
Como os partolanos antes deles, os nemedianos também ti-
veram de enfrentar as forças antagônicas dos fomorianos, que
continuavam a atacar a ilha. Nemed saiu vitorioso em quatro
importantes batalhas. Após essas vitórias, porém, uma peste ir-
rompeu entre os nemedianos, e quase todos, inclusive o próprio
Nemed, morreram. Os fomorianos puderam, então, estabelecer
seu domínio de terror na Irlanda. Liderados por dois reis, Conann
e Morc, cobravam como tributo dos nemedianos sobreviventes
dois terços do leite que produziam e dois terços das crianças que

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mentos o erodiram, transformando-o num decrépito, numa


ruína humana.
E foi nessa condição que Partholon viu aportar nas praias
da ilha o barco de Nemed, filho de Agnoman. Nemed tomou Moy Mel, em ilustração de Stephen Reid (1910)

51
Em sua homenagem, até o final da Idade Média, os irlandeses
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se reuniam anualmente em assembleia em Telltown, onde uma
vez seu palácio se ergueu.

OS FILHOS DA DEUSA DANA


Enquanto isso, ao mesmo tempo em que os firbolgs ocupam
e se multiplicam pela Irlanda, as vidas de Partholan como javali
chegaram ao fim, e ele renasceu como uma grande águia, a
dominar os céus. Das alturas das nuvens, onde habitava, a águia
viu um povo belo e altivo aportar na ilha. Os Tuatha De Danann,
os Filhos da Deusa Dana, ou Bom Povo, isto é, as fadas, elfos,
gnomos e leprecaus. Seres que dominavam a arte da magia e
espalharam seus encantamentos por todo o país, imbuindo-o
com uma aura de mistério. Desde então, a mágica parece pairar
nas brumas que envolvem os bosques e lagos daquelas terras.
A deusa Dana também era chamada de Brigit, uma das mais
importantes entidades do panteão gaélico. Quando a Irlanda
se converteu ao cristianismo, no século 6, seus atributos foram
transferidos quase que integralmente à Santa Brígida. Dana era
filha do deus Dagda, “O Bom deus”. Ela tinha três filhos, os
quais, por sua vez, haviam gerado um único filho, Ecne, isto
é, “Conhecimento”, ou “Poesia”. Contrariamente aos fo-
morianos, os Tuatha De Danann eram entidades da Luz e do
Conhecimento e, entre todas as raças míticas que habitam as
histórias irlandesas, eram os únicos que Partholan chamou de
deuses. Segundo Partholan, o Povo de Dana chegou à Irlanda
vindo do céu, trazendo seus tesouros mágicos. Antes de irem
à Irlanda, o Bom Povo habitara quatro cidades: Falias, Gorias,
Finias e Murias. Lá, eles haviam aprendido as ciências e as ar-
Tuan observa Nemed, ilustração
tes com os quatro sábios que reinavam em cada uma delas.
de J. C. Leyendecker (1911)
De Falias, as fadas trouxeram Lia Fail, a Pedra do Destino, so-
bre a qual os antigos reis da Irlanda eram coroados. Uma an-
geravam. Frente à situação insuportável, Fergus, um líder neme- tiga profecia rezava que onde Lia Fail estivesse, um rei da raça
diano, liderou uma insurreição do seu povo. Com um exército dos escotos, isto é, a tribo celta irlandesa que emigrou para a
não muito grande, mas faminto de vingança, Fergus tomou a Escócia, reinaria. Assim, a pedra foi levada à Escócia no século
fortaleza de Conann. Mas a batalha não havia acabado, nem a 6 d.C. para a coroação de Fergus, o Grande, irmão de Murtagh
vitória tinha sido assegurada. Quando os ventos da mudança MacErc, rei da Irlanda. Em 1297, o rei Eduardo I, da Inglaterra,
pareciam ter virado a favor dos nemedianos, Morc surgiu com transferiu Lia Fail para a abadia de Westminster, onde perma-
reforços e massacrou todos os nemedianos – todos menos trin- nece até hoje como a Pedra da Coroação, sobre a qual todos
ta. Esses trinta sobreviventes deixaram a ilha e ninguém sabe ao os reis e rainhas da Grã-Bretanha foram coroados desde então.
certo qual foi o seu destino. Alguns acreditam que eles perece-
ram sem deixar descendentes. Outros, porém, dizem que eles
voltaram à Irlanda como os Filhos da Deusa Dana.
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Enquanto os nemedianos pereciam nas batalhas contra os


fomorianos, as vidas de Partholan como gamo, também che-
garam ao fim. A decrepitude que novamente passou a ator-
menta-lo desapareceu, quando ele se viu transformado num
javali. E durante sua existência como javali, os firbolgs cha-
garam à Irlanda, liderados por Semion MacStariat. As antigas
lendas dão conta de que os firbolgs vieram da Grécia, onde
haviam sido oprimidos e escravizados por invasores. Sem pers-
pectivas de vencerem seus opressores, eles construíram barcos
de couro, os curraghs, usados pelos navegantes celtas, e fugi-
ram para a Irlanda. Os três grupos que chegaram ao país, os
fir-bolgs, os fir-domnan e os galioins, aí se estabeleceram pa-
cificamente e não exerceram um papel proeminente na histó-
ria mítica irlandesa. Entre eles, houve uma importante rainha,
Telta, filha do rei da Grande Planície, isto é, a Terra dos Mortos. Matres, deusas gaulesas

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esperou o momento certo, e quando surgiu uma oportuni-
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dade, arremessou uma pedra nos olhos de Balor, matando-o


instantaneamente. Em seguida, os fomorianos foram expulsos
da ilha. Após a batalha, Lugh se tornou rei do danaans, sedi-
mentando a supremacia do herói solar sobre os poderes da
escuridão e da força bruta representados pelos fomorianos.

OS MILESIANOS
Partholan ainda vivia como águia, quando o último povo
que ajudou a tecer os mitos da Irlanda chegou. Como os ou-
tros colonizadores que os anteciparam, os filhos de Miled, ou
milesianos, eram descendentes de deuses. No entanto, ao
contrário das outras criaturas místicas, demônios e fadas que
haviam ocupado a ilha anteriormente, os filhos de Miled, tam-
bém chamados de filhos de Gael, eram humanos. Miled – um
nome que aparece numa inscrição celta encontrada na Hungria
– era descendente de Bilé, um dos muitos nomes do deus da
morte. Partholan conta que eles vieram da Ibéria, enquanto
os reis danaans MacCuill, isto é, Filho da Aveleira, MacCecht,
Filho do Arado, e MacGrené, ou Filho do Sol, governavam a
Irlanda. Esses três reis, que dividiam o governo do país entre
si, tinham como esposas Banba, Fohla e Eriu – nomes que, em
diferentes épocas, foram dados à Irlanda.
Os milesianos foram à Irlanda para vingar a morte de um
dos seus, Ith, que fora assassinado pelo Povo de Dana. Como
Partholan, eles chegaram à ilha no dia 1 de maio, dia do deus
Beltane – outro dos muitos nomes do deus da morte, o qual
concede e demanda a vida das criaturas. Logo depois de aporta-
rem nas praias irlandesas, os milesianos se dirigiram à capital do
reino, Tara, onde os três reis dos danaans estavam à sua espera.
Os invasores disseram que eles deveriam ceder a ilha, ou os
enfrentar em batalha. Os reis danaans pediram três dias para
tomarem sua decisão. Para garantir que os milesianos não os
Deus tricéfalo celta
atacariam de surpresa antes do final do prazo, os invasores de-
veriam embarcar e manter seus barcos a uma distância de nove
O segundo tesouro das fadas, a invencível espada de Lugh, ondas da praia. Os filhos de Miled concordaram. Subiram em
Braço Comprido, veio da cidade de Gorias. De Finias, os Filhos seus barcos e navegaram para além da nona onda. No entanto,
da Deusa Dana trouxeram uma lança mágica, e de Murias, o quando mal eles haviam feito o que seus líderes ordenaram, os
Caldeirão de Dagda, o qual só cozinhava o alimento de heróis druidas danaans começaram a pronunciar poderosos encanta-
e do qual quanto mais se retirava, mais abundante se tornava. mentos que fizeram se erguer uma cortina de névoa ao redor
Os danaans procuraram viver em paz com os firbolgs e pro- dos barcos e a soprar uma tempestade de força sobrenatural.
puseram um acordo de paz. Mas os firbolgs não aceitaram a Entre os milesianos, havia um druida, Amergin, cuja podero-
proposta e os combateram na Primeira Batalha de Moytura. Os sa poesia era capaz de transformar a realidade. Amergin pediu
danaans, com uma tecnologia bélica superior, derrotaram os fir- a um dos guerreiros, Aranan, que subisse no alto do mastro do
bolgs, mas não os destruíram. Ofereceram um armistício e conce- seu barco e descobrisse se a tempestade era natural ou provo-
deram a eles a província de Connacht, ocupando o resto da ilha. cada por magia. Com muito custo, Aranan conseguiu chegar
Os dananns também combateram as forças maléficas dos ao alto do mastro e, antes de cair para a sua morte, avisar que
fomorianos na Segunda Batalha de Moytura. Durante a con- não havia tempestade acima das velas. Amergin, então, reci-
tenda, a águia em quem o espírito de Partholan habitava vo- tou um encantamento. No momento em que Amergin acabou
ava em círculos sobre o campo de batalha. Do alto, ele teste- de pronunciar essas palavras, o vento cessou, e a névoa se
munhou os dotados artesãos dos danaans, Goban, o ferreiro, dissipou. Os milesianos apontaram, então, as proas dos seus
Credné, o inventor, e Luchta, o carpinteiro, consertando as barcos em direção à praia e conseguiram aportar no estuá-
armas dos seus guerreiros com rapidez mágica e curando os rio do rio Boyne. Os exércitos dos danaan os esperavam em
feridos com uma pele de porco encantada. Balor, o líder dos Teltown, a cidade da antiga rainha firbolguiana Telta, e uma
fomoriano, cujo olhar matava, causou inúmeras baixas entre batalha encarnada foi travada. Os três reis das fadas e suas
as forças dos danaans. Então, Lugh, filho de Kian, o deus solar rainhas combateram bravamente, mas foram mortos. Os mile-
celta, cujo nome ainda reverbera em cidades como Lion, na sianos conseguiram, assim, assegurar o domínio de toda a ilha.
França, ou Leiden, na Holanda, deu combate a Balor. Lugh No entanto, apesar de derrotados, o Povo de Dana não partiu.

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A chegada dos filhos de Miled, O Bardo, por


de J. C. Leyendecker (1911) John Martin (1817)

Usando sua mágica, eles lançaram um véu de invisibilidade charnecas, os salmões, que simbolizam a sabedoria, o vento
sobre si mesmos, o qual retiram quando lhes é conveniente que varre as falésias, o canto dos pássaros que habitam as
aparecer para os mortais. Há, portanto, duas Irlandas: uma ruínas das antigas fortalezas, as pedras dos círculos sagrados e
material, habitada pelos milesianos humanos, e outra espiri- as lendas que, mesmo hoje, ainda envolvem nosso imaginário
tual, dominada pelos Tuatha De Danann. E nos lugares onde numa aura de magia e mistério.
os olhos humanos veem apenas ruínas de antigas fortalezas
e colinas cobertas de relva, erguem-se os palácios das fadas,
para onde se retiraram as divindades derrotadas. Lá os dana- MABINOGION
ans vivem eternamente sob o sol, alimentando-se de comida e (texto de Rodrigo Andrade)
bebida mágicas que os mantêm eternamente jovens. Nas épo- O Mabinogion é uma coletânea de 11 contos escritos em
cas de guerra ou de dificuldades, eles se revelam aos humanos galês medieval, encontrados nos manuscritos “Livro Branco
e com eles partilham sua sabedoria. de Rhydderch” e “Livro Vermelho de Hergest”, que concer-
Quando os milesianos venceram o Povo da Deusa Dana, nem à mitologia das ilhas britânicas. Os autores desta obra são
Partholan deixou de ser águia e se tornou salmão. Um dia, desconhecidos.
ele foi pescado, assado e servido à esposa de Carell, rei de Basicamente, resume-se a passagens históricas do início da
toda a ilha. E o espírito de Partholan passou para o útero da Idade Média, mas também retoma as tradições da Idade do
mulher. Nove meses depois, ele renasceu de novo como ho- Ferro.
mem. Agora, ele é Tuan Filho de Carell, ou Tuan MacCarell, Nos primórdios, este conjunto de contos celtas aplicava-
e conserva em si a memória de Partholan e dos gamos, java- -se apenas a quatro, conhecidos como “Quatro Ramos do
lis, águias e salmões que seu espírito habitou. Foi ele quem Mabinogi”. Estes são os contos com maior misticismo e mito-
preservou a saga da conquista da Irlanda e a contou a São logia dentro do Mabinogion, enquanto os outros sete contos
Finnen, que a registrou em livro. têm maior enfoque a heróis guerreiros e estórias de cavalaria,
A força que o folclore irlandês exerce na imaginação dos ho- como o caso do ilustre personagem rei Arthur.
mens é de tal teor que o espírito de Partholan parece continuar A grande maioria dos historiadores acredita que os contos
vivo, imbuindo de mágica todo o país. Tem-se esta impressão existem muito antes de serem escritos, sendo transmitidos
nos bosques de Kellarney, ao se ver os animais das matas e oralmente entre os celtas insulares.

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PWYLL, PRÍNCIPE DE DYFED
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O primeiro dos contos, Pwyll, Príncipe de Dyfed, tem como


protagonista Pwyll, o senhor de Dyfed. Gira em torno também
do casamento com Rhiannon, a Deusa das Aves e dos Cavalos,
além do nascimento e desaparecimento de seu filho Pryderi.
Enquanto caçava em Glyn Cuch, o príncipe de Dyfed
deparou-se com um veado morto sendo devorado por uma
matilha de cães. Ordenando que seus próprios cães os ata-
cassem, a fim de alimentá-los, causou fúria em Arawn [Deus
dos Mortos e senhor das terras do submundo de Annwn], o
qual era dono dos primeiros.
Arawn resolveu punir Pwyll, fazendo com que ele assumis-
se sua forma física em sua casa por um ano, disfarçando-se
de Senhor de Annwn, enquanto o mesmo ocorreria do outro
lado: Arawn tornando-se príncipe de Dyfed, em seu lugar.
Ao fim deste período, a missão de Pwyll era assassinar Hafgan,
inimigo de Arawn, pois apenas um mortal poderia concluí-la.
Página do Mabinogion, em pergaminho do século 14 Ao ter êxito, não somente retomou sua forma original,
como também pôde dormir com a esposa de Arawn.
Após dado tempo, Pwyll conheceu Rhiannon, ficando maravi-
TRÍADES GALESAS lhado pela deslumbrante mulher, vestida de ouro e montada so-
As Tríades galesas compõem um conjunto de textos, encon- bre um cavalo branco, apesar de prometida a seu marido Gwawl.
trados no Mabinogion, que retratam a mitologia, tradição e Exatamente um ano e um dia depois, ganhou a mão da [até
folclore galês. A tríade é uma forma retórica em que fragmen- então] mulher casada, concebida por Hefeydd, o ancião, que
ta os respectivos assuntos em trindades, mas sempre sob um era pai dela.
título que une os três. Tiveram um filho, mas a criança misteriosamente desapare-
A coleção mais antiga das Tríades galesas encontra-se no ceu no dia de nascimento.
livro Peniarth. Outros manuscritos importantes são o livro Ao desenrolar da trama, descobre-se que a criança foi encon-
Peniarth 45, além do Livro Branco de Rhydderch e Livro trada por Teyrnon e sua esposa. Eram donos de éguas que inex-
Vermelho de Hergest. plicavelmente tinham suas crias desaparecidas, ao concebê-las.
Certo dia, Teyrnon, intrigado pelo desaparecimento dos filho-
tes, se escondeu durante o parto. Conseguiu salvar um deles
QUATRO RAMOS DO MABINOGION de uma besta, tão sombria quanto enigmática. Nesse instante,
Os Quatro Ramos do Mabinogi são: deparou-se com um bebê desamparado, resolvendo adotá-lo.

z “Pwyll, príncipe de Dyfed”;

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z “Branwen, filha de Llyr”;
z “Manawyddan, filho de Llyr”;
z “Math, filho de Manthonwy”.

^ĞŐƵŶĚŽŽƉƌŽĨĞƐƐŽƌƌŝĐW͘
Hamp, o termo Mabinogi
provém do nome do deus
Maponos, originalmente
se referindo a assuntos
ƉĞƌƟŶĞƚĞƐĂĞƐƚĂĚŝǀŝŶĚĂĚĞ͘
ĂĚŝĕĆŽĚŽƐƵĮdžŽon foi
feita pela tradutora inglesa
ŚĂƌůŽƩĞ'ƵĞƐƚ͕Ğŵϭϴϰϵ͕
erroneamente, acreditando
que isto tornaria o
ƐƵďƐƚĂŶƟǀŽŶŽƉůƵƌĂů Pwyll caçando com seus cães (s/ data)

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A criança demorou apenas 7 anos para se tornar um ho-

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mem adulto, sendo possível reconhecê-lo como o filho desa-
parecido de Pwyll.
Devolveram-no aos seus pais biológicos, os quais o nomea-
ram de Pryderi, cujo significado literal é “preocupação”.
E assim termina este ramo do Mabinogion.

