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Sociedade de Hipnose Médica do Estado do Rio de Janeiro

A Hipnose e o Pediatra
- A utilização da hipnose em Pediatria Clínica
Monografia do 50º Curso de Hipnose Clínica
Aluno: Geraldo Luiz Cardoso Chaves
Ano: 2003

Agradecimentos
Aos meus professores do 50º Curso de Hipnose Clínica da Sociedade de Hipnose Médica do Estado do Rio
de Janeiro, a Dra Monica Tolipan que foi a fonte de inspiração para a realização do curso, ao amigo e
psicólogo Alexandre Pinheiro que fez a revisão da monografia e a Mariana da Veiga que mais uma vez
colaborou comigo na realização de um projeto.

Resumo
O autor descreve e avalia o efeito da aplicação da hipnose em Pediatria; caracteriza algumas indicações
em psicoterapia e relata a sua experiência como Pediatra; enfatiza que o conhecimento da hipnose pode
ser valioso nos procedimentos clínicos referentes a crianças da mesma forma como o são no campo da
psicoterapia.

Abstract
The author describes and evaluates the outcome application of child hypnosis in pediatrics; also, he
characterizes some indications of the use of hypnosis in psychotherapy and reports and reports his
experience with hypnosis as a pediatrician. The present essay emphasizes that the knowledge of hypnosis
may be valuable in clinical procedures regarding children, as well as in psychotherapy.
1 – Introdução:
1.1 – Objetivos:
A presente monografia descreve o uso da hipnose em crianças durante o atendimento pediátrico no
consultório, no serviço de emergência e nas enfermarias. São descritas algumas experiências com o uso
da hipnose no procedimento terapêutico e as técnicas, por mim adequadas, no dia-a-dia de trabalho,
enfatizando que o conhecimento da hipnose pode auxiliar ao clínico na abordagem do pequeno paciente,
mesmo fora do universo da psicoterapia.
1.2 – Justificativa
Quando resolvi estudar hipnose não imaginava o universo de possibilidades que tal conhecimento poderia
me oferecer, pois fui movido somente pela curiosidade despertada após ler uma entrevista que a Dra.
Monica Tolipan, em 14 de setembro de 2002, concedeu ao Jornal do Brasil. O título - “Outro olhar sobre o
autismo - Psicanalista defende nova terapia para distúrbio que pediatras demoram a identificar” - chamou
a minha atenção a partir do momento em que, como Pediatra, acreditava ao menos saber identificar
distúrbios de qualquer caráter nos meus pacientes. A partir daí, adquiri o livro “Uma presença ausente”,
onde a Dra. Monica relata sua experiência com o uso da hipnose no tratamento do paciente com autismo.
Em determinado parágrafo, o curso da Sociedade de Hipnose Medica do Rio de Janeiro era citado e resolvi
procurar informações a respeito, chegando a me matricular no curso. Encantado com o que aprendi,
adaptei ao meu trabalho do dia-a-dia e hoje, acredito, acrescentei importante ferramenta no trato com
meus pacientes, o que irei descrever no decorrer da monografia.
1.3 – Material e Métodos
Utilizei a hipnose em pacientes com problemas diversos, selecionados aleatoriamente durante o
atendimento no Hospital Alcides Carneiro da Fundação Municipal de Saúde de Petrópolis (Hospital Escola
da Faculdade de Medicina de Petrópolis) e do Hospital Naval Marcílio Dias.

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2 – A Hipnose em crianças:
2.1 – Histórico
A hipnose é uma técnica descrita desde o Século XXX a.C., porém seu início formal se deu em 1765 com
os trabalhos de Franz Anton Mesmer (1734 – 1815) envolvendo magnetismo animal. James Braid (1795 –
1860) cunhou o termo hipnotismo. Em 1889, no Congresso Internacional de Hipnotismo em Paris,
Berillond demonstrou o valor da hipnose no tratamento de crianças principalmente em enurese, terror
noturno, tiques nervosos, e outros distúrbios funcionais do sistema nervoso.
2.2 – Indicações da hipnose em crianças
Pesquisando nas bases de dados encontradas na Biblioteca Virtuais de Saúde (também conhecida como
BIREME) como LILACS, Medline, Scielo e Biblioteca Cochrane, pouco material é encontrado em relação ao
uso da hipnose em crianças. Um artigo publicado no International Journal of Clinical and Experimental
Hypnosis refere a seguinte situação quanto à experiência de outros autores:
Research on clinical hypnosis with children is in an early stage of
development. The child hypnosis literature is predominantly
composed of anecdotal case histories and uncontrolled research
studies. The few controlled investigations of clinical hypnosis
with children suggest much promise for treating certain
problems, most notably enuresis, chemotherapy-related
distress, and acute pain owing to invasive medical procedures.
(Milling,2000, p.113)

