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Jncqçss LE GPPÊ

Maria, Maria Madalena, Marta.., Os Evangelhos estão povoa-


O cristianismo liberrou dos de figuras femininas que rodeiam Cristo e o inspiram, O
as muiheresr cristianismo medieval, longe de reduzir a mulher a um papel
secundário, ao conrrário, deu-lhe um verdadeiro lugar ao lado
do homem.

I-Htsrotnr: É possível dizer que a mulher, na Idade Média,


Texro I 1 -A resume-se, no discurso da Igreja, a duas figuras antitéricas, a de
Eva, a pecadora e a tentadora, e a de Maria, a mâe de Cristo?
Jecqurs Ls Gopn: A atitude da Igreja em relaçáo às mu-
lheres na Idade Média não poderia ser resumida a essa antÍte-
(,
^ ô*-€'r ;;s)*!*-'
t,.i5,â rl.
se, embora se deva reconhecer que fosse uma atitude central.
( Entreranto, eu gostaria de lembrar que o culto marial,
( essencial na religiáo e na sociedade medievais (com a re-
serva de que é muito difílil, na Idade Média, isolar a reli-
(
giâo do que quer que seja, pois ela está por toda parte), na
(
verdade só começa no Ocidente no século XI, diÍerenre-
(
mente do mundo bizantino,
- E é principalmente â pârtir do século XII que a imagem
( de Maria se impôe. Ao passo que a imagem de Eva, de resto
( raramente isolada, pois figura quâse sempre como parte do
( casal que forma com Adáo, foi muito mais precoce.

