Você está na página 1de 79

GUIA BÁSICO DE COSMOVISÃO CRISTÃ

João Paulo Aragão da Guia Oliveira


Graduado em Ciências Sociais pela UFRJ, pós-graduado em Ciências da
Religião pela PUCMinas, graduado em Teologia pelo Centro Universitário
Metodista Izabela Hendrix e mestrando em Teologia Filosófica (Mdiv) pelo
Centro Presbiteriano de Pós-graduação Andrew Jumper.
E-mail: jotape23@gmail.com.
Direitos autorais do texto original © 2019 João Paulo Aragão da
Guia Oliveira
Todos os direitos reservados
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO: POR QUE FALAR DE COSMOVISÃO?
O caráter integral da Bíblia e do Evangelho
A impossibilidade da neutralidade de pensamento
A centralidade e supremacia de Cristo
PARTE 1: O QUE É COSMOVISÃO?
1.1. Nossas pressuposições básicas
1.2. A resposta às perguntas fundamentais
1.3. A Verdade absoluta sobre toda a realidade
1.4. Uma cosmovisão reformada
PARTE 2: CRIAÇÃO
2.1. Criação e Providência: Passado e Presente
2.2. “E viu Deus que era bom”
2.3. O caráter normativo da criação
2.4. O shalom e o mandato cultural
PARTE 3: QUEDA
3.1. A extensão da queda
3.2. O erro da divisão secular/sagrado
3.3. Estrutura e Direção
3.4. A autonomia como rebeldia e como punição
PARTE 4: REDENÇÃO
4.1. A extensão da Redenção
4.2. Estrutura e direção
4.3. O Mandato Cultural e a Grande Comissão
4.4. Redenção e Consumação
PARTE 5: COSMOVISÃO NA PRÁTICA
5.1. Uma cosmovisão equilibrada
5.2. Distinguindo estrutura e direção
5.3. Aplicando a grade na prática
5.4. A cosmovisão como narrativa
5.5. Cosmovisões em conflito
5.6. Uma palavra final: removendo o teto
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO: POR QUE FALAR DE
COSMOVISÃO?

Você provavelmente já ouviu a palavra cosmovisão em algum


lugar. Esse termo tem estado na moda ultimamente, sobretudo no
meio evangélico. Apesar de ser uma expressão relativamente nova em
nossas igrejas, muitas vezes ouvimos pessoas falarem essa palavra
como se seu significado já fosse conhecido de todos, sem nenhuma
explicação sobre o que se trata. Por isso muitos acabam ficando
confusos e perdidos ao ouvi-la em pregações, conversas ou palestras,
e assim o termo fica parecendo algo muito difícil, ou simplesmente
irrelevante para a nossa vida diária. Parece que se trata de um termo
de quem quer falar difícil para impressionar, ou um termo reservado
aos grandes estudiosos da teologia, fora de acesso às pessoas
comuns. Contudo, isso não é verdade. Estudar e conhecer o
significado desse termo, bem como suas implicações não é apenas
útil, mas de certa forma até mesmo necessário para o tempo em que
vivemos.
Por isso, para introduzirmos o nosso assunto, é importante antes
de mais nada esclarecermos algumas dúvidas que podem surgir a
respeito do tema. Será que precisamos realmente estudar cosmovisão
hoje? Não seria melhor simplesmente nos atermos ao “evangelho
puro e simples” e apenas “estudarmos a Bíblia” em vez de falarmos
de conceitos filosóficos ou termos teóricos que podem interessar a
apenas algumas pessoas? Afinal, cosmovisão é um tema bíblico de
fato?
Respondendo de maneira breve: sim, cosmovisão é um tema
bíblico, e por isso é importante para nós hoje. É verdade que não é
possível encontrar a palavra “cosmovisão” na Bíblia, mesmo em
traduções mais recentes. Mas, assim como outras palavras como
Trindade, por exemplo, ainda que cosmovisão não seja um termo
bíblico, é um termo atual que expressa um conceito essencialmente
bíblico. Por isso, mais importante que o nome, é a ideia que ele
representa, que sempre esteve presente no pensamento cristão.
O fundamento bíblico e a relevância do conceito de cosmovisão
ficarão mais evidentes mais à frente, conforme avançarmos em nosso
estudo. Porém, desde já, é preciso deixar claro três pressupostos que
vão nos ajudar a entender por que é importante falar de cosmovisão
cristã, ou do Evangelho como uma cosmovisão. Eles nos servirão de
base para desenvolvermos nosso raciocínio.
O caráter integral da Bíblia e do Evangelho

Pode parecer estranho dizer isso, mas a Bíblia não trata apenas do
plano de Deus para a salvação de pessoas, de seu povo escolhido. É
certo que este é um dos temas centrais das Escrituras; contudo, é
certo também que ela fala de muito mais. Afinal, Deus não criou
apenas seres humanos individuais, mas criou todo um universo. Por
isso, é importante prestarmos atenção não apenas naquilo que a
Bíblia fala sobre salvação, de forma mais direta, mas também sobre o
que ela diz sobre tudo o mais, todas as coisas que Deus criou, mesmo
porque estas coisas estão ligadas. Além disso, por causa do pecado,
toda a criação caiu juntamente com a humanidade (como veremos
mais à frente), e, por isso mesmo, o projeto de redenção de Deus não é
apenas para o ser humano, mas para toda a criação.
Vale lembrar que pensamos criação aqui não apenas considerando
elementos materiais (animais, plantas, etc.), como também os
elementos não-materiais, como as relações entre os homens, do
homem com a natureza e do homem com Deus. Afinal, esses
elementos não-materiais também foram expressamente criados e
ordenados por Deus, como vemos no relato de Gênesis. Vemos
inclusive que a Bíblia fala não apenas de salvação, ou de “religião”,
mas fala de família, trabalho, economia, política, sexualidade... E
devemos estar atentos ao que ela diz sobre estes assuntos. Por isso,
ser cristão é muito mais do que uma opção religiosa: é uma visão de
mundo, ou seja, uma cosmovisão. Cremos que Deus se importa com
todas as áreas da vida, e buscamos sua orientação para todas essas
áreas. Não é à toa que o apóstolo Paulo fala que mesmo as coisas
mais triviais como comer e beber devem ser feitas para a glória de
Deus; e não apenas estas, como também “outra coisa qualquer”, seja
grande ou pequena (1Co 10:31). Estudar cosmovisão é falar de todas
essas coisas.
A impossibilidade da neutralidade de pensamento

Desde Adão, o pecado criou uma separação entre o homem e Deus,


colocou inimizade entre o ser humano e seu criador. Por isso, há
apenas duas posições fundamentais no mundo: a de submissão a
Deus ou de rebeldia contra Deus. Não há uma terceira opção. Não
existe uma posição “neutra” diante de Deus; Tiago e João deixam isso
muito claro (Tg 4:4, 1Jo 2:15-17). E, como já foi dito, não há área da
nossa vida em que Deus não esteja interessado, ou que ele não tenha
estabelecido normas que deseja que sigamos. Como diz o teólogo e
filósofo Cornelius Van Til, “em todas as coisas o homem encontra-se
face a face com Deus” ou, utilizando uma expressão latina famosa na
literatura reformada, o homem vive Coram Deo. Van Til prossegue:
“existem duas e apenas duas classes de homens: aqueles que adoram
e servem à criatura, e aqueles que adoram e servem ao Criador”[1].
Por isso, tudo o que fazemos, mesmo em nossas atividades mais
corriqueiras, podem agradar ou desagradar a Deus, honrá-lo ou
afrontá-lo. Não existe uma forma neutra de comer ou beber, como
vimos: ou as fazemos para a glória de Deus, ou de forma rebelde. Não
existe forma neutra de estabelecermos nossas famílias, de fazer
ciência ou de nos posicionarmos politicamente. O que o mundo
chama de “neutro” é apenas uma visão que desconsidera o que Deus
tem a dizer sobre o assunto e procura viver de forma autônoma, isto
é, segundo suas próprias regras. E este tipo de visão é o que está no
cerne do argumento que a serpente usou ao tentar a mulher no
jardim (Gn 3:1-6).
Muitas pessoas tentam fazer uma divisão da vida entre secular e
sagrado, como se Deus se importasse apenas com o lado “sagrado”
da vida, (ou seja, nossa fé) enquanto não teria nenhum interesse nas
áreas “seculares” da vida (todo o restante), deixando-nos livres para
agirmos de qualquer maneira. Como podemos perceber, isto não é
verdade: todos os aspectos da realidade interessam a Deus, e em
todos esses aspectos, temos apenas duas opções: viver de forma que
agrade a Deus, ou de forma que o desagrade. Falaremos sobre isso de
forma detalhada mais adiante. Por ora, podemos perceber porque é
tão importante estudarmos o Evangelho como uma cosmovisão: para
aprendermos a viver uma vida completamente agradável a Deus em
tudo que fazemos. Este deve ser o objetivo de vida e o desejo do
coração de todo cristão, como era o do salmista (Sl 19:14).
A centralidade e supremacia de Cristo

Na verdade, os dois motivos que citamos até agora se devem,


sobretudo, a este terceiro que vamos apresentar agora. Se a Bíblia
fala sobre todo tipo de assunto, e se diante desses assuntos e da
variedade de opções e escolhas que temos em cada um deles não há
possibilidade de neutralidade, é porque Cristo é Senhor absoluto sobre
todas as coisas. Não podemos agir ou escolher de maneira “neutra”,
porque tudo foi criado em Cristo, por meio de Cristo e para Cristo,
como Paulo afirma em diversas ocasiões. Sua declaração aos
colossenses não deixa margem para dúvida: Este é a imagem do Deus
invisível, o primogênito de toda a criação; pois, nele, foram criadas todas as
coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam
soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e
para ele. Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste. Ele é a cabeça do
corpo, da igreja. Ele é o princípio, o primogênito de entre os mortos, para em
todas as coisas ter a primazia, porque aprouve a Deus que, nele, residisse toda
a plenitude e que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele,
reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus
(Cl 1:15-20).

Se todas as coisas são criadas, sustentadas e redimidas por


Cristo, toda a criação tem não somente seu ponto de partida, sua
origem, como também seu destino em Cristo. Tudo aponta para ele e
está eternamente sob seu domínio. Por isso a Bíblia fala sobre todos
os assuntos, porque tudo está sujeito e é sustentado por Cristo. Por
isso também a neutralidade não é uma alternativa, pois tudo foi feito
para convergir nele, e pode ser usado nesse sentido ou em algum
outro sentido contrário a ele.
De certa forma, portanto, a ideia do cristianismo ou do evangelho
como uma cosmovisão é apenas um novo nome para uma ideia
presente em toda a Bíblia, que já fora também redescoberta pelos
reformadores no século 16: o antigo ensino bíblico de que não
podemos servir a dois senhores. Não podemos dividir nossa vida em
compartimentos, separando uns para Deus e outros para nós mesmos
ou qualquer outro ser como normatizador supremo. Não podemos
construir uma casa sobre dois fundamentos diferentes.
Sendo assim, uma cosmovisão cristã é, antes de tudo, fundada na
certeza de que tudo o que há em nossas vidas e no universo de forma
geral está sujeito e deve ser referente a Cristo. Não há nada no
mundo que exista à parte dele, e nada pode ser devidamente
compreendido a não ser por meio dele. Dito de outra forma, o cristão
é aquele que enxerga Cristo em tudo e sobre tudo, sem o confinar à
área da “religião” ou da “salvação pessoal”. O desafio dos primeiros
cristãos, o desafio dos reformadores e o desafio daqueles que hoje
desejam ter uma cosmovisão bíblica é o mesmo: exaltar Cristo como o
referencial absoluto, não apenas de suas vidas, mas de todo o
universo, porque esta é a verdade.
Assim, tendo compreendido a relevância do conceito de
cosmovisão, e tendo entendido que não se trata de uma “novidade
teológica”, mas apenas uma forma atual de expressar verdades
bíblicas atemporais, podemos enfim começar a conhecer melhor o
termo, entender seus componentes e suas implicações para a nossa
vida.
PARTE 1: O QUE É COSMOVISÃO?

1.1. Nossas pressuposições básicas


Embora a palavra possa soar como algo pouco familiar ou restrito
a um grupo específico, falar sobre “cosmovisão” é, na verdade, tratar
de algo muito próximo a todos nós, ainda que poucos de nós
percebamos sua importância, ou mesmo sua existência. De certa
forma, é semelhante a falarmos sobre o ar que respiramos: não o
vemos, raramente pensamos sobre ele, muitas vezes não sabemos o
que o constitui, mas ele está sempre presente ao nosso redor, e é
fundamental para nossas vidas. Pode parecer uma comparação
exagerada, mas é bastante razoável. Estamos falando algo sem o
qual ninguém pode viver, porque é algo constitutivo da própria
racionalidade humana, da sua capacidade de conhecer.
Podemos afirmar que cosmovisões estão presentes em
praticamente todos os elementos da nossa cultura. Filmes ou
programas de televisão que assistimos, livros, revistas e mesmo
notícias que lemos, aulas que assistimos e até mesmo conversas que
temos com amigos, vizinhos ou outras pessoas na rua. Desde
momentos mais triviais até aspectos mais relevantes da nossa vida.
Todos estes elementos estão permeados (ou melhor, impregnados) de
alguma cosmovisão, ainda que elas não apareçam de forma explícita
para nós. Mas, afinal, o que é uma cosmovisão?
Uma cosmovisão[2] pode ser definida de maneira mais básica
como um conjunto de pressuposições básicas que orientam a nossa
percepção do mundo e da realidade de forma geral. São aquelas
afirmações que funcionam como uma base para a compreensão de
tudo à nossa volta. Albert Wolters a define como sendo “a estrutura
compreensiva da crença de uma pessoa sobre as coisas”[3]. Em geral,
as pressuposições, crenças ou afirmações que compõem a cosmovisão
de uma pessoa estão de tal maneira entranhadas em sua mente que
ela raramente se pergunta sobre elas; de certa forma, são tão básicas
que são tidas como óbvias ou autoevidentes. Por isso mesmo,
perguntar sobre essas crenças básicas pode causar até mesmo
estranhamento em algumas pessoas.
Contudo, embora a maioria das pessoas nunca tenha pensado
sobre isso, ou mesmo não saiba como explicar esta estrutura de
pensamento, pode-se afirmar que todos possuem uma cosmovisão,
mesmo que não tenham consciência dela. Isto porque todos são
capazes de organizar seu conhecimento a partir de algumas certezas
básicas, que conferem significado às experiências que temos.
Uma figura usada por alguns autores para auxiliar na
compreensão do conceito de cosmovisão é a de uma lente de contato.
Michael Wittmer, por exemplo, afirma: “Resumidamente, uma
cosmovisão compreende a lente pela qual vemos o mundo. Esta lente
se parece mais com lentes de contato do que com óculos porque, como
aquelas, muitas vezes já estamos tão acostumados a elas que não
temos consciência de que as estamos usando”[4]. Ou seja, são
conceitos tão básicos que muitas vezes não os percebemos, mesmo
que precisemos deles para nos orientar no mundo em todo o tempo.
Outra imagem possível é a de um mapa ou uma bússola. Wolters
diz que nossa cosmovisão atua como “um guia para a nossa vida”.
Ele afirma que “ela nos orienta no mundo em geral, nos dá uma
noção do que é positivo ou negativo, do que é certo ou errado na
confusão de acontecimentos e fenômenos que nos confrontam”[5],
mesmo quando esta cosmovisão é inconsciente ou inarticulada. São
as nossas crenças últimas e mais basilares.
1.2. A resposta às perguntas fundamentais