Conforme observamos nas afirmações do artigo, existem poucos estudos efetivos sendo a enurese, o
stress do câncer infantil e a abordagem da dor, os aspectos onde são observados melhores resultados. A
enurese é queixa constante no consultório de Pediatria e, normalmente, as crianças são encaminhadas
para psicoterapia depois de afastadas patologias físicas.
De qualquer maneira descreverei, a seguir, as situações que são relatadas nos cursos e apostilas, sobre
uso da hipnose em crianças:
2.2.1 - Enurese:
Consiste na eliminação involuntária de urina após a idade onde o controle esfincteriano já estaria
estabelecido. Pode ser primária, quando o treinamento para tal hábito tiver sido falho, ou regressivo,
quando a criança que já estava bem treinada, retorna a eliminar urina de forma involuntária,
principalmente durante o sono (eventualmente relacionado a algum evento desencadeante do stress). O
psicoterapeuta poderá usar a hipnose, no sentido de melhorar a confiança da criança em si mesma, e
também deixar uma sugestão hipnótica de que, toda a vez em que ela sentir vontade de urinar, se dirigirá
ao banheiro, conforme foi treinada.
2.2.2 – Terror Noturno ou pesadelos freqüentes
"Terror noturno” ou "Pavor Nocturnus" é um severo distúrbio do sono, consistindo de ataques de terror
agudo emergindo do sono profundo sem sonhos. É acompanhada por violentos movimentos corporais,
agitação extrema, gritos, gemido, falta de ar, suor, confusão, e em alguns casos, fuga da cama ou do
quarto, comportamento destrutivo e agressão dirigida a objetos ou contra eles mesmos ou outras
pessoas. Feridas, fraturas e lesões podem ocorrer em conseqüência.
Embora possa ser encontrado em qualquer idade, é na criança que se faz mais freqüente. Terror noturno
é menos encontrado na população em geral do que sonambulismo, sendo sua prevalência de 1% a 5%
em crianças escolares. As crianças com sonambulismo apresentam terror noturno mais comumente que
as demais. Em pesquisas da população em geral, nas crianças com terror noturno, esta parassonia é
limitada no tempo, durante três a quatro anos. Por outro lado, dentre crianças que são levadas a
especialistas com a queixa de terror noturno, avaliadas prospectivamente, observa-se que 36% persistem
manifestando terror noturno quando avaliadas na adolescência.
O uso da hipnose pode tranqüilizar a criança com sugestões positivas, e uma regressão de memória pode
ser também conseguida, com o sonho sendo modificado.
2.2.3 - Distúrbios dos Hábitos
São queixas freqüentes o bruxismo (ranger dos dentes), a unicofagia (roer unhas), tiques, tricotilomania
(puxar os cabelos), dentre outros. A hipnose trabalhará a tensão da criança, pois tais fenômenos são
considerados como descarga de tensão.

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2.2.4 – Ansiedade
Técnicas de relaxamento são excelentes.
2.2.5 - Transtorno do stress pós-traumático
Pode-se usar a hipnose com o objetivo de modificar a cena a partir de uma regressão. As técnicas de
EMDR também são utilizadas com excelente sucesso.
2.2.6 – Gagueira
A gagueira ou tartamudez é caracterizada por repetições ou prolongamentos freqüentes de sons, de
sílabas ou de palavras, ou por hesitações ou pausas constantes que perturbam a fluência verbal. Só se
considera como transtorno caso a intensidade de perturbação incapacite de modo marcante a fluidez da
fala.
É relacionada a repetição de um padrão. A regressão e o relaxamento são técnicas utilizadas assim como
o EMDR.
2.3 – Características da Hipnose em Crianças
As crianças são imaginativas, curiosas e torna-se fácil o uso da hipnose a partir do momento em que ela
consegue fixar a atenção. Tal momento está relacionado à idade de cinco anos onde pode ser estabelecida
a ligação entre o terapeuta e a criança. No recém-nascido isto seria muito difícil, pois o córtex cerebral é
pouco desenvolvido e suas reações são ligadas a estímulos térmicos ou cutâneos na forma de relações
condicionadas; a partir de 18 meses os reflexos condicionados já podem ser observados, de forma lenta,
a partir da visão e audição; por volta dos dois anos, apesar do completo desenvolvimento dos reflexos
condicionados, ainda seria difícil o transe hipnótico considerado como padrão, porém, nessas faixas
etárias mais baixas, fixar a atenção pode ser possível com um estetoscópio balançando, massagens
auriculares, música suave e movimentos de balançar, onde o relaxamento, ao menos, poderá ser
alcançado.
A vantagem que existe no trato com as crianças é que elas, efetivamente, são consideradas sempre em
transe. A labilidade, porém, é um dos problemas encontrados; em dado momento onde o terapeuta
acredita que a criança já está em transe profundo, a mesma parece acordar e, neste momento, deve-se
continuar com o trabalho como se nada tivesse acontecido.
2.4 – O rapport
Em Pediatria Clínica existe a variável da idade da criança. Enquanto bebê, é comum a visita pediátrica
mensal. Após um ano, tal consulta já é mais esporádica; no atendimento de urgência, dificilmente
conhecemos os pais e a criança. Tal situação é distinta daquela encontrada nos consultórios de psicologia
onde pode haver uma consulta prévia com os pais, estabelecer um rapport com eles e, a seguir, com a
criança. Desta forma, o psicoterapeuta pode ter uma idéia do que fazer na abordagem inicial.
No atendimento médico, é importante lembrar que, muita das vezes, a mãe utiliza a situação como uma
forma de castigo (“se você não se comportar direito vou te levar o médico para que ele te dê uma
injeção!!”) e o Pediatra vira algo do tipo “bicho-papão”, logo, acaba se dificultando, em muito, a
instalação do rapport. Quebrar tal situação pode ser a grande dificuldade inicial e a sala de espera pode
ser um local muito bom para começar, pois a criança tem medo do que vem depois da porta do
consultório; tal local poderia ser considerada um “último lugar seguro”. No atendimento de uma
emergência, a ansiedade, o choro e a preocupação são as emoções mais esperadas. Somente mandar
chamar o paciente gera a situação do “é agora!” e a reação a seguir é dependente do preparo que o
paciente recebeu de seus pais (e da abordagem do médico, no meu ponto de vista). De outra forma é
comum, para tentar diminuir a preocupação do paciente, uma segunda mãe tentar outras frases como:
“fique tranqüilo que você não vai tomar injeção”; “não precisa chorar que a mamãe vai ficar perto de
você” (e quem falou que iria haver aplicação de injeção ou que a mãe iria ficar longe do paciente?). Na
consulta pediátrica padrão, em consultório, nem sempre é possível abordar o paciente antes da consulta:
a criança é chamada pela auxiliar, eventualmente os sinais vitais e a antropometria já são realizadas
(tudo em prol do chamado “ganhar tempo”) e a criança já entra na sala sem roupa (veja que situação!) e,
em muitas ocasiões, com frio e/ou aos prantos.
Se não for possível modificar tal rotina, tudo deve ser feito para contornar a situação constrangedora. A
criança será o centro das atenções e seus pais (ou a mãe, acompanhante mais comum) serão
interrogados nos momentos em que a criança não souber responder as perguntas e, de preferência,
pedindo sua permissão (“posso perguntar pra sua mãe isto ou aquilo?”).
Existem algumas diferenças na maneira de abordar uma criança, dependendo da idade e do sexo. Apesar
de meninas hoje jogarem futebol, perguntar por bonecas sempre dará mais certo.

