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O conhecimento de nós mesmos

Por R.C. Sproul — dezembro 23, 2022

Nota do editor: Este é o primeiro de 6 capítulos da série da


revista Tabletalk: A igreja toma forma: os atos de Cristo no
segundo século.
O que você quer ser quando crescer? Praticamente todas as pessoas
enfrentam essa pergunta em algum momento da infância.

Quando eu era criança, as respostas mais comuns entre os meninos


incluíam “um vaqueiro”, “um bombeiro” ou “um jogador de
beisebol”. No entanto, poucos de nós acabaram como vaqueiro,
bombeiros ou jogadores de beisebol. Em algum momento, quando
uma pessoa sai da infância, passa pela adolescência e entra na idade
adulta, a pergunta “quem sou eu?” libera-se (pelo menos em parte) da
fantasia infantil e é respondida em termos mais sóbrios, termos muitas
vezes ditados pelos duros golpes da realidade.

O que é verdade para meninos e meninas geralmente também é


verdade para instituições. Assim como os indivíduos buscam uma
identidade, as organizações também o fazem. A igreja não é a
exceção. Durante o segundo século da história cristã, a igreja estava
ocupada respondendo à pergunta: “Quem somos nós?”. Foi uma época
de fusão, codificação e definição. Naquele século, a igreja refletiu
sobre sua base de autoridade (Escritura), sua teologia e sua
organização.

Muitas vezes, as organizações, inclusive as nações, são forçadas a se


definirem com maior clareza e precisão diante de seus concorrentes ou
inimigos. Isso foi o que ocorreu na igreja. Os primeiros apologistas
cristãos, como Justino Mártir, trabalharam para esclarecer a natureza
da igreja e do cristianismo, a fim de compensar equívocos espalhados
por pessoas de fora, como pagãos e judeus. Da mesma forma, a
doutrina “ortodoxa” foi forjada na bigorna da heresia. Naquela época,
como agora, a maioria dos hereges afirmavam ser defensores do
verdadeiro cristianismo. Seus erros e distorções forçaram a igreja a
definir suas crenças com mais precisão.

Em 2001, Hans Küng, o controverso teólogo católico romano,


publicou mais um livro sobre a igreja. Esse foi intitulado
simplesmente A Igreja católica. Küng viu uma mudança decisiva da
atividade e autoconsciência da igreja primitiva do primeiro século
para a “institucionalização” da igreja no segundo século. Ele observa
que, para responder aos gnósticos, bem como aos hereges como
Marcião e Montano, a igreja estabeleceu cânones ou padrões claros
sobre o que é verdadeiramente cristão, entre os quais eram:
1. Um credo resumido que costumava ser usado no batismo. O credo
batismal mais antigo era a simples declaração: “Jesus é o Senhor”.
Mais tarde, a fórmula foi ampliada para incluir afirmações de fé no
Deus Todo-Poderoso e em Jesus Cristo, o Filho de Deus nascido do
Espírito Santo. Os rudimentos do que ficou conhecido como “O
Símbolo”, ou o Credo apostólico, foram adicionados naquele
momento. Posteriormente, mais afirmações foram adicionadas para
formar a versão final do credo.
2. O cânon do Novo Testamento. A formulação da lista de livros
autorizados foi provocada em grande parte pelo trabalho do herege
Marcião, que produziu seu próprio Novo Testamento adulterado.
Embora o cânon do Novo Testamento não tenha sido finalizado até
perto do final do século IV, estava quase todo formalmente em vigor
no final do século II.

3. O ofício episcopal de ensino. Isso evoluiu à medida que a igreja se


movia na direção do episcopado monárquico. Tornou-se comum
recorrer aos ensinamentos dos bispos para resolver controvérsias
teológicas. Küng argumenta que esse terceiro padrão representou uma
mudança na igreja da era apostólica, que era composta por
comunidades livres sem um episcopado ou um presbitério. Ele vê as
comunidades apostólicas como igrejas completas e bem equipadas, às
quais nada faltava. Igrejas congregacionais posteriores (e muitos
puritanos) apelariam para essas comunidades como representantes da
estrutura original da igreja.
Embora, em alguns aspectos, entristecido por essas mudanças
históricas, Küng expressa: “Não se pode ignorar o fato de que, com os
três padrões mencionados acima, a Igreja católica criou uma estrutura
para teologia e organização e com ela uma ordem interna muito
resistente.”

A avaliação de Küng não difere muito da análise protestante. Em A


History of the Christian Church [Uma história da igreja cristã],
Williston Walker observa: “Assim, da luta contra o gnosticismo e o
montanismo veio a Igreja católica, com sua forte organização
episcopal, padrão de credo e cânone autoritário. Diferia muito da
Igreja apostólica, mas preservou o cristianismo histórico e o levou a
uma tremenda crise.”
A propósito, Küng observa que todos os três padrões estabelecidos
pela igreja no segundo século foram atacados em épocas
subsequentes. No século XVI, a Reforma levantou questões sobre a
estrutura episcopal de Roma. O Iluminismo então questionou tanto o
cânon das Escrituras quanto a regra de fé do credo.

A igreja do segundo século também fez progressos significativos na


definição da vida da igreja e da prática cristã. No início da história
cristã, a igreja fez uma distinção entre proclamação (kerygma) e
instrução (didache). A igreja apostólica era uma igreja missionária,
indo além das fronteiras do judaísmo. Os gentios foram alcançados
pela proclamação do evangelho em sua forma básica. A ênfase foi
colocada na pessoa e obra de Cristo: em Sua morte e ressurreição.
Quando os convertidos abraçavam a Cristo pela fé, eram batizados e
entravam para a comunidade da igreja. Em seguida, recebiam
instruções mais completas na fé. Para esse fim, um manual de ordem
da igreja conhecido como Didache (Didaquê) , ou O ensino dos doze
apóstolos, foi composto no século II.
Esse manual (descoberto em 1873) fornece regras simples para
congregações locais e trata sobre o batismo, aborto (que era
considerado assassinato), esmola, jejum, Ceia do Senhor e outros
assuntos. Estabelece dois caminhos em total contraste: um caminho de
vida e um caminho de morte. Muitas das admoestações encontradas
nele são citações explícitas das Escrituras do Novo Testamento.

A Didaquê passou a ser usada tanto como instrumento catequético


quanto como guia para a vida cristã. Como tal, representa o primeiro
código escrito pós-apostólico da moral cristã. Embora não faça parte
do cânon das Escrituras, oferece instruções valiosas sobre a
autocompreensão da igreja primitiva.
A igreja do segundo século desenvolveu um forte senso de identidade.
Esse processo continuou até o século III, quando novas heresias e
novas lutas com o Estado trouxeram ainda mais desenvolvimento e
novas estruturas na igreja.

Este artigo foi publicado originalmente na Tabletalk Magazine.

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