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"Quando o mundo estiver unido na busca do

conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder,

então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo

nível."
© Contraponto Editora, 2021
TÍTULO ORIGINAL: L’imperatore Giuliano l’Apostata.
DIREITOS DESTA EDIÇÃO: Contraponto Editora Eireli
Vedada, nos termos da lei, a reprodução parcial ou total deste livro, por
quaisquer meios, sem autorização da Editora.
Contraponto Editora Eireli
Rua Joaquim Silva 98, 5º andar, Centro, Rio de Janeiro, Cep 20241-110
Telefones: (21) 2544-0206 / 2215-6148
site: www.contrapontoeditora.com.br
e-mail: contato@contrapontoeditora.com.br
PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS:
César Benjamin
REVISÃO:
Cristina da Costa Pereira
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO:
Adriana Moreno
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

N321e
2. ed.
Negri, Gaetano, 1838-1902
A era de Juliano : paganismo e cristianismo no Império Romano / Gaetano
Negri ; tradução Eliana Aguiar. - 2. ed., rev. e ampl. - Rio de Janeiro :
Contraponto, 2021. .
Tradução de: L’imperatore Giuliano i’apostata
ISBN 978-65-5639-013-0
1. Juliano, Imperador de Roma, 331-363. 2. Roma - História - Juliano, 361-
363. I. Aguiar, Eliana. II. Título.
21-71556
CDD: 937.08
CDU: 94(37)

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB7/6439


17/06/2021 18/06/2021
Prefácio

Introdução

. CAPÍTULO I .
A vida de Juliano

. CAPÍTULO II .
A discórdia do cristianismo

. CAPÍTULO III .
O neoplatonismo

. CAPÍTULO IV .
A conduta de Juliano

. CAPÍTULO V .
A ação de Juliano contra o cristianismo

. CAPÍTULO VI .
O desengano de Juliano
. CAPÍTULO VII .
O príncipe e o homem

. CAPÍTULO VIII .
Conclusão
Mediocris erat statura,
capillis perquam pexis et
mollibus, hirsuta barba in
acutum desinente vestitus,
venustate oculorum
micantium flagrans qui
mentis ejus argutias
indicabant, superciliis decoris
et naso rectissimo, ore paulo
majore, labbro inferiore
demisso, opima et incurva
cervice, umeris vastis e latis,
ab ipso capite usque unguium
summitates liniamentorum
recta compage.
Estatura mediana, cabelos
macios como recém--
penteados, barba hirsuta com
a extremidade em ponta,
belos e brilhantes olhos,
atestando a agudeza de sua
mente, belas sobrancelhas,
nariz reto, boca um pouco
grande com o lábio inferior
levemente saliente, pescoço
grosso e arqueado, ombros
largos e fortes, da cabeça às
unhas dos pés, muito bem-
conformado.
— Amiano Marcelino,
DESCRIÇÃO DE JULIANO
Prefácio

O estudo que apresentamos enfoca o cristianismo


justamente no momento em que sai da limitação de
isolados e secretos refúgios, alargando-se como um
magnífico rio no campo imenso do Império Romano.
Estendendo-se sobre terrenos estéreis, volta a fertilizá-los
com suas águas fecundantes, mas absorve e arrasta
consigo uma parte da sujeira que os contaminava.
Era natural que, num momento em que o complexo de
forças que a sustentavam ainda não havia desaparecido
totalmente, a antiga civilização tentasse uma última
cartada e, aproveitando-se dos descaminhos que o
cristianismo, ao se transformar num instituto mundano,
começava a trilhar, quisesse renovar o combate, na
confiança de sair vencedora.
Este último movimento do espírito antigo, resistindo à
invasão do cristianismo e reacendendo os antigos ideais,
personificou-se num curioso e enigmático personagem: o
imperador Juliano. É uma grande ventura para o
historiador encontrar concentradas no foco de uma única
pessoa todas as paixões que determinaram o
direcionamento e engendraram o comportamento da alma
humana num dado momento de sua evolução. A história só
é viva, só é clara, só é segura quando pode ser exercida em
torno do indivíduo e pode captar em sua consciência o
reflexo direto dos acontecimentos e das ideias difundidas
no mundo.
A história deve ser, antes de tudo, uma pesquisa dos fatos
e uma análise psicológica do homem. Na história, devemos,
tanto quanto possível, recriar o drama humano, reviver o
pensamento, o sentimento, as paixões da pessoa humana
num ponto determinado do tempo, num determinado
conflito de esperanças e temores, de iras e afetos, de
ilusões e realidade.
Foi justamente isso que tentei fazer com esse
personagem tão curioso e interessante que é o imperador
Juliano. Não alimentei para com ele nenhum preconceito de
simpatia ou de execração. Apenas tentei compreendê-lo,
examinando os motivos que o levaram à sua louca
tentativa, recriando o ambiente em que viveu, examinando,
enfim, o mundo que o cercava, através da atmosfera dos
preconceitos entre os quais cresceu. De um estudo feito
nesses moldes, salta uma figura vívida e abre-se uma fresta
que revela uma parcela de realidade.

—Gaetano Negri
Introdução

A sorte que coube ao imperador Juliano foi realmente


miserável. Nenhuma figura, na decadência do Império,
foi mais original, mais interessante, mais atraente que ele.
Mas a tradição eclesiástica foi para ele uma inimiga
terrível; marcou-o com o estigma do apóstata, condenando-
o, assim qualificado, à abominação e à obscuridade. É fácil
entender como isso aconteceu. A intenção da Igreja era
criar polêmica. Pretendia, sobretudo, tornar odioso o
homem que tentou feri-la de morte. Como sempre na
polêmica, a verdade cede lugar à paixão e ao interesse
partidário, mas o historiador e o crítico não podem se
deixar aturdir e confundir pelos clamores da disputa; sua
tarefa é dissecar objetivamente e com total imparcialidade
o fato ou o homem que estão sobre sua bancada de
experimentação e observação, tentando captar a verdade
em sua realidade essencial.
Ora, é claro que as invectivas e maldições da Igreja não
anulam o fato de que, no imperador Juliano, seja o homem,
seja a ação são singularmente interessantes. Não há estudo
histórico mais atraente que a pesquisa das origens, das
causas, das consequências da restauração politeísta
tentada pelo jovem imperador. Tais invectivas e maldições
não são capazes de esconder a verdade para quem olha
apenas a história e os documentos. E a verdade é que
Juliano foi um homem genial por excelência, um homem
que, depois de passar a adolescência e a juventude
mergulhado nos estudos, distraído apenas pela expectativa
de ser trucidado a qualquer momento por ordem do
famigerado primo que ocupava o trono imperial, teve de
assumir inesperadamente o supremo comando militar em
uma posição que parecia desesperada. Nela, em pouco
tempo se revelou um general de altíssimo valor, conduzindo
uma campanha maravilhosa, coroada por vitórias
esplêndidas. Sua vida pública cabe no breve ciclo de oito
anos, de 355, ano em que é enviado às Gálias para
enfrentar as invasões germânicas, até 363, ano em que cai
no campo de batalha, combatendo heroicamente os persas.
Foram oito anos de uma vida agitada, plena de aventuras e
preocupações administrativas e militares. Contudo, o jovem
imperador, que morreria aos 32 anos, nunca abandonou os
estudos, nunca interrompeu as atividades literárias e achou
modo e tempo de tornar-se um dos homens mais cultos de
seu século, o último escritor, o mais brilhante, o mais agudo
da decadência grega. Austero nos costumes, animado por
aspirações ideais, de inteligência maravilhosamente
versátil, excelente em todas as coisas às quais se dedicava,
Juliano é uma aparição que merece uma investigação
profunda. É, como diríamos hoje, uma figura fascinante. É
verdade que sua tentativa de frear o avanço do cristianismo
e reconduzir o Estado ao culto politeísta era equivocada em
princípio e revelava um espírito guiado mais por fantasmas
filosóficos do que por uma apreciação exata das condições
morais e intelectuais da época. Mas, justamente, nada é
mais interessante que pesquisar as causas que levaram um
espírito tão agudo e tão preparado a cair num erro tão
grave; nada mais curioso que segui-lo em seus esforços
para dar vida a seu ideal, que ouvir de sua própria boca ou
descobrir em seus escritos as intenções que o moviam, os
objetivos que mirava, as esperanças e desenganos que o
acompanhavam.
A Igreja foi bem mais feroz com Juliano do que com
qualquer um dos imperadores que a perseguiram a ferro e
fogo. No entanto, embora tenha iniciado uma sistemática
restauração do politeísmo, Juliano não derramou, por
iniciativa sua, uma única gota de sangue pela causa que
era muito mais importante para ele que suas ações
guerreiras e reformas administrativas. Ao contrário, como
veremos, proclamava oficialmente o princípio da tolerância
e não queria conversões forçadas. Mas a Igreja era
animada por um instinto seguro. Sentia que a perseguição
era, afinal, uma força a seu favor e um instrumento de
vitória. Quanto mais perseguida era, mais poderosa ficava.
Acostumada a enfrentar impavidamente a violência, recuou
assustada diante desse jovem que, do trono imperial,
pregava o retorno ao politeísmo em nome da razão e da
moral. Era algo tão novo e inesperado, que a Igreja viu nele
um perigo maior do que era na realidade. Até então,
nenhum dos perseguidores havia entrado no mérito do
cristianismo. Perseguiam-no porque pensavam que era
perigoso para a sociedade e para o Estado, mas ninguém
havia pensado em examinar suas bases filosóficas e
históricas. O trabalho crítico de Celso permanecia quase
isolado. Mas agora, era um imperador, sobrinho de
Constantino, quem se declarava apóstata do cristianismo e
pretendia justificar a própria apostasia com a
demonstração da irracionalidade e da ausência de base
histórica de uma religião que naquele momento parecia ter
vencido qualquer resistência. Nada poderia parecer mais
ofensivo para uma Igreja que já estava acostumada a reinar
como soberana absoluta e que certamente considerava
intolerável qualquer discussão sobre sua autoridade. Em
breve, a lança de um persa iria livrá-la de qualquer
preocupação, mas sem conseguir apagar a memória da
temida e odiosa tentativa. A Igreja vingou-se condenando o
nome de Juliano ao opróbio e sua história e seus livros a um
injusto esquecimento.

Começaremos nosso estudo com um rápida passada pela


vida de Juliano e examinaremos, em seguida, o ambiente
religioso e filosófico em que viveu. Nós nos deteremos mais
longamente em sua tentativa de restaurar o culto politeísta
e as antigas ideias religiosas. Encontraremos em nosso
caminho muitas oportunidades de tecer interessantes
considerações sobre a natureza dos movimentos religiosos,
sobre os efeitos que produziram e sobre as razões tanto de
suas vitórias, quanto de suas derrotas.
Juliano pode ser estudado em sua vida, em seu espírito,
em suas ações, com uma extensão de informações e uma
aproximação da verdade bem maior do que geralmente
acontece com os personagens da história antiga. Isto
decorre, em primeiro lugar, da existência de três fontes de
importância singular, todas contemporâneas do
personagem de quem falamos, que são as histórias de
Amiano Marcelino e os discursos de Libânio e de Gregório
de Nazianzo; em segundo lugar, e acima de tudo, da
conservação dos escritos do próprio Juliano, que são a mais
interessante revelação de seu espírito inquieto.
Amiano Marcelino, nascido numa família nobre de
Antióquia, entrou ainda jovem na carreira militar, assumiu
altos cargos e participou de importantes campanhas. Em
350, foi designado pelo imperador Constâncio para
acompanhar o general Ursicino, a quem havia sido confiada
a defesa do Oriente. Em 354 foi a Milão com o próprio
Ursicino e seguiu com ele para a Gália, a fim de combater a
rebelião de Silvano. Morto Silvano, foi enviado para o
Oriente, onde estava quando Juliano assumiu o posto de
Constâncio. Foi um devoto e fiel admirador do jovem
soberano, que acompanhou na expedição à Pérsia. Há
indicações de que Amiano abandonou a carreira militar
depois da catástrofe de Juliano e retirou-se para uma vida
tranquila em Roma, onde, como sabemos por uma carta de
Libânio, escreveu suas histórias, que chegaram a nós de
forma fragmentária. Amiano Marcelino é uma testemunha
preciosa pela serena imparcialidade de seu julgamento.
Escritor medíocre e pesado de um ponto de vista literário,
mas consciencioso, exato, grande conhecedor das coisas
militares, ligado a Juliano por uma admiração afetuosa, que
não toldava, contudo, a sua percepção da verdade, mesmo
quando não enaltecia seu herói, Amiano deixou-nos uma
narrativa na qual podemos depositar uma fé segura. No
mínimo porque, com alma de soldado e homem de ação por
excelência, ele não tinha, embora não fosse cristão,
nenhum interesse pela obra de restauração religiosa
iniciada por Juliano e, portanto, trata quase exclusivamente
do comandante e do príncipe. O filósofo e o pontífice só
aparecem de passagem nas páginas do honesto historiador.
Contudo, a imagem do jovem imperador surge cheia de
vida de sua singela pintura, de modo que o leitor é levado a
sentir pelo herói, cuja saga acompanha, um pouco da
devoção, temperada por algumas críticas, que inspira o
narrador em sua história e em seus julgamentos.
Libânio foi um dos personagens mais notáveis do mundo
helênico no século IV. Nativo, assim como Amiano, de
Antióquia, literato e retórico insigne, espalhou sua
atividade literária pelos grandes centros do Oriente,
Constantinopla, Nicomédia, Antióquia, durante os reinados
de Constâncio, Juliano, Valente e Teodósio. Professor de
retórica, manteve, por designação governamental, uma
escola pública em cada uma dessas cidades, que os jovens
procuravam para adestrar-se naquela arte tão formal que
constituía o ensino literário da época. Entusiasta amador
das tradições helênicas, Libânio odiava o cristianismo e
acreditava que a salvação do mundo estava no retorno ao
mundo antigo. Era exclusivamente um literato, um orador;
faltava-lhe o espírito filosófico. Seus discursos não passam
de exercícios de eloquência, muito interessantes pelas
coisas que narra e pela pintura do ambiente, mas vazios de
pensamento. Libânio era um hábil artífice de frases.
Espírito superficial, impressionável, vaidoso, teve uma vida
agitada, combatido por rivais, obrigado a mudar a sede de
seu magistério de Constantinopla para Nicomédia, de novo
para Constantinopla e finalmente para Antióquia, ora
perseguido, ora exaltado, mas sempre vencedor de tudo e
de todos graças à grande fama de que desfrutava e à
autoridade de um nome respeitado por todos os homens
cultos de seu tempo.
Libânio está demasiado esquecido atualmente. Seus
escritos numerosíssimos e seu rico epistolário, em grande
parte conservados, o que é raro, são uma das coisas mais
viçosas da literatura antiga e oferecem uma representação
expressiva da sociedade do Império do Oriente, no século
IV. É curioso observar que a decadência do espírito e da
literatura grega foi menos rápida e menos profunda que a
decadência do espírito e da literatura latina. Enquanto esta
última havia desaparecido completamente, para ressurgir
apenas com os escritores eclesiásticos, no Oriente as
vivíssimas chamas do movimento intelectual permaneciam
acesas, conservando tradições literárias que possibilitavam
o surgimento de escritores como Juliano e Libânio. Este
último, um espírito superficial, mas brilhante e muitas
vezes animado por uma inspiração genuína, como
dissemos, deixou-nos em seus discursos, geralmente longos
demais e faltosos na composição, páginas realmente belas e
sentidas.
Conheceu Juliano ainda jovem, se não pessoalmente, pelo
menos de fama. Como tantos outros, depositou nele as suas
esperanças. Era, portanto, natural que saudasse com
verdadeiro entusiasmo a estrela do novo imperador, recém-
surgida no horizonte, aprovando e apoiando ardorosamente
a sua empresa de restauração helênica. É natural também
que a queda repentina de tantas esperanças fosse motivo
de profunda desolação. Desses sentimentos de alegria e
dor, Libânio nos deixou um testemunho eloquente em sete
discursos, quatro dos quais escritos durante o breve
reinado de Juliano. Dois deles, Saudação, pronunciado
quando da entrada de Juliano em Antióquia, e Ao imperador
cônsul, escrito por ocasião do consulado de Juliano, são
hinos de alegria pela inauguração da nova primavera
helênica, desejada pelo genial imperador. Outros dois
discursos, Embaixada e Discurso da ira, são destinados a
reconciliar um irritado Juliano com a frívola e frondeuse
Antióquia. Os dois últimos, O lamento solitário e
Necrologia, são gritos de dor pela morte do herói.
Necrologia é uma verdadeira história de Juliano. O
plangente Libânio narra longamente toda a vida do
imperador. É um documento fundamental para quem deseja
estudar Juliano e seu tempo. O discurso Da vingança foi
escrito dezesseis anos depois da morte de Juliano e dirigido
ao imperador Teodósio, quando ele foi convocado por
Graciano a assumir o Império do Oriente. Libânio,
completamente iludido a respeito das convicções do jovem
e desconhecido Teodósio, tenta incitá-lo a vingar Juliano
como único meio para induzir os deuses a deter o curso das
calamidades que ameaçavam o oscilante Império. Estes
discursos de Libânio são certamente uma mina de
informações sobre Juliano, mas são preciosos sobretudo
como representação da impressão que ele produzia e da
aura de simpatia e esperança que o cercava e o estimulava,
mas impedia que percebesse a verdade. Claro, Libânio é
um aliado, um helenista apaixonado, e não tem a plena
segurança de julgamento que se admira no medíocre, mas
equilibrado Amiano Marcelino. Tudo o que Libânio diz deve
ser recebido com reserva e examinado com uma pitada de
desconfiança. Mas não é possível fazer uma ideia clara de
quem foi e do que pretendia Juliano sem ler os escritos
desse seu devotado amigo e apaixonado admirador.
No extremo oposto a Libânio, temos Gregório de
Nazianzo, que faz parte, junto com Basílio e Gregório de
Niceia, do terceto de grandes teólogos e oradores aos quais
se deve a vitória final de ortodoxia nicena. Nascido em
Nazianzo, na Capadócia, em 330, Gregório era coetâneo de
Juliano e encontrou-se com ele em Atenas, onde foram
colegas de estudos. Mas um era tão apaixonado pelo
cristianismo, quanto o outro pelo helenismo. Embora
Juliano escondesse prudentemente as suas convicções,
Gregório não demorou a percebê-las. Desenvolveu uma
súbita e viva antipatia pelo colega, antipatia que logo se
transformou num ódio realmente feroz. Como bispo, mas
sobretudo como orador, Gregório desfrutava de alta
posição no mundo eclesiástico e esta posição, ao aumentar
sua responsabilidade, fez com que fosse ainda mais
implacável contra os inimigos do cristianismo. É preciso
dizer também que sua grande cultura o tornava ainda mais
sensível ao perigo que o novo tipo de guerra iniciado por
Juliano representava para a religião cristã. A morte de
Juliano, que foi um golpe terrível e desolador para os
helenistas, para os cristãos – sobretudo para os literatos e
filósofos cristãos, como Gregório – foi um alívio inesperado
que afastou seu mais terrível pesadelo. Eles saudaram-na
com gritos de alegria. Nenhum desses gritos foi mais
exultante e impiedoso que o de Gregório, em dois discursos
infamantes, as duas colunas infames, como ele mesmo as
denomina, que escreveu contra Juliano assim que soube de
sua morte. Nesses discursos, Gregório não é um historiador
e muito menos um juiz; é um polemista terrível, inspirado
por um furor que afasta qualquer serenidade de seu olhar e
de seu juízo, mas é também um polemista capaz de altos
voos e de uma eloquência que empolga. Se Libânio
descreve o júbilo que Juliano causou no mundo helênico,
Gregório apresenta de forma mais ainda mais viva a
impressão de horror que ele produziu no mundo cristão. Os
exageros do amor e do ódio corrigem-se mutuamente, e
disso deriva uma figura que corresponde à verdade.
Não pode existir exemplo mais curioso da relatividade
subjetiva dos julgamentos humanos. Temos aqui dois
homens, dois contemporâneos de inteligência aberta, de
grande cultura, em suma, duas das mais eminentes
personalidades de seu tempo. Um e outro entraram em
contato com um príncipe audaz, às voltas com os mais
estranhos caprichos da sorte, um príncipe que encheu o
mundo com as façanhas que realizou em sua brevíssima,
meteórica existência. Um e outro falam desse príncipe em
discursos solenes, proferidos quando ele já estava morto,
quando já não restava nada de sua obra, quando, portanto,
louvá-lo não serviria de nada, nem combatê-lo poderia
despertar um interesse polêmico. Pois bem, os dois
mostram-se tão exaltados, ou melhor, tão cegos pela paixão
que, enquanto para um o príncipe é um milagre de
virtudes, para o outro, é um monstro de ignomínia. Em
torno à sua memória, os partidos continuaram, por algum
tempo, a polemizar. Podemos realmente dizer de Juliano
que, em vida, ele foi
alvo de imensa inveja [...]
e de indomado amor.*1
Ele despertou uma tempestade. As ondas dessa
tempestade carregaram furiosamente o seu cadáver,
lançando-o na praia, desfigurado e destroçado. O que
devemos fazer para recompor essa figura em sua
realidade? Ouvir o que ele mesmo nos disse e narrou sobre
sua vida, suas esperanças, seus desenganos. Lá
encontraremos um retrato genuíno, lá poderemos
reconhecer o homem real, com seus dotes maravilhosos,
com suas fraquezas, e poderemos libertar nosso espírito
das imprecações apaixonadas do cristão e das enganosas
apoteoses do pagão.
Nem todos os escritos de Juliano chegaram até nós.
Contudo, a quantidade de que dispomos é suficiente para
informar plenamente o valor do homem e do escritor.
Prosador veloz, como é vivamente descrito por Libânio,1
não havia preocupação de guerra ou de governo que o
impedisse de escrever discursos, tratados, sátiras, cartas,
nos quais versava toda a plenitude de seu espírito versátil,
com um talento natural, ao qual faltava apenas o tempo
para aplainar as arestas. São esses escritos que reúnem o
pensamento genuíno desse jovem inquieto que, correndo
atrás da mais enganosa miragem, desperdiçava as forças
de uma inteligência aguda e de uma alma generosa.
Nem todos os escritos de Juliano têm o mesmo valor.
Temos, de um lado, os panegíricos, nos quais ele ainda
usava os falsos padrões da retórica escolar, que
encarcerava toda arte e eloquência num árido receituário
de fórmulas. São, como veremos, a expressão de um
oportunismo explicável, mas certamente não louvável do
jovem e desconfiado príncipe. Temos também os discursos
filosóficos, um apressado e pouco orgânico amontoado de
doutrinas e símbolos, reunidos no aprendizado
neoplatônico. Estes discursos, assim como os panegíricos,
são pesados e artificiosos. Considerados como exercícios
literários e filosóficos, têm escasso valor em si. São, porém,
preciosos como ensaios das tendências e dos hábitos que
dominavam nas escolas da época e sobretudo como
demonstração do simbolismo místico através do qual o
politeísmo ajustava-se às exigências do monoteísmo na
tentativa de lutar contra o cristianismo vitorioso.
Ao lado desses exercícios escolásticos, temos os discursos
de ocasião, as sátiras e as cartas. Aqui revive, realmente,
um espírito original cuja beleza a educação pedantesca não
conseguiu obscurecer, um espírito que possuía, em todas as
coisas, uma rapidez de percepção, uma sensibilidade
genial, uma agudeza de visão e de juízo que dão às suas
palavras uma expressão vibrante de autenticidade e
verdade. É neles que devemos estudar Juliano. Quando
lembramos que esse escritor brilhante, às vezes profundo,
às vezes poético, esse satirista agudo, esse pensador
maravilhosamente versátil e douto, esse erudito para quem
nem a amada literatura helênica, nem a odiada literatura
cristã tinham segredos, esse leitor apaixonado e incansável
de Homero, Baquílides e Platão, era o mesmo jovem
comandante cujas estupendas façanhas guerreiras e
indomável coragem são narradas pelo fiel Amiano
Marcelino, não podemos hesitar em afirmar que se trata,
apesar do erro fundamental de sua vida, de uma das figuras
mais notáveis que iluminaram a decadência fatal da antiga
sociedade.
A história de Juliano deve ser escrita a partir destas
quatro fontes que, sendo contemporâneas, têm valor
inestimável. As outras narrativas da saga de Juliano ou
chegaram a nós em condições demasiado fragmentadas e
muito ruins para serem tomadas como documentos seguros
ou são de autoria de escritores que viveram pelo menos um
século depois de Juliano e, portanto, são pouco confiáveis.
As histórias de Eunápio são muito interessantes para o
conhecimento de Juliano. Nascido em 347, podemos dizer
que era contemporâneo e testemunha dos feitos do jovem
imperador, embora ele mesmo diga que era muito criança
para formar um juízo direto. Eunápio era um admirador
fervoroso de Juliano, e suas histórias certamente davam
seguidas provas dessa admiração. Justamente por isso,
chegaram a nós arruinadas por cegos fanáticos e reduzidas
a fragmentos pouco importantes, perda ainda mais
deplorável porque Eunápio pôde utilizar as Memórias do
médico Oribásio, um dos amigos mais fiéis de Juliano.
Mas Eunápio deixou em outro livro, A vida dos sofistas,
uma série de breves biografias, ou melhor, esboços
biográficos dos principais filósofos neoplatônicos, entre os
quais Juliano foi educado. Embora seja um escritor
bastante limitado, eu quase diria que indigno dos tesouros
de erudição que Boissonade e Wyttenbach lhe dedicaram,
ele tem, no que diz respeito à história de Juliano, o valor
incomparável de ser, ele também, um contemporâneo. De
fato, embora pertencesse à geração subsequente à de
Juliano, conheceu pessoalmente quase todos os homens
que retratou, sendo até parente e aluno de Crisâncio, um
dos mestres de Juliano. Nele encontramos, portanto,
informações preciosas. Ao ler as vidas de Edésio, Crisâncio,
Prisco, Oribásio e sobretudo a de Máximo, o super-homem
daquele pequeno mundo, somos transportados para o
ambiente da sociedade neoplatônica, com uma vivacidade
nas impressões transmitidas que é bem maior do que
aquela que resulta das leituras de historiadores e críticos
das épocas posteriores.
Zózimo foi outro historiador bizantino entusiasta de
Juliano. Ele demonstra um perfeito senso crítico ao dar
importância primordial, antes de qualquer outra fonte, aos
escritos do próprio imperador. No entanto, ele pouco ou
nada acrescenta ao que já sabemos pelas narrativas de
Amiano. Mas é sempre um testemunho autorizado da
profunda impressão de grandeza que Juliano deixou em sua
rápida passagem pela cena do mundo.
Todos os historiadores eclesiásticos que falaram sobre
Juliano pertencem, à exceção de Rufino, ao século
sucessivo ao dele. Escrevendo, portanto, numa época muito
distante dos acontecimentos que narram, num ambiente
favorável ao florescimento da lenda, completamente
carentes de qualquer prudência literária, tendentes a
acolher os preconceitos do espírito público que considerava
odiosa qualquer lembrança do paganismo, tais autores não
podem constituir fontes seguras para nós. Rufino, que,
como disse, era mais próximo de Juliano, escreveu a
continuação da história eclesiástica de Eusébio,
conduzindo-a até 395. Sua narrativa da reação de Juliano é
breve e incompleta. Mas foi escrita num espírito de relativa
tolerância, dando a impressão de que não conhecia ou não
seguia, caso conhecesse, as opiniões do terrível Gregório.
O arianista Filostórgio, que só chegou a nós através de
fragmentos remanejados, e Teodoreto, em cujos escritos a
história é sufocada pela lenda, não têm utilidade para os
historiadores de Juliano. Importantíssimas são, ao
contrário, as duas histórias da Igreja, de Sócrates
Escolástico e de Sozomeno.
Sócrates Escolástico, que viveu em meados do século V,
no reinado de Teodósio II, escreveu, ele também, uma
continuação da História da Igreja de Eusébio. Seu livro,
mais interessante como testemunho das opiniões do tempo
que como crítica dos fatos, narra com muitos detalhes o
episódio da reação de Juliano. Trata-se de um historiador
inteligente e ponderado. É verdade que os discursos de
Gregório exerceram grande influência sobre ele, que narra
muitos fatos evidentemente lendários ou aumentados pela
lenda. Contudo, não se pode dizer que Sócrates Escolástico
seja ácido em seus juízos. No conjunto, a história desse
escritor equilibrado é um documento que não pode ser
descuidado por quem pretenda estudar a vida de Juliano.
Sozomeno, um pouco posterior a Sócrates Escolástico,
refez a história deste último, acrescentando cá e lá algumas
informações novas, mas intensificando sobretudo os
elementos lendários. Este não é o lugar adequado para
discutir o valor de Sócrates Escolástico e de Sozomeno,
mas é inegável que o primeiro, no que diz respeito à
história de Juliano, é uma personalidade literária bem
superior. Sozomeno só se distingue do antecessor por ter
abandonado a relativa temperança.

A vida e as obras do imperador Juliano são bastante


estudadas pela história e pela crítica modernas. É rica a
literatura sobre ele. Deixando de lado os estudos
necessariamente sumários, que se encontram nas histórias
gerais, como aquela, fundamental, de Gibbon sobre a
decadência do Império Romano ou aquela, recentíssima, de
Villari sobre as invasões bárbaras, temos inúmeros ensaios
ilustrativos de algum ponto específico dos feitos e do
pensamento de Juliano, além de brilhantes artigos, como o
famoso texto de Strauss, que aproveitava a história do
combatido apóstata como ensejo para criar um
transparente tecido de alusões ao romantismo medieval do
rei Frederico Guilherme. Mas ainda não existia um livro
que, considerando todo o trabalho crítico, tente reviver por
inteiro a figura enigmática de Juliano e apresentá-la em
seus vários aspectos.
Entre os mais ilustres eruditos que escreveram sobre
Juliano, o primeiro lugar é de Neumann, que reconstruiu
com admirável agudeza, a partir da refutação elaborada
por Cirilo, pelo menos uma parte do tratado de Juliano
contra os cristãos – parte pequena, mas preciosíssima para
o conhecimento do pensamento de Juliano.2 Preciso e
sereno é o livro de Naville sobre a filosofia de Juliano.3
Riquíssima de informação e excelente pelas indicações das
menores e mais escondidas fontes é a história de Mücke.4
Contudo, a ausência de uma crítica segura nos julgamentos
tira muito do valor do exaustivo trabalho. Interessantes
pela história dos feitos militares de Juliano são as recentes
pesquisas de Kock sobre a campanha da Gália e as relações
entre Juliano e Constâncio.5 Instrutivo pelos vastos
conhecimentos das fontes é o trabalho de Vollert sobre as
opiniões de Juliano.6 Elegante, rápido, embelezado por uma
doutrina fácil, é o capítulo sobre Juliano da obra de Gaston
Boissier.7
Mas entre os trabalhos modernos, os dois melhores
escritos sobre Juliano são, a meu ver, o artigo de Harnack,
no qual o grande erudito traça com mão de mestre o perfil
do apóstata imperial e indica a direção geral de seu
pensamento8 e o livro de Rode sobre a reação de Juliano
contra a Igreja cristã.9 Este último, que é um opúsculo de
pouco mais de cem páginas, é uma verdadeira obra-prima
pelo rigor da pesquisa, pela lógica densa da demonstração,
pela precisão quase matemática do raciocínio. Não focaliza
Juliano como um todo, examina um único aspecto. O
homem, o soldado, o administrador não figuram no livro.
Veem-se apenas o inimigo do cristianismo, o restaurador do
helenismo. Embora às vezes seja possível sair do esquema
traçado por ele, como veremos, temos de reconhecer,
contudo, que é impossível dominar melhor todos os fatores
de um problema histórico e apresentá-los num quadro mais
evidente.
Mas se menciono esses livros – e poderia citar muitos
outros, seja diretamente relacionados a Juliano, seja aos
personagens que tiveram contato com ele ou ainda às
questões que fervilhavam em seu tempo –, gostaria de
acrescentar que não é com base neles que foi feito o meu.10
Bebi das fontes originais e com base nelas formei minha
convicção. Foram a forte impressão que o conhecimento
dos escritos de Juliano produziu em mim, a singular
originalidade de sua figura e a possível aplicação dos
ensinamentos provenientes de sua história para a evolução
do sentimento religioso que me levaram a empreender um
estudo, que certamente tem em si elementos de grande
interesse.
Antes de iniciar este estudo sobre a vida e o espírito de
Juliano, examinemos mais uma vez a singularidade do
fenômeno histórico que ele representa. O cristianismo
havia triunfado há meio século. Quatro imperadores,
Constantino e seus três filhos, abraçaram-no,
transformando-se em adeptos fervorosos. A Igreja já havia
assumido os hábitos de dominadora absoluta. Seus direitos
já não eram mais contestados. O comando do movimento
político e intelectual parecia estar nas mãos de seus bispos.
Mesmo a profunda divisão entre a ortodoxia atanasiana e o
arianismo indicava uma vitalidade exuberante de um
organismo suficientemente forte e seguro para dar-se o
luxo de cisões e desvios. Se o antigo culto perdurava nos
campos, com a tenacidade das populações distantes dos
locais onde o pensamento se elabora, nas grandes cidades
os templos estavam abandonados e a imensa maioria dos
habitantes havia adotado o cristianismo. Tudo, enfim,
indicava um estado de coisas que parecia tornar
inadmissível qualquer retorno ao passado, qualquer
retomada de uma posição que parecia definitivamente
abandonada.
Mas eis que ascende ao trono dos Césares um jovem
imperador, único herdeiro da família imperial a quem o
cristianismo devia seu reconhecimento oficial, e este jovem
resolve dedicar-se à restauração do politeísmo helênico. Ele
não é guiado por objetivos puramente políticos, como os
antigos perseguidores, mas por uma concepção racional.
Conhece a fundo o cristianismo, no qual nasceu e foi
educado, e conhece a fundo o helenismo, no qual foi
iniciado por suas leituras e pelo estudo dos neoplatônicos
de seu tempo. Vê e constata os efeitos reais do cristianismo
na moralidade do mundo em que vive e infere de tudo isso
que o helenismo é preferível ao cristianismo. Seu dever de
imperador é propiciar o retorno ao antigo e impedir a
difusão de uma religião que traz consigo a destruição de
uma gloriosa civilização.
Ora, quando pensamos que Juliano possuía uma
inteligência forte e desenvolvida, um ânimo heroico, um
caráter virtuoso por execelência, não podemos atribuir essa
sua estranha resolução a um capricho, à leviandade ou ao
impulso de tendências viciosas. Somos levados a pensar
que ela foi fruto de um propósito ponderado, que tinha nas
condições do ambiente a sua explicação e também, em
parte, a sua justificação. Para esclarecer a gênese desse
estranho fenômeno, precisamos enfrentar a análise da vida
de Juliano e das ideias que dominavam seu espírito
indagador e inquieto.

NOTAS
1. Liban., edit. Reiske. v. I, 580, 15.
2. Juliani Imp. librorum contra Christ. quae supersunt. Leipzig, 1880.
3. Julien l’apostat et sa philosophie. Paris, 1877.
4. Flavius Claudius Julianus nach der Quellen, Gotha, 1896.
5. Kaiser Julian. Seine Ingend und Kriegsthaten, 1900.
6. Kaiser Julians religiose und philosophisce uberzeugung, 1899.
7. La Fin du paganisme. Paris, 1894.
8. Real-Encyklopedie: Julian der Kaiser. Leipzig, 1880.
9. Geschichte der Reaction Kaiser Julians. Jena, 1877.
10. Meu livro já estava impresso quando tomei conhecimento de um estudo de
Alice Gardner: Iulian philosopher and emperor, Londres, 1899. Trata-se de um
estudo de leitura agradável, elegantemente composto, que esgota, resumindo-
a, toda a ação de Juliano e revela uma percepção justa e aguda do valor das
várias fontes.

*1Versos do poema Il “cinque maggio” [O cinco de maio)] de Alessandro


Manzoni, dedicado a Napoleão Bonaparte, morto em 5 de maio de 1821. [N.T.]
Capítulo I. A vida de Juliano

F lávio Cláudio
Constantinopla,
Juliano nasceu em 331,
filho de Júlio Constâncio, irmão do
em

imperador Constantino, e de Basilina, que pertencia a uma


nobre família da Bitínia que tinha laços de união com um
dos príncipes da Igreja, Eusébio, inicialmente bispo de
Nicomédia e em seguida de Constantinopla. A mãe morreu
poucos meses após o nascimento do filho, que também
perdeu o pai logo depois de completar seis anos. Ao
morrer, em 337, o imperador Constantino deixou três
filhos: Constantino, Constâncio e Constante. Dignos de um
pai que, mesmo tendo abraçado o cristianismo, igualava
seus mais ferozes antecessores na desenvoltura dos crimes
domésticos,1 os três começaram seu reinado com o
extermínio de parentes: de Júlio Constâncio, seu tio, e de
três primos, filhos de outro irmão de Constantino.
A responsabilidade por tais crimes pesa integralmente
sobre Constâncio, a quem coube o governo do Ocidente,
cuja sede ficava em Constantinopla, onde ocorreu o
massacre. Mais tarde, Constâncio tentou desculpar-se do
horrível delito, do qual se arrependia, dizendo que a causa
havia sido uma revolta militar.2 Mas a desculpa não é
admissível, pois o Exército não tinha interesse no
desaparecimento daqueles eventuais pretendentes ao
trono, enquanto Constâncio, de natureza suspeitosa de
tudo e de todos e envenenado por cortesãos que queriam
ganhar seu espírito e sua confiança, foi facilmente
convencido a cometer aqueles crimes, que, aliás, faziam
parte das tradições da família. Mesmo que quiséssemos
tomar como verdadeira a frase de Eutrópio, que afirma que
a coisa aconteceu Costantio sinente potius quam iubente
[tendo Constâncio permitido e não ordenado], apenas
afirmaríamos uma daquelas hipocrisias que salvam as
aparências, mas deixam intacta a realidade. A matança só
poupou os dois últimos filhos de Júlio Constâncio, Galo e
Juliano, considerados inócuos, no momento, por sua pouca
idade. Libânio escreveu:
Constantino morreu de doença, mas a espada massacrou
toda a sua família, tanto os pais, quanto os filhos. O meio-
irmão de Juliano, mais velho que ele alguns anos, escapou
da morte graças a uma enfermidade que supostamente o
levaria à morte e Juliano graças à idade, porque era
recém-desmamado.3

Há aqui um grave equívoco, pois Juliano, nascido em 331,


tinha seis anos quando Constantino morreu.
Mas os três celerados constantinianos não tardariam a
entrar em choque entre si. Constantino foi morto em 340.
Sobraram Constante, que ficou com o Ocidente, e
Constâncio, que reinou no Oriente. Constante também foi
morto pelo usurpador Magnêncio, em 350. Constâncio ficou
com todo o Império.
Enquanto esses trágicos acontecimentos ocorriam, o
pequeno Juliano crescia em Constantinopla, junto à família
materna, educado sob a direção do bispo Eusébio, de quem
era parente distante, como narra Amiano.*14

Além disso, Juliano sofreu, mais que a influência do bispo,


aquela do preceptor que cuidou dele desde os sete anos e a
quem se devem, com certeza, os primeiros contornos de
seu espírito impressionável e vivaz. Este professor era um
eunuco, já bastante idoso, que o avô de Juliano, como ele
mesmo narra no Misobarba,*25 havia escolhido para a mãe
de Juliano, Basilina, quando ainda era criança, a fim de
guiá-la na leitura de Homero e Hesíodo. Seu nome era
Mardônio e devia ser um literato com grande admiração
pela cultura e pelas tradições helênicas. Libânio chamava-o
de “insigne guardião da sabedoria”. Na frívola e cristã
Constantinopla, ele tentava conduzir o discípulo para o
exercício das mais severas virtudes, opondo o rigor ideal da
filosofia e da sabedoria helênica aos hábitos corrompidos e
frouxos do mundo em que vivia.
Aqui daremos a palavra ao próprio Juliano, que faz, no
Misobarba, uma viva descrição do sistema educativo que
seu preceptor usava com ele. Para dar ao leitor a
possibilidade de compreender esta interessante passagem,
é preciso dizer, antecipando as futuras análises, que o
Misobarba é uma sátira pungente dirigida aos habitantes
de Antióquia pelo indignado imperador, movido pela
severidade de seus costumes. Não devemos esquecer,
portanto, que o discurso de Juliano é irônico da primeira à
última palavra. Diz Juliano aos antioquenses, deplorando
ironicamente a própria educação:
A mim, o hábito não me permite lançar ternos olhares
para todo lado, de modo a parecer belo não na alma, mas
no rosto. No entanto, vocês têm razão! A maleabilidade
dos costumes é a verdadeira beleza da alma. Mas meu
preceptor ensinou-me a manter os olhos baixos quando ia
para a escola. Nunca tinha visto um teatro antes de ter
mais cabelo no queixo que na cabeça, e nunca por
vontade própria, mas três ou quatro vezes por ordem do
imperador, meu parente. Perdoem-me, portanto. Ofereço
à sua ira quem a merece mais do que eu, o meu tedioso
preceptor que já naquela época me entristecia,
ensinando-me a percorrer um único caminho. Ele é o
verdadeiro culpado do desacordo em que me encontro
com todos, pois elaborava e quase esculpia em minh’alma
algo que não era de fato um gosto meu, mas que, à força
de tanto insistir, acabou por se tornar agradável aos meus
olhos, habituando-me a chamar rispidez de seriedade,
insensibilidade de sabedoria e de força de espírito, com
resistência às paixões, sem delas extrair prazer.
Imaginem, por Júpiter e pela Musas, que muita vezes,
quando ainda era menino, meu preceptor me prevenia:
“Não te deixes convencer por teus coetâneos, que
frequentam teatros, a amar os espetáculos. Gostas de
corridas de cavalos? Há uma belíssima em Homero. Pega
o livro e lê. Eles falam dos mimos e dos dançarinos?
Deixa que falem. Dançam muito melhor os jovens feácios.
E lá encontrarás também o citarista Fêmio e o cantor
Demodoco. E ler em Homero certas descrições de árvores
é mais prazeroso que vê-las de verdade. ‘Vi em Delos,
junto ao altar de Apolo, uma palmeira jovem erguer-se ao
céu.’ E lerás sobre a selvática ilha de Calipso, a gruta de
Circe e o jardim de Alcinoo. E sabes muito bem que
nunca verás nada mais belo que isso.”
Talvez queiram que eu diga o nome e a origem desse
meu mestre. Era bárbaro, pelos deuses e deusas, cita de
origem e tinha o nome daquele que persuadiu Xerxes a
declarar guerra à Grécia. Tinha aquela qualificação tão
honrada e respeitada até vinte meses atrás e hoje usada
como ofensa e desprezo, ou seja, era eunuco, criado por
meu avô para explicar a minha mãe os poemas de
Homero e Hesíodo... Eu tinha sete anos quando fui
entregue a seus cuidados. Desde então, educou-me
seguindo sempre um único método de ensino. E como ele
mesmo não queria conhecer outros nem permitir que eu o
fizesse, conseguiu tornar-me odioso aos olhos de todos.
Mas agora, finalmente, se quiserem, podemos beber à sua
memória e celebrar a paz. Ele não sabia que eu chegaria
a vocês, nem, mesmo que chegasse, que teria tão grande
Império como este que me foi dado pelos deuses,
cometendo uma violência, acreditem, seja contra quem
iria transmiti-lo, seja contra quem iria recebê-lo... Mas
seja feita a vontade dos deuses. Se meu preceptor tivesse
previsto tudo isso, talvez tivesse tomado alguma
providência para que eu parecesse agradável aos olhos
de todos. Mas agora, como eu poderia abandonar e
esquecer aqueles rudes hábitos que foram cultivados em
mim? O hábito, dizem, é uma segunda natureza.
Combater a natureza é difícil, destruir o trabalho de
trinta anos é mais difícil ainda, sobretudo quando foi
realizado com tamanha firmeza.
“Certo, mas de onde veio a ideia de intrometer-te nas
coisas e de bancares o juiz? Com certeza não foi o
preceptor que te ensinou isso também. Ele não sabia que
irias reinar.” Ele amestrou-me, aquele velho execrável
que todos aqui insultam, com razão, como verdadeiro
responsável por minha conduta.*3
Pois fiquem sabendo que ele também foi enganado. Com
certeza, todos já ouviram, na comédia, os nomes de
Platão, Sócrates, Aristóteles, Teofrasto. Pois bem, aquele
velho tolo, persuadido por eles, persuadiu-me, muito
jovem e amante do estudo, de que, se os imitasse em
todas as coisas, tornar-me-ia, eu também, melhor que
qualquer outro homem.6
Este trecho, tão interessante e animado pela mais
pungente ironia, demonstra que o velho Mardônio educava
seu pupilo imperial numa ambiente de puro helenismo.
Nenhum preceito, nenhum exemplo cristão eram colocados
diante do jovem, que se acostumou a ver nos ensinamentos
dos antigos poetas e pensadores do politeísmo a origem de
toda virtude e a ver na prevalência do cristianismo, tal
como se revelava a ele no mundo eclesiástico e cortesão de
Constantinopla, a causa da decadência, da corrupção e do
vício. Esta educação explica o nascimento das primeiras
tendências do rapaz. Este é o sentido da frase de Amiano
quando diz que: a rudimentis pueritae primis inclinator
erat erga numinem cultum, paulatimue adulescens
desiderio rei flagrabat [era desde a primeira infância
particularmente inclinado ao culto dos deuses, e esta
paixão aumentou paulatinamente durante a adolescência].7
Mas essa educação, que deixaria marcas profundas no
espírito impressionável do jovem, logo foi interrompida.
Com a morte, em 342, do bispo Eusébio, responsável oficial
pela supervisão do pequeno príncipe, supervisão que ele,
aliás, exerceu de modo tão superficial que não percebeu
que o preceptor moldava o espírito do aluno, às escondidas,
na antipatia ao cristianismo, o imperador, temeroso talvez
de que o jovem que crescia sob os olhos de todos na capital
do Império se transformasse num rival, resolveu mandá-lo
para perto do irmão, Galo, também poupado do massacre
dos constantinianos, que vivia numa espécie de reclusão
num solitário castelo da Capadócia, denominado Macello,
descrito pelo historiador Sozomeno como um lugar de
delícias.8 Os dois jovens viveram seis anos naquele retiro,
cercados por fileiras de servos, mas totalmente afastados
do movimento intelectual e político do mundo. Em seu
Manifesto aos atenienses, Juliano recorda aqueles anos
com grande amargura.
O que posso dizer daqueles seis anos passados num
território alheio, sem que nenhum estranho pudesse
aproximar-se de nós e nem mesmo algum dos nossos
antigos conhecidos? Vivíamos excluídos de qualquer
ensinamento eficaz, de qualquer conversa livre,
alimentados em meio ao esplendor dos serviços
domésticos, mas obrigados a exercitar-nos com nossos
servos como se fossem nossos companheiros, pois
nenhum coetâneo podia chegar perto de nós.9
Juliano observa que, enquanto seu irmão Galo tornou-se
rude e violento em virtude dos hábitos adquiridos naquele
retiro, ele foi salvo pelo germe de filosofia, ou seja, de
doutrina helênica, que já trazia consigo. Mas não devemos
entender literalmente as palavras de Juliano. Se era
verdade que a esplêndida prisão dos dois jovens era
fechada a qualquer sopro de influência filosófica e
politeísta, tudo indica que, ao contrário, em torno deles se
desenvolvia um enérgico ensinamento doutrinal do
cristianismo.
É bastante interessante ler o que diz Gregório de
Nazianzo sobre a reclusão dos dois príncipes. Não pode
existir contradição mais aguda com as afirmações de
Juliano, não pode existir distorção mais radical da verdade
com intenção polêmica. Gregório apresenta o pérfido
Constâncio como um modelo de bondade e Juliano como um
monstro de ingratidão. Ora, se pensarmos que, além dos
crimes domésticos, da conduta cruel marcada pela
influência dos cortesãos e dos eunucos, Constâncio foi o
mais forte apoiador do arianismo, a seu ver, triunfante,
através da profusão de elogios com que Gregório o brindou
– embora ele merecesse receber as mais ácidas críticas por
parte de um cristão, e de um cristão ortodoxo –, podemos
medir toda a ira feroz que a tentativa de Juliano suscitou
nos dirigentes da Igreja, que por um instante temeram
perder a vitória conquistada a tão alto preço.
Gregório conta então10 que Constâncio só queria salvar
Galo e Juliano dos massacres que vitimaram todos os outros
constantinianos e que ocorreram sem que ele tivesse
nenhuma culpa, de modo a transformá-los em
companheiros e assistentes no exercício do Império.
Portanto, o humaníssimo imperador mandou educá-los com
todo o esplendor de um tratamento digno de reis, numa de
suas mansões – é assim que Gregório descreve o domicílio
forçado em Macello –, cercando-os de homens sábios e
religiosos. E os dois jovens eram tão fervorosos no culto
divino que assumiram os ofícios do clero, de modo que liam
os livros sagrados para o povo congregado, demonstrando
um zelo especial no culto dos mártires. Salvo que Galo – diz
Gregório –, violento na índole, era sincero na piedade.
Enquanto Juliano escondia sob a aparente devoção as
pérfidas tendências da alma.
Gregório narra então uma história milagrosa. Os dois
rapazes, Galo e Juliano, resolveram construir dois
santuários aos mártires, disputando nos gastos e no
trabalho. A obra de Galo logo chegou a termo, mas a de
Juliano era sempre interrompida, derrubada por tremores
do solo, indício de que os mártires recusavam a
homenagem de quem iria renegá-los mais tarde. Os dois
irmãos dedicavam-se também a disputas retóricas e
filosóficas. Juliano sempre assumia, com entusiasmo mais
vivo que o conveniente, a parte do helenismo, sob o
pretexto de exercitar-se na busca de argumentos a favor da
tese mais fraca, mas, na realidade, para exercitar-se no
combate à verdade. Em meio aos exageros e às lendas, é
possível encontrar aqui também, como em quase todas as
informações de Gregório, um fundo de verdade: há em seus
discursos alguns lampejos que dão à figura de Juliano uma
destacada vivacidade.
Sabemos, aliás, pelo próprio Juliano, que o alto clero não
perdia de vista os dois rebentos imperiais: numa carta
escrita quando já era imperador, ele recorda que o bispo
Jorge de Alexandria mandava para ele, em Macello, alguns
volumes de sua rica biblioteca para que os copiasse.11 É
muito estranho que essa educação exclusivamente cristã e
continuada durante cinco anos tenha dado a Juliano um
conhecimento singularmente profundo do Velho e do Novo
Testamentos, mas, ao mesmo tempo, não tenha sido capaz
de aguçar no espírito do jovem uma simpatia pela religião
em que foi criado. Isso só pode ser explicado pela
estarrecedora corrupção em que estava mergulhado o
cristianismo ariano no Oriente. Constâncio era ariano, e
ariamos eram os prelados que frequentavam a corte e que
ocupavam as sedes mais importantes. É fácil compreender
como o espírito de Juliano, já impregnado pelos austeros
ensinamentos de seu mestre Mardônio e já propenso a ver
no helenismo a fonte de uma pura e perfeita moralidade,
ergueu-se indignado contra o espetáculo a que assistia e
passou a cultivar propósitos de revolta no segredo de sua
alma, mesmo participando dos serviços do culto cristão. Se
em vez de um Eusébio, de um Jorge e de outros
eclesiásticos arianos, ele tivesse entrado em contato com
um Atanásio ou um Ambrósio, com um homem, enfim, que
soubesse manter o cristianismo imune ao venenos
contaminantes da época, talvez tivesse se voltado para o
lado oposto àquele que acabou preferindo. O mesmo ódio
que, chegando ao ápice do poder quando já estava
irremediavelmente comprometido, ele sentiu por Atanásio,
o único personagem cristão contra o qual, como veremos
depois, ele empreendeu um processo de perseguição, prova
de que sentia toda a diferença existente entre o
cristianismo ariano e a ortodoxia atanasiana e percebia
como esta última constituía o rochedo contra o qual a nave
do helenismo iria se chocar.
Num pequeno livro, parco de volume, mas denso de
pensamento e erudição,12 Friedrich Rode não concorda
com isso:
Mesmo fazendo abstração da circunstância de que não
era o verdadeiro arianismo, mas o arianismo temperado
de Eusébio o que predominava na Corte e, portanto,
também na educação de Juliano, precisamos destacar o
fato de que Juliano, em sua polêmica, não ataca o
arianismo, mas todo o cristianismo e especialmente os
seguidores de Atanásio. É inútil discutir se Juliano
poderia acolher o verdadeiro ensinamento de Jesus, pois
onde, em seu tempo, ele poderia encontrar esse
ensinamento? Certamente não com Atanásio.
Antecipando a teologia crítica do século XIX, Juliano já
havia constatado a grande diferença existente entre o
Cristo dos escritos primitivos do Novo Testamento e o
Deus do credo niceno.

Tudo isso seria verdadeiro se Juliano tivesse abandonado o


cristianismo por se deparar com as dificuldades racionais
que a metafísica cristã oferecia, se comparada com a
doutrina originária de Jesus. Nesse caso, é claro que a
ortodoxia atanasiana não teria mais sucesso que o
arianismo para manter no bom caminho o espírito
indagador de Juliano e talvez parecesse até mais dífícil de
engolir. Mas Juliano não retornou ao helenismo em virtude
de reflexões filosóficas, mas por razões de sentimento.
Entre elas, certamente uma das primeiras era o desgosto
causado pelo espetáculo da corrupção que contaminava o
cristianismo, corrupção reconhecida eloquentemente pelo
próprio Gregório, que não hesita em afirmar que os cristãos
perderam na prosperidade a glória adquirida nas
perseguições e nas adversidades.13
Ora, é inegável que a corrupção estava muito mais
avançada no arianismo, religião da Corte de Constâncio, do
que na ortodoxia que se congregava em torno da grande
figura de Atanásio. Na ortodoxia, o cristianismo ainda
conservava pelo menos uma parte de sua eficácia
moralizadora. Se essa eficácia tivesse penetrado no espírito
do jovem Juliano desde os primórdios de sua educação,
talvez tivesse conseguido ganhá-lo para uma religião que
ele seria obrigado a respeitar.

Haviam se passado cinco anos desde o início da reclusão no


Macello, quando o imperador Constâncio, levado pelo
dificuldade de administrar sozinho todo o Império, mudou
de repente sua conduta em relação aos sobrinhos e
designou o mais velho, Galo, para o altíssimo cargo de
César que, segundo a hierarquia estabelecida por
Diocleciano, significava vice-imperador, ou seja, a primeira
figura do Império depois do Augusto, o chefe supremo. Ao
mesmo tempo, Juliano foi chamado a Constantinopla e lá,
segundo narram Sócrates Escolástico e Sozomeno, de
acordo com Libânio, ganhou a companhia do sofista cristão
Ecebólio, um curioso personagem que passava com grande
desenvoltura do cristianismo ao helenismo, segundo os
humores do imperador reinante.14
Ecebólio seguia as ordens de Constâncio e, junto com os
eunucos da Corte, tentava disciplinar a inteligência
inquieta do aluno, para grande desgosto de Libânio, que
gostaria de plantar, ele mesmo, a boa semente naquela
alma generosa e era obrigado, ao contrário, a constatar
que um mau sofista havia sido contratado para infundir no
jovem o desprezo pelos deuses.15
Só que os progressos de Juliano nos estudos e a simpatia
que despertava começaram a provocar desconfiança em
Constâncio. “Temendo”, diz Libânio, “que uma cidade
grande, que exercia grande influência, fosse seduzida pelas
virtudes do jovem e que isso pudesse significar algum
perigo para ele, resolveu mandá-lo para Nicomédia, que
não apresentava os mesmos perigos, e lhe deu
possibilidade de instruir-se.” O medo é mau conselheiro.
Constâncio não podia ter tomado uma decisão mais
imprudente, pois Nicomédia era então o principal centro do
helenismo e era justamente a cidade onde residia Libânio, o
príncipe dos retóricos da época, o líder, como se diria hoje,
do partido helenista, que, como ele mesmo diz, preferiu a
paz serena de Nicomédia à perigosa tempestade de
Constantinopla. É verdade que, quando mandou Juliano
para Nicomédia, Constâncio impôs ao jovem, sob conselho
de Ecebólio, a condição de nunca assistir aos discursos de
Libânio. Mas o jovem entusiasta comprava a transcrição
dos discursos e os lia avidamente. O retórico conta, com
compreensível vaidade, que a rapidez da inteligência de
Juliano era tanta que ele conseguia, apesar da imposta
separação entre mestre e discípulo, imitar seu estilo
melhor que os alunos que o cercavam, de modo que, em
seus escritos posteriores, é possível perceber o parentesco
com os seus.16
Outra influência, ainda mais eficaz, veio somar-se à de
Libânio: a dos filósofos neoplatônicos Edésio, Crisâncio,
Eusébio e Máximo, o mais importante deles, que viviam em
Nicomédia e em outras cidades próximas da Ásia. Isso
marca uma verdadeira reviravolta psicológica na carreira
de Juliano. Junto desses filósofos, que o iniciaram num
sistema no qual a conservação do antigo se unia à
satisfação das exigências de pensamento que promoveram
o surgimento do cristianismo e que o próprio cristianismo
havia fortalecido, Juliano, nos seus vinte anos, sentiu clara
e irresistivelmente a sua vocação, convertendo-se com
profundo entusiasmo ao culto dos deuses. Embora
mantivesse a coisa em segredo, alguns indícios
transpareciam. “Da boca de cada pessoa de bem”, exclama
Libânio, “erguia-se uma prece para que o jovem viesse a
ser o senhor do Universo e detivesse a ruína do mundo,
socorrendo os enfermos, ele que sabia curar os males.”17
Libânio e Sócrates Escolástico concordam em atribuir ao
filósofo Máximo o mérito, segundo o primeiro, a culpa,
segundo o outro, da conversão de Juliano. Máximo era
considerado um santo pelo politeísmo. Eunápio18 narra
que, certa vez, ao entrar no templo de Diana, em Éfeso, a
estátua da deusa sorriu de satisfação e a lâmpada que ela
segurava acendeu-se. Juliano exaltava-se nesta atmosfera
de misticismo, mas precisava esconder o entusiasmo, pois a
notícia de todos os seus atos chegava a Constâncio, que
logo desconfiava. Para não cair em desgraça – o que, sob
Constâncio, significava ser morto –, Juliano teve de
retomar, na aparência, a vida e os deveres do cristão. Seu
espírito, contudo, estava irremediavelmente comprometido
com o helenismo. A semente que o velho Mardônio
depositara nele, amadurecida pelo ódio contra o
perseguidor de sua família, pela reação contra o sistema de
oprimente repressão em que havia sido educado, pela
nostalgia das glórias antigas que estavam desaparecendo,
pela aspiração a uma elevada moralidade que não poderia
ser satisfeita pelo cristianismo cortesão, encontrou no
neoplatonismo de seus mestres, curiosa mistura, como
veremos, de racionalismo platônico e misticismo
supersticioso, o ambiente certo para desenvolver-se e
crescer, a ponto de sufocar qualquer outra semente
intelectual nele plantada. Da estada em Nicomédia, em
351, ao dia em que, partindo da Gália em rebelião contra
Constâncio, invocou abertamente os deuses do antigo
Olimpo, passaram-se pelo menos dez anos. Mas nesses dez
anos, o politeísta helênico que estava escondido dentro de
Juliano adquirira um fervor crescente e não deixava um
instante sequer de reafirmar a decisão tomada, cada vez
com maior firmeza.

Juliano permaneceu tranquilo durante três anos, absorto


nos estudos, mas de repente, em 354, viu-se envolvido
novamente em perigos e agitações. Retomando seus
antigos hábitos e dando ouvidos às insinuações dos
cortesãos que o cercavam, Constâncio mandou assassinar,
em Pola, o meio-irmão de Juliano, Galo, a quem ele mesmo
concedera a dignidade de César. Em seu Manifesto aos
atenienses, Juliano fala com ardente indignação deste
crime de Constâncio. Admite que Galo era um homem rude
e violento, mas atribui a causa, como veremos, à educação
recebida. Seja como for, isso não desculpa a atrocidade de
Constâncio, que “instigado por um eunuco, por um
camareiro ou, mais ainda, por um cozinheiro-chefe,
entregou a seus mais ferozes inimigos, para que o
matassem, o seu primo, o César, o marido de sua irmã, o
pai de sua sobrinha, cuja irmã era sua esposa e ao qual era
ligado por tantos deveres de parentesco!”19
A indignação de Juliano é natural e explicável. No
entanto, para ser completamente verdadeiro, é preciso
acrescentar aquilo que Juliano cala ou pelo menos atenua
de modo a dar cores suas ao quadro, ou seja, que Galo era
um verdadeiro constanciano, um homem de crueldade
estúpida e desenfreada, que nos poucos anos em que
governou o Oriente, tendo ao seu lado a esposa
Constantina, um verdadeiro demônio, digna filha de
Constantino e digna irmã de Constâncio, fez correr rios de
sangue. Amiano conta que havia entre os dois irmãos, Galo
e Juliano, a mesma diferença que se via entre os filhos de
Vespasiano, sendo Tito um exemplo admirável de
temperança e sabedoria e Domiciano um modelo de
ferocidade.20
Era natural que, depois de matar Galo, Constâncio não
quisesse deixar Juliano livre, temeroso de possíveis
vinganças. De fato, chamou-o a Milão, onde o manteve sete
meses sob rigorosa custódia. Ele certamente não teria
escapado da morte, embora não tivesse contato com o
irmão há muito tempo, se, como ele mesmo diz, “algum
deus, querendo salvá-lo, não lhe enviasse a benevolência da
bela e gentil Eusébia”.21
A intervenção de Eusébia, esposa do imperador, dá um ar
romanesco a esta parte da vida de Juliano. O entusiasmo
com que o perseguido príncipe fala de sua protetora e a
coragem com que ela o defendeu dos numerosos inimigos
que Juliano tinha entre os cortesãos de Constâncio fazem
crer que não era somente a causa de justiça e da piedade,
virtudes desconhecidas na corte do imperador, que movia
Eusébia em sua providencial iniciativa, mas antes um afeto
mais profundo. Amiano também narra22 que Juliano teria
morrido em razão das nefandas incitações dos cortesãos –
nefando adsentatorum coetu perisset urgenter – se, por
inspiração divina, Eusébia não tivesse intervindo. Primeiro,
ela conseguiu que Juliano fosse afastado de Milão e enviado
por algum tempo para Como. Depois, persuadiu Constâncio
a conceder-lhe uma audiência. A coisa não era fácil, pois o
próprio Constâncio não se mostrava muito disposto a
conversar com o primo e também porque o mestre de
palácio, eunuco poderosíssimo junto ao imperador e
inimigo de Juliano, tentava protelar as coisas, com medo de
que, ao se encontrar, os primos acabassem se
reconciliando.23 Tudo indica que nessa audiência,
certamente com a ajuda de Eusébia que preparou o
terreno, Juliano conseguiu afastar as suspeitas.24 Fato é
que saiu livre e recebeu permissão para retirar-se para
uma pequena propriedade na Bitínia, herdada da mãe, a
única propriedade que lhe restou pois Constâncio, depois
de matar seu pai, apossou-se de todos os bens paternos.25
Mas não acabam aqui os obséquios de Eusébia, que
mantinha os olhos abertos sobre seu protegido. Juliano
estava a caminho da Bitínia quando as suspeitas
reacenderam-se no espírito de Constâncio. Ele não sabe
exatamente como, mas acredita que foram calúnias de seu
inimigo. Eusébia aproveitou a ocasião para fazer mais um
favor a Juliano – o mais apreciado por ele. Conseguiu que o
marido mudasse a destinação do suposto pretendente ao
trono e, em vez de mandá-lo para o Oriente distante, onde
poderia preparar uma vingança pela morte de Galo, o
condenasse a domicilio coatto em Atenas. Isso ia realmente
ao encontro dos desejos de Juliano. O fervoroso jovem não
se interessava de modo algum pela política imperial, não
tinha ambição de reinar, nem desejo de riquezas ou
vinganças. Tudo o que queria era poder mergulhar em seus
estudos. Só tinha uma paixão, a dos livros, só tinha uma
ardente aspiração, ver a Grécia, sua verdadeira pátria, que
ele amava com afeição intensa,26 a sede ainda brilhante da
cultura helênica à qual ele dedicaria a sua vida.
Juliano só pôde ficar em Atenas uns poucos meses, mas
eles tiveram, como afirmam seus contemporâneos, grande
influência sobre seu espírito. Ele ainda escondia suas
convicções religiosas, mas isso não o impedia de mergulhar
nos estudos e também no conhecimento dos Mistérios, que
constituíam o principal ato de culto daquele simbolismo
politeísta que Juliano queria transformar na religião do
mundo. Eunápio, Sócrates Escolástico e Sozomeno, todos
insistem na importância que a estada em Atenas teve na
vida de Juliano. Mas os dois narradores mais autorizados e
interessantes são, como sempre, Libânio e Gregório.
Libânio diz que Juliano apresentou-se aos professores de
Atenas e ofereceu-se para uma experiência, mas logo ficou
claro que ele sabia mais que os mestres:
Único entre todos os jovens que acorriam a Atenas, ele
partilhava seus conhecimentos, tendo ensinado mais que
aprendido. Assim, era comum ver reunidos em seu redor
enxames de jovens, de velhos, de filósofos, de retóricos.
Até os deuses olhavam para ele, bem sabendo que iria
reerguer o pátrio culto. Quando falava, era, ao mesmo
tempo, admirável e modesto, pois quando afirmava
qualquer coisa, logo enrubescia. Todos apreciavam essa
mansidão, e os melhores alunos tiravam bom proveito de
seus ensinamentos. A intenção do jovem era viver e
morrer em Atenas, o que lhe parecia o cúmulo da
felicidade.27
Nada pode ser mais curioso que contrapor o retrato
desenhado por Libânio ao que Gregório desenhou. Este
último, como sabemos, era coetâneo de Juliano, também
estava em Atenas, na universidade literária da cidade, para
instruir-se na arte oratória que usaria mais tarde, com
grande genialidade, na defesa da ortodoxia nicena.
Gregório e Juliano eram condiscípulos: o futuro teólogo,
vivendo ao lado do futuro apóstata, tinha uma oportunidade
singular de espreitar sua mente e estudar cada um de seus
movimentos, embora Juliano ainda tentasse manter em
segredo as tendências e convicções já enraizadas em seu
espírito. No retrato desenhado por Gregório é evidente a
intenção hostil do pintor, que pretende entregar-nos uma
imagem odiosa. Apesar disso, não creio que se possa dizer
que o retrato é uma caricatura. Existe uma expressão de
verdade na figura que se delineia nas páginas do polemista.
A vida tão singular e agitada de Juliano, as contradições
que a percorrem, a subitaneidade de suas decisões, o seu
heroísmo desesperado, a versatilidade inquieta de sua
inteligência talvez combinem muito mais com a imagem
atribulada, enigmática, um pouco convulsa apresentada por
Gregório, que com a imagem serena e sorridente traçada
por Libânio.
Depois da morte de Juliano, Gregório escreveu:
Eu já suspeitava dele desde o tempo em que estava em
Atenas. Ele chegou pouco depois da catástrofe de seu
irmão, tendo obtido do imperador a licença para
transferir-se. Eram dois os motivos para que desejasse
aquela estada; o primeiro, louvável, era conhecer a
Grécia e suas escolas; o outro, não declarado e que só
alguns poucos conheciam, era encontrar-se secretamente
com os sacerdotes e impostores, pois a impiedade ainda
não estava muito segura de si. Foi então, justamente, que
me transformei num sagaz vidente de seu caráter,
embora não esteja entre os que possuem uma disposição
natural para isso. Mas o que me transformou em vidente
foi a anomalia de sua conduta e a singularidade de suas
distrações. Para mim, o pescoço oscilante, os ombros
agitados, os olhos vagabundos que olhavam tudo em
torno e que tinham em si algo de maníaco, o pé vacilante,
que parecia sustentá-lo com dificuldade, as narinas que
trasmitiam orgulho e desprezo, os lineamentos do rosto,
ridículos e presunçosos, o riso imoderado e crepitante, os
sinais de concordância e discordância sem razão, a
palavra interrompida parecendo que faltava fôlego, as
perguntas desordenadas e irracionais, não melhores que
as respostas, seguindo-se umas às outras sem ordem de
raciocínio, não pareciam indicar nada de bom. Mas por
que listar tantos detalhes? Eu o vi antes de agir tal como
iria vê-lo mais tarde, na ação. Se alguns dos que me
ouviram estivessem presentes agora, atestariam sem
hesitar a verdade do que digo. E recordariam que, à visão
de tais indícios, exclamei: “Que monstro o Império
Romano alimenta em seu seio!” Mas, na época, fui
insultado e chamado de falso profeta!28
Não há dúvida de que há nesta descrição uma boa dose
de exagero. Ela contrasta decididamente não só com tudo o
que diz Libânio, mas, o que é mais importante, com a
descrição do honesto e imparcial Amiano. Mas, repito: deve
haver nela alguma verdade. A figura de Juliano é vívida,
salvo que Gregório quer ver manifestações de demência
naquilo que não era mais que um comportamento
desconfiado por parte de um homem que precisava
esconder cuidadosamente os seus sentimentos, um homem
no qual a prudência, aconselhada pela razão, estava em
luta constante com a audácia natural do espírito. Mas como
é dramático e interessante o encontro, nas escolas de
Atenas, desses dois jovens destinados a ser inimigos e que
já se espiavam com aquela perspicácia que o ódio instintivo
alimenta. Se Gregório era singularmente sagaz, Juliano,
cuja presteza de raciocínio havia sido aguçada pela longa
experiência de uma vida de atribulações, não o era menos
que seu condiscípulo. Com certeza, pressentiu em Gregório
um dos futuros defensores do cristianismo. O
comportamento inquieto, de rompantes e movimentos
incoerentes, era provavelmente, pelo menos em parte, um
artifício para esconder dos olhos perquisidores do colega o
segredo de sua alma de helenista fervoroso, seus
propósitos e suas esperanças.

Enquanto Juliano estudava em Atenas, destinos


inesperados estavam se preparando para ele. Uma
conspiração militar em Sírmio, na Panônia,29 mais suposta
que descoberta, a revolta de Silvano na Gália, controlada
com o assassinato à traição do próprio Silvano,30 e as
contínuas desvastações perpetradas pelos germanos na
Gália indefesa assustaram Constâncio. Vacilando entre a
suspeita e a confiança, dividido entre conselhos diversos,
convencido afinal pela enormidade do perigo e certamente
pressionado por Eusébia, o imperador chamou seu primo
Juliano a Milão.31
A dor com que o estudante abandonou Atenas é narrada
pelo próprio no Manifesto ao atenienses:
A torrente de lágrimas que derramei e os tantos gemidos,
estendendo as mãos à vossa Acrópole e implorando a
Minerva que salvasse o suplicante e não o abandonasse,
podem ser comprovados por muitos que viram tudo, mas
sobretudo pela própria deusa, a quem pedi que me
deixasse morrer em Atenas antes de partir. Mas a deusa
mostrou com fatos que não queria trair seu devoto, pois
foi sempre minha guia e cercou-me de guardiães,
chamando anjos do Sol e da Lua.32
Chegando a Milão, parou num subúrbio e não quis entrar
na Corte imperial, apesar da insistência dos cortesãos que,
pressentindo sua fortuna próxima, permaneciam ao seu
lado, insistindo para que cuidasse melhor das roupas e da
conduta, querendo transformar o estudante de filosofia em
soldado e homem de corte.33 Enquanto isso, Eusébia
tentava, com meios repetidos, infundir-lhe coragem e
confiança nela. Mas ele queria, ao contrário, convencê-la a
afastá-lo de Milão e para isso escreveu uma carta, ou
melhor, uma súplica que terminava assim: “Que tu possas
ter filhos, herdeiros do Império, e Deus possa te conceder
tudo o que desejas, mas manda-me para casa o mais rápido
que puderes”.34

Em seguida, refletiu melhor sobre o que estava para fazer e


teve medo de comprometer-se ao enviar à corte uma carta
para a esposa do imperador. No silêncio da noite, reza aos
deuses para que lhe digam o que fazer. Os deuses
anunciam que, se mandar a carta, será um homem morto.
Então, Juliano elabora consigo mesmo um raciocínio que
considera tão persuasivo que decide reproduzi-lo
integralmente no Manifesto aos atenienses.
Pensei em discordar dos deuses e pretendi que era capaz
de decidir o que fazer melhor do que aqueles que tudo
sabem. Todavia, a sabedoria humana, aplicada às coisas
presentes, só consegue evitar os erros com muito esforço,
enquanto a sabedoria divina chega ao infinito e, vendo o
todo, indica a via direta e age para o melhor. Os deuses
são os autores de todas as coisas, atuais e futuras. É,
portanto, natural que conheçam o presente. E logo
percebi que raciocinava melhor que antes. Então,
pensando em nossos deveres, acrescentei: Ficarias
indignado se algum dos seres que possuis te privasse de
seu serviço ou, sendo chamado, fugisse, mesmo que fosse
um cavalo, uma ovelha, um boi. Tu, que és homem e não
dos últimos e mais vis, queres privar os deuses de ti
mesmo e recusas o uso que ele querem te dar? Atenta
para não agir tolamente e não ofender a justiça divina.
Em vez de rastejar e adular por medo da morte, entrega-
te nas mãos dos deuses, faz o que eles querem e deixa
que cuidem de ti, como fazia Sócrates. Toma as coisas
como elas vêm; relata tudo a eles, não compres ou pegues
nada para ti mesmo, mas recebe sem hesitar aquilo que
te derem. Convenci-me de que este raciocínio, que os
deuses me inspiraram, era o mais seguro e mais
conveniente para um homem equilibrado, pois correr
para um perigo manifesto por temor de insídias futuras
seria uma coisa realmente temerária. Cedi, portanto, e
obedeci; assim, em breve, vieram a mim o nome e o
manto de César.35
O que havia se passado para deixar Juliano num estado
de ânimo tão tenso e penoso? É o que Amiano Marcelino
nos conta.36
Como dissemos, Juliano foi chamado a Milão porque o
complô em Sírmio e a rebelião de Silvano haviam
reanimado as desconfianças de Constâncio. Quando ele
chegou, todos os temores de rebelião haviam sido
afastados, com a queda e o assassinato de Silvano.
Contudo, as inquietações do imperador ressurgiram, dessa
vez com razões bem mais graves. Os rumores ameaçadores
do furacão bárbaro, que um século mais tarde cairia sobre
o Império, faziam-se ouvir cada vez mais próximos. Os
germanos, que cruzavam o Reno e devastavam as terras
orientais da Gália, apareciam como um perigo, como uma
força que o Império não era mais capaz de enfrentar.
Constâncio não era homem de assumir a totalidade dos
problemas e de colocar-se à frente do Exército. Ainda
assim, percebia que as circunstâncias exigiam um esforço
supremo e o prestígio da autoridade suprema.
Eusébia, a fervorosa protetora de Juliano, soube
aproveitar a ocasião. Aconselhou o marido a convocar o
jovem primo para participar do governo do Império,
nomeando-o César e investindo-o de plenos poderes para a
administração e para a guerra na Gália. Os cortesãos ainda
tentaram combater a nascente fortuna do jovem
constantiniano, agitando diante dos olhos de Constâncio os
perigos de ter ao seu lado um colega de Império e
recordando a recente experiência do cesarato de Galo. Mas
Eusébia insistiu, venceu todas as resistências e Juliano foi
nomeado César pelo imperador. Pelas palavras do próprio
Juliano, acima reportadas, parece que ele hesitou muito
antes de aceitar o altíssimo cargo, pois a desconfiança em
relação ao imperador estava muito viva em seu espírito.
Porém, como vimos, a fé na sabedoria da providência, que
significa fé em si mesmo, convenceu-o a não resistir ao
destino e a deixar-se envolver pela clâmide de César.
Esta mudança tão radical na sorte de Juliano – que, de um
só golpe, passa de príncipe perseguido a colega de Império,
mas em condições extremamente difíceis – inspira algumas
suspeitas quanto às intenções de Constâncio. Libânio chega
a declarar que são perversas:
E para que ninguém se espante porque chamo de inimigo
de Juliano aquele que a ele se une no Império, direi quais
foram as razões dessa união. Não, ele não via com prazer
um outro no trono imperial e com o manto púrpura; aliás,
nem mesmo em sonho teria suportado aquela visão. Mas
por que, então, transformou esse outro em partícipe de
seu poder? Ele era pressionado pelos bárbaros por todo
lado, mas sobretudo no Oeste. Um general não era
suficiente para recolocar as coisas no devido lugar. Seria
preciso um imperador capaz de interromper a corrente.
Ora, como o imperador não pretendia ir pessoalmente e
era, portanto, necessário nomear um colega, ele deixou
de lado todos os outros e elegeu aquele a quem havia
tanto ofendido; com certeza não esqueceu todo o sangue
derramado, mas resolveu confiar antes em quem poderia
acusá-lo do que em quem deveria lhe ser grato. E não se
enganou... Mas logo foi tomado por um arrependimento
insensato pelo que tinha feito e, por isso, resolveu colocar
ao seu lado, com o cargo de conselheiro, alguém que não
estimulava, mas dificultava qualquer boa ação.37
Amiano, que provavelmente foi testemunha ocular,
descreve a cerimônia solene em que Juliano foi investido no
cargo de César. Na presença do Exército, o imperador
Constâncio fez um discurso elogioso e encorajante para
Juliano. Os soldados receberam com imenso entusiasmo o
novo César, batendo com o escudo nos joelhos em sinal de
alegria. Chamejante na púrpura imperial, Juliano retornou
ao palácio, sentado na mesma carruagem que o imperador.
Porém, durante todo o caminho, ele sussurrava o verso
homérico: “Caíram sobre mim a purpúrea morte e o destino
ingente.”
Para confirmar ainda mais o seu apoio, Constâncio lhe
deu a mão de sua irmã Helena como esposa. Depois de um
mês de festejos, nos primeiros dias de dezembro de 355,
Juliano partiu para a Gália. Constâncio seguiu com ele até
além do Ticino, a meio caminho entre Lomello e Pavia.38
Essa é a narrativa de Amiano. Juliano não discorda dele
no elogio à imperatriz Eusébia, que escreveu para atestar
seu reconhecimento, elogio no qual o novo César, assim
como nos outros dois discursos dirigidos ao imperador
Constâncio, esconde seus verdadeiros sentimentos sob a
máscara da devoção. Ele também descreve as pompas
solenes e os donativos recebidos, sobretudo de Eusébia. E
insiste numa lembrança tão gentil da imperatriz que basta
para demonstrar que entre ela e Juliano estabeleceram-se
laços confidenciais bem mais estreitos do que transparece
nos discursos oficiais. Ele escreve:
Quero recordar um de seus presentes, pois proporcionou-
me um prazer singular. Como ela sabia que eu só trouxe
comigo uns poucos livros, na esperança e no desejo de
voltar para casa o mais rápido possível, resolveu ofertar-
me tantos, de filosofia, de história, de retórica, de poesia,
a ponto de satisfazer meu nunca saciado desejo por
leituras e de transformar a Gália num museu de livros
gregos. Como nunca me separo desses presentes, nunca
poderia esquecer a presenteadora. E quando parto para
uma expedição de guerra, levo comigo um desses livros
como um viático para a marcha.39

Juliano exalta-se ao expressar sua admiração pela


protetora.
Quando dela me aproximei, tive a impressão de ver
erguida num templo a estátua da sabedoria. A reverência
encheu minha alma, pregando meus olhos ao solo por um
tempo, até que ela me exortou a ter coragem. “As coisas
presentes”, disse, “recebeste de nós. O resto receberás
de Deus, desde que sejas fiel e justo conosco.” E mais não
disse, embora soubesse discursar como os mais insignes
oradores. Retirando-me da audiência, estava cheio de
estupor e comoção, com a impresão de ter ouvido a
própria voz da sabedoria, tão doce e suave era, aos meus
ouvidos, o som de sua fala.40
Mas se os favores de Eusébia para o jovem príncipe eram
cordiais e delicados, não parece que fossem realmente
sinceras as demonstrações de confiança com que o
imperador o cercava. No Manifesto aos atenienses, Juliano
afirma que, ao tornar-se César, sua prisão ficou mais
pesada, tão grande era a espionagem com que o suspeitoso
Constâncio seguia seus passos.
Que escravidão era a minha, quais e quantas, por
Hércules, as ameaças suspensas, a cada dia, sobre minha
vida! Vigiem as portas, vigiem os porteiros, revistem as
mãos dos familiares, caso algum deles queira trazer um
bilhetinho de amigos, servos estrangeiros. Só pude trazer
comigo quatro familiares para meu serviço mais íntimo,
dos quais dois bem jovens e dois adultos. Um destes
últimos conhecia minha devoção pelos deuses e seguia
comigo, em segredo, as práticas do culto, tendo eu lhe
entregado também a guarda dos meus livros; o outro era
um médico, o único entre meus muitos amigos e
companheiros fiéis que pôde vir comigo, só porque
ninguém sabia que era meu amigo.*441
Tão grande era o meu temor, que concluí que devia
proibir, para meu próprio sofrimento, que muitos amigos
viessem visitar-me, receoso de que isso causasse
problemas para eles e para mim. Além disso, Constâncio
mandou-me para o país dos celtas com apenas 360
soldados, no meio do inverno e nem tanto para comandar
os Exércitos que lá estavam, quanto para obedecer aos
seus generais, pois tratou de lhes escrever recomendando
que se precavessem contra mim mais do que contra seus
inimigos, caso eu tentasse alguma coisa nova.42
Os defensores que Constâncio encontrou entre os
historiadores modernos43 colocam em dúvida a veracidade
das informações prestadas pelo próprio Juliano. Ora,
admito que possa haver algum exagero e algumas tintas
carregadas demais. Por exemplo, não parece haver motivo
para reclamação na exiguidade da escolta militar que
acompanhava Juliano. Ele não estava conduzindo à Gália
um novo Exército, estava indo para assumir o comando dos
Exércitos que lá estavam. Pois bem, posto isso e posto
também que a viagem de Juliano tinha lugar num país
amigo e tranquilo, uma fileira de 360 homens era suficente.
Mas, quando Juliano lamenta estar cercado de inimigos e
espiões, tudo indica que é verdade, e os acontecimentos
que se seguiram à sua chegada na Gália, a hostilidade
latente, mas eficaz, que encontrou junto aos generais
demonstram as intenções pouco sinceras de Constâncio. É
claro que ele tinha medo dos germanos, mas tinha muito
mais medo de seu primo imperial. Queria salvar a Gália,
mas, ao mesmo tempo, não queria que Juliano saísse do
confronto coberto de glória. A bem dizer, se Juliano fosse
derrotado, livrando-o de um possível e temido rival, a
derrota seria certamente uma infelicidade, mas não
desprovida de algum consolo. Ele tinha boas razões para
acreditar que as coisas terminariam desse modo. Quem
poderia imaginar que aquele príncipe de 25 anos, que
vivera a vida inteira entre sacerdotes e filósofos, que nunca
havia lidado com questões militares e que, pela absoluta
falta de postura soldadesca, havia despertado a hilaridade
e o escárnio da corte de Constâncio, seria capaz de liderar
um Exército? Além disso, a expedição não apresentava
bons prognósticos. Em Turim, Juliano recebeu a notícia de
que Colônia havia sido tomada e destruída pelos germanos.
Compreendendo a gravidade do perigo, exclamou que não
lhe restava nada senão morrer bem.
Mas a população da Gália o recebeu com o mais vivo
entusiasmo. Entrou em Vienne, perto de Lyon, então sede
do governo da Gália, entre multidões em festa, estimuladas
pela presença de um príncipe da família reinante. Aqui,
Amiano nos transmite um curioso episódio: no meio de
multidão que aplaudia, uma velha cega perguntou quem
estava sendo tão aclamado. “O César Juliano”,
responderam. “Eis o homem”, ela exclamou, “que vai
restaurar os templos dos deuses!”44 Seria um boato que
corria, um pressentimento ou a simples expressão de um
desejo alimentado por uma parte do povo? A verdade é que
se pressentia em Juliano o herói que agitaria o mundo das
coisas e o mundo das ideias.
O governo de Juliano na Gália, durante cinco anos, é um
episódio glorioso em meio à decadência do Império.
Assinalou o momento em que a decadência, cuja
precipitação vertiginosa era iminente, foi detida por um
instante. Juliano parecia, então, realmente maravilhoso. A
sabedoria e a coragem com que soube conduzir os longos e
árduos confrontos contra os germanos e empurrá-los de
volta para o além-Reno faziam dele uma figura digna de ser
comparada aos maiores capitães da Antiguidade. Revela-se
aí toda a genialidade de um homem que havia nascido com
o dom do comando e o talento das grandes combinações
militares. Ah, se Juliano não tivesse se exaltado e se
deixado desviar pelas loucuras do neoplatonismo, se tivesse
uma percepção mais precisa e segura da realidade, que
imperador admirável ele teria sido! Não foi senão um
meteoro brilhante, passageiro e evanescente, quando
poderia ter sido um dos fatores eficientes da história
humana, um verdadeiro e grande governante dos povos!
Mas, do ponto de vista psicológico e dramático, é
justamente essa estranha união de um idealista exaltado,
com a cabeça cheia de crendices místicas e de ideias fixas,
com um capitão genial, um soldado heroico e um
administrador provecto que torna tão interessante a figura
de Juliano. Há nele algo de Marco Aurélio, mas um Marco
Aurélio excessivo, desequilibrado, intemperante. A
genialidade é mais viva em Juliano; o sentimento, mais
profundo em Marco Aurélio. A imaginação, fria e reprimida
em Marco Aurélio, ardente e móvel em Juliano, conspirou
contra este último, levando-o a acreditar que estavam vivas
ideias e coisas que haviam morrido para sempre. E como
Juliano, ao contrário de Marco Aurélio, sentia muito mais a
forma que a substância das coisas, ele acabou correndo
atrás dos fantasmas de sua mente e desperdiçando
miseravelmente a sua sorte maravilhosa e os dotes
estupendos com que a natureza o brindara.
Daremos agora uma rápida olhada em seus feitos na
Gália, antes de tocar no ponto que mais nos atrai em sua
vida, a tentativa de restauração do paganismo. Não
poderíamos formar uma opinião precisa e uma imagem viva
do homem, sem olhar por um instante para o guerreiro e
comandante que, saindo dos santuários neoplatônicos de
Nicomédia e de Efeso e da escola de Atenas, assumiu as
rédeas de uma árdua guerra e foi capaz de conduzir suas
fileiras de vitória em vitória. O comedido Amiano
Marcelino, que expressa a opinião de seus contemporâneos
e foi testemunha ocular das façanhas de Juliano, entrega-se
à hipérbole e à retórica quando fala do jovem príncipe e vê
nele um milagre determinado pela lei divina. “Num piscar
de olhos”, ele diz, “Juliano brilhou tanto que foi
considerado, por prudência, um novo Tito, por seus
sucessos guerreiros, igual a Trajano, clemente como
Antonino e, nas intrincadas pesquisas da mente,
comparável a Marco Aurélio, a quem pretendia emular em
seus atos e costumes.” Amiano espanta-se com toda a razão
quando recorda que aquele jovem “lançado, não das tendas
militares, mas das sombras tranquilas da academia em
meio à poeira de Marte, aterrorizava os germanos e, depois
de pacificar as regiões do gélido Reno, matava e
aprisionava os reis bárbaros desejosos de massacres”.45
Juliano passou o inverno de 356 tentando orientar-se em
sua nova posição e adquirir as necessárias noções de
administração e prática militar. Não desprezava o
adestramento nos mais humildes exercícios, repetindo de
quando em quando, como consolo e encorajamento, o nome
de Platão. Dava, assim, um admirável e novo exemplo de
temperança e operosidade. Organizador sistemático de seu
tempo, o que explica o imenso volume de trabalho que
realizou, levantava-se de noite do rústico catre onde
repousava e dividia em duas partes as horas que o
separavam da manhã. Primeiro, erguia secretamente uma
prece a Mercúrio, incentivador do pensamento, depois
tratava dos negócios de Estado, do governo da província,
dos preparativos de defesa e ataque. Esgotados os
negócios, mergulhava em seus estudos prediletos em
filosofia, que não deixaria de lado por preço algum, pois
eram para ele o objeto mais interessante da vida. Junto com
a filosofia, também estudava poesia e história, além de
exercitar-se na língua latina. Juliano alimentava-se de
poesia. Entre os grandes antigos, Baquílides era seu autor
favorito. E, infelizmente, nas escolas helênicas da época,
impregnara-se daquela retórica formal e pedante que era a
nota característica da literatura do tempo.46
No verão de 356, Juliano partiu para sua primeira
campanha. Ao saber que Autun estava sendo ameaçada por
invasores, foi até lá, libertou-a e depois, em marcha
fulminante, chegou ao vale do Reno, que percorreu de
Estrasburgo a Colônia, onde entrou triunfante e selou a paz
com o rei dos francos, aterrorizado por um ataque tão
repentino e bem-sucedido.47 Parece que, nessa primeira
campanha, Juliano atuava de forma coordenada com outro
corpo de Exército, que, guiado pelo próprio imperador,
teria descido da Récia e do Alto Reno para a Alsácia. É o
que se deduz de uma informação fornecida por Amiano de
modo totalmente incidental.48