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Utilizar a linguagem da criança ajuda muito. Algumas perguntas básicas podem ajudar:
“Olá verde! (uso a cor da camisa ou da roupa ou outra característica do vestuário que seja significativa,
caso a criança esteja vestida). Você sabe falar? Qual o seu nome? Quantos anos você tem? (caso não haja
resposta às perguntas anteriores, peça para mostrar a idade nos dedinhos, no caso de crianças
pequenas)”.
“E o que você veio fazer aqui? Veio me ver, veio cantar, veio bater papo...?” A partir daí você já observou
as reações da mãe (se ela responde por ela), se a criança lança um olhar pedindo permissão para falar e
se a criança conhece as perguntas que você faz, o que indica bom treinamento para a faixa etária. Pode
ser determinado também boa parte da relação que existe entre mãe e filho.
Uma vez que a criança determine que veio porque tem um problema, você pergunta se pode discutir o
assunto dentro da sala de exames (caso a abordagem seja feita na sala de espera). Se a reação for
positiva, passamos para a segunda etapa (dentro do consultório); se for negativa, muita criatividade para
conseguir faze-la entrar. Os mais velhos podem achar as perguntas esquisitas e te achar maluco, porém
elas servem como aproximação.
A série de perguntas básicas associadas a outras do tipo: “quem mora na sua casa além de você e sua
mãe?” (descobre-se se os pais são separados ou vivem juntos); “você tem cachorro?” (ou outro animal)
dão idéias de hábitos e interesses. Pesquisar crenças (fadas, super-heróis, anjo da guarda...) ajudará na
criação de estórias e metáforas. Enfim, o primeiro contato é fundamental.
Na avaliação clínica, eventualmente pode-se protelar um exame físico rígido e completo, dentro dos
padrões médicos, deixando a avaliação de setores não relacionados à queixa atual (como avaliação de
genitália em paciente com amigdalite franca!) para outro dia.
Outra coisa que interfere muito é a experiência anterior com outro profissional e em outra situação de
doença. Internações, suturas, hidratações venosas são muito traumáticas e temos que fazer de tudo para
mudar a impressão negativa que a criança possui do atendimento médico.
A postura da criança e seu olhar dão pistas efetivas do que se vai encontrar. Criança no colo do pai, toda
aconchegada e que responde bem suas perguntas, provavelmente não apresenta nenhum sintoma físico
efetivo. Após as perguntas, sentar ao lado do bloco “criança-pai” pode ajudar a fazer a criança levantar
sozinha. Um bebê quieto demais deverá estar bem doente; assim como uma criança até seus cinco anos.
Uma menina de seus 10 anos, com o olhar voltado para baixo, pouca fala, curvada para frente, mostra
encrenca na certa; não encontrar nenhuma alteração física requer atenção e é um sinal de alerta para
outros problemas de ordem emocional.
A voz também ajuda muito. Uma voz anasalada, associada a projeção do maxilar superior, discreta
acentuação da cifose torácica, se associada a uma queixa de hiperatividade, pode ser somente sinal de
que as adenóides devem ser retiradas.
Após a entrada no consultório, outras perguntas ajudam: qual o nome da escola, nome da professora,
nome do melhor amigo ou amiga, nome do menino mais chato da turma, nome da menina mais chata da
turma, nome do menino (a) que a criança gosta e do menino (a) que gosta da criança. Isso sempre gera
risos!
Enfim, estas são situações comuns. Independente da patologia física ou psíquica, a criança responde a
todos estes estímulos, sem maiores dificuldades, em mais de 90% dos casos que tive oportunidade de
atender.
Pode-se agora perguntar: e se a criança estiver muito enferma? Esta entra na sala sem maiores
problemas.
Uma coisa é extremamente importante: tratar a criança como gente! E este alerta deve-se ao fato de
que, historicamente, sabemos que até o século XVII, a infância não era sequer reconhecida como um
período bem individualizado da vida humana. Sob esse enfoque, a criança era vista apenas como um
pequeno adulto, não recebendo uma educação específica e tendo que, muito precocemente, conviver com
trabalho e com as preocupações próprias dos adultos. A partir daí, a infância passou a existir numa
exaltação à sua pureza já que as crianças, por não terem os genitais externos ainda desenvolvidos e por
não praticarem atividades sexuais, estavam isentas assim de qualquer "culpa", já que o sexo, nessa
época, era considerado pecaminoso. Para mantê-las desta forma, optou-se pela “educação” voltada para
a desinformação, pois quem não sabe o que existe ou do que se trata, jamais o praticará. Hoje em dia as
crianças possuem muito acesso a informação e sabem muito bem quando estão sendo enganadas. Apesar
da tentativa de alguns pais e de alguns profissionais de saúde em manter a criança alienada da situação
em que se encontra, amor e sinceridade nunca fizeram mal a ninguém.

