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Medéia, a enamorada do ódio

Andréa Brunetto

Medéia foi escrita em 431 a.c. por Eurípedes e com ela tratarei sobre a
vingança e o ódio. Medéia é a mulher que abandonou tudo pelo amor de Jasão: sua
amada pátria, traiu um pai, matou um irmão. O delírio da paixão a levou longe da casa
paterna. O coro, na peça, já marca, de início, que agora habita uma terra estranha, onde
teve seu leito abandonado por “um pérfido esposo”. Ela tem um espírito violento, uma
“tempestade de cólera”.

Vista como a bárbara, foi aceita como refugiada em Corinto. Jasão, já em


outras conquistas, vai se casar com a filha de Creonte, o rei de Corinto. E aí começa a
vingança de Medéia. Ela perdeu quase tudo e está disposta a perder esses filhos para
vingar-se de Jasão. O coro já antecipa que ela matará seus filhos. Diz ela: “malditas
crianças de mãe odiosa, morram com seu pai.” Jasão tenta chegar a um acordo, quer que
ela parta com os filhos, vai lhe dar recursos, não quer que nada falte aos filhos dela. Ou
seja: quer lhe dar dinheiro para acalmar os ânimos e, num primeiro momento, chama os
filhos de dela. Ela responde chamando-o de o mais covarde dos homens e diz que o pior
dos vícios é a impudência, é uma forma de chamá-lo de sem caráter. Jasão alega que não
se casará por amor, é para desposar a filha de um rei; para ele, um exilado, é muita
coisa. “O que importa é viver na abundância.” E ela: não quero saber de tua glória e
fortuna.

Muitos que escreveram sobre a peça, colocaram-na como uma fora da ordem,
que inverteu as normas sociais, ao contrário de Antígona, com sua ética. Mas Medéia é
aquela que clama pelos juramentos, pela palavra a ser cumprida, que denuncia a
impudência dos gregos, que não se seduz com os oferecimentos de dinheiro, poder e
fama que seu marido lhe promete. Ela queria amor, embora o coro já tenha sinalizado,
desde o início: o amor não deixa ninguém seguro, “não deixa aos mortais nem honra
nem virtude”. O coro também acentuou sua desgraça maior: ser privada da terra natal,
não ter para onde voltar na hora do infortúnio. Embora ela não veja assim: se Jasão
estivesse ao seu lado, poderia viver como exilada. Para ela, o amor é um país, uma terra,
um lugar. Se ela perdeu tudo, se não tem mais consistência o chão em que pisa é porque
esse homem rompeu os juramentos que lhe fez. Uma escrava lhe diz que deveria
suportar a infelicidade com paciência, mas não ela, o fim trágico é inevitável, não
suportará os ultrajes do inimigo. A rival jovem, ela mata de um golpe: a captura com
um vestido lindo e uma coroa de ouro: “os presentes curvam até os próprios deuses e o
ouro é mais poderoso sobre os mortais que todos os discursos.” “Seduzida pela beleza,
pelo maravilhoso esplendor desses tecidos e da coroa, tem pressa em usá-los; mas é para
o Hades que usará o vestiário nupcial.”

Lacan chamou de ódio excessivo um imaginário louco, desvairado, uma


paixão. A agressividade se retroalimenta com o especular, é a bipolaridade com a qual o
sujeito mede o seu Eu. No “Seminário 2, sustenta que não basta que tenhamos esse
imaginário para que sejamos homens. “Podemos ser ainda essa coisa intermediária que
se chama louco. É aquele que adere a esse imaginário, pura e simplesmente.”

Em “As Pulsões e suas vicissitudes”, Freud escreve que o amor não permite
um, mas três opostos. “Além de amar-odiar, existe amar e ser amado e o amar e odiar,
em conjunto são o oposto a indiferença.” O amar-odiar se faz presente quando aparece o
objeto, quando esse se faz fonte de sensações agradáveis, a polaridade amar-odiar
reflete a polaridade prazer-desprazer. A mudança de conteúdo de uma pulsão em seu
oposto só é observada em um caso – transformação do amor em ódio. Freud sustentou
que, quando uma relação amorosa é rompida, frequentemente o ódio surge em seu lugar
– eis a transformação do conteúdo. Isso mostra que o ódio tem seus motivos reais, há
uma regressão do amor à fase preliminar sádica, e o ódio adquire um caráter erótico:
continuar a amar, amor enviscado no ódio. No Seminário 20, Mais, ainda, Lacan propõe
hainamoration – “o enamoramento feito de ódio (haine). O que Lacan marca é que não
conhece nenhum amor sem ódio. Salientara o caráter imaginário desse par amor-ódio e
segue outro viés: o de que o amor se dirige ao semblante, tem uma função de véu.
Ainda que a mola do amor seja um saber que visa ao ser, o ódio toca mais o ser que o
amor, é um afeto do real.

Medéia consegue do rei um dia de prazo e é nele que traçará sua vingança.
Creonte coloca-se como o defensor da família – “depois de meus filhos, nada tenho de
mais querido que minha pátria.” Defensor da própria família, a de Édipo, não; proibiu o
sepultamento de Polinice e, assim, empurrou Antígona à morte. Aos filhos de Jasão e
Medéia, empurra ao exílio. É um tirano patriota. Na peça Antígona, seu filho Hémon, se
suicida após a morte de sua amada Antígona. Nessa, que trato agora, sua filha Creuza,
queima por ter desposado Jasão. Não protege os seus, o patriota. A peça de Sófocles foi
escrita trinta e sete anos antes que Medéia. Nela, Sófocles coloca Creonte como aquele
que sobrevive às mortes de seus entes amados, para se consumir na culpa. Em Medéia,
não há referência à peça Antígona; ele se agarrará a filha e morrerá também.

Freud escreve que sua paciente Dora contou a seus pais o assédio do Sr K.
“como uma atitude tomada sob a influência de um desejo mórbido de vingança.” Assim,
marcará seu “ardente desejo de vingança”, dará essa interpretação a ela e ela não o
contestará. Mas a fantasia de vingança contra o Sr. K. esconde a vingança contra o pai.
Escreverá: “ela vingou-se nele, Freud, abandonando-o do mesmo modo como se sentira
abandonada e enganada por ele [Sr. K.].” Dora vinga-se dos K., do pai e de Freud.
Nunca antes eu havia entendido tão claramente o quanto a vingança estava presente.
Também no Caso Hans, Freud acentuou a vingança ao pai, e o mesmo no caso do
Homem dos Ratos. E a vingança ao pai também é marcada no caso da jovem
homossexual. A vingança, essa irmã-gêmea do ódio, está em praticamente todos os
casos clínicos que Freud nos apresenta, andando de braços dados com a neurose.

Saliento algo da peça de Sêneca: Medéia vê uma sombra escura que a segue, é
seu irmão assassinado que clama vingança. Ela é vítima da sordidez do marido, mas não
de ter matado um irmão. Ela dirá a Jasão: você me deve um irmão. Arrepende-se, acha
que matou seus filhos em vão. E, com os filhos mortos, o ódio desaparece. “Meu ódio
abandonou-me e o amor materno reaparece inteiro em mim, afastando os sentimentos da
mulher.” É nessa hora que dirá que seus filhos eram inocentes, como seu irmão. O ódio
da mulher estará aplacado pela culpa e pelo amor de mãe e de irmã. Se tratamos a mãe
como o todo, aquela que tem seu falo no real, Medéia torna-se uma mãe desprovida de
seus filhos. Como mulher era poderosa: temida até pelos reis e deuses. Como mulher ela
pode tudo, como mãe e irmã, ela tem somente a sua dor.

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