( Eu gosraria também de estabelecer pequenas diferenças


,rEsta entrevista Íoi publicada em LHistoire, n,245,julho-agosto de
2000, p. 34-38, quanto à idéia que fazemos de uma oposiçáo radical enrre a
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UMA IONGA IDAOE MÉDIA O CRISTIANISMO LIBERTOU AS MULHERES
(
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figura de Eva e a de Maria: depois da Idade Média facilmente LiHtstotRr: A segundat
(
fixamos e exageramos essa antinomia, em pârticular fazendo Jlcqurs Lp Gorr: Voltaremos a issot É a primeira cria-
de Eva a pecadora e a rentadora. Ora, desde muiro cedo Eva
(
tura feminina de Deus e, por conseqüência, ela própria, de
foi utilizada como imagem simbólica da lgreja: não podia, algum modo, uma instituição divina: acredito que foi isso que (
então, ser totalmente negativa no espírito dos homens da ldade levou os exegetas a se aproximarem da lgreja. (
Média. Retomemos agora essa idéia do segundo lugar, ficando o (
primeiro, claro, reservado ao homem. Em ouros termos, (
IjHtsrolRr: De que maneira Eva é simbólica? como a tradição cristá define o lugar da mulher no plano di- (
Jecques Le GorR: Na Idade Média algreia é uma pes- vino? Eva é uma criaçâo direta e-voluntária de Deus, mas
soa, falamos dela como se fosse. É muito interessante quanto
(
âpareceu tardiamente, é verdade: depois de todo o resto da
a isso observar que, simbolizada por Eva, significando Eva, criação.
(
ela parricipa com isso, de certa forma, do pecado original. A
Houve mesmo inrerpretaçóes, rigorosamente ortodoxas,
(
cristandade é dirigida por uma instituição nâo isenra do erro (
do texto do Gênesis, que fizeram de Eva uma espécie de arre-
e do pecado, umâ instituiçâo falível, o que fica evidente no
pendimento de Deus: primeiro ele teria pensado em criar um (
comportamento dos contemporâneos daquele período
- e homem, senão assexuado, pelo menos reunindo nele os dois (
isso relativiza a atitude arual do papaJoão paulo II, que alguns
acham particularmente perturbadora ou revolucionária, e que
sexos, um andrógino. Depois teria pensado que essa nâo era (
uma boa solução e preferiu criar uma mulher, ao lado do (
apenas resrabelece uma tradiçáo anriqüíssima do crisrianismo.*
homem Adáo. Thdo isso quer dizer que a distinçâo dos sexos
Para compreender o conreúdo dessa alegoria é preciso' (
teria sido um pensamento segundo, no espÍrito do criador, e
lembrar que o crisrianismo medieval buscou na Bíblia cons- (
náo um pensamento inicial.
tantemente referências, explicações para as realidades de seu
De onde teriam os exegetas tirado essa idéial Em primei-
(
tempo. Entáo, nisso é que se vai achar uma espécie de figura (
ro lugar, precisamente, do fato de Eva ter sido criada depois
primitiva, primeira, se quiser, da mulher. A sociedade medie-
do resto do mundo. Depois, da constatação de que, como os (
val, que não tinha o sentido da história, com naturâlidade
animais, ela náo recebeu seu nome do próprio Deus, mas de (
representou a Igreja nessa perspectiva eterna, a-histórica.
Eva é a primeira criarura de Deus...
Adão: Deus a criou sem lhe dar nome, e uma criaçáo sem nome (
é uma criação imperfeita, o que faz com que Eva só se torne (
uma criatura perfeitamente acabada no momento em que Adâo
(
lhe deu um nome,
-O (
t Ar,* p-.* se referir à atitude de João paulo II ( 1920-2005) de Por fim, no momento de lhe dar a vida, Deus anuncia que
I nedir descui.pas pelos erros passados dà lgrela, que reve ranrâ reper- o faz porque nâo quer deixar Adão sozinho, de onde se pode
í
| :ussão, no Íim do século XX, quando na verdade deveria t.. iido (
I :ncarada como coisa natural, (N. do I) inferir nâo apenas um lugar secundário, mas também uma
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120 12'l ,9, (
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UMA tO}'GA IOADI MÉOIA O CRISÍIAXI3MO LIBERTOU A3 MULXTRES
(
(
eslcie funcionalda mulher em relação ao homem,
de sujeiçáo formalizada pelo tV concÍlio de l-atrâo, em 1215, que faz dessa
(' ume vez que suâ razáo de ser, se assim se pode dizer, é ficar cerimônia um âto público (daÍ a publicaçâo dos banhos)' E
( na companhia dele. mais, o que é primordial: esse ato só pode existir com acordo
( pleno e total dos dois adultos envolvidos.
( UHtstotRs: Além disso, Eva é, na origem, um pedaço de Por que um ato público? Porque, num período em que
(' Adáo. A mulher saiu do corpo do homem e não tem identidade combate vigorosamente â consÍlngüinidade, a lgreia quer eviur
própria? que se possa ignorâr, ou fingir ignorar, uma ligaçáo de paren'
(
Jecqurs Le Gorr: É verdade que ela foi criada a pamir tesco entre os futuros esposos: quero lembrar que, teorica'
( de uma costela de Adáo, do qual ela depende, portanto, em mente, a consangüinidade se estendia nessa época até a sétima
( seu ser de carne. Ela é um pedaço de Adão, mas náo podemos geração, e era freqüente que os indivíduos ignorassem seus
( nos contentar com essa definiçâo. Foi feita de umâ costela, e ancestrais, sua genealogia, mesmo nos meios aristocráticos'
( houve inúmeras reflexôes, inúmeros comentários, você pode Mas o que me pârece absolutamente notável nessas dis-
( imaginar, sobre esse ponto do Gênesis. posiçôes do concílio de latrão é evidentemente o fato de que
Uma das reÍlexóes mais interessantes, no meu modo de o casamento scja impossÍvelsem o acordo do esposo e da es-
(
sentir, é a de Tomás de Aquino, no século XIII. Foi mais ou posa, do homem e da mulher: a mulher não pode ser casâdâ
( menos o seguinre que ele disse: Deus criou Eva a partir de contra a suâ vontade, ela tem de dizer sim.2
( uma costela de Adão, não a criou a partir da cabeça, nem do Você me dirá: ah, isso são os princÍpios, é muito bonito,
( pé; se a tivesse criado â partir da cabeça, isso signiÍicaria que mâs nâ realidade... De fato, houve poucos casamentos em que
( via nela uma criatura superior a Adão; inversamente, se â ti- o consentimento da mulher tenha sido decisivo; o câsâmento
( vesse criado a partir do pé, ela seria inferior. A costela é no continuou sendo um elemento numâ estrâtégia familial' ou
( meio do corpo e esse gesto estabelece a igualdade entre Adâo linhageira no caso dos casamentos nobres, ou dinástica, nog
e Eva segundo a vontade de Deus. casamentos de prÍnciPes.
( Xll
Creio profundamente que é esta idéia que venceu na con- Georges Duby mosrou a que ponto' no fim do século
( cept'o cristâ da ryrulher e na visâo, senão na prática, da Igreja e no inÍcio.do século XIII, o rei da Inglaterra foi um grande
( medieval a respeito dela: a mulher é igual ao homem. casamenteiro, intervindo em Particular nos negócios de Cui-
( lherme, o Marechal, seu vassalo, homem de guerra e con'
- UHIsrotnr: O senhor esrá convencido de que a idéia de selheiro, que ele recomPensou com um brilhante casamento''!
( Santo Tomás foi a mais aceita?