Podemos colocar a mesma ideia de outra forma: uma cosmovisão é


composta pelas respostas às perguntas fundamentais da vida, que
orientam como pensamos a respeito dela. Essas perguntas podem ser:
“Quem sou eu? Porque existe algo e não nada? Qual a origem de
tudo? Porque o conhecimento é possível? Porque o mundo é como é?”,
entre outras. Responder essas perguntas fornece a nós mesmos as
linhas gerais da nossa cosmovisão. James Sire, em O universo ao
lado lista oito perguntas básicas[6]: 1) O que é a realidade primordial
– o real de fato?
2) Qual é a natureza da realidade externa, isto é, do mundo à
nossa volta?
3) O que é o ser humano?
4) O que acontece com quem morre?
5) Por que é possível saber alguma coisa?
6) Como sabemos o que é certo ou errado?
7) Qual é o significado da história humana?
8) Que compromissos centrais, pessoais e que guiam a vida são
consistentes com essa cosmovisão As perguntas, mesmo que
possam ser formuladas de diferentes maneiras, são
geralmente as mesmas; as respostas é que vão mudar de
acordo com a cosmovisão adotada.
Ainda que seja certo afirmar que pensar a partir de uma
cosmovisão é uma condição própria da mente humana, as
cosmovisões não são produções individuais, mas as recebemos a
partir da formulação cultural mais ou menos comum ao grupo ou à
sociedade em que estamos inseridos, que compartilha crenças e
valores. Por isso mesmo, quanto maior o contato com culturas
distintas, maior será a possibilidade de um choque de cosmovisões.
De fato, muitas pessoas apenas começam a se perguntar sobre sua
própria cosmovisão quando confrontada por uma diferente, seja num
filme, livro, programa de televisão ou mesmo uma conversa com um
vizinho que veio de outro país com uma cultura distinta. Neste
momento, o que parecia tão óbvio para todos já não parece tanto
assim. Este conflito é mais perceptível na modernidade, em que tais
contatos interculturais ocorrem com maior facilidade, frequência e
intensidade no contexto de um mundo globalizado.
Por isso, ao considerarmos este caráter geralmente implícito da
cosmovisão, é preciso dizer que uma cosmovisão não é apenas um
conjunto de afirmações com o qual se concorda ou não, mas é
também e sobretudo um compromisso do coração. É o que está mais
fundo no coração, o fundamento das nossas ideias sobre todas as
coisas. James Sire diz que “são aquelas coisas a que chegamos
quando não podemos mais explicar por que dizemos o que
dizemos”[7]; ou seja, é um compromisso pré-teórico. Adquirimos
nossa cosmovisão desde muito cedo, desde nossas primeiras
experiências e as primeiras explicações sobre o mundo que recebemos
de nossos pais ou professores. Não assinamos nenhum documento
dizendo que concordamos com certo conjunto de crenças, nem
consultamos livros diversos até escolhermos a que mais nos agrada.
Vamos formando nossa cosmovisão ao longo da vida. É por isso que
para alguns o processo de conversão a Cristo pode parecer tão difícil
e, por vezes, até mesmo traumático, porque envolve uma mudança no
nível mais profundo de seu próprio coração, o que não é algo simples
de fazer.
Como há diferentes cosmovisões no mundo, um dos grandes
perigos de não termos clareza a respeito de nossas crenças
fundamentais é adotarmos conceitos ou proposições que não
correspondem com a cosmovisão que possuímos. Muitas vezes, sem
percebermos, concordamos com afirmações ou apoiamos causas que
são contraditórias com nossas premissas. O resultado pode ser uma
grande incoerência e confusão mental, no fim das contas. Como
Wolters coloca, “Se os seus atos não se afinam com as suas crenças,
você tende a mudar os seus atos ou as suas crenças. Você não
conseguirá manter a sua integridade (ou saúde mental) por muito
tempo se não fizer um esforço para resolver o conflito”[8]. Entender
nossa cosmovisão significa compreender também o que não é
compatível com ela. Por isso, é uma tarefa bastante útil também, na
medida do possível, compreender um pouco das outras cosmovisões, e
em que elas divergem das perspectivas cristãs possíveis (entre elas, a
perspectiva reformada, adotada aqui). Ao fim de nosso estudo, serão
oferecidas algumas possibilidades de comparações, a título de
exemplo. De qualquer forma, ter a sua própria cosmovisão bem
entendida é um primeiro passo fundamental nesse processo, e é este o
nosso foco aqui[9].
1.3. A Verdade absoluta sobre toda a realidade

Na verdade, podemos perceber que o que está no cerne da


discussão sobre cosmovisão é, de fato, a utilização um conceito
moderno para expressar uma afirmação há muito conhecida dos
cristãos, ainda que não com este termo: a de que a verdade da
revelação cristã não é apenas uma verdade teológica ou religiosa,
mas é a Verdade absoluta. Nas palavras de Francis Schaeffer: “O
cristianismo não é uma série de verdades no plural, mas é a Verdade
escrita com V maiúsculo. É a verdade sobre a realidade total, não
apenas sobre assuntos religiosos”[10]. Como já falamos brevemente na
introdução, a compreensão de que o cristianismo se pronuncia sobre
todos os assuntos e tem proeminência e aplicação sobre todos os
aspectos da vida, e não apenas os tidos como religiosos, é tão antiga
quanto o próprio cristianismo. Era muito claro para os primeiros
cristãos que o senhorio de Cristo se estendia pela totalidade de suas
vidas, e não apenas era uma garantia de vida após a morte. Isto se
percebe, por exemplo, ao notarmos que Paulo, em suas epístolas, não
fala apenas de “salvação”, mas trata de assuntos tão “mundanos”
quanto trabalho, casamento, governo civil etc. Todas essas coisas são
desdobramentos da mesma Revelação integral, e foi uma visão
mantida praticamente por toda a história da Igreja.
Também por isso, é ainda mais importante conhecermos a nossa
própria cosmovisão, e assim rejeitarmos ações e proposições que não
condizem com ela. Aqui, o risco não é apenas de uma dissonância
entre crença e prática, uma mera confusão; mas corresponde a não
agirmos segundo a Verdade revelada. Se cometermos este erro,
pecamos por não vivermos o Evangelho em sua integridade. Se
cremos que a Palavra de Deus é a verdade revelada sobre tudo (Jo
17:17), conhecer bem a cosmovisão em que cremos não é apenas uma
questão de clareza ou de coerência, mas de fidelidade a essa
revelação. É uma questão de vida ou morte; é preciso ser assertivo no
mundo quanto às suas crenças. Para isso, é necessário conhecê-las
bem, e este é o nosso objetivo aqui.
Estudar a cosmovisão cristã se trata, desta forma, de restaurar a
dimensão completa do Evangelho em nossa cultura e em nossas
vidas. É preciso derrubar uma barreira que foi colocada pela
modernidade, que acabou por tentar limitar a religião a uma esfera
particular, enquanto a “ciência”, o conhecimento objetivo e a razão
pertencem à esfera pública. Esta divisão entre público e privado é
entendida também como uma divisão entre “fatos” e “valores”. Nesta
divisão, “a religião não é considerada uma verdade objetiva à qual
nos submetemos, mas trata-se de mera questão de gosto pessoal que
escolhemos”, diz Nancy Pearcey[11]. Mas esta é uma dicotomia
artificialmente construída, que pode e deve ser questionada.
A cosmovisão cristã não precisa e nem deve ser considerada uma
crença estritamente privada, em oposição a outras mais “racionais”,
que podem ter lugar no debate público. Não há cosmovisão que seja
completa e simplesmente racional, ou seja, que tenha todos os seus
pressupostos puramente derivados da Razão, em contraste com uma
cosmovisão “religiosa”, como alguns poderiam considerar a
cosmovisão cristã. Como Pearcey afirma, “trata-se de capacidade
humana a habilidade de argumentar partindo de premissas”[12].
Assim, toda cosmovisão parte de alguma premissa básica, que é de
certa forma considerada como a realidade última ou absoluta. Diz
Pearcey: Todo sistema de pensamento inicia-se em algum princípio
último. Se não começa com Deus, começa com uma dimensão da
criação – o material, o espiritual, o biológico, o empírico ou o que
quer que seja. Algum aspecto da realidade criada será ‘absolutizada’
ou proposta como base e fonte de tudo o mais – a causa não causada,
o existente por si mesmo. Para usar linguagem religiosa, esta
realidade última funciona como o divino, se definimos o termo com o
sentido de uma coisa da qual todas as outras dependem para existir.
Essa pressuposição inicial tem que ser aceita pela fé e não por
raciocínio prévio. (Caso contrário, não é de fato o ponto de partida
supremo para todo raciocínio; logo, temos de continuar procurando
algo para começar dali)[13].
Assim, antes de pensarmos que a cosmovisão cristã não é
racional, devemos observar que todas as cosmovisões têm um
elemento último e fundamental de crença; nesse sentido, têm algo de
“religioso”, e não apenas a visão cristã. Portanto, é tarefa importante
para os cristãos restaurar ao cristianismo a relevância que lhe é
devida em nossa cultura. Para isso, partiremos agora para entender
como se definem os elementos principais de uma cosmovisão cristã.
1.4. Uma cosmovisão reformada

Antes de começarmos a análise propriamente dita, é preciso


destacar que a visão a ser adotada aqui é a noção da vertente
Reformada (ou Calvinista) do Cristianismo, conquanto existam
outras vertentes possíveis de se inserir dentro de uma visão cristã de
mundo. Para Albert Wolters, a diferença da perspectiva reformada
para outras opções cristãs é que a cosmovisão reformada possui uma
perspectiva integral, “que não aceita uma distinção entre os
‘domínios’ sagrado e secular no cosmo”[14], enquanto outras seriam,
por contraste, dualistas, fazendo essa divisão em alguma parte da
criação e, portanto, limitando a extensão dos elementos
fundamentais dessa visão. Como já foi dito acima, esta divisão não
cabe, pois Deus está permanentemente interessado e atuante em
todas as áreas da criação e das nossas vidas; vivemos, como se disse,
sempre e constantemente Coram Deo, ou seja, perante a face de Deus
em tudo o que fazemos.
Os reformadores combateram esses dualismos; como aponta
Nancy Pearcey, “os reformadores procuraram um retorno a um campo
de conhecimento unificado no qual a revelação divina é a luz que
ilumina todas as áreas de estudo”[15]. Os reformados, portanto,
creem que “as Escrituras falam de modo central sobre tudo na nossa
vida e no mundo, incluindo tecnologia, economia e ciência. […] Em
certo sentido”, afirma Wolters, “o apelo feito aqui por uma
cosmovisão bíblica é simplesmente para que o crente tome a Bíblia e
seu ensino de modo sério para a totalidade da civilização agora e não
a relegue a uma área opcional chamada ‘religião’”[16].
A cosmovisão Reformada, como compreendida pela maioria de
seus pensadores, se divide em três pontos fundamentais, através dos
quais toda a história da humanidade (e do mundo, como veremos)
deve ser compreendida. Tais pontos são, respectivamente: Criação,
Queda e Redenção[17]. Esses pontos, extraídos do relato bíblico,
começando desde os primeiros capítulos de Gênesis, não devem,
contudo, ser pensados apenas como uma sucessão cronológica de
eventos. Como veremos, suas características principais são
percebidas simultaneamente em todos os lugares e épocas, na vida de
todas as pessoas. Não são apenas momentos de uma história, mas
categorias pelas quais o cristão deve pensar toda a realidade ao seu
redor. Como Pearcey coloca, “A grade criação, queda redenção é útil
para diagnosticar as tradições teológicas […]. Também fornece o
andaime para construir uma perspectiva cristã sobre qualquer tópico,
além de servir de grade para analisar outras cosmovisões”[18].
Começaremos, obviamente, pela Criação.
PARTE 2: CRIAÇÃO

2.1. Criação e Providência: Passado e Presente


A primeira dimensão fundamental de uma cosmovisão cristã,
baseada no ensino bíblico, é a realidade da criação. Esta realidade
não é apenas um momento histórico, mas um aspecto da realidade,
que é constitutivo dela até hoje. Ou seja, não falamos apenas da
criação como algo que Deus fez no passado, no início de todas as
coisas. Entendemos que o fato de elas terem sido todas criadas por
Deus é uma característica fundamental dessas coisas: chamamos
isso de dimensão ou aspecto criacional de todas as coisas. Quando
falamos desse aspecto criacional, dizemos da função, propósito ou
intenção para a qual Deus originalmente criou todas as coisas,
função essa que ainda permanece relevante e que deve ser buscada
ainda hoje, como veremos mais à frente, enquanto discutimos
desdobramentos e implicações dessa dimensão criacional da
realidade.
O ensino cristão fundamental a respeito da Criação é o de que
Deus criou todas as coisas a partir do nada, conforme diversos textos
bíblicos afirmam, sobretudo o relato dos dois primeiros capítulos de
Gênesis. Quando falamos de criação, portanto, falamos tanto da ação
criadora de Deus quanto da realidade resultante deste ato; em
Gênesis lemos sobre a “história da criação”, e em nosso cotidiano
podemos contemplar as “belezas da criação”[19]. Existe grande
importância em chamarmos todas estas coisas não apenas de
natureza, por exemplo, que nos remeteria algo que simplesmente
existe por si só, mas de criação, ou seja, algo que teve um autor, um
criador, em quem todas as coisas têm sua origem. A forma como
chamamos as coisas nos ajuda a definir como pensamos a respeito
delas.
O relato da criação indica que Deus cria todas as coisas a partir
de Sua Palavra (Hb 11:3, Sl 33:9). Contudo, Deus não apenas cria
tudo no princípio, mas sua Palavra também mantém tudo o que
existe até hoje. Nesse sentido, a criação não é um ato passado de
Deus, mas uma atividade constante dele. O mesmo Deus que cria,
também sustenta a existência de todas as coisas em todos os
momentos; e não apenas sustenta, mas também governa
soberanamente todas as coisas. Assim, há uma relação praticamente
indissociável entre criação, providência e governo de Deus sobre suas
criaturas. Nesse sentido, a Criação no âmbito da cosmovisão
reformada engloba dois conceitos da Teologia Sistemática clássica, a
Criação e a Providência de Deus. Como Wolters afirma, “no
vocabulário de Deus, ‘fazer’ e ‘governar’ são sinônimos”[20]. Ou seja,
não dizemos apenas que tudo foi criado por Deus, mas dizemos que
tudo é criação de Deus. E essa criação não se limita apenas a seres
ou objetos, a elementos físicos, materiais ou visíveis, mas a tudo,
incluindo também relações, instituições e processos. Ele não criou
apenas seres humanos, mas criou também o trabalho e o casamento;
não criou apenas animais e vegetais, mas criou também processos
reprodutivos e sistemas ambientais completos; não criou apenas o
espaço, mas também o tempo, e a forma com que esses dois
elementos se relacionam. Isto fica evidente na estrutura repetida em
cada dia do relato de Gênesis 1, em que Deus não apenas cria os
seres, mas dá nome a eles (mostrando sua autoridade sobre cada
coisa) e estabelece sua função ou sua relação com os outros seres
criados.
Este é um aspecto importante por suas implicações. Em geral,
muitos cristãos parecem ter uma visão de mundo deísta ao pensar
sobre a criação. O deísmo é uma visão religiosa que considera que
Deus inicialmente criou todas as coisas, mas logo após ter terminado
tudo, se afastou de sua criação, não agindo mais diretamente no
mundo. É a famosa imagem de Deus como um relojoeiro, que após
haver terminado o relógio, dá corda no aparelho e deixa que ele
funcione por seu movimento automático. Mas não é isso que a Bíblia
afirma a respeito de Deus. Pelo contrário, ela diz que Cristo sustenta
todas as coisas pela palavra do seu poder (Hb 1:3). Diz também que
Deus se inclina para ver o que se passa na terra (Sl 113:6).
Quando entendemos que Deus criou todas os aspectos da
realidade, e não apenas pessoas ou objetos, entendemos que tudo
está sujeito ao seu governo. Porque Deus continua envolvido com sua
criação, todas as coisas que ele criou são importantes. Deus não está
preocupado apenas com a nossa vida “espiritual”, ou com a
dimensão “sagrada” da nossa vida, conforme a divisão que alguns
tentam fazer entre secular/sagrado, como já vimos. Essa divisão não
é possível justamente porque Deus criou e continuamente sustenta
todas as coisas. Logo, não há nenhum aspecto fora de seu domínio.
2.2. “E viu Deus que era bom”