BRANWEN, FILHA DE LLYR


Este conto fala, principalmente, do casamento de Branwen,
filha de Llyr, com Mathowch, o rei da Irlanda. Pryderi aparece,
apesar de não ter qualquer destaque.
Llyr é o Deus do Mar e da Água e, além de Branwen, é pai
de Manawyddan e Bran, o Abençoado.
Certo dia, Bendigeid Bran, rei de Aber Menei (uma das ilhas
de Gales) avistava o mar, contemplando as águas salgadas.
Avistou ao fim do horizonte 13 navios, vindo rapidamente do
sul da Irlanda.
Receoso, enviou homens armados para averiguar quais
eram suas intenções.
No instante em que os navios ali desembarcaram, sua voz
ecoou pelos mares:
— O Céu vos faça prosperar, sejam bem-vindos. Há quem
pertencem estes navios?
— Senhor — disseram-no —, os navios pertencem a
Mathowch, o rei da Irlanda, que aqui está e sugere uma alian-
ça entre a Ilha do Poderoso e a Irlanda. Ele veio pedir a mão
de sua irmã, Branwen.
A versão do pintor galês Christopher Williams
Bran alegrou-se e logo os convidou:
de Branwen (1915)
— Por favor, desembarquem, e bem-vindos à Ilha do
Poderoso!
No outro dia, reuniram-se e Bran concedeu a mão da don- Branwen educou um pássaro e ensinou-lhe a aparência de
zela, considerada a mais bela de todo o mundo. seu irmão Bran. Enviou-o com uma carta amarrada em sua
As festas não tardaram: ambos os povos dançavam, discur- asa, descrevendo todo o desprezo que estava sofrendo.
savam e riam por todos os cantos. Bran entristeceu-se muito com a situação de sua irmã e logo
Porém nem todos estavam se contentaram. Efnissyen, irmão reuniu tropas à Irlanda.
de Branwen por parte de sua mãe, revoltou-se por sequer in- Ao estarem próximos da costa irlandesa, Mathowch e seu
dagarem sua posição quanto ao pedido de casamento. Conselho resolveram retirar-se para além do rio Linon, des-
Irado, descontou sua fúria nos cavalos irlandeses, esquar- truindo a ponte que o atravessa.
tejando-os. Bran, ao chegar lá, disse à sua tropa:
Não tardou para que as notícias chegassem aos ouvidos de — Não vos preocupeis. Ninguém consegue atravessar este
Mathowch. O rei da Irlanda jamais fora insultado dessa forma. rio, a não ser um chefe. Eu o serei. Que seja uma ponte o
Retirando-se, rumo aos navios, foi convencido pelos men- homem que é chefe na verdade.
sageiros de Bran de que não estavam envolvidos na tragédia. Após atravessar o rio, os irlandeses o saudaram e Mathowch
Sugeriram formas de compensarem o insulto, oferecendo-o deu o reino da Irlanda a Gwern, sobrinho de Bran e filho de
um bastão de prata e um prato de ouro. Branwen.
Obviamente, isto jamais iria compensar, de fato, o trans- Presentearam Bran com uma casa, afinal, ele sempre morou
torno de Mathowch, mas este preferiu aceitá-los ao invés de em tendas como uma compensação.
sofrer ainda mais vergonha. Contudo a casa era uma armadilha: ao lado de cada um dos
Ao notar que Mathowch continuava desanimado, resolveu cem pilares que a sustentavam, havia um saco de couro com
acrescentar outra compensação à lista: um caldeirão mágico um homem armado dentro.
capaz de reviver mortos, o Caldeirão da Renovação, apesar Efnissyen — o homem que esquartejou os cavalos — en-
de retornarem à vida sem conseguir falar. A partir de então trou antes de todos na casa. Colocava as mãos dentro dos
Mathowch, maravilhado, retornou à Irlanda despreocupado. sacos e perguntavam aos irlandeses que ali estavam de que
Passados dois anos, os rumores do que ocorreu em Aber conteúdo se tratava.
Menei com os cavalos irlandeses se estenderam a Branwen. — É comida — disseram-lhe.
Sentiam sede de justiça e resolveram puni-la, trabalhando Efnissyen ia de saco em saco repetindo as perguntas.
na cozinha e tendo suas orelhas diariamente golpeadas pelo Apertava a cabeça dos impostores disfarçadamente, explodin-
açougueiro, a mando dos irmãos de Mathowch. do o cérebro de todos.

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Logo após, os galeses retornaram a casa. Certo dia, Heilyn, outro dos sete, resolveu atender sua
Felizes por ter Branwen de volta, agora com seu filho, uma curiosidade e abriu a terceira porta.
tragédia ocorreu. Eles olharam em direção à Cornualha e viram toda a miséria
Efnissyen pegou na mão do garoto Gwern e arremessou-o que seus amigos sofreram. Lembraram-se de toda a dor e an-
ao fogo. Ele não resistiu. gústia. De todos os sofrimentos.
Os irlandeses acenderam um intenso fogo sob o Caldeirão Não conseguiam sequer dormir — tamanha era a perturba-
da Renovação e lançaram os cadáveres que o irmão materno ção. Partiram dali, rumo a Londres.
de Branwen assassinou. Todos ressuscitaram ao mundo dos Ao chegarem lá, sepultaram a cabeça de Bran no Monte
vivos, porém incapazes de falar. Branco de Londres.
Quando Efnissyen reparou que não havia mais mortos, Enquanto a cabeça esteve oculta, nenhuma invasão veio
lamentou-se por ter sido a causa dos irlandeses possuírem o sobre o mar, passagem chamada de “a terceira ocultação
caldeirão ao ponto de se atirar em meio aos cadáveres. agradável”.
Os irlandeses, pensando que se tratava de um de seus parcei- Ao ser desenterrada, infortúnios, novamente, estavam pres-
ros, lançaram-no ao caldeirão. Ele se esticou tanto ali dentro que tes a acontecer.
chegou a quebrá-lo em quatro partes, e também seu coração. E assim termina este ramo do Mabinogion.
Esta não foi a vitória do povo galês, afinal, apenas sete dos
homens conseguiram escapar.
Nem mesmo Bran, o Abençoado, conseguira escapar. Foi MANAWYDDAN, FILHO DE LLYR
acertado com um dardo venenoso e clamou que decepassem Manawyddan, filho de Llyr continua a história do segun-
sua cabeça. do conto, Branwen, filha de Llyr, tendo como protagonistas
Branwen fugiu com os sete homens, mas estava tão depri- Manawyddan e Pryderi, nas terras de Dyved.
mida ao ponto de seu grito estourar seu coração. Manawyddan, após ter enterrado a cabeça de seu irmão
Sete anos depois, migraram para Penfro. Encontraram ali Branwen, foi tomado por uma imensa onda de infortúnios
um salão digno de um rei, que avistava o mar. e lamentos.
Entraram e viram duas portas abertas e outra fechada, a — Senhor — disse Pryderi, em tom de consolação —, não
qual olhava em direção à Cornualha. se preocupe. Teu primo ainda é rei da Ilha da Força. Tu és,
Manawyddan, um dos sete sobreviventes, alertou para não portanto, o terceiro príncipe deserdado.
abrir a terceira porta. Enquanto Manawyddan ainda lamentava pela morte de seu
Passaram-se quatro vintenas de anos de muita harmonia e querido irmão, Pryderi concluiu:
prosperidade. Jamais sentiram tanta alegria como nesse período. — Há sete Cantrevs (Cantref - plural Cantrevs - concerne à
medida galesa medieval, no caso sendo referida a terras e pro-
priedades) que me pertencem, onde minha viúva mãe Rhiannon
Bran, na interpretação vive. Eu insisto para que usufruas delas e se case com ela.
de Ivor Robert-Jones — Que os Céus lhe recompensem por sua amizade — res-
(1984) pondeu Manawyddan. — Irei contigo a Dyved, meu amigo,
procurar Rhiannon e suas posses.
Foi uma longa jornada, e, ao chegar lá, reuniram-se todos
para jantar. Manawyddan e Rhiannon trocaram risadas e lon-
gas conversas, sentindo um mútuo interesse.
Pryderi disse à sua mãe sobre a proposta de casamento.
Antes mesmo do término do banquete, já se tornara esposa
de seu amigo.
Os três mantinham uma forte amizade e sempre estavam
juntos. Ao circundarem Dyved, jamais tinham encontrado ter-
ras com tamanha beleza e abundância de caças, mel e peixes.
Chegando a Gorsedd de Narberth, um intenso barulho de
trovão e uma névoa, densa ao ponto de não conseguirem ver
um ao outro, os assolou. E, logo após a névoa ter desapareci-
do, uma luz os circundou. Notaram que ali não mais estavam
o gado, as casas, os animais, o fogo e a fumaça, além de qual-
quer ser humano. As casas da corte estavam vazias. Restaram
apenas Manawyddan, Rhiannon, Pryderi e sua esposa Kicva.
Intrigados, procuraram incessantemente, mas nada, exceto
animais selvagens, encontraram. Passaram o primeiro ano usu-
fruindo de toda a comida que restara.
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Após esse período, foram a Hereford, em busca de susten-


to. Manawyddan tornou-se um mestre na confecção de selas,
esmaltando-as de azul; todos os compradores da cidade iam
até ele, fazendo com que os vendedores locais rumassem à fa-

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lência, decidindo assassiná-lo.
Rhiannon, heroína do

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Manawyddan sugeriu a
Mabinogion, em gravura
Pryderi que deveriam migrar
do final do século 19
a outra cidade, ao invés de
matar estes homens rústicos e
serem presos.
Dedicaram-se à fabricação
de escudos, e prosperaram.
Os escudos também eram
esmaltados de azul. Os ar-
tesãos locais iam gradativa-
mente diminuindo suas ven-
das — pois todos queriam
os escudos azuis de Pryderi e
Manawyddan — e decidiram
assasiná-los.
Resolveram migrar para
outra cidade, ao invés de
enfrentarem tais homens e
entrarem em apuros com os
demais habitantes de lá.
Chegando ali, decidiram
confeccionar sapatos, pois
Manawyddan já sabia costu-
rar. Desenvolviam os mais be-
los sapatos, e todos os deseja-
vam. Não tardou para que os
sapateiros locais começassem
a se irritar, concordando em
assassiná-los.
Novamente evitaram con-
flitos, mas desta vez resolve-
ram retornar a Dyved, onde se dedicaram à caça. cresciam e prosperavam, à medida que as estações passavam.
Certo dia, seus cães de caça avistaram um javali selvagem. Chegando no dia da colheita, Manawyddan percebeu, em
Perseguindo-o, correram até avistar um castelo jamais visto, um dos quintais, que já estavam maduros. Deixou para ceifa-
recém-construído. Os cães latiam incessantemente, mas ao -los no outro dia.
entrarem no misterioso castelo, um silêncio perturbou os dois Ao amanhecer, dirigiu-se ao quintal, mas reparou que todos
homens. os trigos já haviam sido cortados em seus caules, restando ali
Aflito por seus cães, Pryderi resolveu entrar no castelo, mas apenas palha.
ali não encontrou qualquer resquício de vida animal ou huma- Resolveu ir a outro quintal, e percebeu que também esta-
na. Avistou, contudo, um vaso de ouro. Seduzido, resolveu vam maduros. Deixou para ceifa-los no outro dia.
segurá-lo, mas suas mãos ficaram presas a este, e não conse- No dia seguinte, reparou que o mesmo ocorreu: só havia
guia proferir qualquer palavra. palha.
Manawyddan aguardou ali fora até o sol se por. À noite Aflito, resolveu vigiar o terceiro quintal durante a noite, a
retornou ao palácio em que moravam e relatou à Rhiannon do fim de surpreender o ladrão. À meia noite, um tumulto gigan-
ocorrido. Ela se irritou com a falta de companheirismo de seu tesco de ratos inundou os trigos, entortando-os e deixando,
marido, resolvendo ir ao castelo. apenas, seus caules. Manawyddan ficou furioso e correu em
Rhiannon não se intimidou e entrou no castelo. Notou que direção a eles, mas como estes eram muito rápidos, não con-
Pryderi estava segurando um vaso, e dele se aproximou. Suas seguia alcançá-los, exceto um único que se demonstrou ser
mãos também ficaram presas ao vaso, seus pés ao mármore e mais preguiçoso. Pegou o animal e prendeu-o em uma luva.
seus lábios cessaram de abrir. — Amanhã enforcarei este impostor — disse à Kicva, em
Ao anoitecer, trovões ecoaram e uma imensa névoa surgiu, tom de justiça.
fazendo com que o castelo desaparecesse, levando Pryderi e No outro dia, Manawyddan armou a forca para o ladrão,
Rhiannon. quando avistou um sábio se aproximando, vestindo roupas esfar-
Manawyddan e Kicva estavam sós. Por terem perdido seus rapadas. Havia sete anos que não avistava qualquer homem ali.
cães e temerem falta de comida, o filho de Llyr começou a — Meu senhor — disse o sábio. —, que os Céus lhe tragam
pescar e caçar cervos em seu esconderijo. prosperidade.
Preparou o solo e semeou três quintais. Nunca no mundo — De onde vens, sábio? — perguntou Manawyddan. —
um trigo de tamanha qualidade havia brotado. Os três quintais Pois não vejo homem algum neste lugar há sete anos.

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A costa galesa em quadro do francês Alfred Sisley (1897)

— Venho de Lloegyr. Mas permita-me perguntar: O que O bispo insistiu:


fazes com um rato em suas mãos? — Se não vais libertá-lo de tal maneira, qual o preço que
— Flagrei-o roubando, e, pelos Céus, não o libertarei. A desejas?
desgraça trarei a este animal. — Desejo a liberdade de Rhiannon e Pryderi — o filho de
O sábio ofereceu uma moeda para que ele não assassinasse Llyr suplicou.
um pobre animal, mas, obviamente, Manawyddan recusou. Foi- — Tal preço terás — respondeu o bispo.
se embora, virando as costas para o enforcamento do roedor. — Porém não o libertarei ainda. Desejo, também, que o fei-
Enquanto posicionava a forca, avistou um sacerdote vindo tiço e a ilusão sejam removidos dos Cantrevs de Dyved.
em sua direção, montado em um cavalo coberto de trapos. — Isso também terás, portanto, liberte o rato.
— Bom dia, senhor — disse o cavaleiro. — Não o libertarei enquanto não souber quem ele é.
— Que os Céus lhe tragam prosperidade — respondeu — É minha esposa — respondeu o bispo. — Ela veio até ti
Manawyddan. para despojar de seus bens. Eu sou Llwyd, o filho de Kilcoed, e
— O que fazes segurando um rato, senhor? fui eu quem lancei o feitiço sobre os sete Cantrevs de Dyved.
— Estou enforcando este ladrão que me roubava. Confesso O fiz para vingar meu amigo Gwal, o filho de Clud, sobre
aos Céus que não o venderei e, tampouco, o libertarei. Não Pryderi, cujo pai, Pwyll, trapaceou no Jogo do Texugo e lançou
aceito preço algum por ele. Gwal à prisão. Quando soubemos que tu virias habitar estas
E assim o sacerdote se foi. terras, minha própria família pediu-me para que os transfor-
Quando Manawyddan amarrou o nó no pescoço do animal, massem em ratos e, sendo assim, destruíssem os seus trigos.
prestes a matá-lo, avistou um bispo com seus cavalos e criados Agora, por favor, liberte-a.
aproximando-se. — Apenas a libertarei se não houver mais feitiços nos
— Senhor bispo, tuas bênçãos. Cantrevs de Dyved e se a vingança não se estender sobre
— Bênçãos dos Céus para ti. Mas por que razão estás enfor- mim, Rhiannon, Pryderi ou Kicva.
cando um pobre rato? — Tal desejo terás: tens a minha palavra.
— Ele roubou-me — respondeu Manawyddan. Manawyddan soltou o rato, e Llwyd tocou-o com seu caja-
— Ofereço-te vinte e quatro moedas pela liberdade do ani- do mágico, fazendo com que ela retornasse a forma de uma
mal, além de todos os cavalos nesta planície. bela jovem. O filho de Llyr reparou que tudo voltara ao nor-
— Pelos Céus, não o libertarei! mal: a terra estava em perfeito estado e repleta de habitações,

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pessoas e gado. Pryderi e Rhiannon, que estavam presos, fo-
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ram libertos.
A paz reinou nos sete Cantrevs de Dyved, e Pryderi tornara-
-se rei.
E assim termina este ramo do Mabinogion.