( Jacques Lr Gorr: Ah, esrou. E creio rambém que esse f lcÍJtÍt.kl S"q 'La genàse du mariage chrétien', LÚistoire, n' 63,

respeito pela mulher foiuma das grandes inovaçóes do crisria- I p.60-6s.


( I ic.o.n.. Drbv. Guillaume Maréchal ou le meillew cheualier du mon'
nismo. Veja-se, também, a reflexão da Igreja quanto ao casal
( I a, 1C,iitt.tme, o Matechal, ou o melhor cavaleiro do mundol, Parig
e ao câsamento, âté chegar a essa instituiçáo tipicamente cristâ, I Fayard, 1984.
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( 122 123 7
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UMA TONGA IOADE MÉDIA O CRISTIANISMO IIBERÍOU AS MULHERES (


(
Mas mesmo nos meios camponeses, é a parentela, mais preci- JacQuss Le Gorr: É verdade, tratâ'se
de uma certa for- (
samente os pais que impóem o casamento. E o impóem so- ma de vulgarizaçâo. Exatamente, o que rePresenta a mulher (
bretudo à mulher. de condenável? Consideremos por exemplo, concreramente' (
Se é assim, permita-me insistir nisso, pois náo creio absolu- a condenação e o castigo que se ligam ao adultério' O que se
(
tamente que a teoria seja indiferente, teoricamente o casamen- diz freqüentemente é que não há igualdade enrre o homem e
crime' (
to se fundamenta nâ vontade recíproca do homem e da mulher. a mulher, que só a mulher deveria ser punida por esse
E a Igreja para justificar essa disposiçáo lembra primeiro o ca- Ora, num certo número de casos muito específicos, e fre' (
samento de Adão e Eva, depois, e sobretudo, o de Maria eJosé. qüentemente muito famosos, o homem foi severamen[e con- (
denado pela Igreja: os reis de França Roberto, o Piedoso, ou (
LHtsrolRr: Se há uma revolução teórica na posição da Filipe Augusto, Por exemPlo. (
ao contrá'
Igreja cristã, é evidentemente nesse caso. Poderia o senhor nos Quanto a Roberto, ele não foi excomungado, (
lembrar qual a posiçáo do judaísmo a respeito do casamento, rio do que diz a lenda, mas, sob a pressáo da lgreja, teve, nos
(
e a do paganismo romano? primeiros anos do século XI, de se sepârar de sua segunda mu'
iher, Berra de Blois, pois o clero o havia considerado bígamo
(
Jncques Lr Gorr: No judaísmo, a.mulher era quase que
totalmente subordinada ao marido. No paganismo romano o (sua primeira mulher ainda vivia) e incestuoso (devido a uma {
caso é um pouco mais complexo, e de uma certa maneira consangüinidade de terceiro grau). Quanto a Filipe Augusto, (
prefigura o crisrianismo, pois, de um lado, a mulher romana que ern1193 repudiou sua segunda mulher, Ingeborg da Di' (
tem status de uma menor, o que significa que náo pode cum- namarca, e se casou com Inês de Merano [em alemáo, Meran], (
prir um cerro número de atos jurídicos sem o consentimento o pâpâ Inocêncio III, eleito em 1'198, lançou um interdito (
do marido, mas, de outro lado, os romanos desenvolvem uma sobre o reino da Françara forçando o rei a Prometer se sePa'
(
concepçáo igualitária dessa uniáo, que se traduz pela célebre rar de Inês e voltar à uniáo com Ingeborg'
forma "Ubi Gaius tu Gaia"r "onde sou Gaius, tu és Gaia". Vejam-se também as legislações urbanas, as do século XII
(
Em resumo, creio que houve uma verda,ieira promoçáo da na ltália, do século XIII para a França atual: nelas constam
(
mulher, que avançou, ao menôs do'irtrinalme,nte, no cristianismo, artigos iobre ôÀ castigos pâra o adultério, que prevêem penas ít
e que isso foi sentido, para além de todas as influências familiares táo duras para o homem como Para a mulher' Era assim a le' (
e sociais que tendiam a mantê-la numa certa inferioridade. gislaçáo de Toulouse de 1293, preconizando a castraçâo, e
{
,ortr.ndo-a num desenho, aplicada a um marido adúltero"'r (
LlHtsrotRg: De todo modo, esses rextos sempre citados,
emanando de autoridades eclesiásticas incontestadas, conde-
t
*O int.rdito eclesiástico proibia a celebração de ofícios divinos e de (.
nando o âto sexual ou tornando a mulher responsável pela
alguns sacramentos. (
tentação... Pedro, o Venerável, o grande abade de ClunS ;ô? de I'Occident médiéual, ediçáo
1..qu.t Le GofÍ, La Ciuilisation
comparando-a a um saco de excrementos... ilustrada, Paris, 1964, ilustração 158. (
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O CRISTIANIsMO LIBERÍOU AS MULHERES
( UMA LONGA IDADE MÉDIA