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3 – Uso da hipnose em situações de rotina no atendimento pediátrico
Os casos a seguir são parte da minha experiência clínica.
3.1 – G., sexo feminino, idade: 5 anos.
Pós-operatório imediato de apendicectomia com peritonite. Apresentava dor e distensão abdominal.
Estava internada no Centro de Terapia Intensiva (CTI).
O rapport foi espontâneo. Ao chegar ao CTI, fui tomar ciência dos pacientes e vi que, naquele momento,
seria passada uma sonda naso-gástrica (SNG) na paciente (já estava inclusive com a anestesia tópica
nasal). Cumprimentei a menina (que me olhou assustada) e optei por protelar o procedimento, pedindo
ao Enfermeiro que suspendesse a ação. Aguardei o Cirurgião, discutimos o caso e concordamos que, se a
paciente deambulasse, poderia ser possível desistir do uso da SNG. Deixei a criança quieta e voltei um
pouco mais tarde, decidido a colocar a paciente para andar. Como tal manobra é bastante dolorosa e ela
mal se movia no leito, optei por conversar a respeito da sandália que a mãe trouxera para ela. Após falar
muito da sandália, colocamos a mesma na criança e consegui que ela sentasse sem maiores esforços. A
seguir seria necessário que ela descesse da cama hospitalar com auxílio de uma escadinha. Pedindo para
que respirasse fundo, fiz com que seus pés tocassem no degrau superior da escada e sugeri que eles
ficariam colados e firmes e que, desta forma, não só ela não moveria seus pés como também poderia
levantar sem cair. A seguir a menina levantou! Para alcançar o degrau seguinte, mais baixo, “descolei”
um dos pés e repeti o procedimento, pé após pé, até chegar ao chão e conseguir que ela andasse, sempre
utilizando o mesmo processo. Desta forma, conseguimos que ela deambulasse e não foi preciso o uso de
SNG e a recuperação no pós-operatório foi excelente. Observei que, durante todo o processo, ela
permaneceu com o olhar fixo nos seus pés, o que indicou o sucesso da manobra.
3.2 - G., sexo masculino, idade: 15 anos.
Apresentava ansiedade antes dos torneios de Magic.
Antes de mais nada, preciso esclarecer do que se trata o torneio. Magic the Gathering é a coleção de
estampas colecionáveis (em inglês, Card Game) mais famosa do mundo, lançada nos Estados Unidos em
1993, e que já tem mais de 15 expansões traduzidas em diversos idiomas. Existem mais de 4000 cartas
diferentes na coleção, formando um universo de possibilidades para os colecionadores, que podem tanto
apreciar a arte desenvolvida nas cartas por artistas famosos no mundo dos quadrinhos e card games,
como utilizar as estampas (cards) para jogar com os amigos. É um jogo cheio de regras que são
uniformizadas, não só no Brasil, como no mundo todo, para que não haja distorções nos diferentes
lugares onde são jogados.
G. era um jogador mediano. Nos torneios, sua classificação ficava sempre entre 80ª e 120ª (dentre uns
200 inscritos), apesar de ser um bom jogador. Relatava que, na noite anterior às competições, não
conseguia dormir, tamanha a ansiedade. Ensinei-o uma técnica de relaxamento progressivo, iniciando
com a fixação do olhar em um ponto, com uso de respiração e contagem regressiva a partir de 20, com a
sugestão de tranqüilidade e bom jogo no dia seguinte.
Bom, a primeira boa classificação que teve foi o chamado “Top Eight” onde os oito melhores são
selecionados. A partir daí ganhou torneios e viagens (figura 1). Ele mesmo fala que “foi por causa da
hipnose” que conseguiu a performance.

Figura 1 – Placa recebida após a vitória em um torneio


3.3 - B., sexo masculino, idade: 12 anos.
Desenha histórias em quadrinhos e apresentava dificuldade em criar um novo personagem.
Também em auto-hipnose, orientei-o a deitar na cama na hora de dormir e fixar um ponto imaginário

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acima de sua cabeça, na cabeceira, fechando os olhos quando estivesse cansado e, a seguir, imaginar a
sua história em quadrinhos. A seguir, ele imaginaria estar na história, não como um personagem e sim
como ele mesmo (associei aos quadrinhos de Maurício de Souza onde ele costuma aparecer nas histórias
para conversar com a Mônica e o Cebolinha). A partir daí ele conversaria com seus personagens pedindo
idéias. Alguns dias depois ele me contou que fez o procedimento e conversou com seus personagens que
“falavam” muito em “bigodes”. Desenhar bigodes não era um ponto forte do pequeno desenhista e isto
gerou um pouco de ansiedade até o momento em que, para resolver o problema, “surgiram” imagens de
gatos, leões e tigres e o personagem criado segue abaixo (figura 2).

Figura 2 – Personagem Vicent, criado a partir da sugestão hipnótica descrita acima.