É estranho que nem Amiano nem Juliano tenham falado


dessa movimentação do imperador na narração dos feitos
realizados no verão de 356. De todo modo, o movimento do
imperador, se realmente aconteceu, não teve
consequências importantes e, no começo do ano seguinte,
Juliano viu-se às voltas com toda a grandeza da tarefa de
libertar a Gália das invasões germânicas.
Juliano estabelece os quartéis de inverno em Sens, onde
se divide, como diz Amiano, carregando nos ombros o peso
das guerras que se espalhavam por todo lado, entre os
múltiplos cuidados para enfrentar os ataques e garantir as
provisões para seus soldados. Corre, então, um grande
perigo, pois o bárbaros, sabedores da escassez de suas
forças, assediam-no vigorosamente. Deveria ter recebido
apoio de Marcelo, um lugar-tenente que não estava muito
longe dali com a cavalaria. Mas ele era um daqueles
generais que receberam de Constâncio o encargo, não de
socorrer, mas de vigiar Juliano. Obediente às
recomendações, deixou-o só diante de todas as dificuldades
da situação. Mas a feroz resistência de Juliano
desencorajou os que o assaltavam, que acabaram se
retirando depois de um mês, envergonhados e tristes com
seu completo insucesso. Juliano depõe o indigno Marcelo
de seu comando e ele corre a Milão para acusá-lo,
confiando na disposição de Constâncio, cujos ouvidos
estavam sempre abertos para as acusações dos delatores.
Mas Juliano soube prevenir-se, mandando a Milão o seu fiel
Eutério, que o defendeu com tanta eficiência diante do
imperador que, pelo menos dessa vez, as calúnias dos
cortesãos e dos delatores não encontraram audiência.
Ademais, Juliano recebeu também, sem restrições e sem
imposição de outros generais, o comando supremo do
Exército.49
Contudo, a campanha de 357 quase acabou em desastre,
em razão de deslealdade de outro lugar-tenente, Barbácio,
que se deixou vencer pelos germanos, correndo em seguida
para acusar Juliano.50 Mas suas artes de nada valeram
diante da grande batalha vencida por Juliano, perto de
Estrasburgo, contra a coalizão dos principais reis das tribos
germânicas, comandada pelo mais poderoso deles, o rei
Conodomário.
Amiano e Libânio concordam na avaliação da conduta de
Barbácio, fraco e também inspirado pelo ódio contra
Juliano. Contudo, na narrativa dos fatos, o retórico e o
historiador divergem muitas vezes, pois bebem em fontes
diversas. A bem da verdade, a fonte de Libânio parece ser,
desta vez, preferível à de Amiano. Amiano narra51 que
Barbácio, em vez de emprestar a Juliano alguns dos navios
preparados para construir uma ponte sobre o Reno,
mandou queimá-los todos. Libânio, ao contrário, conta que
Barbácio, querendo agir independentemente de Juliano,
construiu uma ponte de barcos para invadir as terras dos
germanos. Mas os bárbaros, antecipando em quinze
séculos a invenção dos austríacos na batalha de Essling,
jogaram na corrente do rio, a montante da ponte, grandes
volumes de madeira que, se chocando com os barcos, os
arremessaram, afundaram e destruíram. Barbácio, que não
era nenhum Napoleão, fugiu apavorado com seus 30 mil
homens, perseguido pelos bárbaros.52 A retirada de
Barbácio levantou o ânimo dos germanos, deixando-os
seguros de que poderiam obter uma vitória completa sobre
o Exército de Juliano. Tinham sabido por um desertor que,
para combater a coalizão dos setes reis bárbaros, o César
dispunha de apenas 13 mil homens.53
Diante disso, Conodomário, que liderava o Exército
bárbaro, resolveu desfechar um grande golpe e,
estabelecendo-se na margem esquerda do Reno, apossar-se
de toda a Gália oriental, com a destruição do pequeno
Exército romano. Mas as esperanças de Conodomário,
mesmo justificadas pela difícil situação de Juliano, causada
pela defecção de Barbácio, foram admiravelmente
derrubadas. É preciso ler a longa descrição dessa batalha
por Amiano para admirar a genialidade militar, a presença
de espírito e o heroísmo do jovem comandante. O Exército
romano correspondia apenas à metade do Exército bárbaro.
Diz Amiano:
Conodomário, o nefando incendiário da guerra, com a
cabeça coberta por um elmo chamejante, guiava a ala
esquerda, audaz e confiante na grande força de seus
membros, sublime sobre o cavalo que espumava,
brandindo um dardo de grandeza assustadora, sempre
visível pelo brilho da armadura.54

Os bárbaros estavam certos da vitória. Enfrentar a batalha


seria, por parte dos romanos, prova de uma singular
audácia. Mas Juliano, esse filósofo, esse teólogo, esse
místico e fantástico pensador era, por um milagre que não
sei se jamais se verificou de novo, um homem de ação de
estranha potência. No campo de batalha, ao lado da
rapidez do golpe de vista, tinha, em altíssimo grau, a
faculdade de infundir nos soldados a confiança, o ardor do
combate, o entusiasmo e a alegria do perigo. Esses dotes,
que brilharam com uma luz singular na campanha da Gália,
reapareceram não menos brilhantes na guerra contra os
persas e são um dos principais traços do caráter de Juliano.
Assim, aconteceu que a batalha de Estrasburgo, imposta
por ele e conduzida com a mais hábil audácia, terminou
com uma espetacular vitória. O Exército bárbaro foi em
parte morto em combate, em parte empurrado para o Reno.
O terrível rei Condonomário, que tentava fugir e se
esconder, foi feito prisioneiro e mandado por Juliano para
Constâncio, que o mandou prender em Roma, num cárcere
no monte Célio, onde morreria.*5
A memorável vitória provocou em Constâncio mais
despeito que prazer. Na corte de Milão, Juliano era
chamado, zombeteiramente, de Vitorino. Os cortesãos
fingiam dar todo o mérito às sábias disposições do
imperador e este prestava-se à adulação, a ponto de deixar
nas atas imperiais um relatório da batalha de Estrasburgo
em que ele mesmo figurava como o tático glorioso da
jornada, esquecendo completamente o nome e os feitos de
Juliano “que, nas palavras de Amiano, ele teria escondido
totalmente se a fama não fosse incapaz de calar as coisas
gloriosas, mesmo quando são muitos os que desejam
ocultá-las”.55
Para colher os frutos de sua vitória, Juliano cruza o Reno
e vai até o coração da Germânia, empurrando diante de si
os bárbaros aterrorizados com tamanha audácia.
Finalmente, depois de reconstruir e fortificar um castelo
construído por Trajano, que estava abandonado, e de
estabelecer uma trégua de dez meses com os mesmos reis
derrotados em Estrasburgo, Juliano retorna à Gália e
decide passar o inverno em Paris. Durante toda a
campanha, a coragem de Juliano foi tão maravilhosa que,
segundo Amiano, quase se pode acreditar que desejava a
morte, pois preferia cair em combate a morrer assassinado
como seu irmão Galo. Mas essa explicação não confere,
continua Amiano, pois Juliano, ao se tornar imperador,
distinguia-se por meio de atos que não eram menos
maravilhosos e heroicos.56
Nos quartéis invernais de Paris, na breve pausa da guerra
que lhe foi concedida, em que pensava Juliano? Em conferir
as contas financeiras da Gália e em discutir com Florêncio,
prefeito da pretoria, cargo que corresponderia a um
ministro de Finanças, para mostrar que a Gália não
suportava mais nenhum aumento de impostos e que isso
era, aliás, dispensável, pois o orçamento bastava para todas
as despesas necessárias. O ministro foi reclamar com o
imperador, que exortou Juliano a confiar em Florêncio. Mas
Juliano foi implacável: não quis nem ler o documento com
as propostas de Florêncio e, num momento de irritação,
empurrou-o ao chão. Assim, graças à sua firmeza, a Gália
escapou da ruína.57 Não era sem razão que os povos da
Gália comparavam a administração de Juliano com um sol
sereno que brilhava depois da desolação das trevas.
A divergência entre Juliano e Florêncio, que foi certamente
uma das principais causas da desconfiança e do retorno das
suspeitas de Constâncio, tinha origem numa questão mais
pessoal que a administração pública. Seguindo os costumes
da época e do governo imperial, Florêncio roubava. O
incorruptível Juliano não podia tolerar tal coisa. Vem daí a
intenção, de Florêncio e de outros colegas, de livrar-se do
incômodo príncipe. Um episódio narrado por Libânio ilustra
a situação.
Aconteceu de um cidadão acusar um magistrado de furto.
Como prefeito, Florêncio funcionava como juiz; prático
como era no roubo e tendo sido comprado anteriormente,
expressou sua indignação contra o acusador, sentindo-se
comprometido com seu colega na arte. Porém, como a
injustiça era flagrante, o público já comentava e as
orelhas do autor ardiam, ele chamou o próprio príncipe
para julgar. Inicialmente, este recusou dizendo que não
era de sua competência. Mas Florêncio insistiu, não
porque desejasse uma sentença justa, mas porque
pensava que Juliano daria um parecer concorde com o
dele, mesmo que fosse injusto. No entanto, quando viu
que a verdade era mais importante para Juliano que a
consideração para com ele, sentiu enorme desprazer e,
caluniando por carta um personagem que tinha a máxima
confiança de Juliano,*6 conseguiu que fosse expulso do
palácio por desencaminhar o jovem príncipe, para quem,
na verdade, fazia o papel de pai.58
Devemos ter sempre em conta estes fatos singulares, pois
mostram que Juliano era um dos homens mais iluminados,
conscienciosos e justos da Antiguidade. Devemos, ademais,
extrair as consequência naturais desses fatos quando
quisermos julgar, em sua real consistência, a ação pela qual
ele foi difamado diante da posteridade, ou seja, a tentativa
de restauração do paganismo.
As duas campanhas seguintes, de 358 e de 359,
constituíram uma série de sucessos para Juliano, nas quais
o audaz e afortunado general, não satisfeito em libertar a
Gália, penetrou no coração da Germânia e submeteu, uma a
uma, as mais belicosas tribos. A deslealdade dos inimigos,
que só mantinham os acordos sob o terror do castigo, e as
dificuldades de abastecimento, cuja carência já havia
voltado contra Juliano os seus fiéis soldados,59 criavam a
cada passo obstáculos e impedimentos capazes de
desencorajar e abater qualquer hábil comandante. Mas ele
nunca perdia a presença de espírito, a segurança do golpe
de vista, a oportunidade da audácia e, assim, conseguia
levar paz, ordem e prosperidade a regiões que viviam há
anos em ebulição e sob a ameaça perpétua de invasões
desastrosas. É belo observar a legítima altivez, mas
também a grande dignidade com que Juliano escreveu aos
atenienses sobre seus sucessos militares.
Nos dois anos seguintes [à batalha de Estrasburgo], os
bárbaros foram totalmente expulsos da Gália, inúmeras
cidades foram reconstruídas e navios em quantidade
chegaram à Bretanha. Reuni uma frota de seiscentos
navios, dos quais quatrocentos eu mesmo construí em
menos de dez meses, e com ela subi o Reno, numa
empresa bastante difícil, por causa dos bárbaros que
habitavam as margens. Florêncio, aliás, pensava que a
coisa era tão impossível que prometeu aos bárbaros um
prêmio de 2 mil libras de prata para deixarem a
passagem livre. Tendo sido informado da oferta,
Constâncio escreveu-me dizendo que a executasse, a
menos que a considerasse demasiado vergonhosa. E
como não seria, se parecia vergonhosa até para
Constâncio, tão habituado a pactuar com os bárbaros?
Mas resolvi não dar nada. Marchando contra eles, com a
defesa e a assistência dos deuses, ocupei o país dos sálios
e expulsei os camavos, tendo apresado muitos bois,
mulheres e crianças.*7
Diante disso, eles ficaram tão apavorados com os
preparativos das minhas invasões, que começaram a
enviar reféns e garantiram passagem livre para os
víveres. Seria longo demais enumerar e escrever, uma
por uma, todas as coisas que fiz em quatro anos. Passo a
resumir. Cruzei três vezes o Reno; recuperei dos bárbaros
20 mil prisioneiros nossos que estavam no além-Reno; em
duas batalhas e num cerco apresei milhares de homens
na flor da idade; mandei a Constâncio quatro fileiras de
fortíssima infantaria, três um pouco mais fracas e duas
coortes de cavaleiros bravíssimos; agora, pela graça dos
deuses, possuo todas as cidades, tendo retomado pouco
menos de quarenta.60
Chegamos agora ao momento fatal da vida de Juliano.
Está amadurecendo o evento que o irá levar ao vértice do
poder. Enquanto, na Gália e na Germânia, o César corria de
vitória em vitória, o imperador Constâncio debatia-se, no
Oriente, com as mais graves e inglórias dificuldades, em
consequência da guerra contra os persas que se arrastava
há anos e ameaçava transformar-se num desastre para o
Império. O espírito mesquinho e perverso de Constâncio
invejava o primo. Temendo que a continuação de seus
triunfos pudesse despertar aspirações imperiais e, segundo
narra Amiano,61 instigado por Florêncio, Constâncio
resolveu cortar as asas dele. Para tanto, mandou a Paris o
tribuno Decêncio com uma ordem para que Juliano
expedisse para ele, no Oriente, a melhor parte de suas
tropas, as legiões dos hérulos, dos batavos, dos petulantes
e dos celtas, recomendando que agisse rapidamente, de
modo que os soldados pudessem chegar a tempo de
participar da campanha da primavera seguinte contra os
partas, aliados dos persas. O general Lupicino comandaria
as tropas. Juliano previu que a ordem do imperador não
poderia ser executada sem protestos e sem perigo. Aqueles
soldados bárbaros prestavam serviço voluntário, com a
condição de não precisarem abandonar seus países. Claro
que não aceitariam ser levados para o Oriente longínquo,
para morrer longe de suas famílias. Enquanto isso,
Lupicino estava ausente, enviado por Juliano, há tempos,
para a Inglaterra, e Florêncio, prevendo a tempestade,
estava retirado em Vienne, postergando a resposta ao
chamado de Juliano. Ele estava sem conselheiros, tendo de
assumir sozinho a responsabilidade, pressionado por
Decêncio, que pressentia o perigo do atraso. De fato, corria
nas legiões um libelo anônimo que, entre outras coisas,
dizia: “Nós, como culpados e condenados, somos expulsos
para os confins extremos da terra e nossas famílias, que
conseguimos libertar da prisão depois de tantas batalhas
sangrentas, serão servas dos germanos para sempre”.62

Depois de ler o libelo, a fim de afastar aquele que parecia


ser o maior sacrifício para os soldados, Juliano decide que
as famílias podem seguir com eles e fornece os meios de
transporte. Decêncio insiste que as legiões, que estavam
alojadas em áreas circunstantes, concentrem-se em Paris,
de onde partiriam. Isso é feito. Reunidas as tropas nos
subúrbios de Paris, Juliano vai visitá-las, faz uma exortação,
falando a cada um daqueles soldados que conhece
pessoalmente, tentando animá-los com previsões da
generosidade do imperador e dos prêmios que esperam por
eles. Em seguida, reúne os chefes num banquete solene, de
onde eles saem tristes e comovidos, pois a sorte os privava
ao mesmo tempo de seu justo comandante e de sua terra
natal.63
Enfim, tudo parecia tranquilo, afastado qualquer perigo
de resistência, quando no coração da noite as legiões
pegaram em armas e, dirigindo-se ao palácio, cercaram-no
de modo que ninguém pudesse fugir. Em altos brados,
proclamam que Juliano era o Augusto, ou seja, imperador.
Obrigando-o a apresentar-se à primeira luz da aurora,
ampliam, assim que o veem, o clamor festivo. Juliano tenta
em vão acalmá-los, prometendo que não ultrapassariam os
Alpes e garantindo o perdão de Constâncio. Os soldados
exaltam-se ainda mais e, erguendo-o sobre os escudos,
exigem que coloque na cabeça o diadema imperial. Ele não
o tem. Pois bem, que se coroe com um colar de sua esposa.
Mas um ornamento feminino não convém como emblema
do Império. Que pegue então o peitoral dourado de um
cavalo. Pior ainda. Então, um vexilário dos petulantes,
arrancando um colar que usava como divisa de seu posto,
cinge com ele a cabeça de Juliano. Sem conseguir resistir à
pressão dos soldados, ele retorna ao palácio – incerto,
estupefato e hesitante. Mas eis que, no dia seguinte,
difunde-se entre os soldados o boato de que Juliano havia
sido assassinado secretamente. Eles retomam prontamente
as armas e correm para o palácio, onde só se acalmam
quando o novo imperador comparece diante deles,
refulgente nas insígnias do poder. A partir daquele
momento, Juliano assume abertamente a sua posição. Fala
aos soldados como imperador, recorda as empresas que
realizaram juntos, declara total confiança em sua lealdade
e promete recompensas e promoções. Ele ainda espera
evitar a guerra civil e obter um acordo com Constâncio,
mas está decidido a não recuar. Afirma que está seguro de
si e de seu destino. Aos mais íntimos, conta, aliás, que na
noite anterior à sua proclamação, o gênio do Império
aparecera para ele, dizendo: “Mais de uma vez, ó Juliano,
ocupei o vestíbulo de teu palácio na intenção de aumentar
tua dignidade, mas sempre me retirei quase expulso. Se
nem agora me receberes, malgrado o parecer favorável de
tantos, partirei mortificado e triste. Contudo, lembra-te
bem, a ti não voltarei nunca mais!”64
Temos o relato desses acontecimentos tão interessantes
nas palavras do próprio Juliano. No manifesto que enviou
ao Senado e ao povo de Atenas no momento em que,
rompida qualquer hesitação, resolveu atacar Constâncio, o
novo imperador narra como aconteceu a sua proclamação.
Esse relato, que nos faz reviver a realidade, concorda
completamente, em suas linhas principais, com a narrativa
de Amiano. Juliano diz que está cercado de espiões e
caluniadores e nomeia os principais: Pentadio, Paulo,
Gaudêncio, Lucianiano. A estes, pode-se acrescentar
Florêncio, em razão dos desacordos financeiros relatados,
como vimos, por Amiano e Libânio. Foram eles que, depois
de obter de Constâncio o afastamento de Salústio, o mais
fiel amigo de Juliano, que conhecia todos os seus segredos,
trataram de convencer o imperador a privá-lo de seu
Exército.
Constâncio, talvez mordido pela inveja dos meus feitos,
escreveu-me uma carta cheia de ofensas contra mim e de
ameaças contra os celtas, ordenando que quase todas as
melhores tropas, sem distinções, fossem retiradas da
Gália, confiando a execução da ordem a Lupicino e
Gentônio e advertindo-me que evitasse qualquer
oposição. Mas como explicar agora o que os deuses
fizeram por mim? Meu estado de espírito – os próprios
deuses são testemunhas disso – era de abandonar os
esplendores e cuidados do reino e viver em repouso,
longe dos negócios. Contudo, queria esperar por
Florêncio e Lupicino, que estavam o primeiro em Vienne
e o outro na Bretanha. Enquanto isso, tinha início uma
grande agitação entre os cidadãos e os soldados e, numa
cidade próxima, corria entre as legiões dos petulantes e
dos celtas um libelo anônimo, que falava muito mal do
imperador, lamentando o abandono da Gália; o autor
deplorava também as ofensas contra mim. Este libelo
produziu em todos uma viva impressão. Os partidários de
Constâncio insistiram junto a mim, com todas as suas
forças, para que enviasse os soldados antes que escritos
semelhantes chegassem também às outras legiões. Não
havia em meu redor ninguém que me fosse favorável, mas
apenas Nebrídio, Pentadio e Decêncio, que foi quem me
comunicou as ordens de Constâncio. Eu dizia que
convinha esperar Lupicino e Florêncio, mas eles
discordaram, afirmando que era preciso agir
rapidamente, se não quisesse acrescentar este novo
exemplo como demonstração das antigas suspeitas. E
continuaram: “Se despachas os soldados agora, o mérito
será teu. Se aqueles dois chegarem, Constâncio não te
dará o mérito, mas a eles, e tu serás acusado...” Abriam-
se dois caminhos para mim. Eu queria ir por um, eles me
obrigavam a tomar o outro, temerosos de que o
acontecido pudesse motivar um princípio de revolta entre
os soldados, causando uma completa desordem. A bem da
verdade, esse temor não era totalmente desmotivado. De
fato, as legiões chegaram. Seguindo os acordos
assumidos, fui até elas e anunciei a partida iminente. Um
dia se passou sem que eu soubesse nada de suas
resoluções. Júpiter, o Sol, Marte, Minerva e todos os
deuses sabem que, até a noite, não me ocorreu nem
sombra de uma suspeita. Foi só mais tarde, depois do pôr
do sol, que tive algumas notícias e, de repente, o palácio
foi cercado; todos gritavam, enquanto eu pensava o que
devia fazer, sem acreditar no que via. Estava sozinho num
quarto vizinho ao de minha esposa, que ainda era viva.
Ali, olhando o céu por uma abertura na parede,
prosternei-me diante de Júpiter. Como ficava cada vez
mais forte o clamor dos gritos lá embaixo, nas salas do
palácio, supliquei ao deus que me enviasse um sinal e ele
atendeu-me, revelando que devia ceder nem me opor à
vontade do Exército. Malgrado o sinal, eu não estava
pronto para render-me. Resisti enquanto foi possível, sem
aceitar nem o título nem a coroa. Só que, enquanto eu
não conseguia acalmar ninguém, os deuses, que
desejavam que tudo aquilo acontecesse, incitavam cada
vez mais os soldados, abalando a minha resolução. Por
volta da terceira hora, não sei qual soldado, arrancando
de si um colar, circundou com ele a minha cabeça e eu
entrei no palácio suspirando no mais profundo do meu
coração, como bem sabem os deuses. Eu sabia que
precisava confiar no sinal divino, mas doía-me muito a
sensação de não me manter fiel a Constâncio até o fim.
Havia muita agitação em torno do castelo. Tentando
aproveitar a boa oportunidade, os amigos de Constâncio
tramam uma cilada e distribuem dinheiro entre os
soldados, esperando uma de duas coisas: ou que se
dividissem ou que todos se voltassem abertamente contra
mim. Mas um dos oficiais a serviço de minha esposa
percebeu a secreta manobra e informou-me
imediatamente; quando viu que não tomei nenhuma
providência, começou a gritar no meio da praça, furioso
como um epilético: “Soldados, estrangeiros, cidadãos,
não traiam o imperador!” E os soldados exaltaram-se e
correram todos, armados, para o palácio. Encontrando-
me vivo, felizes como quem reencontra um amigo contra
todas as expectativas, reúnem-se ao meu redor, abraçam-
me e carregam-me nos ombros. Era uma coisa digna de
ser vista, pois todos pareciam cheios de entusiasmo.
Colocaram-me no meio deles e pediram que entregasse os
amigos de Constâncio, para que fossem punidos. Que luta
travei para conseguir salvá-los. Só os deuses sabem!65
Juliano era mesmo completamente sincero em suas
declarações de inocência, em suas afirmações de surpresa
e maravilha? Podemos duvidar, sem ser muito injustos com
ele. A conduta de Constâncio em relação a ele não deixava
dúvidas sobre o destino final que o aguardava. Se deixasse
seus soldados partirem, era um homem perdido. Não lhe
restava outra defesa senão a rebelião contra as ordens
recebidas. Para salvar-se, precisava demonstrar a
Constâncio que tinha à disposição uma força maior que a
dele. Portanto, é natural supor que havia um pouco de
teatro em todas aquelas hesitações, naquelas súplicas aos
deuses, naqueles repetidos protestos. Amiano narra, e
Juliano confirma com grande ardor, que os deuses
manifestaram claramente o desejo deles por meio de um
milagre. Mas milagres tão oportunos só acontecem com
quem os espera para sancionar o que já havia decidido
fazer. Os soldados adoravam aquele filósofo místico, a
quem os graves estudos não impediam de ser o primeiro
nos perigos e nas privações e que havia sido capaz de
conduzi-los de vitória em vitória. Já haviam tentado
proclamá-lo imperador no campo de batalha de
Estrasburgo.66
Na época, ele recusou terminantemente, pois as
circunstâncias não o obrigavam a escolher entre rebelar-se
ou morrer. Mas seus repetidos sucessos na guerra e na paz,
em vez de atenuar, envenenaram as suspeitas e a inveja de
Constâncio. Para salvar-se, o heroico César foi obrigado a
encorajar e até a provocar aquela aclamação como
Augusto, tão decididamente recusada dois anos antes.
Uma carta endereçada a Oribásio, seu médico de
confiança, e datada dos últimos tempos de cesarado,
demonstra que Juliano alimentava, além do pressentimento,
o desejo de assumir seu alto destino. Portanto, não era
totalmente estranho ao movimento soldadesco que o levou
ao trono.67 O sonho narrado na carta é claro demais para
não ser a expressão de um pensamento que germinava na
mente do sonhador.
O divino Homero diz que duas são as portas dos sonhos e
que, portanto, diversa é a fé que suas predições
merecem. Creio, porém, que dessa vez, mais que em
qualquer outra, foste capaz de ver o futuro, pois hoje eu
mesmo tive uma visão semelhante à tua. Tive a impressão
de ver uma alta árvore, plantada numa vastíssima sala,
cair no chão e de suas raízes surgir um broto todo florido.
Senti muita pena da arvorezinha, temendo que fosse
cortada junto com a grande. Ao chegar perto, vi que a
árvore grande estava caída no chão, mas a pequena
estava ereta, olhando para o céu. Diante de tal visão,
exclamei ansioso: “Esta árvore já caiu! E periga que nem
o broto consiga se salvar!” Então, alguém que me era
totalmente desconhecido, disse: “Olha bem e anima-te. A
raiz permaneceu na terra; a arvorezinha está salva e, com
certeza, vai se consolidar.”
Não é improvável que este médico, Oribásio, tenha tido
uma participação importante na escolha de Juliano e que
tenha usado sua influência para estimular no príncipe a
aspiração à dignidade imperial, coisa que, aliás, Eunápio
afirma explicitamemnte em sua biografia do próprio
Oribásio.68
A bem dizer, nas memórias que deixou, Oribásio chega a
vangloriar-se de sua participação na aventura e aumenta
sua responsabilidade na iniciativa de Juliano, mais do que
admitem o próprio Juliano e Amiano, para os quais a
rebelião não seria mais que um ato necessário de defesa.
Um fato curioso que pode ser sintomático é que Juliano,
segundo narrra Eunápio,69 chamou da Grécia para a Gália
o grande sacerdote dos Mistérios, o hierofante, e só optou
pela rebelião depois de cumprir com ele, no máximo
segredo, os rituais sagrados. Oribásio e o fiel Evemero
eram os únicos em quem confiava. Conhecendo o espírito
supersticioso de Juliano, que os ensinamentos de Máximo
tornaram ainda mais superticioso, é fácil entender por que
ele queria consultar os deuses antes de se decidir, e como o
trabalho do hierofante foi precioso para ele. Sendo assim, a
circunstância de tê-lo feito vir da Grécia a Paris não pode
deixar de alimentar a suspeita da premeditação. De todo
modo, os dados são escassos demais para que possamos
erguer com eles um edifício seguro. O melhor que podemos
fazer é ater-nos às narrativas precisas e vivazes que
encontramos no Manifesto aos atenienses e na história do
honesto e imparcial Amiano.
Os modernos defensores de Constâncio, de quem já
falamos, sobretudo Koch, num estudo escrito com crítica
aguda e grande erudição, veem na revolta de Paris um puro
teatro de Juliano, que teria encontrado ali o pretexto para
rebelar-se abertamente contra o imperador. Contudo,
mesmo não dando importância ao tom de verdade que
ressoa na palavra de Juliano, a análise, por assim dizer
psicológica dos homens e da situação, convence qualquer
observador isento, que não seja inspirado pelo demônio da
hipercrítica, que o erro neste histórico confronto entre os
primos está inteiramente do lado de Constâncio. Antes de
mais nada, recordemos que é impossível afastar deste
último a responsabilidade pelo crime horripilante que foi o
massacre da família constantiniana, ordenado ou tolerado
por ele após a morte do pai, Constantino, um crime que
permitia que Juliano o chamasse publicamente de
“assassino de meu pai, dos irmãos, dos primos, carnífice,
eu diria, de nossa família e parentela comum”.70
Contra um homem assim, justificam-se as mais negras
prevenções. Suspeitoso de tudo e de todos, Constâncio
estava sempre pronto a dar ouvidos aos caluniadores. E o
primeiro entre todos era o eunuco Eusébio, que estava
sempre ao seu lado, inspirando todos os seus atos,
impulsionando cada vez mais longe sua tendência natural à
crueldade e que foi o seu gênio mau.71
Eusébio atiçava-o contra Juliano, no qual via um temível
sucessor ao Império. Tinha por ele aquele ódio que os
espíritos baixos têm naturalmente pelos homens generosos
e fortes. Eusébio representava a corrupção e o vício
reinantes na corte; Juliano, a honesta simplicidade e a
retidão do estudioso, que viveu longe das intrigas, no
ambiente puro das aspirações ideais. Eusébio devia ver na
aproximação de Juliano o início de sua ruína. Assim, não
cessava de inocular seu veneno no ânimo crédulo e
perverso de Constâncio. Não fosse a ação salutar da
imperatriz, Juliano não teria escapado das suspeitas do
primo. É verdade que essas suspeitas amainaram por um
instante sob a ameaça das invasões germânicas, e
Constâncio deixou-se convencer pela esposa a mandar o
primo para a Gália. Podemos admitir que agia com boa-fé a
respeito dessas invasões, pois o que importava naquele
momento era frear o avanço dos inimigos. Mas as suspeitas
não demorariam a reativar-se diante dos sucessos obtidos
por Juliano e da glória que lhe proporcionavam. Ganharam
força as influência malignas que cercavam o imperador,
influências que, com a morte de bela Eusébia, não
encontravam mais nenhum freio. Não tenho dúvida de que
a ordem repentina e inoportuna de Constâncio,
requisitando para o Oriente, de uma hora para outra, a
melhor parte do Exército da Gália, foi inspirada no desejo
de tramar a perdição de Juliano. É verdade que a situação
de Constâncio no Oriente, depois da queda de Amida, era
escabrosa.72 A Mesopotâmia corria o risco de ser
inteiramente invadida pelos persas. Mas o que faltava a
Constâncio não eram soldados, mas uma direção sábia da
guerra, o que era impossível com as insinuações caluniosas
dos eunucos que cercavam o imperador, dos quais Amiano
pinta um curioso retrato.73

De todo modo, embora Juliano tivesse conseguido, por seu


próprio valor, expulsar os germanos de volta para o outro
lado do Reno e devolver a paz à Gália, sua situação ainda
era perigosa. Se deixasse a Gália sem uma defesa
adequada, as invasões certamente recomeçariam.74 Ao
tentar enfraquecer o César diante de um perigo
renascente, Constâncio queria vê-lo coberto de vergonha,
tal como ele, no Oriente, com a queda de Amida.
Mas a consideração mais forte é que, se a intenção hostil
do imperador contra ele não fosse evidente, Juliano não
teria se rebelado, pois não tinha nenhum interesse nisso.
Em posição de destaque, único herdeiro da família de
Constantino, ainda muito jovem, coberto de glória e
adorado pelos soldados, Juliano só precisava esperar.
Constâncio, quinze anos mais velho que ele, não tinha
filhos. O Império acabaria caindo em seu colo
naturalmente. Já a rebelião o expunha aos perigos de uma
guerra civil, que muito provavelmente terminaria em
desastre para ele. Parece evidente, portanto, que foi levado
a rebelar-se pela necessidade de salvar a própria vida. Em
vez de entregar-se à ameaça que pendia sobre sua cabeça,
resolveu enfrentar o perigo. Em seus preparativos para a
rebelião, talvez tenha desempenhado um papel maior que
aquele que queria deixar transparecer. Mas seria injusto
jogar a responsabilidade sobre ele.
Estou tão convencido disso que não hesito em crer na
sinceridade de suas tentativas de acordo e negociação com
Constâncio, visando a evitar a guerra civil. O risco era
grande demais, demasiado incerta a sorte de um embate
entre os dois rivais para que Juliano, na temperança e na
clareza de seu pensamento, não buscasse todos os meios
para evitá-lo. Como mostra Amiano, confirmado pelas
palavras do próprio Juliano, ele fez isso com uma razoável
fartura de propostas.
Amiano transmite-nos o texto da carta que Juliano
escreveu a Constâncio para dar notícia dos acontecimentos
e propor condições aceitáveis. As condições eram as
seguintes: Constâncio precisava reconhecer e sancionar os
fatos; Juliano comprometia-se a mandar-lhe todo ano uma
ajuda em homens e cavalos; Constâncio nomearia o prefeito
da Pretoria, ou seja, o primeiro-ministro da Gália, mas
todos os outros empregados militares e civis seriam
nomeados por Juliano. No fim da carta, Juliano demonstra a
inconveniência e o perigo da decisão de levar para o
Oriente as tropas gálicas, habituadas aos seus países e
ainda necessárias para a defesa da própria Gália. Expressa
a esperança de que a concórdia entre os dois príncipes seja
vantajosa para a glória de ambos e a saúde do Império.75

Os dois mensageiros de Juliano, Pentadio e o fiel Eutério,


encontram Constâncio em Mazaca, cidade da Capadócia,
ocupado com os preparativos para a guerra persa.
Comunicado em audiência solene do teor da carta de
Juliano, Constâncio explode numa fúria terrível e expulsa
os embaixadores sem perguntar nem ouvir nada. Envia a
Juliano, como embaixador, o questor Leona com uma carta,
na qual ordena que se contenha nos limites de sua
concedida autoridade de César. Como prova de sua decisão
de não ceder nada de seus direitos, apresenta uma longa
lista com nove nomeações para os diversos cargos do
governo da Gália.76
Juliano, que sabia representar regiamente o papel de
pretendente e rebelde, reúne os soldados e os cidadãos no
campo militar para a leitura do édito de Constâncio.
Quando a leitura chega ao ponto em que o texto diz que
Juliano deve limitar-se à autoridade de César, um imenso e
terrível clamor explode por todo lado e todos, soldados e
cidadãos, gritam: “Juliano Augusto, conforme a vontade da
província, do Exército e da República!” Vendo a situação
desesperada, Leona resolve partir. Em conformidade com
as condições oferecidas por ele mesmo em sua carta,
Juliano aceita Nebrídio como prefeito da Pretoria, mas
cancela todas as outras nomeações de Constâncio, usando
sua autoridade para designar os escolhidos para os outros
cargos.77
O incansável Juliano não descansa na nova e suprema
dignidade da qual foi investido. Antes que o inverno
recomece, reatravessa o Reno numa rapidíssima e bem-
sucedida campanha contra algumas tribos de francos e
depois, dispostas as defesas necessárias, vai passar o
inverno em Vienne.
No inverno de 360 a 361, Juliano ainda não está decidido
a tomar a iniciativa da guerra contra Constâncio.
Entrementes, celebra com grande pompa o quinto
aniversário de seu governo na Gália e aparece diante do
povo e dos soldados com a cabeça coroada por um
esplêndido diadema de pedras preciosas. Contudo, em meio
aos festejos, é atingido por uma grave infelicidade: a morte
de sua esposa Helena, causada por um lento veneno,
ministrado, segundo Amiano,78 três anos antes, em Roma,
pela ciumenta Eusébia, que não pretendia matá-la, mas
impedir que tivesse filhos. Terrível acusação que ilumina
com luz fosca o drama de amor que parece permear a
tempestuosa existência do filósofo imperial.*8
Mas um fato novo surge para resolver a incerteza e a
preocupação de Juliano, convencendo-o de que estava
mesmo exposto ao mais grave perigo. Descobre que
Constâncio conspirava contra ele com os reis bárbaros. Se
não tomasse a iniciativa rapidamente, antes que os acordos
estivessem maduros, acabaria cercado por todo lado e
obrigado a combater ao mesmo tempo os Exércitos
germânicos e o Exército de Constâncio, coligados contra
ele. Depois de apossar-se da correspondência entre
Constâncio e o rei Vadomário, ele arma uma cilada e
consegue prender este último e desmontar a trama.79
Juliano escreve aos atenienses:
Constâncio instigava os bárbaros contra mim, dizendo-me
inimigo deles, e pagava para que devastassem a Gália.
Escrevia a seus lugares-tenentes na Itália dizendo para
desconfiar dos que vinham da Gália e ordenando que
reunissem grande quantidades de trigo nas cidades
próximas das fronteiras da Gália e que o mesmo fosse
feito nos Alpes Cócios, como se pretendesse marchar
contra mim. Isso não são apenas palavras, são fatos
constatados. Tive em mãos, trazidas pelos próprios
bárbaros, as cartas que ele escrevia e apossei-me das
provisões preparadas.80
É verdade, continua Juliano, que Constâncio enviou-lhe o
bispo Epíteto com a promessa de vida salva e segura, mas
sem dar sua palavra de concordância e reconhecimento dos
fatos consumados. E quanto aos juramentos de Constâncio,
eles eram tão fugazes para Juliano como palavras escritas
sobre cinzas. Por outro lado, conclui Juliano, “se, por
querer ficar na Gália e evitar o perigo, eu acabasse cercado
por todos os lados, rodeado pelos Exércitos bárbaros e
encurralado na frente dos dele, estaria perdido e perdido
com vergonha, o que, para os sábios, é a pior das
desgraças”.81
Talvez haja um pouco de exagero na acusação de Juliano
de que Constâncio tramava acordos secretos com os
bárbaros contra ele. Segundo Amiano, tudo se reduz ao
episódio de Vadomário. A tal correspondência entre
Constâncio e os reis bárbaros, que Juliano afirma ter em
mãos, seria apenas a carta de Vadomário, que, sempre
segundo Amiano, não parece ter grande importância. É
verdade que Libânio82 dá muito peso ao episódio, vendo
nele o indício de uma vasta conspiração. Mas Libânio,
sempre interessante ao descrever ambientes, não merece
muita fé como narrador de fatos, pois muitas vezes a
retórica conduz sua mão. É provável que Constâncio não
rejeitasse a ideia de ter um bárbaro como aliado contra o
incômodo primo, e é mais provável ainda que o astuto
Vadomário corresse ao encontro do desejo do imperador.
Mas, sem cometer nenhuma injustiça com o nosso herói, é
lícito acreditar que em seus relatos posteriores ele
aumentasse muito as coisas para justificar sua própria
conduta. E a bem da verdade, se Constâncio ainda não
havia cometido esse crime de lesa-pátria, ele possuía todas
as competências para delinquir. Juliano sabia disso muito
bem.
Durante esses meses de incerteza em Vienne, Juliano
manteve uma conduta religiosa que lhe causou uma grave
acusação, como um ato de absoluta impostura. Ele ainda
hesitava a respeito do momento oportuno para deflagrar a
guerra civil, mas considerava que era inevitável. Era,
portanto, natural que tentasse ter o maior número possível
de apoiadores ao seu redor, que não quisesse criar inimigos
que pudessem atrapalhar a preparação da ação. Ora, como
sabemos, Juliano havia se convertido ao paganismo há
tempos. Embora mantivesse a coisa escondida por
prudência, os rumores circulavam e os partidários do
mundo antigo viam neles um motivo de satisfação e
esperança. Porém, nas circunstâncias difíceis em que
estava, Juliano não queria conflito com os cristãos, que
provavelmente já sussurravam contra ele e temiam sua
vitória. Achou necessário, portanto, dar-lhes uma satisfação
para desarmar a suspeita. No dia da Epifania, solenemente
comemorado pelos cristãos de Vienne, Juliano entrou no
templo e fez ato público de fé, rezando ao deus cristão:
“feriarum die, quem celebrantes, mense Januario,
Christiani Epiphania dictant, progressus in corum
ecclesiam, solemniter numine orato, discessit.” [No dia de
festa que os cristãos celebram no mês de janeiro e
denominam Epifania, ele foi até a igreja deles e só partiu
depois de oferecer preces aos deuses à maneira deles.]83
Não se pode negar que, naquele momento, a razão de
Estado prevalecia sobre a voz da consciência no espírito de
Juliano. Mas não há dúvida de que, do ponto de vista
religioso, tratava-se de uma ação reprovável. Juliano não
era apenas um político, era um filósofo, um pensador. Sua
consciência de pensador e filósofo protestava contra a
transigência, mas na vida às vezes é impossível escapar das
contradições. Naquele momento supremo da vida de
Juliano, o imperador e o filósofo entraram em choque e a
força das coisas determinou que o imperador calasse o
filósofo.
Mas este filósofo, se é possível usar esta palavra para um
místico entusiasta, teve, em segredo, a sua revanche .
Quando chegou a hora da decisão suprema, antes de reunir
so soldados para anunciar a partida para o Oriente e a
declaração de guerra contra Constâncio, ele fez
secretamente um sacrifício a Belona.84 Em seguida,
sentindo-se consagrado e seguro para a arriscada empresa,
apresentou-se diante do Exército. Expôs o plano de
atravessar a Ilíria para chegar à Dácia, enquanto aquelas
regiões ainda estavam sem defesa. Lá chegando, decidiria o
que fazer em seguida. Pediu aos soldados que se
mantivessem fiéis a ele, que já os conduzira a tantas
vitórias. O discurso de Juliano é recebido com imenso
aplauso;85 os soldados, brandindo as espadas, juram
solenemente que estão prontos a dar a vida por ele e, atrás
dos soldados, todos os chefes e todos os funcionários.
Nebrídio é o único que se recusa a segui-lo, declarando-se
muito ligado a Constâncio por antigos benefícios recebidos.
Juliano salva o honesto legitimista da ira dos soldados, mas
quando, de volta ao palácio, vê que ele se aproxima e pede
que, em sinal de benevolência, lhe conceda a honra de
apertar sua mão, ele recusa com ironia não desprovida de
amargura: “Acreditas realmente que conseguirás escapar
destes amigos que tanto aprecias se souberam que tocaste
minha mão? Sai daqui em segurança, para onde
quiseres”.86
Decidida a ação contra Constâncio, Juliano a executa com
uma rapidez fulminante e uma audácia que revela que,
quando necessário, aquele meditabundo sonhador era
capaz de transformar-se num admirável homem de ação.
Trata de não deixar a Gália indefesa, entregando-a, junto
com o grosso do Exército, às mãos fiéis e hábeis de
Salústio. Em seguida, para dar a impressão de que
avançava contra Constâncio com forças imensas, dividiu os
soldados em três esquadrões, dos quais um, sob o comando
dos generais Jovino e Jóvio, atravessaria a Itália
setentrional; outro, guiado por Nevita, passaria pela Récia,
enquanto no terceiro, com um manípulo de confiança, ele
seguiria por Basileia, pela Floresta Negra, até chegar à
margem do Danúbio.87
Seguiria, então, pela margem até encontrar um ponto
navegável para continuar sua viagem, sem parar em
nenhuma cidade ou acampamento, pois para ele e para sua
pequena tropa bastavam as provisões que carregavam
consigo. Enquanto isso, na Itália e na Ilíria, espalhava-se a
notícia de que Juliano, depois de aniquilar os inimigos da
Gália e da Germânia, avançava com um poderoso Exército.
Esse boato foi suficiente para semear medo e confusão e
fez fugir de suas bases na região dois dos mais altos
funcionários de Constâncio, cuja imagem já estava
comprometida diante de Juliano, ou seja, o famoso
Florêncio e Tauro, cúmplice dos acordos de Constâncio com
os reis bárbaros.88
Libânio narra que Constâncio, que não admitia nenhuma
possível conciliação, guarneceu todos os caminhos pelos
quais Juliano poderia vir da Gália ao Oriente.
Mas ele, evitando as vias habituais vigiadas pelos
inimigos, escolheu outro caminho, insólito, breve e cheio
de obstáculos, esperando que Apolo o guiasse e
aplainasse os trechos difíceis. Assim, escapando dos que
pretendiam detê-lo, só apareceu no momento certo como
se brotasse do abismo, como um peixe que escapa da
rede e se esconde sob as ondas do mar, sem ser visto
pelos que estão na praia.89
Em outro trecho, o retórico exprime todo o assombro dos
contemporâneos com a audaciosa novidade da via escolhida
por Juliano.
O que devemos admirar mais? A tua perspicácia; a
coragem de teus seguidores; a nova via na qual, quase
sempre navegando, enquanto te esperavam em terra, só
deste pistas de tua intenção quando já era fato
consumado; ou a navegação em meio aos povos bárbaros,
a beleza dos dons que te ofertavam nas margens do rio
quando tua frota se aproximava navegando? Amo o
Danúbio, que a mim me parece mais belo que o Enípeo,
mais útil e fecundo que o Nilo, pois sustentou sobre suas
ondas propícias os navios que portavam ao mundo a
liberdade.90
No baixo Danúbio, em Sírmio, capital da província, depois
de reunir às pressas os poucos soldados disponíveis nas
cidades vizinhas, Luciliano pensava em resistir contra o
inesperado invasor. Mas Juliano chegou na escuridão da
noite a Bonônia, atual Banostor, vizinha a Sírmio,
desembarcou e mandou Dagalaifo surpreender Luciliano. A
manobra foi completamente bem-sucedida e Luciliano foi
trazido à presença de Juliano. O general de Constâncio
estava atônito e trêmulo, mas Juliano estendeu-lhe
cortesmente a púrpura para que a beijasse. Tranquilizado e
orgulhoso, Luciliano exclama: “É uma empresa incauta e
temerária, ó imperador, arriscar-te com uns poucos em
regiões estranhas!” E Juliano, com um sorriso amargo,
responde: “Guarda para Constâncio as tuas palavras de
prudência. Não estendi à tua pessoa a insígnia da minha
majestade porque queria teus conselhos, mas para que
deixasses de ter medo.”91
Na mesma noite, Juliano avançou até Sírmio. E eis que
todos os cidadãos e os soldados vieram ao seu encontro
com tochas e flores, aclamando-o Augusto e conduzindo-o
ao palácio real. Contente com esse primeiro e grande
sucesso, Juliano abre uma exceção em sua severidade e
oferece ao povo um espetáculo de corridas. Mas, no
terceiro dia, impaciente depois de tanto descanso e
adiamento, parte para ocupar o passo de Succi, nos Bálcãs,
a fim de controlar a estrada de Constantinopla, e deixa a
defesa da posição nas mãos do fiel Nevita. Retorna a Nissa
para organizar a administração da Panônia Segunda, que
agora está em seu poder, e convoca o historiador Aurélio
Vítor para governá-la. Envia ao Senado de Roma um
manifesto no qual faz suas acusações a Constâncio,
comunica e justifica sua assunção ao trono do Império.92
Nesse ínterim, a posição militar de Juliano começou a
despertar preocupação. Havia em Sírmio duas legiões de
cuja fidelidade ele não estava seguro. Pensou em livrar-se
delas, enviando-as para a Gália. Mas a nova destinação não
agradou nem às legiões nem a seu chefe, Nigrino, natural
da Mesopotâmia. Eles partiram de Sírmio, mas quando
chegaram a Aquileia fecharam as portas da cidade e
declararam seu apoio a Constâncio, em comum acordo com
os moradores.93
Aquileia era uma cidade fortificadíssima, cujo assédio
demandaria muito tempo. Juliano ordenou a Jovino, que
chegava da Itália com o grosso das tropas, que parasse nos
arredores de Aquileia e arranjasse um modo de afastar o
perigo. Enquanto isso, o horizonte ganhava tons sombrios
na própria Trácia. As tropas de Constâncio reorganizavam-
se, chegando perto do passo de Succi, conduzidas por
Marciano. Se Constâncio chegasse do Oriente antes que
Juliano derrotasse os Exércitos vizinhos, este último estaria
perdido. Mas, a bem da verdade, Libânio não duvidava de
que, mesmo no caso de uma batalha entre os dois, a vitória
seria de Juliano. “Ainda que a disputa tivesse de ser
resolvida a ferro e fogo, o resultado não seria diverso.
Apenas haveria perda de sangue, mas pouco e vil, pois, à
parte algumas poucas fileiras ganhas por Constâncio, todos
os soldados viviam para ti e pareciam correr em tua
direção para serem organizados e conduzidos por ti.”94
Juliano não partilhava dessa segurança, provavelmente
inspirada pela adulação e também pelo afeto que ligava
Libânio ao vencedor. Ao contrário, sentindo a extrema
gravidade da situação, ele resolve deixar a tomada de
Aquileia para depois e chamar para perto de si o Exército
que esperava na Ilíria, um Exército fiel e provado nas
árduas campanhas bárbaras. Com uma atividade realmente
genial de capitão e de organizador,95 ele já está se
preparando para uma guerra desesperada, quando um
acontecimento inesperado dispersa a tempestade,
elevando-o, de repente e sem disputa, aos píncaros da boa
fortuna.
No momento em que Juliano se aproximava de
Constantinopla como usurpador, Constâncio estava em
Edessa, envolvido na guerra contra os persas. Chega a
Edessa o anúncio de que Juliano, depois de percorrer
rapidamente a Itália e a Ilíria, já havia ocupado o passo de
Succi e estava em vias de invadir a Trácia. O espanto e o
furor alternam-se no espírito de Constâncio, mas ele não
era homem de deixar-se abater por discórdias domésticas e
civis. Reúne o Exército, expõe a traição de Juliano e
convoca os soldados a punir o rebelde.96
É aclamado pelo Exército e, depois de acomodar as
dificuldades persas da melhor forma possível, envia, com
um grupo de elite das tropas, os generais Arbício e
Gomoário, este último inimigo pessoal de Juliano, com a
intenção de segui-los de perto. Ruma para Antióquia e,
impaciente com os mínimos atrasos, incapaz de suportar
qualquer repouso, perturbado por obscuros
pressentimentos, não demora a partir para Tarso. Abalado
pelo cansaço, pela ira e pela emoção, apresenta uma leve
febre ao chegar a Tarso, mas afirma que o movimento lhe
fará bem e segue adiante, chegando, por um caminho
difícil, a Mopsuéstia, na fronteira da Cilícia. Pretende partir
de novo no dia seguinte, mas a violência da febre o impede.
Em pouco tempo, vem a falecer, designando como sucessor,
segundo as narrativas, no único ato generoso de toda a sua
vida, o primo rebelde, Juliano. Assim que Constâncio morre,
os chefes do Exército reúnem-se e resolvem enviar até
Juliano dois embaixadores, Teolaifo e Aligildo, que, em
nome do próprio Exército, deveriam convidá-lo a assumir,
sem demora, a senhoria de todo o Império.97
Depois de receber a inesperada embaixada com grande
entusiasmo, in immensum elatus, como diz Amiano, Juliano
não perde tempo e parte para Constantinopla com todos os
seus soldados e seguido por uma multidão. Era uma
alegria, um triunfo nunca visto. Parecia a procissão de um
deus. A passagem das angústias de uma guerra terrível, de
um combate pelo Império, para uma consagração pacífica
com o consenso de todos foi tão rápida que parecia um
milagre.
Quando se soube em Constantinola, narra Amiano, de sua
próxima chegada, o povo todo saiu para encontrá-lo, sem
distinção de sexo ou idade, como se esperasse uma
aparição celestial. Recebido no dia 13 de dezembro, entre
as devotadas homenagens do Senado e os aplausos das
massas populares, em meio a fileiras de armados e de
togados, Juliano prosseguia no meio de uma multidão
ordenada, e todos os olhos voltavam-se para ele com
grande admiração. De fato, parecia um sonho que aquele
jovem de figura exígua, já ilustre por suas heroicas
façanhas, depois de sangrentas lutas contra reis e povos,
passando com presteza nunca vista de cidade em cidade,
tivesse o domínio fácil e a pronta adesão de homens e
coisas e, por fim, a um sinal divino, assumisse o Império
sem nenhum ônus para a fortuna pública.98
Quem poderia prever que, em menos de dois anos, aquele
sonho desapareceria e aquele jovem, para quem parecia se
abrir um futuro cheio de glória e fortuna, estaria morto,
sem deixar de si mais que a lembrança de ter desperdiçado
suas forças e suas qualidades maravilhosas numa louca
tentativa de restauração religiosa!
Depois de entrar triunfante em Constantinopla, Juliano
dedicou-se, antes de tudo, a purificar o ambiente político e
moral. Mas não foi feliz, ou pelo menos não se mostrou
imune aos hábitos de seu tempo. Deixou-se transportar pelo
sentimento de vingança. Sancionou as condenações
pronunciadas por uma comissão de inquérito nomeada por
ele para julgar os homens mais influentes do reino de
Constâncio, entre os quais ele tinha ou supunha ter
inimigos pessoais. O honesto Amiano deplora acerbamente
algumas dessas condenações e joga a culpa sobretudo em
Arbácio, general de Constâncio, homem desleal e perverso,
que Juliano havia cometido o erro de chamar para perto de
si e que tentava ganhar as graças do novo patrão com
excessos de rigor e tentativas de atiçar os rancores de
Juliano. Este triste episódio é uma mancha na carreira de
Juliano. Contudo, como os detratores de Juliano fazem disso
um argumento para ofuscar sua fama, devemos observar,
em primeiro lugar, que, mesmo sendo um homem superior,
Juliano pertencia ao seu tempo. Ainda que possamos
considerá-lo mais generoso, não podemos esquecer que,
vindo depois de imperadores crudelíssimos, como
Constantino e Constâncio, ele seguiu, num único momento
e minimamente, o exemplo deles. Das cinco condenações à
morte sancionadas por ele, três, de Apodêmio, Paulo e do
eunuco Eusébio, são aprovadas até por Amiano, tantos e
tais eram os crimes desses cortesãos de Constâncio. A
condenação de Paládio não parece suficientemente
justificada, mas verdadeiramente reprovável, segundo
Amiano, é a de Úrsulo, oficial preposto às subvenções de
Constâncio durante as campanhas persas e cuja parcimônia
havia conquistado o ódio do Exército.99

Certamente, Úrsulo foi vítima de uma vingança de Arbício,


mas Juliano, com criticável fraqueza, não teve coragem de
salvá-lo. Teve remorso depois e tentou jogar a culpa da
injustiça cometida em irreprimíveis ressentimentos
militares,100 além de, como narra Libânio,101 recuperar sua
memória, permitindo que a filha ficasse com grande parte
dos bens paternos. Além dessas, não houve outras
condenações à morte. Os muitos inimigos que nunca
cessaram de lançar acusações e calúnias contra ele foram
condenados simplesmente ao exílio, o que deu a Libânio a
oportunidade de exaltar a clemência de Juliano ao poupá-
los, contentando-se em mandá-los viver nas ilhas, onde
“perambulando solitários aprenderiam a segurar a
língua”.102
Mas se tais represálias não são louváveis, embora
justificadas seja pelos costumes da época, seja pelos
compreensíveis ressentimentos de Juliano, tão ferozmente
combatido pela vida afora, e se a condenação de Úrsulo foi
definitivamente reprovável, parece, ao contrário, digna de
elogios a rapidez com que ele livrou a corte de
Constantinopla das multidões de parasitas que lá viviam
com enormes salários, amontoando riquezas ganhas
desonestamente.103
Amiano, que não poupa seu herói de críticas, observa que
ele foi precipitado nessa obra de saneamento, deixando de
demonstrar o espírito indagador e prudente de um filósofo.
Mas o retrato que ele faz da corrupção na corte de
Constâncio pode justificar a depuração radical realizada
por Juliano. Essa depuração é considerada por Libânio
como um dos atos mais louváveis de Juliano. A descrição
que o retórico de Antióquia faz da corte de Constâncio é
ainda mais espantosa que a de Amiano.
Via-se ali uma multidão ociosa, descaradamente
sustentada, mil cozinheiros, um número não menor de
barbeiros, ainda mais numerosos os copeiros, enxames de
trinchadores, de eunucos, mais densos que as moscas
sobre os rebanhos na primavera e que as inumeráveis
vespas de todas as espécies. Para os ociosos e glutões não
havia refúgio mais seguro que estar inscrito entre os
servidores do imperador.104

E toda essa turba vivia e prosperava à base de prepotências


e excessos.*9
Finalmente, Juliano consegue pôr em prática o voto mais
ardente de seu coração, aquele que era o movente secreto
de todas as suas ações.
Quando chegou o tempo de fazer o que queria, ele
revelou os arcanos de seu peito e, com decreto explícito e
absoluto, estabeleceu que fossem abertos os templos, que
as vítimas fossem apresentadas nos altares e que o culto
dos deuses fosse restaurado. E para tornar essas
disposições mais eficazes, convocava os bispos cristãos
dissidentes ao palácio, com suas plebes, e advertia
cortesmente que, mitigadas as discórdias entre eles, cada
um poderia servir a própria religião sem medo. Juliano
fazia isso na convicção de que a licença aumentaria as
discórdias entre eles e assim ele não precisaria temer,
mais tarde, uma plebe unânime contra ele. Sabia por
experiência própria que não existem feras mais ferozes
contra os homens do que os cristãos entre si.105
Retornaremos adiante a este ato tão curioso para um
imperador que pretendia restaurar o paganismo. Por ora,
vamos segui-lo em sua vida política.
Nos meses em que esteve em Constantinopla, Juliano
zelava com sua admirável operosidade pela administração
da justiça, mas não descuidava dos assuntos militares,
equipando o curso do Danúbio com as defesas necessárias
e com guarnições eficientes contra eventuais ataques dos
godos. Alguns aconselhavam-no a organizar uma incursão
contra estes bárbaros, de modo a debelá-los para sempre,
mas ele dizia que queria inimigos melhores. Era guiado,
como veremos, por um preconceito que iria conduzi-lo à
ruína.
Entretanto, a fama de seu poder e de sua sabedoria
espalhava-se pelo mundo inteiro e ele era procurado por
embaixadores das regiões mais distantes, da Índia e do
misterioso Oriente, do Norte e das regiões do Sol, trazendo
homenagens e presentes, pedindo paz e amizade.106 Mas
Juliano não era homem de viver satisfeito e tranquilo no
meio de tanta bonança. Sonhava com árduas proezas e
glórias. Nele conviviam, como já vimos, dois homens, o
pensador e o homem de ação, que tinham, no exercício de
suas faculdades, a mesma inquietação e a mesma
intensidade de vida. A ideia de reerguer o helenismo,
objeto de seu mais vivo afeto, não bastava para preencher
sua existência. O soldado, o capitão exigiam sua parte,
empurrando-o para os grandes feitos. Ora, Juliano era um
homem de seu tempo e partilhava as antigas tradições do
mundo greco-romano, inclusive o preconceito que, junto
com a necessidade de fugir da cidade que lhe recordava
seus crimes,107 levou Constantino a transferir a capital de
Roma para Bizâncio: a ideia de que o centro de gravidade
do mundo civil era o Oriente. Portanto, o Oriente exigia as
maiores defesas, pois ali o perigo era maior e era ali que a
civilização seria conservada e salva. As invasões e revoltas
bárbaras que forçavam os Exércitos imperiais a lutas
contínuas ao norte dos Alpes e ao longo das margens do
Reno e do Danúbio não eram, em sua maioria, graves e
jamais comprometeriam o conjunto do Império. Embora
tivesse lutado durante cinco anos, corpo a corpo, contra os
germanos, Juliano também não foi capaz de avaliar o
tamanho do perigo e não pressentiu a aproximação da
revolução no mundo. Impregnado até a alma de cultura
helênica, era como se estivesse vivendo no tempo em que a
Grécia havia salvado a civilização ocidental, resistindo com
imortal heroísmo aos Exércitos de Dario e de Xerxes. A
ideia de renovar aquelas lutas gloriosas e derrotar a
potência persa, que ressurgia ameaçadora, era uma
atração irresistível. Mas ele era vítima de uma ilusão. A
Pérsia era uma força quase esgotada, que, de qualquer
modo, jamais seria capaz de colocar a segurança do
Império em sério risco. Bem diverso era o perigo bárbaro.
Um imperador de gênio deveria atacar o mal pela raiz,
afastando do Império a ameaça de invasões destrutivas. Se
Juliano, seguindo o iluminado conselho que o fiel
Salústio108 lhe mandava da Gália, tivesse deixado os persas
em paz e, cruzando o Danúbio, tivesse dominado
radicalmente os godos e instalado no interior da Panônia
um centro orgânico de civilização e colonização que
impedisse o movimento das hordas orientais sobre os povos
germânicos e o consequente deslocamento destes últimos
de seu território, talvez tivesse realmente salvado a
civilização. Poderia também retornar à sua Gália e, senhor
absoluto de todas as forças do Império, fazer dela o ponto
de partida para a invasão e a sujeição da Germânia,
empurrando na direção contrária, ou seja, para a Pérsia e
para a Índia, o movimento de imigração que acabou sendo
fatal para o Império e para a civilização. Mas Juliano só via
e só pensava na Pérsia. O rei Chapur, ou Sapor, como é
chamado por Amiano, tomou a iniciativa da guerra contra o
Império em 337. Durante todo o seu reinado, Constâncio
havia sido atormentado por essa preocupação, pois a
guerra arrastava-se de mal a pior sem chegar a uma
conclusão definitiva. Quando Juliano, já abertamente
rebelde, entrou em ação contra o primo, este só pôde
contra-atacar porque tinha acordado uma trégua com o rei
Sapor, se não formalmente, pelo menos por entendimento
tácito. Mas a situação era tão incerta que, aparentemente,
justificava o movimento que Juliano pretendia realizar. A
infeliz campanha de Constâncio contra os persas, na qual,
apesar da grandeza dos preparativos, ele só tinha dado
provas de fraqueza e de medo, aumentou de tal modo o
prestígio do nome persa que conseguiu paralisar
totalmente a energia do Exército imperial. Libânio109 pinta
um quadro muito vivo do abatimento dos soldados, fruto
dessa consciência da superioridade dos persas. “Era tão
grande e tão arraigado neles o temor dos persas,
acumulado em muitos anos, que se podia dizer que tinham
medo deles até pintados.” É certo que esse estado do
espírito militar foi um estímulo a mais para o heroico
Juliano mergulhar na empresa, com o propósito de
reerguer o moral das tropas graças ao vigor da conduta e
ao exemplo da coragem. E realmente conseguiu. “Aqueles
homens tão abatidos foram conduzidos contra os persas por
este herói. Eles seguiram-no, ainda lembrados da antiga
coragem e convencidos de que seriam capazes de
atravessar intactos até mesmo o fogo, desde que seguissem
seus conselhos.”

Resolvido a ir com seu Exército para o Eufrates, o


imperador deixou Constantinopla no verão de 362 para
radicar-se em Antióquia, mais próxima do teatro de guerra,
e fazer da cidade o centro dos grandes preparativos que ele
considerava necessários para a audaciosa iniciativa. Na
viagem de Constantinopla para Antióquia, percorreu uma
região muito conhecida e muito querida por ele. Parou em
Nicomédia, chorou com o povo a ruína da cidade, antes
esplêndida, agora quase aniquilada pelo terremoto, e
reencontrou antigos amigos e companheiros de estudo.
Passou por Niceia e fez um passeio a Pessinunte para
visitar e venerar o antigo santuário de Cibele. Foi aí, à
noite, que esse homem infatigável escreveu seu longo
discurso sobre a Mãe dos Deuses, um dos principais
documentos da sua doutrina mística e mitológica. Em
seguida, passando por Ancira e Tarso, entrou em Antióquia,
orientis apicem pulchrum, “a bela coroa do Oriente”, como
é chamada por Amiano, nascido na cidade, e foi recebido
por imensas aclamações, que o saudavam como um astro
salvador recém-surgido no Oriente.
Juliano ficou em Antióquia de agosto de 362 a março de
363. Esses poucos meses constituem um dos episódios mais
interessantes de sua vida. Antióquia era uma cidade de
prazeres e de luxo. Sua população, de espírito instável,
leviana, rumorosa e maledicente, desejosa apenas de
distração e espetáculos, recebeu com entusiasmo o jovem
imperador, pois supôs que teria nele um promotor de
divertimentos, um exemplo de dissolução. O desengano foi
profundo e amargo. Juliano administrava a justiça com
extrema equidade e temperança; tratava pessoalmente das
condições econômicas da cidade, regulava os preços dos
produtos agrícolas, cuidava do abastecimento, tratava das
necessidades urbanísticas. Era, enfim, um soberano
exemplar, mas, ao mesmo tempo, vivia com uma severidade
tão grande de costumes, demonstrava tanta aversão pelos
espetáculos públicos, mergulhava em seus deveres civis e
militares com uma intensidade de trabalho e de vontade tão
absorvente, que os frívolos antioquenses passaram
rapidamente do encantamento à zombaria e ao desprezo.
Eles olhavam com cordial antipatia para aquele jovem que
recusava todas as comodidades do luxo oriental, que
ostentava rusticidade na postura e nas roupas, que usava
barba, que não possuía nenhum dos requisitos que
esperavam encontrar nele. E como sabiam que sua
impertinência não seria punida, poetastros e libelistas
aproveitaram-se da indulgência do imperador para
espalhar por Antióquia sátiras e epigramas que faziam a
delícia da frívola cidade. Mas se não puniu os
impertinentes, como outros soberanos teriam feito, Juliano
armou uma vingança alegre, que mais tarde será tema de
nosso estudo.
Finalmente, cumpridos os preparativos com ânsia febril,
distribuídas as tropas nos vários acampamentos, feitos
imensos e solenes sacrifícios a Júpiter, Juliano partiu de
Antióquia em março de 363, rumo ao Eufrates. Pouco antes
de partir, recebeu uma carta do rei da Pérsia que, alarmado
pela fama guerreira do jovem imperador, rogava que
recebesse uma embaixada sua para resolver com um
tratado as divergências entre eles. Libânio escreveu:
Todos gritavam, aplaudindo satisfeitos, que aceitasse.
Mas ele, jogando longe a carta com desprezo, disse que
negociar com o inimigo, enquanto tantas cidades
arrasadas ainda estavam por terra, seria a mais covarde
das decisões. E respondeu que não precisava de
embaixadores, pois em breve ele mesmo iria ver o rei...110

Soberba resposta, indício eloquente da completa cegueira,


da louca obstinação do apóstata obcecado, que a mão de
Deus, segundo os cristãos, empurrava para o precipício. Ao
rei da Armênia, seu aliado, ele ordena que esteja pronto
para executar as ordens que receberá em breve. Ao deixar
Antióquia, nomeia como prefeito de sua província, a Síria,
um administrador severo, Alessandro, afirmando que
somente a severidade e o rigor poderiam manter a
insolente capital em paz. À multidão que o acompanha até
as portas, desejando feliz retorno e arrependida de seu
comportamento com ele, responde acidamente que nunca
mais o veriam, pois ao retornar da Pérsia passaria o
inverno em Tarso. Mas tudo indica que os antioquenses não
se conformaram com essa ameaça de uma espécie de
decapitação de sua cidade, pois numa carta de Juliano a
Libânio, na qual ele narra a viagem até Hierápolis, vemos
que em Litarbo, sua primeira parada, ele foi alcançado pelo
Senado de Antióquia, com o qual teve uma conferência
secreta. Juliano não menciona o resultado do encontro,
reservando-se o direito de só falar do assunto com Libânio
se os deuses lhe permitirem retornar.111 Mas é certo que
discutiram a paz entre o imperador e a cidade, paz que o
retórico antioquense desejava tanto que, para promovê-la,
escreveu dois discursos, um aos antioquenses, para induzi-
los ao arrependimento das ofensas contra o imperador,
outro ao próprio imperador, para induzi-lo ao perdão.
Com a rapidez habitual, Juliano cruzou o Eufrates e
chegou a Carra, de onde partiam duas estradas, uma das
quais atravessava a Mesopotâmia de oeste a leste,
chegando até o Tigre, enquanto a outra descia para o sul,
ao longo do Eufrates. Mandou Procópio e Sebastião
seguirem a primeira, com 30 mil homens, segundo
Amiano112 e 18 mil, segundo Zósimo,113 para defender seu
flanco e reunir-se, se possível, a Ársaces, rei da Armênia.
Ele mesmo desceu o Eufrates com um Exército de 65 mil
homens. De Carra vai para Calinice, onde celebra a festa
solene da Mãe dos Deuses e recebe a embaixada dos
sarracenos, que se prosternam devotamente diante dele.
Em seguida, chega a Circésio, na confluência do Abora com
o Eufrates, onde assiste à chegada da imensa frota que
havia equipado, com mil navios de carga com provisões e
instrumentos bélicos, cinquenta navios de combate e mais
alguns com materiais para pontes.114
Em Circésio, Juliano recebe uma carta do fiel Salústio,
que ele nomeara prefeito da Gália, que suplica que não se
aventure naquela empresa funesta, que não cometa um
erro que pode ser irreparável. Juliano não dá ouvidos à voz
do amigo distante, mas em seu próprio campo, no seu
entorno, há também uma tendência contrária à expedição.
E os partidários dessa posição tentavam influir sobre o
espírito de Juliano, interpretando de maneira desfavorável
à expedição todos os sinais, todos os indícios que a
acompanhavam. Na restauração do paganismo, inaugurada
por Juliano, a superstição ocupava, como veremos, um
posto eminente. O misticismo neoplatônico, baseado na
ingerência contínua do sobrenatural nas coisas do mundo e
constituído por um complexo de mitos e símbolos, dava
uma enorme importância à ciência augural. O homem que
possuísse a chave desta ciência seria capaz de ler o futuro
nos signos que o circundavam, extraindo deles um conselho
infalível. Juliano era acompanhado, portanto, por uma
fileira de áugures e intérpretes, aos quais recorria a todo
instante. Mas, curiosamente, eles só lhe davam explicações
tendenciosas, cujo escopo era deter a expedição. Eram
oráculos que só tinham presságios de desastre e de morte.
É evidente que suas interpretações correspondiam aos
desejos e às convicções de uma parte do círculo de Juliano.
É ainda mais curioso ver como Juliano, cuja ideia fixa era
seguir adiante, interpretava os mesmíssimos sinais num
sentido oposto e favorável a seu desejo. Para afastar
qualquer hesitação, Juliano reúne o Exército e pronuncia
um discurso inflamado, respondido pelos soldados,
sobretudo as fiéis e provadas legiões gálicas, com
aclamações e gritos de entusiasmo.115
O relato dessa campanha persa escrito por Amiano, que
era parte integrante da expedição e, portanto, relatava o
que ele mesmo via, é uma das narrativas mais
interessantes entre as que chegaram até nós da
Antiguidade. Não é indigna de figurar ao lado dos
Comentários de César e da Anábase de Xenofonte. A
narrativa de Amiano é, em parte, completada pelo relato de
Zósimo,116 que, evidentemente, bebia em outras fontes
além de Amiano, e no relato de Libânio no discurso
necrológico. Este último não tem a pretensão de fazer um
relatório rigorosamente militar, como o de Amiano, ou uma
narração ordenada, embora sumária, como a de Zósimo,
mas apresenta quadros e episódios que pintam de maneira
vivaz o homem, o país, o ambiente.
O que há de mais atraente em todos esses relatos é o
espírito genuinamente heroico que move Juliano em cada
um de seus atos, em cada uma de suas palavras. A
sabedoria do comandante que tudo prevê e tudo provê, a
coragem incomparável do guerreiro, a magnanimidade do
vencedor, a completa comunhão de sua vida com a de seus
soldados, a arte com que conquista a afeição deles, ora
reprovando, ora louvando, ora exaltando a grandeza da
empresa para a qual se prepararam são dotes preciosos
que, concentrados em Juliano, fazem dele uma das mais
notáveis e nobres figuras da história, certamente a mais
admirável na decadência do Império.
Mas como era profundo o erro que arrastava Juliano para
aquela louca empreitada! Ele dizia ao Exército: “Porei os
persas sob jugo, restaurando assim o abalado orbe
romano!” Essa era uma espécie de sugestionamento que
todos os imperadores, bons e maus, transmitiam uns aos
outros. E, nesse ínterim, enquanto eles desperdiçavam suas
forças na inútil empreitada, expandia-se nas misteriosas
regiões do Norte o turbilhão que arrastaria tudo e todos.
Depois que as cidades de Anah e Macepracta
entregaram-se quase sem luta, Juliano encontrou no forte
de Pirisapora, à margem do Eufrates, a primeira resistência
obstinada. O imperador protagonizou prodígios de coragem
no cerco à cidade, lançando-se pessoalmente, sob a
couraça dos escudos, ao ataque das portas da cidade sob
uma tempestade de projéteis que caíam do alto do forte.
Como a resistência não cedeu, ele mandou construir uma
máquina gigantesca. Ela provocou um medo tão grande nos
resistentes que eles preferiram capitular e invocar a segura
magnanimidade do vencedor. Depois da tomada de
Perisapora, ele seguiu seu caminho vitorioso, vencendo
cada obstáculo e superando as dificuldades da marcha num
terreno recortado por canais de irrigação e inundado
artificialmente.117 Cercou a cidade de Maiozamalca, onde
teria sido trucidado durante uma arriscada operação de
reconhecimento da posição, se não tivesse, pessoalmente,
capacidade de defender-se.118
Como não consegue vencer a resistência da fortaleza
local com suas máquinas, resolve penetrar por meio de
uma passagem subterrânea e consegue tomar a cidade.
Superado esse ponto de forte resistência, Juliano vence
todos os obstáculos que encontra pela frente e chega a um
imenso canal escavado por Trajano para criar uma
comunicação navegável entre o Eufrates e o Tigre. Libânio
conta que Juliano já sabia da existência do canal pelo
estudo de documentos, de modo que os prisioneiros que
interrogou logo perceberam que era inútil afetar ignorância
diante de suas perguntas, revelando todos os detalhes da
construção.119
Os persas haviam fechado e parcialmente aterrado o
canal, mas ele era uma via preciosa para Juliano, pois por
ali poderia passar para o Tigre com toda a sua frota. Ele
manda reabrir o canal, por onde fluem as águas do
Eufrates, carregando os navios imperiais. Atrás deles, por
meio de uma ponte, o Exército também passa e acampa na
margem direita do Tigre. A esquerda era fortemente
defendida pelos persas e de difícil acesso, mas o audaz
imperador pensa em assaltá-la e conquistá-la. Todos os
seus capitães desaconselham a imprudente tentativa, mas
Juliano não desiste. À noite, envia alguns navios com
poucos e voluntariosos campeões para tentar surpreender
o campo inimigo. Mas o inimigo está atento e,
arremessando material inflamável, incendeia os navios. O
grosso do Exército que, na outra margem do Tigre,
esperava ansiosamente o sinal para embarcar, pensa que o
corajoso esquadrão está perdido. Mas eis que Juliano, com
sua habitual rapidez de raciocínio, percorre a frente
gritando: “Vitória! Vitória! Essas chamas são o sinal
combinado de que a manobra deu certo, de que a margem
é nossa.” Assim, arrasta consigo os soldados que correm
para os navios e, atravessando o Tigre, encontram-se frente
a frente com os persas e partem para o combate.120
Tem lugar uma grande batalha que, depois de muitas
horas, termina com uma completa vitória do Exército
romano. Juliano, que durante o dia tinha realizado
prodígios de coragem e de habilidade tática, já pode pensar
que chegou ao fim de uma gloriosa campanha que lembra
os antigos esplendores e parece realmente marcar um
reflorescimento do Império.
Mas eis que tem lugar um fato estranho, imprevisto, um
fato terrivelmente funesto que bastaria, sozinho, para
provar como era pouco equilibrada a mente daquele jovem
genial. Já era possível dizer que a campanha estava ganha.
Juliano estava às portas de Ctesifonte, a capital persa,
cidade defendida por um Exército derrotado. O prestígio
militar de Juliano era, por si só, a mais poderosa das armas.
De todo modo, o vencedor de Pirisapora, de Maiozamalca, o
mais audaz entre os comandantes não podia retroceder
diante do último esforço. O que faz Juliano? Fica cinco dias
em Abuzata, campo de sua vitória, e reúne um conselho de
guerra, que é unânime em dissuadir o imperador de tentar
a tomada de Ctesifonte. Todos dizem que seria perigoso
empenhar o Exército nessa operação, pois o rei Sapor
poderia comparecer com seu Exército, que até então estava
distante dos campos de batalha.121
Pois aquele mesmo Juliano, que não dava ouvidos aos
conselhos alheios, que só obedecia aos oráculos quando
eles previam o que ele queria, que, a despeito das preces e
dos esconjuros de todos os seus generais, não havia
desistido da arriscadíssima passagem do Tigre, desta vez
resolve capitular e renuncia, em nome de um perigo
hipotético, àquele último ato de guerra que representaria
seu final glorioso. Isso quer dizer que o abandono de
Ctesifonte já estava preestabelecido no espírito de Juliano?
Mas por quê? Talvez o inquieto aventureiro estivesse
cansado do desafio persa, que agora parecia fácil demais
ou pelo menos perdera para ele o fascínio do desconhecido.
A glória de Alexandre reluzia diante de seus olhos. Suas
aspirações não se detinham no Eufrates e no Tigre; os rios
da Índia chamavam-no como uma sedução poderosa,
justamente por ser vaga e distante. “Ele estendia o
pensamento para os rios da Índia”, diz Libânio.122
Ora, a dificuldade de proceder à tomada de Ctesifonte era
um bom pretexto para lançar o Exército na aventura de
uma ação em terrenos desconhecidos. De fato, se era difícil
seguir adiante, não era menos difícil retroceder, fazendo
todos os navios remontarem à corrente do Tigre e do
Eufrates. Seria necessário, diz justamente Libânio, usar a
metade do Exército na ação de reboque, o que teria
deixado toda a expedição indefesa diante de um assalto
persa.123
É então que Juliano elabora um plano mais louco que
audaz – abandonar as vias fluviais, que tinham sido a base
de sua operação até então, queimar a frota com todas as
provisões e máquinas para evitar que caíssem nas mãos do
inimigo e partir para o interior do país, onde sabia que
encontraria terras férteis, hortaliças e cereais abundantes.
Para quem não acredita na existência do complô persa
mencionado por Gregório de Nazianzo,124 que, aliás, com
vitoriosa zombaria, vê em Juliano uma vítima estúpida
deste complô, é possível admitir a probabilidade,
reconhecida também por Amiano,125 de que guias
ignorantes ou falsos tenham iludido e desencaminhado o
infeliz imperador, sempre muito propenso a acreditar
naquilo que o satisfazia. Estabelecido o plano com aquela
rapidez de decisão que era um elemento de sucesso nas
boas ideias, mas um precipício de ruína nas más, Juliano
partiu para a execução. Incendiou a frota inteira com seus
imensos equipamentos, conservando apena doze que
levaria consigo para a construção de pontes, e abandonou,
junto com todo o Exército, a margem esquerda do Tigre.
Mas a estrela de Juliano deixou de brilhar. Ele só tem
mais alguns dias de vida, dias de angústias terríveis,
glorificados por um heroísmo que se agiganta na
desventura. Os guias o traem e o Exército erra sem
direção. A atuação do inimigo torna a sua situação
gravíssima. Ao ver Juliano cometer o erro de privar-se por
vontade própria de sua base de operação, os persas evitam
envolver-se numa nova batalha e tratam de incendiar e
destruir sistematicamente as hortaliças e cereais das
regiões circunstantes, condenando o Exército romano à
fome, além do calor excessivo, das mordidas dos insetos e
das inundações.126
Sem a esperada ajuda da Armênia, que não chega, e
vendo que era impossível manter seu objetivo, Juliano
resolve retirar-se para o Norte, rumo a países mais
temperados que poderiam oferecer ao Exército o
necessário sustento. Num país devastado, a marcha dos
romanos prossegue por alguns dias com dificuldade,
continuamente perturbada pelos persas, que atacam a
retaguarda e os esquadrões isolados. O Exército do rei
Sapor segue a retirada dos romanos de perto. A nuvem de
poeira que se ergue no horizonte marca a sua presença. A
batalha tem lugar, finalmente, no planalto de Maranga. É
muito bonito o texto de Amiano, que assistia à batalha, com
a descrição do Exército persa, que contava com dois filhos
do rei e muitos sátrapas, das armaduras maravilhosas, dos
infalíveis arqueiros, dos espantosos elefantes. Diante desse
espetáculo assustador, Juliano readquire toda a rapidez de
raciocínio e a audácia segura do concitado Império.*10

Para impedir que, mantendo a distância, os famosos


arqueiros persas massacrem seus soldados, ele reúne a
invencível infantaria de Roma e da Gália num denso núcleo
e lança uma carga cerrada contra a frente inimiga, que não
sustenta o golpe e foge, deixando o terreno coberto de
mortos. Uma grande vitória, mas uma vitória inútil. Nos
três dias consecutivos, o Exército de Juliano fica tranquilo
nos acampamentos, para restaurar-se e curar as feridas.
Na noite do terceiro dia, Juliano, que participa de todos os
esforços de seus soldados, levanta de seu duro catre.
Estava, como sempre – admirável serenidade de espírito –
escrevendo e meditando sobre um livro de filosofia, quando
um fantasma lhe aparece. É aquele mesmo Gênio que, em
Paris, na noite de sua aclamação, ordenou que aceitasse a
coroa imperial. Mas agora Juliano o vê, aflito e com o rosto
desfeito, saindo da tenda para abandoná-lo. Homem forte
que é, não desanima. Seja feita a vontade dos deuses, diz
em seu coração. Sai ao ar livre e eis que uma estrela
cadente de brilho singular atravessa o céu e desaparece.
Quando amanhece, ele chama os arúspices etruscos para
saber o significado daquela estrela evanescente. É um sinal
funesto, respondem eles. Qualquer ação, qualquer tentativa
deve ser suspensa naquele dia.127
Mas Juliano era supersticioso mais por sistema que por
convicção. Embora nunca deixasse de interrogar os
oráculos, acabava fazendo o que já havia decidido antes.
Ele parte com o Exército assim que o dia clareia. A
longuíssima fileira já está em marcha, com os flancos
devidamente defendidos e com Juliano na extrema
vanguarda, quando chega o aviso de que a retaguarda
havia sido atacada pelos persas. Sem perder tempo
vestindo a couraça, o imperador pega um escudo e corre
para levar ajuda aos seus. Mal tinha acabado de sair,
quando fica sabendo que a vanguarda também está sob
assalto. Retorna para animá-la e reorganizá-la e eis que
também o flanco sofre um ataque inimigo. O admirável
guerreiro está em toda parte onde surge o perigo, encoraja,
dispõe, guia o assalto e consegue, mais uma vez, colocar o
Exército persa em fuga. Já convencido da vitória, Juliano
lança-se atrás deles e, erguendo os braços, esquecido de
que está desarmado, incita os soldados a segui-lo. É quando
uma lança, atirada ninguém nunca soube por quem,
transpassa-lhe o braço, para cravar-se no peito. Ele tenta
arrancar o ferro, mas cai do cavalo e é levado para a tenda.
Alguns instantes depois, acalmado o espasmo, o herói quer
retornar à batalha, mas as forças lhe faltam e ele cai de
volta no leito. Enquanto isso, a notícia do desastre difunde-
se como um raio no Exército, que adora seu imperador e
que, inflamado de ira e de dor, parte para a vingança. Os
persas são rechaçados com enormes perdas e Juliano pode
morrer em paz.
Quem lançou contra Juliano a lança mortal? A suspeita de
traição nunca foi totalmente afastada. De fato, Amiano
narra que, alguns dias depois, colocados num terreno alto
de onde podiam mandar flechas e palavras contra os
inimigos, os persas começaram a insultá-los com verbis
turpibus [palavras desagradáveis], chamando-os de
matadores do melhor dos príncipes, pois, conforme
acrescenta o historiador, corria o boato de que Juliano
havia caído sob arma romana – Iulianum telo cecidisse
romano.128 E naturalmente, junto aos amigos do imperador,
nasce a suspeita de que o golpe partira de um cristão.
Vejamos, de fato, o que diz Libânio.
A narrativa da morte de Juliano por Libânio concorda com
a de Amiano. Ele também retrata o imperador dirigindo seu
cavalo, no auge da batalha, para o local onde o ímpeto do
inimigo é maior, enviando esquadrões de soldados para
ajudar os que precisam e distribuindo os melhores entre
seus comandantes pelos pontos de combate mais feroz. A
vitória era segura. “Ai”, exclama Libânio, “ó deuses, ó
demônios, ó mudanças da fortuna, a que lembranças me
vejo conduzido! Não é melhor que me cale e interrompa o
discurso na parte mais agradável?”129
Não, continua o orador, é melhor que fale para calar uma
notícia inverídica sobre a morte do imperador. Esta notícia
diz que Juliano foi ferido por um dardo persa. Libânio
acredita, como veremos, que o golpe partiu de um dos seus
e deixa entender que se tratava de um cristão. Então, narra
Libânio, os persas, cansados e desesperançados, estavam
batendo em retirada com a pretensão de enviar alguém no
dia seguinte para tratar da paz. Contudo, tendo nascido
uma certa confusão no Exército vencedor, pois uma parte
tinha avançado demais em relação à outra, que ainda
estava na defesa, e tendo uma nuvem de poeira, soprada
por um vento repentino, obscurecido o campo de batalha,
Juliano resolveu adiantar-se, seguido por um único soldado
de serviço, para restabelecer a ligação entre as duas partes
que haviam perdido contato. Foi quando, desarmado como
estava, um dardo o atingiu e, atravessando seu braço,
penetrou no flanco, causando uma ferida mortal. “O herói
cai por terra e, vendo o sangue jorrar com ímpeto, quer
esconder o fato montando de volta no cavalo, mas como o
sangue revela o ferimento, grita que não se assustassem,
pois não era mortal. Assim falou, mas foi vencido pelo
destino cruel.”
Quem foi o agressor?, pergunta Libânio. Não foi um
persa, pois apesar dos vultosos prêmios oferecidos a quem
provasse ter desfechado o golpe, ninguém se apresentou.
“Eles nos deixaram”, diz Libânio amargamente, “buscar em
meio a nós o assassino.” E aqui vem a insinuação contra os
cristãos.
O assassino, devemos procurá-lo entre aqueles a quem
incomodava que Juliano vivesse – e eram aqueles que
viviam contra as leis –, que já haviam tramado contra ele
antes. Agora, tendo a oportunidade, cometeram o crime,
movidos por seu espírito perverso, que se sentia
impotente sob seu reinado, sobretudo no que dizia
respeito ao culto dos deuses, que eles negavam.
Dezesseis anos depois, Libânio retornou à carga em seu
discurso ao imperador Teodósio, recém-convocado para
governar o Oriente. Pretendendo convencê-lo a vingar
Juliano e desconhecendo as tendências cristãs do novo
imperador, ele tenta incitá-lo contra os cristãos, apontando-
os como culpados. E diz que Juliano foi ferido por um certo
Tajeno, que obedecia a um comando superior e esperava
uma recompensa daqueles a quem interessava que o herói
morresse,130 os quais, em meio ao pranto geral, riam de tão
grande infelicidade. A alusão aos cristãos nas palavras de
Libânio é clara e evidente; é possível, aliás, que
originalmente não fosse uma alusão, mas uma afirmação
explícita. A versão, aliás, de que Juliano teria sido morto
por instigação dos que desejavam que o culto dos deuses
fosse abolido, pois sentiam-se sufocados ao vê-los
venerados,131 era, segundo Libânio, coisa notória. Nas
praças públicas, nas esquinas das ruas, murmurava-se
sobre o planejamento do drama. Mas o silêncio imposto
pelos sucessores de Juliano impediu a revelação da
verdade.
Essas acusações de Libânio não têm a segurança de
nenhuma indicação precisa e têm contra elas o silêncio
absoluto de Amiano e de Zósimo que, não tendo nenhum
interesse no acobertamento das culpas dos cristãos, não
teriam hesitado em revelá-las, se tivessem provas. Por
outro lado, nada nos impede de supor que, na confusão da
batalha, entre as nuvens de poeira que, segundo todos os
narradores, toldavam o ar, o imperador tenha sido
casualmente atingido por uma lança que não era dirigida a
ele. Mas temos de reconhecer também que não é
despropositada a suposição de que o matador tenha sido
um cristão militante que estava entre os soldados
imperiais. O ódio dos cristãos contra um imperador que
ameaçava arrancar de suas mãos uma vitória já
conquistada sobre o mundo antigo era tão grande que
torna possível qualquer excesso. A bem dizer, cristianizado
na aparência, o mundo era tão pouco cristão, na realidade,
que os crimes de sangue não inspiravam nenhuma
repugnância e eram, às vezes, não apenas tolerados, mas
justificados e louvados pelos próprios cristãos. Prova
luminosa disso são as palavras do historiador eclesiástico
Sozomeno, escritas um século depois da morte de Juliano.
Ele reproduz o trecho de Libânio e em seguida acrescenta:
Ao escrever assim, Libânio dá a entender que o assassino
de Juliano era um cristão. E talvez seja verdade, pois não
é improvável que alguém que estivesse no Exército tenha
pensado que os gregos e os homens em geral sempre
elevaram aos céus os matadores dos tiranos, os que
correm o risco de morrer pela liberdade de todos e assim,
corajosamente, ajudam os cidadãos, os parentes, os
amigos. Quem poderia, portanto, censurar alguém que se
torna intrépido por seu deus e pela religião que lhe é
cara?132

Sozomeno continua dizendo que ele não sabe de nada com


certeza, mas que não há dúvida de que o assassinato
ocorreu por vontade divina. E descreve visões milagrosas e
previsões que atestam claramente a intervenção da
divindade.