(
UHrrotRr: Pode-se dizer que, se Eva aparece como pecâ- mulheres que descobriram que o túmulo e§tava vazio e divul-
(
dora e culpada, por isso expulsa do Paraíso, Maria é, eviden- garâm a notícia da ressurreição... Náo se pode dizer, longe
( temente, uma figura positiva, uma figura central de mulher disso, que os Evangelhos seiam uma história de homensl
( no cristianismo. Mulher ou mãe? E essa concepçáo radicalmente nova do relacionamento
( Jncqurs Lr Gorr: O fundamenro do pensamenro e da entre o homem e a mulher terá repercussóes na própria es'
( prática cristã, na Idade Média, são as Escriruras. Já comenta- truturâ da lgreja, sobre a hierarquia. Bem sei que nâo há mu'
( mos rapidamente a criação de Eva no Gênesis. Há, claro, vá- lheres padres, menos ainda papa§, ma§ elas podem, a partir
rias figuras de mulheres no Antigo tstâmento, perversas como da ldade Média, âchâr seu lugar em meio ao clero regular, e
(
Dalila, virtuosas como Raquel, heróicas como Ester... E sem- se realizarem, e serem rêconhecida§ como iguais aos homens,
(
pre secundárias em relaçáo aos homens. e exercer poder: náo é pouca coisa ser abadessal
( Depois, há a revolução do Novo Testamento. Nele, agÍan-
( de inovação é Maria. Mas nâo só ela. Maria é o ponto culmi- LiHtsrons: Por que essa impossibilidade do sacerdócio
( nante de um todo: veja-se o número e a importância das figuras feminino? Como se justifica isso?
mais ar'
( femininas que gravitam em torno de Jesus. Nem Abraáo nem JncQuEs Lg Gorr: É uma herança das crenças
( Moisés são vistos sob influência femininâ, como Jesus é, ver- caicas, que encontramos no Antigo Testamento. É a idéia de
dadeiramente. que a mulher é impurai e a prova dessa impureza éa produ'
( de um
Até o fim ele é acompanhado por sua mãe. Prega seu ção do sângue que a afeta uma vez por mês. Tiata-se
( ensinamento a Marta e Maria. É para atender ao desejo das dos maiores tabus. No iudaísmo, durante esse período, ela está
( irmãs de Lâzaro que ele o ressuscitâ. Uma das mais belas proibida de várias coisas, especialmente de freqüentar qual-
( figuras de mulher do texto é evidentemente Maria Mada- quer lugar sagrado. Há evidentemente, no caso da ordenação
( lena, essa criatura complexa, uma espécie de contrapârtida de mulheres, umâ dimensão simbólica extraordinariamenre
( em relaçáo à figura má de Eva, que seria como que voltada forte essa proximidade com os §acramentos' com a difu-
-
( pâra o pecado: Maria Madgle4a pecou, mas isso não está sáo da palavra... Não é Por acaso quq o papa atual* é intran-
nâ suâ'narureáâ, 'ela é capaa de cair em si e se arrepender, e sigenté Quanto a essa excluiãb. Paia ele, çrata'se de uma
(
Jesus diz que ela vale mais, em sua fraqueza e sua redenção, cidadela a ser defendida. E mesmo no protestanti§mo o lugar
(
do que as que jamais pecaram. Seu culto explodirá verda- da mulher não é facilmente reconhecido. tata-se de um ar'
- deiramente no fim da Idade Média. Georges Duby falará caÍsmo de uma visão secundária mágico-supersticiosa.
( maravilhosamente bem sobre isso num magnÍfico capítulo
( de suas Senhoras do século XII.
( Ao pé da cruz, participando da agonia de Jesus, estavam úReferência a
João Paulo II, pois, repita'se, o original francês
deste