3.4 - B., sexo feminino, idade: 7 anos
Pneumonia bacteriana. Paciente faria tratamento com penicilina procaína injetável durante 10 dias (duas
aplicações diárias).
O rapport iniciou-se na sala de atendimento. Chamei a atenção para a cor da roupa (costumo chamar
primeiro a criança com o nome da cor) depois perguntei nome, idade e conversei um pouco (a conversa
foi coerente com a idade e as respostas anteriores). Feito o diagnóstico, prescrevi a injeção e a resposta
da paciente foi de pânico natural. Propus uma “mágica” para que a injeção não doesse e ela não aceitou e
a injeção foi bem dolorida. Na próxima dose, no mesmo dia, conversei de novo com ela (assuntos
diversos... papo furado) e propus a “mágica” novamente. Dessa vez ela aceitou. Induzido o transe com a
imaginação de um lugar bonito, usei a técnica da anestesia em luva. No primeiro teste ela abriu os olhos e
disse que ambas as mãos doíam. Então pedi que ela fechasse os olhos novamente, respirasse
profundamente e coloquei outra luva. Aí o teste evidenciou a anestesia na mão escolhida. Levei a mão da
paciente para o local da aplicação, informando que “a luva” passaria para o local e a injeção seria sem
dor. Apesar do eventual susto que a menina pareceu tomar, ela não chorou e disse que a injeção não
doeu. No dia seguinte, ela veio com a mãe (antes veio com uma tia) que estava maravilhada com a
história que a menina contou da “tal da mágica”. Na semana seguinte (depois de várias injeções dolorosas
– não consegui que a menina fizesse o procedimento de analgesia sozinha!), resolvi encerrar o tratamento
com uma dose de penicilina benzatina, que é infinitamente mais dolorida que a procaína. Refiz os passos,
aprofundei um pouco mais o transe com um incremento de novos elementos no lugar que ela escolhera
para imaginar e a aplicação foi um sucesso.
Utilizei o mesmo procedimento com outras crianças e, com o rapport bem feito, o sucesso foi de 100%.
Em um caso, não foi feito o rapport adequado (pois o atendimento foi feito por uma aluna, sem direcionar
para a hipnose). Como o menino chorava muito (ele tinha nove anos), a aluna pediu que eu fizesse a
analgesia. Concordei em fazer, porém, já achando que não daria muito certo. Ele sentiu a aplicação, mas
conseguiu ir embora sem claudicar e não chorou mais. Achei que consegui somente parte do objetivo,
devido à falta de tempo.
Interessante contar a história de outra menina de 9 anos que faz tratamento a cada 21 dias com
penicilina benzatina para febre reumática. Já tentei inúmeras vezes que ela aceitasse o transe, para a
aplicação não ser dolorosa, porém ela nunca aceitou. Acredito que exista algum ganho secundário
relacionado à dor da aplicação.
3.5 - R., sexo masculino, idade: 6 anos.

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Crise de asma de moderada-grave intensidade.
Durante a nebulização, pedi para que fechasse os olhos e pensasse em um lugar bonito. Lá, além das
coisas que ele imaginava, sugeri que existia um grande vento que ia na sua direção levando ar para os
pulmões, que melhorariam a sua crise. Após a primeira nebulização, ele já sorria e apresentava uma cor
rosada nos lábios, apesar da ausculta pulmonar estar praticamente inalterada e ainda haver dispnéia.
Vinte minutos depois, nova nebulização e eu refiz os passos, perguntando se ele lembrava do assunto (o
que respondeu que sim e descreveu o processo). Após a segunda nebulização, seu humor estava ótimo e
a ausculta melhorou. Fiz uma terceira nebulização, repetindo as etapas, e dei alta com paciente
assintomático.
3.6 - J., sexo feminino, idade: 3 anos.
Gastroenterite leve com vômitos. Apresentava dificuldade na aceitação da terapia de reidratação oral
(TRO)
O sucesso da TRO depende muito da colaboração do paciente. O soro tem um paladar desagradável e as
crianças desta faixa etárias têm baixa aceitação. Deixei o copo com o soro com a mãe e notei que havia
dificuldade na administração porque a criança recusava. Comecei a massagear suas orelhas, pedi para
que ela respirasse fundo e falei que, tomando o soro, ela ficaria bem e teria uma ótima sensação de bem
estar. Duzentos mililitros de soro depois, uma coca-cola e uma ida ao banheiro (estimulada também com
a sugestão!), dei alta para a paciente.
3.7 - F., sexo feminino, idade: 9 anos.
Apresentava estomatite herpética e dificuldade na abertura da cavidade oral para a devida avaliação.
Usei a técnica da reversão ocular e foi possível o exame da orofaringe sem problemas.
3.8 - G., sexo masculino, idade: 6 anos.
Lesão corto contundente em região mentoniana necessitando de sutura.
Era necessário somente um ponto e não valia a pena anestesiar com duas aplicações de anestésico local,
já que o número de picadas seria o mesmo. Usei a técnica da anestesia em luva, com prévia fixação do
olhar em um foco de luz acima de sua cabeça (paciente deitado) e usei o mesmo processo para anestesiar
o local. Procedimento sem dor e tive a nítida impressão de que poderia dar mais uns três ou quatro
pontos.
4 – O uso do EMDR
Eye Movement Desensitization and Reprocessing ou Dessensibilização e Reprocessamento Por Movimentos
Oculares (EMDR em inglês) é uma técnica descoberta em 1987 pela Dra. Francine Shapiro, nos Estados
Unidos, e é usada principalmente no tratamento do Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT).
Apesar de eventualmente ser confundido com a hipnose, as leituras eletroencefalográficas dos pacientes,
durante uma seção de EMDR, apresentam um padrão de ondas cerebrais de vigília, ao contrário da
hipnose onde observamos ondas teta, beta ou alfa como características. Apesar de não fazer parte do
curso de hipnose (visto que não é uma técnica hipnótica), ela é citada na apostila “Hipnoterapia Infantil”
do Centro de Estudos de Hipnoterapia de Belo Horizonte, Minas Gerais, na abordagem da gagueira.
As situações abaixo ilustram seu uso também associado a técnicas de hipnose.
4.1 – J., sexo feminino, idade: 3 anos.
Torcicolo
A paciente deu entrada no Pronto Socorro (PS) com queixa de dor cervical sugestiva de torcicolo. Foi
medicada com analgésico leve (dipirona em gotas), pelo meu colega de plantão. Ausentei-me do PS por
quarenta minutos e quando retornei, os pais estavam ansiosos porque a dor não melhorara. O colega se
distraiu com outra coisa e fui ver a menina. Observei que ela tinha um olhar mais tranqüilo (chorava
muito quando entrou no PS), mas ainda referia dor. Propus contar uma história e inventei um passeio de
um patinho dentro de um rio. Lá ele encontrou um peixe, depois uma tartaruga, a seguir uma flor (a cada
personagem que eu criava, eu perguntava se ela sabia o que era) que ela identificou como uma rosa,
depois uma árvore (com frutos rosa). Juntos, então, os personagens foram passear procurando o sol e eu
terminei a história. Enquanto eu contava e perguntava, ia aplicando o EMDR através de toques
alternados. Ao término da história, propus que ela fizesse um desenho e ela pulou sem dificuldade do colo
do pai e ainda referiu um pouquinho de dor. Em pé, ela fez o primeiro desenho (figura 3.1). Observa-se
um borrão com relevo no verso da folha de papel, significando a tensão da paciente. Neste desenho, ela
descreveu todos os personagens. Quando acabou a descrição, ofereci outra folha e ela dissociou o borrão
em dois riscos bem cheios, já com menor relevo no verso da folha e também descrevendo os personagens