A morte de Juliano, tal como é descrita por Amiano, que


provavelmente foi testemunha, pois estava no Exército, é
digna deste grande herói.133 Ele reúne ao seu redor os
amigos e familiares, consternados e em prantos, e profere
um discurso, retocado, é bem verdade, por Amiano, mas
que reproduz os pensamentos e sentimentos do imperador
moribundo. Juliano mostra-se alegre por morrer e recebe
sem lamentos a vontade divina.
Chegou para mim o momento, ó amigos, de separar-me
da vida que eu, como um devedor de boa-fé, exulto em
restituir à natureza. Convicto do que dizem os filósofos,
de que a alma vale mais que o corpo, penso que não
devemos lamentar, mas alegrar-nos todas as vezes em
que o melhor se liberta do pior. Penso igualmente que os
deuses concederam a morte como o maior dos prêmios
para alguns homens piedosíssimos. E considero como um
favor precioso não ter de sucumbir diante de árduas
dificuldades e não ter nunca me rebaixado ou
prosternado, conhecendo por experiência como as dores
pressionam os covardes, mas são vencidas pelos
impávidos. Não me arrependo de nada que tenha feito,
nem me oprime a lembrança de nenhum delito grave, seja
nos tempos em que estava relegado à sombra e aos
cantos miseráveis, seja nos tempos em que tive nas mãos
o Império. Ele me foi concedido paternalmente pelos
deuses e eu soube, creio, conservá-lo imaculado,
governando com temperança as coisas civis e só fazendo
a guerra por motivos claros, embora nem sempre a
prosperidade acompanhe a conveniência dos conselhos,
pois os poderes divinos têm sob seu arbítrio os eventos
que infuenciam as ações. Convencido de que o objetivo de
um justo Império é a felicidade e a saúde dos súditos,
sempre escolhi uma conduta equânime e quis, com meus
atos, exterminar a licensiosidade que corrompe os
costumes e as coisas. Fui, alegre e intrépido, para onde a
República, como mãe imperiosa, me enviava e mantive-
me firme, habituado a desafiar o turbilhão do acaso.
Venero o sempiterno nume que me faz morrer não por
alguma insídia clandestina, nem pelo tédio de uma longa
enfermidade ou condenado pelos outros, mas me concede
esta esplêndida partida do mundo, em pleno curso de
glórias ainda florescentes.

Aqui lhe faltam as forças e ele termina desejando uma


escolha feliz daquele que deve sucedê-lo. Depois, distribui
placidamente as suas coisas entre os companheiros mais
fiéis, lamenta ao saber da morte do amigo Anatólio em
batalha, reprova amorosamente os que choram ao redor,
impõe silêncio e, discutindo a natureza sublime da alma
com Máximo e Prisco, expira tranquilamente. Libânio, que
também descreve a morte heroica de Juliano, exclama: “A
cena era semelhante à da prisão de Sócrates. Os presentes
pareciam os discípulos que acompanharam Sócrates. O
ferimento substituía o veneno, iguais eram as palavras,
igual a impassibilidade de Sócrates e de Juliano.”134
Nesta morte, admirável sob qualquer ponto de vista, que
é a revelação de um espírito nobre e puro, uma coisa é
particularmente notável: o silêncio absoluto sobre aquilo
que, no entanto, era a maior preocupação de Juliano: a
questão religiosa. É realmente singular que ele não tenha
tentado se opor à possível eventualidade de ser sucedido
por um imperador cristão, o que tornaria sem efeito todos
os seus esforços de restauração. Provavelmente, ao morrer,
Juliano já havia perdido qualquer ilusão sobre a eficácia de
sua tentativa. Enquanto viveu na semibárbara Gália,
guardando no peito o segredo de sua fé, Juliano pôde
alimentar ilusões sobre as tendências dominantes no
mundo grego. Mas o dia em que ele, já imperador,
finalmente deu início à tão desejada restauração marcou o
início de seu desengano. Ele era muito sagaz para não
perceber que o mundo não estava com ele. A amarga sátira
que é o Misobarba revela a dor de um sonho desfeito. E
talvez a impulsividade heroica com que se lançou na louca
expedição persa e a volúpia com que procurou a morte
sejam a expressão desesperada do desgosto sem consolo de
ver completamente falido o objetivo essencial de sua vida e
de seu reinado.
Uma lenda que surgiu muito tempo depois da morte de
Juliano e foi recolhida por Teodoreto, escritor de meados do
século V, narra que Juliano, sentindo-se mortalmente ferido,
gritou: “Venceste, ó Galileu!” Nenhum dos contemporâneos
de Juliano registra esse grito de dor saído do peito do
apóstata, derrotado em seu terrível duelo com Cristo. O
simples fato de não encontrar nenhuma menção em
Gregório, um grande orador e polemista que não perderia a
oportunidade de usá-lo para tecer seu bordado de frases
eloquentes e sonoras, bastaria para provar a origem
lendária e relativamente tardia da notícia. Por outro lado, a
narrativa de Amiano, que assistiu à morte de Juliano, e a
descrição de Libânio demonstram que, em sua última hora,
Juliano só tinha a preocupação de morrer como um filósofo,
sereno e distante de qualquer preocupação com cuidados
terrestres. O grito desesperado, colocado em sua boca,
destoaria da calma solene da cena socrática com a qual
Juliano quis cercar seu leito de morte. Mas se essa frase
não foi dita, deve ter passado pela mente do imperador
ferido. Já não lhe restava ilusão. A causa que defendia
estava enterrada para sempre. Nem na plenitude de sua
potência e de sua energia, ele havia conseguido derrotar o
cristianismo triunfante. Com sua partida, não haveria mais
nenhum freio para a catástrofe em que a antiga civilização
mergulhava. Último herói do helenismo, ele reergueu sua
bandeira e, por alguns instantes, ela havia tremulado
novamente. Mas agora a bandeira caía com ele e caía para
sempre. “Venceste, ó Galileu!”
Mas como explicar e justificar a tentativa de Juliano?
Antes de responder, é preciso investigar o que era o
cristianismo quando foi oficialmente reconhecido e quais
eram as forças morais e intelectuais que a ele se
contrapunham. Talvez seja possível compreender, então,
como um homem que levou para o trono imperial um
tesouro de virtude e inteligência pôde acreditar que
derrubar o cristianismo e restabelecer o helenisno seriam
uma obra imperiosa e digna dele. O valor do homem é o
elemento que torna tão interessante o estranho episódio do
qual ele foi o herói.

NOTAS
1. Görres, Die verwandten morde Costantin’s des grossen. – Zeit, für wissens.
Theol. 1887.
2. Iuliani imp. quae supersunt – recensuit Hertlein, p. 349, 10 sg.
3. Libanii orationes – recensuit Reiske, v. I, 524, 19ss.
4. Amm. Marcell. libri qui supersunt – recensuit Gardthausen, v. I, 285, 12.
5. Iulian, 454, 15.
6. Idem, 452, 16 sg.
7. Amm. Marcell., v. I, 271, 4 sg.
8. Sozomeni hist. – illustravit Valesius, 483.
9. Iulian., 350, 2 sg.
10. Gregorii Nazianz. opera – Parisiis, 1630, orat. 3. 58.
11. Iulian, 488, 16.
12. Geschichte der reaktion kaiser Julians, 32.
13. Gregor. Naz., Orat. 3, 62.
14. Socratis hist., illustr. Valesius, 151.
15. Liban., 526, 9 sg.
16. Idem, I, 527, 10 sg.
17. Idem, 1, 159, 2 sg.
18. Eunapii vitas sophistarum, recensuit Boissonade, 50.
19. Iulian., 351, 18 sg.
20. Amm. Marcell., v. I, 43, 3.
21. Iulian., 351, 27 sg.
22. Amm. Marcell., 1, 47, 3.
23. Iulian., 353, 10 sg.
24. Idem, 152, 2 seg.
25. Idem, 352, 10 sg.
26. Idem, 152, 11 sg.
27. Liban., 1, 532, 4 sg.
28. Gregor. Naz., orat. IV. 121-22.
29. Amm. Marcell., v. I, 49.
30. Idem, v. I, 59.
31. Idem, v. I, 64. – Iulian, 352, 24 sg.
32. Iulian., 354, 13 sg.
33. Idem, 353, 26 sg.
34. Idem, 355, 3.
35. Idem, 355, 14 sg.
36. Am. Marcell., 64.
37. Liban., 1, 378-79.
38. Amm. Marcell., I, 67.
39. Iulian., 159, 4 sg.
40. Idem, 158, 8 sg.
41. Eunap., 54.
42. Iulian., 357, 2 sg.
43. Kock, Kaiser Julian. – Allard, Julien, l’Apostat.
44. Amm. Marcell., v. I, 67. 29.
45. Idem, 1. 77, 14 sg.
46. Idem, I, 82, 5 sg. II, 40, 2.
47. Idem, I, 80, 6 sg.
48. Idem, I, 100, 25 sg.
49. Iulian., 359, 1.
50. Amm. Marcell. I, 95, 7 sg.
51. Idem, I, 96, 13 sg.
52. Liban., I, 539, 5 sg.
53. Amm. Marcell., I, 98, 11.
54. Idem, I, 102, 23 sg.
55. Idem, I, 110, 25 sg.
56. Idem, I, 115, 5 sg.
57. Idem, I, 116, 12 sg.
58. Liban. I, 549, 18 sg.
59. Amm. Marcell., I, 129, 21 sg.
60. Iulian., 360, 10 sg.
61. Amm, Marcell., I, 201, 15 sg.
62. Idem, I. 203, 15 sg.
63. Idem, I, 204, 4 sg.
64. Amm. Marcell., I, 208, 10 sg.
65. Iulian., 363, 26 sg.
66. Amm. Marcell., I, 110.
67. Iulian., 494, 20 sg.
68. Eunap., 104.
69. Idem, 53.
70. Iulian., 362, 8 sg.
71. Amm. Marcell., I, 269, 6 sg.
72. Idem, I. 198, 5 sg.
73. Idem, I, 153, 20 sg.
74. Idem, I, 217, 20 sg.
75. Idem, I, 215, 10 sg.
76. Idem, I, 219, 15 sg.
77. Idem, I, 219, 29 sg.
78. Idem, I, 94, 13 sg.
79. Idem, I, 234, 18 sg.
80. Iulian., 367, 27 sg.
81. Idem, 369,20 sg.
82. Liban., I, 558, 1 sg.
83. Amm. Marcell., I, 233, 12 sg.
84. Idem, I, 286, 19 sg. – Iulian, 369, 1 sg.
85. Idem, I, 238, 12 sg.
86. Idem, I, 239, 1 sg.
87. Idem, I, 243, 23 sg.
88. Iulian., 268. 10.
89. Liban., I, 388, 8 sg.
90. Idem., I, 417, 2 sg.
91. Amm. Marcell., I, 214, 8 sg.
92. Idem, I, 246, 10 sg.
93. Idem, I, 247, 12 sg.
94. Liban., I, 415, 18 sg.
95. Amm. Marcell., I, 252, 15 sg.
96. Idem, I, 255, 13 sg.
97. Amm. Marcell., I, 258, 13.
98. Idem, I, 266, 23 sg.
99. Idem, I, 222, 5 sg.
100. Idem, I, 268, 21.
101. Liban, I, 573 sg.
102. Idem, I, 573, 10 sg.
103. Amm. Marcell., I, 269, 13 sg.
104. Liban., 1, 565, 12 sg.
105. Amm. Marcell., I, 271, 4 sg.
106. Idem, I, 273, 11 sg.
107. Zosimi Historiae – recensuit Reitemeier, p. 151.
108. Amm, Marcell., I, 316, 15 sg.
109. Liban., 1, 593, 5 sg.
110. Idem, I, 577. 7 sg.
111. Iulian., 516, 4.
112. Amm. Marcell., I, 311, 14.
113. Zosimo, 228, 1 sg.
114. Amm. Marcell., I, 312, 20 sg – Zosimo, 229, 1 sg.
115. Idem, I, 319, 1 sg.
116. Zosimo, 226-264
117. Amm. Marcell., II, 11, 22 sg. – Zosimo, 243, 7 sg. – Liban., I, 597-98.
118. Idem, II, 12, 33 sg. – Zosimo, 245, 1 sg.
119. Liban., 604, 10 sg.
120. Amm. Marcell., II, 22, 15 sg. – Zosimo, 255-58.
121. Idem, II, 25, 22 sg. – Zosimo, 258.
122. Liban., I, 610, 3.
123. Idem., II, 610, 10.
124. Gregor. Naz., 115, D.
125. Amm. Marcell., II, 26, 5.
126. Idem, II, 27, 17 sg.
127. Idem, II, 33, 15 sg.
128. Idem, II, 47, 20.
129. Liban., I, 612, 10 sg.
130. Liban., II, 32, 1 sg.
131. Idem, II, 48, 1 sg.
132. Sozomen., 517.
133. Amm. Marcell., II, 37, 19 sg.
134. Liban., 614, 10 sg.

*1Na verdade, a frase de Amiano aponta que Juliano foi educado por Eusébio
em Nicomédia, mas como Eusébio mudou-se, em 338 ou 339, da sede de
Nicomédia para a de Constantinopla, teríamos de admitir que o bispo educou e
instruiu Juliano nos anos de sua infância, coisa pouco verossímil. Seria, ao
contrário, natural que Eusébio, simpatizante do arianismo, chamado a
Constantinopla como homem de confiança de Constâncio, fosse encarregado da
educação do príncipe adolescente. Provavelmente, sabendo que Eusébio havia
educado Juliano, Amiano, com a costumeira falta de exatidão dos escritores
antigos, confundiu a estada de Juliano na Nicomédia, que ocorreu bem mais
tarde, com uma suposta estada anterior, que não foi provada por nenhum
documento e que, na verdade, o próprio Amiano demonstrou ser impossível ao
afirmar que Juliano, retornando já imperador a Nicomédia, reencontrou antigos
conhecidos do tempo de seus estudos com Eusébio. Que conhecidos poderia ter
feito um menino de menos de sete anos? [N.A.]
*2 Juliano escreveu o Misobarba como uma sátira contra os habitantes de

Antióquia, que exibiram em relação a ele uma indiferença hostil. O texto


retrata a corrupção dos valores nessa grande cidade cristã. [N.T.]
*3 Parece evidente que Juliano não está mais falando de Mardônio, mas de

outra pessoa, conhecida dos antioquenses. Mas quem seria esse outro velho?
Provavelmente Juliano faz alusão a um de seus professores em Nicomédia e a
posição eminente que ele parece ocupar faz pensar em Máximo. [N.A.]
*4 Eunápio nos dá o nome dos dois. O servo fiel era Evemero, o médico,

Oribásio. [N.A.]
*5 Amiano, que não participou da campanha da Gália, oferece uma descrição

tão detalhada da batalha de Estrasburgo que não deixa dúvida de que usava a
fonte de uma testemunha ocular. Ora, em dois fragmentos de Eunápio e
também, talvez, numa passagem de Zósimo (3, 2, 8), podemos deduzir que
devia existir uma narração escrita pelo próprio Juliano, talvez não só dessa
batalha, mas de pelo menos uma parte de sua campanha contra os bárbaros.
Aliás, o médico Oribásio, que estava ao lado de Juliano, também deixou suas
memórias daquilo que havia visto.
*6 Tratava-se de Salústio. [N.A.]
*7 Sobre essa campanha contra os bárbaros renanos, há um interessante relato

de Zósimo (3.7), informando que Juliano aproveitou bastante a ajuda oferecida


por um famoso bandoleiro chamado Carietto. É um episódio curioso, sobre o
qual tanto Juliano quanto Amiano calaram, talvez para não diminuir o
esplendor heroico das façanhas cesáreas. Mais tarde, o tal Carietto foi
engajado regularmente no Exército romano (Amm. II, 94, 9). [N.A.]
*8 O mistério da morte de Helena foi usado pelos inimigos de Juliano contra a

sua memória, num momento em que vilipendiá-la transformou-se em título de


honra e garantia de favores. Sabemos por Libânio que um certo Elpídio, que,
quando esteve na Gália, tentou prejudicar Juliano e açular o Exército contra ele
(Liban., II, 321, 10 sg.), espalhou a calúnia de que Helena havia sido
envenenada por um médico do séquito de Juliano, por ordem dele mesmo.
Revoltado com a insensata mentira com toda a força de sua honesta afeição e
sabendo que o propagador do boato em Antióquia era Policleto, um amigo e
discípulo seu, Libânio rompe relações com ele, resolve nunca mais recebê-lo
em sua casa (Liban., II, 316 sg.) e ainda redige um discurso a Policleto,
demonstrando a insensatez da acusação e a indignidade do caluniador Elpídio,
um homem desprezível sob qualquer ponto de vista, que tentou trair Juliano e
foi perdoado por ele. [N.A.]
*9 Sócrates Escolástico, o historiador eclesiástico, ao comentar a depuração

realizada por Juliano, expulsando do palácio as turbas de cozinheiros,


barbeiros, eunucos e parasitas de todo tipo, nota que poucos louvavam esses
atos do jovem imperador, enquanto uma maioria protestava, pois ao diminuir a
magnificência do palácio real, ele diminuía também o prestígio do Império. E
acrescenta uma aguda observação: segundo ele, um imperador pode, com
temperança e medida, ser um filósofo, mas o filósofo que quer ser imperador
ultrapassa os limites e cai no despropósito (Socrat. 139). [N.A.]
*10 Como já assinalamos, trata-se de uma referência ao poema “Il cinque

maggio” [“O cinco de maio”], de Alessandro Manzoni, dedicado a Napoleão


Bonaparte, morto em 5 de maio de 1821. [N.T.]
Capítulo II. A discórdia
do cristianismo

N os anos que antecederam sua vitória final, entre as


intermitentes perseguições dos séculos II e III, a Igreja
passou por uma profunda transformação causada pela
lenta elaboração de seus elementos, o que preencheu o
abismo que a separava do mundo. No campo da moral,
desceu das alturas imaculadas do Evangelho e do
cristianismo primitivo e aproximou-se do estoicismo; na
filosofia, construiu um grande edifício teológico, usando os
materiais do platonismo; no culto, moldou suas cerimônias
com base nos Mistérios. Em suma, conseguiu organizar um
cristianismo prático e aceitável para o mundo. Parte
considerável de seu patrimônio intelectual era de origem
externa, mas a Igreja soube estabelecer uma ligação tão
íntima com o que tinha de essencialmente próprio e
especial que assegurou a continuidade de seu
desenvolvimento progressivo, mesmo conservando-se
rigorosamente distinta do eclético paganismo.
O paganismo, tendo perdido o sentido da origem
naturalista de seus mitos, também tendia, junto com o
neoplatonismo, à afirmação da unidade divina. Mas essa
era uma tendência que só podia ser satisfeita pelo
cristianismo, cujo monoteísmo tinha uma capacidade de
atração bem maior que a do monoteísmo simbólico do
paganismo e podia ser recebido e entendido até pelos
humildes. É bem verdade que o paganismo neoplatônico
também alimentava o ideal do retorno ao divino, o
sentimento da imediata proximidade de Deus, mas faltava-
lhe a possibilidade de determinar esse ideal, de dar vida a
esse sentimento na pessoa de uma aparição histórica, que
fosse ao mesmo tempo sua garantia e sua mais pura
representação. Portanto, a expansão do pensamento
religioso no mundo antigo, durante os séculos II e III,
serviu certamente para prolongar a agonia do paganismo,
mas iria conduzi-lo, cedo ou tarde, à morte nos braços do
cristianismo, pois reconhecia e promovia aspirações que o
cristianismo podia satisfazer muito melhor que ele. Além do
mais, o cristianismo conseguiu criar uma forte organização
disciplinar, enquanto o paganismo dispunha apenas de uma
estrutura frouxa, na qual os diversos cultos não eram
determinados por nenhuma disciplina rigorosa. O
paganismo era uma verdadeira anarquia religiosa. No
cristianismo, ao contrário, cada comunidade constituía um
organismo especial que obedecia ao seu bispo, e todas elas
juntas constituíam um complexo de forças que se
transformava facilmente na expressão e no instrumento de
uma única vontade. É bem verdade que não faltaram
divisões, discórdias e cismas na jovem Igreja, mas não
passavam de acidentes passageiros, que não abalavam a
solidez substancial da organização eclesiástica e estavam
destinados a desaparecer logo que uma vontade forte
apontasse o caminho do retorno à unidade.
Essa vontade forte apareceu pela primeira vez no início
do século IV nas figuras do imperador Constantino e do
grande Atanásio, e reapareceu com uma eficácia definitiva
no final do mesmo século, com o imperador Teodósio e o
bispo Ambrósio.
Vamos dar agora uma rapidíssima passada por este
século de lutas, no meio do qual teve lugar a curiosa
tentativa de Juliano. Não existia nem sombra de sentimento
religioso na conduta de Constantino em relação ao
cristianismo, inaugurada com o famoso Édito de Tolerância
de Milão, datado de 313 e promulgado por ele e por seu
colega Licínio, e que pouco a pouco deu ensejo à
constituição de uma Igreja de Estado. É bem verdade que
era falsa a fábula que corria entre os pagãos, muitos anos
depois da morte de Constantino, de que ele só se converteu
ao cristianismo depois de convencido de que a nova religião
tinha o poder de lavar qualquer culpa, de modo que, depois
da conversão, até o mais perverso dos homens tornava-se
imediatamente puro.1
Constantino realmente precisava expiar o mais horrendo
dos crimes domésticos, o assassinato do filho Crispo e da
esposa Fausta. Mas Sozomeno observa corretamente que
estes crimes brutais foram cometidos por Constantino
alguns anos depois de ter abraçado o cristianismo e,
portanto, este não pode ter sido o movente de seu
comportamento em relação àquela religião até então
perseguida.2
É curioso e sintomático que nem Sozomeno nem nenhum
outro escritor eclesiástico tenham visto em tal
circunstância um motivo para duvidar da seriedade moral
da conversão de Constantino. Ele era um político hábil, que
não conhecia escrúpulos. Chegando ao poder sobre a ruína
de todos os colegas e rivais, testemunha da completa
ineficácia da perseguição de Diocleciano, viu na Igreja um
instrumento que, bem organizado, seria precioso em suas
mãos. Percebeu o esgotamento do paganismo e a força
crescente do cristianismo e resolveu usar isso a seu favor.
“Compreendeu que seria útil para ele acreditar num outro
deus”,3 é a explicação de Libânio para a conversão de
Constantino. Neste caso, o retórico acerta o alvo.
Em suma, Constantino limitou-se a organizar a Igreja,
econômica e dogmaticamente, de modo a estar sempre no
controle. Homem apaixonado e violento por excelência, não
poderia participar da ideologia cristã. Queria que o
cristianismo representasse, no Império que ele
reconstruíra, o mesmo papel que o paganismo que se
extinguia representara no Estado antigo, ou seja, uma arma
e uma sanção para a autoridade do soberano. Para obter tal
resultado, era necessário que a Igreja não se dilacerasse
em discórdias internas e se organizasse numa perfeita
unidade de doutrina e disciplina. “De nada te servirá o
Império” – dizia Constantino moribundo ao filho Constâncio
– “se não obtiveres que Deus seja adorado por todos de
modo concordante”.4
Em 24 anos, Constantino havia percorrido uma longa
estrada. O édito de Milão afirmava a absoluta liberdade dos
cultos, com base numa fé deísta, comum a todas as
religiões. Mas não demorou para que o oportunismo
político transformasse o filósofo liberal num dogmático
intransigente. Só que não era fácil unificar a doutrina, pois,
se o cristianismo cresceu em força, germinou também em
cismas e heresias que sufocavam o tronco. Para impedir
que o mal se tornasse irreparável e criar o instrumento que
considerava necessário, Constantino teve a ideia de dar aos
Parlamentos eclesiásticos, que já se reuniam para discutir
pontos controversos, a autoridade de instituições de
Estado, cujas deliberações teriam força de lei. A instituição
dos Sínodos ou Concílios imperiais foi uma realização
genial da política de Constantino, que teve uma
importância imensa na vida e no desenvolvimento da
Igreja.
Constantino já encontrou uma grande batalha em
ebulição no cristianismo, girando em torno daquela heresia
ariana que comprometia o princípio fundamental da
teologia cristã. A suprema dificuldade que o pensamento
cristão teve de enfrentar no momento em que, ao helenizar-
se, deixou de ser uma religião de sentimento para
transformar-se numa religião doutrinária e metafísica, foi a
de conservar o monoteísmo, dada a existência de uma
segunda pessoa divina na figura de Cristo. A ideia da
personalidade divina de Cristo recebeu sua sanção
definitiva no dia em que se fundiram os conceitos do Cristo
e do Logos. Nas genuínas tradições judaicas, o Cristo, ou
Messias, era o personagem humano que devolveria
potência e prosperidade a Israel; no pensamengo judaico,
que, por assim dizer, se platonizou no contato com a
filosofia grega, em Alexandria, o Logos (o Verbo), era o
princípio racional com o qual Deus havia criado o mundo e
nele se manifestava. Portanto, se o Messias devia revelar-se
numa aparição humana, o mesmo não se podia pensar a
respeito do Logos, que, na filosofia greco-judaica, era
apenas o símbolo de uma ideia, de uma força ontológica e
abstrata. Nenhum pensador judaico ousaria fazer deste
símbolo um personagem divino, separado de Deus. Ora, a
passagem do símbolo para a pessoa verificou-se no
momento em que o atributo de Logos foi conferido ao
personagem histórico de Jesus, que já havia revestido o
caráter de Messias. Assim, a figura de Jesus, reunindo em
si o ofício de Messias e a personificação do Logos, coloca-se
como intermediária entre Deus e o homem, com um
contorno não muito bem definido, no qual o humano e o
divino se confundem, como o branco e o negro no papiro
que arde, numa justa semelhança com Dante. Aquela figura
dava uma das mãos a Israel e a outra à Hélade, e quanto
mais se aproximava desta última, quanto mais se
intensificava nela o caráter de divindade distinta, tanto
maior se tornava o perigo ao qual se expunha o
monoteísmo.
As heresias gnósticas empurravam o cristianismo nessa
direção, num caminho que ia dar no politeísmo. Esse
movimento foi interrompido pela ação prudente e eficaz
dos primeiros escritores sistemáticos da Igreja, os
apologéticos, os quais, interessados sobretudo na ação
redentora realizada por Cristo, cortaram as asas da
fantasia metafísica e, na intensa contemplação do problema
moral, fecharam os olhos para o problema filosófico. Mas
ele se apresentou em toda a sua grandeza na segunda
metade do século III, quando o cristianismo alexandrino,
com Clemente e sobretudo com Orígenes, lançou-se a velas
despregadas no grande mar da especulação helênica. Seria
difícil encontrar outro exemplo de pensador que tenha
exercido, como Orígenes, tanta influência sobre a doutrina
que se desenvolveu depois dele. Nisso, ele é realmente
comparável a Platão. Pode-se dizer que, por mais de dois
séculos, a teologia científica nada fez além de girar em
torno das teses propostas por ele. Sua doutrina, mesmo
modificada e temperada, formou o substrato sobre o qual
foi construído o imenso edifício da dogmática cristã. Trata-
se de uma doutrina eminentemente platônica, nada mais
que uma alegoria ideal e espiritualista, que enfraquece e
altera essencialmente o conteúdo histórico do cristianismo
genuíno. Para Orígenes – assim como para Clemente, antes
dele, e para a filosofia neoplatônica depois –, o leitmotiv é
aquele do Logos, do verbo cosmogônico, ou seja, do Logos
concebido como potência geradora do mundo. Orígenes
distingue o mundo das sensações e o mundo das ideias.
O Logos é a ideia das ideias, a origem dos fenômenos, o
instrumento de criação. Mas este instrumento foi criado
por Deus num dado ponto do tempo e é subordinado a ele.
A identidade do Logos com Deus não é apenas indesejada,
mas é impossível no sistema de Orígenes, pois nele a
existência do Logos é o primeiro grau do processo
cosmológico, é o primeiro efeito que se transforma, por sua
vez, na causa dos efeitos subsequentes. Para Orígenes, é no
conhecimento cada vez mais profundo e claro desse
processo que reside a redenção do homem. A Orígenes,
aplica-se perfeitamente o juízo que dele fazia o
neoplatônico Porfírio: “Embora vivesse como cristão,
helenizava na ciência das coisas e da divindade e vestia
com mitos estrangeiros a doutrina dos gregos.”5
A importância e o poderoso desenvolvimento que teve a
doutrina do Logos, entendido como essência divina gerada
por Deus, mas separada dele e subordinada a ele, faziam
renascer sob forma mais científica e moderada as
tendências gnósticas das mais antigas heresias e, mais uma
vez, levava o cristianismo até o limite do politeísmo. Contra
ela surgiu, ou pelo menos definiu-se melhor, uma doutrina
radicalmente diversa, que recebeu o nome de
monarquianismo. Mesmo conservando viva a ação
redentora de Cristo, esta doutrina reafirmava a fé na
absoluta unidade pessoal de Deus e, portanto, era adversa
a qualquer especulação que pudesse apontar para uma
divindade dupla ou tríplice. O monarquianismo dividia-se
em duas escolas, o monarquianismo dinâmico e o
monarquianismo modalístico. O primeiro afirmava a
humanidade essencial de Jesus, afirmando ao mesmo tempo
que nele estava viva a inspiração direta, a força dinâmica
de Deus; o segundo acreditava na encarnação do próprio
Pai e considerava o Cristo, que veio à Terra, como um
modo, uma revelação do Deus supremo e único, que não se
dividiu nem produziu ou emanou nenhuma divindade
secundária, apresentando-se em sua inalterável unidade. O
monarquianismo dinâmico teve como representante, na
segunda metade do século III, um homem genial, Paulo de
Samósata, bispo de Antióquia, que conseguiu enfrentar
seus adversários, que o acusavam de heresia e de hábitos
mundanos,6 enquanto contou com a proteção de Zenóbia,
rainha de Palmira, em nome de quem governava Antióquia.
Com a derrota de Zenóbia para Aureliano e a queda de
Antióquia em 272, para os romanos, o combativo bispo teve
de ceder seu posto aos rivais, e sua doutrina foi
aparentamente sufocada. No entanto, ela permaneceu
latente como um germe que, mais tarde, se desenvolveu e
frutificou no arianismo.
O monarquianismo modalista era uma doutrina antiga, já
consolidada em Roma na primeira metade do século III.
Preocupada com o perigo inerente ao conceito de uma
personalidade divina que, no Logos-Cristo, se afirmava
separada do Deus supremo, a doutrina pretendia recompor
a unidade absoluta, misturando o Pai e o Filho e fazendo do
Filho simplesmente uma personificação, uma hipóstase do
Pai. Esta doutrina, que feria ideias dominantes no
cristianismo ocidental, embora metafisicamente bastante
modestas, encontrou apoio em Zeferino e Calisto, bispos de
Roma, dando origem a uma luta cujos heróis
antimonarquianos foram Hipólito, em Roma, e Tertuliano,
na África. Do outro lado, eram numerosos os defensores da
unidade absoluta de Deus, conhecidos também pelo nome
de patripassianos, para indicar que viam nos sofrimentos
de Cristo os sofrimentos do Pai. Último e mais importante
entre todos estes foi Sabélio, de quem o monarquianismo
tomou, como seita herética, o nome definitivo de
sabelianismo. Sabélio agitava a bandeira de um rigoroso
monoteísmo. O Pai, o Filho, o Espírito eram uma única
essência, nada mais que três nomes aplicados a um único
ser. Colocado entre Hipólito e Sabélio, o bispo Calisto,
embora tendesse para os monarquianos, encontrou uma
fórmula de conciliação que não satisfez os partidos rivais,
mas que, terrivelmente obscura e inteiramente composta
por frases contraditórias, colocou o mistério e o
incompreensível como elementos essenciais da teologia,
abrindo caminho para a dogmática da futura ortodoxia.
De fato, a saída para as dificuldades em que a teologia
cristã se encontrava, em seu nascimento, só podia estar na
união forçada do monarquianismo, que, ao afirmar a
unidade de Deus, era o eixo da nova fé, com o origenismo,
que, com suas múltiplas personalidades divinas, respondia
às exigências metafísicas da mente grega. As grande lutas
dos séculos III e IV foram o crisol de onde brotou a
corrente de uma doutrina composta pela fusão de dois
metais essencialmente heterogêneos e forçosamente
unidos. O duelo entre a heresia ariana e a ortodoxia nicena
foi o último ato deste grande drama teológico, no qual a
sociedade antiga, na agonia do Império, esgotou suas
forças e de onde viria a lei que dominou o pensamento da
humanidade até hoje.
O arianismo, que pode ser visto como continuação do
monarquianismo de Paulo de Samósata, teve sua raiz na
escola de Luciano de Antióquia, discípulo e amigo deste
último, que ocupou, nos primeiros anos do século IV, um
posto de destaque no cristianismo oriental. A fama e a
autoridade de seu nome cresceram mais ainda depois de
sua morte, em 312, pois Luciano foi uma das últimas
vítimas das perseguições imperiais. Conduzido de
Antióquia a Nicomédia, ele pronunciou, diante do
imperador Máximo, um discurso em defesa de sua fé e
morreu heroicamente em seguida. Este homem, excelente
em cada coisa e pleno de doutrina sagrada, como disse
Eusébio,7 teve sob seus cuidados todos os futuros heróis do
arianismo, inclusive o próprio Ário. Não é improvável que a
memória do mártir que os educou e deixou tão admirável
exemplo tenha inflamado sua paixão pela causa que ele
defendia. Mas Luciano misturava muita água metafísica no
vinho racionalista de Paulo de Samósata. Para ele, se o
Logos-Cristo não era um deus humanizado, também não
era um homem divinizado; era um ser intermediário, a
primeira criatura criada por Deus, do nada e no tempo,
com o encargo de promover o resto da criação, de revelar
aos homens o Pai celestial, de oferecer-lhes, na vida e na
morte, um exemplo de perfeição absoluta.
Estas eram as correntes cujo choque iria produzir a
centelha incendiária: de um lado os lucianistas que, mesmo
reconhecendo a posição especial de Cristo, não admitiam
sua divindade substancial; contra eles, os origenistas, que
admitiam esta divindade, mas afirmavam, ao mesmo tempo,
sua subordinação; contra as duas anteriores, enfileirava-se
uma terceira, os sabelianos, que viam em Cristo a pessoa
do Pai. Estes três partidos, alguns por um lado, outro por
outro, representavam a tendência racional dentro do
cristianismo. Mas havia um quarto partido, para o qual
estava reservado o futuro: aqueles que defendiam a
distinção das pessoas divinas, mas não aceitavam a
subordinação de uma à outra e confundiam as três na
unidade da essência. Eles propunham o mistério. Mas,
justamente por elevarem a alma humana acima das
contingências racionais, tinham uma força de atração que
garantiu sua vitória final.
Quem acendeu a centelha que mais tarde ateou fogo em
todo o mundo cristão e envolveu a humanidade, por mais
de um século, num terrível incêndio de paixão teológica foi
um homem interessante e singular: o presbítero Ário.
Discípulo devoto e admirador de Luciano, dono de
inteligência e energia incandescentes, escritor, poeta,
agudo dialético, poderosamente fascinante, cheio de
corajosa combatividade, o jovem lucianista veio de
Antióquia para Alexandria, onde foi eleito presbítero pelo
bispo Alexandre. Durante algum tempo, bispo e presbítero
agiram de pleno acordo, mas o fogo ardia sob as cinzas.
Impregnado de doutrina lucianista, Ário não podia gostar
da tendência teológica de Alexandre, em quem via
inclinações sabelianistas. Certo dia, narra Sócrates
Eclesiástico, na presença de todos os presbíteros e de todo
o clero, Alexandre fez um grande discurso, teologizando a
respeito da Trindade, para vangloriar-se de saber doutrinal,
e ensinando que existe unidade na Trindade.8
Ário considerou que era uma boa oportunidade para
insurgir-se contra o bispo e acusou-o acerbamente de
sabelianismo. “Se o Pai”, disse ele, “gerou o Filho, o gerado
teve um princípio de existência. Donde, é manifesto que
houve um tempo no qual o Filho não existia. E disso
decorre necessariamente que deve ter recebido a sua
existência do nada.” Em torno de tais proposições, que
resumem todo o arianismo, de fácil aceitação por sua
clareza, inflamou-se o incêndio teológico. Mas Alexandre
enfrentou o perigo. Tinha a seu lado um outro jovem
presbítero, Atanásio, que, com ânimo forte e mente ampla,
era um rival que Ário não poderia derrotar. E talvez, no
fundo dessa grande guerra teológica em torno da própria
essência do cristianismo, não houvesse nada além da
rivalidade e da antipatia recíprocas de dois jovens
dominadores e intolerantes, que não conseguiam conviver
no mesmo ninho.
Diante disso, Alexandre reuniu um Concílio no qual Ário e
seus seguidores foram solenemente destituídos e enviou a
todos os bispos da cristandade “aos amados e honoráveis
colegas da Igreja Católica, onde quer que estejam”,9 uma
longa circular, na qual reiterava os erros de Ário,
justificando sua condenação. Mas Alexandre cometeu a
imprudência, talvez proposital, de apontar, nessa circular, o
nome de Eusébio, bispo de Nicomédia, como um dos
perigosos hereges. Ora, Eusébio, parente distante da
família constantiniana, era um homem poderosíssimo, que
jamais aceitaria as diatribes de Alexandre.10 Irritado,
tomou abertamente o partido de Ário e, reunindo pareceres
de vários bispos que concordavam com ele, obrigou o
colega a cassar a sentença que condenava Ário.
No meio dessa discórdia que incendiava todo o Oriente,
eis que aparece Constantino com o seu Quos ego. Justo no
momento em que acreditava ter conquistado um
instrumento precioso, este instrumento se quebra em suas
mãos. Único e absoluto dono do mundo, ele pensou que sua
palavra poderia acalmar a ira. Da Nicomédia, escreveu
para Alexandre e Ário uma carta que é um modelo de
racionalidade e de senso prático, para induzi-los a entrar
num acordo e pôr um ponto final numa luta teológica que
só trazia discrédito ao cristianismo, transformando-o em
objeto de zombaria por parte dos incrédulos.11 Mas as
paixões estavam acesas demais. Atanásio e Ário
continuavam a insuflar o fogo, e o Quos ego do imperador
não foi capaz de acalmar a atmosfera.
Conhecemos os pontos essenciais da doutrina de Ário
através dele mesmo, que a expôs num tratado escrito
parcialmente em versos e intitulado Thalia, do qual
restaram apenas alguns trechos citados na refutação
elaborada por Atanásio. Ário se diz perseguido porque se
opôs à afirmação de que o Filho é igual ao Pai, emana dele,
de que existe unidade de substância entre o gerado e o
gerador e de que um e outro coexistiram, fora de qualquer
princípio e fora do tempo. Somente Deus, que se tornou Pai
pela produção do Filho, não é gerado e tem o ser em si
mesmo. Inexprimível em sua essência, não tem iguais. O
homem só pode determiná-lo negativamente, dizendo que
não é gerado, que não tem um princípio acima ou antes de
si. O Filho fica, portanto, fora da essência divina. A
indicação do filho como Logos, Verbo, sabedoria de Deus, é,
para Ário, imprópria, pois o Logos, sabedoria e razão de
Deus, nada mais é que uma faculdade inerente à sua
essência. Ário combatia assim a tendência da teologia
origenista de estabelecer, por meio do Logos, uma segunda
e também divina hipóstase e tornava impossível qualquer
evolução do conceito de Deus. O Filho não pertence à
substância do Pai. É a criatura criada do nada pela vontade
de Deus para proceder à criação do mundo. Não é
verdadeiro Deus. A dignidade divina que Ário lhe
reconhece provém do dom de Deus, provém da divinação
consequente à comunicação da sabedoria e do Logos de
Deus.
Contra a doutrina de Ário e certamente sob orientação de
Atanásio, o bispo Alexandre sustentava a inseparável
unidade do Pai e do Filho. O Filho, o Logos, está no seio do
Pai e, como criador de todas as coisas, não pode ser criado
do nada. Por sua essência eterna, está em perfeita oposição
com o criado e, sendo assim, não pode haver diferença
entre Pai e Filho. E não pode ser diversamente, pois o Pai
sempre foi igual a si mesmo e teve sempre em si o seu
Logos, a sua sabedoria, o seu Filho, que é Filho não por
uma posição do interior para o exterior, mas pela natureza
mesma da divindade paterna. A relação misteriosa, através
da qual, por um lado, o Filho se distingue do Pai e, por
outro, é uno com ele pela eternidade e pela essência, é
expressa pela geração do Filho a partir do Pai, que indica
uma derivação de um a partir do outro, mas uma derivação
que está fora de qualquer conceito de tempo. É, aliás, uma
relação inexplicável para o homem.
Tendo como premissa tentar exprimir o inexprimível, é
certo que estas fórmulas alexandrino-atanasianas, nas
quais se sente o sopro do origenismo platônico, têm um
valor metafísico bem mais elevado que as fórmulas arianas,
que, com seu aparente racionalismo, não explicam nada. É
impossível haver uma teologia racional. Qualquer
pretensão de fundar a teologia sobre a razão conduz
inevitavelmente ao desastre. Quanto mais a teologia se
afasta da razão para mergulhar no mistério, mais aceitável
ela se torna. Se os arianos tivessem abandonado
resolutamente o pensamento metafísico para buscar de
novo a simplicidade do Evangelho, sua aspiração seria
verdadeiramente original. Mas a partir do momento em que
decidiram conservar a teologia metafísica com seus
mistérios, tratando apenas de administrá-la em doses mais
sutis que pudessem ser toleradas pela mente humana, eles
estavam predestinados a ser derrotados pelos rivais que,
intensificando as fórmulas do incompreensível e do
mistério, inebriavam o homem, elevando-o a atmosferas nas
quais ele podia ter uma visão, um pressentimento do
sobrenatural – a mesma visão e o mesmo pressentimento
que encontraram nas páginas inspiradas de Santo
Agostinho a sua mais eloquente manifestação.
Vendo que eram inúteis as tentativas de acalmar os
ânimos com suas exortações pessoais e aconselhado por
Ósio, bispo de Córdova, que estava com ele e era seu
ministro para as questões teológicas, Constantino tomou,
em 325, a decisão de reunir um grande Concílio em Niceia,
com a missão de estabelecer a fórmula definitiva da fé. Sua
intenção era dar à deliberação do Concílio a autoridade e a
força da vontade imperial e, assim, impor a concórdia que
não tinha conseguido obter com a persuasão.
O Concílio de Niceia foi uma assembleia obediente à
autoridade de Constantino e criou uma fórmula que poderia
ser aceita por todos os partidos. Mas a coisa não andou
sem antes enfrentar muitas dificuldades e ásperas lutas.
Comandados por Eusébio de Nicomédia, futuro responsável
pela educação de Juliano, os arianos apresentaram sua
fórmula lucianista, que foi rejeitada pela maioria dos
trezentos bispos. Diante disso, os semiarianos ou
origenistas apresentaram uma nova fórmula, proposta por
Eusébio de Cesareia, que, se prestando ao equívoco e
evitando qualquer determinação mais precisa, pretendia
contentar todo mundo. Mas o partido que mais tarde
representaria a ortodoxia não se convenceu. Instigado por
Ósio, conselheiro íntimo de Constantino, que foi a alma de
todas as combinações que aconteceram nos bastidores do
Concílio, propôs uma terceira fórmula, ou melhor, uma
correção da fórmula eusebiana, incluindo a famosa palavra
“consubstancial” para expressar a absoluta identidade e
unidade de substância do Pai e do Filho.12
Embora a palavra suscitasse graves oposições seja por
ser nova e inusitada no vocabulário teológico, seja porque
parecia fortemente impregnada de monarquianismo
sabeliano e, portanto, destinada a fazer desaparecer a
personalidade do Cristo, até mesmo as oposições, embora
razoáveis, cederam diante da vontade de Constantino. Na
difusão e na imposição da deliberação do Concílio,
Constantino investiu um zelo, uma energia, um ardor
oratório e epistolar que demonstram que ele via o
apaziguamento das iras teológicas como um
importantíssimo negócio de Estado. E também fez questão
de dar ao Concílio a sanção de sua intervenção pessoal, de
pompas luxuosas e até de banquetes para aumentar seu
brilho e importância aos olhos do povo.13 O imperador
alimentava a ilusão de ter estabelecido a paz na Igreja e
criado o instrumento de governo de que tanto necessitava.
Mas a ilusão durou pouco. A fórmula nicena tansformou-
se num novo pomo da discórdia. O Oriente eclesiástico já
era muito essencialmente ariano e origenista para engolir
sem resistência o amargo bocado que o imperador oferecia.
Constantino sentiu que não conseguiria sustentar posição.
Embora insistisse em fazer e receber declarações de
ortodoxia, começou a mudar de conduta com os mais
ilustres anatematizados no Concílio de Niceia, readmitindo
Eusébio de Nicomédia e Teógnis de Niceia em seu
círculo.14
Pouco depois, cercado por redes clericais e femininas,
acabou permitindo que o próprio Ário retornasse a
Alexandria.15 Mas Constantino não lembrou que o bispo de
Alexandria agora era Atanásio, que não era homem de se
dobrar às suas vontades e aceitar uma reconciliação com o
odiado rival. De fato, o encontro dos dois homens só serviu
para reacender ódios, disputas e acusações recíprocos,
entre os quais Constantino oscilava, mas pendendo cada
vez mais para o lado de Ário e Eusébio. E talvez uma
completa reviravolta da situação tivesse ocorrido, se a
morte repentina e misteriosa de Ário16 não tivesse privado
o seu partido do maior defensor e impressionado
fortemente o espírito de Constantino. O imperador
morreria no ano seguinte, deixando a Igreja bem mais
dividida do que era antes do Concílio de Niceia, dilacerada
por ódios e paixões tão ferozes que poderiam retirar
qualquer fascínio do cristianismo aos olhos de um
observador desinteressado.17 A simples e divina religião do
Evangelho havia se transformado num campo de disputas
furiosas e muitas vezes sangrentas em torno de sutilezas
metafísicas vãs.

Constâncio, sucessor do pai no Império do Oriente,


percebeu que os arianos eram mais fortes. Tendo mais
liberdade que o pai, pois não tinha compromisso com as
resoluções de Niceia, não hesitou em seguir os conselhos
de Eusébio. Transferiu Eusébio, de Nicomédia para a sede
de Constantinopla, e expulsou Atanásio, de Alexandria. Mas
a teologia dos imperadores era dominada pelas
necessidades políticas. Enquanto Constâncio assumia a
causa do arianismo no Oriente, Constante, o outro filho de
Constantino, hasteava a bandeira da ortodoxia no Ocidente,
tão fervorosamente que chegou a ameaçar o irmão com
guerra caso não chamasse de volta Atanásio, que recorrera
a ele.18
Para não somar os problemas internos de uma luta
teológica com o irmão às dificuldades que amargavam sua
vida na campanha contra o rei da Pérsia, Constâncio
temperou o calor de seu arianismo, restabeleceu Atanásio
na sede de Alexandria em 346 e com várias e gentilíssimas
cartas chamou-o à sua presença, embora o clarividente
bispo não tivesse muita fé na sinceridade do imperador.19
Os acontecimentos mostraram como eram fundamentadas
as suspeitas de Atanásio. De fato, depois do assassinato de
seu irmão Constante pelo rebelde Magnêncio, Constâncio
passou a ser o único imperador. Sem obstáculos nem
medos, retomou sua primitiva política eclesiástica e tratou
de reexpulsar Atanásio, que tinha acabado de voltar a
Alexandria. Na verdade, teria mandado matá-lo se o bispo,
avisado do perigo, não tivesse fugido a tempo da cidade.
Mas Constâncio não parou sua perseguição por aí. No
Concílio solene reunido em Milão, em 355, ele pressionou
para que fosse pronunciada uma sentença de condenação,
proibindo Atanásio de retornar a Alexandria. Três bipos
ocidentais insurgiram-se contra ela: Paulino de Tréviris,
Dionísio de Alba e Eusébio de Vercelli. Assim, o Concílio de
Milão acabou jogando ainda mais lenha na fogueira, que
crescia assustadoramente.
Os vencedores de Atanásio não permaneceram unidos. A
discórdia logo se instalou entre eles. Os arianos puros,
comandados por Aécio, um irrequieto e audacioso
personagem que teremos ocasião de conhecer melhor
adiante, não se contentavam em afirmar a personalidade
distinta do Pai e do Filho, mas viam o Filho diverso do Pai
também na substância. Inspirados por Basílio de Ancira, os
arianos origenistas, autodenominados semiarianos,
afirmavam a igualdade das duas substâncias, mesmo
mantendo distantes as duas pessoas. Entre estes
semiarianos e os atanasianos fervia a luta em torno de uma
letra. Os atanasianos diziam que o Filho tinha a mesma
substância do Pai, enquanto os semiarianos diziam que o
Filho tinha uma substância distinta, mas similar à do Pai.
Estes arianos moderados tendiam evidentemente a
negociar um acordo com os atanasianos. Temiam ver
desaparecer, junto com a distinção das substâncias,
também a das pessoas, das hipóstases, como diziam, o que
seria uma queda no monarquianismo sabeliano. Desde que
essa distinção entre as pessoas ficasse garantida, era
previsível que houvesse uma conciliação entre as duas
partes. Só que antes de chegar lá, era preciso atravessar
um último período de disputas confusas e ardentes. O
imperador Constâncio, cada vez mais arrebatado pelo
arianismo, não aceitava nenhuma negociação e excluía
como suspeita qualquer fórmula que, mesmo conservando a
dualidade e a subordinação das hipóstases, admitisse não a
identidade, mas apenas a igualdade da substância. Toda a
corte de Constâncio era ariana, e arianos intransigentes,
embora dissimulados, eram os bispos que ali tinham voz.
Mas até o arianismo puro tinha se tornado indefensável,
atacado agora por todos os lados. Para dar mostra de
moderação, Constâncio exilou Aécio, o comandante dos
arianos. Uma necessidade, um desejo de paz começavam a
impor-se. Concílios eram sucedidos por Concílios, no
Oriente e no Ocidente, fórmulas por fórmulas. Todo o
mundo cristão ressoava em intermináveis discussões, nas
quais a própria sutileza dos argumentos podia ser a
centelha para novas discórdias, sem que ninguém
conseguisse chegar à desejada solução. A pedra de
escândalo para os arianos, mais ou menos hipocritamente
mascarados, era a palavra “substância”, que fazia parte da
fórmula dos arianos origenistas e transigentes. Diante
desta palavra, os bispos que apoiavam Constâncio e que o
envolviam em suas intrigas – Valente, Ursácio, Germínio,
Acácio – sentiam que a desconfiança aumentava e
protestavam. Basílio de Ancira e seus companheiros
pareciam ainda mais suspeitos que os atanasianos puros.
Aqueles bispos cortesãos buscavam uma fórmula que os
distinguisse, na aparência, dos arianos intransigentes,
caídos oficialmente em desgraça junto com Aécio, mas que
lhes garantisse a vitória sobre os odiados rivais e impedisse
o possível ressurgimento da doutrina nicena. Sob sua
influência e por obra deles, formou-se um novo partido, o
partido omoico, que admitia que o Filho fosse semelhante
ao Pai, segundo a vontade, mas não permitia, de modo
algum, que se fizesse a menor alusão a uma igualdade de
substância. Este partido afirmou-se pela primeira vez em
Sírmio, em 359, com uma fórmula que dizia genericamente
que o Filho era semelhante em tudo ao Pai. Mas, mesmo
esse em tudo, que por sua indeterminação não tinha
nenhum valor, foi excluído depois – numa manobra dos
arianizantes – da fórmula definitiva que saiu dos
tempestuosos sínodos de Rimini e de Selêucia. A
semelhança do Filho com o Pai não tinha outra
determinação além da que estava contida nas palavras –
segundo as Escrituras –, colocadas ali como um talismã
para impedir que a fórmula fosse alterada.20
Ao partir de Constantinopla, um ano antes de sua morte,
Constâncio impôs à Igreja esta fórmula oportunista, com a
qual alimentava a ilusão de conseguir resolver, por meio de
uma negociação política, um profundo dissídio doutrinário.

Quando Juliano assumiu as rédeas do Império, a situação


era esta: uma paz imposta e baseada no oportunismo. Era
evidente que essa paz não tinha condições de durar, mas,
no interesse de sua própria causa, Juliano precipitou a
ruptura. Como veremos melhor a seu tempo, depois de
declarar-se totalmente estranho aos partidos e às disputas
teológicas dos cristãos, ele permitiu o retorno às suas
sedes dos bispos eLivross por Constâncio, que eram
justamente os descontentes de um lado e de outro. As
previsões de Juliano verificaram-se: o retorno daqueles
homens beligerantes à cena teológica reacendeu discórdias
e disputas. Mas não vieram as consequências que ele
esperava, ou seja, o esfacelamento do odiado cristianismo.
Atanásio, retornado a Alexandria para ser expulso
novamente por Juliano, no único ato de aberta intolerância
com que ele manchou sua história, não demorou a reerguer
seu partido, com sua energia indomável e seu espírito
agitador, colocando o vitorioso arianismo numa situação
difícil. Durante os três anos passados no exílio, o velho
defensor da ortodoxia nicena, mesmo afastado do campo de
batalha, participou das emoções da luta e, com uma série
de escritos ardentes, dogmáticos, históricos, apologéticos,
manteve alto o moral dos amigos e recordou aos inimigos
que ainda estava vivo. Já nesses escritos do velho, mas não
cansado atleta, revela-se a tendência a estender a mão aos
partidários derrotados, que defendiam a semelhança entre
as substâncias do Pai e do Filho, atenuando as diferenças
que o separavam dos partidários da identidade entre as
duas substâncias. Ele percebia que a condição para a
vitória sobre a heresia triunfante na corte de Constâncio e
no mundo oficial encontrava-se no acordo, previsto e
possível, entre a ortodoxia e a fração origenista do antigo
arianismo, atualmente em franca hostilidade com a fração
intransigente.21
Com a morte de Juliano, o heroico bispo, que agora
dominava o território, pregou abertamente a conciliação,
com uma temperança de julgamento e de conduta que
mostra como e quão verdadeira era a sua grandeza. No
Ocidente, o movimento conciliador era promovido por dois
escritores de grande inteligência, Hilário, denominado o
Atanásio do Ocidente, e Mário Vittorino, o filósofo
neoplatônico cuja comovente conversão é narrada por
Agostinho.22
No Oriente, o movimento recebeu a preciosa ajuda de
três personagens da Igreja, denominados “os três
capadócios”: Basílio, o grande, Gregório de Nissa e
Gregório de Nazianzo, inimigo figadal de Juliano. A
igualdade origenista da essência do Pai e do Filho
transforma-se na atanasiana identidade substancial, mas,
ao mesmo tempo, é solenemente proclamada a distinta
trindade das pessoas. E funda-se assim o dogma essencial
da metafísica cristã: uma única substância em três pessoas.
Com Teodósio, essa fórmula transforma-se em lei
suprema, não apenas da Igreja, mas também do Estado,
que ameaçava com o peso de seu braço quem ousasse
desobedecer. Assim, a intolerância religiosa fez sua entrada
no mundo, dando início a seu funesto reino. No Ocidente, a
ortodoxia nicena difundiu-se e enraizou-se com facilidade,
pois, durante a longa disputa, o Ocidente sempre foi
favorável a Atanásio. O único episódio agudo foi a luta de
Ambrósio contra Justina, a imperatriz regente, que trouxe
para Milão uma tardia simpatia pelo arianismo e tentou
reunir em sua corte os dispersos partidários da derrotada
doutrina. Mas junto com Graciano, antecessor e meio-irmão
do menino Valentiniano II, de quem Justina era mãe e
tutora, Ambrósio já havia levado a ortodoxia ao triunfo e
direcionado o Estado para a via da intolerância. Colocou-se
ousadamente contra a imperatriz e, reforçado pela devoção
do povo, obteve uma vitória fácil. Assim, o arianismo
apagou-se no mundo romano, dando à ortodoxia um
Império que não foi abalado sequer quando o arianismo
reapareceu na cena do mundo, trazido pelos godos e pelo
longobardos. O grande drama teológico, cujos elementos
haviam sido elaborados no século III e no qual, em Niceia,
o Estado foi com Constantino o ator principal, fechou-se no
final do século IV. Ambrósio completou a obra que Atanásio
havia iniciado. Constantino pretendia instituir uma
ortodoxia religiosa que fosse um instrumento para o
Estado; Graciano e Teodósio fizeram dela uma potência
para a qual o Estado serviu de instrumento. E o
pensamento humano ficou aprisionado para sempre.
A vitória da ortodoxia nicena, aliada à direita origenista
do arianismo, foi um acontecimento de suprema
importância, que determinou o rumo do cristianismo por
uma longa série de séculos. A partir dessa vitória, criou-se
o cristianismo metafísico, científico e dogmático. Se tivesse
triunfado a doutrina do arianismo puro de Paulo de
Samósata, aquela simples doutrina que afirmava a
existência de um Deus Pai revelado por um homem
divinizado por sua virtude, nem Santo Agostinho nem Santo
Tomás seriam possíveis. A simplicidade dessa concepção,
acessível e compreensível para todos, afastaria a
necessidade de árduas e complicadas construções
dogmáticas. Mas tal doutrina, justamente por sua
simplicidade, não podia satisfazer as exigências do espírito
greco-latino, sedento de fantasias metafísicas e entusiasta
do idealismo platônico que Plotino, Porfírio e os
neoplatônicos haviam reanimado no mundo do pensamento.
Orígenes foi o primeiro e verdadeiro legislador da
metafísica cristã, moldada com materiais oriundos do
neoplatonismo. Trata-se de uma cosmologia na qual as
ideias, sob a forma das hipóstases divinas, conservam a
mesma função que têm no sistema de Platão. A cosmologia
origenista, por si só, já era fantástica, complicada e
misteriosa; aliando-se à ortodoxia nicena, tornou-se ainda
mais difícil de entender ou, para usar a palavra exata, mais
irracional, pois, quando a ortodoxia nega completamente a
subordinação do Logos a Deus e afirma a absoluta unidade
de substância nas pessoas, que, no entanto, conservam-se
distintas, ela, como já foi dito, intensifica o mistério. Vem
daí a criação, elaborada em todas as suas partes pela
grande mente de Santo Agostinho, de uma religião
metafísica, cosmológica, incompreensível, que, justamente
por ser incompreensível, teve de ser imposta como um
dogma que não se discute, do qual somente a Igreja possui
a chave. Assim foi sepultada a pura e divina inspiração do
Evangelho. A Igreja tornou-se senhora absoluta do
pensamento humano, que só nela teria acesso ao
conhecimento da verdade, pois fora dela só encontraria
erro e perdição.

Enquanto este movimento fermentava no mundo do


pensamento teológico e nas grandes discussões dos
Concílios, enxertando as ideias platônicas no tronco do
monoteísmo e criando uma dogmática toda feita de teses
incompreensíveis, impostas como artigos de fé, o
cristianismo, difundindo-se entre todos os estratos sociais,
substituía o paganismo paganizando-se e tornando-se
idólatra. E tinha de ser assim, pois as condições
intelectuais da humanidade não tinham mudado. No pagão
e no cristão, permaneciam inalterados o modo de conceber
a divindade e sua ação no mundo. Os santos e os mártires
tomaram o lugar das antigas divindades, e o culto assumiu
o modelo dos ritos politeístas, seguindo sobretudo o
caminho dos mistérios. Nas palavras de Müller:
O cristianismo absorveu o politeísmo e assumiu o posto
que ele deixara vago. As ruínas do mundo antigo
recompõem-se numa nova vida na Igreja. A vida religiosa
do povo e as cerimônias eclesiásticas são a imediata
continuação da vida e das cerimônias antigas. Não existe
interrupção. O aspecto do mundo permanece o mesmo. A
religiosidade do povo expressa-se, como no paganismo,
no cumprimento regular e correto dos deveres rituais, e
quanto mais ricas são as formas do culto, mais satisfeito
sente-se o povo. O cristianismo só arranhou a pele do
mundo antigo. Só em alguns poucos permanecia viva a
consciência de que o cristianismo não podia se entregar a
essa tendência, de que o cristão é chamado antes a uma
íntima e imediata comunhão com Deus e de que esta
consciência deve conduzi-lo ao ascetismo.23
Com a intenção de fazer da Igreja um apoio e um
instrumento de poder, Constantino concedeu-lhe riquezas e
privilégios. De maneira indireta, acabou por transformá-la
radicalmente. Ela deixou de ser aquela confraternidade
religiosa composta pelos desvalidos, tantas vezes
perseguida, sem nenhuma influência mundana, que se
satisfazia com um culto simples, celebrado entre paredes
humildes e domésticas. Triunfante, quis impor-se às
multidões e precisou do luxo que atrai, das lendas que
consolidam a fé. Em sua evolução, aproveitou-se do espírito
dos tempos, mudanizando-se no contato com o paganismo e
assumindo muitos de seus hábitos. Vêm daí o fausto, o luxo,
a hierarquia numerosa que já se observam no século IV.
Desenvolveu sua liturgia, formulou seus dogmas nos
Concílios, defendeu-os furiosamente e instituiu suas festas.
A vida do clero e dos bispos não podia ser aquela da Igreja
primitiva. Tornou-se corrupta e luxuosa. Amiano descreve
os bispos citadinos: “Enriquecidos com as oblações das
matronas, percorrem as ruas sentados em carruagens,
esplendidamente vestidos, amantes de banquetes
abundantes, capazes de superar as mesas reais”.24
A Igreja aceitou as divisões da administração romana,
assumiu suas ideias de hierarquia e quis ter grande número
de funcionários. A preocupação com os cuidados mundanos
fez com que esquecesse aquele amor à fragilidade e à
pobreza que havia sido sua força de atração original. Uma
religião simples, um Deus supremo, criador do Céu e da
Terra, um redentor da humanidade não podiam bastar para
homens habituados à multiplicidade dos santuários e dos
deuses. A Igreja, portanto, foi levada a reconhecer
divindades secundárias e mais humanas, a quem dirigir as
preces, e precisou instituir um culto secundário ao lado do
culto ao Deus supremo. Assim nasceu o culto dos santos.
A antiga religião continuou, portanto, a viver com suas
numerosas divindades sob o véu desse culto. O santo
reuniu a seu redor os mesmos adoradores que antes
procuravam as antigas divindades pagãs. O santo assumiu
todas as suas funções. Como Mercúrio, ajuda os
empreendimentos, guarda as propriedades; como
Esculápio, devolve a saúde. O culto dos santos acabou
sendo a única e verdadeira religião do povo, para quem os
dogmas permaneciam desconhecidos. Foi com este culto
que o cristianismo conseguiu substituir o paganismo,
assumindo suas formas. O paganismo triunfou em todas as
manifestações exteriores da religião. Não houve sequer
uma batalha entre paganismo e cristianismo em torno de
uma maior ou menor prevalência da superstição e do
formalismo; o primeiro introduziu-se no segundo à socapa,
progredindo sempre, à medida que os fiéis aumentavam.
No final da conquista, a Igreja havia mudado sem perceber.
Seu culto externo não era, no fundo, mais que a
restauração do culto antigo.25
A paganização do cristianismo, que teve lugar na
dogmática e no culto, logo se verificou também nos
costumes, assim que o cristianismo passou a ser uma
religião dominante e conquistou as massas. A tenacidade
no cuidado dos bens e na busca dos gozos da Terra não
arrefeceu em nada com a conversão dos homens ao
cristianismo. Na questão moral, dava no mesmo ser pagão
ou cristão. Quase se podia dizer que, ao passar para o
cristianismo alguns de seus piores elementos, o paganismo
tinha, em parte, se purificado. E era natural que
acontecesse assim. Com imperadores cristãos, ser cristão
transformou-se em condição necessária para ter sucesso na
vida. Para continuar pagão era preciso ter muita virtude e
uma forte convicção. O espetáculo oferecido pelas cortes
dos constantinianos, como a de Constâncio, por exemplo,
com as intrigas reinantes, o domínio absoluto dos eunucos
e os massacres neronianos que ali se perpetravam,
mostrava a derrocada moral na qual o cristianismo
naufragou fatalmente quando deixou de ser a religião de
uma minoria perseguida para transformar-se numa religião
reconhecida pelo Estado. Enquanto requisitou e usou todas
as forças dessa minoria na luta de resistência contra a
perseguição, o cristianismo moralizou poderosamente o
homem, elevando-o ao sentimento de uma heroica virtude.
Mas assim que o cristianismo, já vitorioso, conseguiu se
estabelecer com segurança e paz, o homem ficou livre para
retornar ao exercício de suas paixões e para consagrar ao
mal todas aquelas energias voltadas antes para o combate
supremo. Homem e mundo não precisaram mudar de
verdade para se tornar cristãos. Ao contrário, para piorar
ainda mais a situação das almas e das coisas, surgiu um
fenômeno totalmente novo, aquele dos partidos e dos ódios
teológicos. No mundo antigo, as metafísicas eram simples
opiniões, mas o cristianismo helenizado transformou a
metafísica num dogma indiscutível. A consequência foi a
intolerância doutrinal: como a fé no dogma era condição de
salvação e cada partido pretendia ser o dono da verdade
absoluta, todos sentiam-se no direito e no dever de
combater os erros alheios, não somente com a razão, mas
também com a violência. O espetáculo das discórdias
teológicas era tão escandaloso que Amiano Marcelino,
como vimos, não hesitava em afirmar que os cristãos
dilaceravam-se uns aos outros com a ferocidade das bestas.
Contudo, havia tanta força na natureza íntima do
cristianismo, natureza que respondia com tanta eficácia a
determinadas exigências da alma humana, que uma reação
contra o seu rebaixamento às condições da vida e do
mundo era inevitável. E essa reação assumiu a forma e o
corpo do monasticismo. O ascetismo, isto é, a renúncia ao
mundo para isolar-se e sublimar-se nas contemplações
ideais, não era desconhecido na Antiguidade. Mas a
novidade cristã foi a organização de uma sociedade
monástica que realizava em si o ideal cristão em toda a sua
pureza. Havia, portanto, dois cristianismos: o cristianismo
que, vivendo na vida de todos, precisava corromper-se e
rebaixar-se ao nível da humanidade que o praticava, e o
cristianismo que, se afastando do mundo, na solidão
organizada dos conventos, mantinha aceso o ideal das
aspirações e das virtudes cujo código divino era o
Evangelho. O monasticismo, como todas as coisas
humanas, acabou desviando-se da pureza do ideal e,
adaptando-se às exigências mundanas, tornou-se, ele
também, um instrumento de paixões e interesses terrenos.
Mas foi, na origem, uma reação salutar que salvou o
cristianismo, pois manteve viva a sua força de atração,
quando desapareceu a força que vinha do exemplo do
heroísmo perseguido. As exigências da vida citadina,
doméstica, civil rebaixavam o cristianismo ao nível do
paganismo, do qual ele era sucessor. A organização
monástica eliminou essas exigências. Com isso, pôde
sustentar o cristianismo em sua elevação ideal. Podemos
constatar, no final do século IV, a eficácia do exemplo
monástico como estímulo à conversão ao cristianismo no
famoso episódio de Ponticiano, nas Confissões de Santo
Agostinho, e na recepção que ele teve.26

O movimento monacal encontrou apoio e benevolência em


Atanásio e no partido ortodoxo, enquanto o arianismo o via
com antipatia e suspeita. Temos aqui uma das razões pelas
quais a vitória final coube a Atanásio. O arianismo
representava o racionalismo, mas também o
empobrecimento do cristianismo. A idealidade mística e o
sentimento moral se perdiam completamente. O
cristianismo era adaptado, sem freios e sem reações
salutares, às necessidades do viver social e aos interesses
mundanos. Diversa era a atitude da ortodoxia. É bem
verdade que Ambrósio empurrava Graciano e Teodósio para
a via da intolerância, mas também não hesitava em
enfrentar o violento e poderosíssimo Teodósio,
conclamando-o ao arrependimento de suas culpas. Já os
bispos arianos ou semiarianos, que cercaram Constantino e
mais ainda Constâncio, buscavam na indulgência para com
os delitos dos imperadores uma fonte de influência e
sucesso. O partido atanasiano conservava o sentimento da
essência moral do cristianismo bem melhor que o partido
rival. Por isso favoreceu o monasticismo como protesto
contra a mundanidade triunfante, e também por isso as
mais belas, maiores figuras desse período de luta teológica
encontram-se, todas elas, nas fileiras da ortodoxia nicena.
O monasticismo, que teve início no Egito, onde já
encontrou o terreno preparado pelos devotos de Ísis e de
Serápis, poderia se transformar num perigo para a Igreja,
caso o protesto se transformasse em rebelião aberta. Mas a
ortodoxia vitoriosa promoveu uma ação sabiamente
moderadora, mantendo-o nos limites de uma afirmação
religiosa que conservou acesa e visível a chama do ideal
cristão. Contudo, se o monasticismo certamente ajudou a
salvar o periclitante ideal cristão, também contribuiu
indiretamente para a mundanização da Igreja, pois
estabeleceu uma divisão bastante nítida e precisa entre
aqueles que seguiam os princípios cristãos em toda a sua
pureza e aqueles que tratavam de adaptá-los aos interesses
terrenos. Esta adaptação era, até certo ponto, legitimada
pela existência, no seio da Igreja, de uma organização que
havia assumido a função de cumprir, em sua perfeição, a lei
de Cristo e que, portanto, parecia autorizar tacitamente a
transgressão entre aqueles que não faziam parte dela.
Essa rápida deterioração do cristianismo vencedor e
constituído como autoridade reconhecida é um dos fatos
mais sugestivos, ou melhor, mais claramente instrutivos
que a história humana apresenta. O cristianismo havia
estabelecido um princípio efetivamente novo e
propriamente sublime, o da igualdade dos homens, do qual
derivava o dever do amor e do respeito mútuos, princípio e
dever que tiveram sua suprema sanção no ignominioso
suplício de um Deus que se sacrificava pela salvação da
humanidade. Este princípio, que era a negação da base
sobre a qual se fundava a sociedade antiga, atraiu as
multidões inumeráveis dos oprimidos e dos infelizes e
sacudiu a sociedade de tal maneira que ela não pôde
resistir. Mas o cristianismo mostrou-se realmente
impotente para remodelar, com base nesse princípio, uma
nova sociedade. A sociedade cristianizada não foi
moralmente melhor que a sociedade pagã, limitando-se a
atenuar todo o seu arcabouço político e civil. A escravidão
foi suavizada,27 mas a Igreja, agora poderosa, esquivou-se
de aboli-la. A abolição não veio do cristianismo vitorioso,
mas das invasões bárbaras, com as quais uma nova forma
de servidão, a servidão da gleba, passou a ocupar o lugar
da servidão pessoal.
A incapacidade de o cristianismo vitorioso transformar o
mundo e a sociedade a partir dos princípios que eram o
fundamento de sua doutrina demonstra que o progresso
humano na via da civilização decorre de causas diversas
daquelas que estão contidas numa pregação, num
ensinamento puramente moral. No final deste livro,
buscaremos quais seriam essas causas. Por ora, vamos nos
limitar a recriar o ambiente em que se desenvolveu a
tentativa de Juliano. Vimos como o cristianismo,
apropriando-se do pensamento filosófico, intensificou-o a
ponto de acender em torno dele as mais fortes paixões, de
transformá-lo na questão suprema, de substituir, no
fundamente da fé, o sentimento pelo dogma. Mas como
esse fervor de pensamento metafísico, essa ânsia de
explicações transcendentais não eram exclusividade do
cristianismo, mas respondiam a uma condição especial do
espírito humano num determinado momento de sua
evolução, é possível encontrá-los também no campo
inimigo, em que se manifestavam num sistema paralelo ao
da dogmática cristã, num sistema que permitia a
transformação do politeísmo antigo numa religião que, com
seu simbolismo metafísico, podia pretender e iludir-se com
a ideia de combater e vencer o cristianismo. Juliano era o
mais fervoroso discípulo dessa filosofia religiosa. Nela
encontrava as razões, a inspiração e as armas para sua
guerra contra a prevalência de Cristo. Antes, portanto, de
narrar os eventos dessa guerra, vamos examinar, por um
instante, a doutrina que servia secretamente de alimento
para o futuro apóstata, enquanto explodiam a seu redor as
disputas que dilaceravam a Igreja nascente.

NOTAS
1. Zosimo, 150.
2. Sozom., 331.
3. Liban., II, 161.
4. Sozom., 432.
5. Euseb. histor. recognovit Schwegler, 219.
6. Idem, 277, 20 sg.
7. Idem, 342, 10 sg.
8. Socrate, 8.
9. Idem, 9.
10. Idem, 12. – Sozom., 348.
11. Idem, 13.
12. Idem, 19.
13. Sozom., 357.
14. Idem, 36
15. Idem, 50.
16. Idem, 62.
17. Amm. Marcell., I, 271, 15
18. Socrate, 88.
19. Idem, 89.
20. Idem, 126.
21. Gummerus, Die homöasianische partei, 1900.
22. Confess., 8, 2 sg.
23. Müller, Kirchengeschichte, p. 206.
24. Amm. Marcell., II, 100.
25. Müller, Kirchegeschichte, 199 sg. – Harnack, Dogmengeschichte, II, 413 sg.
– Hatch, Griechentum und Christentum. – Marignan, La Foi chrétienne.
26. Confess. – Lib. 8.
27. Allard, Iulien l’Apostat, 329.
Capítulo III. O neoplatonismo

A difusão
religião
do cristianismo, seu reconhecimento como
de Estado, sua progressiva adaptação às
exigências e às condições da época e, finalmente, as
terríveis lutas intestinas que o dilaceraram durante a
elaboração de um corpo doutrinário afirmado como
ortodoxia dogmática – eis os elementos que compunham o
quadro da sociedade greco-romana no decorrer de todo o
século IV. Contudo, a sociedade não se deixava transformar
sem alguma resistência. À construção metafísica e
religiosa do cristianismo, tentava contrapor um sistema
que, substituindo o politeísmo naturalista e racional ou,
pelo menos introduzindo em suas formas um espírito novo,
mantivesse de pé o antigo complexo de tradições, de
pensamento, de organização social. Este sistema foi o
neoplatonismo. Importante notar, como, aliás, já fizemos
anteriormente, que o neoplatonismo, em cuja fonte
Orígenes havia bebido, ao colocar Deus no sobrenatural,
declarando que o misticismo era a única via pela qual o
homem poderia unir-se a um Deus incompreensível,
justamente por ser sobrenatural, foi a matriz que deu
origem à teologia cristã. Não eram neoplatônicos os
arianos, que olhavam com desconfiança e suspeita a
frondosa ramificação das ideias metafísicas em torno do
tronco do cristianismo e cuja preocupação suprema era
salvar o monoteísmo evidentemente comprometido. Mas a
ortodoxia que, se misturando ao origenismo temperado, foi
desaguar em Santo Agostinho, passando por Atanásio,
Hilário, Basílio e os dois Gregórios, nada mais era que um
autêntico neoplatonismo. Porém, havia entre o
neoplatonismo cristão e o neoplatonismo helênico uma
diferença essencial. O primeiro apresentava um novo Deus,
que possuía uma perfeita objetividade histórica e uma
incomparável eficácia de atração; o segundo sustentava as
antigas divindades, mas despindo-as de qualquer conteúdo
pessoal e reduzindo-as à condição de puros símbolos. Era
claro que, desse ponto de vista, a vantagem estava
totalmente do lado do cristianismo. Ora, o grande interesse
que a tentativa de Juliano apresenta é, justamente, a
intenção de contrapor ao Deus cristão os antigos deuses do
Olimpo helênico, com base numa filosofia que, no fundo,
era idêntica à do cristianismo. Juliano quis fazer, no
politeísmo, o que o cristianismo já tinha feito, ou seja, unir
filosofia e religião e criar uma teologia, uma dogmática
politeísta que, organizada numa hierarquia eclesiástica,
pudesse rivalizar com o cristianismo na riqueza da
doutrina cosmológica e mística e que, ao mesmo tempo,
mantendo vivos os antigos numes, os hábitos e as tradições
antigas, salvasse a civilização helênica, o helenismo, como
ele dizia, da catástrofe que pairava sobre ele, causada pelo
cristianismo.
A aparição do neoplatonismo e a imensa influência que
exerceu sobre o espírito humano são um fenômeno de suma
importância na evolução do pensamento e da civilização. O
neoplatonismo representa a falência completa do
racionalismo platônico e aristotélico e de todas as escolas
que sucederam os dois grandes organizadores da filosofia
antiga. Esta última tinha como base o conceito da distinção
absoluta entre matéria e espírito, entre sensível e
inteligível. Refletindo sobre a ideia, o espírito, o inteligível,
pretendia reconstruir idealmente o mundo com uma
confiança completa na razão abstrata, na solidez de
criações ideais, enriquecidas pelo acúmulo de materiais
lógicos extraídos da mina do pensamento, mas não
expostos às lentes da experiência e da observação. O
resultado desse imenso trabalho só podia ser a formação de
miragens racionais, que desapareciam assim que o
observador mudava de ponto de vista. Depois de séculos, a
humanidade sentiu necessidade de algo que respondesse
melhor às suas ânsias e aspirações. Então, na anarquia dos
sistemas que resultava num ceticismo sem saída ou num
conformismo heroico, mas desconsolado, surgiu o
neoplatonismo, tomando emprestado de Platão o espírito, a
ideia, Deus, mas sem vê-los como um princípio
essencialmente racional que nos permitiria caminhar em
busca da verdade. Antes, seriam um princípio
sobrerracional e sobrenatural por excelência, no qual a
verdade jaz irremediavelmente oculta.
Para o neoplatonismo, o conhecimento racional nada mais
é que um grau intermediário entre a percepção dos
sentidos e a intuição do sobrenatural. A ideia suprema não
se encontra naquilo que constitui o conteúdo real e
cognoscível do pensamento, mas naquilo que é sua base
invisível, seu fundo inescrutável. O transcendente é
colocado como suprema realidade. As formas inteligíveis
não são mais que meios transitórios através dos quais a
energia do ser transcendente e sem forma expande-se no
mundo. Esta afirmação do sobrerracional e do sobrenatural
como origem e razão do mundo tinha como consequência
necessária que o homem, não podendo abordá-los por meio
da razão, era obrigado a buscar a fantasia, o que o levava
em seguida ao misticismo e à superstição. E como, na vida
humana, a união com Deus dificilmente é alcançada só com
as forças da alma, a ajuda externa das religiões positivas
passou a ser necessária. Assim, o neoplatonismo tornou-se,
sobretudo em sua evolução no século IV, uma filosofia
religiosa por excelência, uma filosofia que venerava e
pretendia manter vivas todas as religiões antigas,
renovando-as com a interpretação simbólica de seus mitos
naturalistas. O neoplatonismo não percebeu que essa
renovação não representava a restauração, mas sim a ruína
das antigas religiões que, forçadas desse modo a uma
função inadequada para sua natureza, arrebentam
exatamente como velhos odres sob pressão, se neles for
versado um vinho novo. No século IV, o neoplatonismo era,
enfim, um cristianismo sem Cristo, um cristianismo que não
possuía uma divindade histórica e real e que colocava em
seu lugar os fantasmas vazios de divindades totalmente
esgotadas, que só podiam existir como fantoches insípidos
ou símbolos incompreensíveis.
Gostaria, porém, de fazer aqui uma observação que será
mais bem esclarecida com o progresso deste estudo: o
cristianismo venceu o neoplatonismo não apenas por suas
virtudes, mas também por seus vícios. De fato, desde os
seus primórdios, o cristianismo constituiu-se
disciplinarmente e criou uma organização hierárquica. A
existência dessa hierarquia persuadiu Constantino a aliar-
se com a Igreja cristã, que recebeu reconhecimento, mas se
tornou um dos elementos constitutivos do complicado e
pútrido organismo do Império romano-bizantino. Para o
cristianismo, o preço dessa vitória seria necessariamente o
contágio por todos os males que afligiam a potência
mundana que ele abraçava. Como vimos, o ideal da
moralidade cristã teve de refugiar-se nos conventos e nos
mosteiros dos ascetas. O neoplatonismo, que nunca soube
organizar-se e permaneceu sempre como uma opinião, uma
aspiração, uma doutrina pessoal, não oferecia ao Império
nenhuma força, nenhum recurso novo e foi, portanto,
desprezado. A tentativa de Juliano de ligar o neoplatonismo
com o Império, como seu tio Constantino tinha feito com o
cristianismo, foi incompreendida, considerada por alguns
como um divertimento inócuo de um idealista e por outros
como um delito de um apóstata infeliz. Mas o ponto mais
curioso dessa história é que o neoplatonismo, justamente
por ter ficado afastado na solidão de seus mistérios e de
suas meditações, conservou uma aparência de idealidade
que o cristianismo, em contato com o mundo, tinha
perdido. Portanto, a tentativa de Juliano de restaurar o
politeísmo contra o cristianismo assumiu, por mais
estranho que pareça, o significado de uma restauração
moral. Esta foi uma das razões, certamente não a última,
para que a tentativa sucumbisse miseravelmente. As
divergências entre Juliano e os antioquenses, tão
amargamente narradas no Misobarba, vieram justamente
da pretensão do neoplatônico e severo imperador de
corrigir e moralizar a cidade corrupta e cristã. Os
antioquenses não tinham a menor aptidão para seguir as
exortações do moralista imperial. Preferiam claramente o
cristão Constâncio, com suas multidões de eunucos,
parasitas e malabaristas, com suas festas e seus teatros, ao
helênico Juliano, que dividia o tempo entre as tarefas do
Estado e os livros, vivendo fechado numa espécie de
ascetismo filosófico.
O insucesso do neoplatonismo religioso, tragicamente
constatado na catástrofe de Juliano, não teve como
consequência o seu insucesso filosófico. Ao contrário, o
neoplatonismo teve sua revanche na teologia ortodoxa.
Seus numes simbólicos caíram diante do Deus cristão, mas
o cristianismo dogmático impregnou-se de sua doutrina,
fazendo dela a sua metafísica, a qual, por sua vez, sufocou
com suas ramificações a árvore divina do cristianismo
evangélico, impedindo-a de de carregar seus frutos mais
genuínos.
Mas vejamos melhor o que era, em sua essência, essa
filosofia neoplatônica que foi o alimento vital do apóstata
imperial.

A decadência do mundo antigo, a dissolução de suas bases


morais e religiosas, o ceticismo filosófico produzido pela
sucessão de sistemas que, não possuindo nenhum substrato
de verdade, destruíam-se uns aos outros – todas estas
causas que facilitaram a difusão do cristianismo
promoveram também um movimento paralelo no
pensamento grego, voltado para uma percepção imediata e
estática da divindade, que revigorava o antigo politeísmo,
simbolizando-o, e respondia às exigências e aspirações
morais que agitavam e atormentavam a alma humana. Foi
esse movimento de pensamento e de espírito que deu
origem ao neoplatonismo na primeira metade do século III.
Com o nome e com elementos tomados à doutrina de
Platão, criou-se um novo sistema filosófico, que colocava o
sobrenatural como princípio do Universo e da natureza e
levava a razão a mergulhar nesse tema, abdicando de seus
direitos.
A história do neoplatonismo divide-se em três períodos. O
primeiro, a fundação do sistema e seu desenvolvimento
teórico por obra de Plotino, vai do ano 200 ao 270. O
segundo, mais interessante para o nosso estudo, é aquele
de sua elaboração prática para aplicação ao renascimento
do politeísmo, entre os anos 270 e 400, com a participação
sucessiva de Porfírio, Jâmblico e de seus discípulos, entre
os quais Juliano. O terceiro período, entre os anos 400 e
529, é o da escola de Atenas, no qual, por obra
especialmente de Proclo, o neoplatonismo abandona o
aparato místico, transformando-se num sistema didático de
grande importância histórica, pois foi sob essas vestes que
a filosofia grega, exilada de Atenas por um decreto de
Justiniano, viajou para o Oriente, onde mais tarde foi
reunida e salva pelos árabes, que a transmitiram à
escolástica medieval.
O fundador do neoplatonismo foi Amônio Sacas, de
Alexandria, um cristão reconvertido ao paganismo. Ele não
deixou escritos, mas seu grande valor foi demonstrado por
seus ilustres discípulos, Orígenes*1 e Plotino, que afirma ter
encontrado a verdade e a paz nos ensinamentos
ministrados por seu grande mestre. Mas se Amônio foi o
criador do neoplatonismo, Plotino foi seu revelador, com
numerosos escritos que chegaram até nós, ordenados e
publicados por seu aluno Porfírio.
O sistema de Plotino visa a resgatar a alma humana da
degradação em que caiu ao se afastar do princípio que lhe
deu origem. A inspiração de sua filosofia está nesse desejo
de união perfeita com a divindade, no esforço incessante
para sair das injunções do finito e do limitado. Plotino
pretende apontar o caminho pelo qual o homem pode
reconectar-se com Deus e descrever o processo pelo qual o
Universo, oriundo da suprema unidade, a ela retorna e com
ela se confunde.
Plotino estabelece a unidade absoluta da causa primeira.
Desta causa primeira, que é o Ser por excelência, sabemos
apenas que é infinita, que está fora de qualquer possível
determinação, de modo que dela se pode dizer o que não é,
mas nunca o que é. Como causa ativa, ela gera, mesmo
permanecendo sempre igual a si mesma, enquanto a
corrente do devir brota dela. O múltiplo deriva do uno por
um processo dinâmico de transmissão de força. O Ser
primeiro é a matriz de onde tudo deriva, é o objetivo para o
qual tudo tende. Contudo, se o Ser está presente em todo o
Universo, o Universo constitui uma série linear de
manifestações, ao longo da qual a sua ação se atenua, à
medida que aumenta a distância da origem, acabando por
desaparecer no não ser.
Nesta série, o primeiro lugar é do pensamento, da razão,
que é, aliás, o Logos filoniano e cristão. No ato em que o
pensamento gerado, ao sair da unidade do Ser, dirige-se a
ele, refletindo-o, formam-se um contemplante e um
contemplado, um pensante e um pensado, um cognoscente
e um cognoscível. Entre a ideia e o mundo dos fenômenos,
Plotino põe o espírito que, de um lado, é movido e
iluminado pela ideia, e, de outro, está em contato com o
mundo corpóreo que ele gerou. O espírito é ao mesmo
tempo uno e múltiplo, uno por ser o sopro que anima o
Universo inteiro, múltiplo por reunir em si todas as almas
parciais, que serão boas ou más conforme sintam ou não o
desejo de reunir-se e refundir-se com a unidade divina.
Para Plotino, o mundo fenomenal difere do mundo
sobrenatural porque, em oposição a este, é múltiplo,
desarmônico e contraditório, uma caricatura da verdadeira
realidade. A matéria é o puro nada que só pode ser
pensado abstraindo-se qualquer forma e determinação, é a
negação das ideias que são a única realidade, é a origem do
mal. Mas Plotino, como verdadeiro panteísta, não chega
por isso ao conceito gnóstico e pessimista da criação do
mal por um deus secundário, por um Arimã em oposição ao
Deus supremo. Para ele, o mundo é perfeito assim como é.
Representa uma evolução necessária. O mal deve existir
onde quer que exista o bem, deve existir matéria lá onde a
alma, descendendo da unidade ideal, sinta a aspiração de
retornar a ela, fechando assim o ciclo da existência.
Mas como a alma poderá reascender à unidade divina da
qual desceu? Para isso, a virtude é indispensável, pois
purifica a alma, reconduzindo-a à ideia. Mas não basta que
o homem não tenha pecado para que possa se reconectar
propriamente com Deus. Isso só se torna possível na
suspensão extática do homem puro. O pensamento, por si
só, é incapaz desse êxtase, pois o pensamento conduz
apenas à ideia. O pensamento é apenas uma preparação à
união com Deus. Somente na condição de perfeita
passividade e repouso a alma pode conhecer e tocar o Ser
primeiro. A alma começa, portanto, a contemplar a
multiplicidade e a harmonia das coisas, depois mergulha
em si mesma e chega ao mundo das ideias; por fim, num
ímpeto supremo, esquece todas as coisas e encontra-se
face a face com Deus, com a fonte da vida, com o princípio
do ser, com a origem do bem. Desfruta, nesse ponto, da
suprema felicidade. Mas não pode permanecer aí por muito
tempo. Só quando estiver livre do corpo é que sua
contemplação deixará de ser interrompida.
Como místico entusiasta, Plotino teve várias vezes esses
êxtases que o colocavam na imediata presença de Deus.
Seu discípulo Porfírio, na biografia que escreveu do mestre,
relata o seguinte:
Para este homem inspirado que tantas vezes se elevava
àquele Deus que é primeiro e está além do inteligível,
Deus apareceu, embora não tenha forma alguma e não
seja visível, porque tem sua sede no pensamento e no
pensado. Ele só tinha um propósito na vida, aproximar-se
e unir-se a Deus, que está acima de todos. Conseguiu
alcançar este propósito quatro vezes quando eu estava
com ele, graças não a uma potência externa, mas a uma
energia que não se exprimia. À beira da morte, disse que
estava se preparando para levar o divino que há em nós
para o divino que está no Universo e exalou o espírito.
Não fosse a entonação panteísta das últimas palavras,
talvez as mais belas e mais profundas que um moribundo
jamais pronunciou, o entusiasmo místico poderia ser aquele
de um Santo Agostinho. A visão do filósofo neoplatônico
tem uma grande afinidade com o arrebatamento extático
que levou o grande teólogo da ortodoxia a sentir-se,
contemplando o céu e o mar da janela de sua casa em
Ostia, elevado à presença de Deus.
A filosofia de Plotino tem um caráter essencialmente
religioso. Ela é atravessada, em todas as suas partes, pelo
pensamento de Deus e pelo desejo de unir-se a ele. Os
pontos de contato com o cristianismo são evidentes, de
modo que, sob certos aspectos, existe uma identidade de
conceitos e tendências, o que, aliás, se explica primeiro
pelo rumo que o pensamento da época tomou e depois
porque os dois fundadores da metafísica cristã e da
metafísica neoplatônica, Orígenes e Plotino, eram alunos do
mesmo mestre, Amônio Sacas. Contudo, apesar de tantas
analogias, existia entre os dois sistemas, podemos dizer
entre as duas religiões, uma antipatia profunda, dado que o
neoplatonismo era fruto da genuína árvore helênica,
enquanto o cristianismo era fruto daquela árvore na qual se
enxertou o monoteísmo judaico. O neoplatonismo era
profundamente panteísta. O eterno processo evolutivo que
da unidade do Ser desce para a multiplicidade dos
fenômenos para retornar em seguida à unidade, processo
que para Plotino representa a origem e a sucessiva
anulação do mal, exclui o conceito de uma criação
voluntária e de um governo consciente do mundo, exclui a
responsabilidade pela existência do mal, atribuída à
liberdade humana, exclui a necessidade de um processo de
redenção e de um fim do mundo. O cristianismo, com suas
exigências e suas promessas, representava para os
neoplatônicos uma antifilosófica negação da eterna
necessidade, da ordem, da harmonia do Universo, um
desconhecimento irracional de tudo o que os grandes
homens do passado haviam dito de bom e de belo, uma
afirmação pessimista que trazia consigo o
convulsionamento da ordem universal. O cristianismo
dramatizava a história do mundo num trágico processo de
criação, de culpa, de redenção. O neoplatonismo lia nessa
história um hino de glória à necessidade divina, inalterável,
perfeita da harmonia do Todo. O panteísmo neoplatônico
indignava-se diante do individualismo monoteísta do
cristianismo. Vendo Deus em toda parte, encontrava no
politeísmo e na mitologia os símbolos adequados para dar
forma às várias manifestações da divindade. Embora
Plotino estivesse bem distante da extravagância
supersticiosa de seus sucessores, ele também ligava a
magia e a mântica ao conceito e ao sentimento da presença
contínua da divindade. Plotino queria revitalizar os cultos
antigos, transformando-os em símbolos de um pensamento
e de uma aspiração filosófica e religiosa. O cristianismo
anunciava um monoteísmo preciso e um Deus que possuía
uma determinada personalidade histórica e, em seguida,
esforçava-se para revestir um e outro com aqueles mesmos
conceitos filosóficos que formavam a trama do pensamento
neoplatônico. Entre os dois sistemas, havia uma igualdade
na essência do pensamento e uma diferença no modo de
sentir a religião e de dar forma ao pensamento na
manifestação religiosa. Justamente nesta diferença residia
a força do cristianismo, que, ao homem sedento de divino,
oferecia imagens determinadas e precisas, diante das quais
os vagos e oscilantes símbolos do neoplatonismo se
desfaziam como névoa.