Outra característica importante a respeito da criação é que ela é


fundamentalmente boa. Ao criar todas as coisas, “viu Deus que isso
era bom” (Gn 1:4,10,12,18,21,25,31); Paulo confirma esse
ensinamento a Timóteo (1Tm 4:4). Mais uma vez, isso inclui toda a
criação, não apenas seus elementos visíveis ou materiais. É preciso
lembrar que Deus abençoa, concede honra e virtude a um dia da
semana, estabelecendo assim um padrão para a vida de trabalho do
homem (Gn 2:3; Ex 20:8-11), bem como à relação fundamental entre
homem e mulher, o casamento (Gn 1:26-28). Essa bênção de Deus,
inclusive, é descrita como uma ordem a ser cumprida; falaremos mais
sobre este aspecto mais adiante.
A bondade da criação reflete, por sua vez, a bondade do Criador.
Plantinga afirma: “Deus criou os céus e a Terra como fruto de sua
própria bondade, do seu poder e do seu amor”[21]. Afirmar a bondade
fundamental de toda a criação é muito importante porque muitos
cristãos por vezes consideram alguma parte da criação (como a
realidade material ou a sexualidade, por exemplo) como sendo más
ou ruins por natureza. Mas pensar assim é um erro, que decorre de
não se compreender corretamente a natureza e a extensão do pecado
(conforme veremos na parte 3).
Além disso, quando não entendemos a bondade fundamental da
criação, não podemos entender por que o pecado é tão ruim, e mais
ainda, por que o sacrifício de Cristo é tão maravilhoso. Quando temos
uma visão pobre da criação, acabamos pensando que o pecado não é
algo tão mau. Mas o pecado é terrível justamente porque corrompe a
criação boa e perfeita de Deus, em todos os níveis. Podemos dizer que
a criação é tão boa que, mesmo com a corrupção causada pelo
pecado, Deus não desistiu dela, mas continua a sustentá-la, e
providenciou um meio para redimi-la e restaurá-la. Por isso, devemos
honrá-la e cuidar dela em todos os seus aspectos, seguindo suas leis,
como veremos a seguir.
2.3. O caráter normativo da criação

Vamos agora avançar sobre um aspecto importante, que nos ajuda


a entender como funcionam as relações e processos dentro dessa boa
criação de Deus: o caráter normativo da criação. Isto significa dizer
que a criação não pode ser manipulada de qualquer maneira, mas
possui regras próprias que devem ser seguidas.
Albert Wolters define o conceito de criação como “a correlação
entre a atividade soberana do criador e a ordem criada”[22]. A
expressão “ordem criada” é bastante importante ao falarmos da
Criação. Isto porque a atividade criadora de Deus não apenas gera ou
confere existência a todas as coisas, mas também confere ordem a
elas. Deus não deixou sua criação na desordem, ou “sem forma e
vazia” (Gn 1:2), mas organizou e ordenou todas as coisas. Como
dissemos, Deus não criou apenas todas as coisas, mas criou (ou seja,
definiu) também a forma com que essas coisas devem se relacionar
entre si. Por exemplo, Deus criou não apenas homem e mulher, mas
definiu a forma como eles devem se relacionar: o casamento. “A boa
criação de Deus inclui não somente a Terra e suas criaturas, mas
também uma gama de dons culturais, tais como o casamento, a
família, as artes, a linguagem, o comércio e (até num mundo ideal) o
governo”, como afirma Cornelius Plantinga Jr.[23]. Wolters completa:
“Nada há na vida humana que não pertença à ordem criada. Tudo o
que o somos e o que fazemos é como criaturas”[24]. Por isso, falamos
de leis ou normas criacionais, ou seja, que estão impressas em toda a
criação, e não podem ser simplesmente ignoradas. Veremos como elas
funcionam.
Podemos dizer que Deus governa tudo através de sua Lei, ou de
sua vontade soberana, que determina as características e
propriedades de cada um dos seres que cria. Essa Lei aqui não deve
ser pensada simplesmente como a Bíblia, a mensagem do Evangelho
proclamada à Igreja ou a Torá, dada ao povo de Israel, embora estas
sejam, sem dúvidas, compreendidas como expressões da Lei de Deus.
Essa Lei é compreendida num sentido mais amplo, que abrange dois
aspectos principais.
O primeiro aspecto é o que conhecemos como “leis naturais”, que
se referem à ordem natural, física e biológica dos seres, bem como as
forças que atuam sobre eles. Todas estas são vistas como formas
pelas quais Deus ordena a sua criação; o registro bíblico narra como
a criação obedece a Deus e cumpre a sua Palavra (cf. Sl 147, 148),
além de espelhar e anunciar Sua beleza e glória. Mas há também um
segundo aspecto, que podemos chamar de “normas”, que são as leis
de Deus para a cultura e sociedade. Como afirma Wolters: Com certeza,
reconhecemos as normas para os relacionamentos interpessoais, mas
hesitamos sobre quaisquer normas para as instituições sociais como tais ou
para algo tão mundano como a agricultura. Contudo, tanto a Escritura como a
experiência nos ensinam que a vontade de Deus deve ser discernida ali
também, que o Criador é soberano sobre o Estado tanto quanto sobre o reino
animal, que ele é Senhor sobre a agricultura tanto quanto sobre a troca de
energia. Os estatutos e as ordenanças de Deus estão sobre todas as coisas,
certamente não excluindo o amplo domínio dos assuntos humanos[25].
Assim, da mesma forma que Deus determina leis para reger a
natureza, há também leis para reger a vida humana, tanto
individualmente como em sociedade. Mas certamente há diferenças
entre os dois aspectos; a natureza responde de forma automática ou
instintiva, ao passo que os seres humanos são responsáveis pela
forma com que compreendem e respondem a essas normas. Cabe a
nós discernir estas normas, a partir das Escrituras e da vida, e
obedecê-las. Contudo, não há distinção nos dois aspectos, no sentido
de que são igualmente Lei de Deus. “O criador todo poderoso
reivindica tudo; o Soberano universal estabelece suas leis para tudo;
o Rei absoluto requer que a sua vontade seja discernida sobre
tudo”[26].
Como já dissemos, Deus não criou apenas criaturas, mas também
suas relações, quer sejam relações meramente físico-químicas ou
relações socioeconômicas. Isto significa dizer que Deus ordena e
sustenta não apenas as leis da gravidade ou da termodinâmica, por
exemplo, mas também determina padrões para instituições da vida
humana como a economia, a política ou a sexualidade; Deus criou e
determina sua vontade tanto para estas como para aquelas, e as
Escrituras não fazem distinção entre esses reinos, colocando tudo
debaixo do governo de Deus. Vemos, por exemplo, no Salmo 147, já
mencionado, que o autor não faz distinção entre os comandos que
Deus dá à natureza e a lei promulgada a Israel (v. 15-20).
A Bíblia também ensina que essa ordem que existe na criação é
uma revelação de Deus, de seu poder, glória e caráter. Como afirma o
salmista Davi, “Os céus proclamam a glória de Deus; e o firmamento
anuncia as obras de suas mãos. Um dia discursa a outro dia, e uma
noite revela conhecimento a outra noite” (Sl 19.1-2). Também o
apóstolo Paulo, já no começo da sua carta aos Romanos assevera que
“os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como
também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o
princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram
criadas” (Rm 1.20).
A beleza da criação, da qual falamos anteriormente, reflete a
grandeza de seu Criador, e seu aspecto ordenado afirma a sabedoria
deste Criador. Como o reformador João Calvino afirma, “tão
harmoniosa disposição do mundo é para nós como um espelho, no
qual podemos contemplar de outro modo o Deus invisível”[27]. Esse
ordenamento presente na criação indica também que o conhecimento
é possível de ser obtido e, portanto, deve ser buscado. Esse aspecto da
Revelação de Deus é normalmente chamado de revelação geral, que
atua conjuntamente com a revelação especial dada a nós nas
Escrituras. Nesse sentido, as Escrituras servem como uma lente para
enxergarmos e entendermos melhor a revelação presente na natureza:
assim “a Escritura, recolhendo em nossa mente um conhecimento de
Deus de outro modo confuso, desfazendo a fumaça, apresenta-nos
claramente o verdadeiro Deus”[28]. Certamente, há aspectos da vida
em que a ordem estabelecida por Deus não nos parece tão clara, ou
que a Bíblia não aborda de forma explícita. Nessas questões, por
vezes diferentes tradições cristãs têm chegado a diferentes respostas.
“Porém”, afirma Wolters, “o fato é que a falta de certeza ou
unanimidade não invalida a confissão básica cristã de que há uma
vontade de Deus para a minha vida, que pode ser conhecida, e devo
buscá-la e agir de acordo com ela”[29]. Sobre essas questões, é preciso
buscar o conhecimento da vontade de Deus “em toda a sabedoria e
entendimento espiritual” (Cl 1.9,10).
O ser humano, sobretudo, é criado à imagem e semelhança de
Deus (Gn 1.26-27); essa designação tão especial traz dignidade,
honra e privilégios únicos ao homem, mas também grande
responsabilidade. Esta doutrina, conhecida como imago dei, é uma
noção central para a concepção de ser humano em uma cosmovisão
cristã. Esta característica humana não é algo acessório ou
secundário, mas está no centro da compreensão da humanidade à luz
da Bíblia. A humanidade é a coroa da criação, coroado de glória e
honra, como afirma o salmista (Sl 8); ele ocupa um lugar central no
conjunto das criaturas de Deus, e tem um relacionamento único com
ele.
A cosmovisão cristã confere um grande valor à humanidade, e a
cada ser humano individualmente; ela é, de fato, um elemento
fundamental para a compreensão da dignidade humana ao longo de
toda a história ocidental. A noção de direitos humanos universais,
por exemplo, deriva diretamente desta concepção humana como
sendo imagem de Deus, e por isso portador de uma dignidade
intrínseca, merecedora de honra, respeito e proteção. Sem essa base,
o valor do ser humano carece de um fundamento firme e universal, e
pode atribuído ou retirado de maneira arbitrária por governos ou
grupos de interesses. Durante a história, o abandono da doutrina da
imago dei teve como consequência a categorização de grupos inteiros
de pessoas como gente de “segunda categoria”, ou mesmo como
“não-pessoas”; mesmo hoje, não é raro vermos, ainda que às vezes de
maneira sutil, seres humanos serem igualados a animais ou até a
máquinas. Por isso essa compreensão é tão fundamental: fora dela,
toda a dignidade da vida humana corre sério risco, com implicações
trágicas[30].
2.4. O shalom e o mandato cultural

A bondade e ordem fundamentais da criação podem ser expressas


pelo conceito de shalom. Esse é um termo hebraico que significa
muito mais do que “paz”, sua tradução mais comum. Ele expressa,
antes, um estado de coisas. Plantinga explica assim o conceito: Na
Bíblia, shalom significa florescimento universal, compleição e regozijo – um
contexto rico e satisfatório de circunstâncias, no qual as necessidades naturais
são satisfeitas e os dons naturais são empregados produtivamente, e tudo isso
acontecendo debaixo da cobertura do amor de Deus. Em outras palavras,
shalom representa o modo como as coisas deveriam ser[31].

A primeira palavra do Senhor ao ser humano é uma ordem para


que ele agisse como mordomo, como cuidador da criação: “E Deus os
abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e
sujeitai-a; dominai sobre todos os peixes do mar, sobre as aves dos
céus e sobre todo animal que rasteja pela terra” (Gn 1.28). Neste
mandamento, que ficou conhecido na tradição teológica como
mandato cultural, o Senhor Deus abençoou os seres humanos e lhes
deu ordem para que não apenas cuidassem, mas também
desenvolvessem responsavelmente a criação, expandindo e
desenvolvendo este shalom. Como explica Wolters, “A criação não é
algo que, uma vez feito, permanece estático. Há, por assim dizer, um
crescimento (embora não num sentido biológico), uma revelação da
criação”. Ele prossegue: Todo o vasto conjunto da civilização humana não é
o espetáculo das aberrações arbitrárias de um capricho evolucionário nem o
panorama inspirador das realizações criativas do próprio eu; antes, é a
demonstração da maravilhosa sabedoria de Deus na criação e o significado
profundo da nossa tarefa no mundo. Somos chamados a participar na obra
criacional de Deus que está em progresso, para sermos ajudadores de Deus na
execução de sua obra-prima[32].
Contudo, é importante lembrar que, como essas normas são
criacionais, ou seja, estão embutidas e impressas em toda a criação,
não é simplesmente uma questão de escolha segui-las ou não. Tal
como as leis da física ou da química, elas devem ser seguidas e
respeitadas, ou as consequências serão trágicas, como têm sido, por
causa de nossa desobediência. Elas são como uma moeda que possui
dois lados: seguir as normas criacionais significa desenvolver a
criação ao máximo de seu potencial, ao passo que abandoná-las ou
contradizê-las trazem malefícios graves, pois significa agir contra a
própria natureza das coisas criadas. Da mesma forma que um
homem que tenta ignorar a lei da gravidade ao se jogar do alto de um
prédio, não podemos mudar a norma criacional do que é o casamento
sem colhermos as consequências trágicas de nossa rebeldia. Como diz
Bob Goudzwaard: O propósito das normas é nos levar à vida na sua
plenitude, apontando-nos caminhos que nos conduzam com segurança nessa
empreitada. [...] Se o homem e a sociedade ignorarem as normas verdadeiras,
como a justiça e a restituição dos direitos, o respeito pela vida, o amor ao
próximo e a mordomia, eles são obrigados a vivenciar os efeitos destrutivos
dessa negligência. Portanto, isso não é um destino misterioso que nos atinge;
antes, é um juízo que os homens e a sociedade trazem sobre si mesmos. [...] As
leis ou normas verdadeiras são indicadores que nos guiam ao longo de estradas
seguras e transitáveis. Fora das normas, nossos caminhos são caóticos[33].

