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A renovação musical italiana

A atuação dos músicos do Norte em outros pontos da Europa não tardaria a render
frutos. Se as suas rebuscadas técnicas de composição viriam a inovar e fortalecer a
música dessas regiões (especialmente da Itália), em contrapartida, sua própria música
viria a angariar a influência dos elementos musicais autóctones; flexibilizando e
temperando a rigidez erudita dos seus métodos. Também inspirando e apontando para a
aceitação de sua música junto a um público predisposto à empatia para com aqueles
elementos populares. O animado intercâmbio entre os centros franco-flamengos e a
Itália – e mais tarde a Espanha, conferiu uma variedade, uma mistura e também uma
fusão entre elementos musicais do Norte e do Sul: o tom sério, a adoção de estruturas
rígidas, a fluência rítmica do Norte; mas também a espontaneidade, a textura
homofônica e simplificada, os ritmos mais marcados e as frases mais claramente
articuladas dos italianos. Como contrapartida da influência, a música franco-flamenga,
apesar de dominante, iria renovar-se nas fontes populares da música autóctone.
Após o esplendor musical da ​Ars Nova italiana no século XIV, com nomes como
Francesco Landini, a Itália ingressa, no século seguinte, em um período artisticamente
paradoxal. Enquanto resplandece nas artes plásticas, musicalmente se achava colonizada
por franceses e flamengos. Um fato que emblematiza esta situação é a publicação do
Odecathon​, que inaugura o programa de publicações de Ottaviano Petrucci, em Veneza,
1501. Esta coleção de cem canções de música harmônica – ou seja, polifônica, trazia
obras que cobriam do período borgonhês até a sua atualidade. ​Chansons​, em sua
maioria a três vozes, conforme o estilo mais antiquado. Entre os compositores, nomes
como Heinrich Isaac (1450-1517), Josquin des Prez (1440-1521), Alexandre Agricola
(1445-1506) e Loyset Compère (1445-1518). Já as peças a quatro vozes mostram a
evolução do estilo no início do século XVI.
Todavia, tal visão histórica se mostra superficial, uma vez que o elitismo histórico,
advindo do fato de que a escrita por séculos foi privilégio de eruditos, particularizou
informações. É certo que práticas populares persistiram na Itália durante todo o século
XV, tão presentes que se fizeram sentir no trabalho dos ‘colonos musicais’
franco-flamengos e surgindo nas fontes escritas em finais do ​quatrocento​, quando enfim
esses elementos chegam às camadas eruditas da sociedade. Temos hoje, graças à
pesquisa musicológica e trabalho de interpretação histórica, traços vívidos dessas
tradições musicais populares, como os estilos do ​madrigale em sua forma primitiva, a
caccia​ e a ​ballata​.
Nas últimas décadas do século XV, vemos acentuar-se uma produção de música
particularmente italiana, especialmente nas cidades de Florença e Mântua. Na primeira,
com os ​canti carnascialeschi – ‘cantos carnavalescos’, sob o governo de Lorenzo de
Médici – ​Il Magnifico (entre 1469 e 1492), ele próprio autor de alguns textos dessas
canções.
No último decênio do século XV, este particular renascimento musical se deu em torno
da Marquesa Isabella d’Este, de Mântua. Intelectual, mecenas e musicista – cantava e
tocava alaúde. Acercou-se dos maiores artistas do seu tempo e incentivou os poetas a
escreverem ​per musica – para o canto. Nesta corte floresceram as ​frottole (singular
frottola​). Gênero de canção de caráter popular, silábica com poucos melismas; escrita
em polifonia simples, cuja interpretação costumava consistir em cantar a melodia
principal da voz superior e tocar as restantes ao alaúde. Algumas edições as traziam a
três ou quatro vozes, podendo também apresentar a melodia do ​superius ​sobre uma
tablatura para aquele mesmo instrumento. Podia ser cantada com grande liberdade de
ornamentação e improviso. Apesar de sua simplicidade a frótola não foi um gênero
popular ou folclórico, mas música cortesã. Seus principais compositores são italianos.
Foi precursora do madrigal italiano e exerceu sutil influência nas ​chansons francesas
nas duas primeiras décadas do século XVI. Também o seu tratamento harmônico
simples, de acordes construídos sobre as notas fundamentais, seria de grande influência
nos procedimentos harmônicos vindouros. Dois nomes se destacam entre seus
compositores: Bartolomeo Trombocino (1470-1535) e Marchetto Cara (1470-1525). A
