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A Era de Juliano Paganismo e Cristianismo - Gaetano Negri
A Era de Juliano Paganismo e Cristianismo - Gaetano Negri
objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem
educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar
nível."
© Contraponto Editora, 2021
TÍTULO ORIGINAL: L’imperatore Giuliano l’Apostata.
DIREITOS DESTA EDIÇÃO: Contraponto Editora Eireli
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quaisquer meios, sem autorização da Editora.
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PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS:
César Benjamin
REVISÃO:
Cristina da Costa Pereira
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO:
Adriana Moreno
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
N321e
2. ed.
Negri, Gaetano, 1838-1902
A era de Juliano : paganismo e cristianismo no Império Romano / Gaetano
Negri ; tradução Eliana Aguiar. - 2. ed., rev. e ampl. - Rio de Janeiro :
Contraponto, 2021. .
Tradução de: L’imperatore Giuliano i’apostata
ISBN 978-65-5639-013-0
1. Juliano, Imperador de Roma, 331-363. 2. Roma - História - Juliano, 361-
363. I. Aguiar, Eliana. II. Título.
21-71556
CDD: 937.08
CDU: 94(37)
Introdução
. CAPÍTULO I .
A vida de Juliano
. CAPÍTULO II .
A discórdia do cristianismo
. CAPÍTULO III .
O neoplatonismo
. CAPÍTULO IV .
A conduta de Juliano
. CAPÍTULO V .
A ação de Juliano contra o cristianismo
. CAPÍTULO VI .
O desengano de Juliano
. CAPÍTULO VII .
O príncipe e o homem
. CAPÍTULO VIII .
Conclusão
Mediocris erat statura,
capillis perquam pexis et
mollibus, hirsuta barba in
acutum desinente vestitus,
venustate oculorum
micantium flagrans qui
mentis ejus argutias
indicabant, superciliis decoris
et naso rectissimo, ore paulo
majore, labbro inferiore
demisso, opima et incurva
cervice, umeris vastis e latis,
ab ipso capite usque unguium
summitates liniamentorum
recta compage.
Estatura mediana, cabelos
macios como recém--
penteados, barba hirsuta com
a extremidade em ponta,
belos e brilhantes olhos,
atestando a agudeza de sua
mente, belas sobrancelhas,
nariz reto, boca um pouco
grande com o lábio inferior
levemente saliente, pescoço
grosso e arqueado, ombros
largos e fortes, da cabeça às
unhas dos pés, muito bem-
conformado.
— Amiano Marcelino,
DESCRIÇÃO DE JULIANO
Prefácio
—Gaetano Negri
Introdução
NOTAS
1. Liban., edit. Reiske. v. I, 580, 15.
2. Juliani Imp. librorum contra Christ. quae supersunt. Leipzig, 1880.
3. Julien l’apostat et sa philosophie. Paris, 1877.
4. Flavius Claudius Julianus nach der Quellen, Gotha, 1896.
5. Kaiser Julian. Seine Ingend und Kriegsthaten, 1900.
6. Kaiser Julians religiose und philosophisce uberzeugung, 1899.
7. La Fin du paganisme. Paris, 1894.
8. Real-Encyklopedie: Julian der Kaiser. Leipzig, 1880.
9. Geschichte der Reaction Kaiser Julians. Jena, 1877.
10. Meu livro já estava impresso quando tomei conhecimento de um estudo de
Alice Gardner: Iulian philosopher and emperor, Londres, 1899. Trata-se de um
estudo de leitura agradável, elegantemente composto, que esgota, resumindo-
a, toda a ação de Juliano e revela uma percepção justa e aguda do valor das
várias fontes.
F lávio Cláudio
Constantinopla,
Juliano nasceu em 331,
filho de Júlio Constâncio, irmão do
em
NOTAS
1. Görres, Die verwandten morde Costantin’s des grossen. – Zeit, für wissens.
Theol. 1887.