A tendência a promover, no neoplatonismo, um


renascimento e uma restauração das antigas religiões, em
oposição ao cristianismo, ficou mais evidente nos discípulos
e sucessores de Plotino. O primeiro desses discípulos foi
Porfírio, que reuniu e publicou as obras do mestre. Espírito
genial e claro, embora distante da profundidade
especulativa de Plotino, foi o verdadeiro iniciador da
renovação do politeísmo. Para ele, todas as religiões
representavam o esforço da alma humana que deseja sair
do finito para reconectar-se com Deus. Como essa
reconexão deve percorrer três graus – primeiro o espírito,
depois a ideia e finalmente o Ser supremo –, o politeísmo
consegue, com a variedade de seus símbolos, representar
de maneira eficaz este procedimento gradual. Mesmo
criticando mitos e cultos irracionais e toscos, afirmando
que o Deus supremo deve ser honrado com o silêncio e com
pensamentos puros, Porfírio pretendia manter de pé todas
as antigas religiões, sustentando a concepção de que,
sendo a religião uma manifestação simbólica, de uma
verdade necessariamente relativa, cada pessoa deve honrar
a divindade segundo os costumes de seu próprio país.
Porfírio reconhecia, portanto, os direitos de todas as
religiões nacionais, tanto as bárbaras, quanto as helênicas
e também a judaica, considerada justamente como religião
de uma determinada nacionalidade. Abominava, no
entanto, o exclusivismo cristão, que, em nome de uma
verdade absoluta, pretendia derrubar todas as formas de
culto que não a sua, rompendo as tradições da filosofia e da
cultura helênica. Porfírio chegou a escrever um tratado,
que se perdeu, contra o cristianismo, para demonstrar a
inconsistência de sua pretensa base histórica e a escassa
credibilidade de seus documentos. Considerava que Jesus
era um homem pio, cujos ensinamentos tinham sido muito
mal compreendidos e desvirtuados pelos discípulos, que
fizeram dele uma divindade.
Ao tomar esse rumo, que transformava o neoplatonismo
de especulação pura em religião positiva, Porfírio deu os
primeiros passos, mas o racionalismo, que o guiava, o
deteve nesse ponto, além do qual a religião se transforma
em superstição e magia. De fato, eis o que Santo Agostinho
diz sobre ele:
Porphyrius quandam quase purgationem animae per
theurgiam, cunctanter tamen et pudibunda, quodam
modo, disputatione promittit. Reversionem vero ad deum
hanc artem portare cuiquam negat, ut videas eum inter
vitium sacrilegae curiositatis et philosophiae
professionem, sentintiis alternantibus fluctuare.
Profírio promete, como que vacilante e em discurso de
certo modo vergonhoso, uma espécie de purificação da
alma por meio da teurgia. Mas nega de maneira formal
que tal arte apresente um caminho de retorno a Deus.
Vemo-lo, assim, flutuar ao sabor de seus próprios
pensamentos, entre os princípios da filosofia e os
escolhos de curiosidade sacrílega.*2

Seus sucessores, a começar por Jâmblico, depois Edésio,


Crisâncio, Máximo e por fim Juliano, foram além do mestre.
Com as fórmulas panteístas do neoplatonismo e com suas
aspirações místicas, pretendiam criar e contrapor ao
cristianismo uma religião simbólica baseada na mais
irracional e repugnante superstição. Juliano quis fazer
desse novo politeísmo uma religião de Estado. Entre as
intenções morais e intelectuais de Juliano e a religião que
ele praticava havia, como veremos, uma contradição
singular e interessante. Essa contradição mostra quão
desesperada era a tentativa do jovem imperador e como ela
só poderia resultar na vitória definitiva do cristianismo.
Para ter uma ideia precisa das razões que inspiraram
Juliano em sua tentativa, é interessante conhecer a
pequena confraria neoplatônica que se reunia em
Nicomédia e nas cidades vizinhas. Juliano fez parte dessa
confraria enquanto viveu em Nicomédia e foi lá que
encontrou a consagração definitiva das tendências
transmitidas por seu primeiro educador, Mardônio. As
informações fornecidas por Eunápio em Vidas dos sofistas,
embora escassas e escritas sem espírito crítico, são
capazes de fazer aquele pequeno mundo reviver diante de
nossos olhos.
O personagem principal, ou melhor, o fundador do
neoplatonismo transformado em religião teúrgica, foi
Jâmblico, aluno de Anatólio e de Porfírio, que viveu nos
tempos de Constantino e, na velhice, chegou a conhecer
Juliano, se é que são autênticas as cartas que este último
lhe escreveu, conservadas até hoje. A pequena biografia
que pode ser lida em Eunápio1 dá a impressão de que
Jâmblico era considerado propriamente um mago, um
fazedor de milagres, e de que todo o seu valor consistia
nisso. Mas Eunápio é um pobre de espírito e empobrece até
aqueles que pretende enaltecer. Alguns escritos de
Jâmblico e muitos testemunhos conservados até hoje
permitem fazer um juízo mais próximo da verdade e
apreciar melhor a importância de sua produção filosófica.2
É bem verdade que nele se destaca menos o filósofo
preocupado com a lógica dos raciocínios doutrinais do que
o teólogo que quer dar à religião e aos seus ritos um
fundamento especulativo. Porfírio já apresentava uma
tendência a ver a filosofia pelo lado fantástico e religioso,
mas Jâmblico deteve-se com maior insistência neste ponto
de vista. Se Porfírio acreditava que a ajuda dos deuses era
necessária para alcançar seu escopo mais religioso que
filosófico, Jâmblico recorria ainda mais a eles, pois tinha
pouca confiança nas forças do homem. As claras e simples
categorias do sistema plotínico não bastavam para
Jâmblico. Sua filosofia torna-se espantosamente complicada
e confusa pela multiplicação das hipóstases da unidade
divina. Em seu fantástico pensamento, cada momento
racional concretiza-se numa hipóstase divina. Para Jâmblico
não havia modo melhor de representar a divindade que
multiplicá-la, subdividindo-a ao máximo e denotando com
figuras distintas todas as funções que exprimem sua
essência e suas relações com o finito. Esse fracionamento
da unidade ideal, essa degradação sucessiva do uno para o
múltiplo são o que distingue o neoplatonismo de Jâmblico
daquele de Plotino. A importância histórica da doutrina de
Jâmblico reside na transformação do neoplatonismo, que
em Plotino era uma afirmação ideal do transcendente e do
sobrenatural, numa teologia mística que se colocou
resolutamente a serviço de uma religião positiva.
No grupo dos alunos e sucessores de Jâmblico, parece
que o mais notável foi Edésio. Ele havia sido destinado pelo
pai ao comércio e enviado para a Grécia a fim de praticar.
No entanto, para grande surpresa e indignação do pai,
voltou filósofo. Mas o jovem conseguiu obter seu perdão e a
permissão de juntar-se a Jâmblico para aperfeiçoar-se nas
doutrinas filosóficas. Com o fim da escola de Jâmblico,
Edésio resolveu seguir as indicações de um presságio
milagroso e retirou-se para a solidão de uma vida pastoral.3
Mas os jovens que desejavam estudar com ele foram
perturbá-lo em seu retiro. Para não deixar que tanta
sabedoria fosse desperdiçada nas rochedos, em meio às
árvores, obrigaram-no a retornar ao consórcio humano.
Edésio concordou a contragosto e, rumando para a Ásia,
instalou-se em Pérgamo, onde abriu uma escola cuja fama,
sempre segundo o crédulo e entusiasta Eunápio, chegou ao
céu.
As figuras mais destacadas dessa escola eram Máximo,
Eusébio, Crisâncio e Prisco. O primeiro, nas palavras de
Eunápio, que, quando era jovem, conheceu Máximo já
idoso, causava forte impressão em todos os que o
encontravam pela bela figura, pelo brilho dos olhos, pela
harmonia da voz e pela fluidez da palavra. Ambicioso e
inquieto, teve uma vida agitada, que terminou
tragicamente. Exerceu uma poderosa influência sobre
Juliano e podemos dizer que foi, junto com Mardônio, o
verdadeiro autor da orientação religiosa e filosófica do
príncipe. Máximo era um entusiasta do ritualismo mágico e
foi um dos mais eficientes colaboradores na transformação
do neoplatonismo em religião teúrgica. Era uma espécie de
santo, dotado do poder de fazer milagres. A oposição entre
Máximo e Eusébio é interessante e sumamente instrutiva
para a compreensão daquele ambiente. Eusébio tendia a
racionalizar o neoplatonismo e alimentava uma forte
antipatia pelas superstições mágicas e teúrgicas em que a
filosofia mergulhava, perdendo seu caráter especulativo.
Mas ele tinha medo de Máximo. Podemos ler em Eunápio
que, quando Máximo estava presente, Eusébio evitava usar
a agudeza de sua própria lógica, toda feita de artifícios e
enredos dialéticos. Porém, quando ele não estava, Eusébio
refulgia como um astro quando o raio do Sol desaparece.4
Essa oposição entre Eusébio e Máximo aparece com todo o
seu brilho no singular e sintomático episódio das relações
entre Eusébio e Juliano. O jovem príncipe, sedento de
saber, foi a Pérgamo atraído pela fama de Edésio, querendo
que ele o instruísse. Mas Edésio estava e sentia-se velho.
Gostaria de poder ser teu professor, mas o corpo não
responde mais ao querer da alma. Aconselho-te a
procurar meus alunos. Com eles, poderás fazer um
verdadeiro banquete de todo tipo de ciência e doutrina.
Gostaria que Máximo estivesse aqui, mas ele está em
Efeso, e Prisco partiu para a Grécia. Eusébio e Crisâncio
estão aqui. Ouvindo-os, não lamentarás que eu esteja
velho.

Naturalmente, Juliano seguiu o conselho. Mas logo


percebeu algo de obscuro e inquietante nas relações com
os dois mestres. De fato, Crisâncio era admirador e
seguidor de Máximo, mas não parecia concordar
plenamente com a doutrina de Eusébio, embora não se
comprometesse em desmenti-lo. Certo dia, depois de
instruir Juliano sobre a interpretação dos antigos filósofos,
Eusébio declara que a verdade está toda ali e que magias e
encantamentos iludem os sentidos e são obra de feiticeiros
que enganam com ajuda de potências materiais.
Desconfiado, sem entender bem o significado e a razão
dessa advertência que encerrava as explicações de
Eusébio, Juliano procurou Crisâncio. “Meu caro, Crisâncio”,
disse, “tu que conheces a verdade, dize-me o que significa
este epílogo nas explicações de Eusébio.” Mas Crisâncio,
homem prudente por excelência, que não queria fazer
inimigos, mostrou-se extremamente circunspecto. “Farias
melhor em perguntar ao próprio Eusébio”, respondeu. E
Eusébio, interrogado diretamente por Juliano, deu a
seguinte resposta para explicar o que entendia por magia:
Máximo, que passou, pela força do caráter e da
inteligência, a desprezar as nossas demonstrações,
mergulhando numa espécie de mania, reuniu-nos certo
dia de manhã bem cedo no templo de Diana, cercado por
muitas testemunhas. Quando estávamos todos juntos,
depois de inclinar-se diante da deusa, ele disse: “Sentem-
se, ó caríssimos companheiros, observem o que vai
acontecer e verão como estou muito acima de todos.” Nós
sentamos e, depois de queimar um grão de incenso,
Máximo estava cantando um certo hino consigo mesmo,
quando, de repente, a estátua começou a sorrir e depois a
rir abertamente. Gritamos de espanto diante dessa visão,
mas ninguém se mexeu nem falou, pois logo se
acenderam as lamparinas que a deusa carrega em ambas
as mãos e a chama pareceu mais esperta que nossas
palavras. Fomos embora impressionados, no momento,
com aquele espetáculo milagroso. Mas tu não deves
admirá-lo, como eu não admiro. Deves antes
compreender que muito maior é a purificação por meio
da razão.5

Estas últimas palavras de Eusébio revelam um espírito


singularmente agudo, um daqueles racionalistas
imperturbáveis, sempre raros, raríssimos na Antiguidade –
quando ainda não existia a ciência positiva –, que sabem
negar fé ao testemunho dos sentidos. Mas Juliano era um
homem completamente diferente. Sua conduta em relação
a Eusébio vale mais que qualquer outro indício para
esclarecer a índole de seu espírito. De fato, mal Eusébio
acabou de falar, Juliano exclamou: “Adeus, fica então com
teus livros; quanto a mim, tu me indicaste o que eu
buscava.” E, abraçado com Crisâncio, partiu para Efeso ao
encontro de Máximo. Encontrando-o, ficou fascinado com o
novo mestre, agarrando-se tenazmente à sua doutrina.
Máximo, que evidentemente não era homem de perder uma
oportunidade de abrir caminho, quase não acreditou que
tinha entre seus alunos um príncipe constantiniano –
perseguido, é verdade, mas sempre ao pé do trono – e
tratou de instruí-lo com fervor para transformá-lo num
devoto. Logo percebeu que não poderia satisfazer sozinho a
curiosidade do jovem e convocou o amigo Crisâncio para
ajudá-lo. Os dois juntos fizeram de Juliano aquele místico
fervoroso, para quem religião e filosofia se confundiam na
mais crédula superstição. Quando se tornou imperador,
Juliano chamou Máximo e Crisâncio para Constantinopla.
Máximo veio imediatamente e foi recebido por Juliano com
uma extraordinária demonstração de respeito. Mas
Crisâncio, amante de uma vida tranquila e mais previdente
que Máximo, porque menos ambicioso, não se deixou levar,
por mais que Juliano insistisse, tentando até obter o apoio
da esposa do filósofo. Enquanto isso, em Constantinopla,
Máximo vivia cercado e pressionado pelos adoradores do
astro ascendente, que não o deixavam um instante de paz,
de modo que precisou buscar ajuda de alguém que o
liberasse, em parte, de tantas solicitações. Como Crisâncio
continuava a recusar-se, veio o filósofo Prisco. E os dois,
Máximo e Prisco, não abandonaram mais o imperador,
seguindo-o na campanha da Pérsia. Vamos encontrá-los na
barraca, ao lado do herói ferido que, em serenos e altos
colóquios, preparava-se para a morte. Depois da queda de
Juliano, a vida de Máximo prolongou-se numa trágica
sequência. Perseguido, espoliado e torturado pelo
imperador Valente e seus soldados, foi salvo por Clearco,
que conseguiu recolocá-lo nas graças do imperador.
Finalmente, acusado de ter participado de uma
conspiração, foi decapitado em Éfeso.6 Máximo exerceu
uma influência enorme e decisiva no espírito inquieto e
místico de Juliano, reconhecida por ele no discurso contra o
cínico Heráclio, quando atribui ao “supremo filósofo”, que o
instruiu, todo o mérito de sua iniciação na verdadeira
filosofia.7

Se Máximo é interessante em sua entusiástica fidelidade a


Juliano, ele é considerado, em geral, um personagem
antipático. Charlatão, supersticioso, cheio de si, ambicioso
de poder e fama, afetado e com ares de super-homem,
semeava ódios e rancores ao seu redor, o que o levou à
ruína assim que seu protetor desapareceu. Eunápio conta
um episódio tragicômico a seu respeito, que certamente
não atenua a sensação de repulsa que sentimos por essa
espécie de mago do neoplatonismo, apesar das terríveis
infelicidades que caíram sobre ele no fim de sua
tempestuosa carreira. Enquanto Máximo era torturado
pelos esbirros de Valente, sua apaixonada e corajosa esposa
estava presente, muito angustiada. Máximo sussurra:
“Mulher, vai comprar um veneno, entrega-me e liberta-me.”
A esposa sai e retorna com o veneno, mas não querendo
sobreviver ao marido, pede para tomá-lo antes dele; toma e
morre em seguida. Mas Máximo não bebe!8
Outro personagem importante e pouco simpático que
ficou ao lado de Juliano até o fim é Prisco, também da
escola de Edésio. Douto, a ponto de ter na ponta da língua
toda a doutrina dos antigos, de aparência belíssima, era um
homem irascível e de modos ríspidos. Não descia ao nível
das discussões e guardava sua sabedoria para si, como um
tesouro, chamando de dissipadores os que falavam com
facilidade de filosofia. Já Edésio era um mestre amável que
usava o método socrático em suas aulas e falava com todos,
incutindo em seus discípulos a cortesia e um sentimento de
humanidade.
Passeando pelas ruas de Pérgamo, acompanhado por um
séquito de alunos, ele puxava conversa com todos: a
vendedora de legumes, o tecelão, o ferreiro, o carpinteiro.
E de tudo e todos extraía argumentos para sábios
ensinamentos. Os alunos desfrutavam dessas conversações.
Prisco era o único que se rebelava e ousava chamar o
mestre de traidor da dignidade filosófica, um falastrão que
enchia a alma de conversa-fiada e não conseguia solucionar
nenhum problema. Prisco era, portanto, a fina flor do
pedantismo. Não se pode dizer que o pobre Juliano teve
sorte na escolha dos companheiros filosóficos que o
seguiram em seu breve reinado. Mas o pedantismo não
impedia que Prisco fosse prudente e sagaz em sua vida
pessoal. Ao contrário do impulsivo e ambicioso Máximo,
conseguiu escapar dos perigos que o ameaçavam depois da
queda de Juliano, retirando-se para a Grécia onde viveu até
os noventa anos, sempre fechado em seu jeito misterioso e
taciturno, rindo por dentro da fraqueza humana.
Teria sido uma sorte grande para Juliano se, em vez do
charlatanesco e orgulhoso Máximo e do pendante e
repulsivo Prisco, tivesse conseguido trazer o amável
Crisâncio, o mais equilibrado, doce e sensato dos alunos de
Edésio. Isso não quer dizer que sua orientação filosófica
fosse boa e recomendável. Sua devoção a Máximo e aos
ritos teúrgicos bastaria para provar o contrário. No começo
de sua educação filosófica, Crisâncio lançou-se com paixão
ao estudo da doutrina de Platão e de Aristóteles. Tornou-se
tão exímio que não temia competidores e saía vitorioso de
qualquer discussão. Mas depois, por influência de Máximo,
foi atraído pelas doutrinas pitagóricas e pelos ritos
teúrgicos e divinatórios que constituíam a religião
neoplatônica e logo tornou-se tão hábil que poderíamos
dizer que via o futuro melhor que o presente, quase como
se estivesse em permanente contato com os deuses.9
Mas nesse ponto nasceu uma divergência entre os dois,
pois Máximo, em seu orgulho, pretendia que a previsão do
futuro se conformasse a seus desejos e vontades, enquanto
Crisâncio, ao contrário, seguia humildemente os indícios
divinos. Porém, apesar disso, Crisâncio era um homem de
grande sagacidade e claro bom senso. Em sua obstinada
resistência aos convites de Juliano, quando o antigo aluno
chegou aos píncaros da glória, ele não era guiado apenas
pelos presságios, que dizia não serem favoráveis à viagem,
mas também por uma segura percepção da imprudência e
da leviandade do imperador em sua intenção de reviver o
helenismo contra o cristianismo. Crisâncio deu uma prova
luminosa e interessante disso, pois, vinda de um amigo e
correligionário, sua atitude é uma condenação implícita da
conduta de Juliano que, nem um pouco ofendido pelas
repetidas recusas do mestre, resolveu dar-lhe, antes de
partir para a Pérsia, uma demonstração de afeto e
confiança, nomeando-o sumo sacerdote da Lídia. Crisâncio
aceitou, mas exerceu seu sacerdócio de modo curioso e
certamente pouco conforme às intenções de Juliano.
Enquanto todos no Império tratavam ardorosamente de
reerguer os templos, ele nada fez nem incomodou os
cristãos, de modo que quase se pode dizer que a Lídia não
conheceu a restauração do politeísmo. Por conseguinte,
quando da morte de Juliano, na região cujo governo
espiritual cabia a Crisâncio, as coisas voltaram ao estado
anterior sem nenhuma perturbação. Ao contrário, reinava
uma paz profunda, que tornava ainda mais singular e
espantoso o turbilhão de paixões e vinganças que agitava o
resto do Império.10 É fácil entender que, com tanto bom
senso e prudência, Crisâncio, mesmo se conservando um
helenista fiel, tenha conseguido atravessar tranquilamente
uma época tão agitada por disputas religiosas e seguir sua
vida até a mais avançada velhice.
Um homem que com certeza exerceu uma influência
decisiva sobre o espírito de Juliano no momento psicológico
de sua rebelião contra Constâncio e que, provavelmente,
participou da preparação do pronunciamento militar que
proclamou Juliano imperador, foi o médico-filósofo Oribásio
de Pérgamo, pertencente também ao cenáculo
neoplatônico. Sabemos que Oribásio foi o único amigo de
Juliano que pôde acompanhá-lo à Gália. Juliano convocou-o
como médico e só obteve permissão para levá-lo porque
ninguém sabia da amizade dos dois. Já vimos a curiosa
carta em que Juliano narra para o amigo aquele sonho que
é um claro presságio do golpe do destino que viria em
seguida, um daqueles sonhos felizes que só acontecem
quando se deseja ardentemente uma coisa. Oribásio e o fiel
servo Evemero eram os únicos admitidos na intimidade das
misteriosas e sagradas cerimônias que Juliano praticava
com o sumo sacerdote, que ele havia trazido da Grécia para
Paris. Por fim, Eunápio, que numa biografia perdida de
Juliano se esquivou de narrar detalhadamente tudo o que
Oribásio fez na ocasião, escreve na biografia de Oribásio
uma frase complexa e prenhe de significado, que se presta
a várias interpretações, mas parece apontar para o papel
eminente que teve na rebelião de Juliano: Eunápio afirma
que a importância de Oribásio era tão grande que foi ele
quem fez de Juliano um imperador.11
Depois da catástrofe, Oribásio foi mandado para o exílio
junto aos bárbaros, mas como sua ciência médica era
preciosa para todos, conseguiu manter-se à tona no
naufrágio do helenismo e foi até reconvocado e reabilitado
em sua honra e em suas posses, que haviam sido
espoliadas.
Nesse grupo de filósofos e amigos que foram mestres ou
companheiros de Juliano e que estiveram a seu lado em sua
tortuosa carreira, o homem mais equilibrado e seguro era
Salústio, o fiel conselheiro que já encontramos narrando a
vida de Juliano e que conheceremos melhor ao ler a longa
carta que Juliano lhe escreveu quando eles se separaram.
Escritor e filósofo hábil e profundo, capaz de elaborar um
claro e popular resumo das doutrinas neoplatônicas “para
uso daqueles que ainda podem ser guiados pela filosofia e
que não têm a alma insanavelmente corrompida”,12 era
também um homem de altíssimo valor moral e de grande
competência nas coisas militares e administrativas, ou seja,
um homem digno da confiança que Juliano depositava nele.
Salústio espelhava-se nesta nobre sentença: “Os homens
bons retornam aos deuses, mas mesmo que isso não
ocorresse, a virtude em si mesma, o prazer e a glória que
resultam da virtude, uma vida sem tristezas e sendo dono
de si bastam para a felicidade do virtuoso.”
O fato de um homem como Salústio ser filiado ao
cenáculo neoplatônico e seguir suas doutrinas prova que,
sob a explosão daquelas fantásticas superstições que eram,
afinal, a expressão das necessidades religiosas da época,
existia um núcleo de pensamento e sentimento são e
verdadeiro. O helenismo agonizante não gerava apenas o
brilho turvo da luz que emanava da fantasia exaltada de um
Jâmblico ou de um Máximo, mas ainda conservava a força
moralizadora que garantia o beneplácito e a devoção de
muitos dos homens melhores e mais cultos. Não é verdade
que o melhor da sociedade no século IV estivesse no
cristianismo. O cristianismo vitorioso e imperial atraía para
sí o que havia de pior. E alguns entre os homens
moralmente fortes ainda lutavam pela conservação da
antiga civilização sufocada.
Ao lado desses mestres e homens ilustres, Juliano deve
ter tido, em Nicomédia, Pérgamo e Atenas, companheiros
mais modestos, cujos nomes se perderam e que formaram
uma espécie de corte, atraídos pela dignidade principesca,
mas também pela força e pelo calor de sua inteligência e de
seu espírito. De fato, alguns dos bilhetes e cartas de Juliano
parecem ter sido escritos para companheiros de estudos,
como Eumene e Fariano, sem dúvida, a quem Juliano
enviou da Gália esta carta tão afetuosa e sensata, na qual
se percebe a lembrança dos ensinamentos de Edésio e de
Eusébio, mais do que de Máximo e Prisco. Estes últimos só
dominaram seu pensamento mais tarde, quando foi preciso
contrapor religião contra religião, milagre contra milagre.
A Eumene e Fariano.
Se alguém lhes disse que existe para o homem algo mais
doce e útil que filosofar tranquilamente e sem
preocupações, esta pessoa, enganada, os engana. Se
mantiveram viva a antiga inclinação, impedindo que se
apagasse de um só golpe, como uma chama que se
extingue, quero felicitá-los. Já se passaram quatro anos e
três meses do dia em que nos separamos. Como gostaria de
acompanhar os progressos que fizeram nesse tempo!
Quanto a mim, se ainda falo grego, é de causar espanto, de
tal maneira nos barbarizamos nestes lugares! Recomendo
que não desprezem os exercícios de lógica, que não
descuidem da retórica e da leitura dos poetas, mas que seja
maior ainda o seu interesse pela ciência e que não poupem
esforços no estudo de Aristóteles e de Platão. É aí que
devem realizar seu trabalho; é aí que estão a base, a
fundação, as paredes, o teto. Todo o resto é acessório. Se
puderem me ouvir, hei de amá-los ainda mais, pois seria
para mim um sofrimento se visse que não me obedeceram.
E peço licença para não dizer onde vai acabar uma dor
contínua, pois sinto que posso lhes fazer melhores votos.13
Para fechar este estudo que retratou o ambiente
intelectual no qual o espírito de Juliano se desenvolveu,
podemos afirmar, como conclusão, que o neoplatonismo e o
cristianismo surgiram no momento em que se apagava o
sentimento de pátria e de liberdade política que fez a força
da sociedade antiga; em que a religião nacional perdia sua
eficácia e caíam as ideias que eram o esteio da vida social;
em que ganhava força o pressentimento de uma catástrofe
iminente e, ao mesmo tempo, a aspiração a um
renascimento moral que devolvesse valor, interesse e
significado à vida. O neoplatonismo e o cristianismo
nasceram para satisfazer essa aspiração, ambos tentando
despertar o sentimento do divino, reanimando-o com a
ideia de uma revelação e de uma consequente união da
alma humana com Deus. Mas o neoplatonismo, que não
queria se afastar das tradições do pensamento helênico,
buscava a revelação no ordenamento natural do mundo,
dando origem ao conceito do sobrenatural, ao qual se
entregava num êxtase de místico arrebatamento. Já o
cristianismo encontrava a revelação na pessoa histórica de
Jesus, que representava o Logos, o Verbo encarnado, e unia
o homem a Deus num vínculo de amor. O neoplatonismo
queria curar os males de seu tempo com uma especulação
que reunisse em si todos os tesouros da filosofia grega,
quase um compêndio, e que fosse seu vértice. O
cristianismo trazia um novo Deus, difundia a nova de uma
redenção celeste, proclamava a igualdade dos homens no
amor paterno de Deus. O neoplatonismo e o cristianismo
eram, tanto um, quanto o outro, indícios de que estava
surgindo um novo ideal, para o qual as formas antigas
pareciam insuficientes. O neoplatonismo tentou adaptar
estas formas antigas ao novo ideal. O cristianismo
esfacelou-as e inaugurou um novo mundo e uma nova
humanidade. Graças à igualdade do ponto de origem e dos
objetivos, o neoplatonismo conseguiu introduzir-se no
cristianismo, transformando-se no elemento principal de
sua metafísica. Na diversidade das vias através das quais
um e outro pretendiam alcançar tais objetivos, residia o
profundo contraste que transformou os neoplatônicos nos
últimos e mais ardentes defensores do helenismo contra a
ação diluidora exercida pelo cristianismo.

NOTAS
1. Eunap., 10-19.
2. Zeller, Die philosophie der Griechen. – 3o v., 678 sg. – Ritter e Preller,
Historia philosophiae graecae. – 546 sg.
3. Eunap., 27.
4. Idem, 49.
5. Idem, 50 sg.
6. Idem, 63. – Amm. Marcell., II, 170.
7. Iulian., 301, 21 sg.
8. Eunap., 59.
9. Idem, 109.
10. Idem, 111.
11. Idem, 104.
12. Zeller, V. 3, 734 sg.
13. Iulian., 563.

*1 Essas informações foram dadas por Porfírio num trecho de seu Tratado
contra os cristãos, reproduzido por Eusébio (Liv. 6, cap. 19). Este último
desmente Porfírio em parte, sustentando que Amônio permaneceu cristão. Os
críticos modernos (Zeller. 3, 450, 459) demonstram que a contestação de
Eusébio estava equivocada, mas colocam em dúvida, por sua vez, a relação de
Orígenes com Amônio e aventam a possibilidade de uma confusão entre o
Orígenes cristão e um outro Orígenes, também aluno de Plotino. Mas o
testemunho de Porfírio me parece muito forte. Porfírio era quase
contemporâneo desses personagens e obtinha informações sobre eles
diretamente de Plotino, que viveu na escola de Amônio. [N. A.]
*2 Santo Agostinho, A cidade de Deus, Livro X, cap. IX, tradução de Oscar Paes

Leme, Bragança Paulista, Ed. Universitária S. Francisco, 2006. [N.T.]


Capítulo IV.
A conduta de Juliano

Q uando Juliano assumiu as rédeas do Império, encontrou


o paganismo perseguido e oprimido, e o cristianismo
profundamente dividido em dois partidos que lutavam
entre si com crescente ferocidade. Vimos como a tentativa
de Constantino de fazer da Igreja unificada um
instrumento do Império encontrou na incompatibilidade
dos partidos teológicos um obstáculo que nem a sua
poderosa mão conseguiu remover. Os filhos de
Constantino, com suas divisões, só jogaram lenha na
fogueira da discórdia: enquanto Constante, imperador do
Ocidente, apoiava a ortodoxia nicena, Constâncio,
imperador do Oriente, patrocinava os arianos. Quando
Constâncio passou a ser o único imperador, o arianismo,
ainda que numa forma mais branda, triunfou em toda a
linha. Constâncio exilou de suas sedes os bispos que
permaneciam fiéis à fórmula nicena e juntou na mesma
perseguição o paganismo e a ortodoxia. Mas, nesta última,
militavam espíritos demasiado elevados e impávidos para
que sua condenação pudesse ser duradoura e inapelável. O
que Constâncio impôs à Igreja não era uma paz, mas uma
trégua forçada, um esmorecimento momentâneo, no qual
permaneciam acesas as brasas capazes de renovar o
incêndio.
Em meio ao espetáculo de discórdias e lutas intestinas
que o cristianismo oferecia e à corrupção já dominante na
sociedade cristã, especialmente na corte imperial, só
graças à pouca idade Juliano e o irmão conseguiram
escapar ao massacre de toda a família constantiniana,
perpetrado por seu primo Constâncio. Juliano foi educado,
conforme dissemos, em Constantinopla, por Mardônio, que
insuflava no espírito do jovem a admiração pela antiga
cultura helênica e, ao mesmo tempo, o hábito de ver nos
antigos os verdadeiros mestres da virtude e em seus
exemplos, os modelos insuperáveis do belo e do bom.
Enviado para a solidão do castelo de Macello, cercado de
sacerdotes, que para ele não passavam de carcereiros e
cortesãos do odiado Constâncio, o rapazinho, sob o véu de
uma necessária hipocrisia, via seus ideais inflamarem-se
cada vez mais. O que era o cristianismo para ele? A religião
de seus inimigos, uma religião que parecia ter autorizado e
sancionado aquele massacre horrendo, uma religião que
sabia adaptar-se aos costumes viciosos e torpes de um
corte criminosa, corroída por lutas fraternas que
perturbavam a serenidade dos espíritos e a segurança da
doutrina. Mas talvez a sua aversão ao cristianismo tivesse
permanecido latente se, movido pela desconfiança e pelo
medo, Constâncio não o tivesse eLivros em Nicomédia. Lá,
no lar do neoplatonismo, cuja evolução religiosa e
supersticiosa tinha se completado na escola de Jâmblico,
Juliano encontrou um complexo de doutrinas que permitiu
que organizasse o seu misocristianismo num sistema
filosófico e prático, ao mesmo tempo em que a influência de
Libânio e dos retóricos que o cercavam exaltava cada vez
mais a sua paixão pelo helenismo.
Veremos agora qual era precisamente a doutrina de
Juliano, quais as normas diretivas da restauração do
paganismo que ele se dispôs a empreender, qual objetivo
essencial mirava. Para este estudo, usaremos as obras do
próprio Juliano. É ele, de própria voz, quem vai esclarecer
suas intenções e narrar a história de sua malograda, mas
interessante, tentativa. Em primeiro lugar, tentaremos
fazer uma apreciação das ideias filosóficas que constituíam
a base do pensamento de Juliano. Sabemos que era aluno
de Jâmblico e de Máximo, ou seja, dos mestres
neoplatônicos que tinham transformado o sistema panteísta
de Plotino num supersticioso misticismo que se agarrava ao
antigo politeísmo, mas tentava reviver seus mitos alterando
sua natureza íntima. Veremos qual foi o resultado destes
ensinamentos sobre o espírito de Juliano. Em seguida,
observaremos a posição de Juliano diante do cristianismo, o
modo como ele o compreendia e combatia de um ponto de
vista doutrinário e, finalmente, os seus atos e sua conduta
como restaurador do politeísmo como religião de Estado. O
estudo que já fizemos da vida de Juliano, das condições da
Igreja em seu tempo e da filosofia neoplatônica em suas
tendências e princípios essenciais facilitará a reconstrução
da figura intelectual do jovem imperador.
Contudo, qualquer tentativa de fazer uma exposição
precisa e sistemática da filosofia de Juliano não obteria
resultado, pois ele nunca teve um sistema claro e definido
de ideias, mas sim uma compilação bastante confusa,
determinada pela moldura de misticismo neoplatônico que
a continha. O jovem imperador, morto aos 32 anos, não teve
tempo de dar uma forma precisa ao seu pensamento,
sobretudo se lembrarmos que, na adolescência e na
primeira juventude, sua vida sempre esteve suspensa por
um fio; ele sabia que podia ser trucidado a qualquer
momento por seu cruel e suspeitoso primo. Nos oito
últimos anos de vida, improvisado como general e
administrador, viveu mergulhado em graves preocupações:
governar a Gália, rechaçar as incessantes invasões
germânicas, tentar, em seguida, a aventura da usurpação
do trono imperial e, por fim, enfrentar a guerra contra a
Pérsia, na qual encontraria a morte. Já é admirável que,
numa existência tão breve e agitada, ele tenha conseguido
pensar e escrever tanto. Mas seu pensamento e seus
escritos certamente sentiam o efeito dessa vida
tumultuada, carecendo de disposição ordenada e correção
ponderada. Ele mesmo narra que muitas vezes teve de
escrever suas dissertações filosóficas à noite e
apressadamente, para aproveitar o breve repouso das
ocupações que ocupavam sua vida e sem a ajuda dos livros,
mais para desafogar uma alma transbordante de ideias e
impressões que visando a objetivos literários ou didáticos.
Mas a razão essencial do aspecto congestionado e
confuso das ideias de Juliano reside na própria doutrina de
onde as extraía. A filosofia reinante no mundo helênico da
sua época era o neoplatonismo, uma doutrina que, nas
pegadas de Platão, mas com uma fantasia desenfreada e
tumultuosa, buscava no ar rarefeito do ideal, ou melhor, do
sobrenatural, a explicação da natureza e da realidade.
Justamente por afirmar a existência do sobrenatural e
identificar nele a causa primeira da natureza, o
neoplatonismo era uma doutrina essencialmente deísta. O
ateísmo de Epicuro e de Lucrécio que, numa concepção
mecânica do mundo, excluía a ação do sobrenatural, não
conseguiu avançar. O neoplatonismo encontrava-se no lado
oposto. Para a especulação filosófica, o problema não era
explicar a existência do Universo sem a intervenção de uma
causa primeira, sobrenatural e criadora, mas determinar as
relações entre esta causa, que se afirmava a priori, e o
Universo existente. Ora, como não podia conservar o
politeísmo genuinamente naturalista dos antigos, pois não
atendia às exigências metafísicas e racionais do momento
e, por outro lado, também não podia aceitar o cristianismo
que, com a novidade de suas afirmações, feria todas as
tradições da cultura helênica e bloqueava, com o
monoteísmo, as tendências panteístas da filosofia, o
neoplatonismo criou um politeísmo simbólico e místico,
para fazer dele a representação dos processos criativos,
mas deu aos fiéis, ao mesmo tempo, a mais ilimitada
liberdade de interpretação. Podemos ver no próprio Juliano
os excessos de fantasia e superstição que essa liberdade foi
capaz de produzir. Mas gostaríamos de fazer aqui uma
consideração, cujas provas encontraremos na análise do
pensamento do nosso herói. Pode parecer que, entre as
loucuras e excessos da metafísica neoplatônica, de um lado,
e a correta produção da dogmática ortodoxa, de outro,
existe uma oposição inconciliável. Mas, a bem dizer, essa
oposição reside, afinal, na aparência externa. A base que as
sustenta é a mesma. Encontramos nas duas o
espiritualismo platônico, com as ideias preexistentes ao
mundo, com os inteligíveis, como diz Juliano; nas duas, o
Deus supremo, sobrenatural por excelência e
incognoscível, cria o mundo, ou seja, dá existência material
às ideias puras, graças a um mediador divino que se revela
aos homens: o Logos Cristo, na metafísica cristã; o deus
Sol, na teologia de Jâmblico e de Juliano. Eis, portanto, a
fonte comum de onde brotaram as duas correntes,
descendo por vertentes diversas. A corrente cristã logo
correu para o leito do monoteísmo ortodoxo; Atanásio,
Ambrósio e Agostinho ergueram diques tão altos e seguros,
ao longo de seu curso, que tornaram impossível qualquer
transbordamento. A corrente neoplatônica, como não
encontrou nenhum leito preparado e balizado, espalhou-se
em infinitos riachos e acabou perdendo-se e desaparecendo
nas areias do deserto metafísico.
Ao ligar-se ao politeísmo, o neoplatonismo pretendia
organizá-lo num sistema simbólico que representasse a
criação, ou seja, a descida do sobrenatural à natureza. No
entanto, a multiplicidade dos mitos era um obstáculo
insuperável para a racionalização do politeísmo. Oriundo
da tendência dos primeiros homens a personificar os
fenômenos naturais em determinadas divindades, o
politeísmo conseguiu manter-se vivo, mesmo em épocas
que não tinham mais nenhuma consciência desse
significado primitivo, transformando-se em religiões
nacionais e locais. Porém, quando o sentimento e o culto da
pátria se perderam na grandeza do Império Romano, o
politeísmo perdeu qualquer razão de ser e acabaria
forçosamente perecendo. Os esforços dos neoplatônicos, de
Jâmblico, de Máximo, de Juliano para revigorá-lo e dotá-lo
de um espírito filosófico estavam condenados à
infecundidade e ao esgotamento em artifícios pedantes e
pueris.
Contudo, a tentativa de Juliano é um dos episódios mais
interessantes da história antiga, primeiro porque o estudo
das motivações de um homem de inteligência aguda e
grandeza de espírito, como era o jovem imperador, é
sempre interessante, e depois porque essa tentativa foi a
mais clara demonstração da inevitabilidade da vitória final
do cristianismo. De fato, o movimento de Juliano não foi um
movimento de reação, como teria sido a recondução do
politeísmo ao seu significado de religião naturalista ou a
restauração do culto patriótico de Atenas e de Roma.
Juliano não era um reacionário; não lhe cabe a qualificação
de romântico, que alguns lhe dão a partir de uma certa
analogia entre ele e aqueles escritores da primeira metade
do século XIX que, em plena modernidade, adoravam a
Idade Média. Não se pode perdoar, a não ser como artifício
literário, que Strauss tenha usado seu nome num famoso
libelo, para dar uma estocada no rei Frederico Guilherme,
da Prússia, que sonhava em caminhar na contramão do
pensamento de seu tempo. Juliano era um progressista,
mas não queria sacrificar ao progresso a cultura antiga, da
qual era admirador fervoroso, e as tradições de civilização
que eram um tesouro inestimável para o gênero humano.
Precisava, portanto, manter de pé o politeísmo, que era a
base daquela cultura e daquela civilização. Para isso,
precisava cristianizá-lo, não apenas no aspecto metafísico,
mas também, como veremos agora, no aspecto moral e
disciplinar. A tentativa de cristianizar o politeísmo para
mantê-lo vivo só poderia ser apreciada por aqueles que
dividiam com Juliano o amor pelo complexo de tradições,
de glória e de poesia que, com um nome sintético, ele
chamava de helenismo. Mas este era um amor de poucos.
No século IV, a barbárie, mesmo sem os bárbaros, era
incipiente. O helenismo não tinha nenhuma influência
sobre as massas, nas quais o sentimento de pátria estava
esgotado. Por outro lado, os homens verdadeiramente
religiosos – homens que, para sua paz de espírito
necessitavam realmente de um Deus, como Ambrósio ou
Agostinho –, mesmo assimilando as ideias fundamentais da
filosofia neoplatônica, não podiam deixar de repudiar seus
mitos confusos e tolos e de horrorizar-se diante do
ressurgimento de rituais e sacrifícios que já tinham se
tornado absurdos e odiosos.

Esclarecidos esses pontos fundamentais, vamos analisar o


pensamento de Juliano mais de perto. Seu sistema
teológico está contido em duas dissertações: a primeira
sobre o Rei Sol, a segunda sobre a Mãe dos Deuses. Na
confusa exposição da doutrina, não é fácil determinar a
competência de cada um destes dois personagens, que, em
sua ação, se entrelaçam um com o outro. Mas Juliano não
pensava nesse tipo de determinação, pois como ele mesmo
relata, escreveu aqueles pequenos tratados à noite, entre
suas mil preocupações de imperador e general, numa
inspiração apressada, fruto de alguma impressão fugidia. O
discurso sobre o Rei Sol é dedicado a Salústio e foi escrito
em três noites, baseado apenas na memória.
Se o amigo Salústio quiser encontrar algo mais profundo,
terá que procurar nos livros do divino Jâmblico, nos quais
encontrará o ápice da sabedoria humana. O pouco que
sabe, Juliano aprendeu com ele. Ninguém, por mais que
se esforce para dizer coisas novas, nunca conseguirá
dizer algo que Jâmblico não tenha dito. Seria, portanto,
inútil escrever depois dele, quando se tem uma intenção
científica. Mas Juliano quis compor um hino em honra ao
Deus e tentou falar de sua natureza, de acordo com as
próprias forças e da melhor forma que podia.1

Vamos acompanhar a sua laboriosa exposição.


A divindade suprema, o Deus em torno do qual o Universo
se organiza é o Sol, o Rei Sol, como ele o chama. Nesta
adoração pelo Sol sentimos, mais que um preceito
doutrinário, uma inspiração genuína e poética, como se
pode ver no eloquente exórdio da dissertação.
Afirmo que este discurso seria conveniente a todas as
criaturas que respiram e se arrastam sobre a Terra e
participam da vida, da alma racional e da inteligência.
Mas convém a mim, ainda mais que aos outros, por ser
um devoto do Rei Sol. E disso posso dar provas evidentes.
Que me seja permitido, portanto, recordar que desde
menino sempre senti um amor vivíssimo pelos raios do
Deus e dirigia-me à luz etérea com toda a minha alma,
tanto que não desejava apenas ver sempre o Sol, mas
quando saía à noite, sob o céu puro e sem nuvens,
abandonava-me às belezas celestes, esquecendo qualquer
outra coisa, sem entender o que me diziam e nem atentar
para o que eu mesmo fazia. Dir-se-ia que eu tinha
conhecimento e prática das coisas do céu e alguém me
ensinara, ainda menino, a astrologia. No entanto, pelos
deuses, nenhum livro que tratasse disso jamais chegou às
minhas mãos e eu não sabia sequer que tal ciência
existia. Mas por que me demoro aqui a dizer tudo isso,
tendo coisas bem mais graves a declarar se quisesse
revelar quais eram então as minhas crenças sobre os
deuses? Que o esquecimento cubra essas trevas!2
Assim, com este hino apaixonado, que manifesta um
sentimento bastante forte da natureza e revela a
impressionante disposição do jovem, e com o grito de
horror diante da lembrança da educação cristã em que foi
criado, Juliano começa a exposição de sua teologia. Ora, se
tentarmos esclarecer o pensamento do escritor, liberando-o
da terrível fraseologia da escolástica neoplatônica que o
envolvia, encontraremos um sistema trinitário que
apresenta grande analogia com o sistema da metafísica
judaico-alexandrina.
Para Juliano existem três mundos. O mundo dos
inteligíveis, ou ideias puras, onde reina o princípio supremo
do sumo bem. O mundo dos seres, ou divindades
intelectivas, interpostas entre as ideias puras e a matéria,
como os anjos no céu cristão ou o homem celeste no
sistema pauliniano – neste mundo intelectivo, o princípio
supremo reina através de uma emanação dele mesmo, que
é totalmente espiritual e tem profunda analogia com o
Logos de Fílon e de Orígenes. E, finalmente, o mundo
visível e concreto, no qual essa emanação assume uma
forma visível que para Juliano é o Sol e para o cristianismo
ortotodoxo, o Logos humanizado.
Ora, se comparamos as ideias de Juliano ao prólogo do
Quarto Evangelho, base da metafísica cristã, sem a qual o
cristianismo ou não teria existido ou seria algo
completamente diverso, constataremos maravilhados que,
no fundo, este inimigo do cristianismo se movia no mesmo
círculo de ideias daqueles contra quem lutava. E sempre
com o mesmo conceito fundamental de um Deus supremo,
que emana de si um princípio racional, pelo qual é criado o
mundo e que nele se torna ativo, assumindo uma forma
determinada e visível. Quando, depois de falar das duas
formas invisíveis de Deus, Juliano diz: “Este disco solar que
surge como terceira forma de Deus é causa eficaz de
salvação para os seres sensíveis”3, só precisamos substituir
a palavra disco pela palavra Logos para ter uma frase
genuinamente cristã. Note-se também que Juliano vê no Sol
a revelação de Deus porque considera a luz como princípio
vital e divino por excelência. “Porventura não é a luz”, ele
pergunta, “a forma incorpórea e divina daquilo que é
potente sem ser material?”4
Pois bem, a analogia entre a luz e o princípio de vida e
salvação, entre a luz e o Logos pode ser encontrada
continuamente nos livros cristãos, sendo um dos motivos
sobre os quais João, o quarto evangelista, elabora com
maior insistência as suas variações. “O que se fez nele [no
Logos] era a vida, e a vida era a luz dos homens. [...] A
verdadeira luz, que ilumina todo homem, veio ao mundo.
Estava no mundo e o mundo foi feito por meio dela, mas o
mundo não a reconheceu.”5
Fato é que todas essas ideias, que se ligavam diretamente
à filosofia platônica, constituíram o amálgama que deu
origem à metafísica cristã, de um lado, e ao neoplatonismo,
do outro. Os ingredientes substanciais são sempre estes.
Alexandria foi o berço no qual, por obra de Fílon e sua
escola, o espiritualismo platônico realizou sua fusão com o
monoteísmo judaico. O metafísico que escreveu o Quarto
Evangelho, afirmando solenemente o monoteísmo, salvou o
cristianismo das heresias gnósticas que pululavam no
fermento platônico. Mas, na mesma Alexandria, o
espiritualismo platônico, desligado do monoteísmo, deu
origem ao simbolismo místico de Amônio Sacas, Plotino e
Porfírio, que só se diferencia do pensamento cristão pela
ausência de uma determinação dogmática em suas linhas
fundamentais e pela manutenção da pluralidade dos
deuses.
Contudo, se existe uma quase identidade de pensamento
fundamental entre o cristianismo e o neoplatonismo,
também existe, de outro ponto de vista, uma diferença que
foi a verdadeira causa da predominância do primeiro sobre
o segundo: o neoplatonismo não passa de uma filosofia,
enquanto o cristianismo é, sobretudo, uma moral. Basta
tomar este discurso de Juliano, que pretende ser uma
espécie de evangelho neoplatônico, e cotejá-lo com o
Evangelho de João. No primeiro, depois de fazer sua
exposição metafísica, o escritor se perde numa dissertação
tão confusa, não sei se mais pedante ou mais infantil, sobre
as qualidades do deus Sol e suas relações com as outras
divindades do Olimpo helênico. Apesar de seus esforços,
não consegue produzir mais que um amontoado de ideias e
palavras que certamente deixou tontos e pouco
convencidos os leitores que ele pretendia converter à sua
religião solar. Já o Evangelista propõe em seu prólogo
algumas teses solenes que soam como toques de trombeta
num silêncio misterioso. Porém, encerrado o prólogo e
afirmada a identidade de Jesus Cristo com o Logos, a
metafísica desaparece. A relação de Cristo com Deus é uma
relação humana, de Filho com Pai, e toda a ação de Jesus
nada mais é que um exemplo de amor; todas as suas
palavras nada mais são que um hino, uma exortação ao
amor. É verdade que no Quarto Evangelho, Jesus não fala
como o Jesus dos Sinópticos. Ressoa na sua voz uma
inflexão que não é terrestre. O Logos não é mais nomeado,
mas é possível sentir que não é um homem que fala. Com
tudo isso, a eficácia moral desses discursos, desse contínuo
e suave apelo aos sentimentos humanos é potente. Ali,
cansado de uma mitologia esgotada, o homem podia
reencontrar o impulso de crer, reencontrar uma fresca
fonte de fé. Já o simbolismo de Juliano, embora pudesse
agradar a algum sonhador fantasioso, deixava a
humanidade indiferente e incrédula. O caráter dominante
da filosofia de Juliano é uma obscuridade que não deriva da
profundidade do pensamento, mas da congestão de ideias
mal digeridas e do esforço para dar formas determinadas a
conceitos vagos e oscilantes.
Se existe uma teoria fundamental nessa confusa filosofia,
é ainda a teoria platônica da preexistência das ideias, das
quais o mundo visível, o mundo dos sentidos, é uma
reprodução que se deu por meio de um Deus criador que,
para Juliano, emana e se destaca do Deus supremo,
revelando-se aos homens sob a aparência do Sol. As formas
ideais devem preexistir às formas reais.
Quando a substância, que se revela geradora na natureza,
se prepara para gerar na beleza e a depor um filho, é
necessário que ela tenha sido precedida pela substância
eternamente geradora na beleza ideal, que não produz de
modo intermitente, pois o que é belo, o é em toda a
eternidade no mundo ideal. Reiteremos, portanto, que,
nos fenômenos, a causa geradora deve ser precedida e
guiada por uma ideia inata na beleza eterna, que o Deus
possui e dispõe ao seu redor, à qual distribui a
inteligência perfeita, de modo que, como, com a luz, dá
aos olhos a visão, assim também com o modelo ideal, que
ele apresenta e que é muito mais luminoso que o raio
etéreo, dá a todos os seres inteligentes a faculdade de
conhecer e ser conhecido.6
Esta teoria platônica da preexistência das ideias, que é
consequência da distinção entre as categorias do espírito e
da matéria, encontra-se na base da metafísica cristã e do
espiritualismo ortodoxo, e constituirá, mais tarde, o
realismo da escolástica. Esta teoria teve uma última
afirmação na filosofia rosminiana. Encontrar um elo entre
Juliano e Antonio Rosmini parece o cúmulo da estranheza,
quase um sacrilégio. No entanto, olhando bem, o elo
intelectual existe, como existia entre Juliano e os teólogos
dos Concílios que ele detestava e que mais tarde iriam
anatemizá-lo ferozmente. É que os homens não se unem e
se dividem em razão da semelhança ou do desacordo de
suas ideias. Unem-se ou separam-se segundo a harmonia
ou a discordância de seus hábitos morais e de suas
aspirações. O cristianismo e o helenismo equivaliam-se nas
ideias e nas teorias que representavam. Não podia ser
diferente, dado que bebiam da mesma fonte de ideias,
respondiam a um mesmo momento da inteligência humana.
Contudo, tais ideias eram apenas vestes cobrindo
tendências morais completamente diversas, às quais se
adaptavam de modo que pareciam um erro humano, de um
lado, e uma revelação divina, do outro. No entanto, era
sempre a mesma veste ajustada diversamente ou, para usar
outra imagem, o mesmo alimento com outro tempero! O
cristianismo, que colocava no mundo um objetivo de
finalidade moral que não pode ser alcançado no próprio
mundo, pois o mundo é péssimo, deslocava o interesse
humano da Terra para o Céu, do presente para o
transcendente, da vida para o além-túmulo. O helenismo,
que não compreendia este objetivo de finalidade moral e
para o qual, portanto, o mundo é ótimo, queria conservar o
interesse humano no presente e preservar aquele imenso
tesouro de tradições, de poesia e de glória que a
Antiguidade havia acumulado e o verdadeiro cristianismo
execrava e amaldiçoava. O espiritualismo platônico,
produto do ambiente intelectual da época, servia tanto para
uma quanto para a outra orientação.
Só que, no século IV, o cristianismo já estava tão
disseminado e tão profundamente impregnado nos hábitos
sociais que, mesmo os seus inimigos viam-se forçados a
segui-lo e assumir, às vezes, a sua linguagem. Vem daí essa
espécie de ardor de Juliano na prece, como uma chama
mística que os antigos não conheciam. Juliano comporta-se
como um devoto. Se percebemos em suas palavras algo de
artificioso, de escolástico, se não há nelas o êxtase de
Plotino, que mergulha e se afoga em Deus, ou o elã de
Santo Agostinho, vibrante na emoção de uma alma
extasiada em contemplação divina, há, contudo, um
sentimento religioso mais profundo que aquele que
animava os cultores do politeísmo.
Permitam os deuses que eu celebre muitas vezes as festas
sacras, que o permita o deus Sol, rei do Universo, ele que
procede, por toda a eternidade, da substância geradora
do bem e está em meio aos deuses intelectivos, enchendo-
os de harmonia, de beleza infinita, de substância
fecundante, de inteligência perfeita e continuamente e
infinitamente de todo bem; ele que, da eternidade, brilha
na sede que lhe foi destinada no meio do céu; ele que dá
a cada ser vivo a beleza da ideia; ele que enche todo o
céu com tantos numes quantos estão compreendidos em
sua inteligência; ele que, em virtude de sua continuidade
geradora e da potência benéfica que emana de seu corpo
circular, harmoniza o complexo desta sede sublunar,
cuidando de toda a estirpe humana, especialmente deste
nosso Império; ele que, da eternidade, criou a nossa
alma, fazendo dela sua seguidora. Permita-me, portanto,
tudo aquilo que lhe roguei e mantenha, com
benevolência, a perpetuidade do Império. Permita-nos ter
sucesso nas coisas divinas e nas coisas humanas,
enquanto nos permitir viver, e faça nossa existência durar
enquanto lhe aprouver e for útil para nós e proveitoso
para a prosperidade das coisas romanas. Ainda uma vez,
suplico ao Sol, rei do todo, pela minha devoção, que me
seja benévolo, que me dê uma vida feliz, um pensamento
seguro, uma inteligência divina e, por fim, no momento
destinado, uma libertação tranquilíssima da vida e que
me conceda ascender e permanecer ao seu lado,
possivelmente por toda a eternidade e, se isso for
superior aos meus méritos, ao menos por muitos períodos
de anos numerosos.7
Junto com o discurso sobre o Rei Sol, Juliano deixou-nos
um outro tratado teológico: o discurso, hino ou, como quer
que se queira chamá-lo, à Mãe dos Deuses, que o fervoroso
imperador escreveu numa noite, em Pessinunte, a caminho
da expedição contra os persas. O texto, dificultoso e
confuso como todas as manifestações filosóficas e
teológicas de Juliano, começa com uma deliciosa e
conhecida lenda, que Juliano narra com a simplicidade
genuína de um verdadeiro poeta. Vamos reproduzi-la aqui
para mostrar que, sob o pedante e retórico aluno de
Libânio e de Máximo, existia um espírito cheio de graça e
sentimento. Depois de dizer que os gregos têm em alta
conta o culto de Cibele, a Mãe dos Deuses, ele recorda que,
no tempo da guerra contra Cartago, os romanos,
aconselhados pela Pítia, tentaram atrair seus favores. E
continua assim:
Nada me proíbe de acrescentar aqui uma pequena
história. Conhecida a profecia, os habitantes da religiosa
Roma decidem enviar aos reis de Pérgamo, que então
possuíam a Frígia, e aos próprios frígios uma embaixada
para pedir o santíssimo simulacro da deusa. De posse da
carga sagrada, decidiram depositá-la num grande navio
cargueiro, capaz de navegar com segurança em alto-mar.
Atravessados o Egeu e o Jônio, costeada a Sicília, eis que
o barco se aproxima da foz do Tibre. E o povo saiu da
cidade junto com o Senado, precedidos pelos sacerdotes e
sacerdotisas, tudo e todos na ordem conveniente,
segundo os ritos pátrios. Ansiosos, todos admiravam o
barco que corria de vento em popa, singrando as ondas
que espumavam em torno à carena. Quando chegou a
ponto de entrar no rio, todos se prosternaram no chão, ali
mesmo onde se encontravam. Mas a deusa, como se
quisesse demonstrar ao povo romano que não era uma
pedra esculpida e inanimada vinda da Frígia, mas um
objeto imbuído de uma potência grande e divina, assim
que o barco toca o Tibre, o imobiliza, mantendo-o imóvel
como se, de repente, tivesse criado raízes no leito do rio.
Tratam de rebocá-lo contra a corrente, mas ele não se
move. Pensando que estivesse encalhado, tentam
empurrar, mas ele não cede. Aplicam todos os tipos de
instrumento, mas o barco permanece imóvel. Uma
terrível e iníqua suspeita recai então sobre a virgem
consagrada ao santíssimo sacerdócio, e Cláudia – tal era
o nome daquela santa – é acusada de não ter se
conservado intacta e pura para a deusa, que manifestava
abertamente a sua indignação. Cláudia enrubesce ao
ouvir seu nome e a suspeita, tão distante estava do torpe
e ilícito pecado. Em seguida, ao ver que a acusação
contra ela ganhava força, tira da cintura o cinto, amarra
na extremidade do barco e, como tomada por uma
inspiração, ordena que todos recuem e suplica à deusa
que não a abandone diante de tão iníquos ultrajes. Então,
em altíssima voz, quase como se desse uma ordem naval,
exclama: “Santa mãe, se eu for pura, siga-me.” E eis que
a virgem não apenas moveu o barco, mas arrastou-o
contra a corrente por um longo trecho! Sei que alguns,
entre aqueles que se dão ares de sabedoria, dirão que
isso são histórias de velhotas. Mas prefiro acreditar nas
tradições populares do que nesses elegantes, cuja
alminha pode até ser aguda, mas me parece estar
doente.8
O discurso sobre a Mãe dos Deuses é interessante porque
mostra o processo de interpretação mítica que Juliano,
discípulo dos neoplatônicos, aplicava às lendas antigas,
racionalizando-as para torná-las aceitáveis à metafísica
idealista e espiritualista que dominava o pensamento da
época.
Em sua interpretação, Juliano parte do princípio
fundamental da filosofia platônica, já afirmado no discurso
sobre o Rei Sol, ou seja, a existência de um mundo ideal, do
qual o mundo real é um reflexo. As imagens dos seres,
como ensina Aristóteles, existem espelhadas na alma, mas
sua existência é ideal e potencial.
Mas é necessário que, antes de existirem em potência, as
imagens existam em ação. Onde as colocaremos? Nas
coisas materiais, talvez? É claro que estas vêm para as
últimas. Só nos resta, então, buscar causas ideais,
preordenadas em relação às materiais das quais a nossa
alma, subordinada e coexistente, recebe, como um
espelho, a imagem dos objetos, as ideias das formas, para
transmiti-las por meio da natureza à matéria e aos corpos
materiais.9
Ora, o mito de Cibele ou da Mãe dos Deuses é, para
Juliano, a representação simbólica do procedimento através
do qual a ideia se concretiza na matéria e retorna depois à
sua essência primitiva. Reza uma conhecida lenda que
Cibele apaixona-se castamente por Átis e impõe que ele não
conheça mulher alguma. Mas Átis cai de amores pela ninfa
Sangaride e, penetrando em sua caverna, une-se a ela.
Cibele fica furiosa. Para aplacá-la e recuperar seus
privilégios, Átis decide castrar-se. Sabe-se que, na origem,
essa história era um mito naturalista que representava a
sucessão das estações, mito que, como tantos outros, foi
humanizado e dramatizado pela fantasia oriental e
helênica. Juliano vê nele a expressão de um conceito
filosófico e, para demonstrá-lo, trata de esmiuçá-lo com
uma sutileza de interpretação bizarra e cansativa. Contudo,
não é sem interesse o esforço destes renovadores do
paganismo para introduzir nos mitos antigos um
pensamento que eles não podiam conter, exatamente como
quem versa vinho novo num odre velho, quebrado e cheio
de rachaduras. Reportemos alguns ensaios desse esforço.
Quem é, então, a Mãe dos Deuses? É a fonte de todos os
deuses ideais e criadores que governam os deuses
visíveis; a deusa que coabita e que gera com o grande
Deus; grande ela também, depois do grandíssimo,
senhora de toda vida, causa de toda geração que logo
aperfeiçoa o que fez; que gera sem sofrimentos e cria,
junto com o pai, todos os seres; virgem sem mãe,
partícipe do trono de Deus, é mãe de todos os deuses,
porque, acolhendo em si mesma as causas de todos os
deuses ideais e sobrenaturais, torna-se fonte de todos os
deuses cognoscíveis. Esta deusa e esta providência
apaixonou-se por Átis.10
No mito, Átis representa o princípio criador e gerador.
Ora, ao se apaixonar por ele, a deusa determina que ele
gere somente na ideia, olhando apenas para ela, que é o
símbolo da unidade, evitando qualquer inclinação para a
matéria. Mas Átis não conseguiu se manter fiel à deusa e
caiu na procriação das formas materiais. Ora, é para trazer
o princípio gerador de volta ao mundo ideal e impedir que
se corrompa e se perca inteiramente na matéria, que a Mãe
dos Deuses, junto com o Sol, que forma com ela o princípio
providencial e que nada pode fazer sem ela, induz Átis à
emasculação, que representa a limitação da decadência
material do princípio gerador e seu retorno ao mundo ideal.
Se não fosse essa limitação, determinada pela providência,
o princípio gerador, delirante em seus excessos materiais,
tenderia a esgotar-se, tornando-se impotente para as
funções ideais.11
Juliano fecha a sua singular interpretação do mito com as
seguintes palavras:
O mito ensina-nos que, celestes por natureza, viemos à
Terra para apressar-nos a retornar para junto do Deus
que dá vida, depois de ter semeado, em nossa estadia na
Terra, a virtude e a piedade. Portanto, o sinal do
chamamento que a trombeta dá a Átis, depois da
emasculação, ela também nos dá, a nós que caímos do
Céu na Terra. Se, com a castração, Átis limita a infinidade
de suas quedas, os deuses ordenam que nós também nos
emasculemos, ou seja, limitemos em nós mesmos a
infinidade material, tendendo para a unidade formal e,
até onde for possível, para a unidade essencial. O que
pode ser mais ditoso, mais alegre que uma alma que foge
do turbilhão, que alimenta a insaciabilidade dos desejos e
o impulso da geração, e que se eleva aos próprios
deuses? E Átis, que era um desses e que foi além do
conveniente, não foi abandonado pela Mãe dos Deuses,
que o chamou para si, detendo a infinidade de suas
quedas.12
Depois de alongar-se em sua extravagante exposição da
lenda divina, Juliano insiste no caráter essencialmente
mítico da mesma.
Que ninguém suponha que eu esteja falando como se
tudo isso tivesse realmente acontecido, quase como se os
deuses não soubessem o que faziam ou precisassem
corrigir os próprios erros. Mas depois de descobrir as
causas dos seres, seja guiados pelos deuses, seja
pensando por eles mesmos, os antigos velaram-nas com
mitos estranhos, para que, diante da estranheza e da
obscuridade, a inventiva nos estimulasse a buscar a
verdade. Para os homens vulgares, o símbolo irracional é
suficiente, mas para aqueles que se distinguem pela
inteligência, a verdade das coisas divinas só será útil
quando, depois de buscar por ela, a descobrirem com a
ajuda dos deuses. Os enigmas devem nos levar a refletir
que devemos investigá-los para alcançar, com a
observação, a descoberta da suprema realidade, não por
respeito e confiança nas opiniões alheias, mas sim pelo
trabalho de nossa inteligência.13

O racionalismo rigoroso que se revela neste trecho deveria


ter levado Juliano a constatar a completa diluição de suas
divindades. Mas ele pretendia sustentar uma religião. A
doutrina neoplatônica, com a qual havia crescido, afirmava
a existência do sobrenatural e, portanto, a necessidade de
um religião positiva. Além disso, ele queria ser o
restaurador de um culto e de uma fé capazes de fazer
frente ao cristianismo. Decorrem daí uma contradição
singular em suas manifestações e um defeito intrínseco em
seu sistema, que tornavam impossível a vitória sobre o
cristianismo, que tinha um Deus tão bem determinado, tão
claro e tão histórico que era capaz de acolher o princípio
mítico e metafísico do Logos sem que ocorresse nenhuma
perda de eficácia de sua pessoa. Mas Juliano esforçava-se
também para que os deuses, sobre os quais raciocinava
com uma sutileza ao mesmo tempo pedante e fantasiosa,
conservassem uma realidade suficiente para que se
pudesse adorá-los e invocá-los. Já vimos as belas palavras
que iniciam e encerram o discurso sobre o Deus Sol. Pois
bem, o discurso da Mãe dos Deuses também termina com
uma prece de crente fervoroso.
Ó, Mãe dos Deuses e dos homens, que estás sentada no
trono de Deus, origem dos deuses, tu que participas da
pura essência das ideias e que, recebendo delas a causa
de tudo, a infundes aos seres ideais, deusa da vida e
reveladora e providência e criadora das nossas almas, tu
que salvaste Átis, chamando-o de volta do antro em que
estava mergulhado, tu que distribuis todos os bens aos
deuses ideais e cobres com eles o mundo sensível, deusa,
concede a todos os homens a felicidade, cujo vértice é o
conhecimento dos deuses, faze com que o povo romano
apague a mancha da impiedade e com que a sorte
favorável lhes conserve o Império por muitos milhares de
anos, faze com que, como fruto da devoção por ti, eu
colha a verdade da ciência divina, a perfeição no culto, a
virtude, o sucesso em todas as empresas políticas e
militares que precisarmos enfrentar e um final de vida
sem tristeza e glorioso, junto com a esperança de ir para
perto de ti.14
Se omitirmos e modificarmos algumas frases, em sua
maioria ornamentais, esta prece não poderia estar na boca
de um cristão? Não é possível sentir nela, no fundo, a
mesma inspiração? Esta invocação da Mãe dos Deuses vem,
é verdade, depois de um longo discurso, no qual a
personalidade da deusa, passando pelos filtros das
explicações míticas, é inteiramente desidratada, de modo
que a prece dirigida a ela se perde no vazio. Mas ao
lembrar que foi escrita por um homem que abraçou a mais
arriscada das empresas e que estava prestes a enfrentar
perigos extremos, não podemos ver nessas súplicas apenas
uma vã declamação. Sentimos que sua palavra exprime um
sentimento verdadeiro. O sentimento modifica-se na
expressão, segundo a forma que assume, mas o sentimento
religioso do Juliano que havia feito apostasia do
cristianismo não era menos vivo que o sentimento de
muitos dos que se converteram ao cristianismo.

O valor e o significado dos mitos são de suma importância


no sistema de Juliano; são a chave de abóbada que impede
que ele desmorone. No panteísmo neoplatônico, as
divindades e as fábulas do politeísmo não tinham lugar.
Digo mais: o grande conceito plotínico, segundo o qual o
Universo é a extrinsecação de um único e supremo
princípio, que se manifesta nas ideias espelhadas pelas
formas concretas, poderia levar a uma meditação extática
sobre a divindade, mas dificilmente poderia conciliar-se
com uma religião positiva. De fato, Plotino, segundo a
narrativa de Porfírio na biografia do mestre, às vezes
sublimava-se na visão divina, sem no entanto participar de
nenhum culto determinado. Mas seus sucessores,
estimulados, em parte, pelas condições psicológicas da
época, em parte, pela necessidade de preencher um lugar
que, do contrário, seria ocupado pelo cristianismo,
resolveram criar uma religião positiva. Como não tinham à
disposição uma figura divina determinada e histórica,
assumiram as antigas divindades do politeísmo e decidiram
que elas seriam objeto de um culto de sacrifícios e preces,
afirmando simultaneamente que tais divindades não
passavam de meros símbolos de conceitos filosóficos. Nesse
caminho, ninguém se adiantou mais que Juliano, que estava
totalmente impregnado de doutrina metafísica mal digerida
e que, ao mesmo tempo, como imperador inimigo do
cristianismo, queria construir uma verdadeira religião de
Estado que impedisse o desmoronamento do helenismo.
De fato, Juliano não acreditava na realidade objetiva das
personificações do politeísmo. Num graciosíssimo e
espirituoso bilhete para um amigo, ele escreve:
Eco é, para ti, uma deusa faladeira, consorte de Pã. Eu
não digo que não, pois ainda que a natureza me ensinasse
que eco é um som da voz que, repercutindo, atravessa os
ares e retorna ao ouvido, mesmo assim, concordando com
as crenças dos antigos e dos modernos, e também com as
tuas, devo reconhecer que é uma deusa.15

Porém, se Juliano sabia, como se vê nessas palavras,


separar, com sua aguda inteligência, o que é mito na
afirmação do fenômeno natural, ele o conservava como
símbolo de conceitos filosóficos. Para ele, nada era tão
importante quanto justificar racionalmente esta
transformação. A tese, já mencionada no discurso sobre a
Mãe dos Deuses, é amplamente desenvolvida num de seus
escritos mais curiosos, o discurso contra Heráclio, o cínico.
Este discurso, que contém muitas páginas cheias de
espírito e garbo, mas que carece, como quase todos os
escritos de Juliano, do freio da arte, é interessante
sobretudo por duas razões. Primeiro, porque expõe o
conceito de mito e de significado da lenda mitológica,
estabelecido por Juliano, seguindo as pegadas dos
neoplatônicos. Segundo, porque, com uma bela e muito
clara alegoria, ele conta sua própria história, justifica sua
conduta e formula, como se diria hoje, o seu programa
imperial.
Por trás desse discurso deve haver um antecedente que
não conhecemos, mas que podemos imaginar com uma boa
aproximação da verdade. Tornando-se imperador, Juliano
teve de enfrentar a oposição de três tipos de inimigos:
primeiramente, claro, dos cristãos; em seguida, daqueles
pagãos que não apreciavam a transformação mítica que o
imperador neoplatônico queria impor à antiga religião, às
simples, inteligíveis e humanas fábulas de outrora; por fim,
de todos os que, envolvidos na corrupta administração do
Império, adivinhavam o dano que as reformas iniciadas
pelo inquieto legislador haveriam de causar. O cínico
Heráclio estava entre aqueles que não admitiam a
interpretação filosófica da mitologia helênica e não
compreendiam o esforço de Juliano para dotá-la de um
espírito novo, que lhe permitisse fazer frente ao
cristianismo. O cinismo, desde o auge, com Antístenes e
Diógenes, era uma filosofia essencialmente prática, que
pretendia ensinar o homem a contentar-se com o mínimo
possível, a viver numa ascética indiferença a todos os
prazeres materiais. Numa postura suspeitosa, mantinha-se
distante das especulações metafísicas e reduzia a sua
doutrina filosófica a uns poucos aforismas morais. Mas,
com o passar dos tempos, tudo aquilo que o cinismo tinha
de bom, o rigor da vida e dos costumes, passou para o
estoicismo. O cinismo transformou-se numa caricatura,
numa doutrina de charlatães que a usavam para enganar os
outros e como fonte de ganhos ilícitos. Os neocínicos eram
inimigos naturais de Juliano, odiavam sua orientação
especulativa e sua moral pura. Juliano devolve a repulsa
com toda a razão. No discurso contra os Cínicos ignorantes,
como naquele contra Heráclio, ele desmascara seus vícios,
baixezas, torpezas e demonstra a mesquinhez de sua
doutrina, que teria obstruído a evolução mitológica, um
elemento indispensável para a esperada vitória do
helenismo. De fato, com venenosa argúcia, Juliano vê nos
cínicos os aliados dos cristãos e insiste nos traços de
semelhança que, segundo ele, existiam entre as duas
seitas.16
Numa grande assembleia, Heráclio fez um discurso
diante do imperador, no qual deu curso às suas faculdades
inventivas, criando fábulas que, segundo Juliano, ofendiam
o conceito de divindade. Encerrada a assembleia,
indignado, o imperador tomou da pena e escreveu uma
invectiva contra o ímpio blasfemador, para demonstrar qual
era a função do mito e como devem ser interpretadas as
lendas relacionadas aos deuses. O discurso, como disse, é
longuíssimo, cheio de alusões nem sempre compreensíveis
e de explicações míticas tormentosas e confusas. Mas, de
todo modo, é sempre interessante e sintomática a intenção
que move o escritor, de polemizar, mesmo indiretamente,
com o cristianismo, criando símbolos que pudessem ocupar
o posto do deus cristão. Isso é claro em sua interpretação
da história de Baco e de Hércules. Como não ver uma
tentativa de cristianizar a imagem deste último,
amoldando-a à figura de Jesus, quando ele diz que Hércules
atravessava o mar com os pés enxutos e ainda acrescenta:
O que era impossível para Hércules? O que não obedecia
a seu divino e puríssimo corpo? Por acaso, todos os
elementos não obedeciam à potência criadora e
aperfeiçoante de sua inteligência incorruptível? O sumo
Júpiter... fez dele o salvador do mundo, depois elevou-o
sobre a chama de um raio até junto dele, sob o signo
divino do raio. Queira Hércules ser propício a mim e a
vós!
Todas as explicações que Juliano fornece dos mitos
repousam sobre um conceito fundamental que ele tenta
expor, embora acrescente que sua vida de soldado e as
urgentes obrigações que o pressionam não lhe dão o tempo
necessário para maturar suas ideias:17
A natureza ama esconder-se, e a parte escondida da
substância dos deuses não suporta ser jogada, com
palavras nuas, em ouvidos impuros. Mas a essência
inefável dos mistérios é benéfica mesmo quando não é
compreendida; ela salva as almas e os corpos e provoca a
presença dos deuses. É o que acontece com os mitos que,
através de véus e por meio de enigmas, versam as coisas
divinas nos ouvidos da maior parte dos homens,
incapazes de recebê-las em sua pureza.18

