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Fichamento Eichmann em Jerusalém

Capítulo VIII - Deveres de um cidadão respeitador das leis

“Como além de cumprir aquilo que ele concebia como deveres de um cidadão respeitador
das leis, ele também agia sob ordens – sempre o cuidado de estar “coberto” –, ele acabou
completamente confuso e terminou frisando alternativamente as virtudes e os vícios da
obediência cega, ou a “obediência cadavérica”, (kadavergehorsam), como ele próprio a
chamou.” pg 152

Arendt compara Eichmann a Pôncio Pilatos (no cp anterior) devido ao fato de, com o tempo,
ter perdido a necessidade de “sentir”. Eichmann explica que cumpria seu dever, pois não
apenas obedecia ordens, mas acima de tudo obedecia a lei.

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“Isso era aparentemente ultrajante, e também incompreensível, uma vez que a filosofia moral
de Kant está intimamente ligada à faculdade de juízo do homem, o que elimina a obediência
cega. O oficial interrogador não forçou esse ponto, mas o juiz Raveh, fosse por curiosidade,
fosse por indignação pelo fato de Eichmann ter a ousadia de invocar o nome de Kant em
relação a seus crimes, resolveu interrogar o acusado. E para surpresa de todos, Eichmann
deu uma definição quase correta do imperativo categórico: “O que eu quis dizer com minha
menção a Kant foi que o princípio de minha vontade deve ser sempre tal que possa se
transformar no princípio de leis gerais” (o que não é o caso com roubo e assassinato, por
exemplo, porque não é concebível que o ladrão e o assassino desejem viver num sistema
legal que dê aos outros o direito de roubá-los ou matá-los). [...] explicou que, a partir do
momento em que fora encarregado de efetivar a Solução Final, deixara de viver segundo os
princípios kantianos, que sabia disso e que se consolava com a idéia de que não era mais
“senhor de seus próprios atos”, de que era incapaz de “mudar qualquer coisa”.” pg 153

Eichmann no interrogatório da polícia compara sua vida exímia de cumprimento às leis e


ordens com os princípios morais de Kant. Contudo, Arendt discorda de tal comparação feita
por Eichmann, devido ao fato de a filosofia moral de Kant ligar-se a faculdade de juízo do
homem, fato eliminado em Eichmann diante de sua obediência cega.

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“Em Jerusalém, confrontado com provas documentais de sua extraordinária lealdade a


Hitler e à ordem do Führer, Eichmann tentou muitas vezes explicar que durante o Terceiro
Reich “as palavras de Führer tinham força de lei” (Führerwortw haben Gesetzkraft), o que
significa, entre outras coisas, que uma ordem vinda diretamente de Hitler não precisava ser
escrita. Ele tentou explicar que, por isso, nunca havia pedido uma ordem escrita a Hitler
(nenhum documento relativo à Solução Final jamais foi encontrado; provavelmente nunca
existiu nenhum).” pg 165

A lei, no caso de Eichmann, não necessitava estar por escrito, tampouco encontra-se
transcrita em qualquer tipo de documento de ordem pública para que tivesse validade. O
ordenamento, tratando-se de palavras do Führer, para Eichmann, tinha total peso de lei,
motivo pelo qual seguia as ordens tão piamente. Arendt menciona jamais ter sido encontrado
qualquer documento relativo a Solução Final, e que provavelmente nunca tenha existido. Ora,
nesta senda, a obediência cega a uma ordem nos leva a entender que, existindo ou não um
ordenamento jurídico vigente (uma lei escrita e vigente), o que possui validade é a ordem do
líder.

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“Sem dúvida era um estado de coisas fantástico, e bibliotecas inteiras de comentários


jurídicos “abalizados” foram escritas demonstrando que as palavras do Führer, seus
pronunciamentos orais, eram a lei do mundo. Dentro desse panorama “legal”, toda ordem
contrária em letra ou espírito à palavra falada por Hitler era, por definição, ilegal.” pg 165

Legal ou ilegal? Quando os ordenamentos de Hitler passaram a ser ilegais? Durante seu
período no poder, suas palavras e pronunciamentos eram a lei. Assim, qualquer direção
contrária a seus ideais, fossem escritas, pensadas ou faladas, seriam considerados ilegais. Fato
interessante, após a morte de Hitler, rapidamente todos os atos de extermínio passaram a ser
tratados como ilegais.