2. Iuliani imp. quae supersunt – recensuit Hertlein, p. 349, 10 sg.
3. Libanii orationes – recensuit Reiske, v. I, 524, 19ss.
4. Amm. Marcell. libri qui supersunt – recensuit Gardthausen, v. I, 285, 12.
5. Iulian, 454, 15.
6. Idem, 452, 16 sg.
7. Amm. Marcell., v. I, 271, 4 sg.
8. Sozomeni hist. – illustravit Valesius, 483.
9. Iulian., 350, 2 sg.
10. Gregorii Nazianz. opera – Parisiis, 1630, orat. 3. 58.
11. Iulian, 488, 16.
12. Geschichte der reaktion kaiser Julians, 32.
13. Gregor. Naz., Orat. 3, 62.
14. Socratis hist., illustr. Valesius, 151.
15. Liban., 526, 9 sg.
16. Idem, I, 527, 10 sg.
17. Idem, 1, 159, 2 sg.
18. Eunapii vitas sophistarum, recensuit Boissonade, 50.
19. Iulian., 351, 18 sg.
20. Amm. Marcell., v. I, 43, 3.
21. Iulian., 351, 27 sg.
22. Amm. Marcell., 1, 47, 3.
23. Iulian., 353, 10 sg.
24. Idem, 152, 2 seg.
25. Idem, 352, 10 sg.
26. Idem, 152, 11 sg.
27. Liban., 1, 532, 4 sg.
28. Gregor. Naz., orat. IV. 121-22.
29. Amm. Marcell., v. I, 49.
30. Idem, v. I, 59.
31. Idem, v. I, 64. – Iulian, 352, 24 sg.
32. Iulian., 354, 13 sg.
33. Idem, 353, 26 sg.
34. Idem, 355, 3.
35. Idem, 355, 14 sg.
36. Am. Marcell., 64.
37. Liban., 1, 378-79.
38. Amm. Marcell., I, 67.
39. Iulian., 159, 4 sg.
40. Idem, 158, 8 sg.
41. Eunap., 54.
42. Iulian., 357, 2 sg.
43. Kock, Kaiser Julian. – Allard, Julien, l’Apostat.
44. Amm. Marcell., v. I, 67. 29.
45. Idem, 1. 77, 14 sg.
46. Idem, I, 82, 5 sg. II, 40, 2.
47. Idem, I, 80, 6 sg.
48. Idem, I, 100, 25 sg.
49. Iulian., 359, 1.
50. Amm. Marcell. I, 95, 7 sg.
51. Idem, I, 96, 13 sg.
52. Liban., I, 539, 5 sg.
53. Amm. Marcell., I, 98, 11.
54. Idem, I, 102, 23 sg.
55. Idem, I, 110, 25 sg.
56. Idem, I, 115, 5 sg.
57. Idem, I, 116, 12 sg.
58. Liban. I, 549, 18 sg.
59. Amm. Marcell., I, 129, 21 sg.
60. Iulian., 360, 10 sg.
61. Amm, Marcell., I, 201, 15 sg.
62. Idem, I. 203, 15 sg.
63. Idem, I, 204, 4 sg.
64. Amm. Marcell., I, 208, 10 sg.
65. Iulian., 363, 26 sg.
66. Amm. Marcell., I, 110.
67. Iulian., 494, 20 sg.
68. Eunap., 104.
69. Idem, 53.
70. Iulian., 362, 8 sg.
71. Amm. Marcell., I, 269, 6 sg.
72. Idem, I. 198, 5 sg.
73. Idem, I, 153, 20 sg.
74. Idem, I, 217, 20 sg.
75. Idem, I, 215, 10 sg.
76. Idem, I, 219, 15 sg.
77. Idem, I, 219, 29 sg.
78. Idem, I, 94, 13 sg.
79. Idem, I, 234, 18 sg.
80. Iulian., 367, 27 sg.
81. Idem, 369,20 sg.
82. Liban., I, 558, 1 sg.
83. Amm. Marcell., I, 233, 12 sg.
84. Idem, I, 286, 19 sg. – Iulian, 369, 1 sg.
85. Idem, I, 238, 12 sg.
86. Idem, I, 239, 1 sg.
87. Idem, I, 243, 23 sg.
88. Iulian., 268. 10.
89. Liban., I, 388, 8 sg.
90. Idem., I, 417, 2 sg.
91. Amm. Marcell., I, 214, 8 sg.
92. Idem, I, 246, 10 sg.
93. Idem, I, 247, 12 sg.
94. Liban., I, 415, 18 sg.
95. Amm. Marcell., I, 252, 15 sg.
96. Idem, I, 255, 13 sg.
97. Amm. Marcell., I, 258, 13.
98. Idem, I, 266, 23 sg.
99. Idem, I, 222, 5 sg.
100. Idem, I, 268, 21.
101. Liban, I, 573 sg.
102. Idem, I, 573, 10 sg.
103. Amm. Marcell., I, 269, 13 sg.
104. Liban., 1, 565, 12 sg.
105. Amm. Marcell., I, 271, 4 sg.
106. Idem, I, 273, 11 sg.
107. Zosimi Historiae – recensuit Reitemeier, p. 151.
108. Amm, Marcell., I, 316, 15 sg.
109. Liban., 1, 593, 5 sg.
110. Idem, I, 577. 7 sg.
111. Iulian., 516, 4.
112. Amm. Marcell., I, 311, 14.
113. Zosimo, 228, 1 sg.
114. Amm. Marcell., I, 312, 20 sg – Zosimo, 229, 1 sg.
115. Idem, I, 319, 1 sg.
116. Zosimo, 226-264
117. Amm. Marcell., II, 11, 22 sg. – Zosimo, 243, 7 sg. – Liban., I, 597-98.
118. Idem, II, 12, 33 sg. – Zosimo, 245, 1 sg.
119. Liban., 604, 10 sg.
120. Amm. Marcell., II, 22, 15 sg. – Zosimo, 255-58.
121. Idem, II, 25, 22 sg. – Zosimo, 258.
122. Liban., I, 610, 3.
123. Idem., II, 610, 10.
124. Gregor. Naz., 115, D.
125. Amm. Marcell., II, 26, 5.
126. Idem, II, 27, 17 sg.
127. Idem, II, 33, 15 sg.
128. Idem, II, 47, 20.
129. Liban., I, 612, 10 sg.
130. Liban., II, 32, 1 sg.
131. Idem, II, 48, 1 sg.
132. Sozomen., 517.
133. Amm. Marcell., II, 37, 19 sg.
134. Liban., 614, 10 sg.
*1Na verdade, a frase de Amiano aponta que Juliano foi educado por Eusébio
em Nicomédia, mas como Eusébio mudou-se, em 338 ou 339, da sede de
Nicomédia para a de Constantinopla, teríamos de admitir que o bispo educou e
instruiu Juliano nos anos de sua infância, coisa pouco verossímil. Seria, ao
contrário, natural que Eusébio, simpatizante do arianismo, chamado a
Constantinopla como homem de confiança de Constâncio, fosse encarregado da
educação do príncipe adolescente. Provavelmente, sabendo que Eusébio havia
educado Juliano, Amiano, com a costumeira falta de exatidão dos escritores
antigos, confundiu a estada de Juliano na Nicomédia, que ocorreu bem mais
tarde, com uma suposta estada anterior, que não foi provada por nenhum
documento e que, na verdade, o próprio Amiano demonstrou ser impossível ao
afirmar que Juliano, retornando já imperador a Nicomédia, reencontrou antigos
conhecidos do tempo de seus estudos com Eusébio. Que conhecidos poderia ter
feito um menino de menos de sete anos? [N.A.]
*2 Juliano escreveu o Misobarba como uma sátira contra os habitantes de
outra pessoa, conhecida dos antioquenses. Mas quem seria esse outro velho?