Vale para nós a mesma advertência feita por Moisés ao povo de


Israel no deserto: estão diante de nós o bem e o mal, a bênção e a
maldição, para escolhermos. Observar a lei de Deus é escolher a vida
(Dt 11:26-32; 30:15-20).
Temos um papel a cumprir no desenvolvimento da criação de
acordo com as normas estabelecidas por Deus. Portanto, a boa e
ordenada criação de Deus não é uma obra encerrada, mas uma
realidade repleta de possibilidades, em que o ser humano está
inserido e atua ativamente, com a missão de desenvolvê-la de uma
forma que expresse o caráter criativo e bom do próprio Deus,
revelando assim a imagem divina nele impressa. Contudo, há algo na
realidade do mundo que impede que essa missão seja cumprida da
forma como deveria ser; há algo que impede a realização e o
estabelecimento deste shalom, como veremos no próximo capítulo.
PARTE 3: QUEDA
3.1. A extensão da queda
A segunda dimensão da cosmovisão cristã é a realidade da queda.
Antes de tudo, É importante ressaltar mais uma vez que cada um
desses elementos (criação, queda, redenção) não são simplesmente
momentos históricos ou eras, mas dimensões de compreensão da
realidade que se sobrepõem uma vez inauguradas. São camadas que
se colocam uma sobre as outras, três lentes que devem ser usadas
simultaneamente ao olharmos o mundo. A dimensão da queda não
anula a dimensão da criação, mas são realidades que devem ser
compreendidas somadas, conjuntamente, em suas implicações.
Veremos, portanto, como a dimensão da queda, a realidade do
pecado, altera e influencia a realidade criacional em que vivemos, e
quais são suas implicações.
Se os dois primeiros capítulos de Gênesis relatam a boa criação de
Deus, o capítulo seguinte é fundamental para entendermos por que
esta criação, conforme a percebemos hoje, está longe de ser tão boa
quanto poderia ser. O mundo, certamente, não se encontra no estado
de shalom; se por um acaso, em algum lugar experimentamos esta
sensação de completude, de harmonia, é apenas por momentos
bastante fugazes, que nos deixam saudosos, ansiando por mais, por
uma plenitude. Vemos que o mundo é bom, mas há algo muito errado
nele. E o relato de Gênesis 3 nos indica a origem desse erro: o pecado
do ser humano, representado por seus primeiros exemplares, Adão e
Eva (Gn 3:1-24).
A primeira coisa que percebemos como consequência do pecado é a
extensão da queda. Sabemos, como toda a teologia tradicional
afirma, que na Queda o ser humano perdeu sua comunhão com Deus
(Is 59:1-2, Rm 3:23). Como vimos no capítulo anterior, o ser humano
foi criado à imagem de Deus (imago dei), e este é um elemento
fundamental em sua compreensão de si mesmo. Contudo, embora a
queda não anule esse elemento, ela certamente o afeta, no sentido de
que toda a humanidade, ainda que criada por Deus e possuindo uma
dignidade intrínseca por isso, também possui uma natureza
pecaminosa, que atinge tudo que o ser humano é, faz e pensa. Não
deixamos de ser imagem de Deus, mas somos uma imagem caída,
manchada, com uma natureza pecaminosa herdada de nossos
primeiros pais.
Ademais, a rebeldia humana contra a vontade expressa de Deus
colocou não apenas o próprio ser humano, mas toda a criação sob
maldição (Gn 3:17-18). O destino do homem, feito do pó da terra, e o
da própria terra estão intimamente entrelaçados. O ser humano era
(e ainda é) o representante de Deus na terra, responsável por
desenvolver a boa criação de Deus em seu nome, e sob sua autoridade
(Gn 1:26-31); por isso, quando o homem caiu, toda a criação sujeita
a ele também caiu. O pecado humano fez toda a criação ter seu
estado original de shalom corrompido. Não somos só nós, seres
humanos, que sofremos com a consequência do pecado; Paulo nos
lembra de que toda a criação está sob cativeiro e “geme e suporta
angústias até agora” (Rm 8.19-22). Como Plantinga afirma, “Do
modo como estão as coisas agora, a criação ainda declara a glória de
Deus, mas também declara a tragédia da queda, do caos, de
carnificinas dolorosas. […] A criação fala, agora, de duas maneiras.
Ela ainda entoa e ecoa, mas também geme”[34]. Conhecemos este
shalom pelas Escrituras, apenas como uma possibilidade, um relato
distante no passado (ou no futuro, como veremos adiante), e
sentimos sua falta em nossas consciências, que nos dizem que algo
está errado com o mundo. Podemos afirmar, portanto, que tudo que
há de errado ou de mal no mundo é consequência do pecado humano,
ainda que nem sempre possamos relacionar diretamente um mal
específico como sendo consequência direta de um pecado pessoal
determinado.
Aqui, mais uma vez, como ao falar da Criação, é preciso lembrar
que o horror da Queda abrange toda a realidade criacional; tanto
seus elementos físicos e materiais quanto seus aspectos não-
materiais: as relações diversas entre os seres, sejam elas sociais,
culturais ou espirituais. Sofrem os efeitos da Queda não apenas os
animais ou as plantas, mas também as instituições sociais; não
apenas cada ser humano individualmente, mas as relações entre eles.
Passa a haver desequilíbrio na relação homem-mulher (Gn 3:16), na
relação entre o homem e a terra (3:17-19), e, logo depois, na relação
entre irmãos (4:1-16). Os efeitos da queda, inclusive, parecem mais
perceptíveis nesse último âmbito, das relações: seja na política, na
família, no casamento, na economia ou nas artes, “em todos os
lugares para os quais nos voltamos, as boas possibilidades da
criação de Deus são mal usadas, estão distorcidas e são exploradas
para fins pecaminosos”, diz Wolters[35]. A escalada do mal nos
primeiros capítulos de Gênesis, até o dilúvio (Gn 6-9) e depois até o
chamamento de Abrão (Gn 12) é notável. Além disso, Paulo nos
mostra como até a forma de pensar do homem sem Deus é afetada
pelo pecado (Rm 1:18-32), como justa condenação por sua rebeldia.
3.2. O erro da divisão secular/sagrado

O resultado de nossa rebeldia é que não há aspecto da nossa


realidade que esteja fora do alcance da Queda, nem que seja mais ou
menos suscetível a seus efeitos. Esta afirmação é bastante
importante porque, como já foi dito, alguns cristãos tendem a traçar
uma linha na criação, separando partes que estariam sob o domínio
do pecado e partes fora deste domínio; ou, dito de outra forma, fazem
uma divisão dos elementos da realidade entre dois reinos: o secular e
o sagrado. No primeiro reino estariam principalmente o mundo físico
e as atividades cotidianas, como trabalho ou o lazer; esta parte
encontrar-se-ia sob o domínio do pecado. No segundo reino ficariam
elementos “espirituais”, como a oração, leitura da Bíblia, ir à igreja e
outras atividades devocionais ou religiosas, que pertenceriam a um
reino “sagrado”, e por isso não seriam afetados pelo pecado.
Esta divisão secular/sagrado, ainda que possua variações,
provavelmente tem sua origem em uma seita religiosa datada dos
primeiros séculos da era cristã, chamada Gnosticismo.
Resumidamente, esta tradição ensinava que o mundo material era
essencialmente mau e corrompido, criado por um deus mau e rebelde.
A salvação, portanto, consistiria em escapar desta realidade material
para unir-se ao verdadeiro e bom deus, no mundo espiritual. Para os
gnósticos, Jesus não era Deus, mas apenas um ser enviado pelo Deus
verdadeiro para ensinar aos seus escolhidos o conhecimento (gnosis)
necessário para que esta salvação fosse alcançada. Esse ensino,
contudo, choca-se frontalmente com a afirmação bíblica da bondade
fundamental da criação. Diziam, também, que, por ser bom e perfeito,
Jesus não poderia ter encarnado. O apóstolo João já combatia uma
forma primitiva dessa heresia em suas cartas (1Jo 4:1-3; 2Jo 7).
Não obstante, esta tendência de dividir a criação permanece até
hoje. Como aponta Wolters, “o grande risco é sempre escolher algum
aspecto ou fenômeno da boa criação de Deus e identificá-lo, em vez
da intrusão da apostasia humana, como o vilão no drama da vida
humana. […] O resultado é que algo na boa criação e declarado
mau”[36]. Nada na criação é essencialmente mau; entretanto, tudo foi
corrompido pelo pecado. Por isso, ainda Wolters adverte: Essa divisão
em compartimentos é um grande erro, pois sugere que não há 'mundanismo' na
igreja, por exemplo, e que não há santidade na política ou, digamos, no
jornalismo. Ela define o que é secular não pela sua orientação religiosa ou
direção (obediência ou desobediência às ordenanças de Deus), mas pelo lugar
criacional que ocupa. Portanto, é uma presa da tendência gnóstica
profundamente arraigada de depreciar um domínio da criação (virtualmente
toda a sociedade e cultura) com relação a outro, rejeitar o primeiro como
inerentemente inferior ao último[37].

Esta afirmação é muito importante, para darmos a dimensão


correta à Queda e ao pecado. Não podemos menosprezá-lo, nem
tampouco supervalorizá-lo. Se consideramos que a corrupção
causada pelo pecado atua apenas em determinadas áreas da nossa
vida e não em outras, podemos baixar nossa guarda para tentações e
riscos que corremos em áreas consideradas “seguras”. Não estamos a
salvo em nenhum momento, mesmo na igreja e em nossas tarefas
“espirituais”. É preciso lembrar que a primeira e principal relação
manchada pelo pecado foi nossa relação com Deus; por isso, a
antítese fundamental entre submissão e rebeldia tenta se infiltrar
com ainda mais força justamente nessa relação. Por outro lado, o
pecado não tem o poder de destruir completamente a boa criação de
Deus, por causa de sua providência, que continua atuando. Se a
rebeldia do homem atingisse seu objetivo final, o de sua completa
autonomia, ele simplesmente deixaria de existir, pois, afinal “nele
vivemos, e nos movemos, e existimos” (At 17:28).
3.3. Estrutura e Direção

Como já foi dito, Criação e Queda não são simplesmente momentos


sucessivos na história humana, mas dois aspectos simultâneos da
mesma realidade. Como vimos, a Queda não atua separando a
criação em partes. Ela tampouco substitui ou anula a criação, ou a
destrói completamente; neste sentido, a realidade da Queda não
invalida o que foi dito anteriormente sobre a Criação. A Queda se
justapõe à realidade criacional: “o mal é uma espécie de parasita da
bondade”[38]. Quando olhamos para o mundo hoje, vemos
simultaneamente as duas realidades: as características criacionais
(boas) intrínsecas de cada coisa, e ao mesmo tempo sua distorção
pelo mal. O mal não tem vida própria, mas se utiliza do bom
propósito original da natureza criada para distorcê-lo e desfigurá-lo
cada vez mais, até que sua bondade original seja quase
indistinguível.
Dito de outra forma: o mal não altera fundamentalmente a
estrutura da realidade criacional (ainda que busque fazê-lo), mas
desvia a sua direção. “Qualquer coisa na criação pode ser
direcionada para Cristo ou para longe de Cristo – isto é, direcionada
para a obediência ou a desobediência à sua lei”; contudo, “a
estrutura de todas as hipóteses criacionais persiste a despeito de sua
perversão direcional”[39]. Ou seja, a estrutura de cada elemento é o
que revela seu caráter criacional; a direção, por sua vez, representa
como essa estrutura é afetada ou não pelo pecado, e em que grau.
Como propõe Pearcey, “em todo empreendimento em que nos
engajamos, precisamos perguntar: Qual a estrutura original que
Deus criou, e como está sendo torcida e dirigida para fins
pecaminosos?”[40].
Esta distinção é mais fácil de ser compreendida se nos lembrarmos
de que na Criação o ser humano foi comissionado para cultivar a
terra e desenvolvê-la responsavelmente. A estrutura de cada coisa foi
determinada por Deus de antemão, e Ele revelou também a direção
que cada elemento deveria seguir. Com a Queda, o ser humano
passou a seguir seus próprios desígnios, em vez da orientação dada
por Deus; mas, mesmo assim, continuou a desenvolver cultura. Não
deixou de criar; contudo, passou a criar para a sua própria glória, em
vez de para a glória do criador. Assim, a distinção entre estrutura e
direção é importante para não cairmos no dualismo gnóstico, nem
cairmos na tentação de atribuirmos a origem do mal a algum
elemento da boa criação, que não a nossa própria rebelião contra
Deus.
A Queda não é algo natural, ou inerente à criação (ou a alguma
parte dela), ainda que o mal seja comum em nossa realidade atual.
Como vemos no relato de Gênesis, o mal não faz parte da criação
original de Deus. A Queda, em todas as áreas que ela toca, é
consequência da ação humana, é efeito da decisão do homem de
desobedecer a Deus, que espalha seus efeitos perniciosos de forma
cada vez mais ampla, assim como uma pedra jogada bem no meio de
um espelho d'água produz ondas que vão se expandindo. A Queda
tem sua origem no homem, não em outras partes da criação.
Uma conclusão importante a ser extraída desta distinção entre
estrutura e direção é que o mal, por pior que seja, não consegue
nunca corromper completamente a boa criação de Deus. Por mais
distorcida que seja a direção de algo, sua estrutura fundamental
ainda persiste. O próprio Deus não permite que sua criação se
transforme num caos absoluto. A isso os teólogos chamam de graça
comum (ou graça preservativa), que é “a bondade de Deus
demonstrada sobre todos, independente da fé, consistindo de bênçãos
naturais, da restrição à corrupção, da semente da ordem política e
religiosa e de uma série de impulsos e modelos, civilizadores e de
caráter humanitário”[41]. Paulo fala desta graça derramada sobre
todos em seu discurso aos atenienses (At 17:24-28). Por causa da
graça comum, a humanidade não é tão ruim quanto poderia ser, e o
mal tem seu poder limitado. Ela também permite que a humanidade,
mesmo corrompida, continue a desenvolver a criação, ainda que não
da forma ordenada por Deus. Por causa dela, a sexualidade
pervertida ainda é sexualidade; uma política opressora ainda é
política; uma filosofia niilista ainda é filosofia; uma religião idólatra
ainda é religião, por mais que suas estruturas originais nos pareçam
quase totalmente suprimidas. As estruturas criacionais são
inevitáveis. “Por causa da corrupção, nenhum ser humano é tão bom
quanto poderia ser; mas por causa da força da criação e da fidelidade
de Deus em preservá-la, também nenhum ser humano é tão mal
quanto ele pode ser”, diz Plantinga[42].
3.4. A autonomia como rebeldia e como punição