( Joâo, o discípulo preferido, Maria e Maria Madalena. Elas é livro é de 2004 e esse pâpa morreu em 2005. Mas seu sucessorr como
que sepultaram esse Deus sofredor. Tiês dias mais tarde, foram se sabe, não é menos intransigente ne§te caso.,. (N. do I)
( ()
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(
UHtstotRe: O senhor falava de Jesus como uú homem De minha parte, estou convencido de que na Idade Média (
sob influência feminina. A ponto de ter sido uma mulher, assistiu-se efetivamente a umâ divinização de Maria. Certa' (
Maria, que lhe pediu que cumprisse seu primeiro milagre. E mente, seria possÍvel ver nisso uma forma de politeísmo. (
ele atendeu ao pedido: mudou a água em vinho nas bodas de
Quanto a mim, quero ver prlncipalmente a valorização da (
Caná. mulher na religião e acho isso extremâmente positivo.
(
Jecqurs Lu Gorr: Está aí um episódio de interpreraçáo Náo se pode ignorar essa dimensão essencial da mensa-
difícill É desconcertante. O que se pode observar é que a cena gem cristã, hoje obliterada por certas tolices sociológicas, ou (
teve lugar antes do início da pregaçáo pública de Jesus, e que pelo caráter retrógrado de uma parte da hierarquia católica e (
pela primeiÍavezMaria o incita af.azer alguma coisa. É como do próprio papâ.* (
se ela revelasse Jesus a ele próprio. Da mesma forma, sua Você sabe qual é uma de minhas idéias favoritas, confor' (
filiação divina também lhe foi revelada, ele não sabia dela tada pelo progresso dos estudos históricos: a Idade Média, (
desde o início: e quem melhor do que a mãe para conhecer e idade de trevas e de violência, foitambém um momento deci-
dizer o segredo das origens?
(
sivo na modernização do Ocidente. Veja-se por exemplo a
Maria, na ldade Média, era, creio, profundamente vene- evoluçáo do interesse esrético, mais inclinado na Antigüidade
(
rada, apesar do monoteísmo ortodoxo, como uma espécie de à celebraçáo de um ideal masculino e que na ldade Média (
quarta componente divina, umâ quarta pessoa da Tiindade. evolui no sentido da celebraçáo do corpo e sobretudo do (
Durante muito tempo hesitei em falar dessa intuiçáo, mas ela
-
da mulher. Náo acho que se deva ver nisso uma
rosto
- (
me pârece corresponder à realidade das crenças. "instrumentaliza$o", como se diz hoje, da mulher, mulher- (
objeto, simples objeto de desejo, etc.
LHtsrotRE: Rendeu-se a ela um culto táo importante
(
Não, eu creio que se assiste a uma verdadeira promoçáo,
quanto ao pai e ao filho? (
através, precisamente, das represenrações de Eva ocasião
- (
Jacqurs Ls Gorr: Ah, sim. Veja todos os debates em ror- inesperada para os ârtistâs de mostrar a mulher nuâ pâra
no da Imaculada Conceição, o nascimento sem pecado da
-, (
o corpo, e de Maria, para o rosto.
Virgem, dogma vigoros4mente-combatido, tanto por São (
Bernardo como por Santo Tomás de Aquino, e que só foi ofi- UHtsrolnE: A idéia de que o cristianismo é profunda- (
cialmente reconhecido em 1854: acho que a violência dessa mente misógino lhe parece... (
recusa, em certo número de santos e de teólogos eminentes, Jecques Lp Gorr: Essa idéia é fundamentalmente des-
provém certamente de uma espécie de impossibilidade teoló- (
mentida pelo dogma e pela história, apesâr de algumas ten'
gica mas também do fato de que eles viam nessa "heresia" o dências misóginas da Igreja.
(
fundamento ou a conseqüência, como quiser, de uma devo- (
çáo quase pagá a Maria, uma espécie de volta ao culto pagâo
t -Atrd**r^", deve-se lembrar que a referência é a Joáo Paulo II. (
das deusas máes, I tru. ao r) (