Provavelmente Juliano faz alusão a um de seus professores em Nicomédia e a
posição eminente que ele parece ocupar faz pensar em Máximo. [N.A.]
*4 Eunápio nos dá o nome dos dois. O servo fiel era Evemero, o médico,
Oribásio. [N.A.]
*5 Amiano, que não participou da campanha da Gália, oferece uma descrição
tão detalhada da batalha de Estrasburgo que não deixa dúvida de que usava a
fonte de uma testemunha ocular. Ora, em dois fragmentos de Eunápio e
também, talvez, numa passagem de Zósimo (3, 2, 8), podemos deduzir que
devia existir uma narração escrita pelo próprio Juliano, talvez não só dessa
batalha, mas de pelo menos uma parte de sua campanha contra os bárbaros.
Aliás, o médico Oribásio, que estava ao lado de Juliano, também deixou suas
memórias daquilo que havia visto.
*6 Tratava-se de Salústio. [N.A.]
*7 Sobre essa campanha contra os bárbaros renanos, há um interessante relato
NOTAS
1. Zosimo, 150.
2. Sozom., 331.
3. Liban., II, 161.
4. Sozom., 432.
5. Euseb. histor. recognovit Schwegler, 219.
6. Idem, 277, 20 sg.
7. Idem, 342, 10 sg.
8. Socrate, 8.
9. Idem, 9.
10. Idem, 12. – Sozom., 348.
11. Idem, 13.
12. Idem, 19.
13. Sozom., 357.
14. Idem, 36
15. Idem, 50.
16. Idem, 62.
17. Amm. Marcell., I, 271, 15
18. Socrate, 88.
19. Idem, 89.
20. Idem, 126.
21. Gummerus, Die homöasianische partei, 1900.
22. Confess., 8, 2 sg.
23. Müller, Kirchengeschichte, p. 206.
24. Amm. Marcell., II, 100.
25. Müller, Kirchegeschichte, 199 sg. – Harnack, Dogmengeschichte, II, 413 sg.
– Hatch, Griechentum und Christentum. – Marignan, La Foi chrétienne.
26. Confess. – Lib. 8.
27. Allard, Iulien l’Apostat, 329.
Capítulo III. O neoplatonismo
A difusão
religião
do cristianismo, seu reconhecimento como
de Estado, sua progressiva adaptação às
exigências e às condições da época e, finalmente, as
terríveis lutas intestinas que o dilaceraram durante a
elaboração de um corpo doutrinário afirmado como
ortodoxia dogmática – eis os elementos que compunham o
quadro da sociedade greco-romana no decorrer de todo o
século IV. Contudo, a sociedade não se deixava transformar
sem alguma resistência. À construção metafísica e
religiosa do cristianismo, tentava contrapor um sistema
que, substituindo o politeísmo naturalista e racional ou,
pelo menos introduzindo em suas formas um espírito novo,
mantivesse de pé o antigo complexo de tradições, de
pensamento, de organização social. Este sistema foi o
neoplatonismo. Importante notar, como, aliás, já fizemos
anteriormente, que o neoplatonismo, em cuja fonte
Orígenes havia bebido, ao colocar Deus no sobrenatural,
declarando que o misticismo era a única via pela qual o
homem poderia unir-se a um Deus incompreensível,
justamente por ser sobrenatural, foi a matriz que deu
origem à teologia cristã. Não eram neoplatônicos os
arianos, que olhavam com desconfiança e suspeita a
frondosa ramificação das ideias metafísicas em torno do
tronco do cristianismo e cuja preocupação suprema era
salvar o monoteísmo evidentemente comprometido. Mas a
ortodoxia que, se misturando ao origenismo temperado, foi
desaguar em Santo Agostinho, passando por Atanásio,
Hilário, Basílio e os dois Gregórios, nada mais era que um
autêntico neoplatonismo. Porém, havia entre o
neoplatonismo cristão e o neoplatonismo helênico uma
diferença essencial. O primeiro apresentava um novo Deus,
que possuía uma perfeita objetividade histórica e uma
incomparável eficácia de atração; o segundo sustentava as
antigas divindades, mas despindo-as de qualquer conteúdo
pessoal e reduzindo-as à condição de puros símbolos. Era
claro que, desse ponto de vista, a vantagem estava
totalmente do lado do cristianismo. Ora, o grande interesse
que a tentativa de Juliano apresenta é, justamente, a
intenção de contrapor ao Deus cristão os antigos deuses do
Olimpo helênico, com base numa filosofia que, no fundo,
era idêntica à do cristianismo. Juliano quis fazer, no
politeísmo, o que o cristianismo já tinha feito, ou seja, unir
filosofia e religião e criar uma teologia, uma dogmática
politeísta que, organizada numa hierarquia eclesiástica,
pudesse rivalizar com o cristianismo na riqueza da
doutrina cosmológica e mística e que, ao mesmo tempo,
mantendo vivos os antigos numes, os hábitos e as tradições
antigas, salvasse a civilização helênica, o helenismo, como
ele dizia, da catástrofe que pairava sobre ele, causada pelo
cristianismo.
A aparição do neoplatonismo e a imensa influência que
exerceu sobre o espírito humano são um fenômeno de suma
importância na evolução do pensamento e da civilização. O
neoplatonismo representa a falência completa do
racionalismo platônico e aristotélico e de todas as escolas
que sucederam os dois grandes organizadores da filosofia
antiga. Esta última tinha como base o conceito da distinção
absoluta entre matéria e espírito, entre sensível e
inteligível. Refletindo sobre a ideia, o espírito, o inteligível,
pretendia reconstruir idealmente o mundo com uma
confiança completa na razão abstrata, na solidez de
criações ideais, enriquecidas pelo acúmulo de materiais
lógicos extraídos da mina do pensamento, mas não
expostos às lentes da experiência e da observação. O
resultado desse imenso trabalho só podia ser a formação de
miragens racionais, que desapareciam assim que o
observador mudava de ponto de vista. Depois de séculos, a
humanidade sentiu necessidade de algo que respondesse
melhor às suas ânsias e aspirações. Então, na anarquia dos
sistemas que resultava num ceticismo sem saída ou num
conformismo heroico, mas desconsolado, surgiu o
neoplatonismo, tomando emprestado de Platão o espírito, a
ideia, Deus, mas sem vê-los como um princípio
essencialmente racional que nos permitiria caminhar em
busca da verdade. Antes, seriam um princípio
sobrerracional e sobrenatural por excelência, no qual a
verdade jaz irremediavelmente oculta.