MATH, FILHO DE MANTHONWY


Math, filho de Mathonwy encerra os Quatro Ramos do
Mabinogion, e tem como destaque os personagens Math e
Gwydion, que conflitam com Pryderi.
Com o passar dos anos, Pryderi tornara-se rei de vinte e
uma Cantrevs do sul, incluindo as sete Cantrevs de Dyved,
sete Cantrevs de Morganwc, quatro Cantrevs de Ceredigiawn
e três de Ystrad Tywi.
Math, filho de Manthonwy, era um mago que, quando não
estava em combates, não poderia ficar sem a presença de
uma virgem. Sua donzela era a magnífica Goewin, filha de
Pebin, que sempre estava junto a ele. Era, também, senhor de
Gwynedd, terra localizada ao noroeste de Gales.
Gilvaethwy se apaixonou por Goewin; era tanto amor que
chegou a ficar pálido pelo fato de ela já estar comprometida a
Math. Seu irmão Gwydion teve uma ideia para afastar Math
de Goewin.
Gwydion chegou a Math e sugeriu:
— Do sul, aproximam-se animais jamais visto em Gwynedd.
São chamados “porcos”, animais pequenos, cuja carne é mui-
Trigais, de Vincent Van Gogh (1890) to melhor do que a bovina. Pryderi, filho de Pwyll, é o dono
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Paisagem galesa,
Augustus John (1914)

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Bandeira de Gwynedd, cujo rei era Manthonwy

destes. Se consentir, irei acompanhado de onze homens disfar-


çados de bardos, e tomaremos os animais.
Com a permissão de Math, foram a Rhuddlan Teivi, onde
o palácio de Pryderi se localizava. Foram bem recebidos por
estarem vestidos como bardos, e Gwydion, que era o melhor
contador de histórias daquele tempo, divertiu a todos os ho-
Gwydion vence Pryderi em combate singular,
mens da corte, incluindo o rei Pryderi.
em ilustração de Edward Wallcousins
Após se sentir confortável, Gwydion suplicou ao rei que lhe
concedesse os suínos. Contudo Pryderi recusou, por seguir um
pacto no qual estes animais devessem procriar o dobro de seu Os homens travaram o duelo. Gwydion, devido à força e
número, até poderem sair de suas terras. aos feitiços, assassinou Pryderi. Os reféns do sul, que juraram
Gwydion percebeu que precisaria de outra forma para con- paz, foram libertados.
seguir os porcos, e iniciou um feitiço, no qual doze cavalos Math retornou aos seus aposentos, e Goewin, em tom de
com doze selas de ouro e doze cães negros com doze coleiras, tristeza, alertou:
também de ouro, surgissem. — Senhor, tu deves procurar outra para repousar teus pés,
Levou os vinte e quatro animais até Pryderi e sugeriu uma pois não sou mais tua donzela. Gilvaethwy e Gwydion a mim
troca, visto que ele não podia dar ou vender os suínos. O rei, desgraçaram; todos na Corte já sabem do fato, o que lhe trou-
após analisar com cautela a proposta, consentiu a troca. xe desonra, ainda mais por tratar-se de seus sobrinhos.
Já com posse dos animais, Gwydion sugeriu aos seus ho- Encolerizado pela fúria, tornou Goewin em sua esposa para
mens que viajassem com rapidez a Gwynedd, pois as ilusões que usufruísse todos os seus bens, e tomou os seus sobrinhos,
perdurariam por pouco tempo. a fim de puni-los. A punição consistia em transformá-los em
Ao chegar lá, rapidamente as notícias chegaram aos seus ou- diferentes animais no período de três anos. Com sua varinha
vidos, dizendo que Pryderi estava reunindo todas as Cantrevs mágica, transformou-os em cervos por um ano, no segundo
para atacar Gwynedd. ano em javalis, e no terceiro em um par de lobos.
Math e seus homens partiram para Penardd de Arvon para Após os três anos, transformou-os novamente em homens.
a batalha. Math disse:
Gilvaethwy tomou o aposento de Math, expulsando todas — Já sofreram o suficiente para pagar tudo o que nos cau-
as damas, exceto Goewin, obrigando-a contra sua vontade. saram. Porém ainda procuro uma donzela para substituir
As batalhas foram sangrentas para ambos os lados, mas Goewin, que não é mais virgem.
Pryderi foi forçado a retirar suas tropas. Enquanto seguia — Senhor — respondeu Gwydion —, procure por Arianrod,
até Melenryd, despachou mensageiros a Math, suplicando filha de Don.
para que resolvesse seu conflito com Gwydion, ao invés das A moça foi trazida até Math e ele quis verificar se ela real-
Cantrevs do sul, afinal, era ele a causa de todo este conflito. mente era uma virgem.
Math, ao ouvir a mensagem, concordou que seria mais in- — Moça — ele disse —, saberei se tu és a donzela se pisares
teligente que apenas Gwydion e Pryderi lutassem, ao invés de em minha varinha mágica.
multidões de ambos os lados. Quando ela pisou na varinha, reprovou no teste de pureza,

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A pedra de Dylan, em Clynnog Fawr, País de Gales

dando à luz dois garotos de cabelos loiros. Math tomou o pri-


meiro e batizou-o com o nome de Dylan.
Após o batismo, o garoto foi lançado ao mar. Mas este na-
dou melhor do que qualquer peixe, sendo chamado, por esta
razão, de “Dylan, filho das Ondas”.
O segundo garoto foi amaldiçoado por Arianrod. A mãe
odiava o filho por tê-la constrangido. A maldição faria com
que o garoto nunca possuísse um nome, a não ser que fosse
ela que o nomeasse.
Mas certo dia, Gwydion, que adotara o menino, conseguiu
enganá-la ao mudar a forma do garoto. Quando o menino,
aparentemente desconhecido por Arianrod, a impressionou
acertando um pássaro com uma pedra, devido à sua precisão.
Ela batizou o garoto de Llew Llaw Gyffes; e o menino retornou
à sua forma original. A mãe ficou furiosa e lançou outro feitiço
ao garoto, fazendo com que ele nunca pudesse utilizar armas
ou armaduras que não fossem dadas por ela.
Após um determinado tempo, o pai adotivo de Llew arqui-
tetou um plano: ambos se disfarçaram de bardos e, desta for-
ma, conseguiram entrar no salão de Arianrod. Banquetearam,
e Gwydion, que era um mestre na arte de contar histórias, os
entreteve, sendo convidados para dormir em um dos quartos.
Blodeuwedd, por Christopher Williams (1930)
Antes do raiar do dia, Gwydion invocou magias e encan-
tamentos, ressoando pelo território gritos, trompas e ruídos.
Uma imagem de um sem-número de navios foi projetada no O rei Llew Llaw Gyffes, apesar das pragas iniciais, agora
mar, causando desespero em Arianrod. estava encantado com a invulnerabilidade. Poderia ser morto
— Devemos fechar os portões do castelo e defendê-lo como apenas por uma lança que tivesse sido construída em uma era
pudermos. Por favor, nos tragam armas. em que o trabalho era proibido.
Arianrod imediatamente trouxe os armamentos, e ela mes- Certo dia, Blodeuwedd foi passear e acabou cruzando
ma vestiu a armadura no jovem, quebrando o feitiço. com Gronw Pebyr, senhor de Penllynn. Conforme foram
Imediatamente os navios desapareceram, e os gritos silen- conversando, o coração de ambos desabrochou, e estavam
ciaram. Arianrod enfureceu-se e lançou ao garoto novamente apaixonados.
outro feitiço, fazendo com que ele não pudesse ter uma espo- A mulher nascida das flores insistiu para que Gronw perma-
sa de mesma raça. necesse ali por mais uns dias. Sugeriu que a única forma de
Quando Llew já havia tornando-se um homem, foram até ficarem juntos seria assassinar seu marido, encontrando uma
Math explicar o ocorrido. O filho de Mathonwy, através de maneira para conseguir fazê-lo.
feitiços e magias, criou uma esposa para o jovem, através das Após um tempo, ela descobriu como a lança poderia ser
flores, dando o nome de Blodeuwedd à donzela. construída. Perguntou ao seu marido como ele poderia ser
Blodeuwedd tornara-se noiva de Llew. Na cerimônia, Math morto, enquanto Gronw permanecia escondido. Llew, sem
deu ao jovem o Cantrev de Dinodig, aonde Llew viria reinar e sequer desconfiar, revelou o segredo, quando o amante es-
ser adorado por todo o povo, junto à sua esposa. petou-lhe a lança.

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A águia descera até o galho mais baixo da árvore, e Gwydion
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novamente cantou outro Englyn:


“Grandioso e majestoso é teu aspecto!
Não devo dizer,
Que Llew venha para o meu colo?”
A águia pousou e Gwydion tocou-a com sua varinha mági-
ca, retornando-a à forma humana original, apesar de estar ex-
tremamente magricela, ao ponto dos ossos estarem expostos.
Os melhores médicos de Gwynedd tomaram conta de Llew.
Após um longo período de recuperações, suplicou a Math
que punisse sua esposa infiel e seu amante Gronw. Math con-
cordou.
Assassinou Gronw exatamente da mesma forma que este
havia o feito quando o transformou em águia, com mesma
lança e no mesmo local.
Gwydion encontrou Blodeuwedd e disse:
— Não irei matá-la; farei algo pior. Transformar-te-ei em
um pássaro pela vergonha que causaste a Llew Llaw Gyffes.
Nunca mais seu rosto será exposto à luz do dia, por medo dos
outros pássaros que a odiarão e a perseguirão aonde tu for.
Teu nome continuará Blodeuwedd.
E assim termina este ramo do Mabinogion.

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Blodeuwedd encontra Gronw, E. Wallcousins (1920)

Llew se transformou em uma águia e voou para cima de


um carvalho.
Gwydion o atraiu para o chão, transformando-o novamente
em humano, ao recitar os seguintes Englyns:
“Carvalho que cresce entre as duas orlas;
Escuro é o céu e a colina!
Não direi eu que pelas feridas,
Se trata de Llew?”
A águia desceu e pousou no centro da árvore. Tornou
Gwydion com outro Englyn:
“Carvalho que cresce no solo alto,
Não é úmido aí?
Não foi alagado
Por nove fortes tempestades?
Carregas em teus galhos Llew voa como uma águia, em ilustração
Llew Llaw Gyffes!” de edição galesa do Mabinogion de 1877

EnglynsƐĆŽƉŽĞŵĂƐƚƌĂĚŝĐŝŽŶĂŝƐŐĂůĞƐĞƐ͘^ĆŽĐƵƌƚŽƐ
ĞƵƟůŝnjĂŵŵĠƚƌŝĐĂƋƵĞĞŶǀŽůǀĞŵĂĐŽŶƚĂŐĞŵĚĞƐşůĂďĂƐ͕
ĂůĠŵĚŽƵƐŽĚĞƌŝŵĂƐ͘ĂĚĂůŝŶŚĂĐŽŶƚĠŵƵŵƉĂĚƌĆŽ
ƌĞƉĞƟƟǀŽĚĞŝŶŇĞdžƁĞƐ͕ĐŚĂŵĂĚĂƐ“cynghanedd”

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DEUSES,
DEUSAS, HERÓIS
E HEROÍNAS
Apesar de o povo celta continental praticamente não ter deixado registros
escritos, seus deuses são conhecidos devido a muitos dos dominadores
romanos, que preservaram sua religião, chegando até a adorar tais deuses
e divindades. O motivo principal para isso ter ocorrido foi porque muitos
aspectos dos deuses celtas se assemelharem aos dos romanos

U
ma infinidade de divindades celtas parecia com deu- Tan Hill (literalmente “Colina de Fogo”) era a divindade do
ses romanos como Mercúrio, Apolo, Marte, Venus, fogo, e uma das reverências a este deus consistia em um ritual
Minerva, Cibele, etc., com notórias semelhanças en- no qual o indivíduo ficava no centro de um triângulo, com-
tre si. O deus celta do trovão Taranis era, por exem- posto por três velas vermelhas. Ao invocar o auxílio do Deus
plo, equiparado a Júpiter, deus romano do dia.
Os celtas insulares e goidélicos, no entanto, deixaram uma
rica variedade de cultura, tendo a maior parte de suas lendas KƐĂŶƟŐŽƐĚƌƵŝĚĂƐĞďĂƌĚŽƐĐĞůƚĂƐ
sido escritas durante a Idade Média, já após a cristianização,
supostamente temendo o fim seus legados.
não registraram por escrito sua
Atualmente se conhece mais de trezentos deuses de toda a ƚƌĂĚŝĕĆŽ͕ƉŽŝƐĂŵĂŶƟŶŚĂŵĞĂ
mitologia celta — sobretudo os goidélicos —, mas poucos eram,
de fato, adorados em comum entre os três grupos principais.
ƚƌĂŶƐŵŝƟĂŵŽƌĂůŵĞŶƚĞ͘ƐƐŝŵ͕
grande parte desse conhecimento
DEUSES acabou se perdendo, inclusive seu
Os deuses celtas representavam uma infinidade inimaginá- ƉĂŶƚĞĆŽ͘ŵďŽƌĂŽƐĐƌŽŶŝƐƚĂƐŐƌĞŐŽƐ
vel de coisas, transcendendo a concepção limitada de que os
deuses antigos apenas simbolizavam fenômenos da natureza.
ĞƌŽŵĂŶŽƐĚĂŶƟŐƵŝĚĂĚĞƚĞŶŚĂŵ
Goibiniu, por exemplo, era o deus fabricante de cerveja. deixado relatos sobre os deuses
Epona era a deusa dos cavalos, Oengus o deus da inspiração
poética, amor e beleza, Badb a deusa da guerra, Dagda o deus
celtas, eles não conservaram seus
da magia e música, Macha a deusa da fertilidade, além de um ŶŽŵĞƐŽƌŝŐŝŶĂŝƐƐƵďƐƟƚƵŝŶĚŽͲŽƐ
sem-número de deuses com múltiplas associações.
Os fenômenos naturais, obviamente, também eram associa-
ƉĞůĂƐƐƵĂƐĐŽŶƚƌĂƉĂƌƟĚĂƐŐƌĞŐĂƐ
dos: Cailleach é a deusa da terra e das rochas, Fliddais a deusa ĞƌŽŵĂŶĂƐ͘ŽŶŚĞĐĞͲƐĞŵĂŝƐŽƐ
da floresta e dos bosques, Dylan o deus do mar, Lleu o deus da
terra e Nechtan o deus do rio.
deuses irlandeses, preservados pela
Os celtas adoravam seus deuses através de rituais, e as ceri- ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŵşƟĐĂĚĂŝůŚĂ͘ůĞƐƐĆŽ͕
mônias ocorriam em determinados dias do ano, tais como fe-
riados cristãos da sociedade contemporânea ocidental, como
muitos deles, os Tuatha De Danann,
a páscoa e o natal. ou Filhos da Deusa Dana

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A Senhora do Lago, do ciclo arturiano, conserva
o mesmo caráter das divindades dos rios e
fontes dos antigos celtas (Miss C. Parsosn como
a Senhora do Lago, por Thomas Sully, 1812)
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Bunworth Banshee, de Thomas Crofton Croker (1825):
a visão ou, por vezes, o ouvir o grito das banshees
anunciavam uma morte iminente

do Fogo, este jogava purpurina nas velas, alimentando suas


chamas, enquanto afirmava:
“Assim como esta chama cresce, tudo que eu fizer tam-
bém crescerá”.
Outro fato curioso é que muitos dos deuses celtas acabavam
por ter características extremamente parecidas entre si, dife-
rindo muitas vezes apenas em nome e figura representativa,
devido às diferenças de localizações dos povos celtas. A seguir,
algumas das principais divindades celtas

ABADINO, ABANDINUS
Deus ou espírito masculino cultuado em Godmanchester,
em Cambridgeshire, Inglaterra, durante o período de ocupa-
ção romana. A única referência existente sobre essa divindade
é uma inscrição num altar: “Ao deus Abandinus, Vatiacus de-
dica este [com] suas próprias economias”. Trata-se, provavel-
mente, de deus local, possivelmente associado a uma nascente O altar à Diana Abnoba em Badenweiler, Alemanha
ou a um riacho.
O nome poderia ser interpretado como uma forma estendida
de uma raiz composta de elementos proto-celtas e significaria “(o ABHEAN
deus) que canta para (algo/alguém)” ou “(o deus) que amarra Na mitologia Irlandesa Abhean era o harpista dos Tuatha
(algo/alguém) a (algo/alguém)”. Entretanto, é possível também De Danann.
ver o nome como uma forma estendida de uma variante.

ABNOBA
ABELIO A deusa das matas e dos rios Abnoba era cultuada na
Deus cultuado no vale Garonne na província romana da região da Floresta Negra, no Sudoeste da Alemanha, não
Gália Aquitânia, hoje sudoeste da França, provavelmen- muito distante da fronteira com a França (a antiga Gália).
te associado às macieiras. Alguns estudiosos propõem que Foram descobertas nove inscrições. Em duas delas, um altar
Abelio é, na verdade, Apolo, o deus greco-romano da luz, encontrado nas termas romanas em Badenweiler e em um
da profecia, da música e das artes. De fato, de acordo com outro em Mühlenbach, Abnoba é relacionada a Diana, a
o Dictionary of Greek and Roman Biography and Mythology deusa romana da caçada que, por sua vez, corresponde à
(Dicionário Biográfico e Mitológico Greco-Romano), em Creta deusa grega Ártemis.
e em outros locais, Apolo também eram chamado de Abelios. Segundo Plínio, o Velho, que escreveu no século 1 a.C.,
Tertuliano, que escreveu no final do século2 e início do 3 d.C., Abnoba é a nascente do rio Danúbio – o que poderia levar
Abelio seria o mesmo deus que Belenos. a crer que Abnoba seria uma divindade dessa nascente, se-
Provavelmente, Abelio deva ter sido uma divindade solar, melhante às ninfas gregas. Contudo, alguns pesquisadores
como Apolo – o que pode ter levado os romanos a associar observam que Plínio poderia ter confundindo o Reno e seus
essa divindade ao Apolo de Creta. afluentes com o Danúbio.

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Embora a etimologia do nome dessa deusa seja incerta, um conta da ascendência divina do conde, muitas famílias do
de seus elementos significariam “água, rio”, o que poderia Munster afirmavam ser descendentes da deusa Ainé.
confirmar que Abnoba era uma deusa relacionada às fontes, Embora Ainé não seja muito citada na literatura bárdica, ela
além de seu atributo como caçadora. ocupa um lugar de proeminência no folclore local. Até o início
do século 20 na véspera do solstício de verão, os camponeses
homenageavam Ainé com uma procissão de tochas. Depois
ABRED da procissão, os participantes se dispersavam pelas plantações,
De acordo com a tradição druídica ensinava que a alma hu- onde giravam as tochas sobre as plantas para garantir abun-
mana teria de passar por muitas encarnações em Abred, O dancia e boa sorte.
Círculo da Necessidade. Abred é a Vida Terrena.

