Você está na página 1de 7

Símbolos da insatisfação: Antônio Nobre e Camilo Pessanha

O olhar interior transforma tudo e dá a todas as coisas o complemento de beleza que lhes falta para que
sejam verdadeiramente dignas de nos serem agradáveis.
Charles Baudelaire

A produção literária do simbolismo só pode ser compreendida à luz dos


acontecimentos socioculturais que antecederam o final do século XIX e que, afinal,
foram adjuvantes para uma mudança de comportamento do homem frente à realidade.
Tal transformação deveu-se antes à intensificação das teorias cientificistas que, somadas
ao apanágio da industrialização, acabaram por disseminar, principalmente na França,
um clima de desgosto existencial. Se por seu turno, o binômio industrialização/
positivismo gerou a obsessão pela velocidade e pela competição, não deixou também de
suscitar um forte sentimento de crise ligado à incapacidade humana frente aos mistérios
insondáveis da vida.
Novos pressupostos filosóficos surgem, então, com o interesse de redimensionar
as análises cientificistas, ao deslocar do polo objetivo a subjetividade, o sentimento, a
imaginação, a espiritualidade, a fim de desvendar o subconsciente e o inconsciente nas
relações misteriosas e transcendentes entre o homem e o mundo. A partir de uma visão
mais abrangente, tanto no que se refere à filosofia e às ciências da natureza, quanto no
que se relaciona ao campo das ciências humanas, é notória a desconstrução das teorias
de cunho racionalista, seja por meio da física relativista de Einstein, da psicologia do
inconsciente de Freud ou, antes, das teorias filosóficas de Schopenhauer, Hartmann e
Bergson (GOMES, 1994).
Assim, o surgimento do simbolismo, por um lado, reflete a grande crise dos
valores racionalistas da civilização burguesa, no contexto da virada do século XIX para
o século XX e, por outro, inicia a criação de novas propostas estéticas precursoras da
arte da modernidade, sobretudo apoiadas, como lembra Fernandes (2009), pela
degenerescência dos valores clássicos, tradicionais e/ou pela transformação deles. Dessa
forma, se no contexto cultural europeu o comportamento humano estava implicado a um
“mal estar” (HAUSER, 1995) que de forma geral ficou conhecido como decadentismo;
na literatura, o simbolismo veio a representar na esfera da literatura, consoante ao
ensejo moderno de ruptura e renovação, a flexibilidade de representação poética
“apoiada sobretudo na teoria das correspondências e na ideia de que as imagens são
construídas a partir de sinestesias, de impressões sensoriais” (FERNANDES, 2009, p.
13).
Em Portugal, a poesia simbolista tomará corpo a partir da publicação do
primeiro livro de Eugênio de Castro, Oaristos (1890), que, inspirado no precursor do
simbolismo francês, Charles Baudelaire, e em sua teoria das “correspondências”, mais
especificamente, no prefácio que Théophile Gautier fez a As flores do mal (1857),
lançará a doutrinação do simbolismo português. No entanto, tal doutrinação não
pretendia levar a cabo os princípios filosóficos dos simbolistas franceses, mas apenas
propor uma renovação formal da poesia portuguesa, apelando para o vago, o misterioso
e o ímpar.
Não envolvendo, por conseguinte, nenhuma preocupação com uma
concepção de mundo mais abrangente. Em realidade, Eugênio de
Castro captou as novidades do simbolismo de fora para dentro, numa
superficialidade que acabaria por impedir que sua obra fosse algo mais
do que sucessão de imagens extravagantes, encobrindo a absoluta
carência de imaginação e sensibilidade (GOMES, 1994, p. 98).