Para o neoplatonismo, o conhecimento racional nada mais
é que um grau intermediário entre a percepção dos
sentidos e a intuição do sobrenatural. A ideia suprema não
se encontra naquilo que constitui o conteúdo real e
cognoscível do pensamento, mas naquilo que é sua base
invisível, seu fundo inescrutável. O transcendente é
colocado como suprema realidade. As formas inteligíveis
não são mais que meios transitórios através dos quais a
energia do ser transcendente e sem forma expande-se no
mundo. Esta afirmação do sobrerracional e do sobrenatural
como origem e razão do mundo tinha como consequência
necessária que o homem, não podendo abordá-los por meio
da razão, era obrigado a buscar a fantasia, o que o levava
em seguida ao misticismo e à superstição. E como, na vida
humana, a união com Deus dificilmente é alcançada só com
as forças da alma, a ajuda externa das religiões positivas
passou a ser necessária. Assim, o neoplatonismo tornou-se,
sobretudo em sua evolução no século IV, uma filosofia
religiosa por excelência, uma filosofia que venerava e
pretendia manter vivas todas as religiões antigas,
renovando-as com a interpretação simbólica de seus mitos
naturalistas. O neoplatonismo não percebeu que essa
renovação não representava a restauração, mas sim a ruína
das antigas religiões que, forçadas desse modo a uma
função inadequada para sua natureza, arrebentam
exatamente como velhos odres sob pressão, se neles for
versado um vinho novo. No século IV, o neoplatonismo era,
enfim, um cristianismo sem Cristo, um cristianismo que não
possuía uma divindade histórica e real e que colocava em
seu lugar os fantasmas vazios de divindades totalmente
esgotadas, que só podiam existir como fantoches insípidos
ou símbolos incompreensíveis.
Gostaria, porém, de fazer aqui uma observação que será
mais bem esclarecida com o progresso deste estudo: o
cristianismo venceu o neoplatonismo não apenas por suas
virtudes, mas também por seus vícios. De fato, desde os
seus primórdios, o cristianismo constituiu-se
disciplinarmente e criou uma organização hierárquica. A
existência dessa hierarquia persuadiu Constantino a aliar-
se com a Igreja cristã, que recebeu reconhecimento, mas se
tornou um dos elementos constitutivos do complicado e
pútrido organismo do Império romano-bizantino. Para o
cristianismo, o preço dessa vitória seria necessariamente o
contágio por todos os males que afligiam a potência
mundana que ele abraçava. Como vimos, o ideal da
moralidade cristã teve de refugiar-se nos conventos e nos
mosteiros dos ascetas. O neoplatonismo, que nunca soube
organizar-se e permaneceu sempre como uma opinião, uma
aspiração, uma doutrina pessoal, não oferecia ao Império
nenhuma força, nenhum recurso novo e foi, portanto,
desprezado. A tentativa de Juliano de ligar o neoplatonismo
com o Império, como seu tio Constantino tinha feito com o
cristianismo, foi incompreendida, considerada por alguns
como um divertimento inócuo de um idealista e por outros
como um delito de um apóstata infeliz. Mas o ponto mais
curioso dessa história é que o neoplatonismo, justamente
por ter ficado afastado na solidão de seus mistérios e de
suas meditações, conservou uma aparência de idealidade
que o cristianismo, em contato com o mundo, tinha
perdido. Portanto, a tentativa de Juliano de restaurar o
politeísmo contra o cristianismo assumiu, por mais
estranho que pareça, o significado de uma restauração
moral. Esta foi uma das razões, certamente não a última,
para que a tentativa sucumbisse miseravelmente. As
divergências entre Juliano e os antioquenses, tão
amargamente narradas no Misobarba, vieram justamente
da pretensão do neoplatônico e severo imperador de
corrigir e moralizar a cidade corrupta e cristã. Os
antioquenses não tinham a menor aptidão para seguir as
exortações do moralista imperial. Preferiam claramente o
cristão Constâncio, com suas multidões de eunucos,
parasitas e malabaristas, com suas festas e seus teatros, ao
helênico Juliano, que dividia o tempo entre as tarefas do
Estado e os livros, vivendo fechado numa espécie de
ascetismo filosófico.
O insucesso do neoplatonismo religioso, tragicamente
constatado na catástrofe de Juliano, não teve como
consequência o seu insucesso filosófico. Ao contrário, o
neoplatonismo teve sua revanche na teologia ortodoxa.
Seus numes simbólicos caíram diante do Deus cristão, mas
o cristianismo dogmático impregnou-se de sua doutrina,
fazendo dela a sua metafísica, a qual, por sua vez, sufocou
com suas ramificações a árvore divina do cristianismo
evangélico, impedindo-a de de carregar seus frutos mais
genuínos.
Mas vejamos melhor o que era, em sua essência, essa
filosofia neoplatônica que foi o alimento vital do apóstata
imperial.
NOTAS
1. Eunap., 10-19.
2. Zeller, Die philosophie der Griechen. – 3o v., 678 sg. – Ritter e Preller,
Historia philosophiae graecae. – 546 sg.