Nestas palavras está contido o princípio fundamental que


Juliano extraiu dos ensinamentos de seus mestres
neoplatônicos. Os homens são, em sua maioria, incapazes
de compreender a verdade divina. Os mitos são a veste com
as quais esta verdade se cobre para tornar-se acessível à
mente humana. O filósofo deve examiná-los para captar o
núcleo de ciência e de realidade sobrenatural que eles
guardam. Não há dúvida de que Juliano coloca o dedo na
ferida quando afirma que as formas positivas da religião
não passam de símbolos com os quais o homem tenta
entender as razões da existência e da natureza do
Universo. Seu erro foi acreditar que, a partir desta teoria,
seria possível criar uma religião. Ele não foi capaz de
perceber onde estava a superioridade do cristianismo sobre
o neoplatonismo. A figura do Cristo também se prestava a
todas as interpretações simbólicas, mas não se diluía, pois
tinha uma verdadeira realidade histórica e objetiva,
mantendo-se, portanto, como um ponto sólido em torno do
qual uma religião positiva poderia cristalizar-se. Na
mitologia de Juliano, ao contrário, toda realidade
desaparecia. Restavam apenas confusas larvas metafísicas,
que, ademais, rejeitavam o culto grosseiramente material
com que se pretendia adorá-las.
Dissemos antes que o discurso contra Heráclio é
interessante porque nele Juliano conta a sua própria
história. Querendo dar um exemplo de como se deve criar
um novo mito, ele narra uma longa parábola,
transparentíssima, que, sob um leve véu, apresenta as
causas e as justificativas de sua tentativa de usurpação e
de toda a sua conduta depois de obter o Império. A alegoria
é clara, narrada com elegância e sutileza, e revela a
profunda honestidade da alma de Juliano e o altíssimo
conceito que tinha de seus próprios deveres. O imperador
Constantino, a quem o sobrinho não perdoava ter
promovido uma reviravolta na situação do cristianismo, é
apresentado como um homem ignorante e violento, que
acumulou imensas riquezas e que, totalmente carente de
qualquer método de governo, acreditando que a força podia
ocupar o lugar da ciência e da virtude, não pensou sequer
em educar os filhos para o ofício que seria deles um dia.
Assim, quando morreu, seus numerosos herdeiros,
confrontando-se uns com os outros, cobriram o reino
paterno de ruínas, massacres e crimes. Este espetáculo
tocou o coração de Júpiter, que convocou o Sol para dar um
fim no abandono em que havia deixado a ímpia casa do
poderoso homem. Reunidas em conselho também as
Parcas, a Santidade e a Justiça, Júpiter revela seu propósito
de salvar, naquela casa, um jovem que seria sufocado se
não recebesse ajuda prontamente. Aquele jovem estava
destinado a reparar todos os males deplorados por Júpiter.
Contente com a resolução do Pai, o Sol vê que a centelha
do fogo divino se mantém acesa naquele rapazinho e, junto
com Minerva, decide educá-lo para a virtude e o saber.
Contudo, ao chegar à adolescência, vendo com os próprios
olhos a grandeza dos males e conhecendo a sorte que
tiveram seus pais e seus primos, o futuro salvador estava
para precipitar-se no Tártaro, quando o Sol e Minerva o
adormecem e, com um sonho, conseguem dissuadi-lo de
seu propósito. Ao despertar, ele está num local deserto,
onde aparece Mercúrio, indicando um caminho fácil e
florido que o conduz a um monte altíssimo, em cujo cimo
está o Pai dos deuses. “Pede”, diz Mercúrio, “o que
quiseres. Cabe a ti, ó jovem, escolher o melhor.” “Júpiter,
meu Pai”, exclama o rapaz, “mostra-me o caminho que
conduz a ti.” Eis que surge o Sol anunciando que ele deve
retornar para junto dos perversos, dos quais havia fugido.
O jovem chora e prevê a própria morte. Para encorajá-lo, o
Sol revela que seu destino é livrar a Terra de todas as
impiedades que a contaminam e que deve confiar nele, em
Minerva e em todos os deuses. O herdeiro de tudo, agora
único (o imperador Constâncio), cercado por pastores
malvados (os bispos), permite que tudo caia em ruínas,
mergulhado nos prazeres e no ócio. Portanto, ele mesmo, o
Sol, junto com Minerva e por vontade de Júpiter, colocarão
o jovem no posto de herdeiro e farão dele o governador de
todas as coisas. E a parábola termina com os sábios
conselhos do Sol e de Minerva para seu protegido. Na
verdade, se substituíssemos os nomes de divindades gregas
pelos dos anjos e dos santos, poderíamos reconhecer nas
últimas palavras do Sol uma entonação genuinamente
cristã:
Vai, então, com boa esperança, pois estaremos sempre
contigo, eu, Minerva e Mercúrio e, conosco, todos os
deuses que estão no Olimpo, nos ares e na terra,
enquanto fores respeitoso conosco, fiel aos amigos,
benevolente com os súditos, imperando sobre eles e
guiando-os para o melhor. Jamais sejas escravo das
paixões, nem as tuas, nem as deles... Vai, então, por toda
a terra, por todo o mar, obedecendo às nossas leis sem
hesitar e que nunca ninguém, nem dos homens, nem das
mulheres, nem dos familiares, nem dos estranhos te
induza a esquecer os nossos mandamentos. Se fores
capaz de observá-los, serás amado por nós, respeitado
por nossos bons devotos, temido pelos homens perversos
e mal-intencionados. Saiba que este corpo carnal te foi
dado para que cumpras esta missão. Queremos purgar a
tua casa, por respeito a teus antepassados. Recorda que
tens uma alma imortal, procriada por nós e que, se nos
seguires, estarás entre os deuses e contemplarás, junto a
nós, o Pai nosso.19
Que figura singular a do imperador Juliano! Como é que
tão nobre e generoso rebento pôde brotar da cepa de
Constantino? Há nessa longa parábola, da qual mostrei
apenas o esqueleto, a expressão de um sentimento alto e
puro, que só poderia vir de uma alma profundamente
honesta e aberta ao bom e ao belo. E vejam que estranho!
O cristianismo foi beneficiado justamente pelos
constantinianos malfeitores, enquanto o único
constantiniano generoso e honesto tentava salvar o
paganismo! É que o cristianismo, em mais de três séculos
de existência, corroído pelas heresias, rico e poderoso,
transformou-se numa instituição mundana, numa religião
que privilegiava a forma e que havia perdido boa parte de
sua eficácia moral. Tanto é verdade que, em seu próprio
seio, como reação à sua crescente mundaneidade, havia
surgido o ascetismo monacal, que revivia, em parte, os
ideais dos primeiros tempos cristãos. O cristianismo oficial,
no qual os arianos guerreavam contra os atanasianos e
ganhavam a supremacia nas honras e riquezas, já estava
tomado pela corrupção, quando os favores imperiais,
afastando-o dos perigos e das dificuldades da existência,
aceleraram sua perversão. Não podemos esquecer que
Constantino foi um celerado, réu dos crimes mais graves,
primeiro entre todos o assassinato de Crispo, o próprio
filho. Mas era também um aventureiro afortunado, hábil,
com um golpe de vista certeiro, que percebeu que, depois
do completo insucesso da perseguição de Diocleciano, a
mais sistemática de todas, não restava ao Império outra
saída senão juntar-se ao inimigo, já que não tinha
conseguido derrotá-lo. Vem daí o Édito de Milão e, em
seguida, a instituição de uma Igreja do Estado e o Concílio
de Niceia. Constâncio, que era tão celerado quanto o pai,
sem ter nem sombra de sua inteligência, contribuiu
grandemente para a degradação do cristianismo. Diante
desse espetáculo, Juliano rebelou-se. O cristianismo, agora
partícipe da autoridade imperial, não a moralizou; ao
contrário, amoldou-se à sua corrupção. “A herdade está
arruinada” – exclama Juliano em sua alegoria. “Poucos são
os pastores honestos. Na maioria, são predadores e
ferozes. Devoram e vendem as ovelhas do patrão e
arruínam seus rebanhos.” Ora, Juliano era um idealista que
passou sua primeira juventude entre os terrores de uma
morte sempre iminente e o ódio aos cortesãos cristãos que
cercavam seu deplorável primo, em meio ao estudo, ao
culto apaixonado da literatura, da filosofia grega e de todo
aquele complexo de tradições, doutrina e glória que ele
reunia sob o nome de helenismo. Portanto, deve ter sentido
nascer no coração, primeiro, a suspeita, depois, a aversão
pela religião que pretendia ocupar este lugar e que se
comportava como inimiga terrível de tudo o que ele
adorava. Inexperiente das forças doutrinárias verdadeiras
que regem o mundo, inebriado pelos estupendos
doutrinadores que o cercavam, Juliano acreditou que
poderia remediar os males que havia testemunhado com
um retorno ao antigo, acompanhado por uma reforma que
adequasse esse antigo às exigências do espírito novo. Se
considerarmos o valor intelectual realmente grande de
Juliano, valor que se revela em toda a sua ação como
general, administrador e escritor, sua tentativa não pode
ser julgada com leviandade, como se fosse uma loucura
romântica e juvenil. Por seu espírito e sua inteligência,
Juliano valia incomparavelmente mais que os imperadores
cristãos que o precederam e que o seguiram. Contudo,
enquanto estes últimos limitaram-se a seguir a corrente,
ele foi o único a tentar voltar ao passado. É preciso,
portanto, reconhecer que o movimento de Juliano
corresponde a algo, a alguma inspiração, a alguma ideia
grande e realmente sentida. Na verdade, a iniciativa de
Juliano foi o último esforço e o único realizado
racionalmente para salvar a civilização. Como dissemos
acima, diante do insucesso da perseguição de Diocleciano,
Constantino achou conveniente, para a salvação do
Império, fazer uma aliança com o inimigo que não podia
vencer. Mas Constantino, homem rude e ignorante, não
podia entender que o cristianismo era, em sua essência, a
mais completa antítese da antiga civilização: aliado ao
Império, sua força destrutiva teria uma ação mais lenta,
mas isso não significa que, a longo prazo, ele seria menos
deletério. No abraço com o cristianismo, o Império
acabaria sufocado. O cristianismo, imprimindo às energias
morais uma direção oposta à que seguiam no mundo greco-
romano, criando novas aspirações e destruindo as antigas,
dissolvia a sociedade e preparava os elementos de uma
nova formação. Juliano compreendeu ou intuiu genialmente
que, para salvar o Império, não devia abraçar o
cristianismo, como Constantino, e nem persegui-lo, como
Diocleciano, mas sim criar algo que correspondesse, em
parte, às exigências que o cristianismo satisfazia, mas que,
ao mesmo tempo, conservasse as bases da civilização e do
pensamento antigos. Para tanto, deu início ao movimento
que chamei de cristianização do paganismo. É claro que
esse movimento estava destinado ao fracasso, por duas
razões. Em primeiro lugar, porque o mundo queria uma
religião. Não acreditava no politeísmo antropomórfico e
nacional, mas também não conseguia acreditar no
politeísmo mítico, confuso e emaranhado que Juliano
extraía do neoplatonismo e com o qual alimentava a ilusão
de satisfazer as aspirações religiosas de seus
contemporâneos. Seria mais fácil persuadi-los a continuar
adorando Apolo, auriga do Sol, do que o novo deus Sol, no
qual a doutrina mítica via uma revelação luminosa da
Trindade criadora. Em segundo lugar, porque esse
movimento estava chegando tarde demais, qualquer que
fosse o seu valor intelectual e moral. Não dispomos de
nenhuma estatística que informe qual a proporção de
cristãos e pagãos no século IV, no mundo romano. Mas a
promulgação do édito de Constantino bastaria para
convencer-nos de que o número de cristãos devia ser
enorme. É bem verdade que o politeísmo ainda resistia,
sobretudo no campo, conforme demonstra o próprio nome
pagão, inventado pelos cristãos. Mas estes últimos eram
dominantes e ocupavam as funções públicas e os altos
cargos. A conversão já não era apenas uma questão de
consciência e de fé, mas um negócio e uma prova de
habilidade. Era impossível frear um impulso que havia sido
dado há séculos, deter uma avalanche que, em seu caminho
montanha abaixo, tinha aumentado enormemente. Talvez
tivesse sido possível deter o cristianismo quando ele surgiu.
Apesar da incomparável energia de Paulo, que o levou da
Palestina natal para o mundo, apesar da genial fantasia do
quarto evangelista, que foi capaz de captar o pensamento
antigo, talvez o cristianismo tivesse desaparecido na
obscuridade, não fosse o criminoso e estúpido capricho de
Nero. Da mesma forma, se a tentativa de Juliano de
reformar o politeísmo tivesse começado dois séculos antes
e com maior temperança especulativa – por um Trajano, um
Antonino ou um Marco Aurélio –, talvez tivesse conseguido
interromper o progresso da propaganda cristã. Nos tempos
de Juliano, porém, era uma empresa totalmente
desesperada. Não ter sido capaz de entender isso mostra a
alma ardorosa do jovem imperador, mas também como ele
estava enganado a respeito do valor daquilo que pretendia
destruir e substituir. Contudo, a ideia que o movia e o
objetivo que buscava vinham de um espírito generoso e
apaixonado pelas coisas grandes e belas. Sua ação foi o
último lampejo de um mundo que morria.
Pode parecer singular que, na bela alegoria que deu
ensejo a esta digressão, Juliano assuma abertamente o
papel de restaurador da grandeza do Império,
comprometida pelos antecessores, mas só se refira à sua
guerra contra o cristianismo por meio de evasivas, sem
nenhuma declaração explícita. É verdade que os pastores
que aconselham o patrão e arruinam seu rebanho são
cristãos e, provavelmente, bispos; a impiedade que o Sol
pede que Juliano elimine da Terra são as igrejas e os traços
do culto cristão. Mais clara e acerba é a alusão à destruição
dos templos antigos, substituídos na veneração dos devotos
pelas sepulturas dos mártires.
Os filhos destruíram os templos, já antes desprezados
pelo pai e privados dos ornamentos colocados pelos seus
próprios antepassados. No lugar dos templos destruídos,
construíram sepulcros, seja velhos, seja novos, incitados
por uma voz interna e pelo próprio destino, pois em breve
precisariam de muitos sepulcros, como punição por terem
negligenciado os deuses.20
Aqui Juliano alude, sem dúvida, a Constantino e seus
filhos. Contudo, esse singular cuidado de não falar
abertamente dos cristãos numa alegoria definida como seu
programa de governo é um indício de que o imperador
queria seguir gradualmente a sua ação e não se arriscava a
comprometê-la com declarações que poderiam suscitar
poderosas oposições. Isso demonstra também que, no
íntimo, ele percebia as dificuldades da empresa e que, pelo
menos no momento em que escrevia esse texto,
compreendia a necessidade de movimentar-se com muita
prudência.
Desde a infância, Juliano mostrou-se perfeitamente
refratário a qualquer influência que pudesse sugestioná-lo
e abrir sua alma para o fascínio do cristianismo, de modo
que possuía as condições de espírito e de pensamento
necessárias para examiná-lo criticamente e para analisar
de um ponto de vista objetivo os elementos que o
compunham, as tradições em que se apoiava. De fato, o
cristianismo participa necessariamente de uma condição
característica de todas religiões: são intangíveis, perfeitas,
provadas, evidentes para os que creem a priori, mas
desfazem-se como névoa ao Sol aos olhos de quem as
observa sem a lente de uma fé preventiva. Todas as
religiões, passadas e presentes, possuem, para quem as
professa, a certeza de um fato constatado, mas parecem
até mesmo absurdas para quem é externo a elas. Não
existe um homem que não se veja obrigado a admitir, às
vezes, que alguém com uma opinião diferente da sua pode
ter razão. Mas não há cristão em cuja cabeça passe a
possibilidade de crer na religião de Maomé ou de Buda e
que não seja capaz de listar as razões mais evidentes para
demonstrar sua irracionalidade absoluta. Mas também não
há muçulmano ou budista que não se encontre, diante do
cristianismo, nas mesmas condições em que o cristão
estava diante de suas respectivas religiões e que seja
desprovido de razões para não crer naquilo em que o
cristão crê. E ele crê que Cristo ressuscitou, pois encontra
esta afirmação num determinado livro, enquanto o
maometano acredita que Maomé teve uma revelação
divina, pois é o que afirma outro livro. Mas a confiança em
um e outro desses livros é efeito, necessariamente, de um
sentimento a priori. Quem não possui tal sentimento logo
conclui que as provas de ambas as afirmações não são
suficientes.
O fato de todas as religiões parecerem irracionais para
quem não crê a priori decorre do fato de que toda religião
assume uma função que é superior à razão, devendo
representar as relações existentes entre um ser
sobrenatural, que se supõe existir fora do mundo, e o
mundo que teria sido criado por ele. Para cumprir essa
função superior à razão, o homem não pode usar outra
coisa senão a própria razão. Mas é claro que usar a razão
para representar algo que está acima e fora da razão só
pode levar a uma representação que se revelará irracional
para quem a vê sem as lentes de uma fé preventiva. Para
nós, a religião dos japoneses parece irracional; para o
japoneses, irracional é o cristianismo. Em 1708, um velho
escritor japonês, Hakusaki, conheceu um missionário
italiano que estava no Japão e escreveu que o estrangeiro
era um homem sábio e bom, mas que ficava louco quando
falava de religião.
O que podemos pensar da ideia de um deus que só
conseguiu redimir uma humanidade perdida por um
pecado (cuja gravidade, aliás, não é evidente), uma
humanidade que é obra sua, que foi punida por ter
transgredido uma lei que também é obra sua, fazendo-se
homem, 3 mil anos depois, sob o nome de Jesus e
sofrendo uma morte ignominiosa? Que história pueril!
Acaso um juiz soberano não pode suavizar as penas
promulgadas por ele mesmo ou até agraciar o condenado
sem por isso ter de assumir o seu lugar em meio aos
tormentos?
O raciocínio de Hakusaki, que parece tão evidente para
quem não crê, não tem nem sombra dessa eficácia para
quem tem a fé dentro de si como elemento constituivo da
própria organização moral. Não compreende o fenômeno
essencial da religião aquele que cultiva a ilusão de poder
combatê-la com raciocínios lógicos. Esses raciocínios, que
para o racionalista parecem armas invencíveis, são para o
crente um telum imbelle [ataque débil]. Crer não é efeito
de uma operação, mas antes de uma disposição da mente.
E essa disposição é intangível para qualquer demonstração
racional. Um raciocínio análogo ao de Hakusaki foi
apresentado pelos polemistas pagãos, mas diante dele,
insurgia-se a consciência de uma humanidade sedenta de
redenção, ansiosa por uma palingênese que a retirasse das
trevas do pecado e da infelicidade. A inexplicabilidade do
processo de redenção tranformava-se na razão para
acreditar nele, justamente porque a razão parecia
insuficiente, impotente para redimir o homem. Foi o
escândalo da cruz que converteu Paulo. Lembremos suas
grandes palavras:
Deus não tornou tola a sabedoria do mundo? Visto que o
mundo não reconheceu Deus em sua sabedoria, aprouve
a Deus salvar aqueles que creem pela estupidez da
pregação. Os judeus pedem sinais, os gregos andam em
busca de sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo
crucificado, que para os judeus é escândalo, para os
gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados,
judeus e gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de
Deus.
E aos Hakusaki de sua época, Tertuliano respondeu com
seus maravilhosos paradoxos:
Crucifixus est dei filius; non pudet, quia pudendum est. .
Et mortuus est dei filius; prorsus credibile est, quia
ineptum est. Et sepultus resurrexit; certum est, quia
imposibile est.21
O filho de Deus foi crucificado; não há vergonha, porque
é vergonhoso. E o filho de Deus foi morto; isto é credível
porque é absurdo. E foi sepultado e ressuscitou; é
verdade porque é impossível.
Juliano, que cresceu num ambiente que não acreditava no
cristianismo, tinha facilidade para apontar as contradições
doutrinárias e históricas das tradições cristãs. Como não
estava imunizado pelo antídoto da fé, essas contradições,
para ele, eram a prova evidente da fragilidade do
cristianismo. Alimentava a ilusão de que bastaria apontá-las
para que o cristianismo caísse. Não entendia que,
chocando-se contra a rocha da fé, todas as suas
demonstrações críticas não conseguiam sequer arranhá-la.
A crítica da religião só deita raízes lá onde o pensamento
científico eliminou ou pelo menos atenuou a necessidade de
uma religião positiva, ou seja, no homem moderno. Mas
nada era mais distante do tempo e dos hábitos intelectuais
de Jualiano que o pensamento científico. Tanto é verdade
que, embora pretendesse destruir o cristianismo com as
armas da crítica, ele estava construindo uma religião que
não resistiria um instante sequer ao assalto dessas mesmas
armas.
Perfeitamente livre de qualquer predisposição a um
sentimento favorável ao cristianismo, Juliano preparou-se
para realizar, contra ele, sua obra de crítico demolidor.
Escreveu um tratado contra os cristãos, no qual discutia as
razões do cristianismo do ponto de vista da história e da
filosofia e tentava provar sua fragilidade essencial. Este
tratado perdeu-se completamente, assim como os tratados
de Celso e de Porfírio, escritos com a mesma finalidade.
Textos desse tipo deviam ser irritantes demais para que os
cristãos aceitassem sua preservação; sua destruição é
consequência de uma intolerância explicável. Contudo, foi
possível retraçar algumas relíquias dos tratados de Juliano
e de Celso, suficientes para dar uma ideia do trabalho.
Celso e Juliano tiveram dois poderosos contestadores. O
primeiro foi discutido e refutado por Orígenes, o segundo,
por Cirilo de Alexandria, em meados do século V. Ora, a
partir dos textos dos contestadores, é possível reconstruir
pelo menos uma parte dos textos contestados. Teodoro
Keim fez esse trabalho em relação ao texto de Celso, e
Neumann, ao tratado de Juliano, num daqueles esforços
maravilhosos de crítica que a moderna erudição possibilita.
O problema é que, da obra de Cirilo, estimada em mais de
vinte livros, restaram apenas dez, inteiramente dedicados à
contestação do primeiro livro da obra de Juliano, que
supostamente reunia três livros. Portanto, Neumann só
pôde reconstruir um fragmento dela. Mas é um fragmento
precioso e suficiente para dar uma ideia da orientação
polêmica de seu autor.
O tratado contra os cristãos teria sido escrito, segundo
narra Libânio na oração fúnebre a Juliano, durante a estada
do imperador em Antióquia. Sabemos que Juliano esteve
em Antióquia entre agosto de 362 e março de 363,
totalmente concentrado nos preparativos da funesta
expedição à Pérsia. Pois bem, em meio a tão graves
preocupações, o fervoroso jovem, aproveitando as longas
noites invernais, segundo narra Libânio, escrevia um texto
para demonstrar quão ridícula e vã era a fé dos cristãos.
Sempre nas palavras de Libânio, era mais poderoso que o
livro escrito, com o mesmo objetivo, pelo “velho de Tiro”,
ou seja, Porfírio.22
É verdade que a circunstância de ter escrito um livro tão
grave num momento de ansiedade e de ainda encontrar
tempo para redigir uma brilhante sátira, o Misobarba, é a
prova mais luminosa da singular versatilidade de Juliano e
de seu profundo conhecimento do Velho e do Novo
Testamentos. Admitimos inclusive, com Libânio, que o
tratado de Juliano era mais erudito que o do próprio
Porfírio, mas consideramos bastante provável que a
existência do tratado de Porfírio tenha auxiliado
poderosamente o seu sucessor, para o qual eram sagrados
todos os ensinamentos e palavras dos mestres
neoplatônicos. Parece realmente incrível que, sem o livro
de Porfírio, que certamente lhe serviu de modelo, Juliano
conseguisse escrever o seu tratado nos poucos e agitados
meses de sua estada em Antióquia.
A partir do texto de Cirilo, Neumann conseguiu recompor
a trama do primeiro livro de Juliano. É certo que o trabalho
do crítico, embora agudíssimo, é, em parte, apenas um
trabalho hipotético, pois não é possível obter nenhum dado
preciso nem sobre a integridade nem sobre a ordem das
citações contidas no texto do discurso contestante.
Contudo, a leitura do livro de Juliano, tal como resulta da
reconstituição feita pelo crítico, mesmo deixando algumas
dúvidas sobre os detalhes do ordenamento, nos dá uma
clara noção dos conceitos fundamentais sobre os quais se
desenvolvia a argumentação e do valor da argumentação
em si. Encontra-se aqui também aquela singular mistura de
agudeza de espírito, crítica racional e, ao mesmo tempo, de
preconceito e superstição, que é característica de Juliano e
que já identificamos em seus outros escritos. Mas a julgar
pelo fragmento que possuímos, o tratado contra os cristãos
devia ser a obra mais pensada de Juliano, aquela na qual a
agudeza do crítico demolidor se exercia com segurança,
por estar mais livre de preconceitos filosóficos e
escolásticos. Se o cristianismo pudesse ser demolido pela
análise crítica de suas bases e de seus documentos, o livro
de Juliano teria desempenhado a função de uma robusta
picareta.
Não devemos examinar este livro por seu valor intrínseco,
mas porque tem grande interesse como documento
histórico e contém, expostas pelo próprio Juliano, as causas
racionais de sua apostasia. Nele, o apóstata ataca
diretamente o cristianismo. Os imperadores antecedentes o
atacaram a ferro e fogo. Juliano acredita que o vigor de
seus argumentos será suficiente. É verdade que, em alguns
pontos, não lhe faltam perspicácia nem doutrina. Mas um
juiz realmente imparcial e iluminado poderia dizer, ao ler a
crítica de Juliano: Medice, cura te ipsum [Médico, cura-te a
ti mesmo].
O livro começa assim:
Considero conveniente expor a todos os homens as razões
que me convenceram de que a tola doutrina dos galileus é
uma invenção construída pela perversidade humana. Não
tendo em si nada de divino e usando a inclinação da alma
para tudo o que é mítico, infantil e irracional, conseguiu
fazer com que suas fábulas prodigiosas se passassem por
verdade.
[...]
Vale a pena examinar brevemente de onde e como
chegou até nós primeiramente a ideia de Deus e, então,
confrontar o que gregos e judeus dizem a respeito da
divindade para, em seguida, perguntar aos que não são
gregos nem judeus, mas pertencem à heresia dos
galileus, por que preferiram a doutrina dos judeus à
nossa e, mais ainda, por que não permaneceram com ela,
mas separaram-se para seguir um caminho próprio. Sem
aceitar nada daquilo que nós, gregos, temos de belo e de
bom e nada daquilo que os judeus receberam de Moisés,
eles absorveram, ao contrário, os vícios que a uns e
outros foram impostos, talvez por um demônio perverso:
a impiedade da intolerância judaica, a vida dissoluta e
torpe de nossa leviandade e intemperança. Ousaram
chamar tudo isso de religião perfeita.23
Neste pequeno proêmio estão os dois pontos
fundamentais em torno dos quais se desenvolve toda a
polêmica de Juliano: em primeiro lugar, a superioridade do
politeísmo helênico sobre o monoteísmo judaico, que ele vê
como uma aplicação errada de um princípio essencialmente
verdadeiro; em segundo lugar, a contradição dos cristãos
(os galileus, como ele os chama de modo depreciativo), que
afirmam extrair sua doutrina e sua ideia do divino da
religião judaica, para ofendê-la em seguida em seus
conceitos mais essenciais.
Juliano era um polemista hábil e arguto, capaz de
perceber rapidamente o ponto fraco do adversário. Para
combater o monoteísmo judaico, ele ataca o seu defeito
propriamente fundamental, que é ter um Deus
exclusivamente nacional por natureza. O Deus dos judeus
não é o Deus da humanidade, é o Deus de um determinado
e pequeno povo. Ora, diz Juliano, é possível assumir um
Deus assim como Deus único de toda a humanidade? É
possível que o criador de todos os homens tenha reservado
seus favores para tão exígua e imperceptível minoria? Esse
raciocínio é a pedra angular de toda a confutação juliana.
Para ele, é fácil demonstrar, com os textos na mão, que
Moisés pretendia fazer de seu Deus o Deus exclusivo dos
judeus. Em seguida, ele continua:

Que Deus, desde o princípio, tenha considerado tão


somente os judeus e deles tenha feito o seu povo eleito não
é uma afirmação apenas de Moisés e de Jesus, mas também
de Paulo. Este último mudava de convicções sobre Deus de
acordo com as conveniências, como os polvos mudam a cor
da pele segundo o rochedo onde se agarram: ora
sustentava que a eleição divina havia sido concedida
apenas aos judeus, ora queria convencer os gregos a
tornarem-se seus devotos, dizendo: “Deus não é Deus
somente dos judeus, mas de todas as gentes, sim, de todas
a gentes.” Contudo, nesse caso deveríamos perguntar a
Paulo: por que Deus deu somente aos judeus o dom
profético e Moisés e o crisma e a lei e os milagres? Por fim,
enviou-lhes até Jesus. Para nós, então, nenhum profeta,
nenhum sacerdote, nenhum mestre, nenhum mensageiro
de sua tardia benevolência? Ao contrário, não se importou
durante miríades ou, se preferirem, milhares de anos com
todos aqueles que, do Oriente ao Ocidente, do Norte ao
Sul, em sua ignorância, adoravam os ídolos, fazendo
exceção apenas para uma pequena estirpe que habita a
Palestina há menos de 2 mil anos. Se ele é Deus e criador
de todos, por que nos ignorou? Devemos, então, supor que
somente vocês ou alguns da sua raça conseguiram
estabelecer uma concepção racional desse Deus do
Universo?24
Os argumentos de Juliano não são desprovidos de
perspicácia. Mas é sintomático do ambiente intelectual no
qual Juliano escrevia, que ele não percebesse que o sistema
que apontava como expressão da verdade era muito mais
pueril e tão irracional quanto o sistema que ele combatia. O
politeísmo neoplatônico, tal como resultou das
especulações de Jâmblico, Máximo e outros fervorosos
sucessores de Plotino, era um politeísmo de segundo grau.
Afirmava um Deus supremo, único, criador de tudo, mas
abaixo desse Deus colocava os deuses menores, por meio
dos quais ocorria o processo criativo e que Juliano via como
divindades protetoras das diversas nacionalidades.
Portanto, ele não tinha dificuldade em reconhecer o Deus
judaico, mas como uma dessas divindades secundárias,
com as quais acreditava que poderia esclarecer as
diversidades existentes de povo a povo, que de outra forma
não seria possível explicar. Não é o caso de parar para
demonstrar como estas fantasias são infantis. Mas é
interessante ler pelo menos uma página de Juliano para
comprovar que, onde falta conhecimento seguro e científico
da realidade, a mente humana erra, sem bússola, no mar da
imaginação e é envolvida pela névoa que esta última
pensava ter dissipado.
Depois de refutar o monoteísmo judaico, Juliano diz:
Confrontem esta doutrina com a nossa doutrina. Nossos
mestres afirmam que o criador é Pai e rei do Universo,
mas distribui os povos entre divindades étnicas ou locais,
cada uma das quais tem seu governo segundo sua própria
natureza, pois no Pai tudo é perfeito e único, mas nos
deuses parciais as faculdades diferem umas das outras.
Marte governa os povos belicosos, Minerva, os belicosos
e ao mesmo tempo sábios, Mercúrio, os prudentes, mais
que os audazes. Enfim, os povos conduzidos por
divindades nacionais seguem a tendência essencial de
cada uma delas. Ora, se a experiência não confirmasse a
nossa doutrina, ela seria uma invenção ou um artifício
tolo e a deles, em troca, deveria ser louvada. Mas se, ao
contrário, a experiência de tempos infinitos comprova o
que afirmamos, enquanto nada concorda com as ideias
deles, por que cultivam tanta ânsia de confrontação?
Digam-me, por favor, qual seria a causa pela qual celtas e
germanos são corajosos; gregos e romanos são civis e
humanos, mas ao mesmo tempo de ânimo firme e
guerreiro; egípcios, mais prudentes e industriosos; sírios,
mansos e fracos, tímidos e levianos, mas rápidos para
aprender? Quando não se reconhece causa alguma para
tamanha diversidade entre os povos e se afirma que ela
se verifica automaticamente, como se pode acreditar que
o mundo é governado pela Providência? Mas se, ao
contrário, o propósito é estabelecer causas, alguém me
diga e me ensine como fazer para que elas remontem a
um único criador. É claro que a natureza humana criou
para si as leis que lhe convinham, civis e humanas onde
dominava a benevolência, rudes e desumanas onde esta
era a índole dos costumes, pois os legisladores pouco
acrescentaram, com a educação, à disposição primitiva...
Por que, então, existe tal diferença entre os povos nos
costumes e nas leis?25
Juliano choca-se contra uma realidade que existe
realmente, quando se estabelece uma criação voluntária,
com uma finalidade predeterminada. Ele sente a
inexplicabilidade da organização do Universo, quando é
imaginado como algo pensado a priori por uma vontade
consciente. E na Antiguidade, é especialmente aguda e
original a observação de que não são as leis que fazem os
homens, mas os homens que fazem as leis, o que significa
que a moral não é absoluta, mas sim um fenômeno que
remete às condições preexistentes dos homens e dos
tempos. O fato de que, dada uma vontade criadora e
consciente, tudo isso se torna inexplicável e de que admitir
esta vontade significa cair numa rede de contradições é tão
claro que os homens acabaram descobrindo que o único
modo de sair da dificuldade era incorporar o mistério,
fechar os olhos e tratar de engoli-lo. Mas Juliano não
pretendia se contentar com explicações que não explicam.
Buscava uma que fosse, ou pelo menos, lhe parecesse
satisfatória. Mas como essa dificuldade é absolutamente
insuperável, dado que o conceito antropomórfico da
divindade que obriga a buscar a causa da criação impede,
por outro lado, que se encontre uma que seja razoável, ele
cai necessariamente numa explicação tão insípida que
acaba sendo a prova mais evidente do completo
esgotamento do politeísmo.
A origem dessas divagações neoplatônicas é o Timeu de
Platão. Em seu tratado, Juliano confronta a cosmologia
platônica com a de Moisés e extrai daí os argumentos para
demonstrar que a criação por graus e hierarquias divinas,
proposta por Platão, era mais razoável que a criação por
ato direto de um criador único. Sua teoria dos deuses
étnicos e locais é uma variação do tema platônico.
Esclarecida, segundo Juliano, a posição do monoteísmo
judaico em face do politeísmo helênico e demonstrado o
erro dos judeus ao considerar como único e supremo um
Deus que era apenas secundário e parcial, o polemista
passa a desenvolver o segundo de seus conceitos
fundamentais. Pretende demonstrar o erro dos cristãos,
que não ficaram nem com os judeus nem com os gregos, e a
insustentabilidade da pretensão de serem oriundos de uma
religião que sua doutrina nega abertamente. Juliano diz aos
cristãos:
Vocês são como sanguessugas, sugaram o sangue infecto
de toda parte e deixaram o puro. [...] Invejam a ira e o
ódio dos judeus, mas derrubam templos e altares e
trucidam não apenas aqueles que permanecem fiéis às
próprias leis pátrias, mas também os hereges, só porque,
mesmo professando os mesmos erros que vocês, não
seguem exatamente os mesmos ritos em sua plangente
adoração do morto.*1 Tudo isso é obra sua, pois nem
Jesus nem Paulo ordenaram tal coisa. E a razão é que eles
jamais pensaram que vocês chegariam a ter tamanho
poder. Já estariam contentes se conseguissem enganar
alguma criada ou algum escravo, os quais enganassem,
por sua vez, mulheres e homens de valor como Cornélio e
Sérgio. E se um só entre eles for incluído entre os ilustres
da época, vocês podem dizer que eu sou um completo
mentiroso.26
Quem dera os cristãos tivessem permanecido fiéis à
doutrina judaica. Mas não, afirma Juliano, afastaram-se
dela mais ainda que da nossa. A impiedade cristã é formada
pela soberba judaica e pela leviandade helênica. Tomando
das duas partes não o que têm de bom, mas o que têm de
pior, teceram para si uma veste de vícios. “A bem da
verdade, deleitaram-se em exagerar nossa ociosidade e
acharam que seria bom adaptar seus costumes aos dos
homens mais abjetos, mercadores, cobradores, bailarinos e
rufiões.”27
Quem poderia supor, a priori, que os cristãos, cuja
religião tinha sua razão de ser numa reação contra a
imoralidade do mundo greco-romano, tivessem se tornado,
em três séculos, mais imorais que aqueles a quem
pretendiam corrigir, de modo que um polemista pagão
podia combatê-los em nome da moral ofendida? Não há
prova maior para ilustrar a tese de que a moral não é um
elemento externo que se infiltra no homem, vindo de fora,
mas é, antes, o produto de todo o seu ser íntimo. Em seus
primeiros tempos, o cristianismo parecia moralizador
porque, durante as perseguições, os cristãos
representavam uma seleção. Quando o cristianismo
vitorioso se generalizou, teve de adaptar-se ao ambiente da
época e corrompeu-se. O cristianismo não moralizou a
sociedade; a sociedade é que corrompeu o cristianismo.
Contudo, continua Juliano, insistindo na diferença
existente entre cristãos e judeus, os cristãos reconhecem
que são diferentes dos judeus contemporâneos, mas
afirmam que são rigorosamente judeus no que diz respeito
aos preceitos estabelecidos pelos profetas e por Moisés.
Juliano entra numa discussão que demonstra o
conhecimento exato e minucioso que tinha da literatura
judaica. Com o testemunho dos textos, afirma que Moisés
não podia prever a vinda de Jesus, pois só admitia um único
e indivisível Deus. Ele falou de profetas, de anjos, de reis,
mas jamais de um Deus que desceria à Terra. Juliano pega
os cristãos em contradição: para concordar com Moisés,
dizem que Jesus descende de Davi e que foi concebido pelo
Espírito Santo. Por isso, inventaram a genealogia davídica
de José, mas não conseguiram fazer com que os dois
Evangelhos que a enunciam concordassem. Se, ademais, os
cristãos pretendessem que também acreditam num único
Deus, cairiam na mais aberta contradição com o texto do
Evangelho de João, que nenhuma arte de interpretação
seria capaz de tornar conforme aos textos mosaicos.28
Também no que diz respeito ao culto e aos sacrifícios, os
cristãos distanciam-se igualmente dos judeus e dos gregos.
De fato, segundo Juliano, Moisés estabelece no Levítico um
procedimento de sacrifícios que não difere em nada dos
sacrifícios gregos. Mesmo que fosse verdade que os judeus
não fazem mais sacrifícios (Juliano afirma que não é), isso
só decorreria da circunstância de que não existe mais o
templo de Jerusalém, o local onde ocorriam os ritos
solenes. Mas os cristãos, que não têm essa obrigação de
ligar o rito a uma determinada sede, não têm razão
nenhuma para deixar de realizar as cerimônias prescritas.
A verdade é que os judeus, salvo o princípio de unicidade
de Deus, assemelham-se em tudo aos gregos, enquanto os
cristãos se distanciam de uns e de outros. Não admitem as
formas de culto que gregos e judeus são concordes em
desejar; não reconhecem a infinita pluralidade do
politeísmo helênico, mas ao afirmar uma trindade divina
também não reconhecem o monoteísmo judaico.29
Quando quer demonstrar que os cristãos estão errados ao
não realizarem sacrifícios como os gregos e os judeus,
Juliano é um polemista mesquinho e pedante, mas quando
afirma que os cristãos. com sua trindade divina, ofendem
tanto o rigoroso monoteísmo dos judeus, quanto o amplo
politeísmo dos gregos, colocando-se numa posição
racionalmente insustentável, ele tem razão, pelo menos na
aparência. Tanto tem razão que o dogma da Trindade, como
vimos, só foi aceito com grande relutância pelos espíritos
consequentes com as premissas do monoteísmo e foi a
centelha que incendiou as terríveis lutas que dilaceraram o
cristianismo nascente, entre os séculos III e V. E que
acabou sendo aceito como um mistério inescrutável.
Em seguida, Juliano passa a demonstrar que, ao afirmar a
possibilidade de aperfeiçoar a lei judaica, os cristãos caem
na mais aberta contradição com o que Moisés escreveu, de
modo que é insustentável a pretensão de ver na religião de
Israel a origem e a base do cristianismo. Mas tem mais.
Não satisfeitos em contradizer os judeus, dos quais
afirmam descender, os cristãos contradizem a si mesmos,
pois nos Evangelhos, ele diz, há afirmações inconciliáveis
entre si. É inútil buscar em Mateus, Marcos ou Lucas a
doutrina do Logos encarnado no Cristo, representando uma
pessoa divina, que é uma invenção de João. Esta
argumentação é conduzida de modo a demonstrar que o
polemista conhecia bastante bem a literatura cristã e, não
fosse a paixão do ódio que o cega, quase poderíamos dizer
que, às vezes, há no seu método um certo ar de crítica
moderna.30
Mas não existe nada disso na invectiva contra o culto
cristão dos sepulcros. Não se satisfazem em adorar o morto
Jesus, diz Juliano, querem adorar também os que morreram
depois dele. Enchem todos os espaços com sepulturas e
monumentos, embora nenhum de seus livros diga que
devem viver cercados de sepulturas e adorá-las. Com essas
palavras, Juliano refere-se ao culto cristão dos mártires, a
quem erguiam santuários sobre a ruína dos templos
abandonados ou destruídos, culto que o irritava
sobremaneira. A razão disso pode estar, em parte, num
sentimento estético, porém mais ainda na grande eficácia
que o culto tinha na imaginação dos crentes. Assim, ele se
esforça, com cavilações pedantes, para demonstrar que
Jesus não desejava esse culto e usava os sepulcros como
termo de comparação com coisas indignas, além de afirmar
que os cristãos só adoram os sepulcros para obter poderes
mágicos maléficos.31
Os cristãos fazem aquilo que Deus, Moisés e os profetas
reprovaram, mas depois recusam-se a sacrificar nos
altares, embora o episódio de Caim e Abel, corretamente
interpretado, devesse convencê-los de que os sacrifícios de
oferendas vivas agradam a Deus. E por que os cristãos não
se circuncidam? Paulo fala da circuncisão do coração. Mas
a ordem de Deus, no Gênesis, é explícita demais para que
se possa descartá-la sem desrespeitar a lei. E Jesus
declarou que não vinha para alterar a lei, mas para cumpri-
la. “Ah, vocês dizem que serão circuncidados no coração!” –
exclama Juliano com acerba ironia. “E têm razão, pois entre
vocês, como se vê, não existe nenhum malvado, nenhum
celerado! Realmente bela essa sua circuncisão do coração!”
A verdade é que os cristãos desobedecem abertamente aos
preceitos do seu próprio Mestre.32
Juliano termina o primeiro livro de seu tratado, o único do
qual se conservaram vestígios, retornando ao acordo
existente, segundo ele, entre o politeísmo helênico e o
monoteísmo judaico, e à identidade dos ritos e dos
procedimentos de sacrifício e de predição vigentes nas
duas religiões. Ele ilustra essa afirmação com a história de
Abraão, com os processos de interpretação que permitiam
que o patriarca compreendesse as promessas de Deus e os
signos celestes que asseguravam seu cumprimento.
Considera que eles têm uma enorme analogia com os
processos da mântica grega e que tê-los abandonado foi um
grande erro dos cristãos. Também, nesse caso, Juliano
demonstra um conhecimento singular da literatura bíblica
e, ao mesmo tempo, a argúcia de um espírito educado para
uma lógica totalmente formal. Porém, mais uma vez,
constatam-se aqui a total ausência de ciência positiva e a
espantosa superstição desses reformadores do politeísmo.
É doloroso ver um herói como Juliano, um homem dotado
de uma versatilidade intelectual tão maravilhosa que
consegue escrever um tratado como este, de erudição
teológica, em meio às preocupações de uma guerra
gigantesca que ele conduzia pessoalmente, cair em tão
miseráveis preconceitos, mostrar uma confiança tão pueril
no exercício de ritos tolos, de sacrifícios sangrentos, de
presságios meteóricos e ainda terminar dizendo: “A
verdade não pode ser reconhecida unicamente pela
palavra; é preciso que a palavra seja seguida por um sinal
eficaz que, com sua aparição, garanta o acontecimento da
predição no futuro.”33
Temos aqui, com certeza, uma enorme queda em
comparação com Marco Aurélio, com os estoicos, com
Platão, enfim, com toda a ciência grega. A causa disso está
na influência do neoplatonismo, que colocou o
sobrerracional e o sobrenatural no lugar dos deuses
naturalistas do politeísmo antigo e impôs isso, como um
pesadelo, ao mundo e à natureza, sem ter conseguido
determiná-los num ser supremamente moral, como havia
feito o cristianismo. Consequentemente, o sobrenatural,
revivendo por um instante os deuses naturalistas do mundo
antigo com um sopro artificial, tornou sua ação mais
intensa em todos os momentos da vida e fez da superstição
a pedra angular da religião. O cristianismo também não
soube se manter imune. Ao contrário, caiu
assustadoramente na superstição e só conseguiu livrar-se,
em parte, na aurora da ciência positiva. Contudo, mesmo
velada, a idealidade moral de uma figura divina como a de
Jesus serviu como um remédio que curava o espírito
enfermo de erros e medos estúpidos. No tempo de Juliano,
o cristianismo podia ser considerado como uma reação
contra a loucura da superstição politeísta. Quando se passa
do sobrenatural de Juliano para o de Ambrósio ou de
Agostinho tem-se a sensação de uma verdadeira libertação
e entende-se por que a tentativa de restauração politeísta,
mesmo justificada e enobrecida pelo amor à cultura
helênica, não tinha a mais remota possibilidade de vitória.*2
Não podemos confrontar o tratado de Juliano com o de
Porfírio, que, como dissemos, se perdeu, mas podemos
fazê-lo com o de Celso, que foi conservado, pelo menos em
parte, na refutação de Orígenes, na qual Teodoro Keim
realizou o mesmo trabalho de reconstituição que Neumann
faria mais tarde com o texto de Juliano, na constestação de
Cirilo.34
Esses dois ataques filosóficos contra o cristianismo,
realizados cerca de dois séculos de distância um do outro,
pois o de Celso ocorreu nos últimos anos de Marco Aurélio,
demonstram que a base da polêmica permaneceu a mesma.
É sempre a filosofia platônica que encontra no politeísmo
uma explicação bem mais ampla e verdadeira de suas
ideias fundamentais sobre a divindade e sobre o mundo do
que no restrito monoteísmo judaico e cristão; é sempre a
acusação aos cristãos por terem se afastado dos judeus,
dos quais pretendem descender; é sempre a demonstração
da impossibilidade de aceitar as lendas que fundamentam o
cristianismo. Só que, durante os dois séculos que se
passaram entre Celso e Juliano, o espírito grego,
desprovido da âncora segura do conhecimento objetivo e do
espírito científico, havia se lançado a velas despregadas no
grande mar do misticismo, constituindo no interior do
neoplatonismo, como vimos, uma filosofia religiosa baseada
na ideia dominante e esmagadora do sobrenatural.
Portanto, a diferença filosófica entre Juliano e Celso é que o
primeiro vai muito mais longe na interpretação simbólica
do politeísmo e domina uma dogmática mítica que falta ao
seu predecessor. Por outro lado, nos tempos de Juliano, o
cânone do Novo Testamento já era estabelecido e de uso
corrente, o que não acontecia, ou pelo menos só começava
a acontecer nos tempos de Celso, o que dava a Juliano um
domínio maior das fontes do cristianismo e permitia que
usasse o Quarto Evangelho para demonstrar a contradição
entre estas fontes, coisa que Celso não podia fazer ou pelo
menos não fez. Acrescente-se ainda que Juliano, educado
no cristianismo, tinha um conhecimento profundo não só do
Novo, mas também do Velho Testamento, que usava em sua
polêmica com abundância de citações e com uma
segurança que certamente não se podia exigir de Celso,
cuja mente estava voltada para outros estudos e que, afinal,
combatia o cristianismo, cuja ameaça ainda não se fazia
sentir, como uma desprezível tolice. O texto de Celso é a
obra de um literato que se diverte em sua crítica; o texto de
Juliano, é a obra de um polemista que combate pela vida.
Só que Celso era um espírito filosófico bem mais amplo e
mais genial que Juliano. Se este o vence na argumentação
baseada na hermenêutica dos textos, Celso é muito
superior na agudeza intuitiva de suas vastas especulações,
sem falar que não nos impõe o espetáculo dessa terrível
superstição que é a falha mais grave de Juliano e de seu
politeísmo neoplatônico. Celso considera o cristianismo
como uma doutrina que colocou os antigos e envelhecidos
mitos da divinização de um homem sobre uma figura que
não era digna de tal homenagem. Ele afirma que a ideia de
uma redenção que ocorreu num ponto da história não se
coaduna com a justiça e com o amor divino, que não pode
ser limitado a uma eficácia tão parcial. Celso opõe à
teologia da salvação o imutável e eterno ordenamento da
natureza, no qual o mal e o pecado, determinados pela
matéria, têm seu lugar necessário, e o homem não é o
objetivo do mundo. Nessas negações da posição
antropocêntrica do homem e antropomórfica da divindade,
Celso poderia ser considerado um precursor do
pensamento moderno. Ele começa com as seguintes
palavras:
O Universo não é feito para os homens, como não é feito
para os leões, as águias ou os golfinhos, mas tudo
contribui para tornar esse mundo, como obra de Deus,
perfeito e completo em todas as suas partes. Portanto, as
coisas não estão dispostas para serem propriedade umas
das outras, mas para formarem uma obra complexa, para
serem, enfim, o Universo. Deus está no Universo e a
Providência jamais o abandona. O Universo nunca se
torna pior. E Deus, através do tempo, nunca se retira em
si mesmo e nunca se irrita por causa dos homens, como
não se irrita por causa dos símios ou das moscas. E nunca
ameaça os seres, os quais têm, cada um, sua própria
sorte determinada.35
Eis uma página que Juliano, com seu antropomorfismo
sobrenatural, jamais teria escrito. Assim como não teria
escrito a frase profunda de Celso, que, depois de
mencionar as estranhas e incríveis divinizações que
constatou junto aos mais variados povos, de homens que
viviam no meio deles, divinizações idênticas à que os
cristãos fizeram de Jesus, exclama: “Tanto pode a fé,
qualquer que seja ela, desde que possuída com
antecedência.”36 É uma frase que contém a chave que abre
os segredos da história das religiões e cuja profundidade
Celso talvez intuísse, mas sem compreendê-la totalmente.

Vimos, portanto, que Juliano tentava arruinar o


cristianismo demonstrando a fragilidade de sua base
histórica e as contradições em que caía com as premissas
das quais dizia descender. Contudo, se Juliano tivesse se
limitado a esse trabalho negativo, sua tentativa não teria
nada de especial diante do que haviam feito Celso e Porfirio
e talvez outros mais, que foram esquecidos. Ora, Juliano
queria algo mais. Queria manter de pé o politeísmo antigo,
que para ele representava o helenismo, a civilização e a
cultura helênica, contra a novidade cristã que ameaçava
destruí-lo. Mas, para isso, pretendia cristianizá-lo na moral
e na constituição eclesiástica. Percebia a necessidade de
reanimar a sociedade com um espírito novo e pensava que
podia inseri-lo nas velhas formas, cuja ruína representava
para ele a ruína da sociedade. Justamente aí reside a
originalidade do movimento de Juliano. Esse feroz inimigo
do cristianismo fazia propaganda de todas as virtudes que o
cristianismo ensina: temperança, respeito às coisas
sagradas, honestidade na vida pública e privada, ódio à
riqueza, cuidado com as coisas do espírito, amor ao
próximo e, sobretudo, caridade. O cristianismo teve tão
pouco sucesso na implementação de tais virtudes na
sociedade do Baixo Império que, ao transformar-se em
religião oficial, teve de renunciar a elas, mas criou ao
mesmo tempo o monasticismo como uma estufa na qual se
conservavam tais virtudes sob a fervorosa ação de um
ascetismo rigoroso.
Juliano pretendia refazer a obra do cristianismo,
confiando-a ao politeísmo, a quem entregava a missão de
moralizar a sociedade. Ele caía assim no erro comum a
todos os reformadores religiosos e morais, ou seja,
acreditar que uma sociedade, como um indivíduo, se
moraliza com ensinamentos e sermões. A moralização só
ocorre como consequência de determinado ambiente
intelectual no qual o indivíduo e a sociedade se encontram.
Não foi a Reforma que moralizou os povos germânicos. A
Reforma foi, ela mesma, efeito de uma disposição
preexistente no caráter e nos hábitos daqueles povos, que
tinham um vivo sentimento da dignidade humana,
sentimento que, nos povos latinos, estava totalmente
extinto. Por isso, não conseguindo moralizar o mundo, pois
o mundo não estava maduro para seu grande princípio da
solidariedade humana, o cristianismo apenas sacudiu as
bases da civilização. Pois bem, Juliano queria salvar o
politeísmo para salvar, com ele, a civilização helênica e,
apesar do seu ódio pelo cristianismo, no qual via um
inimigo acérrimo desta civilização, queria cristianizar o
politeísmo para transformá-lo num instrumento de
regeneração moral. A irracionalidade da empresa não pode
ocultar a nobreza da ilusão em que Juliano vivia nem a
grandeza do objetivo a que se dedicava com todas as forças
de sua versátil inteligência.
Três importantes documentos revelam quais eram, de um
ponto de vista prático, as intenções de Juliano na
organização de seu politeísmo cristianizado: o longo
fragmento de uma carta a um desconhecido,37 a carta a
Arsácio, sacerdote da Galácia,38 e um fragmento de outra
carta, a Teodoro, para investi-lo de um alto cargo
sacerdotal.39 Este último fragmento pode ser unido ao
primeiro, formando um todo, interrompido por uma breve
lacuna. Vamos examiná-los atentamente, pois contêm a
parte mais curiosa da reforma de Juliano. Veremos um
estranho espetáculo: um comandante heroico, um
aventureiro audaz, esmiuçando a organização eclesiástica
em seus mínimos detalhes e escrevendo pastorais, o que
mostra como levava a sério sua missão de reformador
religioso. É que Juliano colocava em tudo o que fazia uma
singular seriedade e objetividade de propósitos. Napoleão
que, em meio às preocupações da estada em Moscou,
elabora o regulamento do Teatro Francês é, certamente,
um exemplo de maravilhosa versatilidade. Mas Napoleão
era um egoísta colossal. As coisas só o interessavam
quando se referiam a ele mesmo ou ao seu domínio. Tinha
apenas um ideal, ele mesmo. Sua inteligência era um
instrumento que trabalhava apenas para ele. Juliano era
um homem de outra têmpera. Havia estabelecido para si
uma missão no mundo, e cumpri-la era o mais imperioso
dos deveres. Toda a singular versatilidade de sua
inteligência estava voltada para esse objetivo ideal. Em
Juliano, o homem prático era admirável, mas estava a
serviço de um idealista fervoroso. Tal associação dá à
figura do jovem imperador um relevo estranho e quase
enigmático.
O fragmento da carta ao sacerdote mostra que Juliano
pretendia formar um sacerdócio pagão que realizasse o
ideal de virtude que o clero cristão tinha como meta, desde
que não tivesse que segui-la. No início do fragmento,
encontramos uma violenta e cruelmente irônica alusão aos
cristãos.
Sobre aqueles que não veneram os deuses, impera a
estirpe dos demônios maléficos, que enlouqueceram
muitos desses ímpios, de modo que tentam morrer, como
se estivessem certos de voar ao céu quando a violência
despedaçar suas vidas. Outros preferem habitar os
desertos, em vez das cidades, embora o homem seja, por
natureza, um animal sociável e doméstico, dominados,
eles também, por demônios malignos que os arrastam
para tal misantropia. E estes ímpios abandonam-se
voluntariamente a estes demônios, rebelando-se contra os
deuses eternos e salvadores.

Eis, então, o que Juliano pensava dos mártires e dos


eremitas, ainda que representassem o ideal cristão em sua
força e pureza. É que esse ideal contrastava radicalmente
com os conceitos fundamentais do pensamento e da
civilização antiga. O cristianismo partia da execração do
mundo presente e passageiro para alcançar a conquista do
mundo sobrenatural e eterno. Por isso, o cristão genuíno
professava o abandono e a renúncia às coisas do mundo e
aspirava à morte para tornar-se cada vez mais livre das
torpezas da vida terrestre e para apressar o alcance da
felicidade prometida. É por isso que o cristão genuíno, o
cristão dos primeiros tempos, desejava o martírio; é por
isso que, quando o cristianismo, tornando-se poderoso e
penetrando no organismo social, dobrou-se às necessidades
da vida e corrompeu-se, ele organizou rapidamente uma
reação contra esse movimento fatal, dando origem ao
monasticismo, que, em sua gênese, representava a
renúncia completa às transações necessárias à convivência
social, mantendo intacto o princípio inspirador do
cristianismo. Ora, o homem antigo, para quem a realidade
estava toda no presente e as visões do além-túmulo, ao
contrário, nada mais eram que larvas e sonhos, não
conseguia compreender esse princípio que, no entanto,
constituía a essência do cristianismo, que aos seus olhos
parecia o produto de uma verdadeira perversão do juízo,
uma loucura que revolucionava a ordem social e
contrastava com a natureza e com os fins do homem.
Juliano, que era um homem antigo, um autêntico grego,
não podia deixar de sentir uma franca antipatia pela
tendência pessimista do genuíno espírito cristão. Via como
loucos furiosos e perigosos tanto os mártires, que em sua
época já não existiam mais, quanto os eremitas e os
monges que começavam a povoar, em nome de Cristo, as
solidões do Oriente.
Depois desse pequeno desabafo contra os cristãos,
Juliano segue com suas recomendações aos sacerdotes.
Eles devem dar exemplo de obediência às leis divinas, pois
com este exemplo os homens aprenderão a obedecer às leis
do Estado. Ora, segundo Juliano, o primeiro dever dos
sacerdotes é a caridade. Nesse ponto, ele fala como um
bom cristão. Há uma espécie de unção em seu discurso,
que revela uma influência desconhecida na Antiguidade
propriamente dita. Os deuses, diz Juliano, dão contínuas
provas de amor pelos homens. Como, então, os homens não
vão querer se amar e se ajudar entre si? Querem acusar os
deuses pela miséria que ocorre no mundo. Mas, se quem
tem desse aos outros na proporção de suas posses, a
miséria não existiria mais. Juliano sempre se alegrou com o
bem que podia fazer, vendo nisso uma vantagem para si
também. E para quem comentasse que era fácil para ele,
imperador, dar esses conselhos, lembrava que também
havia sido pobre e feito parte, por suas exíguas posses, dos
necessitados. E continua com essas palavras que, mais que
cristãs, são propriamente evangélicas e poderiam ser
atribuídas a Jesus, embora tenham sido escritas por seu
mais feroz inimigo.
Devemos tornar nossas coisas comuns a todos os homens,
mais livremente aos bons e depois a todos os
desventurados e a todos os pobres, tanto quanto sua
necessidade exigir. Devo dizer, aliás, embora possa
parecer um paradoxo, que dar roupas e alimentos até aos
inimigos é uma coisa santa, pois estamos dando ao
homem, não a seu caráter.40

E continua com palavras talvez ainda mais belas:


E creio que devemos tomar tais providências também
para com aqueles que estão no cárcere. Este amor ao
próximo não é obstáculo para a justiça. Entre os muitos
encarcerados, alguns serão culpados e outros inocentes.
Ora, o que devemos temer não é agir com piedade com os
maus por causa dos inocentes, mas antes agir
impiedosamente com os inocentes por causa dos maus.

Preciosidades como essa, que parecem extraídas da intacta


mina do Evangelho, podem ser encontradas esparsas por
toda a obra de Juliano. Assim, ele dirá: “Parece-me melhor,
de qualquer ponto de vista, salvar um mau entre mil bons,
que arruinar mil bons por causa de um só mau.”41 E em
outra ocasião:
Que hecatombes podem valer a santidade, que o divino
Eurípedes cantava clamando “Santidade, santidade,
veneranda deusa”? Acaso não sabes que todas as coisas,
grandes e pequenas, têm a mesma eficácia quando
oferecidas aos deuses com espírito de santidade e que,
sem este espírito, não só o sacrifício de cem, mas o de mil
bois não passa de um desperdício inútil?42

Palavras admiráveis, ainda mais admiráveis na boca de um


imperador. No entanto, caíram no vazio. Por que palavras
análogas a essas ou pelo menos inspiradas por um análogo
sentimento causaram, na boca de Jesus, uma revolução no
mundo? Por que o humilde e ignorado Mestre da Palestina
levantou a humanidade e o poderoso imperador pregou no
deserto? Não havia outra razão senão esta: para mudar a
orientação do espírito humano, para fazer da piedade um
dever e para dar à fragilidade, ao menos por um instante, a
vitória sobre a força era necessária a aparição de um deus,
e de um deus que, com seu exemplo e sua pessoa,
ilustrasse seus ensinamentos. O erro de Juliano foi não ver
que lhe faltava a força necessária para realizar a renovação
moral que seus ideais pediam. Para ter sucesso, era preciso
um deus. Mas os deuses do paganismo estavam
completamente esgotados e esvaziados de qualquer
realidade. Era necessário um deus novo. É verdade que a
aceitação desse deus traria consigo a ruína do tesouro
precioso que era o helenismo, mas era um sacrifício
inevitável. Renovar o helenismo significava tirar a sua
razão de ser.
Juliano apresenta outro argumento para fundamentar sua
propaganda da caridade. Trata-se da unidade da espécie
humana, segundo a qual os homens são todos irmãos. Em
seguida, recomenda a veneração e o culto das imagens
divinas, justificando sua recomendação com a necessidade
que os homens, criaturas corpóreas, têm de representar até
mesmo os seres espirituais sob forma material.43 Aqui, ele
entra num longo e sutil raciocínio, voltado sobretudo para a
divergência com os profetas judeus, que pretendiam
demonstrar a irracionalidade do culto aos ídolos por meio
da destrutibilidade dos próprios ídolos. Mas então, exclama
Juliano com sagacidade, o que dirão os judeus sobre seu
próprio templo, três vezes destruído e até hoje não
reerguido? Juliano que, na guerra contra os cristãos, já
muitos e poderosos, apoiava os judeus, então poucos e
inócuos, porque via neles aliados naturais, observa que não
menciona o fato acima com intenção de ofender os judeus.
Ao contrário, tanto que estava pensando em reconstruir o
templo de Jerusalém em honra ao deus que ali se adorava.
Este exemplo serve apenas para demonstrar aos judeus que
tudo o que é criado pelos homens deve perecer e que,
portanto, é vã a objeção de seus profetas. O erro deles,
digno de uma velhota caduca, acrescenta Juliano, sempre
com intenção de acarinhar os judeus, nada tira da grandeza
de seu deus, pois um grande deus pode ter intérpretes
inábeis. E foi o que ocorreu com os profetas e sacerdotes
dos judeus, que não souberam purificar a alma com as
doutrinas que estavam ao alcance deles, nem abrir os olhos
obnubilados, nem dissipar a névoa que os cercava, em meio
à qual a luz pura da verdade aparecia para eles como uma
coisa indistinta e assustadora. Oh, quão inferiores aos
nossos poetas, exclama Juliano, são estes mestres da
ciência de Deus!44
Só que não basta honrar os templos e as imagens dos
deuses, prossegue Juliano. Também é preciso cuidar da
dignidade e do bem-estar dos sacerdotes, que, orando e
realizando sacrifícios para nós, são nossos intérpretes junto
aos deuses. Mas se a condição sacerdotal basta, por si só,
para criar nos homens o dever de respeitá-la, ela também
impõe deveres especiais para quem a assume. Que deveres
são esses? O sacerdote deve conduzir uma vida exemplar,
que sirva, em tudo, de modelo para os outros homens. Deve
honrar e servir os deuses como se eles estivessem
presentes e o vissem, ou melhor, prolongassem seu olhar,
mais potente que qualquer raio, até seus pensamentos mais
íntimos. O sacerdote não deve dizer nem ouvir nada que
seja torpe; não basta que se abstenha de ações ímpias, mas
também das palavras e da audição de discursos desse teor.
Não deve ler autores licenciosos; deve fugir sobretudo dos
cômicos antigos. Deve limitar-se apenas aos filósofos,
escolhendo os que foram educados no respeito aos deuses,
Pitágoras, Platão, Aristóteles, Crisipo e Zenon.45 Deve
tomar destes apenas os ensinamentos referentes à
verdadeira natureza dos deuses, deixando de lado todas as
fábulas inventadas pelos poetas, nas quais os deuses
parecem se odiar e lutar uns contra os outros, fábulas estas
que tanto mal fizeram aos próprios poetas e que foram
habilmente usadas primeiro pelos judeus e depois pelos
miseráveis galileus. Juliano insiste na conveniência de
escolher bem as leituras do sacerdote: “As almas assumem,
de acordo com o que se lê, uma certa inclinação. Desta,
pouco a pouco, nascem os desejos. Deles, de repente, surge
uma grande chama, contra a qual é preciso estar preparado
com antecedência.”
Entre as leituras perigosas e desaconselhadas, Juliano
inclui Epicuro e Pirro de Élis e agradece aos deuses que
deixaram que uma parte de seus livros fosse destruída.
Nada é mais sintomático que o decreto de Juliano que põe
Epicuro no Índex. Na verdade, o princípio que guiava
Juliano, o ódio pelo racionalismo aplicado ao conhecimento
e à interpretação do Universo, é o mesmo que até hoje é lei
na Congregação do Índex, com sede no Vaticano. Isso
significa, como veremos melhor no final deste estudo, que a
revolução proposta por Juliano era de fato superficial, pois
ele participava da orientação intelectual de seu tempo e
contestava a concepção científica tanto quanto os
metafísicos neoplatônicos e os teólogos cristãos.
Continua o pio e rigoroso imperador: o sacerdote que
leva a sério o seu ofício de sumo pontífice não deve se
abster somente dos discursos e dos livros inconvenientes,
mas também, e mais ainda, dos pensamentos tentadores,
pois é o pensamento que arrasta a língua. Deve conhecer
todos os hinos em honra aos deuses e fazer suas preces,
pública e privadamente, três vezes ao dia ou pelo menos no
alvorecer e no crepúsculo. Durante o período de seu
serviço no templo, que, em Roma, é de trinta dias, deve
permanecer no templo; purificar-se com os ritos prescritos;
não ir à sua casa particular nem à praça; ver os
magistrados apenas no templo; viver filosofando e servindo
aos deuses. Depois de cumprido o tempo de serviço,
retornando à vida normal, poderá visitar algum amigo ou
participar de algum simpósio, escolhendo, porém, as casas
dos cidadãos mais estimados. Também poderá ir algumas
vezes à praça, conferenciar com os magistrados e cuidar de
obras de beneficência. Quando realiza o serviço divino, o
sacerdote deve vestir-se esplendidamente; mas fora do
templo deve vestir-se de maneira adequada e sem
ostentação, pois seria absurdo que usasse para satisfazer
vaidades tolas aquilo que recebe para honrar os deuses.
Usar as vestes sacras em meio às pessoas é ofender os
deuses, sem falar que, no contato com os impuros, os
objetos sacros ficam contaminados.46
O sacerdote não pode assistir jamais a um espetáculo
teatral. Se fosse possível reconduzir o teatro ao culto puro
de Baco, Juliano teria tentado. Mas como isso não era mais
possível, é preciso abster-se completamente de frequentar
o teatro. O sacerdote não deve ficar longe apenas do teatro;
não deve fazer amizade ou deixar chegar à sua porta
nenhum ator ou dançarino. Ele poderá entrar nos
espetáculos sacros, mas só naqueles em que as mulheres
são proibidas não só de participar, mas também de
assistir.47
Na escolha dos sacerdotes, não se devem olhar a posição
e a riqueza dos candidatos, mas somente duas coisas: que o
futuro sacerdote seja amante de Deus e amante do
próximo. Será indício de seu amor a Deus o fato de induzir
todas as pessoas de sua casa ao culto dos deuses; será
indício de amor ao próximo o fato de socorrer os pobres
com boa vontade, mesmo que disponha de pouco. E aqui
Juliano sai com essas curiosas e sintomáticas palavras:
Devemos dar muita atenção a esse exercício de
filantropia, porque talvez aí esteja o remédio contra os
nossos males. Depois que perceberam que os pobres
eram negligenciados pelos sacerdotes desdenhosos, os
ímpios galileus dedicaram-se, espertamente, a esta
filantropia, dando força à pior das ações sob a aparência
de cuidados benévolos. Do mesmo modo como os que
armam ciladas para as crianças costumam oferecer doces
duas ou três vezes e depois, afastando-as de casa, tratam
de jogá-las num barco e raptá-las e, por um pedacinho de
doce no presente, elas tornam amarga toda a sua vida
futura. Assim também, começando com aquilo que
chamam de amoroso serviço das refeições comunitárias,
eles arrastam muitos à impiedade...48
Aqui se interrompe a carta de Juliano, tal como chegou
até nós. Provavelmente, os copistas não quiseram
reproduzir as frases injuriosas que o imperador lançava
contra os cristãos.
Como dissemos, a este fragmento talvez possamos juntar
um outro que constitui a 63ª carta do epistolário de Juliano.
Nela, depois de declarar sua amizade a um certo Teodoro e
comentar a circunstância de terem tido o mesmo mestre,
provavelmente Máximo, o imperador diz que pretende
entregar-lhe uma missão de grande importância, na qual
sua ação poderá ser de muita ajuda, além de dar-lhe
satisfações no presente e esperanças ainda maiores no
futuro. Por futuro, Juliano entende o além-túmulo. A esse
respeito, ele diz que não é um daqueles que pensam que as
almas se perdem junto com os corpos, embora não seja
possível ter nenhuma certeza sobre isso, pois devemos
deixar o cuidado e o conhecimento de tais assuntos para os
deuses. E prossegue:
Mas qual é essa missão que pretendo confiar-te? A missão
de chefiar todos os serviços sagrados da Ásia,
supervisionar os sacerdotes de cada cidade e distribuir a
cada um o que lhe cabe. O superior deve, antes de tudo,
usar de bons modos e acrescentar também, para aqueles
que merecem, cortesia e amabilidade. Quem ofende os
homens, não respeita os deuses e é prepotente deve ser
corrigido com franqueza ou punido com severidade.
Sobre o que é conveniente fazer para o culto em geral,
em breve receberás instruções junto com os outros. Mas
desde já quero dizer-te uma coisa, e farás muito bem em
obedecer-me. Não falo dessas coisas temerariamente,
como os deuses sabem. Sou, na medida do possível,
prudente e fujo das novidades em quase todos os
assuntos, mas especialmente nas coisas divinas, certo de
que convém conservar-se fiel às antigas leis que, como é
manifesto, nos foram dadas pelos deuses. De fato, se
viessem dos homens não seriam tão sábias. Ora, como
foram negligenciadas e corrompidas pela prevalência da
avareza e do vício, é preciso refazê-las desde o início e
recolocá-las em vigor. Quando, portanto, apontei nossas
muitas negligências em relação aos deuses e pude ver
banido, em virtude de costumes impuros e viciosos, o
respeito a eles devido, sofri comigo mesmo, mais ainda ao
constatar que aqueles que seguem o preceito da piedade
(judaica) eram tão ardentes em seu zelo, que por ela
eram capazes de enfrentar a morte ou sofrer qualquer
privação e até a fome, antes de comer carne de porco ou
de animais sufocados. E nós, ao contrário, somos tão
negligentes em tudo o que se refere aos deuses que
esquecemos os costumes pátrios, ou melhor, ignoramos
que um dia existiram. Considero que os judeus, que até
certo grau podem ser considerados devotos de Deus, pois
adoram um deus realmente poderosíssimo e benévolo,
que governa o mundo e que nós também veneramos, mas
com outros nomes, estão certos em não transgredir suas
próprias leis. Eles só pecam quando não reconhecem os
outros deuses, para venerar apenas um, e acreditam que
foram escolhidos entre todas as nações, sendo levados a
tamanha tolice por sua vaidade bárbara. Mas aqueles que
professam a impiedade galileia, contaminados por uma
doença...
Aqui se interrompe o fragmento, mas é razoável supor
que alguma frase, hoje perdida, o ligasse ao texto que
analisamos anteriormente. Retornaremos a este fragmento
quando tivermos visto o terceiro documento relativo à
organização da Igreja politeísta, mas já podemos observar
que temos aqui, com toda força, a expressão da simpatia
que Juliano nutria pelos judeus. Vimos acima, no tratado
contra os cristãos, quais razões teóricas fundamentavam
este sentimento, mas encontramos aqui uma nova razão,
que é a tendência profundamente conservadora e
tradicional dos judeus, sobretudo de sua religião. Ora,
Juliano – que, na essência de sua ação, era um reformador,
pois seu politeísmo, como vimos, é totalmente diferente do
politeísmo naturalista dos primeiros tempos e do politeísmo
nacional de Atenas e de Roma – era, na forma, um rígido
conservador. Pretendia conservar intacta toda a
composição externa da civilização helênica, e nada lhe era
mais odioso no cristianismo que a pretensão de
revolucionar tudo e renovar o espírito humano. A proteção
e a simpatia pelos judeus constituíam uma carta importante
no jogo de Juliano contra os cristãos, que ele usava com
rara habilidade. Na verdade, se havia um povo que
abominava o politeísmo, este era o povo judaico. Só que os
judeus abominavam ainda mais os cristãos, sendo,
portanto, aliados preciosos para Juliano. A restauração do
culto de Yahweh em Jerusalém não causaria dano algum à
sua propaganda, mas seria um rude golpe contra o
cristianismo, que pretendia ser uma espécie de herdeiro do
judaísmo. Além disso, Yahweh era um deus localizado. Por
mais que os judeus da época helênica e romana
pretendessem estender seu domínio e adoração ao mundo
inteiro, era um deus cujo santuário ficava em Jerusalém e
continuava a ser o que sempre foi: o deus de determinado
povo. Ora, um deus localizado não assustava Juliano, pois
nesta localização estava implícita a possibilidade de outros
deuses, junto a outros povos e em outros santuários.
O documento mais singular da política de Juliano para os
judeus é o manifesto dirigido a este povo na época em que
o imperador estava de partida para a expedição na Pérsia.
Reproduzimos o texto na íntegra, pois é um dos mais
representativos da fina habilidade desse místico fervoroso,
desse heroico aventureiro:
Juliano ao povo dos judeus.
Ainda mais pesado que o jugo de vossa antiga
escravidão é ter de obedecer a decretos não publicados e
versar uma quantidade indizível de ouro em proveito do
erário. Eu mesmo constatei isso com meus próprios olhos,
mas os registros tributários que conservamos
demonstram-no ainda melhor. Por isso, freei qualquer
tentativa de novos impostos para vosso povo, estabeleci
firmemente a inconveniência de tal abuso e lancei ao fogo
os registros que vos concerniam, conservados em nosso
Tesouro, de modo que doravante será impossível
ameaçar-vos com semelhante iniquidade. Meu primo
Constâncio não foi tão culpado por tudo isso quanto
aqueles bárbaros na intenção e ímpios na alma que se
sentavam à sua mesa e que eu aniquilei, quando os tive
em minhas mãos, arremessando-os no báratro, de modo
que já não exista, junto de mim, sequer a memória de sua
delinquência. Quero, ademais, pedir a vosso irmão Júlio, o
venerando patriarca, e exortá-lo a extinguir o imposto
que entre vós é chamado de “apostólico” e a não permitir
que se atormente o povo com a exação de semelhante
tributo. Assim, meu reino será, para vós, inteiramente
livre de preocupações e, gozando de paz, serão ainda
mais vivas as vossas preces em favor do meu reino a
Deus, ótimo e criador, que se dignou a coroar-me com sua
imaculada mão direita. Pode ocorrer que aqueles que
estão mergulhados em alguma preocupação tenham a
mente distraída e não lembrem de erguer aos céus as
mãos suplicantes; mas aqueles, ao contrário, que estão
livres de preocupações animam-se a elevar, com toda a
alma, preces e súplicas pelo bem do Império a Deus
grande e potente, de modo que encaminhe nosso reino
para a via do ótimo, como é nosso desejo. É o que deveis
fazer para que, levada a bom termo a guerra contra os
persas, eu possa reconstruir, com meu trabalho, a santa
cidade de Jerusalém, fundada por vós, que há tantos anos
desejo conhecer, para nela, junto convosco, homenagear
o Todo-Poderoso.49
Retornemos às pastorais de Juliano.
De importância excepcional para o conhecimento das
intenções de Juliano é a carta enviada a Arsácio, grande
sacerdote da Galácia. Ei-la:
O helenismo não opera da forma que queremos por culpa
de seus próprios membros. No entanto, a situação é
esplêndida e grande para os deuses, melhor do que se
poderia esperar, pois quem ousaria esperar tamanha
conversão em tão pouco tempo? Mas não podemos pensar
que isso é suficiente e fechar os olhos para o fato de que
a amabilidade com os hóspedes, o cuidado dos sepulcros
e a ostentada santidade da vida contribuíram
grandemente para o progresso da impiedade. Pois bem, é
necessário que nós também nos dediquemos a tudo isso.
E não basta que tu o faças. É preciso que todos os
sacerdotes da Galácia participem. Deves admoestá-los ou
persuadi-los a serem zelosos ou destituí-los do serviço
divino, caso não conduzam aos deuses as esposas, os
filhos, os servos ou tolerem que servos, filhos e esposas
deixem de venerar os deuses, preferindo o ateísmo à
piedade. Deves também exortar os sacerdotes a não
frequentar teatros, a não beber nas tavernas, a não
exercer nenhuma arte ou ocupação reprovável ou torpe.
Deves honrar os obedientes e expulsar os rebeldes. E, em
cada cidade, instituir numerosas hospedarias, onde os
viajantes possam desfrutar de nossa filantropia, não
apenas os nossos, mas quem quer que precise de ajuda.
Como farás para providenciar tudo isso será problema
meu. Determinei que sejam dados à Galácia, todos os
anos, 30 mil módios de trigo e 60 mil sextários de vinho.
Convém que 1/5 de tudo isso seja dado aos pobres que
prestam serviço nos templos e o resto aos hóspedes e
àqueles que nos pedem ajuda para o sustento. Pois é
vergonhoso que aos judeus ninguém peça ajuda e que os
ímpios galileus alimentem, junto com os seus pobres,
também os nossos, que assim parecem desprovidos de
qualquer ajuda nossa. Deves, portanto, exortar os
helenistas a contribuir para este serviço e as aldeias
gregas a reservar para os deuses a primazia dos frutos.
Deves tentar habituar os helenistas a tais beneficências,
ensinando-lhes que assim que se fazia antigamente. De
fato, Homero faz Eumenes dizer: “É de Júpiter que nos
vêm os hóspedes e os pobres.” Portanto, não vamos
permitir que os outros nos vençam nas virtudes que são
nossas. Devemos nos envergonhar de nossa inércia e
proceder na piedade cada vez mais para perto dos
deuses. Se ouvir que estás fazendo isso, ficarei
contentíssimo.
Podes, de vez em quando, visitar os magistrados em
suas casas, mas em geral, comunica-te com eles por
carta. Quando eles entram na cidade, nenhum dos
sacerdortes deve ir ao encontro deles e caso se
apresentem nos templos, que o encontro tenha lugar no
átrio. Não devem ser precedidos no templo por nenhum
soldado. Devem ser seguidos por quem quiser, pois no
momento em que um magistrado pisa a soleira do templo,
transforma-se num indivíduo qualquer. Ninguém além de
ti, como bem sabes, comanda dentro do templo; é o que
determina a lei divina.50
Nesta carta, fica evidente um curioso fenômeno: um
homem odeia ferozmente certos adversários, com os quais
deveria, ao contrário, concordar, posto que compartilham o
pensamento e a moral: tanto que, mesmo não podendo
negar que eles seguem uma orientação mais próxima da
sua que a de seus amigos e partidários, não hesita em
declará-los impostores e alimenta a ilusão de cobrir a
verdade com esta acusação. Mas, por que esse ódio visceral
contra pessoas com as quais deveria concordar e que,
apesar da ferocidade dos discursos, tenta imitar? Aqui não
podemos senão repetir a consideração resultante do estudo
que estamos realizando. Juliano pressentia que o Deus
vindo da Palestina, ou da Galileia, como ele dizia, ao
expulsar em nome de novos ideais os deuses saídos do solo
sagrado da Hélade, arruinaria radicalmente o helenismo. E
o helenismo, com todo o seu complexo de tradições e
cultura, era importante demais para Juliano para que ele
pudesse renunciar a eles, para que não considerasse como
inimigos aqueles que abalavam suas bases. Portanto, para
fazer oposição ao avanço do Deus galileu, embora sentisse
que ele respondia melhor às necessidades da humanidade e
fosse bem mais vivo que todo o antigo Olimpo, Juliano
tentou cristianizar os deuses da Grécia e trazer para o
politeísmo os hábitos e a orientação moral, dos quais o
cristianismo era, ou deveria ter sido, o propagador. Nesta
empresa, de sucesso impossível, o jovem entusiasta mostra
uma singular intensidade de convicção e vontade,
certamente dignas de respeito, mas que não nos impedem
de sorrir quando podemos vê-lo, como nessa carta tão
curiosa, falando com os sacerdotes sobre Baco e Afrodite
num tom e com exortações que não estariam mal nos lábios
de um Ambrósio ou de um Agostinho, quando pregavam
para o clero ou para os fiéis de suas cidades.
Juliano queria, portanto, instituir uma Igreja pagã
moldada nos exemplos ou, mais ainda, nos preceitos da
Igreja cristã. Mas ele queria também que ela fosse
independente, ou melhor, que estivesse acima do poder do
Estado, exatamente como queria ser a Igreja cristã, pelo
menos nas manifestações da ortodoxia atanasiana. Este era
um conceito totalmente novo para o helenismo. No mundo
greco-romano, o templo e o sacerdote estavam a serviço do
poder político. E era natural que assim fosse, dado que a
religião era uma instituição nacional, política por
excelência. Roma queria o culto dos deuses, não por
qualquer razão metafísica ou sentimental, mas só porque
via no culto das divindades nacionais uma afirmação da
potência dominadora do Estado romano. Já o cristianismo
genuíno separava a religião e o Estado, fazendo dela uma
instituição superior e independente deste. Ora,
constatamos na carta a Arsácio que Juliano tencionava
colocar o politeísmo reformado nessa mesma posição e
considerava a religião como um poder diante do qual a
autoridade do Estado deveria inclinar-se. O que também
era consequência da transformação metafísica que os
deuses dos antigos sofreram na elaboração do misticismo
neoplatônico. Podemos concluir que, se Juliano tivesse
reinado vinte ou trinta anos, em vez de dois, e se, numa
hipótese impossível, sua tentativa de restauração pagã
fosse bem-sucedida, o mundo não teria ganho nada. A
doutrina e a religião de Juliano, também baseadas no
sobrenatural, teriam conduzido inevitavelmente a uma
teocracia. Só que, em vez de teocracia católica, teríamos
um teocracia mitraísta.
Nesta carta, aliás, é possível sentir o desânimo do
reformador incompreendido, que tem menos confiança no
sucesso de sua empresa do que deixa transparecer. A
tentativa de Juliano cairia em seus primeiros passos, pois
era essencialmente ilógica e tinha em si uma contradição
insanável. Se o politeísmo tivesse tido a possibilidade de
cristianizar-se, o cristianismo não teria surgido. A
inspiração fundamental do politeísmo era radicalmente
oposta à do cristianismo. O politeísmo queria a glorificação
do mundo e da vida terrena; o cristianismo queria a
abominação de ambos. O politeísmo olhava apenas para a
Terra, o cristianismo olhava apenas para o Céu. O
politeísmo era a religião da força e da fruição, o
cristianismo, a religião da fraqueza e da desventura. De um
e de outro ponto de partida, derivavam normas de conduta,
hábitos, tendências, ensinamentos completamente diversos.
Era possível, ou melhor, inevitável que o cristianismo, em
contato com a sociedade de seu tempo, se corrompesse, de
modo que as virtudes que deveriam emanar dele foram
obrigadas a buscar refúgio no ascetismo monacal. Mas era
absolutamente impossível que o politeísmo abandonasse
aquilo que constituía sua essência íntima para assumir
formas e tendências que lhe eram fundamentalmente
repulsivas. O politeísmo cristianizado não podia ser outra
coisa senão o cristianismo. É por isso que a restauração
politeísta iniciada por Juliano, contra a qual Gregório de
Nazianzo e Cirilo de Alexandria manifestaram tanto inútil
desprezo, não passou de um cometa passageiro, que se
apagou sem deixar atrás de si nem a mais diáfana poeira.

NOTAS
1. Iulian., 201, 1 sg.
2. Idem, 168-69.
3. Idem, 172, 19 sg.
4. Idem, 173, 1.
5. S. João, 1, 4-9.
6. Iulian., 188, 5 sg.
7. Idem, 203, 4 sg; 205, 5 sg.
8. Idem, 207, 5 sg.
9. Idem, 212, 19 sg.
10. Idem, 215, 5 sg.
11. Idem, 217, 8 sg.
12. Idem, 219, 13 sg.
13. Idem, 220, 8 sg.
14. Idem, 232, 13 sg.
15. Idem, 564.
16. Idem, 290, 7 sg.
17. Idem, 280, 1sg.
18. Idem, 280, 15 sg.
19. Idem, 303, 3 sg.
20. Idem, 296, 2 sg.
21. Tertull., De Carne Chr., 5, 898.
22. Liban., I, 581, 17 sg.
23. Neumann. – Iulian, Libr. contra Christ. quae supersunt, 163.
24. Idem, 177, 7 sg.
25. Idem, 179.
26. Idem, 199.
27. Idem, 208.
28. Idem, 213.
29. Idem, 216 sg.
30. Idem, 221 sg.
31. Idem, 225.
32. Idem, 228 sg.
33. Idem, 232.
34. T. Keim, Celsus wahres wort – 1893.
35. Keim, 63.
36. Idem, 39.
37. Iulian., 371-392.
38. Idem, 552-555.
39. Idem, 585-588.
40. Idem.
41. Neumann, 191.
42. Iulian., 277.
43. Idem, 377.
44. Idem., 359 sg.
45. Idem, 385 sg.
46. Idem, 388 sg.
47. Idem, 390.
48. Idem, 391.
49. Idem, 512
50. Idem, 552 sg.

*1 Refere-se ao deus morto e sepultado. [N.A.]


*2 Um pequeno trecho do tratado de Juliano, não incluído entre os contestados
por Cirillo, foi publicado recentemente por dois eruditos belgas, os professores
Bidez e Cumont, num ensaio – Sur la Tradition manuscrite des lettres de Julien
–, que deveria ser a introdução de uma ambicionada edição realmente crítica
das cartas do imperador. Este trecho encontra-se num fragmento de uma
refutação do tratado de Juliano que Aretas, bispo de Cesareia, teria escrito no
século X e que foi descoberto numa biblioteca de Moscou. Com este texto,
Neumann (Theol. Liter. Zeitung, 1899) conseguiu recompor o trecho genuíno
de Juliano, pertencente provavelmente ao segundo livro de seu tratado. A breve
passagem é interessante como prova da sutileza do polemista que, recordando
a afirmação do Evangelho de João, de que o Logos veio para tirar o pecado do
mundo, e comparando-a com a desordem e as discórdias causadas pela
introdução do cristianismo, desordem e discórdias já previstas nos Evangelhos
sinóticos, tende a ferir a doutrina da divindade do Logos e a apontar a
contradição entre o Quarto Evangelho e os três primeiros. [N.A.]
Capítulo V. A ação de Juliano
contra o cristianismo

E nquanto viveu ameaçado por Constâncio ou, mais tarde,


como seu representante no governo da Gália, Juliano
ocultou suas ideias, sua fé e seus eventuais propósitos,
para revelá-los caso um dia tivesse o controle da situação.
Durante todos esses anos de fingimento, o ardoroso jovem
que, em meio aos encargos da guerra e do governo, não
esquecia os estudos e a meditação, sentia crescer seu amor
pelo helenismo e o desejo de salvá-lo das ameaças do
cristianismo florescente. Eu diria que tal fervor íntimo
tornava-se ainda mais intenso diante da impossibilidade de
expandir-se abertamente. Contudo, ele jamais se
comprometeu com ações que pudessem criar dificuldades
insuperáveis, tendo em vista a perigosa posição que
ocupava diante de Constâncio. Vimos, ao contrário, que já
aclamado imperador por seus soldados, mas ainda não
decidido a partir para a guerra civil e à espera de um
acordo com Constâncio, ele participou da solene
celebração da Epifania, levado por uma prudência tão
grande que poderia ser chamada de simulação.
Perdida qualquer ilusão de acordo, Juliano lançou-se na
aventura, que devia parecer desesperada, de marchar
contra Constâncio. Resolvido a apostar todas as suas fichas,
tirou a máscara e assumiu o papel de restaurador da
religião antiga. Não fica claro se ele havia feito ato público
de fé politeísta antes de deixar a Gália. Porém, durante a
viagem para Sírmio, deu à sua expedição, abertamente e de
maneira até ostensiva, o caráter de empresa realizada sob
o patrocínio dos deuses. O próprio Juliano diz isso numa
carta enviada ao filósofo Máximo, seu venerado mestre,
escrita justamente quando estava a caminho dos Bálcãs.
Em meio às providências urgentes que precisava tomar,
Juliano mostra-se grato aos deuses por permitirem que
escreva a Máximo, esperando que também lhe permitam
revê-lo, e confirma, convocando os deuses como
testemunhas, que se tornou imperador contra a vontade.
Em seguida, com aquela facilidade e graça na descrição
que lhe era natural, narrou seu encontro com um enviado
do próprio Máximo, a quem expressa toda a sua angústia
ao pensar nos perigos que o mestre e amigo do César
rebelde podia estar correndo. Por fim, encerra a carta
falando da benevolência com que os deuses acompanham
sua expedição, que se realiza sem violência e com grande
facilidade, e termina assim:
Adoramos os deuses abertamente e a maior parte do
exército que me acompanha é devoto deles. Sacrificamos
diante de todos e oferecemos aos deuses o dom de muitas
hecatombes. Os deuses ordenam que eu santifique todas
as minhas ações e, como obedeço com toda a alma, eles
garantem grandes frutos para minha empresa, desde que
eu persista.1

Podemos sentir aqui a confiança e o entusiasmo do


reformador em seus primeiros passos, a quem tudo parece
fácil e cheio de esperança. Bastarão uns poucos meses para
que ele perca as ilusões.
Morto Constâncio, Juliano foi proclamado imperador com
o consenso de todos e, depois do solene ingresso em
Constantinopla, deu à sua vontade a sanção da lei. Amiano
Marcelino escreveu:
Desaparecido todo o perigo e adquirido o direito de fazer
o que quisesse, Juliano abriu os segredos de seu coração
e estabeleceu, com claros e precisos decretos, que fossem
escancarados os templos, apresentadas as vítimas nos
altares e restabelecido o culto dos deuses.2
Fazia parte da ordem natural das coisas que Juliano
tomasse tais decisões assim que adquirisse plena liberdade
de ação. Mas qual foi o seu comportamento em relação ao
cristianismo, no qual via um inimigo odiado e com o qual
iniciava um duelo mortal? Este é ponto mais interessante
do estudo que estamos fazendo sobre sua pessoa e suas
ações. Seu primeiro movimento indicou claramente a
orientação que pretendia seguir. Enquanto providenciava a
reabertura dos templos e a restauração do culto pagão,
convocou ao palácio os chefes da Igreja cristã, dividida,
como sabemos, em dois partidos que se detestavam
mutuamente. Na presença da plebe cristã, também
convocada pelo imperador, avisou-os cordialmente de que,
superadas as discórdias, cada um podia seguir sua própria
religião, sem medo de nenhuma proibição: “ut, discordiis
consopitis, quisque, nullo vetante, religioni suoe serviret
intrepidus”.3
Com esse discurso aos cristãos de Constantinopla, Juliano
retomava o princípio da tolerância religiosa, que,
inaugurado por Constantino com o decreto de Milão, mas
logo esquecido por ele, desapareceria junto com Juliano
para só ressurgir depois de quinze séculos de completo
ostracismo. Juliano permaneceu fiel a este princípio em
toda a sua breve carreira. Gregório de Nazianzo, Sócrates
Escolástico, Sozomeno e Rufino, polemistas e historiadores
cristãos, esforçaram-se para colocar as ações do imperador
sob uma luz negativa, mas não conseguiram, de modo
algum, transformá-lo num perseguidor. É verdade que
ocorreram alguns atos de violência durante o seu reinado,
mas eram uma consequência inevitável das paixões
partidárias e dos hábitos da época. O ferino Gregório
insinua que Juliano tinha interesse em dar liberdade ao
povo, reservando para si o nobre papel daquele que quer
converter pela persuasão, e afirma que sua intenção era
usar de violência contra os cristãos, mas sem lhes dar a
oportunidade de assumir o papel de mártires.4
Isso equivale, na verdade, ao reconhecimento por parte
do polemista de que não era possível constatar nenhuma
violência ordenada pelo imperador. Rufino é obrigado a
reconhecer que Juliano, mais astuto que seus antecessores,
em vez de inúteis crueldades, usava a lisonja, os prêmios,
as exortações. E Sócrates Escolástico, que usa a palavra
perseguição, declara que inclui sob este nome qualquer ato
que possa perturbar pessoas tranquilas, por mais
insignificante que seja.5
Também é verdade que os historiadores eclesiásticos
relatam alguns episódios que justificariam a pecha de
perseguidor imputada a Juliano. Mas não podemos
esquecer que estes historiadores escreveram um século
depois da morte de Juliano, quando a lenda já estava
estabelecida. Totalmente desprovidos de senso crítico,
quanto mais inverossímil era uma informação, mais eles a
apreciavam. O caráter lendário de algumas destas histórias
é evidente demais para que se possa levá-las a sério.
Algumas outras, que talvez contenham algum elemento de
verdade, não podem ser atribuídas ao imperador. Tendo o
poder nas mãos, Juliano tendia a usá-lo a favor da causa
que defendia. Portanto, seus julgamentos não usavam uma
balança absolutamente igual para os dois partidos, pois sua
preferência pelos pagãos se revelava de maneira evidente.
Isso pode ser facilmente reconhecido, mas também
desculpado. Afinal, Juliano era um homem que visava a um
determinado objetivo, sendo inevitável que se deixasse
levar um pouco além daquilo que uma rigorosa
imparcialidade exigiria. Mas isto não pode ser chamado de
perseguição. A perseguição consiste em buscar e punir os
adversários só porque são adversários, em tomar a
iniciativa de atos voltados para destruí-los, em usar a
violência como arma regular e legítima. Ora, não há
nenhum traço disso na conduta de Juliano. Durante o seu
breve reinado, foram tomadas algumas medidas rigorosas,
mas isso foi quase sempre obra de magistrados que
interpretavam a seu modo a intenção do imperador e, o que
é mais importante, foi consequência de tumultos e
desordens, cuja responsabilidade era principalmente dos
cristãos. Portanto, ainda que fosse exata a informação de
Sócrates Escolástico sobre o martírio de Teódulo e Taciano
por ordem do governador da província da Frígia, em parte
evidentemente fictícia, é importante notar que, cheios de
zelo, os dois estavam chefiando uma revolta de cristãos
que, além de invadir um templo recém-aberto na cidade de
Mero, haviam destruído todas as estátuas dos deuses.6
Pretender que o governo de Juliano assistisse impassível a
ações como esta e chamá-lo de perseguidor porque um de
seus magistrados puniu os autores é coisa de polemista,
não de historiador.
Como todos os reformadores, Juliano deve ter alimentado
a ilusão de que o mundo cairia a seus pés no dia em que
pudesse manifestar suas ideias e inaugurar uma nova era.
Mas, ao contrário, quando chegou ao poder, encontrou uma
resistência inesperada e percebeu que sua missão seria
bem mais árdua do que havia imaginado. Isso abalou seu
discernimento e produziu um sentimento de irritação que
deu certa aspereza à sua ação no último período do
reinado. Mas não se pode dizer que renegasse os princípios
racionais que sempre lhe serviram de inspiração e
partilhasse do preconceito cego que norteou a impiedosa e
tola perseguição dos imperadores precedentes. A
moderação de Juliano é reconhecida explicitamente, como
observamos, pelo próprio Sócrates Escolástico, quando diz
que, ao constatar que as recentes vítimas da perseguição
de Diocleciano eram veneradas pelos cristãos e que seu
exemplo servia de estímulo para que enfrentassem o
martírio, Juliano escolheu um caminho diverso,
abandonando a crueldade de Diocleciano. Mas isso não
significa que deixou de perseguir, acrescenta Sócrates, pois
“chamo de perseguição qualquer ato que possa perturbar
pessoas tranquilas”.
Ora, as formas usadas por Juliano para perturbar pessoas
tranquilas e exercer perseguição seriam, segundo Sócrates
Escolástico, a famosa proibição aos cristãos de ensinarem
letras gregas, do que falaremos adiante; não desejar a
presença de soldados cristãos no palácio, junto dele; não
entregar a administração das províncias a cristãos; tentar
convencer os cristãos hesitantes a retornar ao culto dos
deuses, por meio de lisonjas e doações; finalmente, usar as
multas aplicadas aos cristãos que teimavam em não se
converter para criar um tesouro de guerra, tendo em vista
a campanha da Pérsia. Somente a última destas formas de
perseguição poderia ser considerada propriamente
reprovável, embora ainda distante da habitual atrocidade
dos imperadores que realmente perseguiram. Porém, não
existe nenhuma prova contemporânea desta medida
tirânica, nenhuma menção em Libânio, em Amiano ou no
próprio Juliano. É provável que tenham ocorrido alguns
atos de prevaricação, mas uma lei propriamente dita para
colocar os cristãos numa situação financeira difícil só
existiu na fantasia de historiadores posteriores.
Sozomeno limitou-se, como sempre, a expor o texto de
Sócrates Escolástico, ampliando-o e intensificando seu
colorido lendário. Narra cenas de martírio que, mesmo que
fossem verdadeiras, não poderiam ser atribuídas ao
imperador sem colocar Sócrates e Gregório em contradição
com eles mesmos, pois ambos reconheciam a tolerância de
Juliano, a quem atribuíam, contudo, um calculismo pérfido.
Uma notícia interessante que encontramos em Sozomeno é
a abolição dos privilégios desfrutados pelo clero cristão, o
que, certamente, foi visto como uma terrível perseguição.
Juliano aboliu a isenção do pagamento de impostos para a
Igreja e as prebendas concedidas por Constantino e
Constâncio, além de obrigar seus membros a participar dos
conselhos comunais, se fossem convocados, o que era
quase sempre um ônus pesado por causa da
responsabilidade da cada conselheiro no pagamento das
taxas e despesas municipais, um ônus do qual os cidadãos
tentavam escapar. Sozomeno considera esta perseguição
administrativa apenas um pouco menos danosa que a
crueldade dos antigos imperadores. Mas uma história
imparcial deve reconhecer que o mínimo que Juliano tinha
que fazer, dado que pretendia restaurar o paganismo, era
abolir os privilégios dos cristãos, colocando todos os
cidadãos em pé de igualdade.7
A tolerância de Juliano é demonstrada e comentada por
Libânio no discurso necrológico, de um modo que não deixa
dúvidas de que, para o imperador, trata-se de um princípio
de conduta. Depois de relatar que Juliano rendeu as
devidas honras ao despojos de Constâncio, seu inimigo,
Libânio conta que ele inaugurou o culto dos deuses
“alegrando-se com aqueles que o seguiam, zombando dos
opositores, tentando persuadi-los, sem se deixar jamais
induzir à violência”.8 No entanto, continua Libânio, não lhe
faltavam apelos para que renovasse as perseguições de
outrora. Mas Juliano manteve-se firme:
Não é com ferro e fogo que se impõe a renúncia a uma
falsa concepção dos deuses, pois mesmo que a mão
sacrifique, a consciência reprova, e o que temos, então, é
uma sombra de conversão e não uma verdadeira
mudança de opinião. E muitas vezes acontece que estes
últimos obtêm perdão, enquanto aqueles que foram
mortos são venerados como se fossem deuses.
Convencido de tudo isto e observando que a causa dos
cristãos se beneficia com a perseguição, ele se absteve.
Aqueles que desejavam o bem, ele os conduzia à verdade,
mas sem usar de violência contra aqueles que amavam o
mal.9 [...]
Ele tinha prazer em visitar as cidades que haviam
conservado os templos e considerava que eram
merecedoras de seu beneplácito. Aquelas que estavam
afastadas, no todo ou em parte, do culto dos deuses, ele
as considerava impuras, mas não deixava de lhes dar,
como aos outros súditos, aquilo de que precisavam,
certamente não sem desprazer.10
Em sua carreira, Juliano teve um único momento de rigor
excessivo, segundo o próprio Amiano, um momento em que
deu livre curso ao desprezo acumulado em seu coração. Ao
entrar em Constantinopla, encontrou o palácio imperial
cheio de cortesãos de Constâncio. Eles formavam uma
casta que, tendo enriquecido com os espólios dos templos e
com todo tipo de abuso, dava um péssimo exemplo de
corrupção, luxo e vício.11 Juliano expulsou-os com uma
precipitação que, segundo o honesto Amiano Marcelino,
tirou a serenidade de seu julgamento e a capacidade de
fazer escolhas. Junto com os cortesãos, encontrou também
os altos oficiais e conselheiros de Constâncio, entre os
quais o famigerado Eusébio, que instigou o assassinato de
Gallo e era o mais implacável inimigo que ele tinha junto ao
primo. Juliano não soube reprimir o desejo de vingança e
nomeou uma comissão investigadora e julgadora para
tratar do caso. Acreditando que fazia a vontade do
imperador, a comissão atuou impiedosamente contra os
acusados, manchando de sangue, nem sempre justamente
derramado, o início do reinado.12
A corte de Constâncio era toda cristã, pois, sendo um
cristão intolerante, o imperador jamais aceitaria a presença
junto a si de um cortesão que permanecesse fiel à antiga
religião. Portanto, eram cristãos os seus mais íntimos
conselheiros, contra os quais recaiu a vingança de Juliano.
Mas era preciso sofrer da cegueira facciosa de Gregório
para insinuar que, ao aplicar as penas, Juliano havia sido
guiado, não pelo ódio contra os conselheiros de Constâncio,
mas pelo ódio contra os cristãos. Como se fosse possível
que o imperador desse início a um perseguição sangrenta
justamente no dia em que chamava os cristãos à sua Corte
para exortá-los à concórdia e anunciar a plena e segura
liberdade de culto! O fato de os cortesãos serem cristãos e
de Juliano extrair dessa circunstância um motivo para
condenar, em seu julgamento, também o cristianismo,
parece claro e natural. Mas isso não anula o fato de que,
em seu comportamento, ele não era guiado por sentimentos
de partidarismo religioso. Isso aparece claramente numa
carta sua a um amigo, Hermógenes, exatamente nos dias
em que estava nomeando a comissão investigadora:
Permita-me exclamar, como um declamador poético – Oh!
Eu não esperava ser salvo, não esperava ouvir que tu
escapaste da hidra de três cabeças! – Por Júpiter, não
pense que estou falando de Constâncio! Ele era o que era.
Refiro-me àquelas feras que viviam em seu redor, que
espiavam a todos e que o tornavam ainda mais cruel, ele
que, por si só, já não era nada benevolente, embora
alguns achassem que sim. Porém, dado que está morto,
que a terra lhe seja leve, como se costuma dizer. Quanto a
eles, Júpiter é testemunha, não gostaria que sofressem
injustiça, mas como são muitos os acusadores, decidi
instituir um tribunal. Quanto a ti, meu amigo, vem e tenta
chegar o mais rápido que puderes. Já faz tempo que
suplico aos deuses para te encontrar e agora que estás
salvo, com a máxima alegria exorto-te a vir.13
Em outra carta, deplorando certos abusos sofridos pelos
judeus, Juliano responsabiliza aqueles que, “bárbaros no
juízo, ímpios na alma, sentavam-se à sua mesa e que eu,
tomando as coisas em mãos, aniquilei, lançando-os no
báratro, de modo que não precise mais suportar nem
sequer a memória de suas infâmias”.14 É indubitável,
portanto, que este, que foi o único ato duro e impiedoso
que Juliano cometeu, não pode ser definido como um
episódio de perseguição. Como veremos em suas cartas,
Juliano permaneceu fiel ao princípio que ele mesmo
instituiu ao inaugurar seu reinado, o princípio da tolerância
religiosa. Este princípio harmonizava-se com as tendências
de seu espírito equânime e reflexivo, que repugnava a
violência. Amante da discussão e do debate lógico, deve ter
compreendido, antes mesmo do insucesso de Diocleciano,
que era ineficaz, ou melhor, impossível perseguir uma
religião que já tinha invadido mais da metade do Império.
Mas acreditamos que Amiano Marcelino enxergava bem e
com acuidade quando atribuía a tolerância religiosa de
Juliano também a um cálculo de caráter oportunista.15
As discórdias intestinas do cristianismo eram um
poderoso fermento de dissolução, eram o impedimento
mais forte para a constituição de uma Igreja que
comseguisse se impor com uma autoridade absoluta e
indiscutível. A tolerância era uma virtude que o
cristianismo ignorava, uma virtude que estava em
contradição com suas tendências essenciais, uma virtude
que para ele representava um vício. A intolerância
dogmática era um fenômeno novo no mundo, uma
consequência necessária da formação de um complexo de
doutrinas metafísicas em torno do núcleo monoteísta da fé,
que passava a ser parte integrante da religião como
manifestação da verdade divina. A consequência disso foi
que a heresia transformou-se em culpa, as divergências
internas do cristianismo deixaram de ser toleradas e os
cristãos das correntes adversárias se olhavam e se
combatiam mutuamente com mais ódio do que o que
devotavam aos pagãos. Ora, Juliano quis e soube, e era arte
de boa guerra, usar habilmente a situação para
enfraquecer o inimigo. Como o arianismo, em estreita
aliança com Constâncio, tinha se tornado poderosíssimo,
uma verdadeira religião de Estado, perseguindo e
decretando a expulsão dos bispos atanasianos, Juliano não
hesitou um instante em publicar um decreto que concedia
aos eLivross o direito de retornar à pátria,16 pois
acreditava, com razão, que o contato entre as duas partes
reacenderia imediatamente a fogueira dos ódios e das
lutas. Era exatamente aí que residia o perigo para o
cristianismo, e Juliano demonstrou sua grande perspicácia.
Se tivesse retornado da Pérsia vitorioso e exercido um
longo reinado, é provável que o cristianismo, abandonado a
si mesmo e devorado por suas próprias discórdias, se
consumisse ou se transformasse, talvez essencialmente. O
cristianismo, tanto arianista, quanto atanasiano, precisava
do apoio imperial. Afastado de suas origens, só poderia
sobreviver se fosse intolerante, e a intolerância, para ser
eficaz, precisa de uma força material a seu favor. A morte
prematura de Juliano possibilitou que, poucos anos depois e
com a ajuda de Graciano e Teodósio, Santo Ambrósio desse
a vitória definitiva ao dogmatismo católico.