AIRMID
AIN Airmid era filha de Diancecht, o deus da medicina gaélico.
Na mitologia Irlandesa Ain foi a deusa que, junto com sua Uma antiga lenda dá conta de que Airmid colheu 365 talos
irmã, escreveu as antigas Leis da Irlanda que protegiam os di- que cresciam sobre a tumba de seu irmão Miach e os teceu
reitos das mulheres. de forma fazer um manto que curava qualquer doença. No
entanto, Diancecht, tomado de ciúme, misturou os talos, al-
terando a ordem do tecido. Não fosse isso, os homens teriam
AINÉ cura para todas as doenças que afligem a humanidade.
A deusa Ainé é uma tradição da região do Munster, um dos
quatro antigos reinos da Irlanda. Ela era filha de Owen, en-
teado do deus do mar Mananan. Ainé é uma deusa do amor, ALISANOS, ALISAUNUS
inspirando continuamente os mortais com paixão. Deus cultuado na atual região de Côte-dOr e em Aix-en-
Certa vez, o rei de Munster, Ailill Olum, se apaixonou por Provence, na França. Há pelo menos duas inscrições dedica-
Ainé e a perseguiu por toda a ilha. Mas tudo o que ele encon- tórias a esse deus, escritas na língua gaulesa. São epígrafes
trou foi a morte, causada pelas artes mágicas da deusa. No oferecidas em agradecimento ou reconhecimento a graças
entanto, Ainé, se entregou a um mortal do clã Fitzgerald, um recebidas do deus, semelhantes às que os católicos devotam
dos mais antigos do Munster, com quem teve um filho que se aos seus santos por pedidos atendidos. Numa delas, lê-se,
tornou um poderoso mago e o Quarto Conde de Desmond. “Doiros (filho) de Segomaros dedicou (este) a Alisanos”, en-
Uma lenda local afirma que o conde desapareceu misteriosa- quanto a outra registra que “Paullinus cumpriu livre e mereci-
mente, em 1398, e que passou a viver sob as águas do Loch damente sua promessa ao deus Alisanus em nome de seu filho
Gur. Ainda hoje ele pode ser visto uma vez a cada sete anos, Contedius”. O nome Alisanos indica que esse deus era um
cavalgando um garanhão branco nas margens do lago. Por deus da montanha.
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Detalhe do caldeirão de Gundestrup, vaso de prata decorado com divindades celtas (c. século 2 a.C. a 4 d.C.)

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Mapa das tribos celtas do Norte da França, Oeste da Alemanha e Sul da Inglaterra
que cultuavam os deuses romanizados ou registrados em inscrições galo-romanas

ALOUNOS, ALAUNOS (ALAUNUS), AMBISAGRUS


ALÂUNIOS (ALAUNIUS) Deus gaulês cultuado na Aquileia na Gália Cisalpina, identi-
Deus gaulês do Sol, de cura e de profecia – o que o rela- ficado com Júpiter, o deus da luz romano, correspondente ao
cionaria ao Apolo greco-romano. No entanto, uma inscrição grego Zeus, em seu caráter de Jupiter Optimus Maximus, isto
encontrada em Mannheim, na Alemanha, Alounos aparece é, sua mais poderosa expressão.
como um epíteto de Mercúrio, o equivalente romano ao deus
grego Hermes, o mensageiro dos deuses, deus do comércio e
dos ladrões, entre outras atribuições. ANA
Entre outras hipóteses, o nome pode significar “melodioso, Na mitologia Irlandesa era a Antiga Mãe que alimentava os
harmonioso”, ou, de acordo com outra corrente, pode ter o deuses e cujos seios enormes eram os dois montes gêmeos de
sentido de “rico, opulento, fecundo, etc.” Munster.

AMAETHON ANCAMNA
Filho de Don e deus da agricultura. Protegia as colheitas e Deusa cultuada no vale do rio Mosela, na fronteira entre
tornava os animais fecundos. a França e a Alemanha. Era uma das consortes de Lenus ou

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ANGUS
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Angus Mac Ög, ou Angus, o Jovem, o deus irlandês do


amor, da juventude e da beleza, era filho de Dagda e de
Boanna, a deusa cuja forma física é o rio Boyne. Sempre ha-
via quatro pássaros brilhantes voando sobre sua cabeça. Esses
pássaros eram seus beijos que tomavam forma e cujo chilreio
despertava o amor no coração dos amantes. Possuía uma har-
pa dourada que produzia música de irresistível doçura.
Certa vez, Angus se apaixonou perdidamente por uma jo-
vem que ele havia visto num sonho. Doente de desejo, ele
revelou a Boanna, sua mãe, a causa da depressão. Boanna,
então, procurou pela moça por toda Irlanda, mas não a en-
controu. Dagda, pai de Angus, pediu ajuda a Böv, um dos reis
dos danaans e mestre dos mistérios e encantamentos. Böv se
pôs a procurar a mulher que tanta paixão causara em Angus e
depois de um ano de busca, finalmente a encontrou no Lago
Boca do Dragão. Angus foi encontrar Böv nesse local, e após
três dias de descanso, os dois se dirigiram à praia do lago,
onde passava uma procissão de 150 donzelas caminhando aos
pares, cada uma ligada à sua companheira por uma corrente
de ouro. Em meio à procissão, havia uma que se distinguia
pela altura e pelo dourado dos cabelos. Era a mulher do sonho,
que tanto enfeitiçara Angus. Böv contou que ela se chamava
Caer e que era filha de Ethal Anubal, um príncipe dos danaans
de Connacht. Böv também disse que para conquistá-la Angus
deveria buscar a ajuda de Ailell e Maev, rei e rainha mortais de
Connacht. E assim foi feito.
Angus e Dagda vão ao palácio de Ailell, onde são recebidos
com pompa e circunstância numa recepção que dura uma se-
mana inteira. Apenas no final das celebrações eles revelam o
motivo da visita. Ailell responde que não tem qualquer ascen-
dência sobre Ethal Anubal, mas que prontamente iria mandar
uma mensagem a ele, intermediando o pedido de casamento
Angus, numa pintura vitoriana (autor desconhecido)
de Angus a Caer. Mas Ethal recusou. No entanto, a paixão
doentia pode mover o mundo. E Angus, mergulhado nesse
de Esmertulitano, deuses gauleses relacionados ao romano estado emocional, estava disposto a conseguir a mão de Caer
Marte, deus da guerra. Na região de Tréveris foram erguidos por bem, ou por mal.
altares em honra a Marte Lenus e Ancamna, sugerindo que Dagda e Ailell formaram, então, uma coalizão militar e sitia-
essas divindades eram protetoras tribais que tinham cultos or- ram a fortaleza de Ethal Anubal. Mais uma vez, Angus pediu a
ganizados. Um achado arqueológico, porém, indica que, ao mão de Caer. Ethal Anubal, porém, disse que não podia ceder.
menos em Luxemburgo, a esposa de Lenus aparece como a — Ela é mais poderosa do que eu – explicou o rei espiritual
deusa Inciona (v.). Contudo, não parece haver qualquer cone- de Connacht. – Durante um ano, Caer vive como mulher e
xão entre Inciona e Ancamna. Provavelmente, Ancamna era no ano seguinte, como cisne. Logo, você a verá entre os 150
uma deusa das fontes e nascentes. cisnes do lago Boca do Dragão.
Ao ouvir Ethal Anubal, Dagda deu ordens para que o cerco
fosse levantado, e Angus partiu para o lago dos cisnes.
ANDRASTA A alvura das aves contrastava com o verde das algas que
Deusa guerreira. Aparece com a rainha Boudica. coloriam as águas da Boca do Dragão. Ao verem Angus se
aproximando da praia, os cisnes se ergueram numa revoada
tão branca que chegava a se confundir com as nuvens.
ANDRASTE — Caer! – chamou ele – venha e fale comigo!
Na mitologia Galesa era a deusa da vitória. Um dos pássaros mais belos e esguios do bando se aproxi-
mou dele, virando o pescoço para melhor enxergá-lo.
— Quem é você que conhece o meu nome?
ANEXTIOMARUS Angus, então, explicou sua história. Contou sobre o sonho,
Anextiomarus é um título celta de Apolo. O nome foi descober- sobre a longa busca de Böv, sobre o cerco que Dagda e Ailell
to numa inscrição romana-britânica de South Shields, Inglaterra, promoveram para conquistar Caer para o angustiado Angus.
e é uma variante do epíteto Anextlomarus, “Grande protetor”. Quando ele acabou sua narrativa, viu-se transformado em cis-

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Morgana é outra personagem arturiana que
conserva as características de deusas celtas,
neste caso de Morrigan (Morgan le Fay,
de Frederick Sandys, 1864)

70
ne. Era aquele o consentimento de Caer. Juntas, as duas aves identificada com deusa Victoria, cultuada na Britânia romana,
voaram em direção ao palácio às margens do rio Boyne, para que, por sua vez, teria atributos semelhantes à deusa grega
celebrar suas núpcias. Enquanto cruzavam o céu, entoavam Nike. Do mesmo modo que a deusa guerreira Artio (v.), seu
um canto de alegria tão encantador que pôs a dormir por três animal era o urso.
dias todas as criaturas que o ouviram. E durante esses três dias
de silêncio, celebraram suas núpcias.
ARTIO
Dea Artio, como era chamada entre os fiéis galo-romanos,
ANNAN era uma antiga deusa celta relacionada ao culto do urso, prati-
Na mitologia irlandesa, Annan era a Grande Deusa, mãe de cado em diversas regiões da Europa, da Trácia à Escandinávia,
todos os deuses. desde o período Paleolítico. Com efeito, o urso foi um impor-
tante animal totêmico e, como diversos animais, o deus urso
era adorado pelas culturas caçadoras.
ANNWN Há diversas evidências do culto da deusa Artio encontra-
Na mitologia britânica, é o “Outro Mundo”. das especialmente em Berna, na Suíça. Uma escultura em
bronze de Muri, próximo a essa cidade, mostra um urso
grande face a face com uma mulher sentada em uma cadei-
ANU ra, com uma pequena árvore atrás do urso. A mulher parece
Na mitologia Irlandesa era a Terra Mãe, a maior de todas as segurar um fruto no colo, talvez alimentando o urso. Na
deusas. Era a deusa da abundância, da fertilidade, da prosperi- base da escultura há uma inscrição votiva, onde se lê: “À
dade, do conforto; guardiã do gado e da saúde formando, por Deusa Artio , de Licinia Sabinilla”.
vezes, uma trindade com Badb e Macha. Eram-lhe acendidas O nome dessa deusa deriva da palavra gaulesa “artos”, isto
fogueiras no meio do Verão é, “urso”, assim como um dos mais famosos reis celtas do
período romano-britânico: Artur.

ARDDHU
Na mitologia galesa era o deus dos bosques, uma divindade

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cornuda das árvores e das coisas verdes que crescem na terra.
Equivalente a Cernunos.

ARVERNUS
Título do Mercúrio, padroeiro dos arvernos, tribo gaulesa da
região noroeste da atual França, famosa por ter lutado con-
tra Júlio César. Havia no território dos arvernos um importan-
te santuário a esse deus, que também era conhecido como
Arvernorix, isto é, “rei dos Arvernos”.

ANCASTA
Deusa cultuada na província romana da Britânia conhecida
de uma única inscrição dedicatória encontrada em Bitterne,
Inglaterra. Como outras inscrições votivas, um fiel a agradece
por uma graça alcançada e dedica uma placa comemorativa à
deusa. Trata-se de uma divindade local, provavelmente rela-
cionada ao rio Itchen que corre nas vizinhanças da cidade. O
nome contém uma raiz relacionada à palavra “ligeiro” – indí-
cio que corrobora sua relação com o rio, tornando-a, possivel-
mente, uma divindade semelhante aos deuses fluviais gregos,
indianos e de outras mitologias.

ANDARTA
Deusa da guerra cultuada no Sul da Gália. Foram encontra-
das Inscrições dedicadas a ela em diversas localidades, tan-
to na Suíça como na França, indicando que a difusão de seu
culto abrangia uma região considerável. De acordo com Dião
Cássio, autor romano que escreveu entre o final do século 2 e Réplica de uma estatueta de Aveta,
o começo do 3 d.C., Andarta se relacionava à deusa Andate, ou de uma deusa mãe semelhante

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estatuetas de Aveta nas quais a deusa é retratada com crianças
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no peito, filhotes de cães, ou cestas de frutas – enfatizando seu
caráter maternal. Em Trier havia um templo dedicado à Aveta.

BADB
Na mitologia irlandesa Badb era uma das formas gigantes
de Morrigan. Ela era suficientemente alta para colocar um pé
em cada lado de um rio. Em Gales era conhecida como Cauth
Bodva. Deusa da guerra e esposa de Net, um deus da guerra.
Era irmã de Macha, a Morrigu, e de Anu. Aspecto maternal da
deusa tripla, na Irlanda. Associada ao caldeirão, aos corvos e
às gralhas. Vida, sabedoria, inspiração, iluminação.

BALOR
Na mitologia irlandesa, era um gigante Irlandês de “mau
olho”; tinha as pálpebras caídas sobre os olhos e era necessá-
rio um forcado para as erguer. O seu congénere gaulês cha-
mava-se Yspaddaden.

BALOR
Rei demônio, deus da morte. Ele governava os Fomori, de-
mônios que viviam na impenetrável escuridão das profunde-
zas do mar e em lagos e poços negros. Foi morto pelo seu filho
Lug com um tiro de estilingue.

Gawain, personagem do ciclo arturiano, possui


atributos de Gualchmay, divindade solar celta (Sir
Gawain e o Cavaleiro Verde, em iluminura do século 14)
BANBA
Uma das filhas de Fiachna pertencente ao trio de deusas
que personificam o Espírito da Irlanda, que usava a magia para
repelir os invasores.
ATEPOMARUS
Deus da cura também associado pela população galo-roma-
na a Apolo. Algumas inscrições sobreviventes do período de BANSHEE
ocupação da Gália pelos romanos, quando a fusão dos dois A banshee, de, ban [bean], “fada”, e e shee [sidhe], “mu-
povos deu origem à cultura galo-romana, referem-se a esse lher” é uma fada que segue os velhos clãs gaélicos e cujo
deus como Apolo Atepomarus. choro se faz ouvir da morte de algum membro dessas antigas
Em alguns dos santuários de Atepomarus, onde os fiéis iam famílias. Os camponeses dizem que o keen, o compungido
rezar pela cura de suas doenças, foram encontradas pequenas lamento com o qual as carpideiras do interior da Irlanda tra-
estatuetas de cavalos, os quais eram associados ao deus. De dicionalmente enchem os funerais do interior do país, é uma
fato, a raiz “epo” se refere à palavra “cavalo”, como no nome imitação do choro da banshee. Quando se ouve o lamento de
da deusa Épona (v.). Com efeito, um dos epítetos conhecidos mais de uma dessas prenunciadoras da morte, é sinal de che-
de Atepomarus é “Grande Cavaleiro”. gou a hora de um santo ou de um grande homem.
Às vezes as banshees acompanham a coach-a-bower,
uma enorme carruagem negra, com um caixão no alto, pu-
AUFANIAE xada por cavalos sem cabeça e tendo um dullahan como co-
As Aufaniae eram as deusas mães cultuadas por toda a cheiro. Os dullahans são fantasmas sem cabeça, entidades
Europa celta, do Reno à Irlanda. No entanto, apesar da im- que povoam as lendas e as crônicas da Irlanda. Uma dessas
portância dessas divindades, há pouca informação sobre elas. histórias dá conta de que, em 1807, dois sentinelas estacio-
São conhecidas apenas por inscrições simbólicas encontradas nados nas cercanias do Parque Saint James morreram de pa-
principalmente na região alemã do rio Reno. vor medo, pois o lugar era assombrado por uma dullahan.
Os moradores do local sabiam que toda meia-noite uma
mulher nua da cintura para cima e sem cabeça passeava
AVETA pelo parque. O caso parece ter sido levado a sério, pois
Aveta, chamada pelos romanos de Dea Aveta, era uma deu- as sentinelas passaram a ser colocadas em outro local. Os
sa mãe também associada à primavera. Em Toullon-sur-Allier, dullahans remontam a um antigo costume nórdico, levado,
na França, e em Trier, na atual Alemanha, foram encontradas provavelmente para a Irlanda pelos invasores vikings. Era

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Beleno, porém, não era o único deus dos celtas que os inva-
Banshee, por sores romanos relacionavam a Apolo, sendo incorporados ao
PhilippeSemeri nome desse deus estrangeiro na forma de epítetos. Os princi-
pais deuses galo-romanos ou brito-romanos rela-
cionados a Apolo eram Grano, Brovo, Mapono e Moristago.
Em algumas das imagens descobertas desse deus, Beleno é
representado acompanhado de uma mulher, provavelmente a
deusa Belisama.
Os estudos etimológicos indicam que o festival de Beltane,
celebrado na Escócia, Inglaterra e Irlanda, pode estar conec-
tado a Beleno, uma vez que deriva da mesma raiz celta “bel”,
isto é, “brilhante”.

BELISAMA
Deusa ligada aos lagos e rios, ao fogo, às artes e à luz cul-
tuada na Gália e na Britânia. Os invasores romanos a identi-
ficaram com a sua Minerva, que, por sua vez, corresponde à
Atena grega. Era a consorte de Beleno e está relacionada a
outra importante deusa gaulesa, Brígida. Belisma significaria
“luminosidade do verão”.

BOANN
Na mitologia irlandesa, era deusa da água e da fertilidade.
O seu animal sagrado era a vaca branca. Era a deusa do rio
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Boyne, mãe de Angus Mac Og por parte do Dagda.