O movimento simbolista português emerge, assim, preocupado a princípio em


renovar as bases formais da poesia, a fim de expressar uma nova visão de mundo ao
valorizar, em detrimento ao espírito racionalista do realismo, o subjetivismo e o
inconsciente, cujo principal escopo era a sondagem irrestrita do mundo interior do eu
lírico ou, em outras palavras, a introspecção levada às últimas consequências.
Uma vez lançados esses alicerces teóricos, o simbolismo será ecoado pelos
poetas portugueses através de diferentes vertentes, como vai ocorrer especialmente com
Antônio Nobre e Camilo Pessanha. De uma forma geral, o simbolismo, dada a própria
reforma a que se propôs, tanto em âmbito formal, quanto no que se refere à proposta
inovadora de tratamento dos temas, será um movimento precursor da poesia moderna,
encontrando ecos em Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, entre outros.
Antônio Nobre (1867 – 1900) falecido prematuramente aos 33 anos, vitimado
pela tuberculose, foi um poeta filiado à geração finissecular do século XIX português.
Conforme lembra-nos Coelho (1984, v. 3) trata-se de um poeta de expressividade
saudosista, que manifestou por meio de seus versos um lirismo de cunho sentimental e
de tônica decadentista.
Menino e Moço
Tombou
da haste a flor da minha infância alada.
Murchou na jarra de oiro o pudico jasmim:
Voou aos altos céus a pomba enamorada
Que dantes estendia as asas sobre mim.
Julguei que fosse eterna a luz dessa alvorada,
E que era sempre dia, e nunca tinha fim
Essa visão de luar que vivia encantada,
Num castelo com torres de marfim!

Mas, hoje, as pombas de oiro, aves da minha infância,


Que me enchiam de lua o coração, outrora,
Partiram e no céu evolam-se à distancia!

Debalde clamo e choro, erguendo aos céus meus ais:


Voltam na asa do vento os aias que a alma chora,
Elas, porém, senhor, elas não voltam mais...

Como se observa, a poesia de Antônio Nobre é revestida de um romantismo


tardio, caracterizada principalmente pela melancolia. A infância distante, o futuro
incerto, a angústia da morte, a doença e a amargura são elementos comumente
partilhados.
Viagens na Minha Terra
Às vezes, passo horas inteiras
Olhos fitos nestas Traseiras,
Sonhando o tempo que lá vai;
E jornadeio em fantasia
Essas jornadas que eu fazia
Ao velho Douro, mais meu Pai.

Inspirado em sua biografia, o poeta, ao voltar-se para o passado, buscou registrar


com simplicidade, as impressões dos ambientes provincianos. Nesse sentido, a sua visão
de mundo é nostálgica, impregnada de subjetivismo e exageradamente sentimental. A
musicalidade vislumbrada tanto nas imagens como na sonoridade dos versos e a clara
influência de Garrett, no uso de coloquialismos, conferem-lhe um valor pré-modernista.
Segundo Gastão Cruz (1999), enquanto Cesário Verde revolucionou fundamentalmente
o nível linguístico, através da renovação vocabular, a revolução de Antônio Nobre,
abalou, pela primeira vez, os alicerces e toda a construção do edifício “romântico-
parnasiano”. Essa desconstrução está situada, em Antônio Nobre, tanto em um plano
semântico e, por vezes, com uma liberdade de associações e uma violência que só
encontramos em Cesário.
O teu retrato
Deus fez a noite com o teu olhar,
Deus fez as ondas com os teus cabelos;
com a tua coragem fez castelos
Que pôs, como defesa, à beira-mar.

Com um sorriso teu, fez o luar


(Que é sorriso de noite, ao viandante)
E eu que andava pelo mundo, errante,
Já não ando perdido em alto mar!

Do céu de Portugal fez a tua alma!


E ao ver-te sempre assim, tão pura e calma,
Da minha noite, eu fiz a claridade!

Ó meu anjo de luz e de esperança,


Será em ti afinal que descansa
O triste fim da minha mocidade!