As cartas de Juliano, entre quais se encontram decretos e


manifestos imperiais em meio a confidências entre amigos,
são o melhor e mais seguro modo de compreender suas
intenções e de julgar seu comportamento em relação aos
cristãos. O fato de que Juliano pretendia evitar qualquer
ato de violência pessoal contra os cristãos, apesar do ódio
visceral que sentia, e não hesitava em condenar tais atos
quando ocorriam à sua revelia, motivados por paixões
populares, aparece claramente pelos documentos. Eis o que
ele escreve a Astrábio: “Pelos deuses, não quero que os
galileus sejam mortos ou maltratados contra a lei, nem que
sofram nenhum dano. Digo apenas que devemos dar maior
atenção aos adoradores dos deuses, pois a tolice dos
galileus nos levaria à ruína se a benevolência dos deuses
não nos salvasse.”17
E um manifesto dirigido aos habitantes de Bostra, por
ocasião de ameaças de tumultos entre cristãos e pagãos,
encerra-se assim:
Entrem em acordo e que ninguém cometa violência ou
injustiça. Os que se extraviaram não podem ofender
quem adora aos deuses correta e justamente segundo as
normas que nos foram ditadas por toda a eternidade, mas
os adoradores dos deuses, por sua vez, não podem
assaltar as casas daqueles que erram mais por ignorância
que por convicção. Devemos persuadir e instruir os
homens por meio da razão, não com espancamentos,
violências ou tormentos do corpo. Ora, como já acontece
há tempos, exorto todos os que operam nas vias da
verdadeira piedade a não causar dano à turba dos
galileus, não bater neles, não cometer violências contra
eles. Não devemos odiar, mas lamentar aqueles que têm
um mau comportamento em coisas de suprema
importância. Ora, o maior dos bens é a piedade e o pior
dos males é a impiedade. Aqueles que, abandonando o
culto dos deuses, dedicam-se ao culto dos mortos e das
relíquias encontrarão em si mesmos o seu castigo.
Devemos lamentá-los, como lamentamos quem é afetado
por uma doença qualquer, assim como nos alegramos com
aqueles que foram libertados e salvos pelos deuses.18
Não é possível ser mais explícito, mais racional, mais
moderado e até mais moderno que Juliano em suas
declarações. Mais moderno, porque o princípio da
tolerância religiosa, tal como expresso pelo restaurador do
paganismo, só poderia renascer quando caísse o império do
dogmatismo infalível. Juliano teria uma certa dificuldades
para implantar inteiramente este seu princípio em meio às
intensas paixões populares. Os cristãos, que depois de
Constantino passaram a dominar a situação,
transformaram-se, por sua vez, em perseguidores,
destruindo e saqueando os templos antigos em vários
lugares. Era inevitável que os pagãos, de volta ao poder,
alimentassem o desejo de vingança. Mas a situação, já em
si complicada, tornava-se ainda mais difícil por causa das
discórdias intestinas do cristianismo. Como dissemos, estas
discórdias eram favoráveis a Juliano, mas ele não podia
permitir que o incêndio se espalhasse sem ferir o princípio
de respeito e tolerância recíprocos estabelecido como eixo
de sua política religiosa. O modo como Juliano manobrou
em meio a estas dificuldades pode ser visto no episódio do
assassinato do bispo Jorge de Alexandria.
No reinado de Constâncio, o governador de Alexandria
era Artêmio, seu fiel conselheiro, e o bispo da cidade era o
arianista Jorge. Por suas delações ao suspeitoso imperador
e pela tirania cruel de seu governo, os dois eram odiados
pelo povo de uma cidade que, como diz Amiano Marcelino,
o fidedigno narrador do episódio,19 estava sempre aberta a
revoltas, sempre que a ocasião se apresentasse.
Ascendendo ao trono, Juliano trouxe Artêmio para
Constantinopla, onde, acusado de grandes crimes, foi
condenado à morte. Assim que tiveram esta notícia, os
alexandrinos, que viviam com medo de um possível retorno
de Artêmio e de uma retomada de seu cruel arbítrio,
insurgiram-se contra o bispo Jorge, particularmente odioso
contra a parte pagã da população, sempre incitando os
cristãos a destruírem os templos. Jorge foi miseravelmente
massacrado pela multidão furiosa e com ele, dois de seus
companheiros de fé e de intrigas, Dracôncio e Deodoro. Os
cadáveres foram queimados e as cinzas dispersas no mar,
por temor de que seus túmulos, como os dos mártires,
fossem transformados em locais sagrados. Amiano observa
que, se quisessem, os cristãos poderiam ter impedido tal
violência, mas, ao contrário, mantiveram-se como
espectadores inertes. É provável que fossem partidários de
Atanásio, a quem a morte do arianista Jorge não
desagradava totalmente.
Do seu ponto de vista de restaurador do paganismo,
Juliano, que confundia arianistas e atanasianos num só ódio
e sob a única e depreciativa denominação de galileus, não
deve ter ficado descontente com uma prova tão clara do
zelo dos alexandrinos. Mas ele era imperador e precisava
comportar-se como um regente imparcial e justo. Não
podia deixar o crime passar impunemente. Amiano narra
que, de fato, ele estava resolvido a aplicar o merecido
castigo, mas os amigos que estavam ao seu lado e que,
como sempre acontece, eram mais imperialistas que o
imperador, conseguiram persuadi-lo a limitar-se a publicar
um édito censurando os alexandrinos e deixando-os, na
realidade, impunes. Este édito, que se conservou
integralmente, é de grande interesse para quem quer
conhecer melhor Juliano e sua orientação governamental.
O imperador César Juliano Máximo Augusto ao povo dos
alexandrinos.
Se vocês não respeitam seu fundador Alexandre e, mais
ainda, o grande e santíssimo deus Serápide, como,
pergunto eu, podem não pensar no dever que têm diante
do Império e da humanidade? E diante de nós também, eu
diria, que todos os deuses e, entre os maiores, o grande
Serápide, acreditaram dignos de governar a Terra? De
nós, que tínhamos o direito de instituir um processo
contra aqueles que ofenderam vocês? Mas talvez tenham
sido arrastados ao erro pela ira e a paixão, que só fazem
mal e transtornam o juízo, de modo que vocês, apesar de
um primeiro impulso que foi bom conselheiro, resolveram
transgredir a lei e não se envergonharam em cometer,
todos juntos, os crimes que costumam condenar nos
outros.
Em nome de Serápide, digam-me, por que vocês
atacaram Jorge com tamanha fúria? Com certeza dirão
que ele incitava Constâncio contra vocês, que mandou o
Exército invadir a cidade sagrada e induziu o governador
do Egito a tomar posse do mais venerado templo do deus,
violando as imagens, as oferendas votivas e os
ornamentos sacros. E que, contra os que tentavam
defender o deus, ou melhor, a propriedade do deus,
tomados por uma indignação bastante natural, o
governador enviou ilegal, iníqua e impiamente os seus
soldados, com medo, mais que de Constâncio, de Jorge,
que o vigiava para ter certeza de que trataria o povo
tiranicamente e não com temperança e civilidade.
Furiosos, portanto, contra aquele inimigo dos deuses que
era Jorge, vocês conspurcaram a cidade sagrada, mesmo
sabendo que poderiam entregá-lo aos votos dos juízes. E
se assim tivesse sido, não haveria morte, nem crime, mas
justiça perfeita, que defenderia vocês, os inocentes, e
puniria aquele facínora sacrílego, incitando, ao mesmo
tempo, à prudência todos aqueles, e são muitos, que não
respeitam os deuses e não respeitam uma cidade como
esta, nem seu florescente povo e consideram a crueldade
quase como um apêndice de sua potência. Comparem
esta minha carta com aquela que enviei há pouco tempo e
verão a diferença! Quantos elogios fiz a vocês! Gostaria
de louvá-los agora também, mas não posso por causa de
sua transgressão. O povo desta cidade ousou estraçalhar
um homem, como fazem os cães, e depois não teve
vergonha de erguer aos deuses as mãos manchadas de
sangue! Mas Jorge merecia esse castigo, dizem vocês.
Claro, respondo, e até um mais grave e mais cruel. Pela
nossa causa, dirão vocês. Admito. Mas se dissessem por
nossas mãos, eu diria que não, pois existem leis que cada
um deve honrar e amar. E se acontecer de alguém
transgredi-las, vocês, que são maioria, devem segui-las e
obedecê-las, sem se desviar daquilo que foi sabiamente
instituído nos tempos antigos. Vocês ainda têm sorte, ó
alexandrinos, de terem cometido essa transgressão sob o
meu Império, pois, por respeito à divindade e
consideração para com meu tio e meu homônimo que
governou o Egito e esta cidade, tenho por vocês uma
benevolência fraterna. Uma autoridade rigorosa e pura
veria a audácia culpada do povo como uma grave
enfermidade que deveria ser tratada com um amargo
remédio. Eu, porém, trago a vocês, pelas razões acima
expostas, exortações e argumentos, certamente mais
agradáveis a todos e que conseguirão persuadi-los, com
certeza, se vocês são, como me disseram, gregos de
antiga estirpe e se a marca admirável e nobre desta
origem permanece em sua alma e em seus costumes.
Que se dê conhecimento disto a meus cidadãos de
Alexandria.19
Quando pensamos que este édito saiu da pena do mais
convicto inimigo do cristianismo, é impossível não ver nele
um exemplo de moderação e de domínio das paixões. O
bispo Jorge devia ser duplamente detestável para Juliano,
fosse como cristão intolerante, fosse como amigo e
confidente de Constâncio. O imperador poderia considerar
a revolta dos alexandrinos como prova de zelo e devoção,
como a mais solene demonstração de aprovação da
restauração iniciada por ele na capital do comércio e do
pensamento do Oriente. Mas Juliano, fiel ao seu programa,
não queria nem sangue, nem violências, nem turbulências.
Certamente não permitia a violência dos cristãos, que se
apressavam a perseguir quem não acreditava naquilo em
que acreditavam, mas também não permitia a violência dos
pagãos, que queriam fazer justiça com as próprias mãos.
Seu programa era a ordem na tolerância recíproca. Ele
alimentava a ilusão de que o paganismo tinha tanta força
de atração que, restabelecida a sua liberdade de ação e
desenvolvimento, as multidões a ele retornariam curadas
de seus descaminhos!
Só que não era fácil conservar a ordem na tolerância em
meio a paixões tão exaltadas. O exemplo dos alexandrinos
foi seguido, segundo narra Sozomeno,20 em outras cidades,
como Gaza e Aretusa da Síria, onde ocorreram tumultos e
cenas de sangue promovidos por pagãos que se vingavam
de cristãos, enquanto em outros lugares, os cristãos, que
não apareciam assustados, mas antes raivosos com a
inesperada ressurreição do politeísmo, retomavam com
ardor ainda maior a destruição dos templos. O fato mais
grave ocorreu em Cesareia da Capadócia, onde a
população, na grande maioria cristã, depois de já ter
derrubado os templos de Júpiter e de Apolo, destruiu, já no
reinado de Juliano, o templo da Fortuna.21
O imperador respondeu à afronta com castigos de caráter
apenas administrativo, embora bastante graves. Depôs o
governador da Capadócia, confiscou os bens das igrejas
cristãs, impôs uma pesada multa e tirou os privilégios da
cidade. Mas não seria justo dizer que tal procedimento
tinha o caráter de uma perseguição. Diante da missão que
tinha assumido, Juliano podia até deixar os inimigos
tranquilos, mas não podia permitir que se rebelassem
contra ele impunemente, ferindo-o naquilo que ele
considerava mais importante.

Aqueles que acusam Juliano de violência e perseguição por


estes atos de defesa esquecem que, depois de obter a
vitória, com Constantino, o cristianismo não foi capaz de
fugir das condições dos tempos e dos costumes,
transformando-se, por sua vez, num duro perseguidor.
Como prova da intolerância dos primeiros imperadores
cristãos e da perseguição que iniciaram, temos este decreto
de Constâncio e Constante, promulgado no ano de 353.
Decretamos que, em todos os lugares e em todas as
cidades, sejam fechados os templos, para que ninguém
possa neles entrar, e que seja negada aos ímpios a licença
para delinquir. Queremos que todos deixem de fazer
sacrifícios. Se alguém perpetrar algo semelhante, que
seja morto pela espada vingadora. Decretamos que os
bens do morto sejam atribuídos ao fisco e queremos que
sejam punidos os governadores das províncias que se
mostrem negligentes na repressão dos delitos.22
É preciso reconhecer que nem um Décio ou um
Diocleciano poderiam fazer melhor que isso. Mas o
documento mais interessante para conhecer a opressão
exercida pelos cristãos contra os pagãos é o discurso Em
torno aos templos, que Libânio escreveu para o imperador
Teodósio. Embora seja posterior em alguns anos ao reinado
de Juliano, ele também retrata uma situação que existia há
tempos e é sintomática do estado de espírito durante o
conflito de duas religiões ainda rivais. A origem do discurso
é a seguinte: o imperador Teodósio confirmou com vários
decretos – sobretudo um dirigido a Cinégio, pretor do
Oriente, em 385 – as determinações dos imperadores
precedentes, que vetavam os sacrifícios. Ele tolerava,
contudo, a continuação de alguns rituais, como o
incensamento e a prece, e não impôs nem encorajou a
destruição dos templos. Mas tudo indica que os cristãos
encontraram este encorajamento na lógica das coisas e,
portanto, sem esperar leis ou ordens imperiais, puseram-se
a destruir os templos, entre os quais alguns monumentos
insignes, escondendo interesses privados e avidez de lucro
sob a aparência de fanatismo religioso. Libânio ergue sua
voz contra este abuso no discurso ao imperador, cuja data
pode ser estabelecida entre 385 e 391.23
Lendo o discurso, é possível reunir provas da decadência,
da corrupção moral em que o cristianismo havia
mergulhado ao se tornar dominante. Esta impressão, já
confirmada em todos os documentos contemporâneos, é
fortemente ratificada pelo discurso de Libânio. Para que ele
ousasse dirigir-se a um imperador de fé cristã – e que
imperador! –, acusando explicitamente os cristãos e
particularmente os clérigos e monges de todo tipo de abuso
por avidez de lucro, temos de reconhecer que a verdade da
acusação devia ser tão evidente, pelo menos em parte, que
afastava qualquer perigo de quem ousasse expô-la e
declará-la. Podemos ver no texto de Libânio que o
politeísmo havia se retirado da cidade para o campo, onde
era zelosamente conservado pelos colonos, pelos
agricultores que, com a tenacidade do povo simples e
distante das perturbações sociais, realizavam as antigas
cerimônias e invocavam suas caras e conhecidas divindades
para proteger os trabalhos. Era sobretudo contra eles que
se exercia a prepotência do clero cristão, que enriquecia
com espólios realizados em nome de um princípio divino!
Estas são revelações preciosas. Para compreender o
movimento que Juliano tentou implementar é preciso
lembrar que, perdendo de fato o caráter de reivindicação
moral e de heroísmo sublime, o cristianismo rebaixou-se ao
nível das condições do tempo e transformou-se, na
realidade, numa religião em cuja sombra pululavam as
paixões e os vícios que ela deveria ter extinguido se tivesse
efetivamente regenerado a sociedade.
Tomemos algumas flores do ramo de zombarias e
acusações que Libânio nos oferece, dirigindo-se a Teodósio:
Tu não ordenaste que fossem fechados os templos, nem
que ninguém tivesse acesso a eles, nem que fossem
expulsos dos altares o fogo e o incenso ou a honra de
outros perfumes. Mas aquela gente vestida de preto, que
come mais que os elefantes e que, em repetidas
festanças, dá muito trabalho, enquanto canta, aos
fornecedores de vinho e esconde tudo isso sob uma
palidez artificial, aquela gente, ó imperador, corre aos
templos a despeito da lei, alguns portando bastões,
pedras e ferros, outros não, com a intenção de usar as
mãos e os pés. Eles abatem os telhados, esburacam as
paredes, arrancam as estátuas, despedaçam os altares. E
os sacerdotes são obrigados a calar ou morrer. Destruídos
os primeiros templos, correm para os segundos, depois os
terceiros e, mesmo contra a lei, acumulam troféu sobre
troféu. Ousam fazer isso nas cidades, porém muito mais
no campo. [...] E percorrem os campos como torrentes,
devastando tudo sob o pretexto de destruir os templos. E
quando derrubam um templo num campo, é como se
apagassem e matassem sua alma, pois os templos, ó
imperador, são a alma dos campos e foram o primeiro
núcleo das construções que cresceram durante muitas
gerações, até o estado presente. É nos templos que os
agricultores depositam suas esperanças na prosperidade
dos homens, das mulheres, dos filhos, dos bois, das
semeaduras e das colheitas. Um campo que sofreu tal
dano está arruinado e, junto com as esperanças, está
perdida a confiança dos agricultores. Creem que seu
trabalho é inútil quando são privados dos deuses que o
tornam profícuo. [...] Assim, a audácia dessa gente,
criminosamente exercida nos campos, leva aos resultados
mais deploráveis. Dizem que fazem guerra aos templos,
mas sua guerra resume-se em roubar, arrancar dos
pobres aquilo que lhes pertence, suas provisões tiradas
da terra para a própria alimentação, para depois partir
levando consigo, como conquistadores, os espólios dos
derrotados. E não basta, pois apropriam-se da terra do
primeiro que cair em suas garras dizendo que é terra
sagrada. Assim, com essa palavra falsa, muitos são
privados dos bens paternos. E eles, que fingem servir seu
deus com jejuns, pelo menos é o que dizem, refestelam-se
no sofrimento alheio. E se os infelizes, quando vão à
cidade, lamentam-se com o pastor (é assim que chamam
um homem que nada tem de bom) e expõem seus
sofrimentos, o pastor louva os ofensores e dispensa os
ofendidos, dizendo que já é um ganho não terem sofrido
ainda mais. No entanto, ó imperador, estes infelizes
também fazem parte do teu Império e são bem mais úteis
que seus ofensores, pois os trabalhadores são mais úteis
que os ociosos. Aqueles são como abelhas e estes como
marimbondos. Assim que ficam sabendo de alguém que
possui um campinho que pode ser usurpado, tratam de
afirmar que esse alguém faz sacrifícios e coisas
reprováveis e é preciso puni-lo. E eis que entram em cena
os moralistas, pois este é o nome que dão aos ladrões,
para dizer o mínimo, dado que os ladrões tentam se
esconder, negam o que ousam fazer e sentem-se
ofendidos se são chamados de ladrões, enquanto estes, ao
contrário, vangloriam-se do que fazem, são respeitados,
contam seus feitos aos que ainda não sabem e afirmam
que são dignos de prêmio. [...] Por que, ó imperador,
reúnes tantas forças, preparas armas, convocas os
generais em conselho, enviando-os para onde são mais
necessários e a uns escreves e a outros respondes? E por
que estes novos muros, estes trabalhos estivos? Qual o
objetivo, qual a serventia disso tudo para as cidades e os
campos? Para que possamos viver sem temor, repousar
tranquilamente, para que não sejamos perturbados pelas
ameaças dos inimigos, para termos certeza de que, se
alguém nos atacar, partirá depois de ter sofrido danos,
mais que causado. E, portanto, se enquanto conténs os
inimigos externos alguns de teus súditos maltratam
outros que também são súditos teus, não permitindo que
desfrutem dos bens comuns, não seria, talvez, verdade
que eles ofendem a tua providência, a tua sabedoria e os
teus cuidados? Não seria, talvez, verdade que, com suas
ações, eles fazem guerra à tua vontade?*124
Neste apelo, no qual a ironia se une à invectiva e ao
raciocínio, Libânio mostra-se eloquente e cheio de
habilidade. Percebem-se na palavra do orador um tom de
verdade, o sentimento de um direito ofendido, o grito dos
vencidos injustamente pisoteados. Os homens não mudam
em suas paixões. Os cristãos, agora vitoriosos, assumiram o
posto dos antigos dominadores e, em nome de um novo
princípio, renovaram os mesmos procedimentos e excessos
que foram cometidos em nome do princípio oposto. E
Libânio, como pagão perseguido, recusa energicamente o
argumento que os cristãos perseguidores usavam para
defender a violência, ou seja, de que, com isso, obrigariam
os pagãos à conversão. Com este procedimento, argumenta
Libânio, só se obtêm conversões de fachada. Que
vantagem, questiona, teriam os cristãos se os novos
convertidos só o fossem nas palavras, mas não de fato?
“Em coisas desta natureza é preciso persuadir, não obrigar.
Aquele que, não sendo capaz de persuadir, usa a violência,
embora acredite que obteve sucesso, na realidade não
obteve nada.”25
Mas a culpa deste tristíssimo estado de coisas não é de
Teodósio, para quem o hábil e prudente Libânio só tem
palavras de louvor, mas de um pérfido conselheiro. Tudo
indica que Libânio se referia a Cinégio, pretor do Oriente,
marido de Acância, matrona que gozava de uma fama de
santidade.
Este homem enganador, ímpio e inimigo dos deuses, cruel
e avaro, funesto para a terra que o recebe, gozando de
uma fortuna desproporcional e fazendo mau uso dela, é
servo da esposa, a quem satisfaz em todas as coisas, a
quem subordina tudo. E esta obedece, por sua vez,
àqueles que se impõem a ela e que se dão ares de virtude
usando vestes de luto e até, numa ostentação ainda
maior, vestes feitas com o tecido com que os tecelãos
confeccionam sacos. Esta corja engana, ilude, ludibria e
mente.26
Realmente curioso este quadro de um pretor do Oriente
que é comandado pela esposa, a qual, por sua vez, é
comandada pelos monges! E como é estranha a diversidade
dos julgamentos dos homens, segundo a cor da lente
passional através da qual eles olham os objetos! Libânio vê
perfídia e ridículo onde Gregório e Atanásio veriam a mais
pura expressão da santidade das intenções e da conduta!
Mas Teodósio, diz Libânio, nunca fez uma lei que
sancionasse tais excessos. “Tu não impuseste este jugo à
alma humana. E se acreditas que o culto de teu deus é
preferível ao culto dos outros, não declaraste que este
outro seja uma impiedade e que se possa vetá-lo
justamente.” Ele chama para perto de si, como conselheiros
e comensais, homens notoriamente devotos aos deuses e
não duvida de um amigo porque ele deposita nos deuses as
suas esperanças. Recordando Juliano, cuja imagem nunca
está longe de seu pensamento, Libânio exclama: “Tu não
nos perseguiste, imitando aquele que derrotou os persas
com as armas, mas não usou as armas para perseguir
aqueles entre seus súditos que eram seus inimigos.”27
Durante a estadia de Juliano em Antióquia, ocorreu um
fato que o irritou sobremaneira. Nada era mais revoltante
aos olhos de Juliano que o culto que os cristãos rendiam
aos sepulcros de seus mártires, de seus homens ilustres.
Esta adoração dos mortos, como ele a chamava, ofendia
seu senso estético de grego antigo, sendo, ao seu ver,
absurda e provavelmente odiosa, por ser um dos meios
mais eficazes para exaltar os espíritos num ideal devoto.
Sempre que toca nesse assunto do culto dos mortos, ele
tem uma palavra de desprezo ou de sarcasmo. Mais que a
destruição das igrejas, o que ele desejava era o
desaparecimento ou o abandono daquelas tumbas
transformadas em locais sagrados. Este era o caso da
tumba do mártir Bábilas, que ficava no subúrbio de Dafne,
em Antióquia. O subúrbio era um local delicioso pela beleza
das plantas e das flores, pela vista e pela aura de serena
alegria. A lenda narra que foi lá que, para fugir de Apolo, a
ninfa Dafne transformou-se num loureiro. E esta memória,
junto com a excitante amenidade do lugar, fazia dos
bosques de Dafne um ponto de encontro dos amantes.
“Quem passeava por Dafne” – diz Sozomeno – “sem estar
acompanhado por uma amante, era considerado um homem
tolo e rude.”28 Em meio a estes bosques, erguia-se a mais
bela estátua de Apolo, perto de um esplêndido templo de
mármore dedicado ao deus.
Mas quando Gallo, irmão de Juliano, nomeado César e
encarregado do governo do Oriente por Constâncio,
estabeleceu-se em Antióquia, ele teve a ideia, como
exaltado cristão que era, de diminuir o prestígio daquele
famoso santuário do helenismo. Para isso, mandou
construir diante do templo de Apolo um tabernáculo e
transferir para lá as relíquias do mártir Bábilas. Parece que
o objetivo de Galo foi alcançado. A presença das relíquias
do mártir, chamando multidões devotas de cristãos para os
perfumados bosques de Dafne, afastava os amantes e
espalhava um ar de tristeza que dissipava a alegria do raio
apolíneo.
Realizada a revolução religiosa, Juliano veio para
Antióquia e quis restituir o antigo esplendor do templo e do
culto de Apolo, o que não poderia acontecer sem que as
relíquias do mártir, que conspurcavam o local sagrado,
fossem transferidas para outro lugar. Assim, ele ordenou
que fosse feito o traslado. Esta ordem causou uma grande
manifestação dos cristãos de Antióquia, que, nas palavras
de Sozomeno, formaram uma multidão e acompanharam o
caixão onde jazia o mártir por quarenta estádios, cantando
salmos. Esta manifestação irritou Juliano, que teria
ordenado ações de represália, se o pretor Salústio não o
recolocasse no bom caminho. Só que, poucos dias depois,
um terrível incêndio devorou o templo de Apolo. Os cristãos
afirmaram que um raio mandado por Deus havia incendiado
o templo, mas Juliano não duvidou nem um instante de que
a culpa era dos cristãos. Com grande amargura, ele
recorda este fato no Misobarba e confronta a conduta dos
antioquenses com a de outras cidades, onde o população
reerguia os templos e destruía os túmulos dos ateus, ou
seja, dos cristãos, cometendo os excessos que ele
deplorava. Os antioquenses, ao contrário, destruíam os
altares recém-restaurados. A suavidade com que os
admoestava não tinha servido para nada.
De fato, quando mandamos transferir o cadáver, alguns
de vocês, que não respeitam as coisas divinas,
entregaram o templo do deus aos que estavam indignados
com o traslado das relíquias, e estes, não sei se às
escondidas ou não, acenderam o fogo que causou horror
aos estrangeiros e ao seu povo, prazer que deixou e ainda
deixa indiferente o Senado de vocês!29

Talvez tenha sido sob o impacto deste fato que Juliano deu,
por decreto, a ordem de destruir dois santuários de
mártires que estavam sendo construídos em Mileto, junto
do templo de Apolo.30
Todas estas violências parciais, de caráter episódico e
que representavam uma inevitável troca de represálias
entre dois partidos quase equivalentes, não bastam para
apagar o fato substancial de que Juliano pretendia usar a
tolerância religiosa como instrumento mais eficaz da
restauração recém-começada. Já falamos da medida, tão
interessante e característica, adotada por Juliano, ao
chamar de volta à pátria os cristãos eLivross por
Constâncio por divergências teológicas. Nas cartas de
Juliano, encontramos informações realmente curiosas e
instrutivas sobre esta medida.
O partido dominante na corte de Constâncio não era o
arianismo puro, mas um arianismo oportunista, que não
admitia a consubstancialidade do Pai e do Filho, defendida
por Atanásio e pelo Concílio de Niceia, mas também não
afirmava a distinção e a subordinação do Filho ao Pai,
defendida pelos arianistas autênticos. Como sabemos,
Constâncio havia adotado a chamada fórmula homoica, que
dizia que o Filho é similar ao Pai, segundo as Escrituras, e
vetava qualquer análise e determinação desta semelhança.
Constâncio impôs esta fórmula nos Concílios de Rimini e de
Selêucia, em 359, e condenou ao exílio todos os bispos,
tanto atanasianos, quando arianistas, que não a aceitavam.
Juliano chamou-os de volta, todos juntos, sem distinção.
Contudo, é singular a diversidade no tratamento dos dois
heróis destas lutas teológicas, o diácono Aécio, que
representava o arianismo intransigente, e o grande
Atanásio, legislador do Concílio de Niceia. Ao primeiro,
Juliano envia o seguinte bilhete:31
Chamei de volta do exílio todos aqueles, sem distinção,
que foram eLivross por Constâncio pela tolice dos
galileus. Quanto a ti, não somente te chamo, mas,
recordando nosso antigo conhecimento e convivência,
convido-te a vir ao meu encontro. Poderás usar, para
chegar ao meu acampamento, uma viatura do Estado e
um cavalo de reforço.
Mas quem era este Aécio que Juliano trata com tanta
deferência? Era um velho conhecido do imperador. Vamos
analisá-lo num primeiro momento e depois colocá-lo ao lado
da grande figura de Atanásio, para termos diante de nós
dois perfis característicos do típico cristão do século IV.
Aécio, sírio de origem, dedicou-se na juventude às mais
variadas artes. Foi fundidor de metais, médico e pouco a
pouco ficou conhecido pela inquietude de seu espírito e
pela singular aptidão para as discussões teológicas que
eram a paixão intelectual da época. Dando crédito ao que
disse Sócrates Escolástico, ele era muito mais versado na
dialética de Aristóteles que no conhecimento dos escritores
cristãos. Desprezava Clemente e Orígenes.32
Afastado de Antióquia como perturbador da paz religiosa,
estabeleceu-se na Cilícia, mais especialmente em Tarso,
onde fez amizade com os seguidores das ideias lucianistas,
tornando-se um apóstolo ardoroso. De volta a Antióquia,
ficou amigo do presbítero Leôncio, que pertencia à mesma
escola lucianista. Retorna em seguida para a Cilícia e de lá
para Alexandria, e dedica-se ao debate com gnósticos e
maniqueus. Quando Leôncio é nomeado bispo de Antióquia,
Aécio retorna para ficar ao seu lado e é nomeado diácono.
No entanto, cria um turbilhão tão grande de discórdias e
disputas em torno do bispo, que Leôncio é obrigado a
afastá-lo de suas funções sagradas, conservando-lhe o
posto de professor. Há indicações de que participou do
Sínodo de Sírmio, em 351, onde combateu ferozmente os
atanasianos, que tentaram, sem sucesso, intrigá-lo com
Gallo, irmão de Juliano que, como sabemos, havia sido
elevado à dignidade de César pelo imperador Constâncio.
De fato, Aécio controla totalmente a situação. A confiança
de Gallo era tanta que ele o envia várias vezes ao encontro
de seu irmão Juliano, como confidente. Vem daí a relação
entre o príncipe e o diácono arianista, bem como a
deferência demonstrada por Juliano logo depois de subir ao
trono. Gregório de Nissa acusa Aécio de ter aconselhado
Gallo a assassinar o pretor Domiciano e o questor Môncio,
crime horrível, que teve como consequência a desgraça de
Gallo. Mas não temos como saber se é possível confiar no
relato do bispo atanasiano, pois atanasianos e arianistas se
acusam mutuamente sem nenhum escrúpulo. Em 356,
Aécio vai a Alexandria, a grande fogueira das iras
teológicas, e assume a posição de arianista intransigente,
falando e escrevendo como um dos líderes de um arianismo
renovado. Chamado de volta a Antióquia pelo bispo
Eudóxio, comprometeu-o de tal maneira com sua política
irritante, que os semiarianistas acabaram influenciando
Constâncio e conseguindo que ele afastasse o bispo e
exilasse Aécio na Frígia. Um ano depois, em 360,
Constâncio assumiu resolutamente a fórmula homoica,
alimentando a ilusão de que conseguiria impôr a paz entre
os partidos que dilaceravam a Igreja. Aumentou as penas
contra Aécio, que foi deposto de seu diaconato pelo Sínodo
de Constantinopla e confinado na Pisídia pelo imperador.
Com a chegada de Juliano ao trono, a sorte de Aécio voltou
a melhorar. Chamado de volta do exílio, sua deposição foi
anulada e ele foi reconsagrado, junto com outros arianistas,
por um sínodo reunido em Antióquia. É provável que o
fogoso polemista tenha morrido logo depois, pois não se
tem mais notícia dele.
Não sabemos se Aécio aceitou o convite do imperador
que, ao mesmo tempo em que o chamava de volta,
qualificava o cristianismo como tolice. Se aceitou, não
conseguiu fazer com que Juliano apoiasse o arianismo. Na
verdade, Juliano era indiferente e imparcial diante de todas
as seitas cristãs, que confundia num ódio comum. E a prova
de que os arianistas receberam a parte que lhes cabia
deste ódio está numa carta escrita por ocasião de uma série
de tumultos promovidos por eles em Edessa, carta que é
tão justa em sua inspiração, quanto acerba em sua ironia.
A Ecebólio. – Trato todos os galileus com tanta suavidade
e filantropia que nenhum deles nunca sofreu violência.
Não quero que sejam arrastados para os templos ou
obrigados a qualquer coisa que seja contrária às suas
íntimas convicções. Mas os da Igreja arianista,
orgulhosos de sua riqueza, atacaram os valentinianos e
cometeram, em Edessa, desordens que jamais poderiam
acontecer numa cidade sensata. Porém, como uma lei
admirabílíssima lhes ensina que é preciso ser pobre para
ter um acesso mais fácil ao reino dos céus, tive por bem
ordenar, para ajudá-los, que todos os bens da Igreja dos
edessianos fossem confiscados e distribuídos aos
soldados e que suas terras fossem agregadas aos nossos
domínios. Assim, empobrecidos, ficarão mais sábios e
alcançarão o esperado reino dos céus!33
É preciso dizer, portanto, que sua cortesia para com
Aécio era realmente motivada apenas pela simpatia
pessoal. Não podemos deduzir que Juliano estivesse se
bandeando para os arianistas, o que seria inexplicável,
dado que ele encontrou seus mais ferozes adversários
justamente na corte semiarianista de Constâncio. Contudo,
o personagem que despertava a mais implacável antipatia
no imperador estava no campo oposto e era nada menos
que o grande Atanásio, fundador da ortodoxia católica.
Estes dois homens, ambos geniais, um dos quais
representava o passado e o outro o futuro, um o helenismo
ressurgente, o outro o cristianismo dominador, eram
incompatíveis entre si. A ira de Juliano contra Atanásio, que
havia sido uma vítima de Constâncio, mostra que, apesar
de sua juventude, ele conhecia os homens a fundo e sabia
onde morava o perigo. Percebeu que a força do
cristianismo não estava mais no corrupto arianismo,
embora ele ainda dominasse a metade do mundo cristão,
mas sim na energia entusiasta do partido que, desfraldando
o estandarte do mistério místico da Trindade, reunia-se em
torno da grande figura do bispo de Alexandria. Se Atanásio
tivesse desaparecido, a ortodoxia católica não teria sido
fundada e o cristianismo não teria a organização que o
desviou de seu caráter original, mas que era necessária
para que pudesse viver.
Para compreender a importância do duelo entre Juliano e
Atanásio, vamos conhecer melhor a figura deste último.
Nenhuma existência é mais tempestuosa e mais heroica
que a de Atanásio. Um romancista de imaginação ardente,
um Sienkiewicz, poderia construir uma narrativa épica a
seu respeito. Nada pode servir melhor para dar uma ideia
viva do ambiente do século IV que o estudo desta grande
figura e de suas tempestuosas aventuras. O homem era
realmente grande, um caráter dominador por excelência,
uma têmpera inflexível de combatente, uma alma de voo
amplo e potente. Existe uma grande analogia entre
Atanásio e Ambrósio. Mas Ambrósio viveu em condições
bem menos difíceis e perigosas, não enfrentou contestações
no exercício de sua autoridade, exceto durante a regência
de Justina. E o bispo era forte demais em confronto com a
imperatriz para que pudéssemos duvidar de sua vitória
final. Fora deste choque passageiro, Ambrósio dominou o
soberano e teve a ajuda do poder imperial em sua guerra
contra o arianismo. Graciano e Teodósio foram dois
instrumentos em suas mãos, com os quais ele conseguiu
erigir a ortodoxia católica em religião do Estado. Atanásio,
ao contrário, teve uma vida de lutas incessantes e
gigantescas. E tinha o Império contra ele. À exceção de
Constantino, nos tempos do Concílio de Niceia, e do fugaz
Joviano, foi perseguido por todos os imperadores que ele
viu se sucederem no trono de Constantinopla: Constâncio,
Juliano, Valente.
Nascido nos últimos anos do século III, Atanásio passou
sua primeira juventude em Alexandria, ao lado de seu
bispo, Alexandre, e foi quem influenciou as primeiras
divergências do bispo com o presbítero Ário, que mais
tarde resultaram na guerra civil no seio do cristianismo. No
Concílio de Niceia, Atanásio já era uma figura dominante, e
o arianismo já via nele o mais poderoso inimigo. Com a
morte de Alexandre, foi eleito bispo de Alexandria, em 328.
Mas a oposição do clero de inclinação arianista foi tão
enérgica e foram tão pesadas as acusações contra o recém-
eleito que Constantino – que, diante do insucesso da
política ortodoxa, estava se aproximando do arianismo –
chamou o acusado para justificar-se primeiro diante dele,
em Nicomédia, e depois, com a renovação das acusações,
diante de um Concílio reunido em Cesareia, em 334. Mas
Atanásio conseguiu postergar esta apresentação e
aproveitou discretamente para persuadir Constantino de
sua inocência e ganhar seu apoio. Mas seus inimigos
juraram destruí-lo. Eusébio de Nicomédia, futuro educador
de Juliano que era muito próximo do imperador, induziu-o a
convocar outro Sínodo, em 335, em Tiro, para julgar o
bispo de Alexandria. Atanásio apresentou-se ao Concílio
com um imponente séquito de cinquenta bispos, mas,
convencido de que a assembleia decidiria contra ele, não
esperou o veredicto de destituição e embarcou para
Constantinopla, confiando em sua própria influência sobre
o espírito de Constantino. Não estava enganado, pois o
imperador, colocado entre o Concílio e Atanásio, inclinava-
se para este último. Contudo, Eusébio fez uma nova
acusação contra o rival, desta vez de índole não teológica e
que iria impressionar vivamente o espírito do imperador:
acusou Atanásio de ter ameaçado suspender a provisão de
grãos que Alexandria enviava anualmente a
Constantinopla. Constantino recusou-se a ouvir Atanásio e,
sem mais, exilou-o em Tréveris, na Alemanha, onde ele
encontrou, aliás, uma acolhida cortês por parte do filho do
imperador e um ardente colega de opiniões teológicas no
bispo da cidade, Maximino.
Com a morte de Constantino, em maio de 337, Atanásio
retornou triunfante a Alexandria e retomou seu cargo. Foi o
sinal para uma nova tempestade. Atanásio, que não era um
homem tolerante, afastou todos os seus adversários dos
cargos eclesiásticos, substituindo-os por amigos seus,
inflamando ainda mais a cólera dos arianistas. Além disso,
quem estava agora no trono de Constantinopla era
Constâncio, semiarianista, que tudo via com os olhos de
Eusébio. Assim sendo, mandou para Alexandria um novo
bispo, Gregório, acompanhado por uma escolta militar para
empossá-lo à força, caso houvesse resistência. De fato, a
chegada de Gregório foi motivo de revolta e de cenas de
violência. Mas Atanásio percebeu que seus esforços seriam
inúteis e, em março de 340, partiu para o segundo exílio,
em Roma, junto ao bispo da cidade, Júlio. No Ocidente, o
bispo encontrou amigos e apoio, a começar pelo imperador
Constante que, ao contrário do irmão, Constâncio, preferia
a ortodoxia. Durante cinco anos, o infatigável Atanásio,
protegido pelo imperador, lutou pela glória e pela defesa da
fé que professava com heroica convicção. Era o legislador
religioso em Milão, nas Gálias, em Aquileia e, nesse
ínterim, as coisas também começaram a andar bem para
ele no Oriente. Constâncio, que não achava conveniente
afastar-se muito drasticamente do irmão, passou a acenar
com uma atitude mais condescendente. Com a morte do
bispo Gregório em 345, Atanásio pôde, então, apresentar-se
a Constâncio, em Antióquia, para ser reconduzido à sua
sede de Alexandria. E, de fato, ele retornou à cidade em
346, em meio ao júbilo popular. Mas a paz durou pouco.
Com a morte de Constante, em 350, nada mais impedia que
Constâncio tomasse o partido do arianismo e, portanto, a
guerra contra Atanásio, acusado de perturbar a
tranquilidade da Igreja, recomeçou. Várias tentativas de
prender o bispo fracassaram graças à atitude combativa da
população alexandrina. Mas, finalmente, na noite de 9 de
fevereiro de 356, o governador Siriano conseguiu, com um
grupo seleto de soldados, penetrar na igreja onde o bispo
celebrava um serviço divino. Formou-se um sangrento
tumulto, durante o qual Atanásio desapareceu. Vitoriosos,
os arianistas retomaram todos os cargos que haviam sido
obrigados a abandonar e nomearam para a sede episcopal
aquele mesmo Jorge com o qual já travamos infausto
conhecimento.
Durante este terceiro exílio, que durou de 356 a 361,
Atanásio viveu nos eremitérios do Alto Egito, retornando
várias vezes, às escondidas, a Alexandria, onde alimentava
seu partido com os textos que redigia em sua fecunda
solidão. A bem da verdade, dando fé às palavras de
Sozomeno, o orgulhoso bispo não teve uma vida muito dura
neste longo período de renovada perseguição. Segundo o
historiador, Atanásio permaneceu em Alexandria, escondido
na casa de uma virgem de singular beleza, tão bela que
nenhuma mulher em Alexandria a ela se compararava.
Melhor reproduzir as palavras de Sozomeno, que
apresentam uma estranha combinação de santidade e
romance, uma mistura que hoje pode parecer heterogênea,
mas que soava deliciosa aos paladares literários do século
IV.
Para todos que viam aquela virgem, ela parecia um
milagre, mas aqueles que cultivavam uma fama de
temperança e prudência a evitavam por medo de serem
alvos de suspeita. Pois ela estava realmente na flor da
idade e era supremamente decorosa e modesta... Ora,
salvo por uma visão divina, Atanásio refugiou-se junto à
virgem. E quando investigo os fatos, penso que foi
realmente a mão de Deus, que não queria que os amigos
de Atanásio sofressem nenhum mal se alguém viesse
interrogá-los ou obrigá-los a jurar, pois Atanásio estaria
escondido junto àquela cuja beleza era grande demais
para dar ensejo à suspeita de que o sacerdote estivesse
com ela.
Ela recebeu-o com coragem e salvou-o com prudência,
além de ser uma anfitriã tão fiel e uma serva tão
prendada que lhe lavava os pés, tratava pessoalmente de
seus alimentos e de todas as outras coisas que a natureza
torna indispensáveis às necessidades urgentes. Também
buscava com outras pessoas os livros que lhe eram
necessários e, embora isso tenha durado um longo tempo,
nenhum dos cidadãos de Alexandria ficou sabendo.34
Contudo, estando refugiado nos esconderijos do deserto
ou escondido na casa virginal da belíssima jovem, a ação e
a presença de Atanásio eram espiritualmente sentidas no
ambiente agitado de Alexandria. Já o bispo Jorge, que,
como sabemos, era imprudente e não tinha uma vida
tranquila, estava exposto a todo instante às revoltas de
uma população irritada contra ele. Com a chegada de
Juliano ao trono, estas iras reprimidas explodiram de forma
terrível, fazendo a desgraça do bispo, à qual os atanasianos
assistiram impassíveis e provavalmente coniventes.
Publicado o decreto de Juliano que permitia o
repatriamento dos bispos eLivross por seu antecessor
ariano, Atanásio não só retornou a Alexandria, como
recuperou, sem aviso, a sede episcopal. Retomou com
renovada energia a sua ação de propaganda e luta.
Ora, a conduta de Atanásio perturbava a política de
Juliano, que pretendia manter os dois partidos cristãos em
pé de igualdade e de recíproca tolerância, prevendo que
assim se enfraqueceriam mutuamente. Nada era mais
distante de suas intenções que reforçar a ortodoxia para
vencer o arianismo. Portanto, ninguém podia ser mais
suspeito e odioso para ele que o ardente Atanásio. Ficou
furioso com a volta triunfante do bispo de Alexandria e
sentiu que isso era intolerável. Viu em Atanásio um inimigo
mais forte que ele, que tornaria inútil a tentativa à qual
havia dedicado a vida. Resolveu sufocá-lo. Começou a
perseguição sob o pretexto de que Atanásio havia
desrespeitado a lei. De fato, um édito do imperador
permitia a repatriação dos cristãos eLivross, mas não dizia
que poderiam retomar a condução das respectivas igrejas.
Ora, Atanásio não hesitou um instante em assumir o posto
do massacrado Jorge. Assim, Juliano editou imediatamente
um novo decreto aos alexandrinos:
Um homem, eLivros por tantos decretos de tantos
imperadores, deveria esperar uma autorização especial
antes de retornar à pátria, em vez de ofender as leis, com
audácia e loucura, como se não tivessem valor.
Concedemos aos galileus, eLivross por Constâncio, não o
retorno às suas igrejas, mas sim o retorno à pátria. E
fiquei sabendo agora que o audacíssimo Atanásio, inflado
por sua habitual imprudência, retomou aquilo que eles
chamam de trono episcopal, o que não é pouco
desagradável ao piedoso povo de Alexandria. Ordenamos,
portanto, que ele saia da cidade imediatamente, no dia
em que receber esta comunicação, que deve ser
considerada um sinal de nossa benevolência. Contudo, se
ele permanecer, decretaremos maiores e mais molestos
castigos para ele.35
Parece que, apesar das ameaças, Atanásio ficou. Não
satisfeito em combater os arianistas, realizou uma fecunda
obra de propaganda entre os pagãos, ganhando para o
cristianismo sobretudo as mulheres. Furioso, Juliano
mandou ao governador do Egito, Edíquio, o seguinte
bilhete:
Se não querias me falar sobre outros assuntos, deverias,
porém, ter-me escrito sobre aquele inimigo dos deuses
que é Atanásio, ainda mais estando informado há tempos
do que foi por mim sensatamente estabelecido. Juro pelo
grande Serápides que se antes das calendas de dezembro
aquele Atanásio, inimigo dos deuses, não tiver partido da
cidade, ou melhor, de todo o Egito, imporei à província
que administras uma multa de cem libras de ouro. Sabes
que tardo a condenar, mas tardo muito mais a perdoar
depois de ter condenado.
Tudo indica que até aqui Juliano ditava seu decreto a um
secretário, mas que, tomado por um impulso repentino,
pegou a pena e escreveu:
De minha própria mão. – Dói-me muito ser desobedecido.
Por todos os deuses, não poderias fazer nada que me
fosse mais grato que expulsar Atanásio de todos os cantos
do Egito, aquele celerado que ousou, sendo eu imperador,
batizar as mulheres gregas de ilustres cidadãos. Que seja
perseguido!
No primeiro decreto aos alexandrinos, o imperador
ordenava que Atanásio fosse banido da cidade. Agora, isso
já não bastava: ele deveria ser banido de todo o Egito. Esta
nova ordem, transmitida ao governador por aquele bilhete
de poucas frases iradas, é desenvolvida amplamente neste
manifesto ao povo de Alexandria:
Juliano aos alexandrinos.
Mesmo que tivessem como fundador um daqueles que,
transgredindo a lei paterna, tiveram o castigo merecido, e
preferiram viver ilegalmente, introduzindo uma revelação
e uma doutrina nova, vocês não teriam razão para pedir
por Atanásio. Mas tendo, ao contrário, Alexandre como
fundador e Serápides como deus protetor, junto com Ísis,
a rainha virgem do Egito... [aqui o texto se interrompe]
...vocês não desejam o bem desta cidade, são uma parte
doente dela que ousa se apropriar de seu nome.
Pelos deuses, eu teria vergonha, ó alexandrinos, se um
único entre vocês confessasse ser galileu. Os pais dos
judeus foram, outrora, servos dos egípcios. E agora, ó
alexandrinos, depois de terem dominado os egípcios (pois
seu fundador conquistou o Egito), vocês oferecem aos
que desprezam as leis pátrias e oferecem àqueles a quem
vocês outrora subjugaram, a sua voluntária servidão. Não
lembram sequer a antiga prosperidade, quando todo o
Egito estava unido no culto dos deuses e desfrutava de
todos os bens. Que benefício trouxeram para esta cidade
aqueles que introduziram esta nova revelação entre
vocês? Seu fundador, Alexandre da Macedônia, o Grande,
foi um homem piedoso que, por Júpiter, não se parecia em
nada com estes últimos e tampouco com os judeus que,
no entanto, valem muito mais do que eles. E por acaso os
ptolomeus, que sucederam ao fundador, não favoreceram
paternalmente esta cidade, como uma filha dileta? Por
acaso a fizeram prosperar com os discursos de Jesus ou
garantiram a opulência de que goza agora por meio da
doutrina dos péssimos galileus? Enfim, quando nós,
romanos, nos tornamos senhores da cidade, destituindo
os ptolomeus, que governavam mal, Augusto disse em sua
apresentação aos cidadãos: “Habitantes de Alexandria,
considero que sua cidade não é responsável pelo que
aconteceu, por respeito ao grande deus Serápides...”
Não vou falar de todos os favores concedidos
especialmente à sua cidade pelos deuses do Olimpo, para
não me alongar demais. Mas como poderiam ignorar os
favores dispensados pelo deuses, a cada dia, não a uns
poucos homens ou a uma única estirpe ou cidade, mas a
todo o inteiro mundo? Não foram capazes, talvez, de
perceber sozinhos o raio que emana do Sol? De saber que
a primavera e o inverno provêm dele? Que dele emana a
vida de todos os animais e plantas? Não compreenderam
quantos bens nos dá a Lua, que nasce dele e que ele
nomeou sua ministra para tudo? E ousam não se inclinar
diante dos deuses? Creem realmente que este Jesus, que
nem vocês nem seus pais jamais viram, deve ser Verbo de
Deus para vocês? E aquele Sol que todo o gênero
humano, desde a eternidade, contempla e venera e que,
venerado, favorece; refiro-me ao grande Sol, imagem viva
e animada e racional e operosa do Todo intelectivo...
O texto interrompe-se neste ponto e perdemos o
fechamento do entusiástico hino. Mas continua depois:
Mas vocês não estarão se desviando do reto caminho ao
acreditar em mim, que o percorro neste meu vigésimo
ano e já lá se vão doze anos, com a ajuda dos deuses.
Se lhes for grato permitir que eu os convença, terão
grandes alegrias. Mas se for sua preferência restar fiéis à
tolice e aos ensinamentos dos maus, entendam-se entre
vocês, mas não me peçam Atanásio. Já são muitos os
discípulos dele que podem confortar seus ouvidos, se
vocês sentem o apelo ou a necessidade de palavras
ímpias. Antes se limitasse a Atanásio a perversidade de
seu ímpio ensinamento, mas vocês têm abundância de
pessoas capazes e não terão problemas de escolha.
Qualquer um escolhido na multidão não será inferior
àquele que desejam no ensino das Escrituras. Mas se
amam Atanásio por alguma outra habilidade (pois dizem
que o homem é um intrigante) e por isto dirigem a mim
estas súplicas, fiquem sabendo que o expulso da cidade
justamente por este motivo: um homem que quer meter
as mãos em tudo é, por natureza, inapto para governar,
ainda mais se não é nem mesmo um homem, mas um
homúnculo vil, como este grande homem de vocês, que
pensa que está sempre em perigo de vida e é causa de
contínuas desordens. Portanto, para impedir que isto
aconteça, decretamos inicialmente que saísse da cidade e
agora, de todo o Egito.
Que isto seja anunciado aos nossos cidadãos de
Alexandria.36
Atanásio não opôs resistência ao decreto de Juliano.
Aquele homem experimentado e sagaz, que atravessou
tantos outros perigos e aventuras, compreendeu a
inutilidade da tentativa de Juliano. De partida de
Alexandria, disse à multidão chorosa que o cercava:
“Tenham coragem. É só uma nuvenzinha, logo vai
passar”.37 Admirável vaticínio, pronunciado no momento
em que Juliano reinava em toda a sua potência juvenil.
Revela, com a calma e serena segurança da palavra, a
grandeza da mente de um homem insigne, bem mais que as
hiperbólicas invectivas de um Gregório ou de um Cirilo.
O manifesto de Juliano é singularmente interessante e
precioso para compreender o espírito e as intenções do
imperador. Com certeza, não é desprovido de habilidade o
artifício com o qual o escritor tenta envergonhar os
alexandrinos, que se submetem ao jogo dos descendentes
dos judeus, eles que, outrora, haviam subjugado o povo
judeu. Para ele, é profundamente espantoso que os
alexandrinos possam ter mergulhado numa debilidade
intelectual tão grande que levam a sério uma figura
completamente desprovida de importância histórica como a
de Jesus, que nem eles nem seus pais jamais tinham visto,
enquanto contemplam diariamente o Sol, que dá vida e
representa visivelmente o deus supremo! Como Juliano
tinha realmente se fechado para o fascínio do Evangelho, a
história de Jesus não passava de uma fábula composta por
elementos mal costurados entre si e, a bem dizer,
essencialmente irracionais. Achava surpreendente que
pudesse existir uma opinião diferente da sua. Contudo,
apesar da convicção, que se revela no hino ao Sol com
palavras sentidas que são prova de sua sinceridade, Juliano
não se afasta da tolerância. Deplora a cegueira dos
alexandrinos e, por razões de antipatia pessoal, não quer
que Atanásio exerça influência sobre eles, mas não impede
que os cristãos de Alexandria sejam educados em sua
doutrina pelos vários professores de que podem dispor.
Considera realmente inconcebível e doloroso que os
ouvidos dos alexandrinos anseiem pelo estímulo da palavra
cristã, mas, se é assim, que dela disponham ao bel-prazer,
com a única proibição de ouvir a palavra de Atanásio. Esta
feroz antipatia de Juliano pelo bispo de Alexandria só serve
para honrar este último. É uma demonstração viva do valor
singular do insigne personagem. Há em Juliano,
certamente, a ira do militante que vê diante de si um
inimigo mais forte, que não consegue submeter. O
assassinato do bispo Jorge, que parecia ser um sintoma do
retorno dos alexandrinos ao helenismo, só serviu para
devolver a Atanásio a sua antiga potência e, portanto, para
tornar mais eficaz a propaganda cristã. Era natural e
humano que Juliano ficasse incomodado com essa situação
e abandonasse a moderação. Mas ao dar à sua cólera o
caráter de uma luta pessoal, Juliano demonstrou que nem o
insucesso e o desengano eram capazes de levá-lo a uma
perseguição sistemática e geral.
A argumentação de Juliano neste manifesto aos
alexandrinos é bem característica de seu pensamento. A
civilização antiga, com todas as suas glórias, tradições e
recordações era, aos seus olhos, um bem tão precioso que
ele não consegue compreender como é possível aceitar
uma doutrina que não a reconhece, que tem origens
estranhas a elas e que, se for vitoriosa, acabará por
arruiná-la e destruí-la. Como? A tradição será interrompída,
a história encerrada? Todo o esplendor passado será
cancelado para sempre? E cancelado pela intrusão de um
elemento estrangeiro? Quem seria capaz de comparar o
valor deste elemento estrangeiro com a grandeza das
memórias pátrias? Para demonstrar a modéstia desprezível
da origem da nova doutrina, Juliano só chama os cristãos
de galileus. Seria possível que uma força capaz de
combater e vencer as mais luminosas e poderosas tradições
viesse de um pequeno, ignorado e bárbaro cantinho do
imenso Império? Seria possível que os galileus fossem mais
sábios e mais fortes que os gregos? Seria possível que os
alexandrinos esquecessem Alexandre, os ptolomeus, os
romanos, Serápides, Ísis e, enfim, todo aquele complexo de
homens, leis, religião, história sobre o qual se ergueram a
sua civilização, a sua riqueza, a sua boa fortuna? Por que
abandonam tão diletas, grandes e gloriosas memórias para
seguir o chamado de Jesus? De um homem nascido na
Galileia, realmente estrangeiro ao mundo grego e romano,
de um homem obscuro, conhecido tão somente por incertas
e confusas notícias, sem sabedoria, sem força que se deixou
matar miseravelmente? Isto não é a maior das loucuras?
Esta argumentação de Juliano, que podia parecer válida
para quem não acreditava no cristianismo, não tinha valor
algum para quem já acreditava. Crer não é fruto de
raciocínio, conveniência ou oportunidade. A fé nasce de um
impulso espontâneo da alma humana, que sente a
necessidade de satisfazer certas aspirações especiais. Não
há raciocínio capaz de apagá-la depois que ela nasceu.
Todas estas lembranças, estes apelos de Juliano a um
passado glorioso caíam no vazio, sem conseguir tocar as
almas que já tivessem sentido o fascínio do cristianismo e
que, atraídas por outros ideiais, corriam para onde eles
poderiam ser satisfeitos. Além disso, já era tarde demais.
Um discurso como o de Juliano teria sido entendido e talvez
tivesse alguma eficácia se tivesse sido pronunciado por um
Marco Aurélio, dois séculos antes, quando o paganismo
ainda vivia em toda a sua majestade e o cristianismo
acabava de nascer. Mas na metade do século IV, quando o
cristiniamo já havia sido oficialmente reconhecido e
dominava meio mundo, este discurso devia ter o efeito de
uma voz fraca e muito distante, sem a força suficiente para
fazer eco nas almas daqueles que a ouviam.

No duelo com Atanásio, o comportamento de Juliano, por


mais que possa ser, em parte, desculpado, pecou por
excesso, assumindo o aspecto de uma perseguição
individual. Um outro caso em que Juliano deixou
transparecer um ódio capaz de arrastá-lo para a injustiça
foi o do bispo de Bosra. Sabemos que um dos primeiros
atos de Juliano foi chamar de volta os bispos eLivross por
Constâncio, que pertenciam, em sua grande maioria, ao
partido atanasiano. E observamos também que, sob aquele
decreto, que em si era certamente um ato de tolerância,
Juliano alimentava o desejo e a esperança de que o contato
entre os chefes dos dois partidos que dividiam o
cristianismo reacendesse um incêndio de discórdia capaz
de consumir a potência da Igreja. As previsões do arguto
imperador logo se verificaram. A volta dos eLivross foi o
sinal para a explosão de uma nova tempestade. Ora, Juliano
quis aproveitar esta tempestade para seus próprios fins. Na
luta contra o cristianismo, o fundamental era sobretudo
abalar a influência dos bispos. Reduzindo esta influência,
seria mais fácil dominar a plebe. E suas discórdias internas
lhe sugeriram um artifício, do qual a carta aos cidadãos de
Bosra é um curioso exemplo. O imperador dirigiu-se à
população cristã da cidade para declarar que não a
considerava responsável pelas desordens que ali
ocorreram. A responsabilidade era toda dos bispos que
inflamam os espíritos cegos e ignaros. Mas ninguém deve
pensar que os bispos foram movidos pelo zelo religioso.
Nada disso. Se fosse assim, deveriam estar contentes com a
clemência e a imparcialidade de Juliano, que restituiu a paz
à Igreja. Mas a verdade é que a clemência e a
imparcialidade tiraram deles e de todo o clero o meio usado
para abusar de sua posição, para enriquecer à custa dos
outros, para cometer arbitrariedades, para apropriar-se
daquilo que pertencia aos rivais. As populações cristãs
deviam abrir os olhos para não cair na armadilha criada
pelos bispos para transformá-las em instrumento de sua
sórdida cobiça. Contudo, este artifício da polêmica imperial
dificilmente poderia ser aplicado a Tito, bispo de Bosra,
que realizava uma obra de pacificação e que, pensando
ingenuamente em agradar Juliano, escreveu-lhe, contando
que, embora os cristãos fossem a maioria da população, ele
havia conseguido impedi-los, com suas exortações, de
causar dano a quem quer que fosse. Esta frase imprudente
forneceu ao imperador, perfidamente hábil, o mote para
tentar arruinar o pobre bispo. Em sua carta, ele cita a frase
isolada, extrai a conclusão de que o bispo estava querendo
assumir todo o mérito pela tranquilidade dos cidadãos de
Bosra, os quais, se não fosse ele, teriam criado tumulto e
obedecido de má vontade às suas determinações. Tito,
conclui Juliano, é um caluniador e o povo de Bosra deveria
expulsá-lo de sua cidade.
Reportemos esta curiosa carta, da qual já conhecemos as
exortações à tolerância religiosa:
Aos habitantes de Bosra
Pensei que os chefes dos galileus sentiriam mais gratidão
por mim que por aqueles que me precederam na regência
do Império, pois, quando eles reinavam, muitos deles
foram eLivross, perseguidos, presos, e multidões inteiras
dos ditos hereges foram mortas, assim como aldeias
inteiras foram destruídas desde as fundações em
Samósata, Cízico, Papfagônia, Bitínia, Galácia e em
muitos outros lugares. Agora, sob o meu Império, ocorre
o oposto. Os eLivross puderam retornar, e aqueles cujos
bens haviam sido confiscados receberam-nos de volta por
efeito de uma nossa lei. Pois bem, eles chegaram a um tal
excesso de fúria e estupidez que, no momento em que
não puderam mais tiranizar nem continuar as lutas que
explodiram entre eles depois que reprimiram os
adoradores dos deuses, deram de atirar pedras,
enfurecidos, e ousaram agitar as multidões e criar
tumulto, ímpios diante dos deuses, rebeldes a nossos
decretos, que, no entanto, foram inspirados por tanta
benevolência. Não permitimos que ninguém seja
arrastado contra a vontade para os altares e declaramos
abertamente que se alguém quiser participar
espontaneamente de nossos ritos e de nossas libações
deve antes purificar-se e orar aos deuses punitivos.
Estamos muito distantes de permitir que qualquer um
destes ímpios queira ou suponha que pode estar presente
em nossos ritos sagrados antes de ter purificado a alma
com preces aos deuses e o corpo com as lustrações da lei.
Ora, é manifesto que as turbas, enganadas pelo clero,
agitam-se justamente porque tiramos dele a impunidade.
De fato, àqueles que exerciam a tirania, não basta não
pagar o preço do mal que fizeram, pois querendo também
reaver o antigo poder, agora que não podem mais atuar
como juízes e escrever testamentos, apropriando-se de
heranças alheias e tomando tudo para si, incitam todo
tipo de desordem e, deitando, por assim dizer, lenha na
fogueira, ousam somar aos males antigos males maiores,
arrastando as multidões à discórdia. Decidi, portanto,
proclamar e tornar manifesto a todos, com este decreto, o
dever de não fazer tumulto junto com o clero, de não se
deixar persuadir a jogar pedras e a desobedecer os
magistrados. Quanto ao resto, a todos é permitido reunir-
se o quanto quiserem e fazer as preces que bem
desejarem. Mas que não se deixem envolver em tumultos,
se não quiserem sofrer a devida pena.
Creio oportuno declarar isto, especialmente à cidade de
Bosra, pela circunstância de que o bispo Tito e seus
clérigos acusam a população, num memorial que me
enviaram, de ser afeita à desordem, embora eles a
exortassem a não fazer tumulto. Eis a frase escrita neste
memorial, que acrescento a meu decreto: “Embora os
cristãos igualem os gregos no número, contidos por
nossas exortações eles não perturbaram ninguém, em
nada.” É assim que o bispo fala de vocês. Como veem, ele
diz que o bom comportamento não vem da índole de
vocês, mas do fato de serem, a contragosto, contidos por
suas exortações. Portanto, expulsem-no da cidade por
iniciativa própria, como alguém que os acusou, e tratem
de entrar, todos juntos, num acordo para que não
ocorram mais confrontos nem violências.
Juliano encerra a carta com os chamamentos à tolerância
recíproca que já conhecemos.38 Mas a sabedoria de seus
conselhos não impede que a conduta de Juliano com Tito
seja ainda mais grave e reprovável do que foi com Atanásio.
Com este último, era uma guerra aberta e, do ponto de
vista de Juliano, uma guerra justificada. Já o artifício usado
contra o bispo de Bosra é de uma hipocrisia que mancha
seu caráter. Nesta carta, é interessante e instrutiva a
descrição dos costumes do clero cristão, completamente
corrompido pela posição dominante em que se encontrava.
A sede de enriquecimento rápido, a ânsia de poder, a
tendência à intriga eram tão evidentes e gerais que o
polemista pagão podia encontrar aí argumento,
sustentação e justificativa para a guerra que movia contra
o cristianismo. Juliano coloca a questão com muita
habilidade:
Dei à igreja dos galileus incontestáveis benefícios.
Chamei de volta os eLivross, devolvi os bens confiscados,
tentei dar fim às violências que a dilaceravam. Pois bem,
em vez de encontrar gratidão, o resultado que colhi foi
ser mais odiado por todos, sem distinção, que meu
predecessor que, no entanto, havia perseguido
ferozmente uma parte da Igreja em prol da outra. Isso
porque os chefes daquela Igreja não desejam paz e
respeito mútuo, mas impunidade na prepotência e na
arbitrariedade. Meu sistema de governo, que mira a
ordem, a tolerância das opiniões e das crenças e a
obediência integral às leis, é odioso para todos os que se
sentem de mãos atadas e preferem o arbítrio e a violência
porque através deles satisfazem seu interesses.

Tinham se passado apenas sessenta anos da perseguição de


Diocleciano, época em que o cristianismo ferido abrigava
em seu seio todo o heroísmo de que o gênero humano é
capaz. Mas eis que algumas poucas décadas de segurança
e prosperidade conseguiram reduzi-lo a uma instituição tão
cheia de vícios, tão aberta aos abusos, tão dominada pelas
paixões do lucro e do poder que permite a qualquer um que
queira combatê-la posar como defensor dos fracos,
vingador da moral ofendida. Nas palavras de Juliano,
percebe-se um artifício de malevolência, mas elas deviam
ter uma base de verdade, pois, do contrário, a
argumentação do polemista teria se mostrado ineficaz. O
ideal divino do cristianismo primitivo, moldando-se às
formas da realidade, degradou-se miseravelmente,
inoculando-se os vícios que devia extirpar.

Creio ter demonstrado, com apoio de documentos, que a


perseguição de Juliano ou só aconteceu na fantasia dos
escritores que o combatiam ou reduziu-se a ações de
defesa, nem sempre corretas e leais, é verdade, e talvez
exageradas, às vezes, pelo zelo intempestivo de algum
governador. Mas existe um ato de Juliano, um ato autêntico
que despertou a mais ardente indignação dos cristãos
contemporâneos e ainda hoje é considerado por muitos
historiadores como prova da intolerância perseguidora do
apóstata imperial. Este ato é a promulgação da lei com a
qual ele vetava aos professores cristãos o ensino de letras
gregas nas escolas públicas. A imensa importância dada a
este ato, que afinal tinha apenas um caráter administrativo,
mostra como deviam ser leves as preocupações com a
suposta violência do novo perseguidor. Mas o movimento
de Juliano é sintomático de uma orientação de pensamento
e de disposição que aparece pela primeira vez no mundo
antigo e daria origem à censura literária. Já vimos que
Juliano recomendava a seus sacerdotes que não lessem
Epicuro. Pois bem, com seu decreto, ele quis impedir que
os livros sagrados do politeísmo fossem lidos e explicados,
na escola, por professores incapazes, a seu ver, de
compreender sua inspiração e seu significado.
Ora, é justamente por ser sintomático de um novo
comportamento do espírito humano que devemos examinar
o ato de Juliano em sua origem e em sua essência, tentando
formar um juízo preciso a seu respeito, baseado no
conhecimento objetivo das condições nas quais ele
apareceu. E devemos observar, antes de tudo, a posição
assumida pela religião na sociedade greco-romana do
século IV, depois do Édito de Milão, promulgado por
Constantino.
O édito, datado de 313, com o qual Constantino
reconhece, junto com o colega Licínio, a existência legal do
cristianismo, é um documento que honraria profundamente
o espírito filosófico do imperador se todo o seu
comportamento sucessivo não demonstrasse que não era
produto de um pensamento meditado, mas um simples
movimento de oportunismo político.
O Império Romano, como todos os Estados do mundo
antigo, tinha uma religião nacional, cujos atos eram a
sanção, a consagração de sua existência. Mas o politeísmo,
justamente porque afirmava a multiplicidade dos deuses,
não achava difícil admitir, junto com os deuses nacionais,
também os estrangeiros, desde que seu culto cumprisse os
atos externos reconhecidos pela autoridade do Estado. O
cristianismo foi combatido justamente porque vetava que
seus fiéis cumprissem estes atos, sendo visto como uma
instituição politicamente subversiva. Ora, o que é
propriamente singular e original no decreto de Constantino
não é a proclamação do princípio de tolerância para todos
os cultos, pois, como dissemos, a tolerância fazia parte da
própria essência do politeísmo, mas sim o abandono
explícito, declarado, absoluto de qualquer religião de
Estado. O Estado, para Constantino, deve contentar-se
puramente com o deísmo, um deísmo tão racional que as
modalidades do culto que os homens rendem a Deus lhe
são completamente indiferentes. E é justamente porque
Constantino quer que este Deus seja louvado por todos os
homens, que sua lei afirma, no interesse do Império e do
imperador, a completa liberdade de culto e abandona
qualquer pretensão de imposição de ritos oficiais e
determinados. Quaisquer que sejam as formas externas,
todas as preces são aceitas por Deus. O Estado não tem
nenhuma razão para preferir, para assumir como própria
uma forma e não outra. O que importa ao Estado e ao
imperador não é que os homens rezem de determinada
forma, mas que rezem. Qualquer laço entre o Estado e
determinada religião é completamente rompido. O princípio
inspirador do decreto de Constantino é propriamente Igreja
livre em Estado livre. Constantino escreveu aos
governadores das províncias
Demos aos cristãos e a todos livre escolha para seguir o
culto que preferirem, para que a divindade que está no
céu possa ser propícia a nós e a todos os que estão sob
nosso domínio. Para um raciocínio são e retíssimo, somos
induzidos a decretar que não seja negada a ninguém a
faculdade de seguir as doutrinas e o culto dos cristãos;
queremos que seja permitido que cada um se dedique à
religião que lhe parecer conveniente, de modo que a
divindidade possa nos assistir em qualquer conjuntutra
com sua habitual benevolência. [...] Recomendamos
vivamente o nosso decreto à tua atenção, para que possas
compreender nossa vontade de dar aos cristãos uma livre
e absoluta faculdade de seguir o culto deles. Pois assim
como damos esta liberdade a eles, verás que a mesma
liberdade deve ser dada a qualquer outro que queira
participar dos atos da religião que lhe é própria. É uma
consequência manifesta da paz dos nossos tempos que
cada um seja livre para escolher e venerar a divindade
que preferir. Por isto, desejamos que nenhum exercício de
culto e nenhuma religião tenha de vocês o menor
impedimento. [...] Seguindo esta via, obteremos que a
providência divina, de cujos favores já desfrutamos em
muitas ocasiões, nos seja seguramente e para sempre
propícia.39
O decreto de Constantino é, em seu princípio inspirador,
um dos atos mais racionais que já saíram do Poder
Legislativo. Podemos dizer que a legislação de todos os
tempos e de todos os povos nunca nunca conseguiu ir além.
Nunca saberemos de onde Constantino tirou a inspiração
para este estranho decreto que, enquanto reconhecia ao
cristianismo o direito de viver e de exercer seu próprio
culto, negava a afirmação daquilo que constitui o seu
princípio essencial, a afirmação de uma verdade dogmática
e absoluta. A existência, entre os pagãos fiéis à idolatria e à
superstição do politeísmo e os cristãos que, com sua
religião metafísica, estavam criando uma nova idolatria e
uma nova superstição, de um partido que militava sob a
bandeira de um cristianismo racionalmente deísta, talvez
possa ser deduzida a partir das palavras de Amiano. Ao
ridicularizar a mania teológica de Constâncio, nosso
historiador diz que ele confundia com uma superstição
insípida a religião cristã absolutam et simplicem.40
Estes dois epítetos que, na boca de um politeísta soavam
como um elogio, parecem acenar a um cristianismo sem
dogmas e sem ritos, tolerante em sua pura afirmação
deísta, um cristianismo estoico, cuja primeira profissão de
fé encontramos no Otávio, de Minúcio Félix. O decreto de
Constantino deve ter nascido nesse ambiente de religião
racional e, portanto, oposta ao dogmatismo invasivo. Mas a
rapidez com que Constantino abandonou este seu sereno e
iluminado racionalismo demonstra que não se tratava da
manifestação de uma convicção formada em sua
consciência, mas de algo trazido por conselhos alheios. De
fato, assim que percebeu que, em suas mãos, o cristianismo
podia ser uma força eficaz, Constantino apressou-se em
rasgar seu admirável decreto e, descendo das alturas de
seu deísmo racional, deu ao cristianismo, ora ortodoxo, ora
arianista, o valor de uma verdadeira religião de Estado, a
qual, justamente por não tirar sua razão de ser de uma
necessidade política, mas de uma verdade dogmática,
excluía e perseguia as outras. Constantino escreveu: “Não
importa o modo como os homens rezam, desde que rezem.”
No cristianismo que ele reconheceu, o modo logo se
transformou na condição para rezar. Quem não rezasse de
determinada forma não podia mais rezar. Seus filhos
mergulharam neste movimento que teve depois, com
Teodósio, sua sanção solene e definitiva.
Embora se declarasse tolerante em matéria religiosa,
Juliano também não podia assumir o ponto de vista do
decreto de Constantino, pois também queria instaurar uma
religião de Estado, que para ele era o paganismo, ao qual
dava – esta é a novidade de sua tentativa – um valor
dogmático. Juliano era um homem de seu tempo. Não se
podia esperar que ressuscitasse um decreto que não foi
seguido nem por seu próprio autor, para o qual ele não
passou de uma declaração completamente teórica de
princípios, jamais uma norma de conduta prática. Juliano
queria opor ao cristianismo, reconhecido como religião
essencialmente dogmática, uma religião que não fosse
menos dogmática. Daí decorre a necessidade de impedir
que se difundisse algo que para ele era um erro, sobretudo
quando este erro utiliza os meios fornecidos pelo Estado.
Sua lei para a educação inspirava-se nesta ordem de ideias
e era um dos instrumentos de defesa que ele pretendia
usar em sua luta religiosa. Vamos examiná-la atentamente
para ver se, dado o ponto de partida de Juliano, ela pode
ser considerada intolerante ou tirânica.