BRÂN
Além de Mananan, o deus do mar teve dois outros filhos:
comum entre os escandinavos decepar a cabeça dos cadá- Bron ou Brân (Bron é irlandês e Brân, gaulês). Brân era um
veres, para enfraquecer seus fantasmas. gigante tão grande que nenhum palácio ou navio tinha capa-
cidade de abrigá-lo; atravessou a vau o mar da Irlanda para
combater e destruir um exército de invasores. Numa de suas
BANELAE aventuras, deitou-se através de um rio, e seu corpo gigantesco
No folclore gaélico, é um espírito feminino cujos lamentos serviu de ponte para seu exército passar. Um dos atributos de
no lado de fora de uma casa prenunciam a morte de um dos Brân era um caldeirão mágico com a qual ressuscitava os mor-
seus habitantes.
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BEAN-SIDHE
Na mitologia celta cada deusa era uma Bean-Sidhe, uma
“Mulher do Monte”.

BELENO, BELENUS
Bel (Belenos) era o deus “Brilhante”, deus do sol e do fogo.
Era estreitamente ligado aos Druidas. Vê-se o seu nome no
festival de Beltane, o gado passava pelas fogueiras para obter
purificação e fertilidade. Associado à ciência, à cura, às fontes
quentes, ao fogo, ao sucesso, à prosperidade, à purificação, às
colheitas, à vegetação, à fertilidade e ao gado.
Um dos principais deuses celtas, cultuado na Gália, Britânia
e nas regiões célticas da Áustria e Espanha, com templos es-
palhados desde o nordeste da Itália até a Inglaterra. Era um
deus solar, semelhante ao Apolo greco-romano. Embora a eti-
mologia do nome seja obscura, os estudiosos sugerem que Vaso votivo dedicado a Beleno exposto no Museu de
signifique “o único luminoso”. História de Marselha, França (sem data, período romano)

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tos. Harpista e músico, essa contrapartida celta do grego Orfeu
o protetor dos bardos. Numa luta para defender seus tesouros BRÍGIDA, BRIGID OU BRIGIT
mágicos, Brân foi ferido por uma flecha envenenada. Para evitar Uma das mais populares e conhecidas deusa celtas, divinda-
a dor e a agoniar, ordenou que lhe cortassem a cabeça. No en- de da terra, do fogo e das fontes cultuada em todo o mundo
tanto, sua cabeça decepada continuou a dar conselhos durante céltico, especialmente na Irlanda que ainda conserva informa-
87 anos. A cabeça cortada de Brân, voltada para o sul, prevenia ções importantes a seu respeito. Era, de fato, uma deusa trí-
a ilha de qualquer invasão. O lendário rei Artur lançou mão do plice, que incorporava os aspectos da poetisa, da médica e da
poder da cabeça de Brân. Antes de empreender a conquista ferreira, sendo, portanto, uma deusa civilizatória comparável
da Saxônia, ele mandou exumá-la, o que garantiu seu sucesso. à Atena grega. Era, por conta desses aspectos relacionados ao
fogo, chamada de deusa da Tríplice Chama. Por ser a prove-
dora do “Fogo da Inspiração” e sua conexão com as macieiras
BRICTA, BRIXTA e carvalhos, Brigid era a padroeira dos Druidas. Com esse atri-
Deusa gaulesa que era uma consorte do deus aquático buto, era chamada de “Deusa dos Bardos”, correspondendo
Luxóvio. Para alguns pesquisadores, Bricta pode ser um título às Musas gregas que inspiram os homens.
atribuído à deusa Sirona. Desse modo, segundo essa corren- O festival dessa deusa ainda é celebrado em ou em torno do
te, Bricta não seria uma deusa separada, mas um epíteto de dia 1 de fevereiro, o meio do inverno no hemisfério Norte. Nessa
Sirona. Em termos etimológicos, o nome Bricta deriva do gau- época do ano, Brigid personifica uma noiva, aspecto de virgem
lês “brixtom” ou “brixta”, que quer dizer “mágica”. ou donzela e é a protetora das mulheres que estão grávidas.
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Estatueta de deusa celta, provavelmente Brigid, A Santa Brígida cristã é a mesma deusa
caracterizada com os atributos da deusa civilizatória Brigit celta (vital de Santa Brígida
romana Minerva (século1 d.C.) em capela no País de Gales)

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A figura de tipo Cernuno


no caldeirão Gundestrup

O caldeirão de Gundestrup,
encontrado na Jutlândia,
Dinamarca

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Seu nome significa “Luminosa”. É uma Deusa tríplice do
fogo da inspiração, da ferraria, da poesia, da cura e da adi- BUXENO, BUXENUS
vinhação. Ela se confunde com Dana, não só em atributos, Buxenus era um dos epítetos que o deus romano Marte re-
mas nas próprias características. Brigid, como Dana, era filha cebeu na Gália, associando-se, desse modo, a um deus local
de Dagda, o Bom Deus, e seu consorte era Bres, o Senhor da desconhecido. De fato, Buxeno aparece apenas em uma única
Morte. Dessa união nasceu Rúadan, o qual morreu em com- inscrição encontrada na região de Avignon, na atual França.
bate na Segunda Batalha de Moytura. Ao encontrá-lo sem
vida, Brigid lamentou sua morte de uma forma que iniciou
a tradição do keen, preservada até meados do século 20 nas CAILLECH
áreas rurais da Irlanda. O keen é o característicos lamento das Na mitologia, escocesa era a Grande Mãe no seu aspecto
carpideiras que homenageiam um membro da família ou da destruidor, denominada de “A Velada”. Outro nome é Scota,
comunidade que morreu. que deriva de Scotland.
Brigid também era uma deusa ligada ao ciclo anual. Ela pre-
sidia o começo da primavera, que, no ciclo dos antigos festi-
vais do fogo, começava na véspera de primeiro de fevereiro, CAMULOS, CAMULOS
Imbolc, ou o Dia de Brigid. A palavra Imbolc significa literal- Outro deus guerreiro celta que os romanos identificaram
mente “dentro do ventre”. A semente que foi plantada no com Marte. Cultuado na Grã-Bretanha, na Gália e na Hispânia,
Solstício de Inverno está se desenvolvendo. como os romanos chamavam a atual Espanha e Portugal, apa-
Outro aspecto de Brigid é o da decadência. Uma lenda rece em inscrições da época da ocupação de Roma nessas re-
escocesa, relaciona Brigid com Caileach, também chama- giões como Marte-Camulos. Em algumas de suas representa-
da de Carline, ou Mag-Moullach, a deusa que envelhe- ções era retratado com uma cabeça de carneiro.
ceu durante o ciclo anual. Estava ligada às trevas e ao frio
do inverno e assumia a direção no ciclo das estações em
Samhaim, a véspera do primeiro de novembro. Ela portava CERNUNO, CERNUNOS
o bastão negro do inverno e castigava a terra com frias for- Uma das principais divindades celtas, o “deus cornudo”,
ças contrativas que ressecavam a vegetação. Com o fim do associado às florestas e à natureza, tido como “Senhor dos
inverno, Carline passava o bastão do poder para Brigid, em Animais” ou o “Senhor das Coisas Selvagens”, deus pacífico
cujas mãos se tornava branco e promovia a germinação das da natureza, da virilidade e da fertilidade, também era asso-
sementes recém plantadas. ciado ao bem-estar material. O deus cornudo também remete
Além de estar diretamente ligada ao elemento fogo e ao às estações do ano – um ciclo anual da vida – e, desse modo,
ciclo das estações, Brigid associa-se também à água e à cura. também à morte e renascimento.
Muitas fontes da Irlanda são dedicadas a ela. Os baixos-relevos de Cernunos que foram descobertos no
Durante a conversão ao cristianismo, Brigid se tornou Santa mundo celta-romano o associam a diversas divindades de
Brígida, por volta de meados do século 5. Em algumas histó- Roma, Júpiter, Vulcano e Castor e Pólux. Do mesmo modo, é
rias, foi o próprio São Patrício, o Apóstolo da Irlanda, que a vinculado a outros deuses gauleses, como Esus (v.), Smertrios
batizou. Uma tradição cristã irlandesa sustenta que Brigid foi (v.), e Tarvos Trigaranus. Entre os celtiberos, as tribos celtas da
parteira de Santa Maria e ama do menino Jesus – certamente Ibéria, Cernunos era representado com dois rostos e dois pe-
um resquício do seu atributo como deusa protetora do parto. quenos chifres, símbolos de força, vigor e fecundidade.

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Ceridwen (1910), por


Christopher Williams

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A melhor imagem conhecida aparece no caldeirão

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Gundestrup, do século 1 a.C., encontrado na Jutlândia. Como
outros importantes deuses celtas, Cernuno pode ter sido in-
corporado ao cristianismo. Assim, seus atributos foram incor-
porados por São Ciarán de Saighir, um dos Doze Apóstolos da
Irlanda. Ainda hoje, em diversas vertentes do neopaganismo,
o deus cornudo é reverenciado.

CERIDWEN
Deusa da morte e da fertilidade, os ecos mais audíveis so-
bre Ceridwen vêm do País de Gales, que melhor preservou
suas lendas. Era uma feiticeira, mãe do poeta Taliesin e de
Morfran, um dos cavaleiros do rei Artur, na tradição galesa.
De acordo com o mito, Morfran era terrivelmente feio, e, para
compensar, Ceridwen quis torná-lo sábio. Ela tinha um caldei-
rão mágico onde preparou uma poção que dava a sabedoria a
quem dela tomasse. Contudo, apenas as três primeiras gotas
da poção preparada por um ano e um dia davam sabedoria. O
resto era um veneno letal. Mas as três primeiras gotas caíram
nas mãos do menino encarregado de mexer a poção, Gwion,
e, como estavam quentes, o garoto levou a mão à boca para
aliviar a dor e instantaneamente ficou sábio.
Enfurecida por ter perdido todo o trabalho empregado na
preparação da poção, Ceridwen quis se vingar do menino.
Depois de perseguir Gwion, transformando-se, ele e ela, em
diversos animais para atacar e fugir, com Ceridwen meta-
morfoseando-se sempre no animal mais agressivo, conseguiu Cordelia inspirou a personagem de mesmo nome de
alcança-lo quando ele se transformou num grão de milho e a William Shakespeare em sua obra Rei Lear (Cordelia,
feiticeira o comeu depois de virar uma galinha. Ceridwen fi- de William Frederick Yeames, 1888)
cou, então, grávida. Sabendo era Gwion, resolveu que iria ma-
tar a criança ao nascer. No entanto, quando o menino nasceu,
era tão bonito que ela não conseguiu dar fim a ele. Tampouco COCIDIO, COCIDIUS
ficou com a criança: ela jogou-a no mar dentro de um saco Divindade cultuada no Sul da província da Britânia relacio-
de pele de foca. A criança não morreu e foi resgatada numa nado pelos romanos a Marte e a Silvano, deus das florestas,
praia britânica por um príncipe celta chamado Elffin. A criança dos arvoredos e dos campos selvagens, chamado pelos gregos
conservou o talento de Gwion e, quando adulta, veio a ser o de Pan. Além de ser adorado pelas tribos bretãs, tinha grande
bardo Taliesin. número de fiéis entre os soldados romanos de baixa patente.
No neopaganismo, Ceridwen e seu caldeirão simbolizam o O nome pode estar relacionado à palavra bretã “vermelho”,
princípio feminino. mas é mais provável que esta interpretação seja apenas uma ver-
são latina da palavra “bosque” ou “floresta” – o que faz mais
sentido, em se tratando de um deus dos bosques como Silvano.
CICOLUIS Havia um templo dedicado a Fanum Cocidius na Inglaterra
Cicoluis é outro deus cultuado em grande parte do mun- romana. Além disso, são conhecidas diversas inscrições dedi-
do celta, da Gália à Irlanda. Em gaulês, seu nome significa cadas a esse deus. Uma delas se refere a ele como Cocidius
algo como “Grande-com peito”, uma referência à sua força. Vernostonus, isto é, Cocidius do amieiro. De fato, um dos
Por conta disto, na religião galo-romana, Cicolluis é um dos aspectos mais importantes da religião dos celtas se refere ao
epítetos do deus da guerra de Roma Marte. Em algumas ins- culto das árvores.
crições votivas, Cicoluis tem como consorte Belona, personi- No Muro de Adriano, que separava a Inglaterra romana do
ficação romana da guerra. país dos pictos (uma das etnias escocesas de então), há uma
Com relação à mitologia irlandesa, Cicoluis também pode das pelo menos nove representações conhecidas de Cocidio,
ser identificado como Cichol ou Cíocal Gricenchos, o líder como cerca de 25 inscrições dedicadas a ele.
mais primitivo dos Fomorianos. De acordo com o ciclo ir-
landês, Cichol chegou àquela ilha com cinquenta homens e
cinquenta mulheres cem anos depois da grande inundação CONAL CAERNACH
– uma possível referência ao dilúvio bíblico. Após se esta- Mítico herói do reino irlandês de Uladh. Filho do poeta
belecerem na Irlanda e viverem em paz durante seis ou sete Amhairghin e da filha do druida Cathbad, o que lhe dava uma
gerações, foram derrotados pelos partolonianos, povo que situação privilegiada na sociedade do reino. Era irmão e tutor
deriva seu nome do líder Partholón. de Cú Chulainn, herói de Ulster.

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Depois de acabar a partida, Setanta se pôs a caminho, le-
CONCHOBAR MAC NESSA vando consigo seu taco e sua bola de couro. Mas quando o
Rei do poderoso reino de Uladh (Ulster), no norte da Irlanda. menino finalmente chegou a casa do ferreiro, a festa já ti-
Representa o caráter sagrado da realeza irlandesa e personifi- nha começado. As gaitas de foles tocavam alucinadamente e
cação do reino. as risadas na casa ecoavam por todo o lugar. Ninguém ouviu
Setanta chamar, do lado de fora da cerca. Cansado de espe-
rar e certo de que se dependesse de alguém não entraria na
CONDATIS festa, o menino resolveu pular o portão, o que fez com faci-
A divindade aquática Condatis, cujo nome significa “en- lidade. O que ele não esperava é que, do outro lado, estava
contro de corpos d´água”, era cultuada na Britânia e, em me- o wolfhound, prestes a atacá-lo. O cachorro começou a latir
nor grau, também na Gália. Esse deus era associado às conflu- mais alto do que a música e as risadas, atraindo a atenção de
ências de rios, especialmente a do Tyne com o Tees, no Norte Culann. Quando viu seu dono surgir na porta da casa, o cão
da Inglaterra. Propiciava a cura e, apesar desses aspectos, foi atacou Setanta. Mas o garoto foi mais rápido. Arremessou sua
associado pelos romanos com Marte, o qual, por ser o deus da bola com toda a força na garganta escancarada do cachorro
guerra dos soldados invasores, relacionava-se com a proteção. e, enquanto este tentava se recuperar do golpe, Setanta des-
feriu várias pancadas com seu taco na cabeça do animal. Tudo
aconteceu muito rápido, e quando Culann finalmente chegou
CORDELIA junto ao menino, seu cão de guarda já estava morto. Conor
Na mitologia galesa, era filha de Llyr. Ela tem dois amantes, chegou logo atrás, preocupado ao ver seu sobrinho coberto
Gwynn e Gwythr, que lutam por ela no dia 1 de maio de cada de sangue. Logo se tranquilizou. Culann também tinha ima-
ano e que continuarão a lutar até ao dia do juízo, quando um ginado o pior e, apesar de ter perdido um animal precioso,
deles será vitorioso e casará com ela. estava aliviado porque Setanta havia sobrevivido ao ataque.
Estava, porém, sem um cão de guarda. O menino se descul-
pou por ter matado o cachorro e pra compensar a perda, até
CREIDDYLAD que ele conseguisse um novo wolfhound, ele se ofereceu para
Na mitologia galesa era filha do deus do mar Llyr. Ligada a ficar o lugar do animal guardando a casa do ferreiro. Conor
Beltane e chamada muitas vezes Rainha de Maio. Era deusa Mac Nessa não aprovou a ideia do sobrinho, mas não podia
das flores estivais e do Amor. fazer nada para dissuadi-lo. Afinal, Setanta já havia dado sua

CUCULAIN; CUCHULAIN

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Na mitologia irlandesa, apelido de Setanta, o guerreiro fi-
lho de Dechtire e Lugh. Adquiriu este nome quando matou o
cão de guarda do ferreiro Culain e concordou em guardar os
campos de Culain durante um ano enquanto um substituto era
treinado para o trabalho.
As aventuras de Cuchulain são a epopeia central do ci-
clo heroico do Ulster, a região norte da Irlanda, cuja capital
é Belfast. Ele representa o ideal do guerreiro irlandês e é,
na verdade, mais um espelho dessa realidade do que inspi-
ração para os soldados celtas. Os irlandeses sempre foram
tremendamente guerreiros, construindo uma história pontu-
ada de atos de heroísmo. Jamais se entregaram à dominação
estrangeira. Isso foi visto durante o domínio inglês, quando
os irlandeses resistiram sempre até, no século 20, finalmente
conquistar a independência da maior parte da ilha. No Ulster,
que continuou a fazer parte do Reino Unido, os nativos pros-
seguiram resistindo até recentemente.
Setanta recebeu seu apelido por conta de uma famosa aven-
tura. Quando vivia com seu tio, o rei Conor, o rei Culann con-
vidou o rei Conor e Setanta para um banquete em sua casa.
No dia da festa, quando Conor saiu do forte Navan para ir a
casa de Culann, Setanta ainda estava jogando taco com os
outros meninos. Conor o chamou para acompanhá-lo, mas
Setanta protestou. Estavam ganhando o jogo, e se ele saísse,
seu time ficaria em desvantagem. Os outros meninos juntaram
seus protestos aos do sobrinho do rei, e Conor decidiu que
Setanta poderia continuar o jogo. Quando acabasse, ele po-
deria ir sozinho à casa de Culann. E assim foi feito. Cuchulain mata o cão de Culann