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(figura 3.2). Ofereci uma terceira folha onde desenhou dois círculos irregulares e identificou dois
personagens (figura 3.3). Ofereci uma última folha onde ela desenhou a cara da tartaruga e do patinho (à
moda “três anos”, é claro) (figura 3.4). Ao término, perguntei se ela estava bem, ela disse que sim.
Finalizando, pedi para que virasse a cabeça para um lado e para o outro. Alta hospitalar mandando
beijos!!! Mantive os toques alternados durante praticamente todo o processo.

Figura 3 – Os quatro desenhos da paciente editados e numerados.


4.2 – B., sexo feminino, idade: 3 anos
Abscesso em região inguinal já medicado, mas a queixa era de “estar doendo muito” e dificuldade para
deambular.
Alguma conversa, na sala de espera, estabelecendo o rapport, porém a paciente não quis entrar no
consultório de jeito nenhum (olhar de pânico, medo de injeção entre outros). Aí, na sala de espera,
procedi ao exame sumário e não vi maiores problemas que a impedissem de andar. Fiz com que ela
tocasse o abscesso e não sentiu dor. Antes de liberar a paciente era necessário resolver o problema da
deambulação (visto que o problema da dor já havia sido solucionado). Enquanto conversava com a mãe a
respeito do abscesso, realizava toques alternados na paciente e, em dado momento, convidei a menina
para andar comigo. E ela andou sem qualquer dificuldade e eu, atrás dela, mantendo a estimulação com
toques alternados. A seguir, com a paciente novamente sentada, resolvi testar: pedi para que ela
mostrasse o tamanho da dor antes e ela afastou as mãos mostrando que era enorme. Aí perguntei
(mantendo a estimulação) qual o tamanho agora e ela mostrou a distância mínima de dois dedinhos.
4.3 - T., sexo feminino, idade: 6 anos
Dor abdominal persistente em pós-operatório.
Estava passando visita na enfermaria do Hospital quando o Cirurgião me pediu para melhorar a analgesia
de uma paciente de 6 anos, que estava no terceiro dia de pós-operatório de uma apendicectomia
complicada. Indaguei qual o problema do pós-operatório e ele me informou que tudo corria muito bem,
mas ainda havia a queixa de dor. Resolvi avaliar a paciente antes de prescrever a medicação. Após um
rapport com as crianças da enfermaria, cheguei até ela, que estava deitada e coberta por um lençol.
Perguntei seu nome, o que ela fazia no Hospital e pedi para ver a cicatriz cirúrgica. Ela concordou e, a
partir desse momento, constatei que meu rapport havia sido eficaz pedindo então que ela fizesse um
desenho. Para tal, ela deveria sentar-se na cama. Sentou-se a criança (“aí, como dói" - ela disse), dividi
uma folha de papel em quatro quadrantes e pedi para que ela desenhasse, no primeiro quadrante, o dia
da cirurgia (figura 4.1). Enquanto isso estimulava com o EMDR. Escolheu uma caneta vermelha, desenhou
a barriguinha com dor, o braço com soro, porém havia um corpo completamente despedaçado; acabou,
desenho dois, primeiro dia de pós-operatório, já na cor azul, ela deitada na cama hospitalar já com o
corpo completo (figura 4.2); terceiro dia, o anterior, também em azul, já havia duas flores e um
coração!(figura 4.3). Nesse momento propus que ela levantasse e andasse na enfermaria. Para sair da

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cama ela pediu a escadinha, mas ainda havia uma grande dificuldade para descer. Usei uma sugestão
hipnótica de "colar os pés" na escadinha ficando firme e sem risco de queda. Ela levantou, desceu a
escadinha, andou sem problemas até a parede (uns 4 metros), voltou e pedi para que ela desenhasse no
último quadrante, como ela se sentia agora, mantendo a dessensibilização com toques alternados. Em pé,
desenhou a si mesma com uma roupa bonita e colorida (figura 4.4). Por último, pedi para que ela
mostrasse com as mãos, o tamanho do problema inicial, porém ela preferiu desenhar de novo e fez uma
barra vermelha enorme (este foi um erro meu, pois se iniciei com desenho era óbvio que o final teria que
ser com desenho também). Aí pedi para desenhar como ela se sentia naquele momento e ela fez um
quadradinho (figura 5)! Tomou banho e saiu pelo corredor para brincar com outras crianças sem
problemas maiores. O Cirurgião quase não acreditou e a criança recebeu alta dois dias depois (5 dias
antes do previsto).