3. Eunap., 27.
4. Idem, 49.
5. Idem, 50 sg.
6. Idem, 63. – Amm. Marcell., II, 170.
7. Iulian., 301, 21 sg.
8. Eunap., 59.
9. Idem, 109.
10. Idem, 111.
11. Idem, 104.
12. Zeller, V. 3, 734 sg.
13. Iulian., 563.
*1 Essas informações foram dadas por Porfírio num trecho de seu Tratado
contra os cristãos, reproduzido por Eusébio (Liv. 6, cap. 19). Este último
desmente Porfírio em parte, sustentando que Amônio permaneceu cristão. Os
críticos modernos (Zeller. 3, 450, 459) demonstram que a contestação de
Eusébio estava equivocada, mas colocam em dúvida, por sua vez, a relação de
Orígenes com Amônio e aventam a possibilidade de uma confusão entre o
Orígenes cristão e um outro Orígenes, também aluno de Plotino. Mas o
testemunho de Porfírio me parece muito forte. Porfírio era quase
contemporâneo desses personagens e obtinha informações sobre eles
diretamente de Plotino, que viveu na escola de Amônio. [N. A.]
*2 Santo Agostinho, A cidade de Deus, Livro X, cap. IX, tradução de Oscar Paes
NOTAS
1. Iulian., 201, 1 sg.
2. Idem, 168-69.
3. Idem, 172, 19 sg.
4. Idem, 173, 1.
5. S. João, 1, 4-9.
6. Iulian., 188, 5 sg.
7. Idem, 203, 4 sg; 205, 5 sg.
8. Idem, 207, 5 sg.
9. Idem, 212, 19 sg.
10. Idem, 215, 5 sg.
11. Idem, 217, 8 sg.
12. Idem, 219, 13 sg.
13. Idem, 220, 8 sg.
14. Idem, 232, 13 sg.
15. Idem, 564.
16. Idem, 290, 7 sg.
17. Idem, 280, 1sg.
18. Idem, 280, 15 sg.
19. Idem, 303, 3 sg.
20. Idem, 296, 2 sg.
21. Tertull., De Carne Chr., 5, 898.
22. Liban., I, 581, 17 sg.
23. Neumann. – Iulian, Libr. contra Christ. quae supersunt, 163.
24. Idem, 177, 7 sg.
25. Idem, 179.
26. Idem, 199.
27. Idem, 208.
28. Idem, 213.
29. Idem, 216 sg.
30. Idem, 221 sg.
31. Idem, 225.
32. Idem, 228 sg.
33. Idem, 232.
34. T. Keim, Celsus wahres wort – 1893.
35. Keim, 63.
36. Idem, 39.
37. Iulian., 371-392.
38. Idem, 552-555.
39. Idem, 585-588.
40. Idem.
41. Neumann, 191.
42. Iulian., 277.
43. Idem, 377.
44. Idem., 359 sg.
45. Idem, 385 sg.
46. Idem, 388 sg.
47. Idem, 390.
48. Idem, 391.
49. Idem, 512
50. Idem, 552 sg.
Talvez tenha sido sob o impacto deste fato que Juliano deu,
por decreto, a ordem de destruir dois santuários de
mártires que estavam sendo construídos em Mileto, junto
do templo de Apolo.30
Todas estas violências parciais, de caráter episódico e
que representavam uma inevitável troca de represálias
entre dois partidos quase equivalentes, não bastam para
apagar o fato substancial de que Juliano pretendia usar a
tolerância religiosa como instrumento mais eficaz da
restauração recém-começada. Já falamos da medida, tão
interessante e característica, adotada por Juliano, ao
chamar de volta à pátria os cristãos eLivross por
Constâncio por divergências teológicas. Nas cartas de
Juliano, encontramos informações realmente curiosas e
instrutivas sobre esta medida.
O partido dominante na corte de Constâncio não era o
arianismo puro, mas um arianismo oportunista, que não
admitia a consubstancialidade do Pai e do Filho, defendida
por Atanásio e pelo Concílio de Niceia, mas também não
afirmava a distinção e a subordinação do Filho ao Pai,
defendida pelos arianistas autênticos. Como sabemos,
Constâncio havia adotado a chamada fórmula homoica, que
dizia que o Filho é similar ao Pai, segundo as Escrituras, e
vetava qualquer análise e determinação desta semelhança.
Constâncio impôs esta fórmula nos Concílios de Rimini e de
Selêucia, em 359, e condenou ao exílio todos os bispos,
tanto atanasianos, quando arianistas, que não a aceitavam.
Juliano chamou-os de volta, todos juntos, sem distinção.
Contudo, é singular a diversidade no tratamento dos dois
heróis destas lutas teológicas, o diácono Aécio, que
representava o arianismo intransigente, e o grande
Atanásio, legislador do Concílio de Niceia. Ao primeiro,
Juliano envia o seguinte bilhete:31
Chamei de volta do exílio todos aqueles, sem distinção,
que foram eLivross por Constâncio pela tolice dos
galileus. Quanto a ti, não somente te chamo, mas,
recordando nosso antigo conhecimento e convivência,
convido-te a vir ao meu encontro. Poderás usar, para
chegar ao meu acampamento, uma viatura do Estado e
um cavalo de reforço.
Mas quem era este Aécio que Juliano trata com tanta
deferência? Era um velho conhecido do imperador. Vamos
analisá-lo num primeiro momento e depois colocá-lo ao lado
da grande figura de Atanásio, para termos diante de nós
dois perfis característicos do típico cristão do século IV.