Como se nota, os versos do poeta de Só, “o livro mais triste que há em Portugal”,
segundo as suas palavras, são talhados com delicadeza. Elementos e fenômenos da
natureza como céu, noite e luar associam-se aos símbolos da pátria portuguesa: castelos,
mar, a fim de, na descrição do ser amoroso, entreverem-se os estados da alma do poeta
“eu que andava errante/ triste fim da minha mocidade”. Assim, a mulher amada descrita
antes por meio de seu retrato, é a representação de um ideal feminino: “pura e calma”,
uma mulher “anjo”, cuja criação foi inspirada nos elementos da natureza. Essa mulher,
remota ou primordial, conecta-se, em última instância, ao mundo de Antônio Nobre,
que para ele, era Portugal, tanto que o sopro de vida anelado ao corpo feminino, ou a
“alma” da amada, era o céu lusitano.
Mas o mais completo representante da poesia simbolista é, sem dúvida alguma,
Camilo Pessanha (1867 –1926). Poeta que soube conjugar os seus conturbados estados
de alma à expressão intimista latente do simbolismo fim de século. Formado em Direito
em Coimbra, foi procurador Régio em Mirandela (1892) e advogado em Óbidos. No
entanto, vai passar grande parte de sua vida no oriente, que será fruto de inspiração
inclusive para a sua verve poética. Entre 1894 e 1915, Camilo Pessanha ainda revisitará
Portugal algumas vezes, para tratar de sua saúde. Em uma dessas visitas será
apresentado a Fernando Pessoa que era apreciador da sua poesia, do mesmo modo que
Mário de Sá-Carneiro.
A obra de quilate superior do simbolismo português justamente Clepsidra, de
Camilo Pessanha, certamente porque as poesias que a compõem não são a representação
ornamental de uma estética ou, no melhor das hipóteses, o exercício de uma estética. A
experiência frente à vida é revelada pela dor existencial, fruto da experiência de
desolação e desconsolo, tradução em versos mais próxima da influência de
Schopenhauer “Saudades dessa dor que em vão procuro/ Do peito afugentar bem
rudemente,/ (...) Sem ela o coração é quase nada”. Os temas mais frequentes no livro
deduzem-se, pelo título que em sua acepção mais clara significa relógio d‟água, em
representações ligadas ao tempo irrefreável, em que se notam o curso do rio e a agitação
do mar e suas águas claras e/ou escuras, refratadas pelo sol, compondo um painel de
imagens impressivas de naufrágios, de ruínas, de desgostos “Águas claras do rio! Águas
do rio/ fugindo sob o meu olhar cansado/ (...) ficai cabelos d‟ela, flutuando/ E, debaixo
das águas fugidias,/ Os seus olhos abertos e cismando...”.
Por outro lado, nota-se a composição de versos pintados a cores contrastantes,
por meio de elementos ligados antiteticamente, a fim de evidenciar os estados de alma
de um eu lírico cuja vida interior está em ebulição, tal a inadaptação diante da vida.
Enfim, levantou ferro.
Com os lenços adeus, vai partir o navio.
Longe das pedras más do eu desterro,
Ondas do azul oceano, submergi-o

Que eu, desde a partida,


Não sei onde vou.
Roteiro da vida,
Quem é que o traçou?

Assim, conforme lembra-nos Moisés (1999) a ambivalência de sentimentos em


face de realidade concreta constitui o cerne da poesia de Camilo. Tal quadro é
constantemente marcado por uma tônica pessimista que, em seu exagero leva o eu lírico
a um niilismo profundamente ligado ao desgosto de viver, daí muitas vezes notarmos
em seus versos o desejo de evasão e a busca de explicações para a vida no místico,
inconsciente, no vago, etéreo e misterioso, bem como a ideia assente de que a vida é
feita de ilusões passageiras e enganosas. As paisagens surgem na evocação poética
sempre nebulosas, crepusculares, de meios tons, sugeridas apenas pela sensação interior,
imprevisível, sempre permeadas por assonâncias, aliterações, anáforas, que conferem
musicalidade e impõem ritmo aos versos.

Foi um dia de inúteis agonias,


Dia de sol inundado de sol.
Fulgiam nuas as espadas frias,
Dia de sol inundado de sol.