O que acabamos de ver significa que o homem não deixa de ser


homem por causa do pecado, mas possui sua humanidade atingida,
contaminada por ele. Como diz Paulo em sua carta aos Romanos, nos
tornamos incapazes de discernir a clara revelação de Deus na criação
(Rm 1:18-32). Neste texto, vemos como o homem, criado por Deus,
passa a atuar de forma diferente do que foi pretendido por Deus:
primeiro, a adoração da criatura em lugar do criador, que tem como
resultado o obscurecimento do próprio entendimento acerca do
mundo. Como consequência, as relações humanas também mudam,
para algo contrário ao que foi determinado por Deus para essas
relações. O castigo de Deus se revela justamente em que o homem
tenha liberdade para seguir a sua direção rebelde, deformando assim
a estrutura criada por Deus.
É preciso lembrar aqui mais uma vez o caráter normativo da
criação. Ou seja, o mundo não é uma tela em branco, sobre a qual o
homem pode compor da maneira que quiser. A tarefa de desenvolver a
criação certamente é uma tarefa essencialmente criativa e não
simplesmente algo robótico ou automatizado; contudo, há limites
para a criatividade humana, e esses limites são as leis e normas
criacionais. Quando tentamos alterar, por exemplo, o significado e as
funções da família para algo diferente do que Deus determinou,
colhemos os prejuízos desta distorção, que terá seus efeitos sentidos
em todas as áreas de nossa vida, porque elas estão interligadas.
Esta observação é importante porque um dos grandes motos da
nossa era é justamente “seja tudo o que você quiser ser”, ou
variantes como “não há limites para a criatividade”, etc. Não à toa,
cada geração procura avançar ainda mais os limites dessa
capacidade de autonomia, de criação independente; por isso mesmo,
têm pavor a tudo que os limite em qualquer dimensão, seja nas mais
óbvias e constituintes do nosso ser, que até pouco tempo eram
inquestionáveis. Um exemplo claro é o rápido avanço das discussões
sobre sexualidade e gênero. Hoje, considera-se que mesmo seu corpo
não pode dizer quem você é. Não importa se você nasceu com um
corpo masculino ou feminino; apenas você pode dizer quem você é, de
acordo com aquilo que você sente a seu próprio respeito. Tais pessoas
abominam declarações como as do salmista que diz que o “por modo
assombrosamente maravilhoso me formaste”, e que “os teus olhos me
viram a substância ainda informe” (Sl 139). Têm de ser senhores não
apenas de seu destino, mas também de sua natureza. Mas tal busca
por autonomia cobra um preço caro. Contrariamente ao desejo do
mundo por autonomia, por “ser você mesmo” ou por construir a sua
própria imagem, a Bíblia nos chama a sermos conformes à imagem
de Cristo (Rm 8:29; Gl 2:19-20; Fp 3:4-11).
Se os cristãos ainda não chegaram a esses extremos da
autonomia, isto não quer dizer que muitos não tenham começado a
trilhar o mesmo caminho. Quantos hoje, por exemplo, não
desconsideram as orientações bíblicas claras a respeito do casamento
e das funções que marido e mulher devem exercer dentro dele, dando
preferência a alguma espécie de “acordo” feito pelo próprio casal?
Como já dissemos, Deus criou o casamento; e isso não significa
apenas que ele decidiu que um homem e uma mulher se uniriam, mas
também como, por quê e com que finalidade isso deve acontecer. Um
consentimento do casal sobre alguma coisa não pode, de forma
alguma, se sobrepor ao que Deus definiu. Usamos o casamento como
exemplo, mas poderíamos falar do trabalho, do uso do dinheiro, e,
por que não, da forma como nos reunimos como igreja e cultuamos a
Deus. Será que realmente pensamos que basta termos “boas
intenções”? Precisamos nos lembrar que a verdadeira vida, a
verdadeira prosperidade, a verdadeira felicidade e a verdadeira
liberdade estão não na autonomia, mas em descobrir e seguir a lei do
Senhor em cada área de nossas vidas (Sl 19:7-14; Sl 119).
Mas, se estamos contaminados pelo pecado em todas as áreas de
nossa vida, de tal maneira que mesmo nossa forma de pensar foi
corrompida, como podemos descobrir e seguir essa lei do Senhor? E
mais, como podemos encontrar essa lei no meio da criação
corrompida? Para isso, é preciso lembrar dois pontos: primeiro, que
Deus não perdeu o controle sobre sua criação; suas leis permanecem
até hoje, preservando-a. Esta afirmação de que a Queda não elimina
a natureza da criação é fundamental para compreendermos que ela
não apenas precisa de restauração, mas que a restauração é possível;
mais ainda, que a restauração não é apenas possível, mas já está em
curso. E, de fato, o próprio Deus providenciou o meio para que isto
acontecesse. Trataremos disso na próxima parte.
PARTE 4: REDENÇÃO
4.1. A extensão da Redenção
O terceiro elemento da compreensão da realidade a partir de uma
perspectiva bíblica é geralmente chamado de redenção. Mais uma vez,
é preciso lembrar que este é um aspecto da realidade, que se soma
aos que vimos anteriormente. Não são etapas que se substituem, mas
dimensões simultâneas da mesma realidade, a serem percebidas e
consideradas conjuntamente. De fato, não há e nem pode haver
redenção sem que antes haja criação e queda; este terceiro elemento
se constitui sobre a base dos dois anteriores. Veremos, portanto, como
ele se aplica em nossa vida e na nossa visão de mundo, com seus
desdobramentos.
Da mesma forma que a causa da Queda não está em nenhum
elemento da criação, tampouco a criação poderia tirar de alguma
parte de si mesma a restauração necessária. Se o mal que há no
mundo é consequência do pecado humano, apenas algo que lide
efetivamente com este pecado consegue resolver esse problema. A
restauração não está na piedade ou caridade humana, em políticas
sociais ou econômicas mais solidárias, no respeito à natureza; nada
disso faz o homem e o mundo caídos mudarem seu estado.
A boa notícia é que Deus não se conformou em ver sua boa criação
ser consumida pelo pecado. Logo depois do relato da Queda, Gênesis
3 já possui também o relato da graça de Deus, de sua iniciativa de
preservar e restaurar suas criaturas. Para o homem que peca e se
descobre nu, o próprio Deus faz roupas para vestir (Gn 3.21). A partir
daí, todo o registro bíblico é uma história de como Deus
graciosamente procura resolver o problema do pecado humano. A
providência, que vimos ao estudar a Criação, atua como uma graça
que preserva o ser humano e toda a criação, até que a solução
definitiva chegue, como vemos ao longo da história. E essa história
tem um ponto central, um clímax.
Este ponto culminante é a manifestação mais plena da
maravilhosa graça de Deus, o momento em que “o Verbo se fez carne
e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua
glória, glória como do unigênito do Pai” (Jo 1:14). Na pessoa de Jesus
Cristo, o próprio Deus se esvaziou e assumiu a forma de servo, para
apresentar a solução definitiva para o problema da queda. Se o
pecado entrou no mundo pelo ser humano, Deus se fez homem para
tirar o pecado do mundo (Jo 1:29). Como João 3:16 afirma, Jesus é
uma resposta de amor de Deus ao mundo caído. Não à toa, Paulo fala
de Cristo como o segundo Adão, aquele que veio para justificar os que
estão sob a condenação do primeiro Adão (Rm 5:12-21; 1Co 15:45).
Ele é a verdadeira e perfeita imago Dei, aquela que o homem falhou
em ser.
Na cruz, Cristo pagou o preço pelos nossos pecados, para nos
reconciliar com Deus. “Nosso pecado é grande; nosso poder em
repará-lo, mísero. Na realidade, com frequência recusamos até a
admitir o nosso pecado”, diz Plantinga; “Jesus Cristo veio ao mundo
para oferecer a penitência que nós recusamos pagar”[43]. Jesus é o
Redentor de que precisávamos: sendo homem, pôde se identificar
conosco e assumir o nosso lugar; sendo Deus, foi capaz de viver a
vida perfeita exigida para poder oferecer um sacrifício sem defeito
que desviasse a ira de Deus, tendo valor infinito e derrotando a morte
com sua ressurreição. Assim, Jesus atuou em nosso favor quando
ainda éramos inimigos de Deus; essa é, sem dúvida, a afirmação
principal de todo o Evangelho, e o cerne da ação redentora de Cristo
(Rm 5:1-11).
Porém, assim como o pecado humano afeta toda a criação, a
Redenção oferecida por Deus em Cristo restaura também toda a
criação. Wolters afirma: “a abrangência da redenção é tão grande
quanto a da queda; ela compreende toda a criação. A raiz de todo o
mal sobre a terra – ou seja, o pecado da raça humana – é expiada e
conquistada na morte e ressurreição de Cristo”[44]. Não são apenas
seres humanos individuais que têm a sua comunhão com Deus
restaurada, mas toda a realidade criacional já descrita: seus
elementos materiais, culturais e espirituais. Como Paulo afirma,
Cristo morreu na cruz para que “reconciliasse consigo todas as
coisas, quer sobre a terra, quer nos céus” (Cl 1.20). A graça de Deus
em Cristo restaura indivíduos, relacionamentos, sociedades e
culturas, onde quer que tenham sido atingidas pelo pecado.
Esse sentido da Redenção como reconciliação é fundamental. O
objetivo de Deus é restaurar o shalom perdido com a Queda. Não se
trata de abandonar a criação e fazer uma nova a partir do nada, mas
de restaurar sua bondade original. Wolters explica que “A redenção
não é uma questão de acrescentar uma dimensão sobrenatural à vida
humana; antes, é uma questão de dar nova vida e vitalidade ao que
já estava lá o tempo todo. […] A graça restaura a natureza,
tornando-a íntegra novamente”[45]. A salvação em Cristo, portanto,
não representa uma fuga deste mundo, mas restaura o sentido
original de se viver nele.
A imagem que Paulo usa para falar do homem redimido é a de
perfeição, ou seja, de alguém completo, amadurecido, que
desenvolveu todo o potencial que havia em si mesmo. Ele diz que
apenas em Cristo podemos chegar à estatura da perfeita varonilidade
(Ef 4:13; Fp 3:12-16). Semelhantemente, Abrão também foi chamado
à perfeição (Gn 17:1), que é alcançada através da caminhada com
Deus e do estudo diligente de sua Palavra (2Tm 3:14-17). A perfeição
não é simplesmente um ponto final a que se chega, mas uma
condição que se conquista e deve ser buscada a cada dia. É a
caminhada da santidade, necessária a qualquer um que busque ver a
Deus (Hb 12:14).
Ainda que não se limite a indivíduos, a redenção do mundo
começa, certamente, pela ação soberana de Deus em salvar
indivíduos e os chamar para uma caminhada de santidade. Esta
observação é importante, por motivos que retomaremos mais à frente.
4.2. Estrutura e direção

Pensando nos conceitos de estrutura e direção, a Redenção


significa um retorno de todas as estruturas à direção proposta por
Deus. O propósito de Deus é “fazer convergir nele [em Cristo]... todas
as coisas” (Ef 1.10). É voltar ao shalom proposto, que no relato do
Novo Testamento tem um conceito paralelo: o reino de Deus. Este
termo não deve ser entendido como um território em que Deus
governa, mas como o governo de Deus sobre tudo, ou seja, seu
domínio sobre todas as áreas da vida em que o pecado tentou
usurpar seu controle. Esse governo é expresso sobretudo no
ministério de Cristo na terra. “A obra de Cristo não foi apenas a
pregação da vinda de um reino havia muito esperado, mas também
uma demonstração dessa vinda. Em suas palavras e especialmente
em suas obras, o próprio Jesus foi uma prova de que o reino havia
chegado”[46].
De fato, as palavras que inauguram o ministério de Cristo,
segundo o relato de Mateus, são: “arrependei-vos, porque está
próximo o reino dos céus” (Mt 4:17). Toda a sua obra em seu
ministério terreno consiste na demonstração do poder desse reino:
cura de enfermos, expulsão de demônios, ressurreição dos mortos,
multiplicação de alimentos, domínio sobre as forças da natureza. Sua
própria ressurreição, por fim, representa a vitória decisiva sobre o
inimigo final e mais cruel trazido pela Queda: a morte (Rm 6:20-23).
Podemos considerar a redenção das estruturas de volta à direção
proposta por Deus, de uma forma alegórica, como a resposta de
Cristo à mulher adúltera: “nem eu te condeno. Vá e não peques mais”
(Jo 8:11). A restauração trazida pela Redenção não significa uma
volta no tempo, ao Éden. Antes, significa que voltaremos a
desenvolver a criação de modo que agrade a Deus e obedeça a sua
Lei, do ponto em que estamos agora. Não se trata de voltar atrás na
história e no tempo até o ponto em que erramos, mas de reajustarmos
nossa bússola e retomar o sentido correto para que cheguemos ao
destino originalmente pretendido, fazendo as correções necessárias
no caminho.
É preciso lembrar que o relato bíblico começa com o ser humano
num jardim em Gênesis, mas termina com a humanidade redimida
em uma cidade santa (que possui um jardim no centro) em
Apocalipse, após a volta de Cristo (Ap 21:2). Nesta cidade, é dito, são
reunidas a glória das nações (Ap 21:24-26; Is 60:11). Estas
afirmações são importantes porque reforçam o que já foi dito
anteriormente: que a cultura não é má em si, mas é apenas um dos
elementos a serem redimidos. Muitos hoje pensam que tudo que
provém de alguma inovação tecnológica ou cultural é
necessariamente mau, e por isso deve ser descartado. Trata-se mais
uma vez de tentar traçar uma linha dividindo sagrado e profano,
situando a Queda em algum dos elementos criados. As imagens do
céu são muitas vezes a de um lugar idílico, monótono, onde não há
muito a se fazer. De forma semelhante, geralmente associamos a
ideia de inocência do primeiro homem à sua condição primitiva no
jardim, esquecendo que Deus lhe dera a ordem de cultivar o jardim
mesmo antes da Queda (Gn 1:28). Esta visão não é bíblica, mas é
uma versão popular do mito do “bom selvagem” de Jean Jacques-
Rosseau, para quem o homem em seu estado de natureza é bom e
inocente, mas a sociedade é quem o corrompe.
É preciso reafirmar que o desenvolvimento da cultura não é algo
em si pecaminoso, mas que foi corrompido pelo pecado e pode ser
redimido pela graça de Deus. Não há nada que em sua essência não
possa ser redimido. Pedro aprendeu essa lição com uma visão (At
10:16), e Paulo reafirmou esse princípio a Timóteo (1Tm 4:1-5).
Nancy Pearcey afirma que “como parte da boa criação de Deus, o
mundo material participará da redenção final. Na eternidade
continuaremos cumprindo o mandato cultural, mas sem o pecado,
criando coisas que são bonitas e benéficas com as matérias-primas
da renovada criação de Deus”[47].
Entretanto, o próprio Jesus ensinou seus discípulos a orar pela
vinda do Reino, sinalizando que este não havia ainda chegado em
toda a sua plenitude, o que se confirmará apenas na segunda vinda
de Cristo. No que diz respeito à restauração de todas as coisas,
vivemos entre o já e o ainda não; sabemos, pelo testemunho das
Escrituras, que esta redenção se consumará, e aguardamos por este
momento. No presente, porém, a vemos já alguns efeitos desta
redenção, mas ainda não todos, como veremos.
4.3. O Mandato Cultural e a Grande Comissão

Dissemos que vivemos entre o já e o ainda não, contemplando


sinais visíveis da obra restauradora de Deus na criação e
aguardando a plenitude dessa restauração. E qual o papel do ser
humano nesse processo? Entre esses dois momentos, Jesus confere a
seus discípulos a responsabilidade de continuar a proclamação da
vinda desse reino. Ele confiou a seus seguidores o mesmo ministério
de reconciliação que ele mesmo recebera do Pai (cf. 1Co 5.18-21).
Esta autoridade e responsabilidade é conhecida como a Grande
Comissão, expressa em Mateus 28.18-20 (também em Mc 16:14-18).
Esse texto revela a missão da Igreja, anunciar a Cristo como a
redenção para o pecado do mundo. Devemos então continuar a obra
de Cristo de proclamação do Reino de Deus. De fato, Lucas narra os
atos dos apóstolos como sendo uma continuidade dos atos do próprio
Cristo na terra (através do Espírito Santo), duas etapas de uma
mesma atividade (At 1:2).
Precisamos aqui entender como o mandato cultural de Gênesis se
relaciona com a Grande Comissão. Um engano possível seria afirmar
que o segundo substitui o primeiro, excluindo a responsabilidade do
homem com relação à criação. Mais uma vez, ocorre aqui a tentação
do dualismo gnóstico. O mandato cultural não foi revogado pela
Queda, e muito menos pela Redenção. Se pensarmos no escopo
universal da redenção de Cristo, vemos que os dois, na verdade, não
são contrários, mas se complementam, ainda que possuam algumas
diferenças que precisam ser apontadas aqui, a fim de que ambos
sejam cumpridos com eficiência.
Primeiramente, é preciso recordar que o homem foi colocado como
mordomo da criação, como representante de Deus na terra, para que
cuidasse dela e a desenvolvesse (Gn 1:28). Como dissemos, a Queda
não anulou esse compromisso; Deus continua exigindo do homem a
resposta ao seu comando, e exercendo seu juízo quando ele é
cumprido de forma rebelde ou irresponsável. Todos, justos ou ímpios,
rebeldes ou redimidos, estamos ainda hoje sob a responsabilidade de
cultivar o jardim.
A grande comissão, por sua vez, não é entregue a todas as
pessoas indiscriminadamente, mas a um grupo seleto e específico de
pessoas: a igreja. Mateus e Marcos dizem que a ordem foi dada aos
“onze discípulos” (Mt 28:16; Mc 16:14). Lucas registra em Atos que
os apóstolos reunidos receberam a promessa de poder para
testemunhar de Cristo em todo o mundo (At 1:2,6-8). Mas há mais:
para entender o que significa esta Grande Comissão, é preciso
observar como estes apóstolos a colocaram em prática, conforme
registrado no livro de Atos e nas cartas do Novo Testamento
(sobretudo nas chamadas cartas pastorais). Em suma, por onde
foram, eles não apenas pregaram e testemunharam, fazendo
convertidos, mas se preocuparam em organizar esses convertidos em
comunidades que possuíssem lideranças definidas e um conjunto de
doutrinas claro para todos (At 14:21-23; Tt 1:5, p. ex.). Ou seja: ao
cumprir a grande comissão, os apóstolos edificaram igrejas.
É necessário ressaltar que é dentro de uma igreja enquanto
instituição organizada e diferenciada que o cristão pode receber todo
o suprimento de que necessita para sua caminhada de santidade
(1Tm 3:15; Hb 10:23-25; Gl 6:10). A liderança é responsável por
manter e ensinar a sã doutrina, e assim, fazer com que todos cresçam
no conhecimento de Cristo, na comunhão uns com os outros e no
serviço e auxílio mútuo. Logo, nem cada crente individualmente, nem
qualquer ajuntamento de cristãos é, de fato, uma igreja; é preciso que
todos estes elementos estejam presentes para que ela cumpra sua
missão. A Grande Comissão é um chamado aos crentes para que
testemunhem de Cristo, preguem o Evangelho e edifiquem igrejas que
continuem esse processo. A tarefa da igreja, enquanto instituição
distinta, portanto, é manter essa Comissão viva.
Por sua vez, um cristão que está inserido em uma igreja saudável,
que tem comunhão com seus irmãos e cresce no aprendizado da sã
doutrina, certamente será ensinado sobre como viver em seus
afazeres diários e relações diversas de forma que agrade o Senhor.
Diversas cartas de Paulo às igrejas são divididas em seções de
exposições teológicas e, em seguida, aplicação dessa teologia nas
diversas áreas da vida. A relação entre as duas partes é evidente
nessa transição (Rm 12:1-2; Ef 4:1). Uma prática correta no dia-a-
dia, que agrada a Deus, depende de conhecer corretamente quem é
esse Deus, e o que ele fez e faz por nós. Um bom cristão, portanto,
será melhor filho, marido e pai; será um melhor patrão ou
empregado, melhor cidadão e assim por diante.
Aí está a ligação entre a Grande Comissão e o Mandato Cultural. O
meio que a humanidade possui hoje de cumprir o mandato cultural
de forma completa e verdadeira é apenas através do cumprimento da
grande comissão, ou seja, de sua entrega completa a Cristo. A
centralidade da pregação cristã se encontra no arrependimento e
conversão humanos porque a fonte do mal está no coração humano.
Como dissemos anteriormente, o plano da redenção é amplo e
abrangente, mas começa na redenção do indivíduo, na remissão de
seus pecados. Não é possível restaurar a criação sem redimir primeiro
a humanidade; não é possível redimir a humanidade sem que antes
cada indivíduo reconheça a Cristo como Senhor sobre todas as coisas.
Novamente, é como a pedra atirada no meio de um espelho d'água.
Pregar o Evangelho é, por fim, possibilitar novamente que o ser
humano desenvolva a criação conforme a orientação de Deus. Como
diz Philip Ryken, “quando adotamos tal perspectiva abrangente do
que precisamos ensinar ao mundo, a Grande Comissão reaviva nosso
mandato cultural”[48]. Wolters define desta forma o conceito: “A
redenção, assim, é a recuperação da bondade criacional por meio da
anulação do pecado e do esforço rumo à remoção progressiva de seus
efeitos em todos os lugares. Retornamos à criação por meio da cruz,
porque apenas a expiação lida com o pecado e com o mal
efetivamente em sua raiz. A versão de Marcos da grande comissão
nos manda 'pregar o evangelho a toda criatura' (Mc 16:15) porque em
toda parte há necessidade de libertação do pecado”[49]. Resumindo, o
mandato cultural é responsabilidade de todas as pessoas, mas só
pode ser cumprido de forma adequada caso a Igreja cumpra a sua
responsabilidade, expressa na Grande Comissão.
4.4. Redenção e Consumação