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Cuchulain em seu carro de guerra, do ilustrador americano Joseph Christian Leyendecker

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palavra – mesmo sendo aparentemente um garotinho, ele era servida num fosso. Dagda devorou o alimento com uma colher
membro do Macra. Conor, porém, não evitou a ironia e ape- grande o bastante para conter um homem e uma mulher.
lidou o sobrinho de Cuchulain, isto é, o Cão de Culann. O Dagda também é o mestre da música, uma arte vista pe-
apelido pegou. Nunca mais ninguém chamou Setanta por seu los celtas como capaz de invocar magia. Sua harpa voa para
antigo nome. Foi como Cuchulain que ele se tornou conhecido ele quando chamada. O “Deus Eficaz”, “Senhor da Ciência
como um dos maiores heróis da Irlanda. Completa” era capaz de tudo. Onipotente, poderoso mago, te-
mível guerreiro, hábil artífice, dono do caldeirão do rejuvenes-
cimento e abundância, o qual só cozinha o alimento do bravo
CÚ ROI e que nunca se esvazia. Entre os atributos de Dagda está o de
Herói mitológico irlandês do Ciclo do Uladh. Habitante do chamar o inverno e o verão, tocando sua harpa encantada.
mundo de além-túmulo, onde possui uma fortaleza acessível
só no Samhain e cuja entrada é capaz de ocultar ao resto dos
mortais. É capaz de transformar-se em sombra, monstro ou DAMONA
peixe. É um juiz de grande prestígio entre os heróis do Uladh. Deusa cultuada na Gália como consorte ora de Apolo Borvo
ora de Apolo Moritasgo, dois deuses associados pelos roma-
nos ao deus Apolo e que passaram, por isso, a ser epítetos
DAGDA dessa divindade. Contudo, apesar das semelhanças, os deuses
Dagda, ou Dagda Mor, era o pai e líder do Povo de Dana, se- celtas não eram exatamente iguais às suas possíveis contrapar-
nhor da vida e da morte, dispensador de abundância. Durante as tidas romanas, tendo características particulares que remetem
duas Batalhas de Moytura, os golpes que desferia abatiam filei- à sua cultura original.
ras inteiras do inimigo. Sua grandiosidade e força são retratadas Damona é uma deusa da fertilidade e abundância, atributos
no episódio da visita que fez aos fomorianos, para lhes oferecer associados à vaca. Seu nome poderia, de acordo com alguns
paz. Estes lhe ofereceram uma imensa quantidade de mingau, autores, ser interpretado como “Vaca Divina”. Às vezes é re-

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Paisagem irlandesa, por Robert Henri (1913): pouco mudou desde os tempos dos celtas

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lacionada à deusa irlandesa Boand, à qual possui os mesmos

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atributos. Em alguns locais da Gália, Damona era a patrona da
primavera quente.

DANA
Uma antiga lenda conta que Dana nasceu em um Clã de
Dançarinos que viviam ao longo do rio Alu. Seu nome foi
escolhido pela avó, Kaila, Sacerdotisa do Clã. Dana sonhou
com uma barca carregando seu povo por mares e rios até
chegarem em uma ilha, onde deveria construir um Templo,
para que a paz e a abundância fossem asseguradas. Ao des-
pertar, Dana relatou seu sonho ao conselho e a grande via-
gem começou então a ser planejada. Foi assim, após uma
longa viagem, que o Povo da Deusa Dana, os Tuatha De
Danann, chegou à Irlanda.
Dana é a mais importante deusa dos danaans, chamada de
“Mãe dos Deuses Irlandeses”. Era filha de Dagda e, como ele,
associada à fertilidade, prosperidade, abundância e às bênçãos
da vida. Ela se confunde, ou é idêntica, com a deusa Brigid.
Dana era esposa do deus Bile, chamado pelos romanos de Dis
Pater, com quem tinha três filhos, Brian, Iuchar e Iucharba. No
entanto, na maneira caracteristicamente celta de conceber as
divindades como tríades – um elemento também encontrado
no “Pai, Filho e Espírito Santo” do cristianismo – os três irmãos
representavam uma única força, a da vitória. Sua importância
no panteão celta está no fato de as fadas, isto é, os Tuatha De
Danann, serem suas descendentes.

DOMNU DOMNU
Mitologia Galesa: rainha dos Céus, deusa do mar e do ar.
Por vezes chamada de deusa outras vezes de deus.

DON A Elaine arturiana, versão medieval


Era a Deusa Mãe, o equivalente à deusa Irlandesa Danu. da deusa celta, por Arthur Rackham (1917)

DONN ELAINE
Na mitologia irlandesa, Don governava a Terra dos Mortos. Elaine (Lily-Maid) era a deusa virgem da beleza e da Lua.
Controlava os elementos e era a deusa da eloquência.

EPONA
DRUANTINA Deusa da fertilidade, protetora dos cavalos, burros e mulas.
Na mitologia britânica, Druantina era a deusa druida do Com efeito, seu nome significa “Grande Égua”. Era represen-
nascimento, sabedoria, morte e metempsicose. É a mãe do tada com cornucópias, um símbolo da abundância, orelhas em
alfabeto irlandês das árvores. forma de grãos de cereal e cercada de potros. Alguns autores
acreditam que a deusa e seus cavalos conduziam as almas dos
mortais depois da vida terrena. Ao contrário das outras di-
DWYN vindades celtas, Epona era a única divindade céltica cultuada
Na mitologia galesa era a deusa do amor, também conheci- na própria Roma. Nessa cidade, sua festa era celebrada com
da por Dwynwen. um banquete em 18 de dezembro e era invocada no culto
imperial, instituído por Augusto no primeiro século d.C., como
Epona Augusta ou Epona Regina.
DYLAN De fato, o culto a essa deusa celta acabou se difundindo
Deus da escuridão, um dos filhos gémeos de Gwydion em todo o Império romano, sendo instituído entre diferentes
e Arianrhod. Era um deus do mar. O seu símbolo era um povos. Uma inscrição dedicada a Epona de Mainz, Alemanha,
peixe prateado. identifica o devoto como sírio.

81
Alegoria da Cornucópia, semelhante
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à de Epona, do gravurista Cesare


Rippa (1555 – 1622)

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Epona e seus cavalos, de Köngen,
Alemanha (c. de 200 a.C.)

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Alguns mitólogos associam Epona à deusa grega Deméter,
deusa dos grãos e da terra cultivada, correspondente à Ceres
romana. De fato, no período arcaico, Deméter era venerada
como uma égua.
Os romanos, germânicos, ibéricos e, com menor intensidade,
os gregos, acabaram incluindo Epona em seu panteão. A deusa
era representada sempre a cavalo, montada de lado, como as
amazonas dos séculos 18 e 19; na cabeça traz um diadema;
ao seu lado vê-se uma jumenta ou um potro, que, às vezes, é
alimentado pela deusa. Um antigo calendário encontrado em
Guidizzolo, Itália, indica que sua festa era em 18 de dezembro.

ESUS
O deus gaulês Esus é conhecido apenas por conta duas es-
tátuas é uma única menção feita pelo poeta romano nasci-
do na Hispânia Marco Aneu Lucano (39 – 65 d.C.). Nessas
duas estátuas, Esus aparece cortando ramos de árvores com
seu machado. Numa delas, o Pilar dos Marineiros, é retrata-
do juntamente com deuses romanos Júpiter, Vulcano e Tarvos
Trigaranus – o touro com três grous, uma figura divina que
aparece apenas neste importante baixo-relevo.
Em seu livro Farsália, Lucano menciona os sacrifícios de san-
gue realizados em louvor à tríade de deuses celtas: Tutátis (v.),
Esus e Taranis. As vítimas humanas sacrificadas para Esus eram
amarradas a uma árvore e espancadas até a morte.
Uma citação feita no livro De medicamentis, um compên-
dio farmacológico do médico gaulês Marcellus de Bordeaux
escrito na virada dos séculos 4 e 5 d.C., descreve um talis-
mã mágico usado no processo de cura pelos médicos galo-
-romanos empregado para invocar o auxílio de Esus na cura Esus no Pilar dos Marinheiros, que retrata
de problema de garganta. alguns deuses galo-romanos

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ETHLIN tume era presidido pelas fadas, as quais comemoravam três
grandes festas: a Véspera de Maio, a Véspera do Verão e a
Mitologia irlandesa: filha de Balor. Balor, aterrorizado pela
Véspera de Novembro.
profecia de que seria morto pelo neto, trancou Ethlin numa
Na Véspera de Maio, elas correm de um lado para ou-
torre de vidro e colocou guardas a vigiá-la. Contudo, Cian dis-
tro em busca das melhores espigas e flores. Na Véspera do
farçado de mulher, entrou na torre e uniu-se a ela.
Verão, que depois foi celebrada pelos cristãos como festa de
São João, vez ou outra, o Bom Povo raptava alguns mortais
para viver com eles. Na Véspera de Novembro, isto é, o ou-
ETHNIU tono, esses seres ficam sombrios e dançam com os fantasmas
Na mitologia irlandesa era filha do fomoriano Balor-do-
na noite de Halloween. Quando estão bravos, podem pa-
MauOlhado. Desposou Cian, o filho de Diancecht.
ralisar gado e pessoas com seus dardos, mas quando estão
Evnissyen Evnissyen: Na mitologia Galesa era um gigante
contentes cantam a música mágica que muitos bardos repro-
meio irmão de Bran. O seu nome significa “Amante da Luta”.
duzem em sua tradição.
Normalmente, as fadas vivem em grupo. As lendas falam
de castelos de fadas, poços e fontes onde elas se reúnem para
FADAS cantar, dançar e celebrar. O ciclo mítico irlandês coloca o Bom
O folclore tem as fadas como criaturas sensíveis, que se
Povo, o Tuatha De Danann, como uma sociedade vivendo
ofendem facilmente e que pagam a bondade com bondade e
numa ilha mágica além do mar, a Oeste da Irlanda, ou mesmo
a maldade com maldade. São seres caprichosos e nem sempre
na própria ilha, mas num plano invisível. Entretanto, há fadas
pequenos, como se costuma imaginá-los. Podem assumir o ta-
solitárias, como os leprecaus, cluricauns e far darrigs.
manho ou a forma que quiserem. Suas principais ocupações
O leprecau é o sapateiro, do irlandês leith brog, isto é, “sa-
são dançar, brigar, fazer amor e tocar música. Entre eles, o
pateiro de um sapato”, pois ele sempre é visto trabalhando
mais habilidoso é o leprecaun, ou sapateiro. Ele está sempre
em um único sapato. Sua figura é a de um velho vestido de
no final do arco-íris com um pote cheio de ouro; quem o en-
verde invariavelmente disposto a pregar uma peça em quem
contrar terá riqueza e felicidade.
quer que seja. Trabalhador e sovina acumulou um tesouro que
Os celtas celebravam algumas datas relacionadas aos ciclos
esconde no final do arco-íris.
anuais, principalmente os solstícios de verão e inverno. O cos-
O cluricaun, representado como um velho ansioso para se di-
vertir por meio de outros, é muito parecido com o leprecau. No
entanto, em lugar de trabalhar, ele prefere se embebedar. Por
Shutterstock.com

isso, dizem os camponeses irlandeses, ele é sempre encontrado


nas adegas das casas. O cluricaun aparece apenas em histórias
do sul da Irlanda e é praticamente desconhecido no Ulster.
O far darrig, isto é, “homem vermelho”, é a versão irlan-
desa do gnomo dos germânicos e escandinavos. Ele tem esse
nome por conta do gorro vermelho que usa. A única ocupação
do far darrig é a diversão, que consegue, principalmente, im-
portunando os humanos.
O fear-gorta, “Homem da Fome”, é uma fada solitária que
percorre os campos na época de escassez, quando a fome
grassava (hoje a Irlanda deixou seu passado de pobreza para
trás) através dos campos e das casas. Nessas ocasiões, o fear-
-gorta costuma andar pelas estradas, personificado num men-
digo, pedindo esmola. Quem se apieda dele e lhe dá alguma
coisa garante boa sorte.
A leanhaun shee, que poderia ser traduzido como mulher-
-encantada, é uma fada solitária que busca o amor dos mor-
tais. Se eles recusam sua oferta, ela se torna escrava deles. Se,
porém, eles cedem à sedução da leanhaun shee, tornam-se
escravos da mulher-encantada e só podem escapar se con-
seguirem algum outro homem que fique no seu lugar. Nem
mesmo a morte permite que os amantes-escravos da leanhaun
shee escapem, pois ela continua a exercer domínio sobre suas
almas. A fada consome suas vidas, exaurindo-os. No entan-
to, os amantes gozam da luxuria que a leanhaun shee lhes
proporciona. Além disso, ela é uma espécie de versão gaélica
das musas, uma vez que inspira aqueles a quem persegue.
Segundo os antigos, os poetas morrem jovens justamente por-
que a ciumenta leanhaun shee não deixa que eles vivam muito
tempo nesse mundo.

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Um dia, Finn as letras de oghan, a escrita celta, dentro de
FAGUS casa quando ouviu um grito. Saiu correndo e viu Egais, muito
Fagus foi um deus celta relacionado, provavelmente, à ve- agitado, puxando um grande peixe que brilhava à luz do sol.
getação. As únicas referências sobre essa divindade são quatro Suas escamas reluziam como gotas de orvalho refletidas pelo
inscrições encontradas nos Pireneus, a cadeia de montanhas sol do amanhecer. Era o salmão do conhecimento.
que separa a Espanha da França. Fagus, em latim, significa Naquela tarde o poeta iria receber alguns amigos, por isso
faia. Apesar da pouca informação a respeito desse deus, pode- pediu que Finn assasse o peixe para ele, e deu-lhe instruções
-se relacioná-lo ao culto das árvores, central na religião celta. precisas a cerca do preparo: assar o salmão lentamente sobre
as brasas e cuidar que não queimasse. O mais importante era
que não devia experimentar o menor pedaço do peixe.
FINN MACCOOL O menino acendeu o fogo e começou a assar o salmão.
Profeta, guerreiro e curandeiro, herói irlandês. Aprendeu Porém, por causa do calor das chamas, formou-se uma bo-
todas estas habilidades ao ter tocado a carne de Fintan, o lha na pele do peixe e Finn espetou-a com o polegar para
salmão da sabedoria, ou, em outras versões, por ter bebido desfazê-la. Quando a bolha estourou, um pedaço da pele fi-
o vinho divino. cou grudado no dedo de Finn e queimou-o. O garoto levou
Quando Finn MacCool era jovem, sua mãe mandou-o a o polegar rapidamente à boca para aliviar a dor e logo sentiu
casa de Egais a fim de torná-lo seu discípulo. A viagem de- algo estranho. De repente, ele soube tudo o que iria acontecer.
morou muitos dias e Finn teve várias aventuras no caminho. Mais tarde, quando o velho Egais voltou para casa, notou
Quando finalmente chegou à casa do famoso bardo, encon- que Finn estava estranho. Percebeu logo o que havia ocorrido.
trou-o pescando na beira do rio. O velho bardo ficou desapontado, pois estava tentando cap-
O velho contou que, havia anos, estava tentando pescar o turar esse peixe há tempos, mas mesmo assim não ficou bravo
salmão do conhecimento que vive neste rio. A primeira pessoa com Finn. Entendeu que, se seu aluno obteve todo o conhe-
que comer sua carne saberá tudo o que se há para saber. cimento que um homem pode ter, é porque faria melhor uso
Finn passou a morar com Egais. Ele estudava todos os dias e dessa dádiva do que ele mesmo. Disse-lhe isso e aconselhou-o
ajudava a fazer os trabalhos domésticos. Gostava muito do rio a usar esse poder para ajudar todas as pessoas que precisassem.
e das flores e das árvores que cresciam às suas margens, onde Desse dia em diante, sempre que Finn queria saber alguma
passeava e brincava nas horas vagas. coisa, colocava o polegar na boca e obtinha a resposta.

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Uma faia, árvore associada ao deus Fagus

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Finn combate o gigante Aillen, em ilustração de Sir Galahad, de George Frederick Watts (1817–1904)
Beatrice Elvery para o livro Heroes of the Dawn (1914)

FODLA
FINTAN Uma das filhas de Fiachna pertencente ao trio de deusas que
O salmão da sabedoria. Foi o único Irlandês a sobreviver ao personificam o Espírito da Irlanda.
dilúvio transformando-se num falcão para sobrevoar as águas
e depois num salmão para nelas sobreviver. Por ter comido
nozes mágicas recebeu todo o conhecimento, mas ficou preso FOMORI
numa rede e foi comido por Finn MacCool que acabou por Demônios que vivem na profundidade do mar e em lagos e
adquirir o seu conhecimento e poder. poços escuros.

FIONN FREYR
O nome significa “Branco” ou “Louro” na mitologia celta Equivalente celta ao deus Odin numa outra forma, como
era chefe dos Fionna de Leinster, o herói Fionn ou Fionn mac deus da chuva, do sol e da fruta. Casou com Gredir.
Cumhail. Era tido como o fanfarrão que matava monstros e
como mágico. Vivia de aventuras, era desconfiado e astucioso.
Era filho de Ossian e avô de Oscar; Goll e o irmão Conan são GALAHAD
seus inimigos. Morreu numa batalha em Ghabra. Filho de Lancelot. Graças à sua pureza ele conseguiu con-
cluir a Demanda do Santo Gral.