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“A posição de Eichmann, portanto, demonstrava uma semelhança muito desagradável com


aquela do muito citado soldado que, agindo dentro de um quadro legal normal, se recusa a
executar ordens que contrariam a sua experiência normal de legalidade e que podem ser
reconhecidas por ele como criminosas. A extensa literatura sobre o assunto geralmente
baseia suas afirmações no sentido comum equívoco da palavra “lei”, que neste contexto
significa às vezes a lei local – ou seja, a lei positiva e constituída – e às vezes a lei que
supostamente fala ao coração de todos os homens com a mesma voz. Em termos práticos,
porém, para serem desobedecidas, as ordens têm de ser “manifestamente ilegais”, e a
ilegalidade tem de “pairar como bandeira negra acima [delas] como um aviso de
‘Proibido’” – conforme o tribunal indicou.” pg 165-166

Nosso Código Penal Brasileiro, em seu artigo 22, trata da excludente de culpabilidade por
obediência hierárquica, ou seja, exclui a culpa do obediente hierárquico caso a ordem de
comando não seja manifestamente ilegal. Não obstante, Arendt ressalta que, segundo o
tribunal indicara no caso Eichmann, a desobediência deve sim ocorrer quando as ordens
constituam-se manifestamente ilegais.
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“O caso de consciência de Adolf Eichmann, que é realmente complicado, mas de modo


nenhum único, não é comparável ao caso dos generais alemães, um dos quais, quando lhe
perguntaram em Nuremberg, “Como é possível que todos vocês, honrados generais, tenham
continuado a servir um assassino com lealdade tão inquestionável?”, respondeu que “não
era tarefa de um soldado agir como juiz de seu comandante supremo. Que a história se
encarregue disso, ou Deus no céu”. (Era o general Alfred Jodl, enforcado em Nuremberg.).”
pg 166 -167

Percebemos também nos generais do Tribunal de Nuremberg a obediência cega e a anulação


da capacidade de “sentir”, ou mesmo do pensamento crítico. Em citação referente ao General
Alfred Jodl, quando questionado pela lealdade e o servir a um assassino, afirmou não ser
tarefa de um soldado o julgamento de seu comandante.

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“Essa é também a verdadeira razão pela qual a ordem do Führer para a Solução Final foi
seguida por uma tempestade de regulamentos e diretivas, todos elaborados por advogados
peritos e conselheiros legais, não por meros administradores; essa ordem, ao contrário de
ordens comuns, foi tratada como uma lei. Nem é preciso acrescentar que a parafernália
resultante, longe de ser um mero sintoma do pedantismo ou empenho alemão, serviu muito
eficientemente para dar a toda a coisa a sua aparência de legalidade.” pg 167

Deveras a lei não deve ser atrelada à moral. Ora, as leis, assim como no Terceiro Reich, são
elaboradas a fim de afirmar ideais de cada estação. De fato, se pensadas no século 21, as
ordens para a Solução Final são deliberadamente ilegais (e desumanas). Contudo, a variável
das leis enquadra -se ao tempo no qual é elaborada. Motivo pelo qual constantemente existem
alterações legais , para que as leis enquadrem-se ao tempo e estado de cada período histórico.
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“No terceiro Reich, o Mal perdera a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o
reconhecem – a qualidade da tentação. Muitos alemães e muitos nazistas, provavelmente a
esmagadora maioria deles, deve ter sido tentada a não matar, a não roubar, a não deixar
seus vizinhos partirem para a destruição (pois eles sabiam que os judeus estavam sendo
transportados para a destruição, é claro, embora muitos possam não ter sabido dos detalhes
terríveis), a não se tornarem cúmplices de todos esses crimes tirando proveito deles. Mas
Deus sabe como eles tinham aprendido a resistir a tentação.” pg 167

O mal, durante o Terceiro Reich, no que diz respeito aos atos desumanos do Holocausto, teria
perdido o sentido? É o que o estudo sobre Eichmann nos leva a entender, ou seja, quando há
atos juridicamente permitidos, ainda que manifestamente imorais e amorais, os obedientes
sequer questionam seu "mal". Há uma obediência cega a seu líder, o que anula a capacidade
de pensar de forma crítica, ou mesmo de "sentir". Não há que se falar em possíveis
questionamentos, pois pensar fora da caixa não é uma opção.

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