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O olhar interior transforma tudo e dá a todas as coisas o complemento de beleza que lhes falta para que
sejam verdadeiramente dignas de nos serem agradáveis.
Charles Baudelaire
Como se nota, os versos do poeta de Só, “o livro mais triste que há em Portugal”,
segundo as suas palavras, são talhados com delicadeza. Elementos e fenômenos da
natureza como céu, noite e luar associam-se aos símbolos da pátria portuguesa: castelos,
mar, a fim de, na descrição do ser amoroso, entreverem-se os estados da alma do poeta
“eu que andava errante/ triste fim da minha mocidade”. Assim, a mulher amada descrita
antes por meio de seu retrato, é a representação de um ideal feminino: “pura e calma”,
uma mulher “anjo”, cuja criação foi inspirada nos elementos da natureza. Essa mulher,
remota ou primordial, conecta-se, em última instância, ao mundo de Antônio Nobre,
que para ele, era Portugal, tanto que o sopro de vida anelado ao corpo feminino, ou a
“alma” da amada, era o céu lusitano.
Mas o mais completo representante da poesia simbolista é, sem dúvida alguma,
Camilo Pessanha (1867 –1926). Poeta que soube conjugar os seus conturbados estados
de alma à expressão intimista latente do simbolismo fim de século. Formado em Direito
em Coimbra, foi procurador Régio em Mirandela (1892) e advogado em Óbidos. No
entanto, vai passar grande parte de sua vida no oriente, que será fruto de inspiração
inclusive para a sua verve poética. Entre 1894 e 1915, Camilo Pessanha ainda revisitará
Portugal algumas vezes, para tratar de sua saúde. Em uma dessas visitas será
apresentado a Fernando Pessoa que era apreciador da sua poesia, do mesmo modo que
Mário de Sá-Carneiro.
A obra de quilate superior do simbolismo português justamente Clepsidra, de
Camilo Pessanha, certamente porque as poesias que a compõem não são a representação
ornamental de uma estética ou, no melhor das hipóteses, o exercício de uma estética. A
experiência frente à vida é revelada pela dor existencial, fruto da experiência de
desolação e desconsolo, tradução em versos mais próxima da influência de
Schopenhauer “Saudades dessa dor que em vão procuro/ Do peito afugentar bem
rudemente,/ (...) Sem ela o coração é quase nada”. Os temas mais frequentes no livro
deduzem-se, pelo título que em sua acepção mais clara significa relógio d‟água, em
representações ligadas ao tempo irrefreável, em que se notam o curso do rio e a agitação
do mar e suas águas claras e/ou escuras, refratadas pelo sol, compondo um painel de
imagens impressivas de naufrágios, de ruínas, de desgostos “Águas claras do rio! Águas
do rio/ fugindo sob o meu olhar cansado/ (...) ficai cabelos d‟ela, flutuando/ E, debaixo
das águas fugidias,/ Os seus olhos abertos e cismando...”.
Por outro lado, nota-se a composição de versos pintados a cores contrastantes,
por meio de elementos ligados antiteticamente, a fim de evidenciar os estados de alma
de um eu lírico cuja vida interior está em ebulição, tal a inadaptação diante da vida.
Enfim, levantou ferro.
Com os lenços adeus, vai partir o navio.
Longe das pedras más do eu desterro,
Ondas do azul oceano, submergi-o
Referências
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Figueirinhas, 1984, v. 3.
CRUZ, Gastão. A poesia portuguesa hoje. 2 ed. Lisboa: Relógio d'Água, 1999.
FERNANDES, Annie Gisele. Tradição e modernidade na poesia de Antônio Nobre:
leitura de um fragmento de „O Desejado‟. In: FERNANDES, Annie Gisele e
SILVEIRA, Francisco Maciel (Orgs.) Literatura Portuguesa: visões e revisões. São
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FRANCHETTI, Paulo. Nostalgia, exílio e melancolia. Leituras de Camilo Pessanha.
São Paulo: EDUSP, 2001.
GOMES, Álvaro Cardoso. A estética simbolista. Textos doutrinários. São Paulo: Atlas,
1994.
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1995.
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NOBRE, Antônio. Só. Cotia: Ateliê Editoral, 2009.
PESSANHA, Camilo. Clepsydra: poemas de Camilo Pessanha. Estab. de texto, int.
crít., not. e coment. por Paulo Franchetti. Campinas: UNICAMP, 1994.