Figura 4: Seqüência de desenhos durante a dessensibilização usando EMDR

Figura 5: Seqüência de fechamento da seção de EMDR


5 – Conclusões
Reconhecida pelo Parecer do Conselho Federal de Medicina nº 42/99 de 20 de agosto de 1999 que a fez

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um Ato Médico, a hipnose - prática milenar usada no tratamento de uma infinidade de patologias como a
enurese, terror noturno, tiques nervosos,
e outros distúrbios funcionais do sistema nervoso - tem sido aplicada com sucesso em crianças e
adolescentes, embora haja poucos estudos eficazes sobre o assunto.
Apesar de ainda estar restrita aos consultórios de profissionais voltados à psicoterapia, na prática,
constata-se que sua abrangência é muito maior, podendo auxiliar na abordagem de moléstias físicas e
psíquicas variadas caso seja ministrada durante o tratamento pediátrico pelo Clínico responsável. Com as
experiências demonstradas, podemos concluir que a hipnose constitui uma ferramenta extraordinária no
trato com os pequenos pacientes e oferece, aos profissionais da área pediátrica, um conhecimento
imensurável que é complementar à sua atividade cotidiana, melhorando sua performance e credibilidade
junto às famílias que procuram seus préstimos.
Referências Bibliográficas
1 – Bauer, Sofia M. F. – Hipnose Ericksoniana passo a passo. Livro Pleno; 2002.
São Paulo - SP
2 - BUZOLLO, Lívia – Apostila de Hipnoterapia Infantil. Belo Horizonte - MG.
3 - COSTANZA, Luiz Fernando da Silva. Hipnose em Crianças.
Revista Brasileira de Hipnose, 18, 1997; 5 -18. Rio de Janeiro - RJ
4 - MILLING L S, COSTANTINO C A.
Clinical hypnosis with children: first steps toward empirical support. International Journal of Clinical
and Experimental Hypnosis; 2000; 48(2): 113-137. United States
5 - SHAPIRO, Francine – EMDR – Dessensibilização e Reprocessamento
Através de Movimentos Oculares. Nova Temática Publicações e Eventos Ltda; 2001 – Rio de
Janeiro.
6 - TOLIPAN, Monica – Uma presença ausente. Jorge Zahar Ed; 2002.
7 – Vitiello, Nelson – Sexualidade na Infância.
Disponível em http://www.sosdoutor.com.br/sossexualidade/index.asp

Anexo

Entrevista da Dra Mônica Tolipan ao Jornal do Brasil

Outro olhar sobre o autismo


P si ca n al ist a d ef end e n ov a te ra p ia p a ra d ist úr b io q ue p e d ia tr a s d em o ra m a
id en tif ic ar
CLÁUDIA AMORIM
[14/SET/2002]
Maria (nome fictício), quando tinha um ano e 8 meses, se comportava como um bebê de apenas seis
meses. Mas teve a sorte de ser neta de uma faxineira da APAE. Pela proximidade com especialistas da
área de saúde mental, Maria teve seu autismo diagnosticado precocemente, foi submetida a um
tratamento novo e hoje, aos três anos, é considerada uma criança normal. A responsável pelo progresso
da menina, a psicanalista Monica Tolipan, no livro Uma presença ausente, apresenta esse tratamento
inovador, concebido a partir de teorias que desenvolveu na prática clínica, em 35 anos de trabalho em
instituições psiquiátricas e mais de duas décadas no atendimento a autistas. Lançando mão de uma
linguagem acessível, a psicanalista tem o objetivo de informar leigos e profissionais de saúde sobre essa
patologia que, defende ela, pode ter um final bem mais feliz do que se imagina. Segundo Monica, os
pediatras não estão aptos a reconhecer o autismo. Muitas vezes, os dois tipos clássicos de bebês que
sofrem da doença são confundidos com o muito bonzinho ou com o que não pára um minuto. É só na fase
da educação infantil, através da professora, que a criança autista vai ter sua doença descoberta. Essa
demora pode ser fatal para o tratamento, já que o diagnóstico precoce influencia enormemente os
resultados. Em entrevista ao JB, a psicanalista conversou sobre o método que batizou de aloterapia, por
causa do preconceito enfrentado por sua principal ferramenta: a hipnose.
- Existe um problema para se diagnosticar o autismo?