Com a segunda vinda de Cristo, a Redenção será completada; o


Reino de Deus será definitivamente (re)estabelecido, e o shalom
existirá novamente. Esta é a esperança cristã; é por ela que os
cristãos devem ansiar, e dela devem testemunhar. Como Wolters
resume: “Em todos os lugares, a criação nos chama para honrarmos
os padrões de Deus. Em todos os lugares, a pecaminosidade do
homem quebra e deforma. Em todos os lugares, a vitória de Cristo
está prenhe da derrota do pecado e da recuperação da criação”[50].
Esta plenitude da restauração equivale à glorificação, ou
consumação, para aqueles autores que dividem a cosmovisão em
quatro pontos. Adotamos aqui a divisão em três pontos por ser a
mais recorrente entre os autores que tratam do tema, mas é preciso
fazer algumas observações sobre a importância desse quarto ponto.
Aqueles que defendem a distinção entre Redenção e Consumação
estão corretos em ressaltar que, ainda que a Consumação represente
a plenitude da obra redentora de Cristo na criação, ela não é
simplesmente a conclusão de um processo que vai se acumulando até
se completar de forma “natural”. Antes, a consumação é um evento
novo, histórico, radical e decisivo, que acontecerá com o retorno de
Cristo, em que ele se assentará em seu trono, julgará a criação e por
fim restaurará definitivamente todas as coisas. Como diz Ryken,
“somente então — somente quando Jesus voltar — o mundo será
tudo o que Deus planeja que seja. E somente então nos tornaremos
tudo o que Deus planeja que sejamos”[51].
A Bíblia afirma que, quando Jesus voltar, trará consigo os santos
que pereceram, agora ressurretos (1Ts 4:13-16); dará um novo corpo,
glorificado como o seu, aos santos que estiverem vivos (1Co 15:50-
58); julgará e condenará os ímpios, purificará a terra de toda a
maldade e corrupção (Ap 20:11-15), e então inaugurará novos céus e
nova terra, trazendo consigo a nova Jerusalém, a cidade santa onde
a humanidade redimida (a Igreja triunfante) desenvolverá todo o seu
potencial criativo, desta vez sem a influência do pecado, nem mesmo
sua ameaça (Ap 21:1-22:5). Como já foi dito, o céu não é uma
realidade etérea, em que seremos como anjos pulando de nuvem em
nuvem sem nada para fazer, mas será um lugar em que pessoas, com
corpos perfeitos, desenvolverão a cultura de forma perfeita, e toda a
criação existirá em perfeita harmonia, consigo e com o seu criador e
redentor (Is 11:6; Mq 4:3; Zc 8:5).
Esta visão nos enche de esperança e expectativa quanto ao futuro;
contudo, saber que essa realidade será resultado de uma nova
intervenção radical de Deus no mundo através de Jesus nos livra de
visões triunfalistas ou de um otimismo excessivo, tanto sobre o
potencial da cultura quanto sobre a atuação da igreja no mundo.
Existem aqueles que, ao descobrirem a visão de que a cultura não é
em si pecaminosa, tornam-se indistintamente receptivos demais a
tudo que a cultura oferece, e perdem a capacidade crítica de julgar
tudo e reter somente o que é bom; estes acham que o desenvolvimento
da cultura naturalmente levará à plenitude do Reino de Deus, ao
restabelecimento da shalom, o que não é verdade. Há também aqueles
que possuem uma visão exageradamente positiva da capacidade que
a igreja e os cristãos teriam de redimir a cultura e a sociedade por
sua ação e engajamento. Pensam que podem auxiliar a volta de
Cristo, ou até mesmo torná-la desnecessária; a igreja por si
purificaria, enfim, todo o mundo. Também estes estão enganados.
Mas, se a igreja não auxilia a volta de Cristo, mas tem uma
missão a cumprir, como já vimos, qual a sua função em relação à
consumação? Embora não tenhamos uma parte ativa na execução da
consumação, a compreensão de sua iminente chegada deve orientar
nosso modo de agir hoje. Como sabemos o fim da história, devemos
agir no presente de acordo com o que sabemos. Para isso, precisamos
retomar aqui uma figura utilizada por Paulo: a do embaixador (2Co
5:18-6:10). Representamos um Reino estrangeiro, e anunciamos que
ele virá certamente e com poder. Convidamos pessoas a aderirem
também a este Reino, enquanto demonstramos, através de nosso
comportamento e da comunhão como é a vida neste novo Reino.
Contudo, não somos responsáveis por implementá-lo ou edificá-lo;
esta tarefa é realizada pelo Espírito Santo através de nosso
testemunho. Esta diferença pode parecer sutil, mas é crucial. Jesus
nos conferiu poder e autoridade para sermos suas testemunhas, e
esse poder vem do Espírito que foi derramado sobre nós. Ele não
garantiu que todos a quem pregássemos se converteriam, mas
aqueles a quem ele mesmo quiser salvar. Sobre nós não repousa a
responsabilidade de sermos eficientes, no sentido de fazer o maior
número possível de adeptos, mas de sermos fiéis em nosso
testemunho, conservando-o íntegro em nossas palavras e ações, e
ensinando outros a guardar todas as coisas que Jesus ordenou (Mt
28:20). Nossa tarefa é plantar e regar; quem dá o crescimento é
Cristo (1Co 3:4-9). Quando entendemos isso, somos libertos de um
grande peso, e temos tranquilidade para anunciar a todos a grande
Redenção, que já se manifesta sobre todas as partes da criação.
PARTE 5: COSMOVISÃO NA PRÁTICA
5.1. Uma cosmovisão equilibrada
Agora que já vimos o que é uma cosmovisão e a importância de se
ter uma cosmovisão bem definida, e entendemos quais são os termos
principais de uma cosmovisão cristã, faremos a seguir algumas
considerações necessárias sobre o assunto, seguidas de algumas
possibilidades de aplicação prática dos termos apresentados.
Como já foi dito, a cosmovisão cristã reformada trabalha com os
conceitos básicos de criação, queda e redenção, nos quais todos os
elementos da realidade podem e devem ser encaixados. Esses
conceitos formam, retomando a expressão de Nancy Pearcey, uma
“grade” com categorias pelas quais analisamos o mundo. Nas
palavras de Albert Wolters, “quando olhamos através das lentes
corretivas da Escritura, percebemos que em todos os lugares as
coisas da nossa experiência começam a se revelar como criadas, sob
a maldição do pecado, e ansiando pela redenção”[52]. Esta grade
Criação/Queda/Redenção pode e deve ser aplicada ao pensarmos em
todas as áreas da nossa vida, como veremos mais adiante.
Para possuir uma cosmovisão equilibrada, porém, é preciso saber
pesar igualmente cada um dos três elementos e resistir à tendência a
realçar um em detrimento dos outros. Um desequilíbrio deste tipo
pode causar uma visão distorcida do mundo. Somente percebemos a
necessidade real de redenção quando percebemos a gravidade da
queda. É impossível redimir alguém que pensa que não possui pecado
ou minimiza sua influência; ou ainda, não é possível redenção
quando não se compreende corretamente a origem do pecado, pois
acaba se atacando o problema onde ele não está de fato. Da mesma
forma, só é possível perceber a gravidade do pecado e da queda
quando se entende a bondade original da criação, e a vontade
original de Deus para o mundo. O pecado é algo terrível porque a
criação é muito boa. Por sua vez, a redenção proposta por Deus em
Cristo revela justamente isto: que Deus não desistiu de sua boa
criação, abandonando-a a sua própria sorte, mas decidiu ele mesmo
entrar nesse mundo como Emanuel, para resolvermos o problema que
não conseguiríamos resolver sozinhos.
Um exemplo comum deste desequilíbrio é a pregação evangélica
que enfatiza demais o pecado e a queda, mas não explica a origem do
problema a partir da criação. É a mensagem que começa em Gênesis
3, deixando os dois primeiros capítulos da história de lado. Como
nem todos possuem a mesma cosmovisão, uma mensagem desse tipo
pode deixar um buraco na compreensão do Evangelho. Como Pearcey
nota, “começar com o tema do pecado dá a entender que nossa
identidade essencial consiste em sermos pecadores culpados,
merecedores do castigo divino”[53]. Esta abordagem confere pouco
valor à criação, por isso mesmo pouco sentido em se falar da
gravidade da queda.
Nesse sentido, ironicamente, enfatizar a queda acaba por retirar
sua força. Alguns podem inclusive pensar que a corrupção é algo
inerente à realidade humana, e assim simplesmente se resignar
diante dela, ou procurar remediá-la da forma que puder. Como ela já
faz parte da natureza humana original, não faz sentido travar uma
batalha radical contra o pecado; somos assim mesmo, o máximo que
podemos tentar é amenizar esta situação. De fato, algumas correntes
teológicas liberais afirmam justamente esta condição da queda (ou
alienação, como por vezes preferem chamar) como sendo constituinte
da própria humanidade. Tal visão, por conseguinte, acaba por mudar
completamente até mesmo o significado da redenção. Contudo,
Pearcey coloca de forma bastante apropriada: É porque os seres
humanos são a obra-prima da criação de Deus que a destrutibilidade do pecado
produz tamanho horror e tristeza. Longe de expressar uma baixa opinião da
natureza humana, a Bíblia oferece um ponto de vista bem mais alto que a visão
secular predominante hoje, a qual considera que os seres humanos são meros
computadores feitos de carne, produtos de forças cegas e naturalistas, sem
propósito ou significado transcendente[54].

Outra consequência comum de exagerarmos a queda sem


atentarmos para a criação é cairmos, mais uma vez, na dicotomia
secular/sagrado. Se não entendermos a extensão universal desses
três pontos, corremos o grande risco de acharmos que Deus não tem
propósitos redentores também para a cultura, ou pior, considerarmos
que a cultura é, por si mesma, pecaminosa. Como já foi afirmado, e é
necessário enfatizar, a Redenção busca resgatar toda a criação que
foi contaminada pelo pecado. Neste sentido, abrange tanto a sua
parte individual como cultural; tanto material como espiritual. Deus
não salva apenas “almas”, mas indivíduos e relacionamentos e
culturas e toda a terra. Como diz Michael Wittmer, “assim como o
pecado começou com indivíduos e se expandiu para contaminar todo
o mundo, assim a graça começa com indivíduos e se expande para
redimir o resto da criação”[55].
É preciso, portanto, resistir à tentação de considerar algumas
áreas da vida como mais “espirituais”, e que por isso agradam mais
a Deus do que outras áreas, consideradas “mundanas” ou materiais.
Nossa criação à imagem de Deus, a Encarnação de Deus na pessoa
de Jesus e nossa esperança de ressurreição em corpos físicos
transformados descartam qualquer possibilidade de colocar o
espiritual como mais importante ou tendo maior valor que o físico.
Cornelius Plantinga diz que “a mente e o espírito não são melhores
que as coisas relativas ao corpo, e algumas vezes são até bem piores.
[…] Não é mais cristão jogar xadrez do que jogar futebol. Não é mais
cristão ser um ministro do que um lavrador”[56]. Ele prossegue: “Não
precisamos nos tornar padres ou freiras para ter uma vocação, um
chamado, e não precisamos nos recolher a um mosteiro para servir a
Deus da melhor forma possível. […] A oração é uma oferta santa a
Deus, mas o trabalho também o é”[57]. Considerar o mundo
“espiritual” como superior ao “material” é uma dicotomia que induz
ao erro e não corresponde a uma cosmovisão cristã adequada, que
enxerga a vida de forma integral. Cristo é Senhor sobre toda a nossa
vida, e tudo nela deve honrá-lo. Como Paulo aconselha aos coríntios,
“quer comais, quer bebais, ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo
para a glória de Deus” (1Co 10.13).
Igualmente, e pelo mesmo motivo, não devemos aceitar a restrição
que o pensamento moderno faz ao pensamento cristão (ou a outros
pensamentos religiosos), confinando-o à esfera pessoal ou individual.
Além de ser uma divisão arbitrária, pois todos partem de alguma
crença básica (como já foi afirmado acima), para o discípulo de Cristo
Ele é Senhor sobre tudo, e não apenas sobre a esfera religiosa da
vida. É um erro cairmos na armadilha secular e acreditarmos que a
visão e os valores cristãos servem apenas para a esfera individual,
mas que devem ser postos de lado ao entrarmos na vida pública. Esta
visão acontece porque somos convencidos que a cosmovisão cristã
não tem nada a dizer sobre estas dimensões da vida, ou porque
cremos que elas estão sob o domínio do pecado, do lado “secular” (ou
seja, mau) da vida.
Todas as duas hipóteses estão erradas, como vimos anteriormente.
A verdade cristã é verdade sobre a totalidade da vida, e não apenas
para a sua dimensão privada. “Somente com a recuperação da visão
holística da verdade total é que conseguiremos libertar o evangelho
para se tornar a força redentora em todas as áreas da vida”, diz
Pearcey[58]. A mensagem do Evangelho fala tanto sobre como orar
quanto sobre como trabalhar; fala tanto da função do
arrependimento e do perdão quanto da importância do conhecimento
científico e do trabalho. Um cristão com consciência da sua
cosmovisão jamais pensará que o ambiente da política, do trabalho
ou da academia é espiritualmente “neutro”. Todo terreno da criação
está numa disputa constante entre as forças da Queda e da
Redenção, ou entre Satanás e Deus.
Se nenhum ambiente é neutro nesta batalha, tampouco nenhum é
completamente corrompido, de forma que não deva haver ali um
esforço de redenção. Por vezes, a distorção é tamanha que há a
tendência de identificarmos a própria ordem social como fora do
alcance da graça, ou como algo que é inteiramente contrário a ela.
Assim, as áreas que mais necessitam de uma atuação cristã
consciente acabam por ser abandonadas. “Com o pretexto de guardar-
se do ‘mundo’, o corpo de Cristo realmente permite que os poderes da
secularização e da distorção dominem a maior parte da sua vida.
Isso não é tanto uma fuga do mal quanto uma negligência de
obrigação”, acusa Wolters[59]. Devemos seguir o padrão proposto por
Jesus ao orar por nós: não devemos tentar fugir do mundo, mas
evitar o mal (Jo 17:15).
5.2. Distinguindo estrutura e direção