Aécio, sírio de origem, dedicou-se na juventude às mais
variadas artes. Foi fundidor de metais, médico e pouco a
pouco ficou conhecido pela inquietude de seu espírito e
pela singular aptidão para as discussões teológicas que
eram a paixão intelectual da época. Dando crédito ao que
disse Sócrates Escolástico, ele era muito mais versado na
dialética de Aristóteles que no conhecimento dos escritores
cristãos. Desprezava Clemente e Orígenes.32
Afastado de Antióquia como perturbador da paz religiosa,
estabeleceu-se na Cilícia, mais especialmente em Tarso,
onde fez amizade com os seguidores das ideias lucianistas,
tornando-se um apóstolo ardoroso. De volta a Antióquia,
ficou amigo do presbítero Leôncio, que pertencia à mesma
escola lucianista. Retorna em seguida para a Cilícia e de lá
para Alexandria, e dedica-se ao debate com gnósticos e
maniqueus. Quando Leôncio é nomeado bispo de Antióquia,
Aécio retorna para ficar ao seu lado e é nomeado diácono.
No entanto, cria um turbilhão tão grande de discórdias e
disputas em torno do bispo, que Leôncio é obrigado a
afastá-lo de suas funções sagradas, conservando-lhe o
posto de professor. Há indicações de que participou do
Sínodo de Sírmio, em 351, onde combateu ferozmente os
atanasianos, que tentaram, sem sucesso, intrigá-lo com
Gallo, irmão de Juliano que, como sabemos, havia sido
elevado à dignidade de César pelo imperador Constâncio.
De fato, Aécio controla totalmente a situação. A confiança
de Gallo era tanta que ele o envia várias vezes ao encontro
de seu irmão Juliano, como confidente. Vem daí a relação
entre o príncipe e o diácono arianista, bem como a
deferência demonstrada por Juliano logo depois de subir ao
trono. Gregório de Nissa acusa Aécio de ter aconselhado
Gallo a assassinar o pretor Domiciano e o questor Môncio,
crime horrível, que teve como consequência a desgraça de
Gallo. Mas não temos como saber se é possível confiar no
relato do bispo atanasiano, pois atanasianos e arianistas se
acusam mutuamente sem nenhum escrúpulo. Em 356,
Aécio vai a Alexandria, a grande fogueira das iras
teológicas, e assume a posição de arianista intransigente,
falando e escrevendo como um dos líderes de um arianismo
renovado. Chamado de volta a Antióquia pelo bispo
Eudóxio, comprometeu-o de tal maneira com sua política
irritante, que os semiarianistas acabaram influenciando
Constâncio e conseguindo que ele afastasse o bispo e
exilasse Aécio na Frígia. Um ano depois, em 360,
Constâncio assumiu resolutamente a fórmula homoica,
alimentando a ilusão de que conseguiria impôr a paz entre
os partidos que dilaceravam a Igreja. Aumentou as penas
contra Aécio, que foi deposto de seu diaconato pelo Sínodo
de Constantinopla e confinado na Pisídia pelo imperador.
Com a chegada de Juliano ao trono, a sorte de Aécio voltou
a melhorar. Chamado de volta do exílio, sua deposição foi
anulada e ele foi reconsagrado, junto com outros arianistas,
por um sínodo reunido em Antióquia. É provável que o
fogoso polemista tenha morrido logo depois, pois não se
tem mais notícia dele.
Não sabemos se Aécio aceitou o convite do imperador
que, ao mesmo tempo em que o chamava de volta,
qualificava o cristianismo como tolice. Se aceitou, não
conseguiu fazer com que Juliano apoiasse o arianismo. Na
verdade, Juliano era indiferente e imparcial diante de todas
as seitas cristãs, que confundia num ódio comum. E a prova
de que os arianistas receberam a parte que lhes cabia
deste ódio está numa carta escrita por ocasião de uma série
de tumultos promovidos por eles em Edessa, carta que é
tão justa em sua inspiração, quanto acerba em sua ironia.
A Ecebólio. – Trato todos os galileus com tanta suavidade
e filantropia que nenhum deles nunca sofreu violência.
Não quero que sejam arrastados para os templos ou
obrigados a qualquer coisa que seja contrária às suas
íntimas convicções. Mas os da Igreja arianista,
orgulhosos de sua riqueza, atacaram os valentinianos e
cometeram, em Edessa, desordens que jamais poderiam
acontecer numa cidade sensata. Porém, como uma lei
admirabílíssima lhes ensina que é preciso ser pobre para
ter um acesso mais fácil ao reino dos céus, tive por bem
ordenar, para ajudá-los, que todos os bens da Igreja dos
edessianos fossem confiscados e distribuídos aos
soldados e que suas terras fossem agregadas aos nossos
domínios. Assim, empobrecidos, ficarão mais sábios e
alcançarão o esperado reino dos céus!33
É preciso dizer, portanto, que sua cortesia para com
Aécio era realmente motivada apenas pela simpatia
pessoal. Não podemos deduzir que Juliano estivesse se
bandeando para os arianistas, o que seria inexplicável,
dado que ele encontrou seus mais ferozes adversários
justamente na corte semiarianista de Constâncio. Contudo,
o personagem que despertava a mais implacável antipatia
no imperador estava no campo oposto e era nada menos
que o grande Atanásio, fundador da ortodoxia católica.
Estes dois homens, ambos geniais, um dos quais
representava o passado e o outro o futuro, um o helenismo
ressurgente, o outro o cristianismo dominador, eram
incompatíveis entre si. A ira de Juliano contra Atanásio, que
havia sido uma vítima de Constâncio, mostra que, apesar
de sua juventude, ele conhecia os homens a fundo e sabia
onde morava o perigo. Percebeu que a força do
cristianismo não estava mais no corrupto arianismo,
embora ele ainda dominasse a metade do mundo cristão,
mas sim na energia entusiasta do partido que, desfraldando
o estandarte do mistério místico da Trindade, reunia-se em
torno da grande figura do bispo de Alexandria. Se Atanásio
tivesse desaparecido, a ortodoxia católica não teria sido
fundada e o cristianismo não teria a organização que o
desviou de seu caráter original, mas que era necessária
para que pudesse viver.
Para compreender a importância do duelo entre Juliano e
Atanásio, vamos conhecer melhor a figura deste último.