Para deixar bem claros os termos da questão, começaremos


reproduzindo literalmente a famosa lei promulgada por
Juliano no ano de 362, poucos meses antes de partir de
Constantinopla para Antióquia, a fim de preparar-se para a
expedição na Pérsia, na qual morreria heroicamente. A lei
diz o seguinte:
Convém que os professores das escolas sejam excelentes
primeiramente nos costumes, depois na eloquência. Ora,
como não posso estar presente em cada cidade, ordeno
que cada um que pretenda se dedicar ao ensino não
mergulhe de repente e temerariamente na profissão [non
repente nec tenere prosdiliat ad hoc munus], mas que,
depois de aprovado pelo julgamento da autoridade,
obtenha um decreto das autoridades curiais [hoje
diríamos do Conselho Comunal], ao qual não falte o
consenso dos cidadãos notáveis. Este decreto terá de ser
comunicado a mim para exame, para que o eleito se
apresente nas escolas das cidades dignificado, através do
nosso julgamento, por um título mais alto de honra [hoc
decretum ad me tractandum refertur ut altiore quodam
honore nostro judicio studiis civitatum accedat].
Antes de tudo, é importante observar que a lei de Juliano
refere-se exclusivamente às escolas municipais, que eram,
aliás, as escolas públicas. No século IV, o ensino oficial
estava quase inteiramente a cargo das cidades, que
mantinham as escolas e nomeavam os professores por meio
de seus conselhos. Temos infinitas provas disso,41 mas para
demonstrá-lo bastaria a autobiografia de Libânio, na qual o
famoso professor de retórica narra suas contínuas
peregrinações entre as escolas de Constantinopla,
Nicomédia e Antióquia e reproduz seus discursos, falando
frequentemente dos confrontos sempre ressurgentes entre
as autoridades citadinas e os professores, cujos salários as
ditas autoridades regateavam, coisa que, aliás, não
acontecia só no século IV. Todos sabem que aquele jovem
ardente de espírito e engenho, que mais tarde se tornou
Santo Agostinho, veio para Milão justamente porque as
autoridades citadinas do lugar, tendo que escolher um
professor de retórica e sem encontrar na cidade nenhum
que fosse de seu agrado, dirigiram-se a Símaco, prefeito da
urbe de Roma, ut illi civitati rhectoricae magister
provideretur, e Simaco enviou Agostinho.
Contudo, como no século IV não existiam estas sutis
distinções de competência que complicam o organismo de
nossa sociedade, o fato de as escolas serem mantidas pelas
cidades e as nomeações serem feitas pelas autoridades
municipais não impedia que, na teoria e no direito, elas
fossem escolas das cidades e ao mesmo tempo escolas de
Estado e que a eleição do professor dependesse
formalmente, por assim dizer, da autoridade imperial. Mas
este direito havia caído em desuso e esquecimento, de
modo que os imperadores só se envolviam com as escolas
em ocasiões extraordinárias e para fatos completamente
excepcionais. Ora, Juliano, o homem mais culto de seu
tempo, queria reassumir a responsabilidade pela instrução
pública, reconvocar os conselhos das cidades a um rigoroso
exercício de seus deveres e não apenas reafirmar, mas usar
o próprio direito de revisar todas as eleições para o
magistério que estes conselhos fizessem.
Até aqui não parece haver nada de singular. Se esta lei
mostra, mais uma vez, a mania de intrometer-se em tudo –
um dos defeitos de Juliano –, ela, em si, só revela uma
louvável preocupação com a educação pública. Mas este é
bem o caso de dizer que o veneno está na cauda. O
imperador reservava para si a revisão das nomeações dos
professores para, segundo a lei, investir os docentes de um
título mais alto de honra. Na realidade, porém, a coisa era
menos inocente. Sob esta disposição de ordem geral,
existia uma intenção precisa e determinada. Juliano
pretendia atingir um objetivo bem mais importante que a
reorganização genérica da administração escolar. A revisão
das nomeações dos professores, que ele reservava
explicitamente para si, seria um meio para excluir do
magistério os professores cristãos. Juliano não fez disso um
mistério. Ao promulgar a lei, acrescentou uma espécie de
circular, que chegou até nós intacta, na qual revela seu
objetivo abertamente e trata, ao mesmo tempo, de explicá-
lo, comentá-lo, justificá-lo com uma série de raciocínios
engenhosos e sutis que vale a pena examinar e discutir,
pois conservam, como se diria hoje, um sabor de
atualidade.
Porém, antes de entrar no exame dos argumentos de
Juliano, vejamos quais eram as condições que levaram
nosso imperador a promulgar sua lei. Um pouco mais de
meio século tinha se passado desde os dias da terrível
perseguição de Diocleciano, que ensanguentou o
cristianismo, quando um novo imperador, inimigo acérrimo
do cristianismo, mais do que Diocleciano havia sido porque
seu ódio não era inspirado por razões de Estado, mas por
convicções filosóficas, não encontrou nada melhor a fazer
para erradicar a nova religião que fechar as escolas
públicas aos professores cristãos. E eis que os homens mais
ilustres do cristianismo insurgiram-se, com uma indignação
ardente e quase feroz, contra um procedimento que, na
verdade, deveria parecer bastante inócuo para gente que
ainda podia recordar os métodos e as condenações dos
perseguidores anteriores. A verdade é que, entre o Édito de
Milão e a posse de Juliano, pela mão de Constantino e de
seus filhos, o cristianismo tornou-se dominante e
conquistou todo o mundo civil. Se o campo ainda resistia,
conservando tenazmente o culto das antigas divindades,
que permeava a vida dos camponeses, a maioria das
cidades, sobretudo no Oriente, já estavam convertidas e,
com o fim da luta entre cristãos e pagãos, eram palco das
lutas internas do cristianismo, entre arianistas e
atanasianos. Contudo, ao ser reconhecido e transformar-se
na religião dominante da civilização helênica, o
cristianismo teve necessariamente que helenizar-se. No
ambiente de uma sociedade que, mesmo mergulhando no
abismo da decadência, ainda vivia apenas das memórias e
dos hábitos do pensamento antigo e não sabia usar outras
formas senão as que os antigos haviam transmitido, era
fatal que a flor palestina da divina simplicidade evangélica
se perdesse e que a propaganda cristã se cobrisse com as
vestes helênicas daqueles mesmos escritores que, do ponto
de vista religioso, ela mesma combatia. Este movimento
através do qual o cristianismo se adaptava à cultura
helênica, em meio à qual deveria viver e difundir-se, logo
se tornou rápido e intenso. As escolas de retórica enchiam-
se de alunos cristãos, e professores cristãos ocupavam as
cátedras de eloquência; nos bancos da própria escola de
Atenas, a mais ilustre faculdade de letras do século IV,
alunos como Gregório e Basílio sentavam-se ao lado do
príncipe Juliano. Os Concílios, que se sucediam sem cessar,
tentando resolver a terrível divergência que dilacerava a
Igreja, eram um grande ginásio onde se lutava a golpes de
eloquência. Em suma, o cristianismo helenizou-se com um
ímpeto e uma celeridade que demonstravam que, nesta
revolução literária, ele estava sendo guiado pelo instinto de
luta pela vida. Eu diria até que a cultura helênica refloria
nele, pois ele trazia um ímpeto juvenil que certamente não
existia mais na decrépita civilização do mundo antigo. É
verdade que a literatura grega decaía mais lentamente que
a literatura latina e, no século IV, ainda tinha algum brilho:
nos discursos de Libânio e sobretudo nos escritos de
Juliano, em suas cartas, em suas sátiras, em algumas de
suas orações, encontram-se, por vezes, páginas admiráveis.
Porém, na literatura do cristianismo helenizado os voos têm
maior alcance, a vida é bem mais intensa. Se compararmos
um dos discursos em que Libânio louva o seu adorado
Juliano com uma das duas terríveis orações em que
Gregório de Nazianzo se lança contra o odiado imperador, é
inegável que, mesmo do ponto de vista literário, a vitória
cabe ao polemista cristão contra o retórico pagão. E se
recordarmos a longa fila de oradores e escritores
eclesiásticos que, de Atanásio a Santo Agostinho, encheram
o século IV com suas palavras ardentes, logo reconhecemos
que o helenismo era um elemento constitutivo da obra
deles e um instrumento indispensável da pregação cristã.
Juliano enfrentava, portanto, uma religião poderosamente
constituída justamente porque soubera helenizar-se,
moldando-se nas formas do pensamento antigo. Mesmo que
quisesse, não poderia combatê-la com a perseguição. A
perseguição romana contra o cristianismo não foi, de Nero
a Diocleciano, mais que uma coercitio, um procedimento de
polícia, uma medida de ordem pública contra uma seita que
era vista como perigosa. Mas estas medidas só podem ser
tomadas por uma maioria contra uma minoria. No dia em
que a minoria transforma-se em maioria, os papéis
normalmente se invertem e os perseguidos viram
perseguidores. No cristianismo, esta inversão já tinha
começado com os filhos de Constantino. Portanto, não
podendo mais perseguir os cristãos que constituíam, se não
a maioria, pelo menos a metade de seus súditos, Juliano
meteu na cabeça que iria convencê-los amistosamente,
persuadi-los com exemplos e com argumentos a voltar ao
antigo. A partir destas ideias, começou a organizar um
sacerdócio pagão que vencesse o sacerdócio cristão em
virtude e em zelo, a escrever, ele mesmo, tratados e
discursos de teologia, a compor preces fervorosas, a
espalhar, se me permitem a palavra, pastorais cheias de
bons conselhos, que revelavam uma tendência que hoje
chamaríamos de carolice. No fundo, Juliano tinha toda a
disposição necessária para ser um cristão. Mas as terríveis
experiências de sua infância, a ameaça contínua de ser
trucidado nos anos da primeira juventude, a educação
helênica que recebeu de seu primeiro preceptor, em
Constantinopla, a ação dos professores em meio aos quais
viveu mais tarde, em Nicomédia, o espetáculo desolador da
corte cristã de Constâncio, o antagonismo natural em
relação ao primo, no qual ele reconhecia o assassino do pai,
do irmão e de seus outros parentes, a corrupção do clero
arianista que estava a seu lado e, finalmente, um
sentimento vivíssimo da cultura e da arte gregas fecharam
sua mente para a atração que o cristianismo poderia
exercer sobre um espírito elevado e aberto como o seu.
Dominando como nenhum outro a literatura cristã, que
examinava com olhos de inimigo, Juliano preparou-se para
persuadir o mundo de que o cristianismo apoiava-se em
bases falsas e para reconduzi-lo ao politeísmo, mas a um
politeísmo reformado metafisicamente segundo as
doutrinas simbólicas do neoplatonismo, moral e
disciplinarmente segundo as regras que absorvia no
reservatório daquela mesma religião que pretendia
destruir.
Apaixonado pela metafísica teúrgica que Jâmblico e seus
alunos promoveram, Juliano acreditava na verdade de um
politeísmo transformado num místico simbolismo. Assim, os
contos da mitologia helênica transformavam-se numa série
de símbolos sagrados. Homero e Hesíodo eram para ele o
que a Bíblia era para os cristãos. Estava, portanto,
convencido de que, lidos e estudados com amor e sem
preconceitos hostis, seus livros exerceriam uma ação
irresistível e seriam o mais eficiente dos instrumentos de
reconversão ao antigo. Contudo, era forçoso constatar que
a leitura destes livros não representava uma barreira à
invasão do cristianismo. Mas isso acontece por quê? Juliano
respondeu: “Acontece porque, nas escolas públicas, os
livros sagrados do politeísmo estão nas mãos de
professores cristãos, que não os compreendem, cuja
conduta fora das escolas está em contradição com eles ou
que os utilizam como argumento de zombaria e ofensa.” E
concluiu que, entre as medidas que precisava tomar, a mais
eficaz e imperiosa era afastar a juventude dos efeitos desta
perversão. Decidiu, portanto, impedir o acesso dos
professores cristãos às catedras das escolas. Para isso,
promulgou sua lei, segundo a qual ninguém poderia
dedicar-se ao ensino público se não fosse confirmado na
profissão pelo próprio imperador, o que equivalia a dizer
que nenhum professor cristão obteria esta confirmação
obrigatória. A consequência natural da resolução de
Juliano, quando pudesse ser rigorosamente aplicada, seria
rebarbarizar o cristianismo, despi-lo daquela veste literária
com a qual se apresentava ao mundo civil para conquistá-lo
para sua doutrina. É fácil entender, portanto, a revolta do
cristianismo do século IV contra esta lei, vista como a mais
grave ofensa e o mais perigoso ataque que já havia sofrido.
Se Juliano tivesse renovado a perseguição de Diocleciano, o
cristianismo a enfrentaria sem medo, certo de encontrar
nessa luta uma nova força. Mas o movimento de Juliano,
que tentava tirar de suas mãos os instrumentos de sua
propaganda, foi motivo de grande indignação e temor. É
bem verdade que São Paulo, para quem a sabedoria do
mundo era pura tolice, teria sorrido diante de tal lei. Mas o
cristianismo estava mudado e, ao se transformar numa
potência mundana, passou a precisar das armas deste
mundo. A cultura helênica era uma arma indispensável.
Gregório escreveu:
De onde, ó mais tolo e mais celerado dos homens, te veio
o pensamento de tirar dos cristãos o uso de eloquência?
Foi Mercúrio, como tu mesmo disseste, quem o colocou
em tua mente? Foram os demônios do mal? [...] Cabe a
nós, disseste, a eloquência, cabe a nós o falar grego, a
nós, que adoramos os deuses. A vocês, a ignorância, a
grosseria, a vocês para quem toda a sabedoria cabe numa
palavra: credo!42
O historiador eclesiástico Sócrates Escolástico, escritor
ponderado e judicioso, reconhece que Juliano rejeita a
perseguição violenta e sangrenta, mas nem por isso deixa
de denominá-lo perseguidor, pois, segundo ele, aquela lei
pretendia impedir que, aprimorando a linguagem, os
cristãos pudessem responder aos argumentos dos
adversários.43 Porém, o parecer mais sintomático é o de
Amiano Marcelino. Ele, que não era cristão e nutria uma
viva admiração por Juliano, com quem tinha militado,
coloca este decreto entre as poucas coisas reprováveis
cometidas por seu imperador. E diz que é “um decreto
inclemente, que merece ser coberto por um eterno silêncio
– obruendum perenni silentio”.44
Ora, Amiano Marcelino era um excelente soldado, um
honesto e imparcial narrador, mas um espírito medíocre,
que não alimentava nenhum interesse pelas questões
religiosas. Não era cristão, mas também não era um pagão
convicto e fervoroso. Era um indiferente, que, com seu bom
senso, deplorava que um homem tão genial e valoroso
como Juliano tivesse caído na rede das disputas teológicas
e desperdiçasse em crendices fantásticas os dotes
preciosos que havia recebido. Essa opinião é interessante
justamente porque não era fruto de um juízo pessoal
ponderado, mas um eco da opinião pública, que era
predominantemente cristã e tão difundida e enérgica que
arrastava consigo até mesmo o voto de um pagão
indiferente.
A condenação lançada pelos cristãos contemporâneos
contra o decreto de Juliano foi julgada também pelos
séculos seguintes, transformando-se num veredicto
irreversível, que constitui ainda hoje um das imputações
contra o utópico imperador. Mas esta condenação,
certamente justificável do ponto de vista da apologia cristã,
seria sustentável se olhada com a serena imparcialidade do
crítico, de um ponto de vista puramenrte objetivo? Esta é a
questão que gostaria de examinar. Devemos colocar-nos no
lugar de Juliano e não esquecer que, convencido da
benignidade do politeísmo, ele pretendia restaurá-lo no
mundo. Era, portanto, natural que buscasse os meios mais
convenientes para resistir à ação invasiva de seu inimigo.
Até aqui, não me parece que se possa condená-lo. A
condenação só seria justificada se ficasse provado que
escolheu meios iníquos ou, usando os meios legítimos que
estavam à mão, ultrapassou os limites impostos pelo
respeito às opiniões alheias.
Juliano previu a acusação e escreveu sua circular para
refutá-la. A temperança da palavra e das razões só serviu
para que ganhasse a pecha de hipócrita. O pobre Juliano
não conseguia acertar uma! Quando se abandonava a um
impulso de impaciência, era tirano; quando argumentava
tranquilamente, era hipócrita. É verdade que Juliano
cultivava a paixão da argumentação, era um daqueles
homens que mexem e remexem dentro de si para
esclarecer as razões daquilo que fazem, que só ficam
satisfeitos quando conseguem provar, não apenas aos
outros, mas também a si mesmos, a racionalidade de sua
conduta. No caso que estamos examinando, ele não
precisava ser hipócrita. Nada poderia se opor à execução
de sua lei, sobre a qual não tinha que dar satisfação a
ninguém. Além do mais, suas razões, quaisquer que fossem,
não teriam valor algum para os cristãos e eram
completamente inúteis para os pagãos. Mas ele quis,
mesmo assim, fundamentar sua lei numa base racional,
cujas linhas traçou em sua famosa circular.
A afirmação fundamental de Juliano, em torno da qual
corre o fio de seu raciocínio, é que não pode haver
contradição entre o ensino dado a um homem, a sua fé e a
sua conduta e que, portanto, não era tolerável que
professores que não eram pagãos usassem em seu ensino
os livros que apresentavam os textos sagrados do
paganismo. Para Juliano, isso era uma verdadeira
monstruosidade moral.
Os professores que ensinavam a admirar Homero,
Hesíodo e outros autores da Antiguidade deviam
demonstrar, em sua prática de vida, a crença na piedade e
na sapiência daqueles autores. Se não tivessem tal
convicção, deveriam reconhecer que, por amor ao salário,
ensinavam o falso. Vamos seguir passo a passo a
argumentação de Juliano.
Acreditamos que a boa educação não está na eurritmia
entre as palavras e o discurso, mas antes na disposição
de uma mente sã que tem uma compreensão verdadeira
do bom e do mau, do honesto e do torpe. Portanto, quem
pensa de um modo e ensina de outro está tão distante de
ser um educador quanto de ser um homem honesto. Nas
pequenas coisas, o desacordo entre a convicção e a
palavra pode ser um mal tolerável, mas é sempre um mal.
Contudo, em coisas de importância suprema, se um
homem pensa de um modo e ensina justamente o oposto
do que pensa, sua conduta é semelhante à dos
mercadores, e não os honestos, mas os perversos, que
recomendam coisas que sabem que estão em más
condições, enganando e atraindo com louvores aqueles a
quem pretendem transferir coisas estragadas.
Aqui, então, Juliano estabelece o seu princípio
fundamental, segundo o qual os cristãos, tendo convicções
diversas daquelas dos autores antigos, não deviam usá-los
em seus ensinamentos, pois não podiam, de boa-fé, exortar
os alunos a admirá-los e a seguir suas doutrinas, exceto se
reconhecermos que eles são como mercadores desonestos
que tentam enganar os compradores, vendendo uma
mercadoria por outra. Para que esse deplorável confronto
não se verifique, continua Juliano, “é necessário que todos
os que se dedicam ao ensino tenham bons costumes” [por
bons costumes Juliano entende a prática do paganismo] e
tragam na alma “opiniões que não entrem em confronto
com aquelas que professam em público”. Este é um ponto
capital da argumentação de Juliano. Ele parte da aceitação
do princípio de que o professor na escola não pode
transmitir um ensinamento que não concorde com o
sentimento público e deduz que o professor não pode cair
em contradição consigo mesmo em sua conduta e em suas
opiniões pessoais.
Creio que isso é ainda mais indispensável para aqueles
que respondem pela educação da juventude e têm o ofício
de explicar os escritos dos antigos, sejam eles retóricos,
gramáticos ou, mais ainda, sofistas, pois estes, mais que
os outros, pretendem ser professores não apenas de
eloquência, mas também de moral. [...] É claro que louvo
esta aspiração a tão sublimes ensinamentos, mas louvaria
muito mais se eles não se desmentissem e se
autocondenassem, ao pensar uma coisa e ensinar outra.
Mas como? Para Homero, Hesíodo, Demóstenes,
Heródoto, Tucídides, Isócrates e Lísias, os deuses são os
guias de toda educação. Alguns deles não se viam como
ministros de Mercúrio, outros das Musas? Considero,
portanto, absurdo que aqueles que explicam suas obras
não honrem os deuses que eles honravam. Mas se isto é
absurdo para mim, não quer dizer que eles devem
dissimular diante dos jovens. Deixo-os livres para não
ensinar aquilo que não consideram bom, mas se quiserem
ensinar, que ensinem primeiro com o exemplo.
Juliano insiste na necessidade do acordo entre o
comportamento externo do professor e o ensinamento
ministrado na escola. O professor deve mostrar, com os
exercícios do culto, que acredita nos deuses em que
acreditavam os autores que apresentam aos alunos. Caso
não faça isso, ele estará implicitamente condenando os
autores que deve ensinar a admirar. Neste caso, continua
agudamente o lógico imperial, “dado que os professores
vivem da remuneração extraída dos escritos deles, devem
reconhecer a própria avidez por um ganho vergonhoso e
que estão prontos a qualquer coisa por amor a umas
poucas dracmas”.
Só que Juliano não se dirige apenas aos professores
realmente cristãos. Ele supõe que existam também
professores pagãos no coração, mas que, por medo dos
imperadores que ocupavam o trono antes dele e, de uma
forma mais geral, por razões de oportunismo,
negligenciavam o culto dos deuses. A estes ele diz:
É verdade que até hoje havia muitas razões para não ir
aos templos e que o medo que, por todo lado, pairava
sobre nós, tornava perdoável o fato de esconder a
verdadeira doutrina sobre os deuses. Mas agora que os
deuses nos devolveram a liberdade, é absurdo que os
homens deem como exemplo aquilo que não consideram
bom. Portanto, se acreditam na sabedoria daqueles que
continuam a interpretar, devem competir com eles na
devoção aos deuses. Mas se, ao contrário, estão
convencidos de seus erros a respeito da concepção de
divindade, que entrem, então, nas igrejas dos galileus
para interpretar Mateus e Lucas, cuja lei diz que quem
acredita neles deve ficar distante das cerimônias
sagradas.
Vamos parar um instante antes de passar ao
encerramento do discurso. É curioso, além de ser prova da
paixão que altera todos os juízos relativos a Juliano, que
acusem sua lei de intolerância religiosa depois de uma
declaração tão explícita e clara. Só seria intolerância se ele
tivesse proibido a propaganda cristã, criando obstáculos
para a pregação e a difusão dos livros cristãos. Mas ele diz
exatamente o oposto disso. Diz que as igrejas dos cristãos
estão abertas e exorta seus professores a procurá-las para
ler com os fiéis os livros que contêm sua doutrina. Se
pensarmos quão fervoroso era Juliano no amor pela causa
pagã, que ele era um imperador onipotente e que combatia
o cristianismo por razões dogmáticas, temos de reconhecer
que ele não só não era intolerante, como na verdade deu
um exemplo realmente maravilhoso de tolerância. Neste
ponto, estendeu a mão ao mundo moderno, passando por
cima da Idade Média e dos séculos seguintes. Este
comportamento de tolerância absoluta também aparece nas
últimas palavras de sua circular.
Quanto a mim, gostaria que seus ouvidos e sua língua se
regenerassem, como diriam vocês, por obra desta
doutrina da qual desejo, assim como desejo a todos que
pensem e ajam de acordo comigo, participar para
sempre.
Que esta seja uma lei geral para todos os educadores e
professores. E que nenhum dos jovens que quiser entrar
nas escolas seja excluído, pois não seria razoável fechar a
boa estrada para crianças que ainda não sabem para
onde ir, assim como não seria razoável conduzi-los
através do medo e contra a vontade aos costumes pátrios,
embora possa parecer lícito curá-los malgrado eles
mesmos, como se faz com os delirantes. Mas a tolerância
para com tal doença deve alcançar a todos. Quanto aos
ignorantes, devemos instruí-los e não puni-los.45
Estas palavras refutam naturalmente a acusação feita
pelos escritores eclesiásticos a Juliano, ou seja, de ter
impedido os jovens cristãos de frequentar as escolas que
ensinavam letras gregas. Juliano diz explicitamente que a
lei só diz respeito aos professores; os jovens são livres para
ir aonde quiserem. Seria, aliás, inconcebível que um
homem como Juliano, que tinha tanta confiança na eficácia
persuasiva dos escritores antigos, fechasse para os jovens
cristãos aquela que, para ele, era o caminho mais direto e
seguro para a conversão.
Depois de desembaraçar o terreno das acusações
baseadas no equívoco, examinemos o argumento
fundamental de Juliano, a fim de analisar seu valor. Ele
parte da premissa de que deve existir um acordo perfeito
entre a convicção e o ensinamento de um homem. Qualquer
pessoa racional e conscienciosa aprovaria tal premissa. Daí
ele extrai a consequência de que professores que não
acreditavam nos deuses em que Homero acreditava não
poderiam ler e explicar Homero aos alunos. Hoje, só
podemos sorrir diante desta consequência de um princípio
justo, pois levar a sério a teologia de Homero não passa
mais pela cabeça de ninguém. Admiramos o estilo e a arte
de Homero e de Virgílio e ainda nos comovemos com a
parte humana de seus poemas, mas se a parte mitológica
pode interessar ao crítico como documento literário ou
histórico, para a nossa consciência é uma coisa morta. Mas
não podemos esquecer que Juliano estava numa posição
totalmente diversa. Naquele tempo, ainda era possível
acreditar, e efetivamente se acreditava, na verdade do
politeísmo; a luta entre o politeísmo e o cristianismo
fervilhava intensamente. Tomando para si a causa
politeísta, Juliano pretendia restaurar o culto antigo. Para
ele, os livros da cultura politeísta eram textos sagrados,
sendo bastante natural que quisesse que fossem
respeitados. Podiam acontecer duas coisas: ao explicar nas
escolas os textos das antigas literaturas, os cristãos podiam
obter argumentos e oportunidades para combater o
politeísmo, doutrina fundamental daqueles textos,
ofendendo assim uma religião reconhecida pelo Estado e
pelas cidades com as armas que o Estado e as cidades lhes
forneciam; ou, para salvar seu emprego de professores por
avidez de dinheiro, por serem “sordidamente gananciosos”,
os cristãos professavam uma doutrina nas escolas e
praticavam outra fora delas, fornecendo um espetáculo que
Juliano considerava incoerente e imoral.
Mas vejam que coisa curiosa; no fundo, no fundo, o
regulamento italiano que rege a instrução religiosa nas
escolas elementares, que foi ditado por aquela inteligência
finíssima e equilibrada de Aristide Gabelli, inspira-se em
princípio idêntico ao que foi estabelecido pela primeira vez
por Juliano. O que dizia Gabelli? Dizia que, a partir do
momento em que o catecismo entra na escola, deve ser
confiado a pessoas que creem na doutrina que ele expõe e,
na falta delas, ao único professor realmente competente,
que é o sacerdote, pois pode ser discutível se o catecismo
deve entrar nas escolas públicas, mas uma vez dentro, é
coisa que afronta qualquer consciência honesta deixá-lo
cair nas mãos de alguém que faça dele um argumento de
refutação ou de escárnio. Pois bem, Juliano dizia a mesma
coisa. “Não quero que os livros nos quais, em cada página,
se fala dos deuses da Grécia e de Roma, nos quais creio e
metade do mundo ainda crê, caiam nas mãos de
professores interessados em extinguir a fé nestes deuses.”
Na verdade, acho difícil encontrar um perseguidor mais
razoável e mais suave!
É verdade que, para os cristãos do século IV, a questão se
complicava e se agravava pelo simples fato de que os livros
que Juliano queria tirar de suas mãos eram os únicos textos
usados no ensino. O mundo antigo não conhecia a ciência
no sentido moderno da palavra. Nas escolas, o ensino
reduzia-se à retórica, com a qual se aprendia a ser um
orador e a usar as formas literárias com as quais o
pensamento político, jurídico ou religioso devia revestir-se
para ser bem recebido e compreendido. Esta arte só podia
ser adquirida com base nos exemplos da literatura antiga.
Portanto, impedir seu uso pelos professores cristãos era
propriamente excluí-los, de modo absoluto, do ensino
público. Professores de grande fama, como Proerésio, em
Atenas, e Simpliciano, em Roma, recusando-se a cometer
qualquer ato de apostasia, abandonaram as escolas. Ora, é
bem verdade que Juliano deve ter ficado contente com isto,
pois era um meio para atingir seu objetivo de barbarizar o
cristianismo. Era uma sorte que, do princípio de probidade
intelectual que ele defendia, derivassem consequências de
importância substancial, que ele tinha o direito de usar
como arma de boa guerra. Ele remetia os cristãos aos livros
genuínos do cristianismo e reservava aos pagãos os livros
genuínos do paganismo. Um imperador cristão não
permitiria que o Evangelho fosse comentado e
achincalhado por um professor pagão. Juliano não queria
que uma sorte análoga coubesse a Homero ou Hesíodo por
parte dos cristãos. A tolerância religiosa não foi ferida
nisso.
Mas se a lei de Juliano não ofendia a tolerância religiosa,
seria possível dizer que a forma como ele a interpretava
não ofendia a liberdade de ensino? A questão é
delicadíssima e não pode ser resolvida a golpes de
maldições eloquentes, como faziam os antigos polemistas,
pois envolve o grande problema dos direitos e deveres do
Estado, problema que ainda vive nos dias de hoje e viverá
enquanto existir constituição social. Recordemos, antes de
mais nada, que a lei de Juliano se referia às escolas das
cidades, que representavam propriamente o ensino público,
mantido à custa de cada cidade. Dado o ordenamento
administrativo e financeiro do Império, era um verdadeiro
ensino de Estado, dependente da autoridade suprema do
imperador. Pois bem, Juliano afirmava que o professor não
podia ter opiniões que entrassem em choque com as do
Estado. Ele não se metia com as opiniões daqueles que
ensinavam nas escolas dos cristãos, mas não admitia que
professores cristãos entrassem nas escolas do Estado
politeísta, abalando suas bases. O raciocínio de Juliano
pode ser resumido assim: o Estado é um organismo criado
para exercer determinadas funções; seria absurdo querer
que o Estado permitisse que estas funções fossem
exercidas por quem as usa a fim de ofendê-lo; isso
equivaleria a um suicídio. Este raciocínio é tão vital que
resiste ainda hoje, com as modificações determinadas pelas
diversas condições da cultura. É possível encontrar
argumentos para sustentá-lo. É verdade: o pensamento
moderno, que vive no ambiente da civilização científica,
gloriosa conquista da nossa época, estabeleceu como
cânone fundamental que a inteligência é senhora absoluta
de si e, portanto, o Estado não pode ter, em matéria de
ciência, uma opinião a ser imposta aos outros; deve deixar
campo livre para a discussão e a difusão de todas as
doutrinas. Não é possível existir uma física, uma
astronomia ou uma filologia de Estado. Isso é verdade e
está muito bem, desde que se trate de ciência positiva, mas
tudo muda de figura quando se trata das doutrinas que
influem diretamente nas tendências morais do indivíduo e
determinam seu comportamento. O Estado, justamente
porque é um organismo criado para exercer determinadas
funções, baseia-se, ele também, numa doutrina moral.
Sendo obrigado a entrar na luta das ideias, como um
combatente interessado, não se pode pedir que ele abra a
porta de sua casa a um inimigo e lhe entregue as armas
que tem. O Estado não tem só o direito, mas o dever de
defender a própria organização. E como poderia fazê-lo se,
para garantir a liberdade de movimento dos inimigos, ele
comprometesse a sua própria e confiasse o exercício de
suas funções àqueles que querem eliminá-las?
Todas estas razões, implícitas na lei de Juliano e que
tendem a expor e fazer prevalecer a ação do Estado no
ensino custeado pelo próprio Estado, são tão vivas que,
ainda hoje, na França, inspiram uma lei anunciada pelo
ministro Waldeck-Rousseau para fechar as carreiras do
Estado a quem não tiver cursado as escolas do próprio
Estado e, mais ainda, a lei votada há pouco pelo
Parlamento francês, que tira o direito de ensinar das
corporações religiosas que não tenham uma autorização
especial. Também neste caso, verifica-se um fenômeno
divertido, que mostra de modo luminoso a ironia das coisas
humanas: reacionários e radicais acusam-se mutuamente
pela escolha de métodos de governo quando estes lhes são
prejudiciais, mas apressam-se a usar métodos idênticos
assim que percebem que podem ser vantajosos. Juliano não
queria que, nas escolas públicas da época, os jovens fossem
educados por professores inimigos do Estado pagão que ele
pretendia conservar. O ministro francês não gostaria que as
carreiras públicas do Estado republicano fossem abertas
para jovens formados em escolas na quais se ensina a odiar
e insidiar a República. Contra a lei francesa, erguem-se os
mesmos gritos de protesto que acolheram, dezessete
séculos atrás, a lei de Juliano. No entanto, as duas têm uma
base racional. Podem ser consideradas leis inoportunas,
mas não tirânicas. Tirânica seria uma lei que sufocasse a
livre expansão das ideias, mas não se pode dizer isso de
uma lei com a qual o Estado tenta impedir que ideias que
lhe são adversas consigam dissolvê-lo com meios
fornecidos por ele próprio. O professor ou o empregado
que, nas escolas ou nos escritórios, age com palavras e atos
contrários ao Estado do qual recebe o mandato e o salário
protagoniza um espetáculo propriamente imoral, não
importa o que se diga. O Estado tem o direito de não
querer que isto aconteça, o que, naturalmente, não é
reconhecido por aqueles que se dizem ofendidos, pois nas
questões de ordem moral o julgamento é necessariamente
ofuscado pela paixão e não há nada como se fazer de vítima
para fazer com que outros acreditem, e para acreditar, que
se tem razão. Pensando bem, esta é uma consideração que
deveria deter quem tem o poder de tomar medidas que, por
mais racionais e justificadas em si mesmas, produzem
muitas vezes resultados opostos aos que se esperava. O
imperador Juliano não tinha intenção de fazer vítimas, mas
cometeu, como muitos depois dele, o erro de parecer que
tinha, dando aos que combatia a oportunidade de acusá-lo
de perseguição. Seu movimento foi, portanto, infeliz e
muito mais danoso para ele que para seus inimigos, pois
parecer perseguido é, para alguém que precisa cumprir
uma ação moral, o melhor modo de manter-se forte.

NOTAS
1. Iulian., 356, 19 sg.
2. Ammian. Marcell., I, 271, 8 sg.
3. Idem, I, 271, 15.
4. Gregor.. orat. 3ª, 72-74.
5. Socrat., 151.
6. Idem, 153.
7. Sozom., 488.
8. Liban., 1, 562-10.
9. Idem, 1, 562, 23 sg.
10. Idem, I, 565, 3.
11. Ammian. Marcell., I, 269, 13 sg.
12. Idem, 1, 267, 7 sg.
13. Iulian., 503
14. Idem, 503, 10 sg.
15. Amm. Marcell., I, 271, 17 sg.
16. Iulian., 559, 18 sg.
17. Idem, 485, 14 sg.
18. Idem, 562, 5 sg.
19. Amm. Marcell., I, 289, 28 sg.
19. Iulian., 488.
20. Sozom., 492 sg.
21. Idem, 487 sg. – Gregor., 91.
22. Ver, junto com esta, as leis contidas no Código Teodosiano, sob o título
De paganis, sacrificiis et templis. – Liban., II, 148 sg.
23. Liban., II, 153.
24. Idem, II, 2 sg.
25. Idem, II, 178.
26. Idem, 194, 10 sg.
27. Liban., 202, 10 sg.
28. Sozom., 508.
29. Iulian., 466, 1 sg.
30. Sozom., 511.
31. Iulian., 522.
32. Socrat., 108.
33. Iulian., 547.
34. Sozom., 489.
35. Iulian., 514.
36. Idem, 556.
37. Socrat., 152. – Sozom., 500.
38. Iulian, 559 sg. – Sozom., 501.
39. Euseb., 375.
40. Amm. Marcell., I, 263.
41. Sievers – Das leben des Libanius. Boissier – La fin di Paganisme.
42. Gregor., orat. 3, 97.
43. Socrat., 151.
44. Amm. Marcell., I, 289.
45. Iulian., 544 sg.

*1 É interessante ver como a opinião de Libânio sobre a rapinagem do clero e


dos monges concorda com a de Zósimo, que afirma que eles “sob o pretexto de
dar tudo aos pobres, empobreceram a todos” (449). Uma lei de Teodósio, de
392, esclarece quem eram defensores e os curiales, aos quais o imperador
conferia a responsabilidade de velar pela observância de sua proibição dos
cultos pagãos, além de denunciar os transgressores aos juízes. O discurso de
Libânio não fez efeito, ou melhor, o resultado foi o oposto do que ele esperava.
De fato, enquanto seu texto aponta que os sacrifícios eram vetados, mas o
ritual de incensamento não, a lei de 392, posterior ao discurso, veta
explicitamente este ritual e ameaça com o confisco de todos os locais onde
houvesse fumaça de incenso: “omnia loca quae turis constisterit vapore
fumasse fisco nostro adsocianda censemus”.
Capítulo VI. O desengano
de Juliano

E mumsuadoloroso
breve carreira, o infeliz Juliano preparou para si
desengano. Não demorou para que
percebesse que nenhuma das suas medidas atingia o
objetivo que almejava. A propaganda polietísta, embora
criada e dirigida pelo próprio imperador, teve resultados
escassíssimos. O mundo, mesmo onde não existia fervor
cristão, era indiferente à restauração do culto antigo. O
esforço de Juliano caía no vazio. Ele via em toda parte as
provas deste estado de coisas, e sua inteligência aguda
compreendia todo o seu amargo significado. A um amigo
da Capadócia, ele escreveu:1 “Mostra-me, em toda a
Capadócia, um único homem que seja genuinamente
helênico, pois até agora só vi gente que se recusa a fazer
os sacrifícios, e os poucos que aceitam não sabem como
fazer.” No encerramento da carta ao grão-sacerdote da
Galácia, da qual já citamos as instruções relativas à
organização do sacerdócio, ele diz: “Estou pronto a ajudar
os habitantes de Pessinunte, se eles fizerem com que a
Mãe dos Deuses lhes seja propícia; se a negligenciarem,
não serão apenas reprovados, mas, por mais duro que seja
dizê-lo, sofrerão os efeitos de meu desprezo. Se querem
que cuide deles, trata de persuadi-los a serem
unanimemente devotos da Mãe dos Deuses.”2
Realmente estranho e sintomático que, mesmo na cidade
onde se erguia o santuário da deusa que era a principal
figura do politeísmo renovado, Juliano fosse obrigado a
espicaçar o escasso zelo dos habitantes para estimulá-los a
honrar os deuses!
Mas particularmente interessante, também sobre esse
tema, é a graciosíssima carta que Juliano escreve a Libânio,
narrando a sua marcha de Antióquia a Hierápolis.3 No fim
da primeira etapa, em Litarbo, Juliano é alcançado pelo
Senado de Antióquia, a quem dá audiência na casa onde
estava alojado. É provável que os antioquenses desejassem
aplacar a irritação do imperador que, ao abandonar
Antióquia, havia dito que não pretendia mais voltar. Ele não
revela o resultado da conversa, deixando para relatá-lo
pessoalmente a Libânio quando se reencontrassem, caso
ele ainda não soubesse. De Litarbo ele vai para Bereia,
onde fica um dia para visitar a Acrópole, sacrificar um
touro branco a Júpiter e reunir-se brevemente com o
Senado para discutir o culto aos deuses. Mas, ai de mim,
diz Juliano com um sorriso triste e irônico, “todos
elogiaram o discurso, mas poucos mostraram-se
convencidos, e estes já o estavam antes do meu discurso!”
De Bereia, Juliano parte para Batnas, lugar encantador,
comparável apenas a Dafne, subúrbio de Antióquia, antes
do incêndio que destruiu o templo de Apolo. A beleza da
planície, os graciosos bosques de verdes ciprestes, o
modesto palácio imperial, o jardim que o cerca, menos
esplêndido que o de Alcinoo, mas semelhante ao de Laerte,
as aleias cheias de legumes e árvores carregadas de frutos,
tudo faz dele um deleite. E flutuam por todo lado os
perfumes de incenso e veem-se em toda parte sacrifícios e
pompas solenes. Mas nem mesmo aqui o imperador, a
quem o zelo religioso não dava descanso e que tinha prazer
em atormentar-se, estava totalmente satisfeito. Achou a
agitação excessiva e excessivo o luxo daquelas festas. Os
deuses devem ser venerados com tranquila dignidade. Ele
providenciará mais tarde um modo de acomodar as coisas.
Talvez o suspeitoso Juliano visse naquele excesso de
manifestações, mais que uma prova sincera de devoção,
uma tentativa de deitar poeira em seus olhos. Mas,
finalmente, ele chega a Hierópolis, onde é recebido por
Sópatro, aluno e genro de Jâmblico, um deus em terras de
Juliano. Sua alegria é imensa, pois gosta especialmente de
Sópatro porque, tendo hospedado Constâncio e Gallo, foi
pressionado a abandonar os deuses, mas soube resistir e
não se deixou contagiar pela moléstia.
Ele não escreve a Libânio a respeito das coisas políticas e
militares, pois seria impossível colocar tudo numa carta.
Mas, para dar uma ideia do que está fazendo, relata que
mandou uma missão aos sarracenos para estabelecer uma
aliança, organizou um serviço de exploração, presidiu
tribunais militares, reuniu uma quantidade de cavalos e
mulas para transporte e de barcas fluviais carregadas de
trigo e de pão seco. Juntem-se a isso a correpondência
epistolar que o segue onde quer que vá e as leituras nunca
interrompidas. Sem dúvida, nunca se viu um homem mais
intensamente ocupado.
Mas a prova mais evidente do fracasso de Juliano é
fornecida por Amiano Marcelino. Como não era cristão,
seria de se esperar que, ao escrever a história do
imperador apóstata, ele reservasse palavras de entusiasmo
para a tentativa que iniciou e saudasse em Juliano o
ansiado restaurador. Nada disso. Amiano é de uma
indiferença glacial a este respeito. Tem algumas palavras
de desdém para com os cristãos, dizendo que se odeiam
uns aos outros mais que as bestas ferozes, mas não
demonstra nenhum interesse pela obra de Juliano que, para
ele, como se vê, não passa de um exercício, talvez até uma
fixação de filósofo, à qual não valia a pena dar muita
atenção. E chega a julgar excessivo, como vimos,
inclemens, o decreto que retira dos professores cristãos o
direito de usar livros pagãos. Não hesita em manifestar sua
desaprovação pelas manias rituais do fervoroso imperador.
Ora, se Amiano – um homem que, por sua cultura, era
particularmente devoto das memórias antigas – pensava
assim, é fáci imaginar a profunda indiferença, ou melhor, a
hostilidade que Juliano encontrou na massa social, para
quem os ideais do helenismo tinham se tornado estranhos.
A verdade é que Juliano só era compreendido pelos
retóricos e pelos filósofos que faziam parte do cenáculo
neoplatônico. Para ver sua obra apreciada, é preciso
recorrer ao discurso necrológico escrito por Libânio, que,
entre os méritos e glórias de Juliano, inclui o de ter trazido
de volta à terra o sentimento religioso que dela estava
eLivros.4
Mas, em meio a seus desenganos, Juliano também
encontrou algum conforto. Sua alegria devia ser grande
quando algum ilustre personagem da Igreja retornava ao
seio do politeísmo, embora isso fosse bastante raro. Era
claro o sentimento de todos sobre a inutilidade da tentativa
de Juliano e o esgotamento do politeísmo. O único caso
conhecido é o do bispo Pegásio, narrado pelo próprio
Juliano numa carta que é uma das mais preciosas de seu
epistolário, inclusive como um retrato vivaz do ambiente.
Parece que Juliano havia alçado o bispo apóstata a um alto
posto sacerdotal, o que ofendeu a sensibilidade de algum
helenista mais puro. Eis a resposta do imperador:5
Nós certamente não teríamos acolhido Pegásio tão
facilmente se não tivéssemos verificado que, mesmo
quando era bispo dos galileus, ele não era alheio ao
reconhecimento e ao amor aos deuses. E não te digo isso
por ter ouvido daqueles que costumam falar por amor ou
por ódio, pois mesmo ao meu redor bisbilhotou-se muito a
respeito dele, de modo que, pelos deuses, quase acreditei
que devia odiá-lo mais que a qualquer outro daqueles
infelizes. Mas, quando fui convocado por Constâncio para
o Exército, pus-me a caminho, partindo de Trôade antes
do amanhecer e chegando a Troia na hora do mercado.
Ele veio ao meu encontro, e quando eu disse que queria
visitar a cidade – o que era um pretexto para entrar nos
templos –, ofereceu-se para ser meu guia e conduziu-me
por toda parte, agindo e falando de um modo que me fez
pensar que ele não ignorava seus deveres para com os
deuses.
Há, em Troia, um sacrário dedicado a Heitor onde, num
pequeno templo, fica sua estátua de bronze. Em frente, a
céu aberto, colocaram o grande Aquiles. Se já visitaste o
lugar, sabes do que falo. [...] Vendo os altares ainda
acesos, quase chamejantes, e brilhante de unguentos a
estátua de Heitor, perguntei a Pegásio: “O que significa
isto? Os habitantes de Troia ainda seguem os rituais dos
deuses?” Queria sondar sua opinião sem dar na vista. E
ele: “O que há de estranho neles venerarem um homem
valoroso, seu concidadão, como nós honramos nossos
mártires?” A semelhança não era apropriada, mas
naquele momento percebi que a intenção era louvável. E
em seguida disse: “Vamos ao templo de Minerva Ilíaca.”
Ele, cheio de boa vontade, acompanhou-me, abriu o
templo com as próprias mãos e mostrou-me
atenciosamente, como se lhe importasse, que todas as
estátuas sagradas estavam salvas, sem fazer nada daquilo
que os ímpios costumam fazer, como o sinal da cruz sobre
a fronte, nem ficou murmurando consigo mesmo, como
eles. O máximo da teologia para eles está nestas duas
coisas: imprecar murmurando contra os demônios e
assinalar a cruz na testa.
Já te contei estes dois fatos, mas não quero esquecer de
um terceiro que me veio à mente. Ele seguiu-me ao
santuário de Aquiles e mostrou-me o túmulo intacto.
Fiquei sabendo que o sepulcro havia sido descoberto por
ele, que mostrava uma atitude de grande respeito. Tudo
isso eu vi pessoalmente. Soube depois por aqueles que
hoje são seus inimigos que, secretamente, ele orava e se
prosternava para o Sol. Por acaso o deus não me acolhia
deste modo quando eu não fazia profissão de fé em
público? Que testemunho pode ser mais confiável sobre a
disposição de cada um de nós em relação aos deuses que
o dos próprios deuses? Teríamos nomeado Pegásio
sacerdote se soubéssemos que ele pecava em algo
relacionado aos deuses? Se, naqueles tempos, seja por
vaidade de poder, seja, como ele disse várias vezes, para
salvar os templos dos deuses, ele vestiu aqueles trapos e
fingiu, só nas palavras, que acompanhava a impiedade
(de fato, não causou nenhum dano aos templos além de
derrubar algumas pedras do teto, para tornar possível a
salvação do resto), devemos culpá-lo por isso? E não
ficaríamos desgostosos se o tratássemos de um modo que
alegrasse os galileus, que gostariam de vê-lo sofrer? Se
tens consideração por mim, honrarás não apenas este,
mas todos os outros que se converterem, de modo que
nos deem ouvidos mais facilmente, a nós que os
convidamos ao bem. Se rejeitamos aqueles que nos
procuram espontaneamente, ninguém responderá ao
nosso apelo...
Este Pegásio devia ser bastante esperto. Provavelmente
ouviu falar das tendências helenistas de Juliano e, prevendo
a eventualidade de vê-lo subir ao trono como único
herdeiro sobrevivente da família de Constantino, o astuto
bispo resolveu preparar o terreno para uma futura
evolução, mas sem se comprometer com as autoridades
dominantes. A arte com que se insinou no espírito de
Juliano, dizendo sem dizer, é bastante fina e sagaz, e o
imperador, ingênuo como todos os apóstolos fervorosos,
deixou-se ludibriar e confundiu um intrigante astuto e uma
cena de comédia com um homem sério e com provas de
uma crença profunda. Os recrutas que fazia entre os
desertores do cristianismo só podiam ser homens
desprezíveis como Pegásio. Seus amigos e partidários
protestaram contra as honras que ele lhes prestava, mas o
infeliz imperador, na pobreza de seus resultados, tinha de
contentar-se com qualquer simulacro de sucesso e
encontrar na impostura um motivo de satisfação.

A confissão plena do desengano de Juliano encontra-se no


amargo desabafo do Misobarba, sua obra-prima. Em seus
outros escritos, com exceção, é claro, das cartas, algumas
belíssimas, percebem-se muito o retórico, o literato
escolástico que escreve como uma espécie de tarefa
baseada no padrão de determinados modelos. O banquete
dos Césares é, como veremos, uma sátira não desprovida
de espírito e de sentimento, mas forçada e carente de
espontaneidade e de genuína inspiração. No Misobarba,
Juliano fala justamente ex abundantia cordis [Com
sinceridade], e sua sátira, além de um retrato vivíssimo da
corrupção de uma grande cidade do baixo Império, é
reveladora da índole do homem, do soberano e da
embaraçosa posição em que estava metido.
A arte do escritor não é pequena. De uma ponta a outra
deste longo libelo contra os habitantes de Antióquia, ele
consegue manter a ironia com a qual se acusa a si mesmo e
toma o partido de seus detratores. Quantos ditos de
espírito, que explosão de alfinetadas, quantas digressões
divertidas, mas sob isso tudo, quanta amargura e
desengano!
O fato que deu origem à reprimenda espirituosa do
ofendido imperador foi o seguinte: depois de ficar quase
um ano em Constantinopla, Juliano partiu no verão de 362
para Antióquia, que seria a sede dos preparativos para a
planejada expedição contra o rei da Pérsia. Depois de
visitar Nicomédia, onde tinha vivido uma parte da
adolescência e que, comovido, reencontrou destruída pelo
terremoto, atravessou Niceia, parou em Pessinunte para
adorar a deusa Cibele, a Mãe dos Deuses, para quem
escreveu, numa noite, a sua mística dissertação e chegou,
por Ancira e Tarso, a Antióquia. Lá foi recebido por uma
imensa multidão que saudava nele o novo astro do
Oriente.6 Mas a aprovação popular logo esmoreceu,
instalando-se um desacordo radical entre o imperador e os
antioquenses. Mesmo em meio aos preparativos para a
grande expedição persa, Juliano não esquecia o objetivo
estabelecido para o seu reinado: a restauração do
paganismo moralizado. Ora, Antióquia, cidade na qual o
cristianismo deitou raízes desde os tempos apostólicos, era
quase toda cristã, o que não a impedia de ser uma das
cidades mais corruptas, dissipadas e viciosas do Oriente.
Com o zelo imprudente do reformador e do pregador
religioso, Juliano bateu de frente com os hábitos,
preconceitos e abusos que foi descobrindo na grande
cidade. E a cidade irritou-se com aquele importuno que
pretendia relançar ritos e cerimônias caídos em desuso,
que desaprovava abertamente os costumes licenciosos, que
desprezava os espetáculos teatrais, as corridas de cavalos e
tudo aquilo que apaixonava seus afeminados habitantes e
que, ao reprimir os abusos, feria os interesses das classes
altas e dos especuladores, numerosos em seus domínios.
Em vez do entusiasmo religioso que ardia em seu peito,
Juliano encontrava nos antioquenses uma indiferença
hostil. Além de tudo, era obrigado a reconhecer que suas
tendências moralizadoras entravam em choque com
costumes arraigados e com a irreparável decadência do
espírito público. Isso tudo redundou num estridente
desacordo e numa crescente tensão espiritual. Os
antioquenses não tinham nem o vigor nem o desejo de uma
rebelião aberta, mas possuíam a argúcia e a sutileza do
grego, que usavam para zombar do imperador. O ar severo
de Juliano, seus modos rudes e desajeitados, sua aparência
desordenada, sobretudo a barba que era uma aparição
insólita em meio às faces raspadas e afeminadas dos
antioquenses, eram motivo de troça. Corriam pela cidade
libelos em versos que ridicularizavam o imperador e
divertiam aquela população leviana e frondeuse por
excelência. Se Juliano fosse um tirano ou apenas um
soberano duro e violento, poderia vingar-se facilmente dos
trocistas e reprimir as piadas irreverentes. É o que faria
não só um tirano antigo, mas provavelmente também
alguns soberanos modernos. Mas Juliano, espírito
moderado e racional por excelência, escolheu um modo
bastante curioso e incomum num imperador de vingar-se:
respondeu às sátiras dos antioquenses contra ele com uma
sátira sua contra os antioquenses. E quem poderia dizer, na
época, que sua vingança seria a mais eficaz de todas? De
fato, se tivesse punido seus ofensores com a prisão ou com
a morte, eles logo seriam esquecidos ou até glorificados
como mártires, mas, usando o espírito, embalsamou a
memória deles, oferecendo-a ao riso perpétuo da
posteridade.

Não parece que as razões que produziram o profundo


desacordo entre Juliano e os antioquenses sejam
exclusivamente religiosas e morais. Houve também um mal-
entendido, ou melhor, um desengano cuja culpa remonta à
vasta ignorância das leis econômicas na época de Juliano.
Aqui, é preciso reconhecer que aquela prudência
administrativa e aquele senso seguro da realidade, que
guiaram Juliano no governo das finanças na Gália, o
abandonaram, talvez para dar livre curso ao desejo
exagerado de cair nas boas graças dos antioquenses e criar
um canal para influenciá-los mais facilmente. Assim que
chegou a Antióquia, Juliano ouviu o grito do povo,
reclamando do alto preço das mercadorias. Depois de
examinar a questão, convencido de que a causa do
fenômeno era a cobiça de lucro de proprietários e
comerciantes, o imperador convidou a autoridade
municipal a tomar providências. Passados três meses, os
magistrados não haviam feito nada. É aí que Juliano entra
em cena: estabelece um limite de preço para todas as
mercadorias. Como a colheita havia sido muito fraca,
manda vir de outros lugares grande quantidade de trigo,
estabelecendo um preço inferior ao que seria cobrado nas
condições do momento. A violência econômica do
imperador teve como resultado o aumento dos males que
ele pretendia diminuir. As mercadorias sumiram do
mercado de Antióquia. Os ricos proprietários vendiam o
trigo de suas culturas a preços altos fora de Antióquia e
depois compravam em Antióquia, para consumo próprio, o
trigo que o imperador distribuía a preços baixíssimos. Isso
originou uma migração em larga escala dos campos para a
cidade e, por fim, uma desordem que causou grande
perturbação, espalhando o descontentamento e a irritação
nas altas classes de proprietários e comerciantes e
tornando impopular o imperador, que atribuía à oposição
partidária e à perversidade de espírito algo que, no fundo,
não passava da consequência inevitável de um grande
despropósito. A intenção de Juliano era piedosa e inspirada
pelo sentimento de equidade. É fácil entender o que
Libânio dizia em seu discurso para incitar os antioquenses
ao arrependimento:
Gostaria que vocês admirassem a iniciativa do imperador,
por maior que fossem as dificuldades, pois ele provou ter
uma alma generosa, que pretendia socorrer a pobreza.
Considerava doloroso que alguns desfrutassem na
abundância e outros não tivessem o necessário, de modo
que aos pobres só restava assistir ao desfrute dos ricos
no mercado florescente.7

Aplicada com uma completa ignorância das leis


econômicas, a boa intenção acabava por ferir-se a si
mesma.
No ambiente que cercava Juliano, os cristãos eram
responsabilizados pelas dificuldades e oposições que o
imperador enfrentava em Antióquia. O discurso de Libânio
é interessantíssimo a este respeito. Desenvolve-se a partir
da premissa de que os verdadeiros autores da oposição dos
antioquenses a Juliano são os cristãos, e o único caminho
para a reconciliação é sua conversão aberta ao paganismo.
Libânio não nomeia os cristãos em nenhum momento,
quase como se lhe repugnasse divulgar uma seita tão
odiosa e culpada, mas a alusão é contínua. Os instigadores
secretos da revolta dos antioquenses contra as disposições
econômicas do imperador seriam cristãos, assim como
aqueles que impediam os cidadãos de expressar seu
arrependimento abandonando os teatros, os jogos públicos,
a ociosidade habitual em Antióquia e retornando aos atos
inspirados por uma verdadeira piedade. Libânio escreve:
Fiquem sabendo que não é se prosternando no chão,
agitando ramos de oliveira, se enfeitando com guirlandas,
ou por meio de gritos e embaixadas, ou enviando
oradores habilíssimos que conseguirão aplacar a
indignação, mas sim com a renúncia aos maus costumes e
com a consagração da cidade a Júpiter e aos outros
deuses, dos quais, muito antes do imperador, Homero e
Hesíodo lhes falavam desde a infância. Vocês reconhecem
que é preciso ter estes poetas em grande conta na
educação e recitar seus poemas às crianças, mas nas
coisas de maior interesse buscam outros mestres e fogem
daqueles templos, agora abertos, cujo fechamento
lamentavam. E se alguém recorda Platão ou Pitágoras,
vocês nomeiam a mãe, a esposa, o cantineiro, o
cozinheiro, como se fossem autoridades, falam de sua já
antiga persuasão e não se envergonham de tudo isso,
deixando-se arrastar por aqueles a quem deveriam ditar
leis. No fato de terem pensado mal no princípio, veem a
obrigação de pensar mal até o fim. É como se alguém que
teve rubéola na juventude tivesse que conservar a doença
por toda a vida. Mas por que prolongar este discurso? A
escolha é de vocês entre continuar a ser odiados ou obter
uma dupla vantagem, adquirindo a benevolência do
príncipe e reconhecendo os deuses que realmente
dominam no céu. Vocês têm condições de ganhar
justamente com aquilo que pode agradar aos outros. Na
aparência, vocês dão, mas na realidade, recebem.
Libânio quer fazer de Antióquia uma cidade reconvertida
ao paganismo e penitente, pois pensa que este seria o
preço para que ela obtivesse o perdão por suas injúrias
contra o imperador. Para ele, o cristianismo é o maior
obstáculo não somente para o retorno ao culto antigo, mas
também para a depuração dos costumes, para o
saneamento moral da cidade. Podemos ver que, no século
IV e mesmo numa cidade em que o cristianismo era difuso,
a força da nova religião estava nas camadas mais baixas da
sociedade e na influência feminina. Como é característico o
contraste, no qual toda a história do cristianismo revive,
entre a alta cultura da aristocracia intelectual e a
humildade das forças que se opunham a ela. Platão e
Pitágoras, invocados pelos defensores do antigo, têm
contra eles as donas de casa, o cantineiro, o cozinheiro!
Para estes retóricos, para estes filósofos, imbuídos da arte
e do pensamento helênico, parece escandaloso, absurdo,
ridículo o confronto entre as mais excelsas manifestações
do engenho humano e as fantasiosas crendices de
mulherzinhas ignorantes e humilíssimos servos! Mas em
meio ao esplendor morrediço de seu helenismo, a visão de
Libânio e Juliano era míope. Eles não sabiam discernir o
fundo. Quatro séculos de cristianismo não lhes haviam
ensinado nada. Acreditavam que a religião era uma questão
racional e espantavam-se ao ouvir que as afirmações do
cozinheiro e do cantineiro valiam mais que as de Platão,
sem perceber que aquelas, mesmo rústicas, vinham da
consciência de um Deus vivo, enquanto estas, embora
sublimes, vinham da apresentação de sombras exaustas e
vazias.
O Misobarba é um dos documentos mais importantes e
idôneos para quem quer penetrar no íntimo significado da
tentativa iniciada por Juliano. Embora a verdade tenha sido
eclipsada e traída pela polêmica cristã, permanece o fato,
que hoje parece paradoxal, de que o imperador era
animado por uma intenção essencialmente moralizadora. O
cristianismo não tinha mudado ou melhorado em nada a
condição moral dos homens. A Antióquia cristã valia tanto
quanto a Antióquia pagã, se não fosse pior. Costumes
corruptos, orgias, teatros, dançarinos e mímicos, eis o
espetáculo que os cristãos antioquenses ofereciam. A
aversão que sentiam por Juliano vinha justamente da
estridente oposição que a moral e a virtude do imperador
pagão faziam aos vícios de seus súditos cristãos. Juliano
queria salvar o helenismo, que o cristianismo destruía,
destruindo todas as suas tradições de religião e de pátria,
mas ao mesmo tempo buscava no helenismo a força moral
necessária para uma reforma dos costumes e uma
regeneração interior do homem cujos princípios o
cristianismo colocou, mas não foi capaz de desenvolver. A
recepção que os corruptos antioquenses deram às
exortações do imperador, descrita de maneira tão viva pelo
próprio imperador, é a prova mais evidente do caráter
utópico de sua tentativa. O politeísmo regenerado não seria
capaz de regenerar o homem, assim como o cristianismo
não o foi. O homem permanecia tal como era determinado
pelas condições intelectuais de seu tempo. A religião não
saberia nem poderia dobrar as paixões humanas; as
paixões é que seriam capazes de dobrar e adaptar a
religião, qualquer que ela fosse, às suas invencíveis
exigências.

NOTAS
1. Iulian., 484
2. Idem, 515.
3. Idem, 515.
4. Idem., 249
5. Idem., 602
6. Amm. Marcell., I, 287, 3 sg.
7. Liban., 1, 492, 15.
Capítulo VII. O príncipe
e o homem

N ogenialidade
curso deste
a
estudo, já aparece em toda a sua
natureza singular deste príncipe
apaixonado que, no trono dos Césares, colocava a serviço
de um ideal irrealizável as virtudes intelectuais e
espirituais que, liberadas da preocupação religiosa, teriam
feito dele um grande imperador. Mesmo que Juliano tivesse
reinado mais tempo e sem outro objetivo além da defesa e
da organização do Império, ele não teria conseguido deter
a decadência fatal do mundo antigo. Talvez conseguisse, no
máximo, reduzir seu ímpeto e impedir que desaguasse na
catástrofe bárbara.
A passagem de Juliano pelo trono imperial foi como o
aparecimento de um meteoro luminoso que, mal começou a
brilhar, já se apagou. Ele não teve tempo de deixar uma
marca duradoura de sua ação nos fatos e nas coisas. Não
fossem seus escritos, que são o espelho genuíno de seu
caráter, de sua intenções, dos dotes e defeitos de seu
espírito excelso, sua memória viveria apenas nas
caricaturas traçadas pelos escritores cristãos, que
limitavam sua obra à guerra contra o cristianismo e o
retratavam como um homem odioso e condenável. É
verdade que temos em Libânio e Amiano Marcelino as
provas da admiração que Juliano despertava em seus
contemporâneos. Mas Libânio é suspeito por estar muito
envolvido e comprometido com a tentativa de restauração
politeísta, e Amiano Marcelino não tem autoridade
suficiente para fazer frente a Gregório de Nazianzo,
Sócrates Escolástico, Sozomeno e, enfim, a toda a tradição
católica. Assim, a figura genial de Juliano chegou à
posteridade trazendo na fronte a marca do apóstata. Ficou
esquecido o fato mais interessante do ponto de vista
psicológico e histórico: este infeliz apóstata que tentou
sufocar o cristianismo era, sob todos os aspectos, um
homem essencialmente virtuoso, o melhor dos homens que
apareceram no horizonte da vida pública do Baixo Império.
O bom Amiano Marcelino, ao tecer o elogio de Juliano,
depois de narrar sua morte heroica, conta como ele era
brilhante pela castidade e pela temperança na vida, pela
prudência na ação: virtute senior quam oetate, studiosus
congnitionum omnium, censor moribus regendis acerrimus,
placidus, opum contemptor, mortalia omnia despiciens.1
Perfeita a sua justiça, mitigada pela clemência, admiráveis
o conhecimento das coisas de guerra e a autoridade com
que comandava seus soldados, incomparável a coragem
com que combatia entre os primeiros, encorajando suas
fileiras e reconduzindo-as à batalha ao primeiro sinal de
incerteza. Sábia e moderada a sua administração, voltada
para diminuir o peso dos impostos, arbitrar os litígios entre
o fisco e os particulares, restaurar as finanças arruinadas
das cidades e, por fim, frear a terrível desordem que
reinava no ávido e parasitário governo do Império. Mas o
honesto historiador não dissimula os defeitos de seu herói,
que, aliás, são bastante leves em confronto com as virtudes.
Uma certa leviandade ao tomar decisões, uma excessiva
facilidade e abundância de palavra, que deviam ser, a nosso
ver, reflexo de uma impressionabilidade excessiva,
constatável também naqueles entre seus escritos que são a
efusão sincera de seu espírito. Finalmente, e este era o
defeito mais grave de Juliano, consequência inevitável de
seu sistema filosófico, uma tendência à superstição, que
fazia com que desse à exterioridade da religião que
pretendia restaurar uma importância que muitas vezes
beirava o ridículo e era uma das causas que enfraqueciam
sua propaganda. Este é o retrato moral do imperador
esboçado por Amiano, no qual ele descreve também a sua
figura ao mesmo tempo forte e ágil, e o rosto, singular pela
barba hirsuta que acabava em ponta, objeto de zombaria
dos antioquenses, e esplendoroso pela beleza dos olhos
cintilantes, que deixavam transparecer a argúcia de mente
– venustate oculorum micantium flagras, qui mentis ejus
argutias indicabant.
Mas antes de estudar Juliano por meio de seus escritos,
que são a fonte genuína da verdade, daremos ainda uma
olhada na imagem que dele deixaram os seus
contemporâneos Libânio e Gregório de Nazianzo, com
objetivos opostos, o primeiro de exaltar sua memória, o
segundo de cobri-la de lama e vergonha. No decorrer do
nosso estudo, já colhemos nos campos desses escritores,
mas não será inútil renovar a colheita: certamente
recolheremos alguns feixes de informações preciosas.
Começaremos por observar que nos lamentos de Libânio
pela tragédia de Juliano é impossível não perceber a
expressão de um sentimento verdadeiro e profundo, mais
ainda se pensarmos que o Discurso necrológico e a
Monódia foram escritos quando já não havia mais nenhum
traço da tentativa de restauração pagã. O cristianismo
dominava, novamente soberano na Corte e na população e,
portanto, a manifestação daquela dor podia constituir um
perigo para o escritor. Como adaptar-se, exclama Libânio,
ao pensamento de que o ímpio Constâncio
dominou sobre a terra, que ele contaminava, por
quarenta anos e dela partiu por motivo de doença. E
aquele que renovou as leis sagradas, reordenou as boas
instituições, reergueu as moradas dos deuses, refez os
altares, reconvocou as fileiras de sacerdotes escondidos
nas trevas, restaurou as estátuas, sacrificou manadas e
rebanhos, ora no castelo, ora fora, ora de noite, ora de
dia, entregando toda a sua vida nas mãos dos deuses,
partiu depois de ocupar por breve tempo o cargo menor
do Império e por um tempo ainda mais breve, o maior,*1
de modo que a Terra, que mal havia experimentado tanto
bem, não pôde se satisfazer. [...] Se pelo menos a volta
dos nossos males tivesse ocorrido pouco a pouco. Mas a
boa fortuna, assim que nos via, logo se retraiu, como em
fuga. Por Hércules, isto é atroz demais e é obra de
demônios atrozes.2

Em seguida, depois de recordar a desolação do Exército


quando Juliano, ferido de morte, mas ainda respirando, era
transportado do campo de batalha para sua tenda, de dizer
que as musas choravam a morte de seu aluno e que a
desventura caía sobre a Terra, o mar e os ares, Libânio
exclama:
Todos choramos, cada um pela parte que lhe diz respeito.
Os filósofos choram por aquele que explicava a doutrina
de Platão; os retóricos, o orador admirável tanto na fala,
quando na interpretação do discurso alheio; os litigantes,
um juiz melhor que Radamanto. Ó, infelizes agricultores,
que serão vítimas daqueles que terão o encargo de
espoliá-los! Ó, força da justiça que já míngua e da qual
logo não haverá nem sombra! Ó, magistrados, como será
vilipendiada a dignidade de seus nomes! Ó, gritos dos
pobre maltratados, como se alçarão em vão aos céus! Ó,
fileiras de soldados que perderam um imperador que, nos
campos, atendia a cada uma de suas necessidades! Ó, leis
consideradas de Apolo a bom direito e agora pisoteadas!
Ó, razão, que quase ao mesmo tempo adquiriste e
perdeste potência e vigor! Ó, ruína total da Terra!3
Este grito de dor contrasta com a lembrança das
esperanças e expectativas suscitadas por Juliano. O
imperador, diz Libânio, dava uma importância extrema à
instrução: acreditava, aliás, que a doutrina e o culto dos
deuses eram coisas fraternas. Para revalorizar a instrução
completamente negligenciada, ele mesmo escrevia
discursos e tratados de filosofia. Queria também que as
cidades fossem governadas por homens cultos e tratava de
nomeá-los para os cargos assim que encontrava neles as
virtudes do homem de governo. Há um sopro poético no
retrato entusiástico que Libânio faz da viagem de Juliano
de Constantinopla a Antióquia. O imperador é movido por
um pensamento dominante, a restauração do helenismo, e
deleita-se com os discursos muito mais que com os
presentes. Chora de emoção, consumindo-se numa
atividade prodigiosa de espírito e de corpo, sem
negligenciar um só templo, sem deixar de ouvir um só
filósofo, um só retórico, um só poeta. “Florescia o jardim da
sapiência”, exclama Libânio, “e a esperança de futuras
honras estava toda na aquisição de cultura. [...] Ele
empenhava-se inteiramente para que o amor pelas Musas
renascesse.”4
Era uma nova primavera helênica, um reflorescimento de
pensamentos, hábitos e ideias que alegravam os espíritos
consternados e abatidos pela barbárie incipiente e pelo
predomínio de tendências diametralmente opostas àquelas
ideias e àqueles hábitos. Para compreender todo o alcance
e o significado da restauração planejada por Juliano,
precisamos tentar sentir as emoções destes admiradores
sobreviventes de uma civilização que declinava
rapidamente rumo ao ocaso e que eles acreditavam poder
fazer retornar sobre seus passos rumo ao antigo esplendor.
Juliano dava conta do intenso movimento intelectual e de
trabalho imposto por seus deveres de reformador religioso,
general e homem de Estado graças às suas faculdades de
concentração nos próprios pensamentos, além de uma
prodigiosa atividade. Quando era obrigado a assistir às
corridas de cavalos, narra Libânio, volvia os olhos
distraidamente para o outro lado e, assim, honrava ao
mesmo tempo a solenidade, com sua presença, e seus
pensamentos, ao absorver-se em si mesmo. Não havia luta,
nem corrida, nem aplauso que pudessem distraí-lo de suas
meditações. E quando dava um banquete, participava
apenas o suficiente para que não se pudesse dizer que
estava ausente.5 Da atividade de Juliano, ele oferece esta
interessante descrição:
Estando sempre bastante sóbrio e sem sobrecarregar o
ventre com peso excessivo, ele voava, diria eu, de uma
coisa à outra e, no mesmo dia, respondia a vários
embaixadores, mandava cartas às cidades, aos
comandantes dos Exércitos, aos amigos que partiam, aos
que chegavam, ouvia a leitura das mensagens, examinava
as demandas e tornava as mãos dos escrivães lentas
quando comparadas à velocidade de sua língua. [...] Seus
secretários precisavam repousar, mas ele não. Passava de
uma ocupação a outra. E quando parava de administrar
para almoçar, pois é preciso viver, imitava as cigarras.
Pousando sobre os montes de livros, cantava até que o
crepúsculo ou outros negócios o chamassem para longe
dali. O jantar era ainda mais escasso que a primeira
refeição e muito breve o sono diante de tamanha
moderação nos alimentos. Era então que chegavam os
novos escrivães, que já haviam passado pelo leito, pois a
sucessão no serviço e a alternância no repouso eram
indispensáveis. Ele mudava as formas do trabalho, mas
trabalhava sempre, renovando em sua ação as
transformações de Proteu, sendo sacerdote, escritor,
oráculo, juiz, general, soldado e, em todas essas coisas,
salvador.6

As responsabilidades do reinado não impediam que Juliano


perseverasse em seus estudos prediletos. Libânio escreveu:
Tua extensa, bela e variada cultura não é fruto apenas do
trabalho que fazias antes de te tornares imperador. Tu
continuas a velar por amor a ela. O Império não te obriga
a negligenciar os livros. A noite ainda está em sua
primeira parte e tu já cantas, mais matutino que os
pássaros, e escreves teus discursos e lês os escritos dos
outros.
Em outra oportunidade, Libânio aparece com esta
eloquente apóstrofe aos deuses, interessante também
porque nos revela com quantas e quais ilusões se
alimentava o espírito do partido helenista que cercava
Juliano e porque nos traz o eco dos acalorados colóquios
que ele teve com o imperador durante os seus preparativos,
em Antióquia, para fazer da esperada vitória sobre os
persas, o selo e a sanção da restauração da antiga
civilização.
Por que, ó deuses, ó demônios, não confirmastes vossas
promessas? Por que não fizestes feliz aquele que vos
conhecia? O que poderíeis reprovar-lhe? O que não louvar
em suas empresas? Não reergueu os altares? Não
construiu os templos? Não honrou solenemente os
deuses, os heróis, o éter, o céu, a terra, o mar, as fontes,
os rios? Não combateu aqueles que vos combatiam? Não
foi mais sábio que Hipólito? Justo como Radamante? Mais
reflexivo que Temóstocles? Mais corajoso que Brásidas?
Não salvou, por acaso, a humanidade que estava por
perecer? Não foi inimigo dos maus? Benevolente com os
justos? Adversário dos prepotentes? Amigo dos
modestos? Que enormidade de empresas! Quantas
conquistas! Quantos troféus! Oh, fim indigno do
princípio! Pensamos que toda a Pérsia faria parte do
Império romano, governada por nossas leis e que
receberia daqui os seus regentes e pagaria tributos e
mudaria a língua e trocaria a forma de suas vestes e
cortaria a cabeleira. Já podíamos ver, em Susa, os sofistas
e retóricos educando com grandes discursos os filhos dos
persas, nossos templos, ornamentados com os espólios
trazidos de lá, narrando aos pósteros a grandeza da
vitória, e o próprio vencido competindo com os que
cantam os louvores da empresa, admirando isto, não
repudiando aquilo, alegrando-se com uma coisa, não
desdenhando outra. E a sabedoria, como outrora, sendo
amada e as tumbas dos mártires dando lugar aos templos
e todos correndo espontaneamente para os altares,
reerguidos pelas mesmas pessoas que os derrubaram; os
mesmos que não suportavam sangue praticando
sacrifícios e a prosperidade das famílias ressurgindo por
mil razões e também pela leveza dos tributos, pois dizem
que, em meio aos perigos, ele orava aos deuses para que
a guerra terminasse de um modo que lhe permitisse
reduzir a nada os impostos públicos. Ah, turba de
demônios perversos, tornastes vãs todas as nossas
expectativas e eis que o atleta, já tão perto da coroa,
chega a nós oculto num esquife. Feliz de quem morreu
depois dele, desventurado quem ainda vive! Antes dele
era noite, noite se fez depois dele; seu reino foi um puro
raio de sol. Ó cidades que fundaste! Ó cidades
decadentes que reergueste! Ó sapiência, que alçaste às
máximas honras! Ó virtude, que tornaste forte! Ó justiça,
que desceu de novo do Céu à Terra, para logo retornar ao
céu! Ó radical revolução! Ó comum felicidade apenas
começada e já finita! Sofremos como um homem sedento
que, levando uma taça de água límpida e fresca à boca, a
visse ser arrancada de suas mãos assim que seus lábios a
tocaram.7
Libânio narra assim a conversão de Juliano:
Como parecia que, sob todos os aspectos, ele estava apto
a reinar e como todos os testemunhos dos que o
conheciam concordavam com isto, não quis [o imperador
Constâncio] que sua fama se espalhasse entre muita
gente, numa cidade de espíritos inquietos. Mandou-o
viver em Nicomédia, cidade mais tranquila. Este foi o
princípio de todo o bem para ele e para toda a Terra, pois
lá ainda havia uma centelha de ciência divina, escapada
com dificuldade das mãos dos ímpios. “Escrutando, por
trás dela, as coisas ocultas, renunciaste” – diz ele
dirigindo-se diretamente a Juliano – “sensibilizado pelos
ensinamentos, ao ódio feroz contra os deuses. E quando,
mais tarde, foste à Jônia, conheceste um homem que é
respeitado e sábio.*2 Ouvindo o que ele ensinava sobre os
espíritos que criaram e que conservam o Universo,
miraste a beleza da filosofia e bebeste da mais pura das
bebidas. Afastando de ti o erro e rompendo os grilhões
como um leão, livre da névoa, preferiste a verdade à
ignorância, a divindade legítima à falsa, os antigos numes
àquele que se insinou perfidamente há tão pouco tempo.
Unindo à companhia dos retóricos a de sábios ainda
maiores (e aqui também se vê a obra dos deuses que, por
meio de Platão, engrandeceram tua inteligência, para que
estivesses preparado com altos conceitos para a grandeza
das ações), já forte seja pela fluidez da palavra, seja pela
ciência das coisas, indicaste, antes mesmo de poder
servir aos interesses sagrados, que não irias negligenciá-
los assim que tivesses ocasião, chorando sobre o que
havia sido destruído, suspirando sobre o que havia sido
contaminado, sofrendo sobre o que havia sido oprimido,
mostrando aos que te estavam próximos a futura salvação
na dor presente”.8
Depois de descrever a bem-sucedida ação de Juliano na
Gália, Libânio exclama:
É verdade que não farias tudo isso sem a ajuda de
Minerva, mas tendo, desde que partiste de Atenas, esta
deusa como companheira no conselho e na ação, assim
como ela o foi para Hércules contra o cão monstruoso,
compreendeste todas as coisas corretamente com a razão
e operaste todas as coisas bem com as armas, não ficaste
sentado em tua tenda, a ouvir os relatórios das batalhas.
Lançando-te adiante, movendo o braço e agitando a lança
e brandindo a espada, encorajavas teus soldados com o
sangue dos inimigos, rei nos conselhos, chefe nas
empresas, herói nos combates.9
Salta das páginas de Libânio uma imagem atraente e
genial. Ardente de espírito, apaixonado pelos mais nobres
ideais, generoso e heroico, o jovem imperador mostra-se
realmente digno da admiração e do amor com que amigos,
professores e soldados o cercavam. É verdade que Juliano
era um homem desequilibrado. Sua fantasia efervescente e
desordenada unia-se de modo singular ao pedantismo do
retórico e do formalista. Mas também há nele um sopro
heroico, algo de juvenilmente desenvolto, um sentimento
vivo da civilização helênica que afastam de sua figura as
manchas e os defeitos ou, pelo menos, ocultam-nos sob os
raios de uma luz ofuscante. Mas uma destas manchas
permanece, infelizmente, evidente e dominante, mesmo no
retrato pintado por Libânio: a mancha da superstição. Já
falamos nisso mais acima, ao discutirmos o neoplatonismo.
Toda a Antiguidade era supersticiosa e para que não o
fosse, o pensamento antigo teria de ter seguido o caminho
aberto por Demócrito, Epicuro e Lucrécio. Porém, tendo
seguido o caminho oposto, ele sobrepôs, com o
neoplatonismo, o suprarracional e o sobrenatural à razão e
à natureza, o que significou desistir de encontrar as causas
lógicas dos efeitos e ver em tudo a intervenção contínua de
um arbítrio absoluto. Ninguém mais que Juliano se lançou
nesta funesta direção e, portanto, ninguém foi mais ardente
promotor de todas aquelas práticas de culto com as quais
ele pensava obter o favor dos deuses. É ainda Libânio quem
escreve:
Por toda parte havia altares e fogos, sangue e odores de
sacrifício, incensos, expiações e adivinhos livres do medo.
E eram peregrinações e cantos nos cumes dos montes e
bois que ele mesmo, com suas próprias mãos, oferecia em
sacrifício aos deuses e com os quais banqueteava depois
o povo. Mas como não era fácil para o imperador sair
todo dia do palácio para ir aos templos e como nada é
mais benéfico que a contínua convivência com os deuses,
ele construiu no próprio palácio um santuário ao deus
que conduz o dia, participando e chamando os outros a
participar dos mistérios nos quais era iniciado e erguendo
altares separados para cada deus. A primeira coisa que
fazia, ao se levantar da cama, era reunir-se com os
deuses através dos sacrifícios.10

E na Monódia, chorando a morte do herói, ele pergunta:


Qual dos deuses devemos acusar? Todos igualmente, pois
negligenciaram a vigilância do querido chefe, que, no
entanto, lhe era devida em troca das muitas oferendas,
das muitas preces, dos aromas continuamente acesos, de
tanto sangue derramado de noite e de dia. Ele não era
devoto de uns e negligente com os outros, mas a todos os
que conhecemos através dos poetas, geradores e
gerados, deuses e deusas, superiores e inferiores ele
oferecia libações, enchendo os altares de bois e de
cordeiros.11
Particularamente dedicado à ciência augural, era tão
versado no assunto que, quando estava presente, os
áugures deviam dizer rigorosamente a verdade, pois seus
olhos sabiam escrutar e descobrir tudo.12 Já vimos antes
que, em suas missões, ele se fazia acompanhar de fileiras
de oráculos e não fazia nada sem antes explorar as vísceras
das vítimas e o voo dos pássaros. O honesto Amiano
reconhece, com seu bom senso, que o imperador se
entregava a uma busca excessiva de presságios e era mais
supersticioso que legítimo observador do culto –
presagiorum sciscitationi nimioe deditus ... supertitiosus
magis quam sacrorum legitimus observator.13
Tudo isso é odioso para nós, pois, com o restabelecimento
dos sacrifícios de sangue e o pretendido renascimento de
ritos pueris e absurdos, acreditamos que ele realizou uma
obra propriamente reacionária. Um dos méritos mais
evidentes do cristianismo é justamente ter purificado o
culto, libertado o altar do espetáculo repugnante das
vítimas degoladas. Contudo, se examinarmos a questão
bem a fundo, vemos que o conceito do sacrifício, que
resgata as culpas e obtém o perdão do deus, existe de um
lado e de outro, resumido e simbólico no cristianismo, real
e contínuo no paganismo. O cristianismo – não aquele do
Evangelho, claro, que coloca apenas a ideia sublime de um
Deus paterno, mas o cristianismo metafísico e dogmático –
trouxe formas novas e bem melhores, mas não um conceito
novo do culto à divindade. O princípio essencialmente
supersticioso de um arbítrio onipotente que deve ser
aplacado à força de vítimas não foi arrancado pela raiz.
Juliano, também neste aspecto, não foi nem reacionário,
nem progressista. Apenas viveu e atuou no ambiente
intelectual do seu tempo.