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do que
UHrcrotRr: A dourina da lgreja, redigida pelos homens, I-lHtstotRr: Por serem mais naturalmente místicas
não expressa ântes de tudo um radical medo da mulher? os homens ou por se exPressârem melhor desse modo?
expressam desse modo' Eu náo
JncQuss Le Gorrr É1",
(
Jecques Lr Gorr: Certamenre há, e nisso a Igreja não se
"
( o pensamento
recuperou totalmente, um medo da mulher, que foi, como dirú que há uma espécie de coincidência entre
( que, verdadeiramen-
disse Jean Delumeau,* um dos grandes medos do Ocidenre. místico e â nâtureza feminina; acredito
nisso' nesse novo
( Mas isso seria um fato da Igreja ou dos homens? Seria tão fácil te, as mulheres compreenderam que havia
fé' um instrumento de
( liwar-se disso? Será que isso mudou tanto? modo de percepção e de expressát da
poder.
(
UHIsrotRr: Vamos às santas. Essas mulheres, freqüen-
( UHlsrotnr, É um modo de escrever que evidentemente
temente instruídas, escrevem, e isso é excepcional: através de
( si' O senhor acha
seus textos, entendemos o que expressam? privilegia a interioridade, a experiência de
( Jecques Ls Gorn: É mais uma possibilidade, se assim se qu. .rí.modo modificou a sensibilidade ocidentalT
( pode dizer e promoçáo da mulher no cristianismo. Houve JncQues Lr, Gorr:
Acho que sim' E creio que essa é uma
-
muitas mulheres entre os mártires. Muiro cedo elas bateram .rf.r. da qual os homens foram amplamente excluídos'
Tra-
( oposta
( às portas da santidade. Há coortes de santas, às quais os fiéis ,r-r., .orn'.feito, de uma tendência muito ocidental'
da efusáo mística é o
dedicam suas devoçóes. ao Oriente, onde a personagem chave
( xamá, que é também um feiticeiro'
Mas é preciso lembrar alguns importantes dados crono-
( e reieita t
Iógicos. Durante os primeiros séculos da Idade Média, o mo- A lgreia, quanto a si, acolhe o misticismo ltlll-
( separa esses dois universos, define'os
como antâgonls'
delo masculino da santidade é a figura do bispo: os santos sáo çaria,
mulheres'
( majorirariamente bispos transposição da hierarquia celes- tor, ,inà. que habitados ambos essencialmente Por
-
( te parâ a hierarquia terrestre.
de santidade'
( Depois se impóe pouco a pouco a santidade das abades- UHtstotnr,: O senhor falava, a propósito
de uma forma de tomada do poder
pelas mulheres' E quanto
sas, como Hildegarda de Bingen, grande abadessa renana do
( no
século XII, gràiide mÍstica, mas tàmbém valorosa erudita ra- .o pod.i,rl ãoíno se exerce'visivelmente' concretâmente'
( ponto' assum-i'lo?
cio:ral, cuja autoridade e prestÍgio foram altos à época. Por campo político, conseguiram elas, nesse
mulheres, sem nenhuma dúvida'
J,tcQurs Ls Gornr As
(
finr, a partir do século XIII, de maneira impressionante, as
desempenharam um papel político
importante na Idade Mé-
- mulheres retomam o poder em santidade, com a apariçáo do
fato de que nâo gosto de
( misticismo. dia. Mas antes gostâria de insistir no
gosto de empregar o
( empregar o termo "polÍtico", como nâo
são palavras que
( termo;religião", quando falo desse período;
'Historiador francês, nascido em 1923, especialista no estudo dar correspondem a ne-
mentalidades: os grandes medos do Ocidente estâo numa de sual náo exisdà na ldade Média, que nâo
(
obras, que abrange os séculos de XIV a XVIII. (N. do T) nhuma categoria intelectual' .l
(
( 130
131