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- Os pediatras não estão preparados, não por culpa deles, mas porque os sintomas não estão
sistematizados. Alguns pensam que é exagero da mãe. Muitos me disseram: ''Nunca vi um autista''. Eu
respondo que provavelmente já viram, mas não reconheceram. Os dois bebês clássicos que sofrem de
autismo são o passivo, que não solicita nada, que pode ser confundido com o bonzinho, e o hipercinético,
agitado demais, que não pára um minuto. Nesses casos, só um profissional especializado vai ver que se
trata de um problema psíquico. Quis fazer um livro para que as pessoas pudessem identificar
precocemente os casos, o que acontece tardiamente, quando o que se pode fazer é muito pouco. Mas
sempre se pode fazer alguma coisa, e esse modelo clínico que estou criando está abrindo portas nesse
grande enigma para a psicanálise, a psiquiatria, a genética e a biologia. Nunca se encontrou nada
significativo que pudesse ser estabelecido como causa do autismo.
- Qual é a hipótese que a senhora apresenta como causa?
- O primeiro ano de vida da criança é fundamental. Qualquer coisa que ocorra com ela - um acidente
grave, algo que a atinja nessa idade - pode deixar marcas que mantenham a criança nesse estado
autístico. Minha hipótese é que a criança, quando se depara precocemente com um sofrimento para o
qual não está preparada, usa esse recurso para não sofrer. Seria um estado hipnótico. A hipnose é um
recurso que nós temos contra o sofrimento.
- A senhora não considera o autismo uma síndrome?
- Eu não vejo como uma síndrome, é um estado.
- Sendo um estado, então, fica mais fácil se livrar dele?
- Exatamente. Estou provando que é possível. É claro que vai levar muito tempo, é por isso que preciso
da intervenção precoce.
- E por que o tratamento envolve a mãe?
- Qualquer sofrimento na criança muito pequena está relacionado à mãe. Às vezes, um sofrimento da mãe
pode afetar o filho. Acho que, além do leite materno, há outro mecanismo de proteção: a mãe fica num
estado hipnótico com o bebê, e esse estado protege a criança nos primeiros meses. Minha hipótese é de
uma hipnose universal. Todo ser humano nasce nesse estado, que protege a criança quando sai do meio
intra-uterino para o extra-uterino, mas depois esse estado se desfaz.
- E as crianças que são abandonadas, o rompimento brusco desse vínculo não seria, então,
causa de autismo?
- Haveria dois tipos de autismo: esse em que a criança entra no estado para se proteger de um
sofrimento (é o autismo que se manifesta mais tarde) e o verdadeiro autista, que não saiu desse estado
depois do nascimento. Esse vínculo tem que ser cortado. Minha hipótese para o autismo é que ele não foi
cortado, e a criança permanece nesse estado. Se a mãe entrar em sofrimento na gestação ou no
puerpério, ela pode não romper essa ligação. No caso das crianças abandonadas, pode ser que a mãe
resolva isso, fazendo esse desligamento, que depende muito da resolução interna da mãe. A psicanalista
inglesa Frances Tustin já afirmava que todo ser humano nascia em estado autístico, seria um autismo
universal, primitivo, normal. Só que ela não tem a hipótese de que a criança autista seria mantida nesse
estado. E eu que estabeleci a relação entre esse autismo e a hipnose.
- Como a senhora construiu essas hipóteses?
- Essas crianças têm muita dificuldade de falar a palavra mãe. Elas não falam ou não é a primeira palavra
que falam, por estarem tão identificadas com a mãe.
- Falar significaria nomear a mãe como o outro?
- Exatamente, para elas, a mãe não é o outro.
- O que mais levou a senhora a essas conclusões?
- Estudei hipnose na Sociedade Brasileira de Hipnose Médica e no Miguel Couto [hospital]. Vi que os
efeitos eram tão diferentes em cada pessoa, que entendi porque cada autista é tão diferente. Também
observei que eles não sentiam dor.
- Quanto mais grave o autismo, mais eles produzem automutilações. Em lugar da descrição do psiquiatra
Leo Kanner, que se referia a um masoquismo (que não é próprio do autismo, mas da neurose e da
perversão), percebi que o motivo era eles não sentirem o que acontecia. Crianças normais machucam a si
mesmas, sentem dor e param. Mas autistas podem ficar encostados numa panela sem perceber que estão
se queimando.
- Esse fenômeno tem explicação?

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- Foi o que me levou à hipnose. Está provado que a hipnose produz efeito anestésico e analgésico. Assim
cheguei à minha hipótese. Além disso, os autistas não são hipnotizáveis, o que reforça a tese de que eles
já estão num estado hipnótico.
- A senhora usou o método em quantos pacientes?
- Em 18 casos de graus diferentes.
- Como o tratamento se mostrou eficiente?
- A escola normal que aceita esses alunos foi uma grande aliada. Os sucessos foram relativos ao estado
da criança, à idade, ao tipo de família e ao interesse dos pais pelo tratamento da criança. O melhor
resultado foi numa criança de 1 ano e 8 meses. Pude intervir cedo graças à sua proximidade com a APAE.
Houve também um menino de 10 anos que está na quarta série.
- Ele consegue acompanhar as aulas?
- Sim, a dificuldade é relacional, mas agora ele, que começou comigo com 5 anos, está conseguindo
inclusive fazer amigos. O prisma da psicanálise para o autista é a impossibilidade de se relacionar, não se
tem estereotipia (que são aqueles gestos), se ri, se olha, se fala.
- Como foi o caso mais bem-sucedido?
- Com 1 ano e 8 meses, a criança tinha padrão psicomotor de 6 meses, ficava sentadinha no colo da mãe,
nem sentava sozinha. Depois de muitas entrevistas, prosseguindo com o método, consegui hipnotizar a
mãe, e a menina foi escorregando, saiu do colo da mãe, foi se agarrando nas coisas, levantou e começou
a andar. Acho importante a gente ver que não é milagre, cada caso depende de várias circunstâncias.
Mas, nesse, tivemos resultado na primeira sessão de hipnose. Depois de um ano e meio de tratamento,
aos 3 anos, ela pode ser considerada uma criança normal.
- Como é o tratamento?
- Parte do pressuposto de que a criança está num estado hipnótico envolvida com a mãe. Então, hipnotizo
a mãe para, de alguma forma, reconstituir o momento do parto. Eu as coloco no mesmo estado para ver
se conseguimos fazer a separação que deveria ter acontecido. São várias sessões, é um tratamento
longo. Depois, tenho que tratar os dois através da análise convencional, do contrário, cada um se sente
terrivelmente expulso, rejeitado, aniquilado.
- Não há outra maneira de despertar o autista desse suposto transe?
- É algo interno que o coloca nesse estado. Não temos acesso a isso como quando a hipnose é induzida.
- Por que o método se chama aloterapia?
- Vem do termo allotriosis, dos estóicos, que significa alienar-se de si mesmo. Eu estava chamando de
hipnose, mas me sugeriram chamar de outro modo, porque há muita resistência a esse nome.
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