Malgrado esta mancha de superstição e carolice, Juliano,


tal como é retratado por Amiano e pelo entusiástico
Libânio, é uma figura atraente de homem e de príncipe.
Sentimo-nos inclinados a lamentar seus erros e
desventuras e temos por ele a simpatia e a admiração que
os homens geniais sempre inspiram. Mas, ao procurar em
Gregório de Nazianzo, a figura que surge diante de nós é
totalmente diferente. Vemos a imagem de um criminoso e
de um tolo. O herói das incursões na Gália e na Pérsia, o
homem severo de princípios e costumes, o escritor
brilhante e versátil torna-se, nos discursos de Gregório,
“aquele dragão, aquele apóstata, aquele grande
maquinador, aquele assírio, inimigo comum e corruptor de
todos, que sobre a terra versou raiva e ameaças, que
lançou até o céu as suas palavras iníquas.”14 E os escritos
de Juliano são “discursos infames e zombarias, cuja força
está toda na impiedade e, por assim dizer, numa sabedoria
de ignorante”.15
O ódio de Gregório por Juliano é tão grande que, para
poder acusá-lo de perfídia, o piedoso escritor não hesita em
tornar-se um apologista entusiasmado do imperador
Constâncio. Temos aqui uma voluntária e deplorável
ocultação da verdade. Recordemos que o arianista
Constâncio foi não só um feroz perseguidor dos pagãos,
mas um perseguidor não menos feroz dos ortodoxos, tanto
que o grande Atanásio sofreu todo o peso de sua cólera.
Pois Gregório exalta-se de tal maneira na louvação do
inimigo de Juliano que ousa desculpar o perseguidor de
seus irmãos em Cristo, dizendo que o imperador era
movido apenas pelo desejo de refazer a unidade da Igreja
dividida, esquecendo, ao dizê-lo, que a união no erro
arianista foi detestável e funesta.16 Ele atenua a heresia de
Constâncio, atribuindo a culpa aos outros. Parece, diz, que
Constâncio deu uma sacudida na ortodoxia. Mas isto deve
ser colocado na conta daqueles que o cercavam e que
enganaram um espírito simples e todo inflamado de
virtude. Afinal, exclama o polemista, não podemos esquecer
que ele é filho e herdeiro daquela que deu o fundamento da
potência imperial à fé cristã. E não podemos esquecer
também que, quando Constâncio morreu, o cristianismo
dominava!17 Nada melhor que os louvores e exaltações de
um imperador herege, tirânico e cruel, feitos por um dos
príncipes da Igreja, para demonstrar a cegueira provocada
pelas paixões e também o desvio moral em que o
cristianismo tinha caído.
Nos discursos de Gregório, Juliano transforma-se num
tipo infernal em torno do qual se reúnem as mais obscuras
e estúpidas lendas. Uma vez, quando estava sacrificando,
as vísceras das vítimas assumiram a forma de uma cruz
coroada; os espectadores ficaram aterrorizados, mas o
ímpio apóstata explicou a aparição como um símbolo da
derrota do cristianismo.18 Outra vez, guiado por um mestre
dos sagrados mistérios, Juliano entrou numa caverna e,
uma vez lá, ouviu sons horripilantes. Fantasmas
assustadores surgiram diante dele. Apavorado, quase sem
pensar, como defesa contra os demônios malignos, Juliano
recorreu ao exorcismo que costumava fazer quando criança
e fez o sinal da cruz. Os rumores cessaram imediatamente
e os demônios desapareceram. O estranho experimento foi
repetido duas vezes e por duas vezes Juliano constatou a
potência do exorcismo cristão. Ficou abalado, mas o mestre
de impiedade, que estava a seu lado, disse: “O que temes?
Os demônios não fugiram por medo da cruz, mas sim por
repulsa.” Convencido pela afirmação de seu mestre, Juliano
penetrou com ele na caverna. São lendas absurdas, mas
sintomáticas, pois revelam o trabalho da fantasia popular
junto com a credulidade e o artifício dos polemistas
cristãos, que transformaram o utópico helenista, de um
simples apaixonado por Homero e Platão, numa figura
demoníaca que incutia medo nos espíritos exaltados das
plebes cristãs.
Todo o esforço de Gregório é para transformar Juliano
num perseguidor feroz. No comportamento dele, o que
mais irritava os defensores do cristianismo era a
moderação e a sensatez racional com as quais pretendia
reconduzir o mundo ao helenismo antigo. A possibilidade
de combater o cristianismo de um modo que não fosse pela
violência era realmente inadmissível para aqueles
polemistas, que viam nesta tentativa um escândalo e um
perigo supremo. Por isso, o verdadeiro núcleo dos discursos
de Gregório está na demonstração de que, apesar das
aparências, Juliano perseguiu os cristãos. Nesta
demonstração, Gregório prova que é um polemista de
habilidade ímpar. Usa com grande eficiência uma ponta de
sarcasmo e ironia, e muitas vezes chega a tocar a verdade.
De fato, é bem natural que houvesse na moderação de
Juliano uma dose de hipocrisia. Pode-se afirmar, sem ser
injusto com ele, que a tolerância da qual ele se vangloria
em suas cartas não vem tanto de um julgamento imparcial
e de um respeito real pelas convicções alheias, quanto da
persuasão de que a tolerância era uma arma bem melhor
que a perseguição para alcançar o objetivo tão
ardentemente desejado. Mas Gregório não reconhece a
vantagem que o comportamento do imperador pagão podia
trazer para os cristãos.
Juliano dispõe as coisas de modo que persegue, mas não
parece fazê-lo, e nós sofremos sem a honra que teríamos
se todos vissem que sofremos por Cristo. [...] A diferença
que existe entre Juliano e os outros imperadores
perseguidores é que estes perseguiam lealmente e com
espírito abertamente tirânico, de modo que extraíam sua
glória da violência que exerciam, enquanto Juliano, ao
contrário, é miseravelmente astuto e vil em sua
perseguição. [...] Ele dividia em duas seções a sua
potência, a da persuasão e a da violência. Esta última,
sendo a mais desumana, ele a deixava para o povo das
cidades, cuja audácia é mais terrível, pois irracional, e
cujo ímpeto é mais feroz. E fazia isso sem decreto
público, simplesmente não impedindo as revoltas. O
trabalho mais brando e mais digno de um príncipe, o da
persuasão, ele reservava para si. Mas não conseguia
manter tal divisão até o fim, pois a natureza não lhe
permitia, como não permitia ao leopardo trocar sua pele
malhada ou ao etíope a sua cor negra. [...] Assim, para os
cristãos, ele foi tudo menos brando, e mesmo a sua
humanidade era desumana; a sua exortação era violência;
a sua cortesia, desculpa para a crueldade, pois ele queria
dar a impressão de que tinha o direito de usar da
violência, por não ter conseguido persuadir.19
Nestas palavras de Gregório, há certamente um fundo de
verdade, usado com habilidade pelo polemista, que soube
carregar oportunamente nas tintas e descrever como
estratagema intencional, como conduta premeditada algo
que era provocado sobretudo pelas exigências da situação.
Seguindo o fio desta interpretação necessariamente hostil,
Gregório resume quase todos aqueles atos de Juliano que já
mencionamos, demonstrando que o imperador não era
diretamente responsável por eles ou que tinham uma causa
justificada, e naturalmente transforma cada um deles numa
acusação contra o inimigo. Tudo isto é artificioso e parcial,
ao contrário da admirável invectiva, na qual o orador
confronta as verdadeiras virtudes cristãs com as falsas e
aparentes virtudes pagãs e lança um grito de vitória.20
Quem fala é realmente um homem arrebatado e cheio de
entusiasmo pela verdade da causa que defende. Quando
toca na glória dos mártires, Gregório encontra suas
palavras mais eficazes. Mais interessante, porém, é o
trecho em que ele, com uma originalidade de pensamento e
uma força de sentimento de que os exaustos oradores de
Atenas e de Antióquia não tinham mais nem um resquício,
lança luz sobre as antíteses essenciais do cristianismo,
aquelas que decorrem do constraste entre o conceito
pessimista do mundo presente e o conceito otimista do
mundo futuro, aquelas pelas quais o verdadeiro cristão se
deleita e se vangloria das penas terrestres como se fossem
um processo de iniciação às felicidades celestes, antíteses
que têm sua mais aguda expressão no sublime paradoxo
das beatitudes evangélicas. Gregório espanta-se ao ver que
Juliano não sente o fascínio de uma doutrina tão profunda e
tão nova. Atribui esta resistência do empedernido pagão à
obstinação, à tolice e a propósitos ímpios. Gregório estava
enganado. Deveria ter buscado a causa da inexplicável
resistência de Juliano no fato de que aquelas belas
antíteses não representavam a verdadeira situação do
cristianismo, cujas vias já não levavam à felicidade celeste
e futura, mas antes à felicidade terrestre e presente,
apresentando um espetáculo deplorável de discórdia e
cupidez. É verdade que o conceito moral que culminava
com a apoteose do humilde e do desventurado deu ao
cristianismo a sua força e a vitória. No século IV, porém,
este conceito não passava mais de uma simples expressão
retórica, que não correspondia absolutamente à realidade.
Era, portanto, natural que, para um espírito educado no
culto da sabedoria e da virtude antiga, elas parecessem
comparativamente luminosas e era natural também que ele
visse no retorno a elas a salvação do mundo.
O polemista cristão tem razão ao tentar demonstrar que
não é um ato de boa política tentar reconduzir o mundo ao
politeísmo, pois o movimento cristão já estava muito
amplamente difundido e não seria mais possível detê-lo. Os
sucessores de Constantino nada podiam fazer senão seguir
sua orientação. Retornar à política de Diocleciano, mesmo
temperando seus modos de agir, teria enfraquecido ainda
mais o Império, antagonizando a maioria dos cidadãos. Mas
Gregório exagera quando fala da oposição à tentativa de
Juliano. Como já dissemos, grande parte do campo
permaneceu fiel ao paganismo ainda por muito tempo, dado
que, cerca de trinta anos depois da morte de Juliano,
Libânio dirigiu ao imperador Teodósio o seu grande
discurso sobre os templos, suplicando que defendesse os
templos campestres do furor dos cristãos.21
O Exército permaneceu sempre intacto e seguro nas
mãos de Juliano, embora Gregório afirme que ele havia
abolido o estandarte com o signo da cruz.22 É verdade que
Gregório narra um grande escândalo que teve lugar no
campo: os soldados cristãos teriam se apresentado a
Juliano para restituir o presente recebido na data do
aniversário dele, pois perceberam que, ao acender um grão
de incenso ao recebê-lo, cumprindo o desejo do imperador,
eles estariam cometendo um ato de culto politeísta. Juliano
puniu os rebeldes, mas apenas com o exílio, pois não
queria, segundo Gregório, transformar em mártires
verdadeiros aqueles que na realidade já o eram.23
Mas, em sua narrativa, Gregório deu proporções de
grande cena solene a episódios isolados, pois é verdade que
nunca houve o mais leve indício de indisciplina no Exército
de Juliano. Ao contrário, se alguma coisa demonstra o
poder de atração do jovem imperador, esta é a devoção
ardente e ilimitada de seus soldados por ele. Durante as
árduas e exaustivas campanhas da Gália e da Germânia, na
arriscada aventura da rebelião contra Constâncio, na
grande e, no final, desesperada incursão à Pérsia, os
soldados o seguiram com entusiasmo e fidelidade segura.
Nada indica que os soldados cristãos – com certeza, havia
muitos no Exército – oscilassem em sua disciplina. E
mesmo que fosse verdadeira a suspeita de Libânio e
Sozomeno, de que a lança que matou Juliano saiu de mão
cristã, o mistério que cercou o acontecimento e o segredo
sobre o complô comprovam que nenhum projeto de
oposição teria qualquer possibilidade de sucesso entre as
obedientes fileiras de Juliano.
Entre os atos de perseguição atribuídos ao imperador,
Gregório inclui, como vimos, o famoso decreto escolar.
Vamos parar um instante para examinar os golpes que ele
desfecha contra sua vítima por tentar imitar, com as
instituições do paganismo reformado, as instituições do
cristianismo. Gregório é obrigado a reconhecer a
humanidade da tentativa de Juliano, mas não reconhece a
lealdade da intenção. Segundo ele, Juliano quis imitar o
general assírio que, não conseguindo tomar Jerusalém,
passou a negociar com os judeus, falando suavemente em
hebraico, para fisgá-los com a harmonia de sua fala. Assim,
Juliano fundava escolas, hospitais e até mosteiros,
pretendia estabelecer uma hierarquia sacerdotal
semelhante à cristã e estimulava o exercício da caridade
para com os pobres. Não sei – diz agudamente Gregório –
se não foi um bem para os cristãos o fato de que a tentativa
de Juliano de cristianizar o paganismo tenha sido
interrompida quase no nascimento pela morte do
imperador, pois, se continuasse, teria revelado seu caráter
de imitação simiesca. E assim como os símios, querendo
imitar os homens, se deixam apreender, assim também
teria acontecido com ele, que seria pego nas próprias
redes, pois as virtudes cristãs são uma parte íntima da
natureza do cristianismo e “não são passíveis de emulação
por nenhum daqueles que querem nos imitar, pois não são
vitoriosas por sabedoria humana, mas por força divina e
pela firmeza que vem do tempo”.24 Todo o primeiro
discurso de Gregório tem como objetivo demonstrar que
Juliano era um perseguidor. Como este é um dos pontos
mais interessantes da personalidade do enigmático
imperador, vamos examiná-lo mais uma vez.
Nenhum escritor imparcial pode afirmar que Juliano
abandonou seu princípio moderador, norma de conduta que
o impedia de recorrer à violência para obter o triunfo de
sua causa. Por maior que seja o esforço, ninguém
conseguirá transformar o neoplatônico sonhador num
príncipe perseguidor. Contudo, a tese defendida pelo
agudíssimo Rode e hoje retomada por outro escritor no
último estudo publicado sobre Juliano é de que houve uma
espécie de evolução na ação de Juliano: começada sob a
inspiração de uma grande temperança e equanimidade, ela
foi pouco a pouco endurecendo até o ponto de apresentar,
no final, atos tão rigorosos que, se não podem ser
qualificados como procedimentos de perseguição
propriamente ditos, aproximam-se deles.
Considero que esta tese é bastante artificiosa e
corresponde sobretudo a um esquema preconcebido. Para
começar, o reinado de Juliano foi tão breve que não
permitiria uma evolução fundamental em seu pensamento.
Ademais, estas ações não podem ser dispostas na ordem
cronológica que se pretende impor-lhes para poder deduzir
que Juliano marchava rapidamente para a perseguição.
Assim, um de seus atos que, equivocadamente, a nosso ver,
poderiam ser colocados por um escritor parcial como
Gregório sob a luz sinistra de uma perseguição religiosa – a
condenação dos cortesãos de Constâncio –, ocorreu
justamente no início de seu reinado, enquanto o édito que
condena o assassinato do bispo Jorge pelos alexandrinos foi
escrito já em Antióquia. Quanto às rebeliões, ora de
cristãos contra pagãos, ora destes contra aqueles, elas
aconteceram muitas vezes durante o seu breve reinado,
mas é impossível dizer que ele as fomentava para justificar
punições contra os cristãos. Vimos, aliás, que, mesmo em
casos graves, ele se contentava com penas administrativas.
É preciso reconhecer, no entanto, que seria impossível
para Juliano renovar a perseguição clássica dos
imperadores precedentes. Como dissemos, já ficou provado
que as perseguições ocorriam per coercitio, isto é, eram
simples ações de polícia. Os romanos não se interessavam
pela doutrina dos cristãos, pois desconheciam a
perseguição dogmática. Sequer investigavam os delitos dos
quais os cristãos se imaginavam culpados. Mas os cristãos
eram considerados uma seita perigosa para o Estado.
Portanto, em determinadas ocasiões, a autoridade imperial
fazia, como se diria hoje, uma batida e, caso se recusassem
a cumprir um ato de devoção à imagem do imperador, eram
enviados para o suplício. Mas este tipo de procedimento de
polícia só é possível contra uma exígua minoria. No dia em
que a minoria se torna maioria, ela se rebela e, por sua vez,
repete contra os antigos adversários os processos dos quais
havia sido vítima por tanto tempo. E foi o que os cristãos
fizeram depois que Constantino deu ao cristianismo uma
existência legal e reconhecida.
Portanto, mesmo que quisesse, Juliano não poderia mais
perseguir os cristãos por meio do sistema antigo, e ele
sequer tentou. Mas também não se pode pedir de Juliano
mais do que ele pode dar. Ele não poderia ser um protetor
do cristianismo. Ele combatia-o, queria deter sua difusão,
queria recolocar à sua frente o politeísmo helênico. Este
era o seu programa, e não se pode querer que seu
comportamento entrasse em contradição com seu
programa. Não podia favorecer os cristãos nem manter os
privilégios que haviam conseguido conquistar em meio
século de dominação. Os cristãos, como vimos em
Sozomeno e em Sócrates Escolástico, protestavam contra
aquele retorno ao antigo e tinham razão, do ponto de vista
de seus interesses, mas isso não significava que a conduta
de Juliano fosse perseguidora ou reprovável. É com estes
critérios que se devem julgar os procedimentos de rigor
administrativo contra os cristãos. A verdade é que Juliano
simplesmente assumia os hábitos antigos de governo, o que
precisava fazer para poder realizar seu programa. Na
administração da Justiça, ele era tão imparcial que diziam
que a Justiça, que havia fugido para o Céu, retornara à
Terra com ele. O bom Amiano diz-nos explicitamente:
Embora Juliano fizesse, às vezes, a inoportuna pergunta
sobre a religião de cada um dos litigantes, nenhuma de
suas definições sobre os litígios foi pega em contradição
com a verdade e nunca foi possível censurá-lo por
desviar-se, por religião ou qualquer outro motivo, do reto
caminho da equidade. Nec argui unuqam potuit ob
religionem, vel quodcumque aliud ub equitatis tecto
tramite deviasse.25

Esta declaração tão explícita de um historiador imparcial,


que não se calou sobre as culpas e os defeitos de seu herói
e que era totalmente impermeável a qualquer fanatismo
religioso, resolve de forma bastante clara a questão: à
exceção do caso, realmente pessoal, de sua luta com
Atanásio, Juliano nunca atuou como perseguidor. Todos os
atos que seus inimigos e os escritores eclesiásticos –
Gregório, Sócrates Escolástico, Sozomeno e Rufino –
apontam como provas de perseguição não passam de
procedimentos que visavam a abolir, sem violência, a
posição privilegiada que havia sido criada para a Igreja
cristã. Ora, dar a esta conduta, que estava inserida na
lógica do objetivo prefixado por Juliano, as cores de uma
perseguição, segundo a qual o cristianismo seria
forçosamente erradicado e substituído pelo paganismo,
parece ser fruto de um juízo parcial, de um juízo carente de
objetividade e que busca a culpa já com a intenção
preestabelecida de encontrá-la.
O segundo dos dois discursos infamantes é um grito de
alegria pela tragédia de Juliano. O terrível orador acumula
sobre a cabeça do caído todos os ultrajes fornecidos por
sua rica fantasia ou pelo que bebe no grande reservatório
da literatura bíblica. Para poder exprimir toda a iniquidade
de Juliano seria preciso chamá-lo de Jeroboão, Acab, Faraó,
Nabucodonosor. Nenhuma natureza era mais rápida que a
sua na descoberta e nas maquinações do mal.26 Prova disto
é sua benevolência para com os judeus e a promessa que
fez de reconstruir o Templo de Jerusalém, promessa que a
milagrosa intervenção de Deus tornou vã. A narrativa da
campanha da Pérsia é irritante por seu espírito injusto e
parcial. Toda a maravilhosa preparação e a singular
habilidade com que o imperador conseguiu conduzir o
Exército triunfalmente até Ctesifonte foram negadas por
Gregório, que atribui este sucesso a um artifício dos persas
para atrair o inimigo até o coração do país para derrotá-lo
mais facilmente. O heroísmo de Juliano, que é retratado
como um louco furioso, é omitido. Gregório não sabe a
quem atribuir o mérito pelo assassinato de Juliano e não
menciona a possibilidade de que o golpe tenha partido de
mão cristã. Mas regozija-se com a morte do imperador, que
seria a salvação do mundo, e conta que Juliano queria que
seu corpo fosse lançado secretamente no rio, para que
todos acreditassem que havia desaparecido e subido aos
céus, para ser incluído no rol dos deuses! Como o espírito
sectário ofusca o julgamento e distorce a verdade! Eis o
que a cena comovente e sublime descrita por Amiano e
Libânio vira nas mãos de um inimigo. Mas se o sentimento
crítico rebela-se diante desta tempestade de insultos
imerecidos, ou pelo menos excessivos, diante desta
caricatura proposital do personagem histórico, é
impossível, por outro lado, resisitir ao ímpeto da eloquência
do orador triunfante. O encerramento do discurso de
Gregório soa como uma trombeta saudando a vitória.
Dá-me, dá-me os teus discursos imperiais e sofísticos, os
teus irresistíveis silogismos, as tuas meditações. Vamos
confrontá-los com aquilo que rústicos pescadores nos
disseram. Mas o meu profeta ordena que cale o eco de
teus cantos, o som de teus instrumentos. [...] Que o
hierofante deponha a estola infame; que os sacerdotes
enverguem a justiça, a estola gloriosa, a túnica imaculada
de Cristo. Que o teu núncio se cale de desonra, que o
nosso núncio ressoe de verdade divina. Que se fechem os
teus livros falsos e mágicos; que se abram os livros dos
profetas e dos apóstolos. [...] De que te serviram tantos
aparelhos armados, tantas invenções de máquinas, tantas
miríades de homens, tantas falanges? Foi mais forte a
nossa prece e a vontade de Deus.27

Gregório exulta diante da ideia de todos os tormentos do


Tártaro helênico e de outros ainda piores aplicados a
Juliano e depois exclama:
Quem te diz estas coisas somos nós, a quem foi vetada a
palavra por aquela tua grande e admirável lei. Vê que,
condenados por teus decretos, permanecemos
silenciosos, mas erguemos uma voz livre que amaldiçoou
a tua estupidez. Que ninguém pense em deter as
cataratas do Nilo, que da Etiópia caem no Egito, nem os
raios do sol, mesmo quando se escondem um pouco atrás
das nuvens, nem em frear a língua dos cristãos que
vitupera publicamente a tua conduta. Isto é o que te
dizem Basílio e Gregório, inimigos e opositores de tua
tentativa, que tu, sabendo que eram ilustres e famosos
em toda a Grécia por sua vida, doutrina e concórdia,
reservavas para a prova extrema, como um dom triunfal e
esplêndido aos demônios, de ter de receber-te de retorno
da Pérsia ou que esperavas, talvez, em teu pensamento
perverso, arrastar contigo para o báratro. [...]
Dedico-te esta coluna mais alta e mais esplêndida que
as colunas de Hércules. Aquelas estão fixas num lugar e
só podem ser vistas por quem lá for. Esta, sendo móvel,
poderá ser vista em toda parte por todos. Será
transmitida, podes crer, também ao futuro, infamando-te,
a ti e à tua empresa, e há de ensinar a não ousar tamanha
rebelião a Deus, pois a igual malfeito segue-se igual
castigo.28
Diante de imagens de Juliano tão diversas, ou melhor,
opostas entre si, apresentadas por escritores seus
contemporâneos, sendo que para alguns ele era um nume
irradiando todas as virtudes e para outros um monstro
abominável e torpe, com certeza teríamos dificuldade para
estabelecer a verdade, se não tivéssemos os escritos do
próprio Juliano, com base nos quais não é difícil formar
uma opinião exata sobre a índole e os dotes do homem. Já
examinamos parte destes escritos no decorrer deste
estudo. Neles encontramos indicações sobre seu modo de
ver os problemas da filosofia e da religião, além da
explicação de seu comportamento nas complicadas
condições em que esteve envolvido. Mas, agora, tentaremos
penetrar na intimidade de seu espírito e surpreender o
homem. Neste sentido, os dois tediosos discursos em honra
a Constâncio, escritos por Juliano quando caiu de novo nas
graças do primo, não nos serão de nenhuma ajuda. São
textos escritos sob a pressão da prudência política, que não
correspondem de modo algum às suas convicções e,
portanto, só podem ser lidos como prova da decadência em
que estava mergulhada a literatura grega nas escolas de
retórica, em que a arte de escrever se reduzia à aplicação
de determinado formulário e a um exercício artificioso de
imitação dos exemplos da história e da literatura antiga.
Mas, na verdade, estes dois discursos não são honrosos
para Juliano. É fácil compreender as razões de
oportunidade que podem ter levado o novo César a
escrever aqueles elogios. Alçado inesperadamente ao
vértice da glória, investido de uma autoridade que o
tornava quase colega do imperador, sustentado, como ele
bem sabia, pelo apoio vigilante e poderoso de Eusébia,
Juliano podia acreditar que uma nova era começava para
ele. Daí a necessidade de não comprometer nem o
presente, nem o futuro e ganhar o beneplácito do
desconfiado e vaidoso Constâncio, dedicando a ele os
primeiros frutos de seu engenho e de seu estudo. Porém,
mesmo admitindo tudo isso e colocando uma boa parte da
responsabilidade na conta do receituário escolástico e
enfático da escola retórica à qual ele pertencia,
identificamos nestes elogios uma adulação tão excessiva
que passa uma sensação penosa, sobretudo quando
lembramos o que o próprio Juliano diria alguns anos depois
aos atenienses: havia percebido rapidamente a má-fé de
Constâncio ao lhe atribuir o título e o poder de César, pois
vivia cercado de espiões, era olhado com suspeita pelos
generais de seu Exército e mantido quase como um
prisioneiro.29
Realmente, é preciso reconhecer que Juliano tinha um
grande poder de dissimulação, pois, mesmo nas tristíssimas
condições em que se encontrava, foi capaz de enviar
aqueles hinos de admiração e reconhecimento ao maldito
primo, ao assassino de sua família! É um verdadeiro
conforto quando, chegando ao final das louvações, vemos o
escritor pedir desculpas por não fornecer provas das
virtudes que embelezaram a figura de Constâncio, pois isso
seria muito longo e ele não dispõe de tempo para servir às
Musas, pois o momento o chama à ação.30 Esta ação era,
provavelmente, a grande campanha contra a coalizão
germânica comandada pelo rei Conodomário, que se
encerrou com a gloriosa batalha de Estrasburgo!*3

Dentro do mesmo molde e com o mesmo caráter de


discurso oficial, temos também o panegírico da imperatriz
Eusébia que, em parte, já conhecemos. Mas neste
percebem-se um tom de verdadeira homenagem e a
expressão de um justo reconhecimento, além, talvez, de um
afeto mais secreto por esta mulher insigne que trouxe como
dote “uma educação correta, uma inteligência harmônica,
uma flor de beleza e uma aura capaz de fazer empalidecer
as outras virgens que, assim como as luminosas estrelas
vencidas pelos raios da lua cheia, escondem seu rosto”.31
Falaremos do panegírico de Eusébia adiante, tentando
analisar a natureza das relações entre o jovem príncipe e
sua bela e poderosa prima.
No Banquete dos Césares, nos discursos a Temístio e a
Salústio, mas sobretudo nas cartas, destaca-se o homem e,
com ele, o escritor vivaz, brilhante, arguto que, com
inspiração genuína, consegue vencer a escolástica literária
pedante com a qual havia sido alimentado. No diálogo do
Banquete, ao qual falta apenas, como em todos os escritos
de Juliano, um trabalho de polimento para que fique
excelente, ele fala daqueles que são para ele os deveres do
soberano. E é tão elevada a sua ideia de dever que ele
engloba numa única desaprovação todos os imperadores
que o precederam, à exceção de Marco Aurélio. Parece que
nem mesmo as glórias guerreiras contavam com sua
benevolência ou eram consideradas um mérito de seus
conquistadores. Juliano deveria, portanto, ser um
imperador pacífico voltado integralmente para a
propaganda religiosa que era sua maior preocupação. Mas
a natureza venceu a razão e ele demonstrou que, malgrado
as suas belas teorias, ele tinha muito em comum com
aquele Alexandre a quem, pela boca de Sileno, não poupou
suas alfinetadas. Este neoplatônico coroado era, no mais
profundo do seu ser, um soldado, e as seduções da glória
tinham para ele um irresistível fascínio que ele não
confessa. Seu primeiro pensamento depois de subir ao
trono foi lançar-se naquela loucura que foi a guerra da
Pérsia, ansiada apenas pelo espírito de aventura e pelo
desejo de maravilhar o mundo com uma empresa colossal.
Libânio conta-nos como era vivo e impaciente este espírito,
ao descrever, no discurso necrológico, o ardor de Juliano na
preparação desta ação. Foi a duras penas que concedeu um
breve e necessário adiamento para a instrução dos
soldados e dos cavalos e, nesse ínterim, estremecia de
medo de que alguém pudesse dizer, com escárnio, que era
da mesma família que o tímido Constâncio. O rei da Pérsia
mandou-lhe uma carta, propondo que delegasse a uma
comissão arbitral a negociação das discórdias entre a
Pérsia e o Império. Todos pediram a Juliano que aceitasse a
proposta. Mas ele, jogando a carta fora, declarou ser
desonroso discutir com os destruidores de tantas cidades e
respondeu que não precisava de embaixadores, pois em
breve ele mesmo iria até o rei. Eis uma resposta que
poderia ser dada por muitos daqueles imperadores a quem
ele recusa sua admiração, mas que jamais sairia da boca de
Marco Aurélio, que fazia guerra com rigorosa
responsabilidade, como em tudo o que dizia respeito ao seu
ofício, mas também com tristeza e sem paixão. Ele
certamente teria preferido abster-se e dedicar seu tempo
às suas melancólicas meditações! Mas em Juliano, a
filosofia e também o pedantismo uniam-se ao ardor juvenil
e ao desejo de ação, o que fazia dele uma das figuras mais
originais, mais ricas em contrastes e mais interessantes da
história.

Juliano carregava em seus afetos o entusiasmo de uma


alma apaixonada por altos ideais. Aqueles que militavam
em seu campo, que partilhavam de seus propósitos, de suas
esperanças, de suas ilusões recebiam dele uma espécie de
culto.
O entusiasmo de Juliano manifesta-se na admiração
ilimitada, ardente, hiperbólica por seus mestres, que o
arrasta às vezes a atos que muitos de seus próprios amigos
consideravam inconvenientes à dignidade do imperador.
Amiano Marcelino narra que, certo dia, presidindo um
julgamento no Tribunal de Constantinopla, Juliano foi
informado da chegada do filósofo Máximo, vindo da Ásia.32
Diante desse anúncio, o imperador saltou em pé de
maneira imprópria e, esquecendo de tudo, inclusive da
causa que estava julgando, abandonou o palácio,
impaciente, para encontrar o filósofo. Ao encontrá-lo,
abraçou-o, beijou-o e retornou reverentemente com ele
para a sala do tribunal. O honesto Amiano, que não
partilhava das místicas aspirações do imperador, viu nesta
homenagem excessiva e prestada publicamente ao filósofo,
uma deplorável ostentação e um desejo de vanglória. Bem
diferente é o parecer de Libânio, que admira sem nenhuma
restrição o ato de Juliano. Ele narra que Juliano havia
retomado o costume de participar das reuniões do Tribunal,
uso abandonado por Constâncio, pois não era um bom
orador, enquanto Juliano podia rivalizar com Nestor e
Ulisses na eloquência. Então, o imperador estava, certo dia,
totalmente absorto em seu ofício, quando lhe anunciaram a
chegada de Máximo.
Erguendo-se em meio aos juízes, Juliano correu à porta,
experimentando a mesma sensação de Querefonte com a
chegada de Sócrates. Mas Querefonte era Querefonte e
estava na academia, enquanto Juliano era o senhor do
mundo e estava no supremo tribunal. Assim ele
demonstrava que a sabedoria é muito mais digna de
respeito que o poder real e que tudo o que há de bom
neste último é um dom da filosofia. Recebendo-o e
abraçando-o como é costume dos particulares entre si ou
dos reis, também entre si, introduziu-o no tribunal,
embora ele não fizesse parte da corte, por acreditar que
assim honrava, não o homem com o lugar, mas o lugar
com o homem. Em meio a todos, Juliano revelou em que
homem ele havia se transformado graças ao filósofo, e
que homem era antes disso; depois, tomando-o pela mão,
partiu. Por que fez isso? Não apenas, como alguém
poderia supor, para dar a Máximo o reconhecimento pela
educação recebida, mas também para convidar todos,
jovens e velhos, a educarem-se, pois aquilo que é
desprezado pelo soberano é negligenciado por todos, mas
o que é honrado por ele é seguido por todos.

Em seus juízos, Amiano e Libânio partiam de pontos de


vista opostos e não estavam errados, nem um, nem outro.
Amiano, com seu bom senso de empregado honesto,
deplorava tudo o que pudesse diminuir a dignidade
aparente do príncipe. Libânio, helenista fervoroso,
admirava a homenagem prestada pelo imperador ao ideal
filosófico que inspirava o renascimento do politeísmo. Mas
Amiano, embora enxergasse melhor que Libânio em termos
práticos, enganou-se ao supor que o ato de Juliano
denotava ostentação.
Na personalidade paradoxal de Juliano, tendências
diametralmente opostas encontravam-se, sem se excluírem
mutuamente, manifestando-se sinceramente segundo os
casos e os acontecimentos do momento. O neoplatônico
fervoroso estava sendo sincero quando, diante do anúncio
da chegada do venerado mestre, esqueceu que era
imperador. Suas cartas transbordam de expressões de
ardente admiração pelos filósofos que o iniciaram nos
mistérios do helenismo regenerado. Entre estas cartas, as
mais entusiásticas são enderaçadas a Jâmblico.
Nas cartas, é impossível não ouvir o eco de um
sentimento verdadeiro. Nenhum príncipe jamais escreveu a
um professor de filosofia aquilo que Juliano escreve a seus
mestres. Diante do helenismo, ele estava mais ou menos na
posição dos primeiros cristãos entusiasmados por uma
ideia que ainda era partilhada e compreendida por poucos.
O que ele exercia era um verdadeiro apostolado, um
apostolado no qual estava envolvida a sorte da
humanidade. Tinha por aqueles que considerava como
iniciadores, paladinos de um grande movimento de
restauração religiosa e reforma dos costumes um
sentimento de veneração que fazia empalidecer e diminuía
sua dignidade de imperador. Juliano era um santo do
helenismo. Não hesitaria um instante diante do martírio e
encontraria a morte alegremente, como o herói que era.
Portanto, como todos os santos, deleitava-se ao se humilhar
diante da grandeza ideal dos anunciadores daquele
princípio de fé que regenerava seu espírito. É bem verdade
que parece estranho ver tamanha devoção pelos mestres de
um neoplatonismo supersticioso, já tão desviado do puro
panteísmo do grande Plotino. Mas podemos ver, em
primeiro lugar, que, na ausência de uma figura divina e de
um culto determinado, o neoplatonismo iria
necessariamente se corromper e cair num simbolismo
grosseiro e confuso. Em segundo lugar, não podemos
esquecer que Juliano era um jovem entusiasta, um literato
culto e apaixonado pela antiga civilização, não um
pensador preciso e profundo. As confusas criações dos
neoplatônicos de seu tempo empolgavam a sua imaginação
excitável. Por outro lado, o que realmente importava para
Juliano era o helenismo, a restauração e conservação das
disciplinas, dos costumes, das letras, das artes que foram o
ornamento e o esplendor do mundo grego. Seu entusiasmo
pelo neoplatonismo era um entusiasmo de segundo grau.
Juliano era um neoplatônico fervoroso porque era um
helenista fervoroso. Via na religião simbólica do
neoplatonismo o único sucedâneo possível para o
cristianismo impetuoso. Na guerra que fazia à nova
potência destruidora de sua civilização materna, ele
desfraldava, como um lábaro santo, a bandeira de seus
místicos mestres.
O entusiasmo de Juliano pela ideia que ele amava e pelos
homens que a representavam é um indício seguro da
têmpera generosa e excitável de sua índole. Esta índole
revela-se na maior parte de suas cartas aos amigos, com
uma forma e um estilo decadente, como se diria então, ou
seja, um estilo que reproduz os requintes artificiosos de um
espírito que se deleita na elaboração incansável de suas
impressões e de seus pensamentos e que acaba atenuando,
com a sutileza do engenho, a expressão eficaz e forte do
sentimento. Mas há no Juliano escritor uma graça que
resiste e revive em meio a todos estes artifícios de estilo.
Ao se tornar imperador, Juliano desejava conservar a
amizade dos antigos companheiros de estudos e ficava
satisfeito quando algum deles mostrava desejo de
aproximar-se dele, vindo para a corte. Graciosíssima e
singularmente interessante é a carta com a qual Juliano
doa ao amigo Evarguio um pequeno campo de sua
propriedade.33
Coloco à tua disposição, como presente, uma pequena
propriedade de quatro campos que recebi de minha avó,
na Bitínia, que certamente não é suficiente para que o
homem que a possua pense que adquiriu algo de grande e
se torne arrogante. Mas o presente certamente não será
tão mal recebido por ti, se me deixares listar uma a uma
as suas qualidades. Sei que posso muito bem brincar
contigo, pois és cheio de graça e de espírito. Ele não dista
mais de vinte estádios do mar e nenhum mercador ou
barqueiro perturba a paisagem com falações ou com
prepotências. Mas isso não quer dizer que os favores de
Nereu estão ausentes; há peixes frescos, ainda frementes
e, de uma colina não muito distante da casa, verás o mar
da Propôntida e as ilhas, além da cidade que tem o nome
do grande imperador. Não colocarás os pés em fucos e
algas, nem terás o desgosto de ver os detritos nojentos e
as inúmeras imundícies lançados pelo mar na praia e na
areia. A teu redor terás árvores sempre verdes, tomilho e
outras ervas fragrantes. Ah, que paz recostar-se ali,
folheando um livro, e depois repousar a vista no radiante
espetáculo dos barcos e do mar! Quando era bem jovem,
adorava aquela terra, com suas límpidas nascentes, um
banho delicioso, um horto e árvores. Quando me tornei
homem, desejei voltar ao antigo balneário e lá estive
muitas vezes. Temos lá também uma pequena lembrança
de minha sabedoria de agricultor, um breve vinhedo que
dá um vinho odoroso e ameno que não precisa do tempo
para ganhar valor. Verás Baco e as Graças. O cacho ainda
na cepa ou espremido no lagar cheira a rosas e o mosto
nos jarros é, nas palavras de Homero, um extrato de
néctar. Ah, por que então este vinhedo não é mais amplo?
Talvez eu não tenha sido um agricultor previdente. Mas
como sou sóbrio com o copo de Baco e aprecio muito
mais as Ninfas, preparei apenas o que bastava para mim
e para os amigos – mercadoria sempre escassa entre os
homens. Este é meu presente para ti, ó caro chefe. É
pequeno, mas será bem recebido vindo de um amigo para
um amigo, ou para a casa, da casa, como diz o sábio
poeta Píndaro. Escrevi esta carta às pressas, à luz do
candeeiro. Se encontrares algum erro, não me reproves
severamente, de retórico para retórico.
Esta carta é uma pequena obra-prima. Vibra nela um
sentimento da natureza raríssimo entre os antigos, algo de
especial que só pode ser próprio de uma alma aberta a
impressões mais vagas. Quantos pensamentos devem ter
passado pela mente do jovem meditabundo que, de sua
colina solitária, entre uma página e outra de Homero,
olhava o mar, os barcos e a distante Constantinopla! Este
último filho da Grécia sentia em si todo o encanto da
civilização e do pensamento helênico, que uma religião
inimiga, a religião de seus perseguidores, tentava aniquilar.
E ele sonhava em conservar esta civilização, fazê-la reviver,
salvar os deuses que seus poetas cantaram tão divinamente
e que tanta glória deram a um mundo que hoje os
repudiava!
Isso mostra que, mesmo no meio de tantas experiências
tempestuosas, o espírito de Juliano se mantinha sereno e
aberto a todas as impressões da natureza e da arte.
Esforçando-se para agir racionalmente em todas as
situações, ele acreditava que seus esforços conseguiriam
mantê-lo distante de qualquer impulso passional. Seus
conselhos são, portanto, sempre inspirados na mais pura
sensatez. Para um amigo, ele escreveu:34
Ficamos satisfeitos em saber que, na condução dos
negócios, tentas conciliar o rigor e a doçura, pois unir a
doçura e a temperança à firmeza e à força e usar aquelas
com os dóceis e estas para corrigir os maus é obra,
segundo creio, de uma índole e de uma virtude não
pequena. Tendo em vista tais objetivos, rogamos que
harmonizes uma coisa com a outra apenas para o bem,
pois os mais sábios dos antigos acreditavam justamente
que este deve ser o fim de toda virtude. Que possas viver
são e feliz tão longamente quanto possível, ó irmão
desejadíssimo e amadíssimo.
Juliano tinha o furor da leitura. Vimos a efusão com que
agradeceu à imperatriz Eusébia quando esta, sabendo-o
desprovido de livros no momento em que partia de Milão
para a Gália, ofereceu-lhe uma biblioteca inteira. Quando o
bispo Jorge foi assassinado em Alexandria, o imperador
passou uma bela descompostura nos alexandrinos, mas
depois deixou-os tranquilos. Não seria um julgamento
temerário dizer que, no fundo, não ficou tão descontente
com aquele tumulto causado pelo ódio aos cristãos. Juliano
só se preocupou vivamente com uma coisa: apossar-se dos
livros do bispo assassinado. E punha tanto empenho nesta
preocupação que ela acabou se tornando iníqua e cruel.
Logo depois da morte de Jorge, ele escreveu ao governador
da província do Egito:35
Alguns amam os cavalos, outros os pássaros, outros as
feras. Eu, desde menino, não tive amor mais forte que o
dos livros. Seria, portanto, absurdo que deixasse que
certos homens, aos quais nem o ouro basta para saciar o
amor pela riqueza e que pensam que podem tirá-los de
mim facilmente, se apossassem deles. Peço-te, portanto, o
favor especial de recolher todos os livros de Jorge. Ele
possuía muitos de filosofia, muitos de retórica e muitos
relacionados à doutrina dos ímpios galileus. Estes
últimos, gostaria de destruí-los todos, se não fosse o
temor de ver destruídos junto com eles também os bons
livros. Peço-te então que faças a mais minuciosa busca de
todos eles. Nesta busca, o secretário de Jorge poderá ser
de grande ajuda, mas ele deve ficar sabendo que, se
realmente te colocar na pista dos livros, terá como
prêmio a liberdade. E se por acaso tentar te enganar, não
deves hesitar em submetê-lo à prova dos tormentos.
Conheço os livros de Jorge, se não todos, realmente
muitos, que ele me emprestou quando estava na
Capadócia, para copiá-los, e depois pegou de volta.
Parece que o governador do Egito, que era aquele infeliz
Edíquio que, um pouco mais tarde, sentiu toda a ira de
Juliano quando não se mostrou suficientemente vigoroso
contra Atanásio, não teve sucesso nesta tarefa de reunir os
livros do bispo assassinado e que nem mesmo a tortura
imposta ao secretário teve bons resultados. De fato, há no
epistolário este outro bilhetinho endereçado a Porfírio,
provavelmente um empregado da administração egípcia.36
Jorge possuía uma rica e grande biblioteca. Tinha livros
de filosofia, de todas as escolas, muitos de história e
livros dos galileus em quantidade não menor. Procura
rapidamente esta biblioteca e trata de expedi-la para
Antióquia. É bom lembrar que te exporias a um
grandíssimo castigo se não empregasses todo o zelo nesta
busca. Se não conseguires com recriminações, com
ameaças de todo tipo, usa sem parcimônia, se forem
escravos, a tortura, para obrigar todos aqueles que forem
suspeitos de subtrair alguns deste livros a devolvê-los.
Na verdade, por mais que possa parecer admirável um
amor tão grande aos livros e à cultura num homem como
Juliano, não é justificável proceder com tamanha violência,
que o torna tirânico e cruel. Há aqui, com certeza, uma
grave mancha no caráter do nosso herói. Mas acreditamos
que é um único o caso de um homem poderosíssimo e
sensato em todas as coisas, que perde a cabeça a ponto de
tornar-se iníquo... por amor aos livros! Temos aqui, o
homem por inteiro, com todas as suas contradições e com
sua maravilhosa versatilidade. Não podemos esquecer que
Juliano estava em Antióquia, onde, em poucos meses, teria
de organizar a árdua expedição à Pérsia, tarefa na qual se
aplicava com toda a intensidade de um espírito repleto de
experiência militar. Estas gravíssimas ocupações não o
impediam de polemizar com os antioquenses, de tratar de
infindáveis negócios religiosos e administrativos. Porém,
em meio a todos estes cuidados, ele ainda encontrava a
liberdade, a serenidade de pensamento necessárias para
desejar ter perto de si, em breve, a biblioteca filosófica do
bispo assassinado. No fundo, gostaria mais de ter nas mãos
aqueles volumes, que já conhecia em parte e que remetiam
a seus estudos juvenis, de poder folhear respeitosamente
aqueles papiros que continham os tesouros da sabedoria
antiga, de percorrer os documentos menos conhecidos da
literatura cristã, para combater sua doutrina com maior
eficácia. Em suma, gostaria mais de tudo isto que das
pompas imperiais e talvez até que da futura e esperada
vitória sobre o rei da Pérsia. Singular imperador! Ainda
mais singular, pois suas manias de literato e erudito não o
impediam de ser um heroico aventureiro, um grande
capitão e um sábio administrador.
Se Juliano não tivesse se perdido em sua utopia religiosa
correndo ao encontro da própria ruína, teria sido capaz de
recompor o Império com base num governo ponderado,
devolvendo-lhe a prosperidade como fez na Gália. Na
convivência que tivemos com ele nos vários momentos de
sua vida e sob os múltiplos aspectos em que se revelava,
tivemos a prova mais clara de seu alto sentimento de
justiça, plenamente reconhecido não apenas por Libânio,
mas também pelo juiz imparcial e seguro que é Amiano.
Vimos também que um de seus propósitos mais firmes era
implantar uma administração da coisa pública e da Corte
imperial que barrasse os tremendos abusos que maculavam
o Estado e aliviasse os graves problemas sob os quais as
populações sofriam e se reduziam. A Gália saudou Juliano
como restaurador da prosperidade pública; os judeus foram
aliviados dos impostos arbitrários que pesavam sobre eles;
se a expedição à Pérsia ainda exigia grandes contribuições
por parte dos súditos, o imperador havia declarado, como
vimos em Libânio, que seu retorno vitorioso seria o sinal
para uma reforma financeira que devolveria o sangue às
veias exaustas da economia do Império. Se a depuração
radical da Corte imperial, realizada por ele assim que
entrou em Constantinopla, e a expulsão de milhares de
parasitas que lá prosperavam à custa dos súditos foram
precipitadas, segundo o parecer de Amiano e de Sócrates
Escolástico, foram, no entanto, salutares em seus efeitos
financeiros e a mais eloquente afirmação da retidão do
jovem imperador. O imenso cuidado com que tentava
garantir que ninguém fugisse dos cargos para os quais era
convocado e que fossem abolidos os privilégios, de modo a
igualar todos os cidadãos nos riscos e nos tributos da
administração pública – coisa contra a qual os cristãos, a
quem os imperadores precedentes concederam tais
privilégios, protestavam como se fosse um atentado contra
seus direitos –, não pode deixar de ser calorosamente
aprovado por qualquer juiz imparcial.
Mas há um ato administrativo de Juliano que gostaríamos
de examinar mais detidamente, pois demonstra o empenho
para com o bem público que o inspirava e também a
praticidade dos procedimentos que sabia adotar, descendo
das nuvens das especulações míticas e das preocupações
de comandante e reformador.
Nas cartas e nos bilhetes que Juliano enviava aos amigos,
aparece várias vezes a permissão para usar viaturas do
Estado, e no convite feito ao arianista Aécio para vir
encontrá-lo, ele oferece o uso de um cavalo de reforço.
Estas curiosas indicações estão ligadas a um dos
procedimentos administrativos mais importantes para
Juliano: o reordenamento do serviço postal do Império. As
comunicações entre as várias partes de um Império que
compreendia quase todo o mundo conhecido só eram
possíveis e relativamente fáceis graças a um sistema viário
admirável, o maior orglho da administração romana. Por
aquelas estradas organizou-se um verdadeiro serviço de
transportes e correios, de postos de troca dos cavalos e de
alojamento que facilitava o tráfego governamental e
privado. Os gastos de manutenção do sistema postal eram
sustentados pelas províncias e pelas cidades por onde as
estradas passavam. Ora, o abuso não demorou a infiltrar-se
também neste serviço, tornando-se tão grande nos anos
anteriores ao governo de Juliano que conseguiu
desorganizá-lo radicalmente. Todas as autoridades
imperiais, grandes e pequenas, distribuíam a quem
quisessem passagens gratuitas, evectiones, e as finanças
municipais, já exaustas, tinham de cobrir os gastos das
viagens dos cidadãos. Os concílios, sínodos episcopais que,
no reinado de Constâncio, sucediam-se com frequência
crescente nas sedes mais distantes e aos quais os prelados
compareciam com seus séquitos teológicos, em meio ao
luxo de um clero corrupto e dominador, eram
especialmente responsáveis pela desordem no andamento
dos correios e obrigavam os contribuintes a despesas
enormes. Com palavras nas quais se sente a intenção
irônica, Amiano descreve “as catervas de bispos que
corriam, para cima e para baixo, de um sínodo para outro,
com viaturas e cavalos pertencentes ao serviço público” e
acrescenta que Constâncio estava tão envolvido no esforço
de regular ao seu modo o dogma teológico que chegou a
ponto de cortar os nervos do sistema postal – rei
vehiculariae succideret nervos.37
Libânio faz uma curiosa descrição das condições
deploráveis em que estava o serviço por causa dos incríveis
abusos que o desmantelavam. As autoridades das cidades
não podiam mais sustentar as exigências dos requisitantes;
os animais morriam de fadiga; os condutores de mulas e de
cavalos fugiam para as montanhas para escapar de um
trabalho insuportável.38 Assim que assumiu o trono, Juliano
reprimiu os abusos com mão firme e regulamentou
legalmente a prestação dos serviços gratuitos, as
evectiones. Somente os governadores de província podiam
concedê-las. Os magistrados inferiores tinham direito a um
número limitado e precisavam receber uma autorização do
imperador, caso a caso. Parece que os efeitos desta reforma
foram salutares e rapidíssimos. Depois daquela excepcional
descrição e de dizer que os conselhos municipais,
responsáveis pelas despesas, estavam completamente
arruinados, Libânio continua assim:
Juliano deteve este abuso, proibindo as viagens não
estritamente necessárias e afirmando que era igualmente
perigoso conceder ou receber estes serviços gratuitos. E
ocorreu uma coisa incrível: os condutores foram
obrigados a exercitar os muares e os cavalos porque, se
antes sofriam pelos maus-tratos, agora sofrem pelo
excesso de ócio.39
Descontando a parte devida ao exagero do apologista,
resta sempre um mérito enorme de Juliano por propor e
colocar em prática uma reforma tão sensata e civil. A
diligência escrupulosa com que a aplicava pode ser vista
justamente no pequeno número de permissões para o uso
dos correios públicos concedidas a alguns dos amigos cuja
vinda desejava. A prova de que a lei de Juliano exigia uma
obediência severa era a necessidade da palavra do próprio
imperador para gozar de um favor que, pouco antes, fazia
parte dos hábitos comuns.

A conduta de Juliano, administrador de um imenso Império,


não é, portanto, menos admirável que a de Juliano,
comandante de Exércitos poderosos e organizador de
grandes e admiráveis expedições. O único erro que
cometeu como administrador foi a violência econômica
contra o mercado de Antióquia. À exceção deste erro,
decorrente também das boas intenções do príncipe e da
absoluta ignorância das leis econômicas em que vivia a
sociedade antiga, não encontramos em seu governo tão
breve nenhum ato que desminta a afirmação de Libânio de
que, se tivesse tido tempo, ele teria restaurado a
prosperidade de todo o Império como havia feito com a
Gália.
As cartas dão fé da retidão e da bondade do homem
privado e demonstram a fina gentileza de espírito que havia
naquele jovem, mesmo tendo passado seus mais belos anos
em meio às durezas das guerras, na vida dos
acampamentos militares.
NOTAS
1. Amm. Marcell., II, 40, 29 sg.
2. Liban., 510, 5.
3. Idem, 516, 15.
4. Idem, 575, 15.
5. Idem, 579, 5.
6. Idem, 580, 10 sg.
7. Idem, 617, 5 sg.
8. Idem, 408, 5sg.
9. Idem, 413, 10 sg.
10. Idem, 564, 15 sg.
11. Idem, 508, 10.
12. Idem, 582, 10.
13. Amm. Marcell., II, 42, 30.
14. Gregor., 49.
15. Idem, 50.
16. Idem, 64.
17. Idem, 119.
18. Idem, 70 sg.
19. Idem, 72-74
20. Idem, 76 sg.
21. Liban., II, 164, 5 sg.
22. Gregor., 75.
23. Idem, 83 sg.
24. Idem, 102 sg.
25. Amm. Marcell., I. 288.
26. Gregor., 111.
27. Idem, 126.
28. Idem, 132 sg.
29. Iulian., 277 sg.
30. Idem, 130.
31. Idem, 109.
32. Amm. Marcell., I, 273, 1 sg.
33. Iulian., 549, 18 sg.
34. Idem, 521, 11 sg.
35. Idem, 487, 11 sg.
36. Idem, 351, 20 sg.
37. Amm. Marcell., I, 263.
38. Liban., I, 569, 9 sg.
39. Idem, I, 570, 11 sg.
40. Barnaba, 1, 6.
41. Idem, 18-21.
42. Ver, a este respeito, o recentíssimo estudo de Carl Schmidt, Plotin’s
stellung zum Gnosticismus, 1901.
43. Minucio F., 32, 3.

*1 O cargo menor é o de César, o maior, o de Augusto. [N.A.]


*2 Libânio refere-se provavelmente a Máximo. [N.A.]
*3 O professor R. D’Affonso, em seu ensaio sobre os escritos de Juliano, dos

quais ele só teve conhecimento depois de ler meu livro, ensaio este que pelo
domínio das fontes e pela acuidade e imparcialidade de julgamento é uma
excelente contribuição para os estudos julianistas, sustenta uma tese que me
parece um pouco arriscada: os panegíricos de Constâncio teriam sido escritos
por Juliano com intenção irônica, de modo que, em vez de serem a expressão
de um oportunismo deplorável, seriam um ataque ferino, embora velado, contra
o novo protetor. Ora, é indubitável que Juliano, no íntimo de seus pensamentos,
não levava a sério os desmedidos louvores que esbanja com o primo. Mas isto
não basta para dar a seu discurso o caráter da ironia. Para tanto, seria
necessário que, tendo algum interesse em deixar transparecer seu verdadeiro
pensamento, ele escrevesse de modo que os ouvintes ou leitores pudessem
captá-lo nas entrelinhas de um texto que diz o oposto do que ele pensa. Ora,
estes panegíricos foram escritos na lua de mel da conciliação de Juliano com
Constâncio, o primeiro durante sua estadia em Milão, o segundo na Gália, na
véspera de suas primeiras campanhas. Depois de ter aceito o novo posto que
fazia dele o segundo personagem do Império, é razoável que Juliano desejasse
consolidar sua base e ganhar cada vez mais as boas graças do imperador ou
pelo menos dissipar as suspeitas que ainda poderiam se esconder em seu
espírito. Seria muita leviandade de sua parte se, justamente no momento em
que recebia de Constâncio o título de César para exercê-lo em seu nome, ele
tivesse resolvido ofendê-lo com as alfinetadas de uma transparente ironia! Os
dois panegíricos foram escritos e são, em parte justificáveis, em razão do
objetivo de erradicar a desconfiança que a consciência da perversidade das
próprias ações despertava em Constâncio. O ponto mais delicado nas relações
entre os dois primos devia ser a lembrança do massacre do pai e dos parentes
de Juliano perpetrado por Constâncio, quando da morte de Constantino. Pois
bem, em seu primeiro discurso, Juliano toma posição nitidamente, ao repetir
em seu próprio nome a desculpa usada por Constâncio para atenuar o crime.
Juliano fala das sábias medidas tomadas por Constâncio ao assumir o Império e
acrescenta em seguida esta frase: “salvo que, forçado pelas circunstâncias,
contra a tua vontade não impediste que outros cometessem excessos” (Iulian.,
19). Como demonstramos em nossa exposição, esta desculpa absolutamente
não desculpava Constâncio, mas, de todo modo, fornecia uma escapatória para
fugir das censuras, jogando nos outros a culpa pelos erros. A explicação era
aceita oficialmente como uma espécie de dogma que, na corte de Constâncio,
tinha de ser aceito de olhos fechados. Juliano, como ele mesmo diz no
Manifesto aos atenienses, não acreditava nisso, o que não impede que sua
declaração, no momento em que foi feita, fosse considerada uma garantia de
que ele esquecia o passado e desistia de qualquer pensamento de vingança,
qualquer sentimento de cólera e horror. Dado este passo de reconhecimento
hipócrita da virtude de Constâncio, que deve ter sido o mais difícil e
repugnante para ele, Juliano entrava a velas despregadas e sem obstáculos nas
águas da retórica aduladora de seu tempo e cumpria o esquema do panegírico
oficial com uma matéria que, à exceção de alguns pontos do segundo texto, já
estava pronta nos depósitos retóricos da escola.
Até a batalha de Estrasburgo, Juliano pensava que poderia viver num acordo
pacífico com Constâncio e tentava, por seu lado, infundir no ânimo do primo,
com fatos e com palavras, a confiança nele e em seu trabalho. É verdade que,
em escritos posteriores, Juliano tenta nos convencer de que desde o primeiro
dia, quando desfilava triunfante na carruagem imperial pelas ruas de Milão,
tinha o pressentimento da verdade e a certeza da traição de Constâncio. Não
devemos, porém, tomar ao pé da letra tudo aquilo que o hábil polemista diz em
sua defesa. Por outro lado, boa parte disso deve-se aos efeitos da perspectiva
histórica, que diminui as distâncias e mostra um recorte de acontecimentos
que, na realidade, percorrem um longo caminho. Creio, portanto, que posso
concluir que os dois panegíricos foram escritos por Juliano na intenção real de
agradar a Constâncio e espelham um momento determinado da vida do nosso
herói. [N.A.]
Capítulo VIII. Conclusão

A omais
começar este estudo, afirmei que nenhum destino foi
miserável que o de Juliano, pois a Igreja,
inutilmente combatida por ele, vingou-se cobrindo sua
nobre figura com uma máscara odiosa e tornando
execrável o seu nome, que teria todo direito ao respeito e à
admiração das gerações futuras. Porém, depois de estar
tão longamente em sua companhia, fica ainda mais viva a
compaixão por seu destino, pois talvez não haja na história
outro exemplo de tantos e tão esplêndidos dotes
completamente desperdiçados numa empresa inútil.
Poucos entre os homens que surgiram na cena do mundo
possuíam, como ele, todas as forças necessárias para
exercer uma ação duradoura sobre os acontecimentos. E
nenhum desapareceu mais miseravelmente, sem deixar
nenhum traço de si. A obra de Juliano foi passageira e vã
como a esteira de um barco na superfície da água. Assim
que passa a popa, as águas divididas juntam-se de novo e o
sulco não é mais visível. Assim, mal Juliano expirava em
sua tenda, na planície persa, sua tentativa efêmera
desaparecia no nada e a história retomava seu curso como
se ele nunca tivesse existido. Pode-se dizer que o
cristianismo nem chegou a perceber a guerra que Juliano
lhe movia. Não conseguiu deter sua propaganda nem um
instante e não influiu de modo algum em sua orientação e
em suas manifestações posteriores.
O destino resolveu colocar sobre o trono dos Césares, no
ocaso do Império, um homem de inteligência viva e espírito
forte e reto. E ele não serviu para nada! Seus esforços
esgotaram-se no vazio. Deixou-se dominar por uma ideia
completamente equivocada e impulsionou sua ação numa
direção em cujo extremo havia apenas o abismo. Ele
avançou para lá como um sonâmbulo que não tem
consciência do mundo real que o cerca. Não há, na história,
espetáculo mais triste que este desperdício de forças
preciosas, mas não há também espetáculo mais
interessante, pois o estudo das causas que tornaram
possível o surgimento de uma ilusão tão grande num
espírito tão aberto e inteligente permite compreender e
avaliar a revolução religiosa que levou a antiga civilização
à ruína.
Examinamos e discutimos tais causas no decorrer deste
trabalho. Mas não será inútil resumi-las e reafirmá-las, pois
nelas reside todo o interesse da vida de Juliano e em sua
análise está a razão do longo estudo que empreendemos.

Vamos tentar primeiramente abraçar com o olhar o grande


quadro cujas várias partes examinamos. O cristianismo
conseguiu vencer a antiga civilização porque trouxe ao
mundo dois princípios essencialmente inovadores, que
respondiam às condições e às necessidades do tempo.
Numa das mãos, trazia o monoteísmo, indispensável num
mundo para o qual o antigo politeísmo tinha perdido toda e
qualquer substância; na outra, trazia uma lei moral que se
chocava com a antiga organização da sociedade baseada na
prepotência da força, uma lei que glorificava a fraqueza e a
desventura e pretendia inaugurar uma nova sociedade
baseada no amor e na consciência da fraternidade humana.
Só que, usando estes dois princípios inovadores como
alavanca, o cristianismo conseguiu implementar a parte
negativa de seu programa, ou seja, desestruturar e
derrubar a antiga civilização, mas não cumpriu a parte
positiva. Assim, no dia em que instituiu uma nova
sociedade, depois de sair vencedor da luta secular
enfrentada heroicamente, ele ainda tinha como base a
prepotência da força, a violência e o abuso. Sua lei divina
ainda era apenas um ideal luminoso, sem eficácia direta
sobre as ações do homem. Qual a razão deste estranho
fenômeno? Por que a antiga iniquidade, destruída por um
Evangelho divino, deu lugar a uma nova iniquidade mais
tenebrosa do que aquela que foi combatida e vencida? A
razão deste fenômeno histórico é que o imperativo
categórico de uma lei moral não se encontra fora e acima
da humanidade, mas dentro dela, na condição essencial de
seu espírito num dado momento histórico e na consequente
necessidade de sua organização. Não é a lei moral que
renova a sociedade, é a sociedade já renovada que se
impõe à lei moral. Ora, uma sociedade não pode se renovar
se seu modo de compreender-se a si mesma e ao Universo
não se renova também. A partir do momento em que se
estabeleceram o conceito antropomórfico da divindade e o
conceito antropo e geocêntrico do Universo, a humanidade
podia mudar as vestes, mas, na substância, permanecia
sempre igual a si mesma. Estabelecido o conceito de um
poder sobrenatural e suprarracional, de um transcendente
dotado de arbítrio absoluto, a humanidade sempre
encontraria um modo de eludir uma lei que lhe parecia
pesada, de submeter o poder às suas paixões, de obrigá-lo
a aceitar compromissos, de dar à forma externa o valor de
uma compensação contratual. A renovação da sociedade só
poderia se verificar quando o conceito de um arbítrio
sobrenatural fosse substituído pelo conceito do
determinismo inalterável de um sitema natural. É preciso
que a humanidade se coloque, a si e ao Universo, na linha
da verdade para organizar-se em torno de uma lei da qual
não possa escapar. A lei moral que Cristo revelou é a mais
sublime de todas. É, aliás, absolutamente perfeita. Mas é
uma lei que, justamente por ser moralmente baseada na
verdade, mostrou-se ineficaz num mundo intelectualmente
baseado no falso.
Ao assumir o trono depois de meio século de cristianismo
vitorioso, Juliano encontrou o vício e o crime dominando na
Corte, as lutas intestinas dilacerando a Igreja e o clero,
uma profunda corrupção em todos os membros do Império
cristão. E alimentou a ilusão de que poderia salvar a
civilização e moralizar o mundo retornando ao antigo,
fundando uma espécie de paganismo cristianizado. Juliano
não pode, portanto, ser considerado um retrógrado, pois
tentava, de um lado, reduzir o panteão helênico a uma
hierarquia monoteísta e, de outro, reconhecia o valor das
virtudes que o cristianismo deveria difundir em toda a
humanidade. Mas também não pode ser considerado dono
de uma inteligência inovadora porque não soube trazer ao
mundo nenhum novo princípio intelectual, pretendendo
apenas revestir com as formas antigas aqueles mesmos
princípios teológicos e morais que o cristianismo havia
proclamado e que lhe valeram a vitória. Para iniciar uma
revolução realmente genial e fecunda, Juliano precisaria
promover uma religião sem sacrifícios e sem culto e,
intuindo a possibilidade de aliviar o mundo e o homem do
terror de um arbítrio transcendente e absoluto e das
cadeias da superstição, estabelecer os princípios de uma
civilização que se construísse com base na razão e na
ciência. Mas Juliano não teve nem a mais leve intuição de
tudo isso.

O cristianismo, tal como apareceu na Palestina, na pessoa e


no ensinamento de seu fundador, era a pura expressão de
um sentimento moral, a aspiração a um ideal de justiça, um
protesto terrivelmente eloquente, em sua suavidade, contra
a iniquidade do mundo. A pregação de Jesus, tão original
no sopro fascinante de poesia que a animava e na refinada
simplicidade de sua forma, seguia a trilha iniciada pelos
grandes profetas do tempo da decadência de Israel, que
colocavam na conversão à santidade da vida a condição
para o ressurgimento de seu povo. Para Jesus – e
exatamente aqui está a novidade divina de seu Evangelho –,
a santidade da vida explicava-se no conceito da
fraternidade de todos os homens diante de um único Pai e,
consequentemente, na condenação da prepotência e do
abuso da força, na exaltação dos humildes, dos sofredores,
dos ofendidos.
O primitivo ensinamento cristão constava de duas boas-
novas, cuja eficácia permitiu que aprofundasse suas raízes
também naqueles solos que aparentemente não eram
propícios, por serem carentes de qualquer trabalho de
tradições preparatórias. Em primeiro lugar, anunciava uma
iminente transformação que mudaria a face do mundo,
punindo os opressores, aliviando os oprimidos. Em segundo
lugar, afirmava a revelação de uma pessoa divina que teve
existência histórica, que era uma pessoa bem determinada
e concreta, sobre cuja existência não havia dúvida alguma,
na qual, portanto, era possível crer com uma segurança
que já estava completamente ausente nas exauridas
divindades do Olimpo helênico. Com a primeira promessa,
o cristianismo acalmava a sede de justiça que atormentava
um mundo sufocado pelo abuso da força, erigida em
direito, e com a revelação do Cristo divino, respondia às
aspirações deste mesmo mundo de ter um Deus no qual
pudesse acreditar, capaz de substituir os antigos, nos quais
não acreditava mais. Por fim, quando este Deus tomou para
si todas as misérias humanas e morreu perseguido, como o
último dos escravos, a apoteose da desventura estava
completa. O cristianismo tansformou-se naturalmente na
religião para a qual todos os infelizes acorriam.
Portanto, no período primitivo de sua existência, o
cristianismo era uma religião essencialmente moral e toda
feita de sentimento. É verdade que Paulo, assim que se
converteu, tentou elaborar uma explicação racional ao
processo da redenção. Mente lógica por excelência, Paulo
só se converteu quando este processo ficou bem claro para
ele. Mas o pensamento paulino permaneceu durante muito
tempo, mais que qualquer outra coisa, como uma questão
pessoal e não parece que tenha exercido, senão muito mais
tarde, uma grande influência sobre o desenvolvimento
doutrinário do cristianismo. Era a ação de sua pessoa, de
seu espírito, de sua vontade, era o anúncio da iminente
regeneração do mundo pelo surgimento do Cristo, salvador
dos oprimidos, a boa-nova que atraía para a nova doutrina
as multidões de crentes. Durante quase um século e meio,
o cristianismo manteve-se neste ambiente de fé simples,
fora de qualquer aparato de doutrina sistemática. Os que
se denominavam cristãos tinham em comum apenas uma fé
monoteísta, baseada na revelação de Deus, ocorrida em
Cristo, a esperança de uma vida eterna, garantida por
Cristo, e a consciência do dever, assumido no batismo, de
manter uma conduta correspondente ao exemplo deixado
por Cristo. Os escritos cristãos, anteriores à segunda
metade do século II, a διδαχή,*1 a primeira carta de
Clemente, a carta de Inácio, os escritos de Pápias, a carta
de Barnabé, mostram a completa ausência de qualquer
aparato doutrinário no cristianismo primitivo, que não era,
no fundo, mais que uma norma de conduta apoiada em
algumas verdades e sobretudo em algumas promessas
reveladas por Cristo. Estes cristãos primitivos viviam sua fé
com toda a alma e não sentiam nenhuma necessidade de
representá-la com um complexo de doutrinas
determinadas. Qual era a dogmática dos cristãos? É o que
nos diz Barnabé: “Três são os dogmas do Senhor, a
esperança ... a justiça ... o amor”. E no encerramento de
sua carta, ao apresentar os dois caminhos que se abrem
para o crente, o caminho da luz e o caminho das trevas, ele
traça um programa que é tão somente o eco fiel da moral
dos Evangelhos, no qual não há nem sombra de um
princípio doutrinário.

Uma prova singularmente interessante da pobreza das


doutrinas filosóficas no cristianismo genuíno até a segunda
metade do século II pode ser vista no Otávio, de Minúcio
Félix. No tempo dos Antoninos, mais precisamente no
reinado de Marco Aurélio, quando este diálogo foi escrito, o
cristianismo começava a conquistar adeptos também nos
estratos cultos da sociedade romana. Minúcio Félix era um
advogado de sucesso, um orador ciceroniano, um escritor
elegante, um filósofo erudito. Sua defesa do cristianismo
fornece, portanto, uma ideia exata do que ele era para
aqueles espíritos cultos. Pois bem, o cristianismo de
Minúcio Félix nada mais é que um deísmo monoteísta
extremamente simples e racional, que não conhece sequer
as primeiras linhas de um sistema teológico e metafísico,
que abomina a exterioridade do culto, que põe a
consciência do homem em contato direto com Deus. “Qui
innocentiam colit, deo supplicat; qui justitian, deo libat; qui
fraudibus abstinet, propitiat deum; qui hominem periculo
subripit; deo optiman victiman cedit. Sic apud nos
religiosor est ille qui justior.”*2 Eram a alta moralidade, a
racionalidade da ideia monoteísta, e, enfim, a simplicidade
do culto, que constituíam a atração do cristianismo para os
espíritos eleitos. O caráter positivo da inteligência latina
impedia o florescimento dos parasitas metafísicos.
No mundo helênico, o cristianismo não poderia
permanecer neste estado de simplicidade dogmática. A
mente grega estava impregnada de especulação metafísica.
Não era possível que a religião – uma instituição que
representa o vínculo que une o mundo à sua causa –
pudesse conservar-se estranha à metafísica. Era fatal que
ela também se tornasse metafísica. Esta sorte coube
também ao próprio judaísmo que, na origem, assim como a
religião de Maomé, era completamente impermeável à
especulação filosófica. Mas bastou que o judaísmo se
expandisse para o mundo grego, com suas colônias, para
que se submetesse à eficácia transformadora do
pensamento filosófico e constituísse, com base no Logos
filoniano, uma verdade metafísica. Foi neste ambiente de
hebraísmo helenizado que o escritor do Evangelho joanino
absorveu a identificação de Cristo com o Logos e, assim,
abriu a porta para a especulação filosófica, que em pouco
tempo dominaria a religião. O gnosticismo foi o primeiro
fruto do conúbio entre o cristianismo e o mundo grego. O
gnosticismo cristão, que provavelmente teve suas raízes no
gnosticismo judaico, que era uma degeneração da filosofia
filoniana, foi uma espécie de neoplatonismo antecipado,
uma metafísica fantástica e curiosa que se enrodilhava em
torno da ideia do Logos, sufocando-a com suas ramagens
luxuriantes. No gnosticismo, ao perder seu caráter de
revelação de um princípio regenerador da alma humana, o
cristianismo transformava-se numa complicada cosmologia,
na qual o processo de criação se resolvia num dualismo
divino, que abrigava entre seus extremos uma hierarquia
de espíritos e divindades menores, sobre a qual primava o
Logos, emanação imediata do Deus supremo.
Dissemos que o gnosticismo cristão foi uma espécie de
neoplatonismo antecipado, o que é exato no sentido em que
ambos os sistemas recriavam, por meio das múltiplas
emanações divinas, um politeísmo efetivo sob as asas de
um monoteísmo teórico. Mas isso não impediu que
crescesse entre os dois sistemas uma antipatia profunda,
pois o gnosticismo, enxertando-se ao tronco do
cristianismo, absorveu o conceito pessimista com que este
último julgava o mundo e, não conseguindo explicar a
criação de um mundo mau por um deus bom, caiu no
dualismo, dando a um deus mau a responsabilidade pela
criação da matéria. O processo da redenção, realizado pelo
Logos descido à Terra, constava justamente da vitória do
deus bom e da consequente libertação das almas da
servidão da matéria e do mal.
Ora, nada mais odioso que esse sistema cosmológico para
o neoplatonismo genuíno, para o qual o mundo é ótimo,
perfeito em cada parte, representando uma fase de um
processo evolutivo, no qual o bem e o mal têm valor
relativo, cada um com a sua razão de ser. Nesse processo, a
ideia de redenção é estranha, pois a noção de redimir
implica a premissa de um erro ou de uma culpa que o
neoplatonismo não quer ver no mundo ou que, para ele, soa
como irreverência ao conceito de Deus. O neoplatonismo
combateu abertamente, pela boca do próprio Plotino, o
pessimismo gnóstico e, aliás, foi provavelmente por esta via
que ele se encontrou com o cristianismo e acabou por
incluí-lo na mesma polêmica em que combatia o
gnosticismo.
A aparição do gnosticismo cristão, ameaçando reconduzir
o cristianismo ao politeísmo, teve como consequência o
nascimento, como antídoto da falsa doutrina, de uma
doutrina verdadeira. Ou seja, deu origem a uma teologia
ortodoxa como instrumento para reprimir os erros
gnósticos. Enquanto permaneceu no ambiente latino, a
teologia ortodoxa não podia bater asas em voos
metafísiscos de grande altitude. Embora também tivesse
como ponto de partida a ideia do Logos divino, a essência
da religião, para ela, não era o processo cosmológico, mas
sim o processo de redenção. Não é o Logos criador, mas o
Logos redentor que inspira a teologia de Irineu e
Tertuliano. Porém, o espírito grego prevaleceu no
cristianismo, o que levou a especulação cristã a um nível,
no qual, com Clemente de Alexandria e com Orígenes, ela
se transformou num imenso sistema de metafísica
cosmológica, que só se distinguia da filosofia neoplatônica
que despontava ao seu lado pela presença do Cristo
redentor.
Já vimos quais eram as principais linhas do pensamento
de Orígenes, quais as consequências dele derivadas e qual
o desenvolvimento do pensamento cristão. Vimos como o
cristianismo transformou-se numa dogmática luxuriante e
como o mundo foi arrastado por um vendaval de disputas
metafísicas, na qual o interesse religioso se exauria
completamente. Ora, esta transformação da religião em
ciência, ou, para usar uma palavra mais exata, em filosofia,
fez com que o requisito exigido para ser cristão não fosse
mais o reconhecimento de uma determinada norma de
conduta moral e a inefável aspiração à união com Deus Pai,
revelado por Cristo, mas, antes, o reconhecimento da
verdade de um determinado complexo de dogmas
filosóficos, o fato de estar inscrito num determinado
sistema doutrinário e escolástico. Esta curiosa e essencial
transformação trouxe consigo o empobrecimento moral do
cristianismo. Nos tempos heroicos, para ser cristão, era
preciso praticar determinadas virtudes, como ensina Otávio
no diálogo de Minúcio Félix; nos séculos III e IV, era preciso
professar uma determinada doutrina. O deplorável
Constantino, coberto de crimes, que matou o filho e a
esposa, era, aos olhos do grande Atanásio, um imperador
venerando, pois tinha reunido o Concílio de Niceia e
sustentado a fórmula do ομοουσιος.*3 Nas lutas teológicas
que dilaceraram a Igreja durante três séculos, tanto de um
lado, quanto do outro, só se observava, no cristão, a sua
confissão doutrinária. O programa do Sermão da
Montanha, da carta de Barnabé ou da διδαχή*4 cedeu lugar
às fórmulas dogmáticas que os Concílios lançavam uns
contra os outros e que eram recolhidas pelos adeptos das
doutrinas em guerra. Neste estado de coisas, quando o
cristianismo, intelectualmente helenizado, abandonou sua
primeira natureza, esta foi tão completamente esquecida
que, quando quiseram recriar um sistema de moral no meio
do edifício teológico, não recorreram ao Evangelho ou a
Paulo, mas retomaram as tradições do estoicismo grego e
latino. O próprio Ambrósio, ao redigir seu livro dos
Deveres, limitou-se a copiar o livro de Cícero, que, como se
sabe, não passava de uma recriação do tratado do estoico
Panécio. Contudo, a eficácia redentora de um tal
cristianismo, que intelectualmente galgava as rochas áridas
da metafísica e moralmente abandonava o princípio vivo do
amor e da fraternidade para erguer a estátua marmórea de
uma virtude alimentada pela ideia abstrata do dever, só
podia se apagar totalmente. Transformou-se numa religião
formalista e, o que é pior, numa religião que não colocava a
salvação na renovação interior do homem, como queria
Paulo, mas no reconhecimento de exterioridades, tanto
doutrinais, quanto rituais, que, daquela luminosa aspiração
ao ideal afirmada em sua origem, a transformavam numa
complicada superstição.
Mas o cristianismo não podia perder inteiramente a
eficácia moralizadora que garantiu sua força primitiva e
sua razão de ser. A transformação da Igreja numa
organização intelectual que só exigia a concordância com
determinadas doutrinas trouxe como consequência a cisão
daqueles espíritos que buscavam na religião algo mais do
que isso e, portanto, não podiam se acomodar à
mundanidade oportunista de uma religião oficial. Eles
resolveram afastar-se do mundo e da vida social, dando
origem ao ascetismo monacal que constituiu, como já
dissemos, o abrigo onde se refugiaram as tendências ideais
que o cristianismo havia lançado no mundo.

Este era o espetáculo que a sociedade cristã oferecia na


segunda metade do século IV, quando as consequências do
reconhecimento do cristianismo por Constantino já eram
evidentes. O cristianismo aceitou perverter-se para
adaptar-se às exigências da sociedade, tornando-se um
elemento essencial de sua organização. Os altíssimos ideais
que tinha revelado ao mundo, na verdade inaplicáveis à
vida real daqueles tempos, já apontavam para o isolamento
dos mosteiros. Para quem estava fora, o cristianismo
mostrava-se apenas como uma força destrutiva que,
derrubando todas as tradições de patriotismo e de cultura
sobre as quais se erguia a antiga civilização, tornava
inevitável a queda desta. Deste ponto de vista, o
cristianismo era visto pelo filósofo imperial que, único
sobrevivente da família de Constantino, subia ao trono dos
Césares. Apaixonado pela civilização helênica até o fundo
da alma, ele queria impedir sua ruína e considerava um
dever supremo defendê-la dos perigos que pairavam
terrivelmente sobre ela. Por isso odiava o cristianismo, que
pretendia usufruir de sua herança, aprendendo a falar e a
escrever segundo seus ensinamentos, mas que, na
realidade, a diluía, esvaziando-a de toda força de
resistência.
Pensador educado na escola dos neoplatônicos, Juliano
preferia a doutrina de Plotino e de Porfírio e, acima delas, a
de Platão àquela de Orígenes e de Atanásio, que não
passavam de uma derivação nebulosa. Moralista severo,
repugnava-lhe a corrupção que impregnava o cristianismo
desde que havia alcançado a dignidade de religião
reconhecida. Todas as paixões, todos os vícios nela
floresciam livremente. Nem a Corte imperial, nem as
grandes cidades do Império foram moralizadas pela
conversão ao cristianismo. A cristianíssima Antióquia
oferecia a Juliano um espetáculo escandaloso. Ele, que não
conseguia calar seu assombro e seu desprezo, acabou
tornando-se antipático aos antioquenses, muito mais como
um rígido crítico de seus costumes do que como um inimigo
de sua religião.
Diante dessa situação, Juliano concluiu que devia e podia
reerguer os destinos da civilização antiga, do helenismo,
como ele dizia, reconstituindo o politeísmo e
redirecionando para ele a corrente do sentimento e dos
hábitos populares. Mas percebeu que não poderia fazer
isso se não iniciasse ao mesmo tempo uma reforma do
politeísmo. Os deuses naturalistas e nacionais do antigo
Olimpo greco-latino estavam completamente esgotados.
Ninguém mais podia acreditar neles. Juliano decidiu
conservá-los, transformando-os em expressões simbólicas
agrupadas em torno de um único princípio divino,
representado, por sua vez, pelo Sol, que para ele era o rei
do Universo. Nisto, Juliano não passava de um
neoplatônico, mais próximo de Jâmblico que de Plotino, e
não era de forma alguma um inovador. O que é
propriamente original e interessante é que Juliano via o
renascimento do helenismo como a vitória de um alto
princípio de moral e da virtude. Juliano era, por excelência,
um homem virtuoso, austero, alheio a todos os prazeres
mundanos, idealista por natureza e educação. Realmente
não reconhecia no cristianismo um fator de moralização.
Excluindo-se o preceito da esmola ao pobres – e neste
aspecto ele convoca seus seguidores a imitar os galileus –,
ele não reconhece nenhuma virtude exercida pelos cristãos.
Não via, sobretudo no alto, entre os próprios bispos, mais
que avidez de lucro, ambições, lutas encarniçadas,
incontinência e violência. E queria trazer de volta à prática
da vida as virtudes que o cristianismo mundano deixava
exiladas nos mosteiros. Encontra-se aí a chave explicativa
da tentativa de Juliano. O cristianismo não moralizou o
mundo. Ele acreditou que poderia fazê-lo restaurando o
helenismo, que, para ele, continha o suprassumo da
sapiência, da beleza e da bondade.
Para tanto, Juliano pretendia reconduzir o mundo ao
politeísmo, mas um politeísmo essencialmente reformado.
No mundo antigo, a religião era uma função propriamente
do Estado. Um choque, uma discórdia, uma separação
entre religião e Estado não era nem imaginável. A religião
era necessariamente serva do Estado, pois era o
instrumento necessário, o fator indispensável para sua
conservação. Perseguido, o cristianismo trouxe ao mundo o
conceito de uma religião que se constitui como uma força
independente do Estado. Mas assim que foi reconhecido e
admitido no Império, revelou a tendência a sobrepor-se ao
Estado, revirando as partes e transformando a religião,
organizada disciplinarmente na Igreja, em potência
dominadora do Estado servo.
Pois bem, Juliano, e este é um dos traços mais singulares
de sua tentativa, querendo fazer de sua religião um
instituto moralizador, quis também separá-la do Estado,
tentando organizar uma verdadeira Igreja politeísta, que
fosse mestra e exemplo de doutrina e de virtude. Vimos, na
análise das instruções dadas por ele a personagens
notáveis de sua Igreja, que a organização constituía uma de
suas principais preocupações, à qual dedicava cuidados e
procedimentos minuciosos. Dissemos também que, pela
pureza das intenções e pela natureza dos conselhos que
dava a seus sacerdotes sobre o comportamento e os hábitos
que desejava que adotassem, a cartas de Juliano poderiam
passar por pastorais de algum bispo cristão inspirado nos
ideais dos primeiros tempos. Produz um efeito bastante
curioso identificar nelas, às vezes, os ecos genuínos
daquele Evangelho que Juliano desprezava tão
visceralmente. Ele queria realmente fundamentar sua
Igreja politeísta na santidade, de modo que dela emanasse
um sopro de depuração moral. E para obter sucesso, no
entusiasmo da propaganda, batia forte nos hábitos e
costumes de seu tempo. Juliano era um puritano politeísta.
Ora, só mesmo um sonhador educado no misticismo das
seitas neoplatônicas poderia pensar num conúbio entre
puritanismo e politeísmo. O mundo rebelava-se contra esta
estranha tentativa de imposição de uma moral severa, em
nome de Baco e de Apolo, transformados em símbolos de
ideias místicas e filosóficas. A sociedade que havia
corrompido o cristianismo em tão pouco tempo não estava
disposta a deixar-se disciplinar e corrigir pelo politeísmo
reformado. Poderia até compreender um retorno à religião
festiva e livre do helenismo genuíno, mas Juliano, com seu
culto pesado e severo, tirava do politeísmo aquilo que era
sua graça, seu fascínio supremo e, portanto, fora do círculo
dos poucos iniciados que o cercavam, só encontrava frieza
e ironia. É fácil compreender seu objetivo. Ele queria
manter de pé a civilização antiga que se desfazia sob a
ação do cristianismo, que a esvaziava de suas tradições,
ideais e crenças, enfim, de todo aquele complexo de
princípios e de sentimentos que são a razão de ser de uma
civilização. Mas ele percebia, ao mesmo tempo, que o
cristianismo tinha se insinuado de tal forma em todos os
meandros da alma social e individual que o retorno ao
antigo seria impossível. Entregou-se, então, à missão, não
menos impossível, de cristianizar a sociedade e a religião,
sem deixar que se tornassem cristãs. Vendo que, na
metafísica e nas formas exteriores do culto, o cristianismo
aproximava-se tanto do politeísmo, tal como reduziu-se a
ser no neoplatonismo e nos Mistérios, que podia ser
considerado uma cópia dele, concluiu que poderia aboli-lo,
substituindo-o pela filosofia de Plotino e de Jâmblico e pelos
ritos dos Mistérios, que tinha esta filosofia como base. E
acrescentou, como um cimento para manter de pé todo o
edifício, a instituição de uma hierarquia sacerdotal que
reproduzisse a hierarquia da Igreja cristã, mas com os mais
puros costumes. Assim, aquele jovem entusiasmado e
iludido imaginava que poderia salvar o helenismo, com sua
civilização, suas glórias, suas tradições, sua poesia, suas
artes!
Juliano não percebia que faltava a seu politeísmo aquilo
que fazia a força do cristianismo e que lhe garantia a
possibilidade de viver e de tornar-se cada vez mais
poderoso, mesmo depois que seu reconhecimento oficial e
sua transformação num poder do Estado esvaziaram
completamente o caráter de protesto contra a iniquidade
do mundo, que havia sido a fonte genuína do fascínio que
exerceu na época em que surgiu. O mundo tinha
necessidade de acreditar num Deus; não se satisfazia mais
com espectros, símbolos, sombras metafísicas; queria um
Deus histórico, eu diria, que fosse sua imagem e
representação, garantia do poder supremo que rege o
Universo. Se o Deus judaico não fosse um Deus
exclusivamente nacional e, sobretudo, se não existisse o
obstáculo insuperável da circuncisão, talvez o mundo
tivesse se convertido a ele, fazendo propriamente de Jesus
o Messias de Jeová. Como isto não era possível, o Deus
judaico precisou helenizar-se para chegar ao Ocidente,
trazendo para sentar-se ao seu lado o seu revelador, que se
transformou num Filho e, ao mesmo tempo, num
intermediário entre ele e o mundo. A grande força do
cristianismo estava no fato de que a realidade desse
procedimento era assegurada, garantida pela historicidade
objetiva da pessoa de Jesus. O mundo tinha em Jesus uma
representação divina, determinada, precisa, admirável,
amável por excelência e de cuja existência real não era
possível duvidar. A nave da fé, batida pelas ondas dos
agressivos sistemas filosóficos, encontra assim o porto onde
se ancorar de maneira estável. Não importam os invólucros
teológicos com os quais se assumia e se escondia esta
figura divina, não importam também quais eram os desvios
aos quais as paixões, os preconceitos, os erros dos homens
arrastavam os princípios essenciais de seu ensinamento. O
Deus continuava sempre vivo e exercendo uma atração
irresistível sobre as almas. Basta comparar os hinos
inflamados de amor que Santo Agostinho ergue a Deus em
suas Confissões com as invocações de Juliano ao Sol e à
Mãe dos Deuses para sentir de imediato como o cristão
vivia na verdade do sentimento e, ao contrário, como o
esforço racional permeava o entusiasmo fictício do pagão.
Vimos também que o culto cristão dos sepulcros dos santos
e dos mártires irritava Juliano, mas, é claro, que a memória
daqueles que testemunharam sua fé com o próprio sangue
provocava um estímulo contínuo ao ardor da fé e elevava o
fiel facilmente ao ideal justo porque se apoiava na
realidade. Que eficiência poderiam ter, diante destas
imagens, diante daquele Cristo que viveu num momento
histórico, que revelou promessas divinas numa linguagem
humana e compreensível a todos, os pálidos e confusos
fantasmas que Juliano evocava nos tenebrosos santuários
dos Mistérios e nas místicas elucubrações dos filósofos
neoplatônicos? Se Juliano fosse um espírito realmente
religioso, um espírito no qual a sede do divino
prevalecesse, teria percebido que o duelo que ele
propunha, entre o deus Sol e Cristo, era uma luta sem
esperança para o seu deus astral, obrigado a ceder espaço,
ou melhor, a desaparecer diante do homem-deus que o
enfrentava na plenitude de sua realidade.
Mas como um verdadeiro neoplatônico, Juliano não
compreendeu onde estava a força do cristianismo, qual era
a causa essencial que lhe proporcionou uma vitória tão
maravilhosa sobre as potências do mundo. Esta força e esta
causa devem ser buscadas no princípio da redenção do
qual o cristianismo era o núncio desejado. O cristianismo
era uma religião pessimista porque colocava o mal como
um fato inerente ao mundo e à humanidade, mas, ao
mesmo tempo, ensinava como redimir-se, como elevar o
olhar, as esperanças, as expectativas da iniquidade da
Terra para a justiça, para o perdão, para a felicidade do
Céu. Uma religião não pode ser eficaz para a alma humana
se não partir de um conceito pessimista. Quando o mundo
aparece como um mal, a alma humana agarra-se com
paixão à promessa de um além-túmulo feliz. A fé na
promessa inspira a devoção, o heroísmo, o abandono de si
mesma à alegria do sacrifício, à ascética voluptuosidade do
amor divino. O conceito otimista mata a religião, arranca
sua raiz mais profunda, reduzindo-a a cerimônias festivas,
ritos formais nos quais a alma está ausente. É verdade que
um pensador sublime como Plotino pode elevar-se à
extática visão de Deus a partir da contemplação de um
Universo perfeito, mas a multidão não é capaz de segui-lo.
Permanece ligada às preocupações de uma alegre
mundanidade.
Juliano não soube compreender que o cristianismo era
forte porque era a religião dos infelizes, a religião da
desventura e do arrependimento. Não soube penetrar no
conceito da redenção que era sua pedra angular. O Logos
Cristo podia encontrar rivais nos numes simbólicos do
neoplatonismo, mas o Cristo redentor vencia tudo e todos e
arrastava atrás de si as almas sequiosas de regeneração
moral, com uma força de atração à qual ninguém conseguia
resistir.

Juliano não era um reacionário, como alguns o quiseram


julgar com base em falsas aparências. Desejava a
conservação do politeísmo, pois nele via o bálsamo que
salvaria o helenismo. Mas não um politeísmo com
significado naturalista e com as formas nacionais de um
tempo encerrado para sempre. Queria reformá-lo, organizá-
lo segundo as exigências dos novos tempos. Mas, se não
era um reacionário, estava situado na antítese perfeita
daquilo que hoje chamamos de livre-pensamento e, nisto,
era realmente um homem de seu tempo. Tinha uma
inclinação para as especulações metafísicas, mas negava o
espírito científico. Ninguém reconheceu mais do que ele a
necessidade da intervenção contínua e direta da divindade
em cada fenômeno da natureza, em cada acontecimento da
vida. A superstição pagã que ele resgatou era bem mais
furiosa e obscura que a superstição cristã. Se, por um
hipótese impossível, o politeísmo de Juliano tivesse saído
vencedor, talvez ele fosse menos funesto para a ciência que
o monoteísmo cristão, porque a teocracia politeísta jamais
alcançaria o rigor da teocracia ortodoxa que, durante
séculos, governou o mundo e freou o pensamento do
homem. Mas certamente a promoção da liberdade de
pensamento não fazia parte das intenções de Juliano. Ele
não possuía, assim como seus mestres neoplatônicos,
nenhum resquício do que fosse ciência. Nem Epicuro, nem
Lucrécio e nem mesmo Aristóteles eram autores levados
em conta por Juliano. O racionalismo servia para Juliano,
como havia servido a Platão e Plotino e como iria servir a
Santo Agostinho e São Tomás, apenas para afirmar o
suprarracional e o sobrenatural, encerrando nesta
afirmação o pensamento do homem, sem deixar nenhuma
saída possível para observar o mundo e conhecer a
realidade. A civilização antiga declinava, apagando-se na
renúncia à razão, tanto no neoplatonismo quanto no
cristianismo. Não restavam senão o homem na Terra, com
suas paixões, e o transcendente no céu, com sua
inacessibilidade. Entre os dois termos extremos, trevas
impenetráveis.
Considerada assim, a tentativa de Juliano parece
desprovida de qualquer novidade genial. Ele não era um
espírito inventivo. Acreditava que poderia salvar a
civilização antiga mantendo vivas as suas formas externas,
conservando todo o aparato de instituições religiosas que
acompanharam seu desenvolvimento e que reuniam boa
parte de suas memórias, de suas tradições, de seus hábitos.
Mas não compreendeu que, embora o cristianismo
apressasse a dissolução da antiga civilização, esta teria
caído de qualquer forma, pois lhe faltava o princípio
essencial do progresso e, portanto, não seria capaz de
reparar as perdas que o tempo provoca em qualquer
organismo. Estava decrépita, tinha perdido toda a força
vital e tornara-se incapaz de resistir à barbárie que
avançava, juvenil e desenvolta.
O princípio essencial do progresso é a ciência, não a
ciência das hipóteses e concepções metafísicas fantásticas,
mas a ciência objetiva que descobre e segue o processo
racional que determina a fenomenalidade da natureza.
Graças à sua capacidade de abstração, o homem recria o
Universo idealmente, no pensamento, representando-o
numa série de causas e efeitos que se desenvolve no espaço
e no tempo, e nesta representação ideal determina-se a
vida do indivíduo e da sociedade. Ora, quando esta
representação é ilusória e falaz – e não pode deixar de sê-lo
quando é fruto de uma razão que se alimenta de si mesma
–, produz uma determinação errada da vida, incapaz de
melhoramento, ou seja, de progresso, pois, sem
conhecimento objetivo, a verdade permanece oculta. A
concepção antropocêntrica do Universo e a concepção
antropomórfica da divindade, imaginada como um poder
colocado fora e acima da natureza e da humanidade, que
ele domina com arbítrio absoluto, repousam sobre uma
ilusão da mente humana e imobilizam a vida numa rede de
erros dos quais, quanto mais ela tenta se livrar, mais neles
se enreda.
De nada serve implantar um princípio mortal justo e
verdadeiro no meio deste erro fundamental de concepção,
pois a falsidade da concepção em que vive a mente humana
impossibilita sua aplicação, ou melhor, o esteriliza e
corrompe. Quando se imagina que o mundo é governado
por um Deus feito à semelhança do homem, um Deus que
pode ser conquistado com preces, homenagens e
oferendas, as paixões humanas, que desejam ser satisfeitas,
logo buscam e encontram liberdade de movimento numa
religião formalista que dê ao homem os meios para obter
de Deus a necessária impunidade. O cristianismo foi uma
maravilhosa prova disto. O Evangelho foi realmente a boa-
nova. Jesus veio para revelar aquele sublime princípio da
fraternidade e da solidariedade humana, que é a única
fonte de onde pode brotar a moralização do mundo. Mas a
fonte foi logo obstruída. O mundo não foi moralizado pelo
cristianismo, que, por sua equivocada concepção metafísica
do Universo e da divindade, logo se transformou numa
religião de formas exteriores e de doutrinas fantásticas
impostas como verdades absolutas, uma religião que, nas
ações de sua onipotente hierarquia, transformou-se na
negação de si mesma e deu ao mundo aquela sociedade
feroz, selvagem, terrivelmente passional, sem piedade, sem
amor, da qual a Divina Comédia e as peças de Shakespeare
oferecem um quadro vívido.

A ação empreendida pelo imperador Juliano, de tentar


deter o cristianismo e fazer o mundo retornar ao politeísmo
helênico, de substituir o cristianismo pelo helenismo, é
interessante porque é um sintoma e uma prova da
corrupção em que tinha caído o próprio cristianismo
quando, garantido contra a perseguição, ou melhor,
reconhecido como instituição legal e como instrumento de
governo, não teve mais à disposição as condições às quais
devia a sua virtude. Mas a empresa de Juliano é condenável
do ponto de vista filosófico e histórico. Do ponto de vista
filosófico, porque não indicava, nem de longe, um
pensamento que tentasse sair da férrea moldura das ideias
da época e não representava mais que um comportamento
levemente diverso num pensamento que, no fundo,
permanecia idêntico a si mesmo, tendendo, aliás, a
mergulhar cada vez mais a razão humana nas trevas densas
e não ilumináveis do irracional e a substituir o fecundo
princípio religioso do cristianismo pelo estéril formalismo
de espectros sem vida. Do ponto de vista histórico, não teve
nenhum valor porque passou como um sonho efêmero. Não
deixou e não podia deixar traço algum. Não passou de um
sinal dos tempos, um sinal de que o mundo antigo
mergulhava na ruína e de que, na ruína, somente o
cristianismo ficaria de pé, vencedor dos próprios bárbaros,
aos quais transmitiria as míseras relíquias de uma
civilização da qual era o único herdeiro, depois de tê-la
derrotado; daquela civilização que o infeliz Juliano tentou
salvar, erguendo da tumba as fileiras exaustas dos Deuses
da Hélade.
Mas se a tentativa era louca e destinada a perecer e
revelava a estranha cegueira de quem a promovia; se este
furor de misticismo supersticioso num homem que
pretendia combater o cristianismo nos faz sorrir, assim
como nos faz sorrir a ilusão deste pensador que não
percebe que está girando junto com o inimigo no mesmo
círculo de pensamento; se consideramos reprovável o
preconceito intelectual que não permitia que discernisse,
sob a corrupção do cristianismo, o princípio vivificador que
ele trazia ao mundo, não podemos fechar nosso espírito à
simpatia por este homem que, desaparecido tão jovem,
encontrou tempo para fazer de sua pessoa um admirável
exemplo de heroísmo, entusiasmo e fé, que colocou sua
fortuna e o imenso poder conquistado a serviço de uma
ideia; que, poeta e soldado, impávido diante de qualquer
ameaça, perseguido e miserável nos primeiros anos juvenis
e elevado, de repente, aos píncaros da glória e da potência,
conservou quase sempre intacto o sereno domínio do
pensamento e da vontade, mantendo o olhar sempre fixo na
ideia que era o farol de sua vida. O imperador Juliano surge
para nós como uma imagem fugaz e luminosa no horizonte,
no qual já havia tramontado o astro daquela Grécia que era
para ele a Terra Santa da civilização, a mãe de tudo o que
há no mundo de belo e de bom, daquela Grécia que, com
filial e entusiástico afeto, ele chamava de verdadeira pátria.

*1 Didaquê, doutrina, instrução. [N.T.]


*2 “Quem cultiva a inocência, ora a Deus; quem cultiva a justiça, oferta a Deus;
quem se abstém de fraudes, propicia a Deus; quem afasta o homem do perigo,
oferece a Deus o melhor sacrifício. Estes são os nossos rituais de adoração a
Deus; entre nós, o mais religioso é aquele que é mais justo.” [N.T]
*3 Homoousios, da mesma substância, consubstancial. [N.T]
*4 Didaquê, doutrina, instrução. [N.T.]

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