FLIDAIS
Deusa das florestas, dos bosques e das criaturas selvagens. GAWAIN
Viajava numa carruagem puxada por veados. Esta deusa tina Filho do rei Lot Orkney ou do deus Sol Lug. Gawain foi um
a capacidade de mudar de forma. dos mais leais e nobres seguidores do rei Artur.

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Terra Devastada era por meio do Gral. O Cálice Sagrado, como
GEBRÍNIO também é chamado, tem o poder de regenerar o que foi destru-
Deus celta associado ao Mercúrio romano. Um altar en- ído. Ele representa a força restauradora do feminino – a energia
contrado em Bonn, na Alemanha, é dedicado a “Mercúrio da água e o formato do útero que contém e nutre a nova vida.
Gebrínio”. Como em outros casos, alguma semelhança da di- E é aqui que a velha tradição pagã se mescla ao cristianismo.
vindade local que espelha atributos de Mercúrio passa a servir Nas histórias primitivas do rei Artur, originárias do País de
de epíteto ao deus romano, transmitindo alguma indicação Gales, ele teve de empreender uma viagem em busca de um
sobre os poderes da deidade que empresta seu nome. caldeirão restaurador. Esse caldeirão produz comida abundan-
temente, e quem provar dela se rejuvenescerá imediatamen-
te. Quer símbolo do feminino (nutrição, abundância, alegria,
GRAAL prazer) mais forte do que este? Mas as velhas lendas galesas
Conhecido como “Santo Gral” é o lendário cálice que se diz foram reescritas por volta do século 12 por poetas cristãos das
ter sido usado por Jesus na Última Ceia. A demanda do Santo cortes franceses – o mais influente é Chrétian de Troyes. Foram
Gral é um elemento importante na saga Arturiana. De fato, as esses poetas que puseram o Santo Graal na história.
lendas do rei Artur preservam a tradição do simbolismo do graal Segundo a tradição cristã, o graal é o vaso que José de
e ao mesmo tempo a renovam numa linguagem que, embora Arimateia usou para recolher o sangue do Cristo, quando o cen-
antiga, está mais próxima de nós do que suas origens pagãs. Na turião Longino o feriu mortalmente com uma lança. Seu nome
história, o rei Artur, ocupado com suas guerras e conquistas, ne- se origina do fato de ser o recipiente que armazenou o Sangue
gligencia a rainha Guinevere, que acaba cedendo à sua paixão Real, ou, em francês, Sang Royal, termo que se corrompeu
por Lancelot, o melhor cavaleiro da Távola Redonda. Os pagãos em Saint Graal. Depois, José de Arimateia acompanhou Maria
consideravam a rainha como a própria terra, da qual depen- Madalena para a Gália, onde a santa levou o Evangelho, e José
diam. Cabia ao rei fertilizá-la, garantindo bons frutos e colhei- prosseguiu até a Inglaterra, levando consigo o graal.
tas. Artur não deu a devida atenção à rainha-terra e a perdeu. O cálice – lapidado da grande esmeralda que caíra da coroa
Traído, Artur mandou Guinevere para um convento, e de Lúcifer quando ele sofreu a Queda por ter traído Deus –
Lancelot se tornou um eremita. O rei e a rainha – o masculino acabou se perdendo na Inglaterra. E só ele poderia trazer a
e o feminino – estavam separados; os princípios que colocam o recuperação da terra devastada. Por isso, Artur ordenou que
universo em movimento tinham se desligado. O resultado foi a seus cavaleiros o resgatassem. A procura simboliza o processo
“Terra Devastada”: todo o país se tornou infértil e improdutivo. humano na busca da evolução da consciência – o casamento
O reino ficou arruinado. A única forma de trazer a cura para a sagrado entre o ego e a alma dentro da pessoa.

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Sir Galahad, Sir Bors e Sir Percival com o graal, aquarela de Dante Gabriel Rossetti (1864)

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Lancelot e Guinevere, por Herbert James Draper (c.1890)

O graal só podia ser recuperado quando um cavaleiro perfeito Jesus, a quem ele mais amava – o que causou ciúme nos ou-
encontrasse o castelo do Rei Ferido – ou de acordo com outras tros discípulos, principalmente Pedro, e gerou rumores de que
tradições, como na ópera Parzival, de Wagner, o Rei Pescador, ela teria sido esposa de Jesus. Nos textos gnósticos Maria
o guardião do graal e ao mesmo tempo o próprio Artur ferido, Madalena é comparada à Sofia – a profunda sabedoria que
símbolo do ser humano machucado pela separação entre o ego permeia todo o universo, outro aspecto do feminino. De fato,
e o Eu. Depois de encontrar o castelo, o cavaleiro deveria fazer Maria Madalena, na iconografia medieval, é quase sempre re-
a pergunta correta: “a quem serve o graal?”. tratada segurando um cálice, ou graal, pelo que ela, às vezes é
De acordo com Thomas Malory, em Morte de Artur, quem chamada de A Dama do Vaso de Alabastro.
acabou encontrado o graal foi Sir Percival. Da primeira vez
que encontrou o castelo, Percival não fez a pergunta. Só mui-
to depois, quando já estava maduro ele foi capaz de fazer a GRANO
pergunta e recuperar o Gral. Apenas Percival tinha a pureza e Como muitos deuses celtas, Grano era associado às fon-
a humildade necessárias para achar o castelo do Rei Ferido e tes, nascentes, especialmente às termais. Por conta das águas
fazer a pergunta que curou a Terra Devastada. quentes sobre as quais exercia seu poder, Grano também era
Ao reescrever as histórias de Artur incorporando elemen- tido como uma divindade solar e, como tal, identificado com
tos cristãos, os trovadores medievais transformaram o cálice Apolo. De fato, um dos epítetos do deus greco-romano no
de José de Arimateia num velho símbolo pagão do femini- Norte da Gália, um de seus centros de culto, era Apolo Grano.
no. O que não é uma ideia nem um pouco estranha para o Também aparece como título de Marte.
Cristianismo primitivo. Na verdade, esses trovadores fran- Seu culto se estendia desde o Reno até a Escócia e da
ceses foram muito influenciados pelos cátaros, uma seita Suécia à Espanha. Havia um famoso santuário ao deus cha-
cristã da Provença, que cultivava práticas religiosas do cris- mado Águas de Grano, onde hoje fica a cidade de Aachen,
tianismo oriental, os quais remetem à união dos princípios na Alemanha. Na verdade, o próprio nome da cidade é um
masculino e feminino. resquício desse centro de culto, uma vez que Aachen significa
De acordo com os Evangelhos Gnósticos, o feminino foi “água” e ainda hoje as nascentes quentes do povoado, com
exemplificado por Maria Madalena, a discípula preferida de temperaturas entre 45 °C e 75 °C, podem ser visitadas.

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Placa votiva dedicada a Inciona

Uma inscrição latina do primeiro século a.C. encontrada em Na primeira delas, Inciona é invocada junto com o deus
Limoges, na Gália, menciona um festival de dez noites reali- Veraudunus – outra divindade celta pouco conhecido – e em
zado em honra a Grano. Trata-se de uma inscrição votiva, na honra da família imperial no cumprimento de um voto feito
qual se lê: “Vergobretus Postumus, filho de Dumnorix, deu por Alpinia Lucana, mãe de Marcus Pl(autius?) Restitutus.
de seu próprio dinheiro às Águas de Março para [patrocinar] o A segunda inscrição, feita sobre uma placa bronze, também
festival de dez noites de Grano”. invoca essa deusa juntamente com Lenus Marte Veraudunus.

IALONUS CONTREBIS INTARABO


Não se sabe ao certo se Ialonus Contrebis era um único deus Deus do panteão da tribo gaulesa dos tréveros, habitantes
ou dois deuses relacionados. Seus principais centros de culto do nordeste da França, e de alguns povos vizinhos. Evidências
eram na região do atual condado de Lancashire, na Inglaterra, de seu culto foram descobertas na Bélgica, Luxemburgo,
e na Provença, na França. Numa inscrição votiva descoberta Alemanha e França.
em Lancaster, é referido como o ”deus mais sagrado Ialonus As inscrições galo-romanas referentes a esse deus de-
Contre[bis]”); em outra, em Overborough, como Deo San monstram, na maioria dos casos, que Intarabo era invocado
Gontrebi (“ao sagrado deus Gontrebis”). sozinho e, portanto, sem qualquer referência às divindades
O nome Contrebis pode, possivelmente, conter uma raiz re- romanas. Numa estatueta de bronze, Intarabo é represen-
lacionada à palavra proto-celta ”casa”, enquanto Ialonus pode tando sem barba, cabelos longos, vestindo uma túnica e
ser relacionado à ”clareira” – local sagrado na religião celta. envolto numa pele de lobo.
Embora o nome Intarabo seja etimologicamente obscuro,
ao menos um etimólogo, Xavier Delamarre, propõe que esse
(DEA) ICAUNIS nome signifique “Entre Rios”.
Deusa do rio Yonne na Gália, conhecida por uma única ins-
crição, encontrada em Auxerre, na Borgonha, França.
IOUGA
Iouga é o nome provável de uma deusa cultuada na pro-
ICOVELAUNA víncia romana da Britânia, conhecida de uma única inscrição
Icovelauna era cultuada na Gália, especialmente num tem- fragmentada feita sobre uma pedra de altar em York. O nome
plo octogonal construído sobre uma nascente, onde havia aparece como Ioug[...] or Iou[...] na pedra danificada. O texto
uma escada em espiral que descia até o nível d´água, permi- provável é o seguinte:
tindo aos devotos deixar oferendas ou recolher a água sagra- Para a numina do(s) Imperadore(s) e à deusa Iou[..], [..]sius
da. Era, portanto, uma deusa das águas, especialmente das (construída/restaurada) uma (meia?) parte de um templo.
termas (“ico” em gaulês é “água”), como a Iemanjá brasileira. A placa votiva caracteriza bem o sincretismo celto-romano,
uma vez que combina elementos da religião celta com en-
tidades romanas. Isso fica claro por conta da referência aos
INCIONA numina (singular numen), entidades ou forças sobrenaturais
Outra deusa celta obscura conhecida da região treverana, que viviam na natureza ou que estavam ligadas às atividades
Inciona é conhecida apenas devido a duas inscrições votivas humanas, semelhante, grosso modo, aos daimons gregos.
encontradas em Luxemburgo. Lendo o nome fragmentário como Ioug[...], o etimólogo

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Canadá, Edith Wightman, afirma que Lenus nos dá “um dos
melhores exemplos de um Teutates, ou deus do povo, iguala-
do a Marte—protetor da tribo na batalha, mas também [...]
concessor de saúde e de boa fortuna geral”.
Wightman, que foi encontrada assassinada por sufo-
camento em seu escritório na universidade em 1983, afir-
mava também que o santuário de Leno, chamado Am
Irminenwingert, em Trier tinha um grande templo, banhos,
capelas e até um teatro. A arqueóloga descreve outro com-
plexo, em Martberg, que, além de uma grande “variedade
de prédios”, provavelmente incluía cômodos para peregrinos
procurando saúde para estadia.
A despeito de suas associações com a cura, Lenus Marte é
representado como um guerreiro de capacete coríntio em uma
estatueta de bronze de Martberg.
Seu nome aparece mais frequentemente nas inscrições
como “Lenus Marte” ou “Marte Lenus”. No santuário de Trier,
Lenus Marte aparece associado às deusas Ancamna, Vitória
Estatueta de
e Xulsigiae. Em outra inscrição encontrada em Luxemburgo,
bronze de Intarabo
Lenus Marte é invocado junto à deusa céltica Inciona.
de Foy-Noville,
Lenus, porém, não era o único deus céltico identificado à
Marte em seus atributos de proteção na guerra, saúde e pros-
peridade pelos tréveros. Iovantucarus , Intarabus, Camulos, e
Loucetios também foram identificados com Marte pelos roma-
nos e, por extensão, com Lenus.

LERO
Lero é mais deus gaulês obscuro, invocado lado a lado da
deusa Lerina como o espírito que empresta seu nome às ilhas
Lérins, na Provença. Nada mais se sabe sobre este deus além
das dedicatórias votivas em sua homenagem.

Roger Wright propôs a forma reconstruída Iouga, que sig-

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nificando “jugo”. Outra pesquisadora, Theresia Pantzer, en-
tendeu, porém, que o que Wright tinha percebido como ves-
tígios de uma letra “g” foi meramente o desgaste da pedra
sobre a qual a inscrição foi feita.

IOVANTUCARUS
Embora associado ao deus da guerra romano Marte, ou, em
alguns casos a Mercúrio, Iovantucarus era um deus celta da
cura que possuía um santuário em Tréveris, cidade histórica
alemã. De acordo com descobertas arqueológicas, o templo
era visitado por peregrinos que levavam ao local imagens de
criança, retratadas frequentemente segurando, tanto pássa-
ros de estimação, quanto oferendas ao deus. Aparentemente,
Iovantucarus era um protetor da infância e da juventude.

LENO, LENUS
Lenus era um deus de cura cultuado principalmente na Gália
oriental, onde era quase sempre identificado com Marte. Foi
uma divindade importante dos tréveros, com grandes templos
erguidos em nascentes de rios.
Em seu livro Roman Trier and the Treveri, a arqueóloga es- Estátua de Leno Marte num templo
cocesa e professora da MacMaster University, em Ontario, reconstituído, em Martberg

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O lendário rei Llyr e suas filhas,
em ilustração de cerca de 1250;
O personagem de Shakespeare rei
Lear se baseou em sua lenda

LIR E MANANAN
Lir aparece nos mitos irlandeses sob duas formas diferentes,
como uma entidade invisível que habita o condado de Armagh
e como a personificação do oceano. Normalmente, porém, seu
filho Mananan é quem assumia os atributos do deus dos mares
entre os antigos celtas irlandeses. Mananan Mac Lir era um
feiticeiro terrível. Usava um capacete flamejante, uma cou-
raça invulnerável e tinha, também, um manto de invisibilida-
de que assumia qualquer cor que seu dono desejasse – como
o próprio mar, cheio de diferentes cores e tons. Seu cavalo,
Aonbarr, podia correr sobre as águas e sua espada, chamada
de A Replicante, abatia o inimigo com apenas um golpe.
Além do mar, estava a Terra dos Jovens, ou Ilha dos Mortos.
Era Mananan Mac Lir quem conduzia os mortos no seu cur-
ragh, a embarcação de couro usada pelos antigos marinheiros
celtas, até sua morada final. O leme do seu barco, chamado
de Corta-mares, era o próprio pensamento de Mananan, e
singrava as águas sem precisar de velas ou remos.

LITAVIS, LITAUIA, LITAUI, LITAUIS


Deusa cultuada na Gália, invocada, segundo inscrições des-
cobertas contendo seu nome, era invocada junto com o deus
Marte Cicolluis. Os pesquisadores acreditam que Litavis era
consorte desse deus.
Os etimólogos entendem que o nome “Letavia” ou
“Letauia” pode significar “Vasto” e a comparam a uma deu-
sa telúrica védica. Desse modo, os estudiosos sugerem que
Litavis é uma deusa mãe ou terrestre.

LOUCETIOS
Outro deus gaulês identificado com o Marte romano. Foram
encontradas cerca de 12 inscrições em sua honra, principal-
mente da Gália oriental, em particular entre os vangiones,
uma tribo celta da região do rio Reno, e também na Inglaterra.
Nas placas votivas que o homenageiam, Marte Loucetios é
quase sempre invocado junto a deusa Nemetona.
Marte, divindade romana à qual diversos deuses O nome Loucetios pode ser derivado da palavra leuk- (“bri-
celtas foram associados, aqui na concepção lho”). Isso levou alguns pesquisadores a traduzir o nome
do espanhol Diego Velazquez (1640) Loucetius como “aquele que traz a luz”, um epíteto de Júpiter.

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LUGH

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Lugh é a principal divindade solar dos celtas, cultuado não
só nas ilhas britânicas, mas em todo o continente. A cidade
de Lion, na França, foi assim batizada em sua homenagem,
bem como Leiden, na Holanda. Os druidas diziam que o sol
era o brilho do seu rosto – uma irradiação tão forte que ne-
nhum mortal conseguia olhar sua face diretamente. Ferreiro,
carpinteiro, poeta, harpista, médico, historiador e feiticeiro
era o senhor de todas as artes, tanto as pacíficas como as
guerreiras. Lugh possuía uma lança mágica que, quando ar-
remessada, ia por si mesma ferir o inimigo; seu arco era o
arco-íris. Lugh era, também, pai de Cuchulain um dos maio-
res heróis do ciclo mítico irlandês.

LUXÓVIO, LUXOVIOS
Deus das águas, divindade local da cidade de Luxovio, atu-
al Luxeuil-les-Bains, no Nordeste da França. O deus Luxóvio
era consorte de Bricta. O santuário de Luxóvio era construído
sobre uma nascente termal. Lá foram encontradas evidências
de culto a outras divindades, inclusive o cavaleiro-do-céu
que carrega uma roda solar, e Sirona, outra deusa associada
às fontes termais.
O nome Luxovios pode indicar que essa divindade é um
deus é uma deidade tanto da luz como das águas termais usa-
das nos processos de cura – dois elementos inexoravelmente
ligados na cosmologia celta.

MATRES
O nome dessas divindades femininas veneradas no
Noroeste da Europa é claramente latino, embora sua origem
seja céltica. Foram encontradas mais de mil placas votivas
dedicas às deusas. Seu culto também se estendia até à pro-
víncia da Germânia, onde eram relacionadas às divindades
do destino Dísir, como as Valquírias, e às Nornes – contrapar-
tida nórdica das Moiras gregas.