(
(
O CRISTIANISMO TIBERTOU AS MUTHERES
UMA TONGA IDADE MÉOIA

Entâo, se você quer, falemos do lugar das mulheres no o homem; mas avançou-se muito... E será pior mais tarde:
governo outra palavra que náo exisria na época, mas que creio profundamente que nâo há pior período para â condi'
-
acho mais apropriada. çáo feminina na Europa do que o século XIX.
Como se deu o fato de que na Françâ, em virtude da lei
dita sálica, afasraram-se as mulheres da sucessáo direta, e do LlHtsrotne: E existe a tendência, hoje, para ler a Idade
trono? Houve um início de teorização no século XI! depois Média, e talvez a história das mulheres, através desse prisma
da morte do último filho de Filipe, o Belo: para afasrar o rei do século XIX?
da Inglaterra da sucessão francesa, afirma-se, mas sem argu- Jaceuss LE Gorr: Ai de nós! O pior para a mulher fo'
mentar, que as mulheres não podem reinar. Depois, no fim ram a difusão e o triunfo dos valores burgueses. Praticamente

do reinado de Carlos V, no século X! "inventou-se" a lei sálica não existia burguesia antes do século XIX. Na Idade Média,
para vigorar no reino da França. seja como for, há essencialmente nobres e camponeses. Nâo

Mas essa idéia não se impunha no sistema feudal, que não foram eles os mais duros para com as mulheres.
afastava sistematicamente a mulher da direção das se nhorias, Guardemo-nos das ilusoes de todo tipo. Guardemo'nos
da idéia de que o progresso é irreversível, linear, constante,
dos feudos, nem mesmo dos reinos. Branca de Castela, de
resto, no século XIII, sem dúvida exerceu o poder. dos tempos mais longínquos até a época contemporânea.

E, entretanto, foi na França que o princípio da masculini-


Hoje, o número de mulheres que chegam às mais altas
dade para chefiar o reino surgiu mais cedo e mais poderoso, funções é muito pequeno. No Ocidente, não se compara o
mais por motivos práticos (o chefe do reino devia ser forte, e número de mulheres primeiras-ministras com o que havia de
em primeiro lugar fisicamenre, devia ser um guerreiro) do que rainhas governando ou de regentes na Idade Média.
teóricos.
fféronique Sales passou este diálogo para o computadon)
LHtsrolRe: Para concluir, o senhor acha que o cristianis-
mo foi uma coisa boa para a mulher? E a Idade Média, não
foi um período nefasto?
Jacqurs Lr Gorr: De maneira geral, acho que é preciso
ponderaçâo entre uma visâo negra e uma visão dourada da
condição da muiher na Idade Média. A tendência hoje é re-
baixar o lugar da mulher, tânto no cristianismo quanto na
história do Ocidente.
De minha parte, impressiona-me o progresso que ela fez
na sociedade cristã da Idade Média o que evidentemente
-
náo nos pode levar a pensar que ela atingiu a igualdade com

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