maior parte do repertório dos ​frottolisti ​nos chegou através de manuscritos do início do
século XVI e das edições de Petrucci. Os franco-flamengos na Itália não ficaram
indiferentes a esta eclosão de música italiana e se puseram a experimentar o gênero; a
exemplo de Jacob Obrecht (​La Tortorella​) e de Josquin de Prez, com ​El Grillo​.
A Lauda – A contrapartida religiosa da ​frottola era a ​lauda polifônica (plural ​laude​),
gênero de canção devocional não litúrgica e de cunho popular. Em latim ou em italiano,
podia chegar a quatro vozes, sendo as melodias algumas vezes adaptações de canções
profanas. Eram cultivadas em reuniões de devotos, à ​capella ou com a participação de
instrumentos. Silábicas, homofônicas e ritmicamente regulares, com a melodia
usualmente situada na voz superior. Apesar de simples, eram expressivas. Embora
próximas em espírito e propósito da música litúrgica, não costumavam incorporar temas
gregorianos. Também não revelam influência do estilo sacro franco-flamengo. Pelo
contrário, foram os compositores do Norte, radicados na Itália, que perceberam nas
laude e ​frottole a eficácia da escrita homofônica e silábica. Nisso reside um ponto de
grande importância, pois que muitas passagens de compositores futuros derivariam
provavelmente destes elementos. As ​laude compartilham com as ​frottole traços comuns
e podemos considerar que constituem o estilo italiano deste período.
Espanha
O equivalente espanhol das ​frottole foram os ​villancicos​. Breves canções estróficas com
refrão, a melodia principal na voz superior e era possivelmente interpretada pelo solista
acompanhado por instrumentos. Foi o gênero polifônico mais relevante na música
secular espanhola de finais do século XV. Eram reunidos em ​cancioneros​- cancioneiros
(​Cancionero de palacio e de Upsala​) e muitos foram publicados para voz e alaúde. O
mais destacado compositor deste gênero foi Juan del Encina (1469-1529). Suas peças
terminavam em geral com um ​villancico​. Apesar da música dos borgonheses e
franco-flamengos ser conhecida na Espanha, o caráter da música polifônica autóctone
resistiu às influências, apresentando demarcadas características próprias, como a
assimilação de elementos de origem popular. A grande diferença entre os ​villancicos e
as ​frottole reside no tratamento rítmico. Os ​villancicos são mais dinâmicos,
imprevisíveis; podendo apresentar momentos de métrica quinária.
As ​Ensaladas – Outro gênero polifônico tipicamente espanhol é a ​ensalada – salada.
Canções nas quais o compositor se servia de traços populares para enfim chegar, pelo
elemento cômico, ao cunho moralizante. Em geral traziam um corpo textual em
espanhol, arrematado por uma sentença latina. Neste aspecto era similar ao ​quodlibet
alemão e ao ​fricassée francês, gêneros polifônicos tecidos com citações de outras
melodias populares. O nome que se destaca nas ​Ensaladas é o de Mateo Flecha – ​el
Viejo​ (1481-1553).
Nos séculos seguintes foram escritos ​villancicos ​mais elaborados, porém de caráter
religioso, sofrendo enfim a influência dos estrangeiros que ocasionalmente trabalhavam
em Espanha, como Nicolas Gombert (1495-1560) e Thomas Crecquillon (1505-1557).
Esses traços por fim se evidenciaram na polifonia da música sacra espanhola, apesar de
conservar uma peculiar sobriedade melódica e intensidade devocional. A exemplo do
moteto ​Emendemus in melius – “Reparemos o mal”, de Cristobal de Morales (c.
1500-1553). Nesta obra observamos na trama polifônica a herança da música
franco-flamenga. A entrada em fugato com vozes aos pares, com recorrentes frases em
textura imitativa. Uma surpreendente transição para a textura homorrítmica e
declamatória, acentuando a admoestação do texto: ​subito preocupati die morti –
“subitamente, no dia da morte”. Dramáticos saltos de oitava e sexta menor sobre a
palavra ​attende – “ouvi-nos”. Nos acentos cadenciais elididos e nas cadências diluídas,
traços do método de Ockeghem, conferindo continuidade ao discurso musical, numa
evolução rítmica perene.

Referências
ATLAS. Allan W. La música del Renacimiento. Madrid, Akal, 2002.
GROUT & PALISCA, Donald J. e Claude V. História da Música Ocidental. Lisboa,
Gradiva, 2007.
MASSIN, JEAN & BRIGITTE. História da Música Ocidental. RJ, Nova Fronteira,
1997.
RAYNOR, Henry. História social da música. RJ, Zahar, 1988.
REESE, Gustave. La Música em el Renacimiento. Madrid, Alianza Música, 1988.

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