MERLIN
As velhas tradições galesas afirmam que Merlin era um
homem selvagem dos bosques com capacidades proféti-
cas. Dizia-se que tinha aprendido toda a sua magia com
a Grande Mãe sob os seus muitos nomes de Morgana,
Morgana, a Morrigan arturiana,
Viviana, Nimue, Fada Rainha e Senhora do Lago. Um dos
por John R. Spencer Stanhope (1880)
principais conselheiros do Rei Artur.

tomava parte por puro prazer. Durante as batalhas, assumia


MORRIGAN diferentes formas, principalmente a de corvo, refestelando-se
A entidade irlandesa que incorporava a morte e a destrui- nos cadáveres dos guerreiros caídos.
ção se apresentava por meio do aspecto feminino. Morrigan, Antes das batalhas ela aparecia aos soldados que iriam mor-
como todos os danaans, está associada às forças da Natureza, rer sob a forma de banshee, uma esquálida figura feminina,
ao poder da terra, o Grande Útero de onde toda a vida nasce e coberta de andrajos ensanguentados. Foi assim que Dagda
para onde volta depois de morrer. Dessa forma, a fecundidade a encontrou, na véspera da Segunda Batalha de Moytura.
e a criação da terra podem se renovar. Morrigan estava no vau do rio Unshin, lavando as armas
Além de deusa da morte, Morrigan, a Rainha dos Fantasmas, ensanguentadas e os cadáveres dos que viriam a tombar no
era igualmente deusa da guerra. Ela derivava seu maior pra- dia seguinte. A deusa, então, deu a Dagda informações vitais
zer dos combates, os quais ela mesma provocava e nos quais sobre o combate, revelando seus dons proféticos. Morrigan

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A vigília da valquíria, do pré-rafaelita
Edward Robert Hughes:
as Dísir nórdicas, como as Valquírias,
assemelhavam-se às Matres celtas

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afirmou, também, que ela mesma iria arrancar o coração do NASTRAND
seu inimigo fomoriano, Balor. Em pagamento, Dagda saciou o
A pior região do Inferno. Os telhados e as portas estavam
apetite de Morrigan por sexo, unindo-se a ela ali mesmo, em
cobertos de cobras venenosas e era nesta área que os assassi-
meio aos cadáveres que viriam a morrer – uma alusão à íntima
nos eram forçados a vaguear como castigo.
ligação entre a vida e a morte.
Durante a Idade Média, as banshees se tornaram as
Lavadeiras do Vau do Rio, dos romances arturianos. Quando

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um combatente a via no rio lavando o sangue de uma mor-
talha na noite que precedia a luta, ele sabia que iria perecer
no campo de batalha.

MORITASGO, MORITASGUS
Título de um deus celta da cura encontrado em quatro inscri-
ções votivas na Alésia, um ópido – como os romanos chamavam
a principal povoação de uma região – da confederação de tri-
bos gaulesas dos mandúbios, que habitavam a região da atual
Borgonha. Em duas dessas inscrições aparece relacionado ao
deus greco-romano Apolo. Sua consorte era a deusa Damona.
Uma dedicatória ao deus refere-se a um grande santuário,
um complexo com banhos e um templo, erigido sobre uma nas-
cente tida como sagrada, onde peregrinos doentes iam banhar-
-se numa piscina construída para este fim. Sob os pórticos, os
doentes dormiam para receberem visões e curas divinas.
Nesse santuário, foram encontrados diversos ex-votos,
como os que os católicos deixam em suas igrejas – outro
indício de que, com o advento do cristianismo, muitas práti-
cas e divindades da religião galo-romana foram incorporadas
aos ritos e práticas da nova crença. Os ex-votos descobertos
eram modelos das partes doentes dos corpos, como mem-
bros, órgãos internos, genitais e olhos, bem como figurinos
dos próprios peregrinos. No santuário, também foram en-
contrados instrumentos cirúrgicos, o que sugere que os sa-
cerdotes eram também médicos.
De acordo com Xavier Delamarre, autor do Dictionnaire
de la langue gauloise, Moritasgo provavelmente significa
“Texugo Grande” ou “Texugo do Mar”, uma possível referên-
cia a uma secreção produzida por esse animal que era usada
pelos gauleses para produzir medicamentos.

MULLO
Outro deus gaulês associado ao deus Marte com o epíte-
to Marte Mullo. A palavra mullo pode indicar uma relação
com cavalos ou mulas. O templo circular dedicado a Marte
Mullo era situado próximo a uma confluência de dois rios. Em
Nantes, na região Oeste da França, havia outro importante
centro de culto, onde um culto público oficial era realizado.
A julgar pelos ex-votos encontrados nesses locais, Mullo era
invocado para aliviar, principalmente, problemas oculares.

NARIA
De acordo com as descobertas arqueológicas, a deusa
Naria era venerada apenas no que agora é a parte ocidental
da Suíça. Embora tenham sido encontrada uma estatueta
que representa Naria, há apenas duas inscrições referente
a essa deusa. Desse modo, sua natureza e seus atributos Naria, numa das estatuetas romanas do grupo Muri,
permanecem obscuros. encontradas em Berna, Suiça, em 1832

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onde agora é a Alemanha. Ritona tinha templos dedicados a ela
NEMAUSO nas atuais cidades de Pachten e em Trie. Seu nome sugere que
O deus gaulês Nemauso, padroeiro da cidade de mesmo foi uma deusa das vaus dos rios. Uma estátua dessa deusa indi-
nome, atual Nîmes, na França, parece não ter sido cultuado ca, porém, que Ritona deve ter sido também uma deusa-mãe.
apenas nesse local, onde havia um bosque sagrado no qual
a tribo dos volcas arecômicos realizava suas assembleias. Na
cidade de Neumaso havia um importante santuário de prima- ROBOR OU ROBORIS
vera e de cura. As deusas da cura e fertilidade Matres (v.), Deus invocado junto ao genius loci, o “espírito do lugar”, numa
chamadas nessa cidade de Matres Nemausicae, também eram única inscrição encontrada na comuna francesa de Angoulême.
cultuadas nesse santuário.

RUDIANOS
NEMETONA Rudianos era um deus da guerra cultuado na Gália, compa-
Deusa venerada na Gália oriental, provavelmente padroeira rado a Marte. O nome “Rudianos” significa vermelho, refle-
da tribo galo-germânica dos nemetes, e também na Britânia. tindo a natureza guerreira do deus. Uma estátua de Rudianos
De acordo com inscrições sobreviventes, na religião galo-ro- datada do século 6 a.C. atesta a antiguidade de seu culto.
mana, Nemetona era associada a Marte.

SCATHACH; SCOTA
NICNEVEN “A Sombria”, “Aquela que combate o medo”. Era deusa do
Feiticeira-deusa de Samhain. Na Escócia diz-se que caval- submundo da Terra de Scath, deusa no seu aspecto destruidor. Foi
gava durante a noite com os seus seguidores no Samhain. também uma lendária guerreira e profetisa que viveu em Albion,
Na Idade Média era conhecida por Senhora de Habonde, Escócia, que ensinava artes marciais que treinou Cu Chulainn.
Abundia, Satia, Bensonzie, Zombiana e Herodiana.

SEGOMO
NIDHOGG Segomo, cujo nome significa “vitorioso, único poderoso”,
Dragão que devorava os corpos dos humanos maléficos. era um deus da guerra gaulês associado pela população de
origem romana a Marte e a Hércules. Seus animais eram a
águia ou o falcão.
NIMUE
Metamorfa que amou Merlin. Após uma disputa mágica, ela
capturou-o numa gota de âmbar e engoliu-o. SMERTRIOS, SMERTRIUS
Outro deus da guerra gaulês, cultuado também na província
romana de Nórica, correspondente hoje a áreas da Áustria e
OSSIAN da Bavária (Alemanha). É um dos deuses gauleses retratados
Filho de Finn, personagem mais importante do ciclo fenia- no importante Pilar dos Marinheiros, descoberto em Paris,
no ou de Oissian. Aquando da derrota de Gabhra, escapou onde aparece como homem barbudo confrontando uma co-
graças à deusa - fada Niamh, que conduziu a sua barca de bra que se ergue à sua frente com uma clava. A semelhança
vidro para Tir - Nan - Og, o paraíso Celta. Passou lá 300 anos da figura ao semideus Hércules dos romanos levou alguns a
de juventude, enquanto o tempo e os reis passavam na Terra. associarem Smertrios a esse herói.
Ao fim desse tempo quis retornar à face da Terra. Niamh
confia-lhe o seu cavalo mágico recomendando-lhe que não
pusesse o pé em terra. Oissian, entretanto, caiu do cavalo e
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bateu no solo terrestre e quando tentou erguer-se era um


velho muito fraco e cego.

RICAGAMBEDA
Deusa cultuada na Britânia romana, onde foi encontrada a
única inscrição que a ela se refere. De acordo com a inscri-
ção, o altar foi erguido por soldados celtas da tropa auxiliar
dos tungrianos, tribo belga que serviu na atual Inglaterra, em
agradecimento a uma graça concedida pela deusa.

RITONA
Essa deusa celta, também chamada de Pritona, era venerada
principalmente na terra dos Tréveros, que viviam numa região Smertrius, no Pilar dos Marinheiros

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O Sonho de Ossian, por Jean
Auguste Dominique Ingres (1813)

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SEQUANA SOUCONNA
Deusa do rio Sena, especialmente de suas nascentes, e da Outra deusa fluvial gaulesa, divindade do rio Saône, na
tribo gaulesa dos sequanos, que dela tiraram seu nome. Entre comuna francesa de Chalon-sur-Saône, onde se encontrou
os séculos 2 e 3 a.C. foi construído um santuário de cura nas uma invocação epigráfica a essa deusa. Nada mais se conhe-
nascentes do Sena, dedicado à Sequana. A julgar pelos ex- ce a seu respeito.
-votos encontrados no local, Sequana presidia principalmente
a cura de doenças respiratórias e oculares.
SUCELLOS
Na mitologia galesa era o deus da abundância,

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do sucesso, da força, da autoridade, da proteção,
da regeneração, dos cães, das árvores e dos cor-
vos; era associado a cães e transportava um maço
ou um martelo. Seu nome significa “O deus do
Maço” ou “Bom Lutador”.

SULÉVIA, SULÉVIAS
Cultuada na Gália, na Britânia e em grande par-
te do mundo celta, algumas vezes citada no plu-
ral, Sulévia pode ter sido, como as Matres, com
as quais são relacionadas em pelo menos uma
inscrição, uma entidade coletiva. Seu nome pode
significar “aquelas que governam bem”. William
van Andringa afirma em seu livro La religion en
Gaule romaine : Piété et politique que as Sulévias
eram, provavelmente, divindades “domésticas
nativas honradas em todos os níveis sociais”.

TALIESIN
Um bardo cujo nome significa “Cume
Brilhante”. Patrono dos druidas, bardos e menes-
tréis. Deus da escrita, da poesia, da sabedoria,
dos feiticeiros, dos bardos, da música, dos conhe-
cimentos e da magia.

TARANIS, TANARUS,
TARANUCNO, TARANUO,
TARAINO
Deus do trovão cultuado principalmente na
Gália, nas Ilhas Britânicas, na Renânia (região
fronteiriça entre a Alemanha e a Bélgica) e no
Danúbio. Taranis é citado pelo poeta romano
Lucano junto a Esus (v.) e Toutatis (v.), com
quem compõe uma tríade sagrada. De acordo
com Lucano, vítimas humanas eram oferecidas
a Taranis em sacrifício. Por conta de seus atribu-
tos, no período romano, esse deus foi sincretiza-
do com Júpiter.
Variantes de seu nome levaram os pesquisado-
res a relacionar Tranis a Thor, o deus do trovão
nórdico, e a Donar, divindade germânica que de-
tém os mesmos atributos. O nome Taranis signifi-
ca, de fato, “trovão”.
Um dos símbolos de Taranis é a roda, especial-
O Bardo, por Benjamin West (1778) mente a roda da biga com oito raios, associada ao

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deus-céu -sol ou -trovão, uma vez que, entre os celtas, a roda

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representava o Sol.
A roda de oito raios remetia às oito maiores divisões do
ano celta. O dia mais longo do ano, o mais curto e os dois
equinócios são chamados, no calendário celta, de Albans. Os
outros quatro são os festivais de Samhain, Brigantia, Beltane
e Lugnassadh, chamados de Festivais de Fogo. Essa divisão é
representada pelos oito raios da roda celeste.

TELO
Divindade masculina de uma nascente próxima à cidade
francesa de Toulon, ao redor da qual o assentamento se for-
mou. Em algumas dedicatórias a Telo, ele é invocado junto à
deusa Stanna, provavelmente sua consorte.

TEUTATES, TEUTATES,
TOUTATIS OU TUTATIS
Deus celta cultuado na Gália e na Britânia como protetor das
tribos locais. Esse deus, juntamente com Beleno, ficou famo-
so entre os leitores das histórias em quadrinhos de Asterix, o
Gaulês, da dupla René Goscinny e Albert Uderzo, que usava
como um de seus bordões a expressão “Por Toutatis!”
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Relevo representando Teutates,


exposto no Museu de Saint-Remi, França

O nome do deus foi interpretado como “pai da tribo”.


Os invasores romanos o identificavam ora com Marte, ora
com Mercúrio.
Teutates também é citado pelo poeta romano Lucano como
um dos três deuses a quem eram oferecidas sacrifícios hu-
manos. As vítimas dedicadas Teutates eram mortas ao serem
mergulhadas de cabeça para baixo em um tonel cheio de um
determinado líquido, provavelmente cerveja.
Contudo, os atributos dos deuses romanos eram diferentes
na Gália. Mercúrio podia ser um deus da guerra, enquanto o
Marte gaulês era um deus de proteção ou cura.

TIR - NAN - OG
A Terra dos Jovens, o paraíso celta. Local onde as almas
descansavam após a morte antes de reencarnar. É conhecido
também por Terra das Fadas, Avalon e Ilhas abençoadas. Por
vezes é descrita como uma terra para além do mar ocidental,
para onde se retiraram alguns dos Tuatha De Danann. Diz a
lenda que aí existe uma fonte que produz a Água da Vida, que
Taranis com a roda celeste e o raio torna os velhos de novo jovens.

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VINDONNUS
O nome deste deus, “Luz clara”, é um epí-
teto do deus solar romano Apolo e do gau-
lês Belenos. Nas ruínas do seu templo, na
comuna francesa de Essarois, na Borgonha,
foram encontrados objetos votivos feitos de
carvalho – árvore sagrada para os celtas – e
de pedra, representando oferendas ou partes
do corpo dos fiéis que estavam doentes para
as quais a cura era buscada.

VIROTUTIS
Virotutis é outro epíteto celta de Apolo e
significa “benfeitor da humanidade”. Apolo
Virotutis foi cultuado em diversas localidades
da Gália romana.

VISÚCIO
Visúcio, identificado na religião galo-romana
com Mercúrio, era cultuado no leste da Gália,
e na região do Reno. O nome foi interpretado
com o significando de “dos corvos”. Segundo
algumas inscrições que trazem o nome desse
deus, a consorte de Visúcio era Sancta Visucia.

VIVIANE
Segundo a lenda arturiana, Viviane era a
Senhora do Lago (também conhecida como
Nimue ou Niniane)

VOSEGUS, VOSAGUS,
VOSACIUS
Deus celta de caça e da profecia, represen-
tado com um arco e escudo, acompanhado de
um cão. Era patrono dos Vosges, uma cadeia
de montanhas na Europa centro-ocidental.
Eire, a personificação mítica da Irlanda,
por Thomas Buchanan Read (1867)
XULSIGIAE
Deusas tríplices cultuadas no templo de primavera e de
TREFUILINGID FRE-EOCHAIR cura em Augusta dos Tréveros, na província romana da
Na mitologia irlandesa era o deus do trevo e consorte da Germânia Inferior, atualmente Tréveris. Eram, provavel-
Deusa Tripla. O tridente era o símbolo de qualquer deus a ela mente, ninfas locais da primavera. As Xulsigiae tinham um
associado. Os Irlandeses adoravam o trevo como símbolo das santuário dedicado a elas, próximo ao templo monumental
suas divindades triplas, muito antes de S. Patrício. Lenus Marte.

VERAUDUNUS WEYLAND
Só se conhece o deus Veraudunus por duas inscrições Deus ferreiro e consorte da Deusa Tripla. O nome Smith
votivas encontradas em Luxemburgo. Uma destas inscri- (ferreiro) referia-se antigamente a uma casta sacerdotal de
ções sugere que “Veraudunus” pode ter sido um epíteto de Druidas trabalhadores de metal. Uma tradição Inglesa afirma
Lenus Marte. Em ambas inscrições, Veraudunus é invocado que Weyland continua a existir no interior de um monte de
junto com Inciona. Berkshire, assinalado pelo Cavalo Branco de Uffington.

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DO HALOWEEN ÀS HISTÓRIAS DE BRUXAS, DOS CAVALEIROS DO
GRAAL ÀS FADAS, A CULTURA OCIDENTAL TAMBÉM É INFLUENCIADA
PELO FOLCLORE CELTA. OS MITOS E LENDAS SÃO EXEMPLOS DO
IMAGINÁRIO MÍSTICO DOS ANTIGOS POVOS EUROPEUS, E FAZEM
PARTE DO NOSSO MUNDO, INSPIRANDO FILMES, LIVROS, MÚSICAS
E A ARTE CONTEMPORÂNEA. ESTE GUIA LEVA VOCÊ POR UM
PASSEIO ATRAVÉS DO FASCINANTE MUNDO CELTA.

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