É preciso ainda repetir e mais uma vez ressaltar que a cultura,


assim como o mundo material, não é má ou pecaminosa em si
mesma. Uma cosmovisão distorcida pode levar a uma visão
pessimista da cultura e do seu desenvolvimento histórico. Contudo,
não é assim. Como vimos, cultura não é pecado. O pecado não impede
o desenvolvimento da cultura, isto porque, por mais que a direção da
cultura tenha sido desviada, sua estrutura ainda persiste. O
desenvolvimento da cultura ao longo do tempo é um aspecto
estrutural seu. Faz parte da natureza humana desenvolver a cultura.
Wittmer distingue os dois aspectos: Sob a sombra lançada pela queda de
Adão, a raça humana continuou a avançar seu entendimento e desfrute da
terra, diligentemente aprimorando suas habilidades na música, metalurgia e
criação de animais. É quase como se não pudéssemos evitar. Cães latem,
cavalos correm e humanos – mesmo caídos – são programados para cultivar a
criação de Deus[60].
Como já dissemos, a Queda afetou a cultura, mas não a condenou
completamente. Não devemos buscar eliminá-la, senão em seus
aspectos contaminados pelo pecado. Outra vez, não se trata de voltar
atrás, mas corrigir a rota daqui para frente, segundo os propósitos de
Deus. “A salvação em Jesus Cristo, concebida no sentido criacional
mais amplo, significa uma restauração da cultura e da sociedade no
seu atual estágio de desenvolvimento”, diz Wolters, e explica: Essa
restauração não se oporá necessariamente à instrução, à
industrialização ou à engenharia de combustão interna do motor,
embora esses desenvolvimentos históricos tenham levado a distorções
ou danos. Em vez disso, a vinda do reino de Deus requer que esses
desenvolvimentos sejam reformados, que eles sejam feitos
responsáveis pelas suas estruturas criacionais e se tornem
subordinadas às ordens do Criador[61].
Por outro lado, a salvação não nos deve fazer ingênuos, pensando
que tudo na cultura é bom, ou que porque somos salvos podemos agir
como quisermos. Nesse sentido, a redenção coloca diante de nós
grandes responsabilidades. O apóstolo Paulo diversas vezes alerta os
crentes contra usar a salvação como pretexto para agir de forma
irresponsável: “Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade;
porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes,
servos uns dos outros, pelo amor” (Gl 5:13; cf. Rm 6:1,15). Nossa
salvação não nos isenta de exercitarmos nosso discernimento, mas
nos encarrega de servirmos aos outros, ajudando-os igualmente a
compreender como se deve agir, e como discernir o que é bom ou
ruim. Precisamos estar alertas, pois o Diabo “anda em derredor” (1Pe
5:8), e “se transforma em anjo de luz” (1Co 11:14) para nos enganar.
O esforço aqui é em sabermos discernir entre estrutura e direção
de forma eficaz. Uma cosmovisão cristã bem estruturada, portanto,
não necessariamente conduz a todas as respostas para as questões
que queremos, mas nos permite fazer as perguntas certas. Ao
aplicarmos a grade da cosmovisão (Criação/Queda/Redenção),
buscaremos discernir: “Em que aspectos esse elemento reflete a boa
criação de Deus? Em que sentido ele foi distorcido pela queda? Como
ele pode ser, portanto, redimido?” Ou: “Que aspectos deste elemento
são estruturais, e como sua direção original foi desviada pelo
pecado? Consequentemente, como restaurá-lo à sua direção
original?” Como propõe Wolters, esse modo de questionar a realidade
“não é uma fórmula fácil para produzir a solução cristã correta para
os problemas éticos ou culturais; em vez disso, ela fornece um
caminho de discussão, um plano de pesquisa, um modo de investigar
de acordo com a perspectiva revelada do Criador a respeito das
coisas”[62]. Fugiremos, assim, dos dualismos simplistas.
Resumidamente, em vez de perguntarmos se tal coisa é boa ou ruim,
a cosmovisão reformada nos ensina a perguntar em que aspectos tal
coisa é boa ou ruim. Ou, como ele ainda coloca: “Tudo o que Deus
criou é bom e é reivindicado por Jesus Cristo. A questão não é ‘Isso
também pertence a Cristo?’. Antes, a questão é ‘Qual é a maneira
mais efetiva de trazer reforma e santificação a essa área da nossa
vida?’”[63].
5.3. Aplicando a grade na prática

Convém agora pensar um exemplo prático de como aplicar esta


cosmovisão à vida real. Um dos elementos mais importantes aqui
considerados é a abrangência universal de cada um dos pontos da
cosmovisão, que afirmam que Deus governa e se interessa por cada
dimensão da realidade. Igualmente, Cristo é Senhor sobre todas as
coisas, inclusive nos aspectos e escolhas individuais da vida.
Reafirmando a realidade de que Cristo é Senhor sobre cada aspecto
das nossas vidas, podemos pensar como podemos aplicar esta visão a
uma dimensão bastante importante da vida: a da carreira
profissional, tanto em seu momento de escolha quanto no exercício de
uma profissão.
Como Pearcey afirma, numa modernidade que afirma
constantemente a divisão entre secular e sagrado, em que a dimensão
do sagrado é sempre relegada ao âmbito privado, o mundo do
trabalho e da educação, por se darem na esfera pública, pertencem
certamente ao âmbito secular, e por isso mesmo não deveriam receber
influência ou ser determinados por expressões religiosas. Por isso,
muitos cristãos que não percebem a arbitrariedade dessa divisão e,
mais ainda, não se dão conta da integralidade da cosmovisão cristã,
acabam aderindo a essa forma de pensar a vida em “reinos”
separados, em que sua visão religiosa não deve influenciar as
questões de trabalho, em favor de uma suposta “neutralidade”.
Vítimas desse engano, “os cristãos habitam em dois mundos
separados, indo e vindo entre o mundo particular da família e da
igreja (onde expressamos nossa fé com toda liberdade) e o mundo
público (onde a expressão religiosa é suprimida com bastante
firmeza)”[64].
Se há os que simplesmente pensam que sua religião não deve se
imiscuir em assuntos da vida pública como o trabalho, há cristãos
mais preocupados em expressar sua fé no ambiente profissional, mas
que, por não possuírem a visão integralizadora que a cosmovisão
reformada oferece, limitam o escopo da influência de sua crença a
uma ética pessoal, em demonstrar bom comportamento e
honestidade, como não mentir ou não falar palavrões. O ambiente de
trabalho, por sua vez, é visto como um “campo missionário”, em que
aqueles colegas de trabalho que ainda não são cristãos são alvos a
serem alcançados pelo Evangelho.
É inegável que estas atitudes são importantes para um bom
testemunho cristão no ambiente de trabalho. “Claro que temos de
elogiar os que fazem estudos bíblicos no local de trabalho ou
mostram uma influência moral”, diz Pearcey. Mas ainda é uma visão
limitada. “Mas, e quanto a uma perspectiva bíblica sobre o trabalho
em si?”, ela questiona. “Está faltando algo quando ninguém fala do
trabalho como serviço a Deus ou como cumprimento do mandato
cultural – o mandamento bíblico de sujeitar a terra”[65]. Esses
cristãos não percebem que seu trabalho possui uma dimensão ainda
mais profunda.
Como resultado dessa visão dividida, é comum cristãos sinceros
demonstrarem alguma frustração com sua vida profissional, e
buscarem fazer “mais para Deus” de alguma outra forma. “Nenhum
cristão, em qualquer profissão, sente-se feliz quando está dividido em
duas direções opostas. Todos almejamos que nosso trabalho conte
para algo mais que pagar as contas e impressionar nossos colegas”,
afirma Pearcey[66]. Entretanto, por não perceberem a importância de
sua profissão como uma vocação diante de Deus, acabam mais uma
vez por cair numa dicotomia sagrado/profano, e acreditando que,
para servir de verdade a Deus, precisam se engajar diretamente em
algum projeto evangelístico, ou abraçar uma carreira sacerdotal.
Retomando Plantinga, a noção de que o mandato cultural dado na
criação valoriza o trabalho é a razão positiva para a reafirmação, advinda
da Reforma protestante do século 16, da propriedade da vida comum e da
cultura, ou seja, da propriedade das mãos e mentes humanas […]. Não
precisamos nos tornar padres ou freiras para ter uma vocação, um chamado, e
não precisamos nos recolher a um mosteiro para servir a Deus da melhor
maneira possível. […] O trabalho e o lazer, a amizade e o casamento, os
negócios e a arte (possivelmente incluindo o governo) são todas áreas
intrinsecamente boas e todas podem ter uma parcela no chamado do cristão.
Deus ‘santificou’ essas coisas boas e nos chama para ter prazer nelas e a
empregá-las[67].

Ou seja, a vocação, o fazer algo para Deus é algo que se realiza em


todas as dimensões da vida, e não apenas em atividades “religiosas”.
O cristão que entende a realidade da universalidade de sua vocação
para o serviço a Deus rompe com o paradigma de que o trabalho
serve simplesmente para ganhar dinheiro e sustentar a família (ou
ainda, quando se é bastante piedoso, também contribuir com
missões). Nas palavras de Pearcey, percebemos o poder e o amor de
Deus em toda a nossa vida quando entendemos que “todo trabalho
honesto e empreendimento criativo são um chamado válido do
Senhor; e percebendo que há princípios bíblicos que se aplicam a
cada campo de trabalho”[68].
Portanto, o cristão que entende sua cosmovisão escolhe sua
profissão e a exerce com critérios que vão além de um bom salário
que possa lhe proporcionar uma vida confortável (de preferência
trabalhando o menos possível). Ele entende que deve exercer seus
dons para espelhar a verdade de Deus onde quer que se encontre, e
procura formas criativas de desenvolver a criação. Ele se torna um
embaixador do Reino de Deus em meio a uma cultura caída e sem
rumo; é um agente do shalom. Ele sabe que seu trabalho possui um
valor e um propósito em si próprio, que glorifica a Deus e dá
testemunho de Cristo por isso. “Se estiver ‘buscando em primeiro
lugar o reino’, ele deliberadamente bloqueará essas considerações
sobre a quantia de dinheiro que vai poder ganhar ou prestígio que
desfrutará, em favor de questões que são mais importantes”, diz
Plantinga[69]. Conforme expõe Wittmer: Como o que você faz permite a
você ou a outros exercerem domínio sobre a terra, cultivando seus recursos
para o proveito tanto da humanidade quanto da própria terra? Se você puder
localizar sua ocupação dentro desse processo, você descobrirá uma nobreza
divina em suas tarefas. Você não trabalhará mais com um olho no relógio,
motivado apenas por seu contracheque, mas perceberá que em seu trabalho
você está cooperando com Deus. Deus humildemente escolheu completar e
cuidar de sua criação através de você[70].
Esta visão, além de ser mais coerente, de acordo com o ponto de
vista aqui apresentado, é o que trará também maior satisfação
pessoal, por proporcionar a maior sensação de realização e
completude em todas as áreas da vida, inclusive no trabalho. O
cristão que assim age consegue trabalhar “de todo o coração, como
para o Senhor e não para homens”, sabendo que “a Cristo, o Senhor,
é que estais servindo” (Cl 3:23-24).
Nancy Pearcey diz que “a promessa do cristianismo é a alegria e o
poder de uma vida integrada e transformada em todos os níveis pelo
Espírito Santo, de forma que todo o nosso ser participa do grande
drama do plano de redenção de Deus”[71]. Este é nosso objetivo aqui.
Ao estudarmos cosmovisão, queremos que cada ato de nossa vida
contribua para “fazer convergir nele, na dispensação da plenitude
dos tempos, todas as coisas, tanto as do céu como as da terra; nele,
digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o
propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua
vontade, a fim de sermos para o louvor da sua glória, nós, os que de
antemão esperamos em Cristo” (Ef 1:10-12).
5.4. A cosmovisão como narrativa

Mas como a cosmovisão cristã nos ajuda diante da realidade de


que há diversas visões de mundo em confronto nos nossos dias? Já
vimos como uma cosmovisão cristã claramente estruturada pode nos
ajudar a entender melhor questões práticas da nossa vida, e como ela
nos auxilia a tomarmos decisões biblicamente orientadas a respeito
destas questões. Agora, vamos analisar também como a noção de
cosmovisão, conforme estruturamos, pode nos ajudar a entender
outras visões de mundo diferentes da nossa, e mesmo visões de
mundo contidas em narrativas as mais diversas.
De início, é importante frisar que esta visão estruturada no
trinômio criação-queda-redenção não é a única forma de explicar o
evangelho, nem sua forma definitiva. A Bíblia é infinitamente rica em
seu conteúdo, e nunca pode ser reduzida a algumas proposições
básicas. Contudo, entendemos que esta é uma abordagem útil para
compreendermos a mensagem maior das Escrituras, de que Deus quer
redimir sua criação perdida através da formação de um povo santo,
composto de gente de todo povo, língua e nação. Entendemos também
que esta abordagem nos dá ferramentas para que a verdade do
Evangelho seja aplicada de forma eficaz em todas as áreas da nossa
vida, como vimos. Contudo, sabemos que de nada adianta
conhecermos os termos aqui apresentados se não há uma vida de
oração, estudo reverente das Escrituras e obediência à voz de Deus;
sem isso, nossa vida não gerará frutos. Uma apologética eficiente,
um testemunho eficaz diante dos homens não começa pela formação
intelectual, mas por devoção sincera a Deus, como Pedro orienta:
“antes, santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração”, para
então podermos responder aos que pedirem a razão da esperança que
temos (1Pe 3:15). A primeira defesa da fé é o testemunho de vida.
Tendo dito isto, é preciso notar que a cosmovisão cristã não é
apenas um conjunto de conceitos ou de princípios, mas também é
uma narrativa. É uma história contada pelas Escrituras, que tem
começo, meio e fim; uma apresentação, um desenvolvimento e uma
conclusão. A narrativa bíblica começa pela criação de todas as
coisas, mostra como essas coisas foram corrompidas, como Deus age
decisivamente a fim de reverter esta corrupção, e como esta ação de
Deus será consumada no fim da história. A Bíblia não é apenas o
relato de um povo, ou uma perspectiva de fé: é a história do mundo
contada a partir da visão mais importante – o olhar de Deus a
respeito do mundo. A verdadeira história do mundo não é a sucessão
quase aleatória, imprevisível e desgovernada de reinos, guerras e
culturas, como pretendem mostrar os livros de História. Tudo isto é,
na verdade, o pano de fundo para o verdadeiro drama, a história de
como Deus redime de volta para si um mundo caído e chama para si
um povo composto de gente de toda língua e nação, através de seu
Filho. A história do mundo é a história da Criação, da Queda e da
Redenção. Se cremos que a Bíblia é a verdade (Jo 17:17), ela é a
verdade a respeito de tudo, inclusive da história. Isto nos dá
segurança quanto a seu desfecho: nós, o povo de Deus, estaremos
para sempre com o Senhor, e ele enxugará todas as nossas lágrimas
(Ap 21:3-4). Aquele que governou a história até hoje certamente
continuará governando, eternamente.
Porque a narrativa bíblica é verdadeira, e porque todo ser humano,
no seu íntimo, conhece a Deus e sabe que se encontra em dívida com
ele (como Paulo indica em Rm 1:20-21, 2:15), temos um resultado
interessante: a narrativa impressa em nossos corações faz com que
praticamente todas as narrativas que o homem produz tenham esta
mesma estrutura, ainda que disfarçada sob distorções ou inversões.
A necessidade que o homem tem de redenção faz com que as histórias
que ele cria e conta sejam, essencialmente, sobre redenção, ainda que
esta seja buscada de formas e em lugares diversos. Toda grande
narrativa, assim, pode ser encaixada nesta grade criação-queda-
redenção. Isto vale para as narrativas de ficção, mas se aplica
muitas vezes também à forma como os acontecimentos históricos são
narrados. Como Brian Godawa afirma a respeito do cinema, as
histórias dos filmes narram os eventos em torno dos personagens, que
vencem obstáculos para alcançar algum objetivo e, no processo, são
confrontados com a necessidade pessoal de mudança. Em resumo, a narrativa
de histórias nos filmes resume-se à redenção, isto é, à recuperação de algo
perdido ou obtenção de algo necessário[72].
Assim, praticamente todo conto ou romance narra uma situação
incial (criação), algo que foi perdido ou um problema que é percebido
(queda), e a luta ou jornada empreendida para que este problema
seja solucionado (redenção). Que esta seja uma estrutura narrativa
tão fundamental em tantas culturas e ao longo de gerações é mais
um testemunho eloquente a respeito da verdade da narrativa bíblica e
de como ela está enraizada em nossas almas. Todos buscamos
redenção, e nossas histórias são provas disso, ainda que escondidas
sob figuras ou metáforas.
Mas o homem em rebeldia contra Deus busca redenção e realização
em outras fontes que não em Cristo. Por isso, as narrativas são
também janelas para entendermos o que seus autores pensam a
respeito da realidade, da natureza do problema e de onde e como esta
redenção pode ser obtida (ou mesmo se ela pode ser obtida). Ou seja,
as histórias nos revelam a cosmovisão de seus autores. Mais uma vez
diz Godawa: “toda história é baseada em uma determinada visão de
mundo. [...] Toda escolha que um autor faz, desde o tipo de
personagens que cria até os eventos que relata, é determinada por
sua maneira de ver o mundo. Essa visão de mundo define o que cada
personagem ou evento significa para o autor e, portanto, para o
público”[73].
Como já vimos, todos têm seus pressupostos, suas respostas para
as questões fundamentais da vida, e as narrativas são formas sutis e
poderosas de transmitir estas respostas para um grande público.
Desde os tempos mais antigos, os mitos e fábulas eram contados com
o intuito de comunicar de forma simples e ilustrada ideias profundas
sobre o mundo e a vida. Hoje não é diferente. Pessoas que rejeitariam
uma cosmovisão se apresentada apenas conceitualmente são mais
facilmente seduzidas por histórias envolventes, com personagens
carismáticos e tramas envolventes. Um exemplo disso em nosso país
são as novelas, e o poder que elas possuem de apresentar novas
situações ao grande público de forma palatável. Muitas pessoas que
a princípio rejeitam a banalização do divórcio se veem torcendo pela
jovem simpática, que só busca sair de um casamento triste para ser
feliz com um novo amor. Se assistimos filmes e séries ou lemos livros
apenas como diversão, de forma passiva, corremos o risco de
inadvertidamente absorvermos a cosmovisão do autor, que pode não
ser a cosmovisão cristã verdadeira.
Mas isto não significa que devemos simplesmente rejeitar as
narrativas, sem entendê-las. Antes, é preciso olhos e ouvidos atentos
ao que a cultura transmite, para podermos entender onde o mundo
está buscando as respostas, e oferecer a resposta adequada a partir
do evangelho. Como já dissemos diversas vezes, a cultura não é
totalmente boa nem ruim; ela é o meio por onde as pessoas
expressam seus valores e anseios, e deve ser entendida desta forma,
inclusive para comunicarmos melhor a mensagem da cruz.
Precisamos responder as perguntas que o mundo faz com respostas
eternas. Mas para isso, primeiro precisamos ouvir as perguntas.
5.5. Cosmovisões em conflito