Foi um dia de falsas alegrias:


Dália a esfolhar-se, o seu mole sorriso.
Voltavam os ranchos das romarias,
Dália a esfolhar-se, o seu mole sorriso.
Dia impressível mais que os outros dias,
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido!
Difuso de teoremas, de teorias,

O dia fútil mais que os outros dias.


Minuete de discretas ironias!
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido.

Para Franchetti (2001) a sensibilidade poética de Camilo Pessanha alcança uma


natureza que vai para além das dores suscitadas pelos desajustes diante do passar
irrefreável do tempo e da vida. Há alguns poucos momentos em que o poeta nos fala de
“reencontro, de integração, de experiências que são acrescentamento e não subtração”
(FRANCHETTI, 2001, p. 21) “San Gabriel, arcanjo tutelar,/ Vem outra vez abençoar o
mar./ Vem-nos guiar sobre a planície azul”. Em Não sei se isto é amor, por sua vez, o
eu lírico parece revestir-se de aparente sobriedade ao descrever o sentimento que nutre
em relação ao objeto amoroso. De tal comedimento não se nota nenhuma pulsão
violenta ou desenfreada, tal como em Estátua, mas antes o eu lírico projeta em seus
versos, certa tranquilidade, certo gozo. Os últimos versos de Não sei se isto é amor
lembram de que a calmaria suscitada pode ser rompida pelos percalços da vida, afinal a
transitoriedade dos sentimentos, dos estados, enfim, é parte inerente da produção de
Clepsidra:
Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei n‟um lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.

Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.


E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do Cântico dos cânticos.

Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo


A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de Inverno.

Passo contigo a tarde e sempre sem receio


Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro a olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.

Eu não sei se é amor. Será talvez começo...


Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.
De qualquer forma, constatamos um hibridismo temático aliado a uma
formatação estrutural que busca traduzir a instabilidade e o inapreensível. Se a sua
poesia, composta pela ambivalência de sentimentos, é formatada por um molde de
expressão que busca equilibrar o efeito que as palavras geram e a disponibilidade para a
sua leitura, podemos aventar que a sua produção não está unicamente convencionada à
estética simbolista. Por vezes, a poesia de Camilo prenuncia uma forma de escrita que
estará muito mais intimamente ligada às vanguardas europeias, sendo que no
surrealismo, encontrará a mais interessante afinidade.
O que se esboçou neste ensaio foi a insatisfação traduzida por meio da escrita de
Antônio Nobre e Camilo Pessanha, que ora se espelham no velho ora prenunciam o
novo, a modernidade que está porvir, toda entremeada pela industrialização e o
crescimento das cidades no contexto da virada do século XIX para o século XX. A
sonoridade desta poesia tentou fazer alusão a um Portugal que vivia do vai-e-vem,
proporcionado pela urbanização, pela fumaça e pelos trilhos.

Referências
COELHO, Jacinto do Prado (Direção). Dicionário de literatura. 3 ed. Porto: Livraria
Figueirinhas, 1984, v. 3.
CRUZ, Gastão. A poesia portuguesa hoje. 2 ed. Lisboa: Relógio d'Água, 1999.
FERNANDES, Annie Gisele. Tradição e modernidade na poesia de Antônio Nobre:
leitura de um fragmento de „O Desejado‟. In: FERNANDES, Annie Gisele e
SILVEIRA, Francisco Maciel (Orgs.) Literatura Portuguesa: visões e revisões. São
Paulo: Ateliê Editorial, 2009.
FRANCHETTI, Paulo. Nostalgia, exílio e melancolia. Leituras de Camilo Pessanha.
São Paulo: EDUSP, 2001.
GOMES, Álvaro Cardoso. A estética simbolista. Textos doutrinários. São Paulo: Atlas,
1994.
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes,
1995.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 29 ed. São Paulo: Cultrix. 1999.
NOBRE, Antônio. Só. Cotia: Ateliê Editoral, 2009.
PESSANHA, Camilo. Clepsydra: poemas de Camilo Pessanha. Estab. de texto, int.
crít., not. e coment. por Paulo Franchetti. Campinas: UNICAMP, 1994.

Você também pode gostar