Nenhuma existência é mais tempestuosa e mais heroica
que a de Atanásio. Um romancista de imaginação ardente,
um Sienkiewicz, poderia construir uma narrativa épica a
seu respeito. Nada pode servir melhor para dar uma ideia
viva do ambiente do século IV que o estudo desta grande
figura e de suas tempestuosas aventuras. O homem era
realmente grande, um caráter dominador por excelência,
uma têmpera inflexível de combatente, uma alma de voo
amplo e potente. Existe uma grande analogia entre
Atanásio e Ambrósio. Mas Ambrósio viveu em condições
bem menos difíceis e perigosas, não enfrentou contestações
no exercício de sua autoridade, exceto durante a regência
de Justina. E o bispo era forte demais em confronto com a
imperatriz para que pudéssemos duvidar de sua vitória
final. Fora deste choque passageiro, Ambrósio dominou o
soberano e teve a ajuda do poder imperial em sua guerra
contra o arianismo. Graciano e Teodósio foram dois
instrumentos em suas mãos, com os quais ele conseguiu
erigir a ortodoxia católica em religião do Estado. Atanásio,
ao contrário, teve uma vida de lutas incessantes e
gigantescas. E tinha o Império contra ele. À exceção de
Constantino, nos tempos do Concílio de Niceia, e do fugaz
Joviano, foi perseguido por todos os imperadores que ele
viu se sucederem no trono de Constantinopla: Constâncio,
Juliano, Valente.
Nascido nos últimos anos do século III, Atanásio passou
sua primeira juventude em Alexandria, ao lado de seu
bispo, Alexandre, e foi quem influenciou as primeiras
divergências do bispo com o presbítero Ário, que mais
tarde resultaram na guerra civil no seio do cristianismo. No
Concílio de Niceia, Atanásio já era uma figura dominante, e
o arianismo já via nele o mais poderoso inimigo. Com a
morte de Alexandre, foi eleito bispo de Alexandria, em 328.
Mas a oposição do clero de inclinação arianista foi tão
enérgica e foram tão pesadas as acusações contra o recém-
eleito que Constantino – que, diante do insucesso da
política ortodoxa, estava se aproximando do arianismo –
chamou o acusado para justificar-se primeiro diante dele,
em Nicomédia, e depois, com a renovação das acusações,
diante de um Concílio reunido em Cesareia, em 334. Mas
Atanásio conseguiu postergar esta apresentação e
aproveitou discretamente para persuadir Constantino de
sua inocência e ganhar seu apoio. Mas seus inimigos
juraram destruí-lo. Eusébio de Nicomédia, futuro educador
de Juliano que era muito próximo do imperador, induziu-o a
convocar outro Sínodo, em 335, em Tiro, para julgar o
bispo de Alexandria. Atanásio apresentou-se ao Concílio
com um imponente séquito de cinquenta bispos, mas,
convencido de que a assembleia decidiria contra ele, não
esperou o veredicto de destituição e embarcou para
Constantinopla, confiando em sua própria influência sobre
o espírito de Constantino. Não estava enganado, pois o
imperador, colocado entre o Concílio e Atanásio, inclinava-
se para este último. Contudo, Eusébio fez uma nova
acusação contra o rival, desta vez de índole não teológica e
que iria impressionar vivamente o espírito do imperador:
acusou Atanásio de ter ameaçado suspender a provisão de
grãos que Alexandria enviava anualmente a
Constantinopla. Constantino recusou-se a ouvir Atanásio e,
sem mais, exilou-o em Tréveris, na Alemanha, onde ele
encontrou, aliás, uma acolhida cortês por parte do filho do
imperador e um ardente colega de opiniões teológicas no
bispo da cidade, Maximino.
Com a morte de Constantino, em maio de 337, Atanásio
retornou triunfante a Alexandria e retomou seu cargo. Foi o
sinal para uma nova tempestade. Atanásio, que não era um
homem tolerante, afastou todos os seus adversários dos
cargos eclesiásticos, substituindo-os por amigos seus,
inflamando ainda mais a cólera dos arianistas. Além disso,
quem estava agora no trono de Constantinopla era
Constâncio, semiarianista, que tudo via com os olhos de
Eusébio. Assim sendo, mandou para Alexandria um novo
bispo, Gregório, acompanhado por uma escolta militar para
empossá-lo à força, caso houvesse resistência. De fato, a
chegada de Gregório foi motivo de revolta e de cenas de
violência. Mas Atanásio percebeu que seus esforços seriam
inúteis e, em março de 340, partiu para o segundo exílio,
em Roma, junto ao bispo da cidade, Júlio. No Ocidente, o
bispo encontrou amigos e apoio, a começar pelo imperador
Constante que, ao contrário do irmão, Constâncio, preferia
a ortodoxia. Durante cinco anos, o infatigável Atanásio,
protegido pelo imperador, lutou pela glória e pela defesa da
fé que professava com heroica convicção. Era o legislador
religioso em Milão, nas Gálias, em Aquileia e, nesse
ínterim, as coisas também começaram a andar bem para
ele no Oriente. Constâncio, que não achava conveniente
afastar-se muito drasticamente do irmão, passou a acenar
com uma atitude mais condescendente. Com a morte do
bispo Gregório em 345, Atanásio pôde, então, apresentar-se
a Constâncio, em Antióquia, para ser reconduzido à sua
sede de Alexandria. E, de fato, ele retornou à cidade em
346, em meio ao júbilo popular. Mas a paz durou pouco.
Com a morte de Constante, em 350, nada mais impedia que
Constâncio tomasse o partido do arianismo e, portanto, a
guerra contra Atanásio, acusado de perturbar a
tranquilidade da Igreja, recomeçou. Várias tentativas de
prender o bispo fracassaram graças à atitude combativa da
população alexandrina. Mas, finalmente, na noite de 9 de
fevereiro de 356, o governador Siriano conseguiu, com um
grupo seleto de soldados, penetrar na igreja onde o bispo
celebrava um serviço divino. Formou-se um sangrento
tumulto, durante o qual Atanásio desapareceu. Vitoriosos,
os arianistas retomaram todos os cargos que haviam sido
obrigados a abandonar e nomearam para a sede episcopal
aquele mesmo Jorge com o qual já travamos infausto
conhecimento.