Por fim, a grade Criação/Queda/Redenção pode ser útil para


avaliarmos outras cosmovisões e outras opções religiosas
concorrentes. Se, como vimos, a verdadeira religião, a verdadeira
história do mundo, pode ser expressa nestes três termos, não é de se
surpreender que as falsas religiões também possam ser apresentadas
desta forma. Toda religião é, neste sentido, uma tentativa de explicar
e prover uma solução para o que está errado no mundo e na
humanidade, uma tentativa de responder as questões últimas da vida
(podemos nos lembrar das oito perguntas propostas por James Sire e
listadas aqui anteriormente).
Neste ponto, é preciso relembrar nossa definição original de
cosmovisão: um conjunto de pressuposições básicas que orientam a
nossa percepção do mundo e da realidade de forma geral. Isto porque,
ainda que praticamente todas as religiões possam ser pensadas como
cosmovisões, há outras visões de mundo que se encaixam nesta
definição, por mais que não falem de elementos espirituais ou
sobrenaturais. Dito de outra forma: o cristianismo não compete
apenas com o que consideramos popularmente como religião, mas
com qualquer conjunto de ideias que busque fornecer uma visão
completa sobre o mundo e a realidade. E, como são todas distorções
da cosmovisão cristã, todas apresentarão de alguma forma os
mesmos três elementos que a compõem. Veremos brevemente três
casos de cosmovisões, a título de exemplo de como isto pode ser feito.
O primeiro exemplo é uma outra religião bastante popular no
Brasil, o espiritismo. Ele afirma haver um único Deus, mas nega a
Trindade; em sua perspectiva de criação, entende que todos os seres
foram igualmente criados por Deus com livre-arbítrio. Contudo, o mal
que há no mundo não deriva de uma rebeldia radical ou uma
desobediência do homem, mas do livre-arbítrio; a queda é
experimentada não como um evento, mas como uma realidade inicial
do homem. Ele deve, portanto, se aperfeiçoar cada vez mais em sua
jornada pela terra, escolhendo fazer o bem em consecutivas
reencarnações; a redenção não é a reversão dos efeitos da queda, mas
simplesmente o aperfeiçoamento progressivo e constante do espírito.
Jesus teria assim apenas o papel de um guia, um exemplo, mas sem
nenhum poder real para operar esta redenção em cada um. Quando
percebemos, assim, a visão limitada que o espírita tem a respeito da
queda e da obra de Cristo, podemos ser mais eficientes em nossa
comunicação do Evangelho, e fugir de confusões que podem aparecer
quando se usam termos semelhantes ou iguais para falar de
conceitos que ao fim são distintos (o que chamamos de equívoco).
Uma análise semelhante pode ser feita com cosmovisões que
geralmente não são consideradas religiosas, mas que buscam
fornecer um sentido último para a história. Um dos exemplos deste
caso é o marxismo. Na visão de Marx, o homem vivia em paz no
mundo até o surgimento da propriedade privada. Desde então, todos
os males do mundo apareceram como consequência da divisão entre
opressores e oprimidos, entre os mais ricos e os mais pobres. A
redenção marxista, portanto, se encontra no comunismo, o sistema
econômico que finalmente acabaria com a propriedade privada e com
as injustiças que dela resultam. Esta redenção, para Marx, não era
apenas possível como inexorável em um futuro próximo,
apresentando assim uma esperança escatológica invejável.
O outro exemplo é um parente próximo do marxismo, que por vezes
é tido como o seu oposto: o liberalismo econômico. Para ele, a fonte
de todos os problemas é a escassez material, e apenas um livre
mercado, sem qualquer regulação, poderia promover a prosperidade
que por fim solucionaria todos os problemas. O que tanto o marxismo
como o liberalismo falham em perceber é que o ponto da Queda não é
material ou econômico, mas moral e espiritual: a desobediência a
Deus. Sem atingir o problema onde ele está, não há sistema político
ou econômico que resolva o drama do sofrimento humano: o de
estarmos apartados da glória de Deus por causa do nosso pecado
(Rm 3:23).
5.6. Uma palavra final: removendo o teto

É importante, tendo caminhado até aqui, que pensemos mais uma


vez qual o propósito e utilidade de tudo o que consideramos. Como já
foi dito, o intuito não é que sejamos apenas intelectualmente
enriquecidos, mas que possamos entender melhor a narrativa bíblica
como um todo e, a partir dela, vivermos toda a nossa vida de
maneira agradável a Deus (Rm 12:1-2; Ef 4:1; Sl 19:14; 1Co 10:31
etc.).
Por sua vez, no que diz respeito ao confronto com outras
cosmovisões, é preciso ressaltar que nosso interesse não deve ser
simplesmente o de vencer debates. Nosso inimigo não é carne ou
sangue, isto é, não são pessoas (Ef 6:12), mas ideias e sistemas que
enganam e escravizam essas pessoas, vendendo uma aparência de
liberdade (2Co 10:4-5). Nosso objetivo é proclamar as virtudes
daquele que nos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz (1Pe
2:9) para aqueles que ainda estão em trevas. É, portanto, um
exercício de amor à verdade e compaixão pelos que se perdem.
O evangelista Francis Schaeffer afirma que, para comunicarmos
de forma eficiente o Evangelho, é preciso primeiro ouvir atentamente
aquele a quem estamos evangelizando, para percebermos qual a
cosmovisão que ele adota e onde estão as suas inconsistências. Em
seguida, por que sabemos que esta visão é inconsistente, precisamos
mostrar as consequências desastrosas que resultam de seguir esta
visão inconsistente. A isto Schaeffer chama de “remover o teto” da
pessoa, isto é, expor como o mundo real não condiz com o que ela
afirma sobre ele: “O dever do cristão é de amorosamente remover este
teto, permitindo à verdade do mundo externo e do que o homem é
precipitar-se sobre ele. Quando se remove o teto, as pessoas ficam
expostas e ficam feridas sobre o peso da verdade das coisas que
existem”[74].
Este método pode parecer cruel, mas é um choque de realidade
necessário. Uma vez exposto à realidade, a pessoa pode ser
apresentada à visão de mundo que realmente explica esta realidade
de modo satisfatório: o Evangelho. A intenção não é abandoná-la ao
desespero, mas mostrar a verdade de que sua vida sem Cristo é um
desespero. Contudo, esta não é uma tarefa a ser cumprida com
altivez, mas requer dois elementos fundamentais: um interesse
genuíno pelo outro e um conhecimento real e profundo da mensagem
das Escrituras. Para promover este confronto duro, mas necessário, é
preciso que tenhamos o mesmo sentimento que houve em Cristo ao
confrontar o jovem rico: “fitando-o, o amou” (Mc 10:21). É preciso
olhar as multidões como ovelhas que não têm pastor (Mt 9:36; Mc
6:34). Esta não é uma tarefa simples, pois não há fórmula pronta.
Cada novo caso exigirá de nós atenção e cuidado próprios.
Conhecer melhor nossa cosmovisão e as outras deve resultar em
um melhor serviço a Deus, à sua igreja e aos que estão perdidos. Seja
a nossa mentalidade como a de Paulo: “Porque, sendo livre de todos,
fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível.
[...] Tudo por causa do evangelho, com o fim de me tornar cooperador
com ele” (1Co 9:19-23). Que sejamos encontrados fiéis cooperadores
do evangelho. Que Deus nos ajude nesta tarefa, e que ele seja
glorificado em todas coisas, enquanto somos testemunhas da única
verdadeira mensagem de redenção para este mundo caído. Amém.
REFERÊNCIAS
Michaelis Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Editora
Melhoramentos, 2014 (versão digital).
CARSON, D. A.; MOO, Douglas; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997.
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã (Tomo I). São
Paulo: UNESP, 2008.
GODAWA, Brian. Cinema e fé cristã. Viçosa: Ultimato, 2002.
GOUDZWAARD, Bob. Cristianismo e progresso. Viçosa: Ultimato,
2019.
PEARCEY, Nancy. Verdade absoluta: libertando o cristianismo de
seu cativeiro cultural. Rio de Janeiro: CPAD, 2006.
PLANTINGA JR, Cornelius. O crente no mundo de Deus. São Paulo:
Cultura Cristã, 2008.
RYKEN, Philip. Cosmovisão cristã. São Paulo: Cultura Cristã,
2015.
SCHAEFFER, Francis. O Deus que intervém. São Paulo: Cultura
Cristã, 2002.
SIRE, James W. O universo ao lado: um catálogo básico sobre
cosmovisão (5ª ed.). Brasília: Monergismo, 2018.
SIRE, James W. Dando nome ao elefante: cosmovisão como um
conceito. Brasília: Monergismo, 2004.
VAN TIL, Cornelius. Apologética cristã. São Paulo: Cultura Cristã,
2010.
WITTMER, Michael E. Heaven is a place on Earth. Grand Rapids:
Zondervan, 2004.
WOLTERS, Albert M. A criação restaurada: base bíblica para uma
cosmovisão reformada. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.
[1] VAN TIL, 2010, p. 52.
[2] A palavra “cosmovisão” é geralmente usada, na bibliografia consultada,
para traduzir o termo inglês worldview, que por sua vez tem origem no alemão
weltanschauung, que também pode ser traduzido por “ideologia” ou “filosofia
de vida”. O Michaelis Moderno Dicionário da Língua Portuguesa registra
cosmovisão como “Sistema pessoal de ideias e sentimentos acerca do universo e
do mundo; concepção do mundo”. Para uma perspectiva histórica do
surgimento e evolução do conceito, o livro “Cosmovisão: a história de um
conceito”, de David K. Naugle (Ed. Monergismo) é altamente recomendado.
[3] WOLTERS, 2006, p. 12.
[4] WITTMER, 2004, p. 21.
[5] WOLTERS, 2006, p. 15.
[6] SIRE, 2018, p. 11-12 (Edições anteriores traziam sete perguntas; a oitava
foi incluída na quinta edição, a última publicada antes da morte do autor).
[7] SIRE, 2004, p. 28.
[8] WOLTERS, 2006, p. 16.
[9] Para uma perspectiva comparativa entre diferentes cosmovisões, os livros de
James Sire e Nancy Pearcey aqui citados são especialmente sugeridos.
[10] SCHAEFFER apud PEARCEY, 2006, p.5.
[11] PEARCEY, 2006, p. 23
[12] PEARCEY, 2006, p. 44.
[13] PEARCEY, 2006, p.45.
[14] WOLTERS, 2006, p. 22.
[15] PEARCEY, 2006, p. 90.
[16] WOLTERS, 2006, p. 19.
[17] Alguns autores, como James Sire e Philip Ryken, incluem um quarto ponto,
que seria a Glorificação ou Consumação. Contudo, aqui foi feita a opção pela
divisão em três pontos, mais comum nas fontes consultadas. Falaremos um
pouco sobre isso ao falar sobre Redenção.
[18] PEARCEY, 2006, p. 144.
[19] WOLTERS, 2006, p. 25.
[20] WOLTERS, 2006, p. 25.
[21] PLANTINGA, 2008, p. 49.
[22] WOLTERS, 2006, p. 26.
[23] PLANTINGA, 2008, p. 45.
[24] WOLTERS, 2006, p. 37.
[25] WOLTERS, 2006, p. 28.
[26] WOLTERS, 2006, p. 29.
[27] CALVINO, Institutas, 1.5.1.
[28] CALVINO, Institutas 1.6.1.
[29] WOLTERS, 2006, p. 47.
[30] Seria possível escrever outro trabalho de dimensão semelhante a este guia,
apenas para falar das implicações desta doutrina em diversas dimensões da
vida (como por exemplo na normalização do aborto ou da eugenia), algo
que, por limitação de espaço e do escopo deste trabalho, não será possível
fazer aqui de forma mais profunda e detalhada.
[31] PLANTINGA, 2008, p. 30-31.
[32] WOLTERS, 2006, p. 55.
[33] GOUDZWAARD, 2019, p. 257.
[34] PLANTINGA, 2008, p. 59.
[35] WOLTERS, 2006, p. 65.
[36] WOLTERS, 2006, p. 71.
[37] WOLTERS, 2006, p. 74.
[38] PLANTINGA, 2008, p. 63.
[39] WOLTERS, 2006, p. 69-70.
[40] PEARCEY, 2006, p. 96.
[41] PLANTINGA, 2008, p. 70.
[42] PLANTINGA, 2008, p. 48.
[43] PLANTINGA, 2008, p. 87.
[44] WOLTERS, 2006, p. 82.
[45] WOLTERS, 2006, p. 81.
[46] WOLTERS, 2006, p. 84.
[47] PEARCEY, 2006, p. 97.
[48] RYKEN, 2015, p. 84.
[49] WOLTERS, 2006, p. 92-93.
[50] WOLTERS, 2006, p. 83.
[51] RYKEN, 2015, p. 94.
[52] WOLTERS, 2006, p. 97.
[53] PEARCEY, 2006, p. 99.
[54] PEARCEY, 2006, p. 99.
[55] WITTMER, 2004, p. 188.
[56] PLANTINGA, 2008, p. 50.
[57] PLANTINGA, 2008, p. 51.
[58] PEARCEY, 2006, p. 25.
[59] PEARCEY, 2006, p. 105.
[60] WITTMER, 2004, p. 197.
[61] WOLTERS, 2006, p. 87.
[62] WOLTERS, 2006, p. 120.
[63] WOLTERS, 2006, p. 123.
[64] PEARCEY, 2006, p. 73.
[65] PEARCEY, 2006, p. 82.
[66] PEARCEY, 2006, p. 74.
[67] PLANTINGA, 2008, p. 51.
[68] PEARCEY, 2006, p. 74.
[69] PLANTINGA, 2008, p. 118.
[70] WITTMER, 2004, p. 125.
[71] PEARCEY, 2006, p. 108.
[72] GODAWA, 2002, p. 15.
[73] GODAWA, 2002, p. 25.
[74] SCHAEFFER, 2002, p. 198.

Você também pode gostar