Durante este terceiro exílio, que durou de 356 a 361,
Atanásio viveu nos eremitérios do Alto Egito, retornando
várias vezes, às escondidas, a Alexandria, onde alimentava
seu partido com os textos que redigia em sua fecunda
solidão. A bem da verdade, dando fé às palavras de
Sozomeno, o orgulhoso bispo não teve uma vida muito dura
neste longo período de renovada perseguição. Segundo o
historiador, Atanásio permaneceu em Alexandria, escondido
na casa de uma virgem de singular beleza, tão bela que
nenhuma mulher em Alexandria a ela se compararava.
Melhor reproduzir as palavras de Sozomeno, que
apresentam uma estranha combinação de santidade e
romance, uma mistura que hoje pode parecer heterogênea,
mas que soava deliciosa aos paladares literários do século
IV.
Para todos que viam aquela virgem, ela parecia um
milagre, mas aqueles que cultivavam uma fama de
temperança e prudência a evitavam por medo de serem
alvos de suspeita. Pois ela estava realmente na flor da
idade e era supremamente decorosa e modesta... Ora,
salvo por uma visão divina, Atanásio refugiou-se junto à
virgem. E quando investigo os fatos, penso que foi
realmente a mão de Deus, que não queria que os amigos
de Atanásio sofressem nenhum mal se alguém viesse
interrogá-los ou obrigá-los a jurar, pois Atanásio estaria
escondido junto àquela cuja beleza era grande demais
para dar ensejo à suspeita de que o sacerdote estivesse
com ela.
Ela recebeu-o com coragem e salvou-o com prudência,
além de ser uma anfitriã tão fiel e uma serva tão
prendada que lhe lavava os pés, tratava pessoalmente de
seus alimentos e de todas as outras coisas que a natureza
torna indispensáveis às necessidades urgentes. Também
buscava com outras pessoas os livros que lhe eram
necessários e, embora isso tenha durado um longo tempo,
nenhum dos cidadãos de Alexandria ficou sabendo.34
Contudo, estando refugiado nos esconderijos do deserto
ou escondido na casa virginal da belíssima jovem, a ação e
a presença de Atanásio eram espiritualmente sentidas no
ambiente agitado de Alexandria. Já o bispo Jorge, que,
como sabemos, era imprudente e não tinha uma vida
tranquila, estava exposto a todo instante às revoltas de
uma população irritada contra ele. Com a chegada de
Juliano ao trono, estas iras reprimidas explodiram de forma
terrível, fazendo a desgraça do bispo, à qual os atanasianos
assistiram impassíveis e provavalmente coniventes.
Publicado o decreto de Juliano que permitia o
repatriamento dos bispos eLivross por seu antecessor
ariano, Atanásio não só retornou a Alexandria, como
recuperou, sem aviso, a sede episcopal. Retomou com
renovada energia a sua ação de propaganda e luta.
Ora, a conduta de Atanásio perturbava a política de
Juliano, que pretendia manter os dois partidos cristãos em
pé de igualdade e de recíproca tolerância, prevendo que
assim se enfraqueceriam mutuamente. Nada era mais
distante de suas intenções que reforçar a ortodoxia para
vencer o arianismo. Portanto, ninguém podia ser mais
suspeito e odioso para ele que o ardente Atanásio. Ficou
furioso com a volta triunfante do bispo de Alexandria e
sentiu que isso era intolerável. Viu em Atanásio um inimigo
mais forte que ele, que tornaria inútil a tentativa à qual
havia dedicado a vida. Resolveu sufocá-lo. Começou a
perseguição sob o pretexto de que Atanásio havia
desrespeitado a lei. De fato, um édito do imperador
permitia a repatriação dos cristãos eLivross, mas não dizia
que poderiam retomar a condução das respectivas igrejas.
Ora, Atanásio não hesitou um instante em assumir o posto
do massacrado Jorge. Assim, Juliano editou imediatamente
um novo decreto aos alexandrinos:
Um homem, eLivros por tantos decretos de tantos
imperadores, deveria esperar uma autorização especial
antes de retornar à pátria, em vez de ofender as leis, com
audácia e loucura, como se não tivessem valor.
Concedemos aos galileus, eLivross por Constâncio, não o
retorno às suas igrejas, mas sim o retorno à pátria. E
fiquei sabendo agora que o audacíssimo Atanásio, inflado
por sua habitual imprudência, retomou aquilo que eles
chamam de trono episcopal, o que não é pouco
desagradável ao piedoso povo de Alexandria. Ordenamos,
portanto, que ele saia da cidade imediatamente, no dia
em que receber esta comunicação, que deve ser
considerada um sinal de nossa benevolência. Contudo, se
ele permanecer, decretaremos maiores e mais molestos
castigos para ele.35
Parece que, apesar das ameaças, Atanásio ficou. Não
satisfeito em combater os arianistas, realizou uma fecunda
obra de propaganda entre os pagãos, ganhando para o
cristianismo sobretudo as mulheres. Furioso, Juliano
mandou ao governador do Egito, Edíquio, o seguinte
bilhete:
Se não querias me falar sobre outros assuntos, deverias,
porém, ter-me escrito sobre aquele inimigo dos deuses
que é Atanásio, ainda mais estando informado há tempos
do que foi por mim sensatamente estabelecido. Juro pelo
grande Serápides que se antes das calendas de dezembro
aquele Atanásio, inimigo dos deuses, não tiver partido da
cidade, ou melhor, de todo o Egito, imporei à província
que administras uma multa de cem libras de ouro. Sabes
que tardo a condenar, mas tardo muito mais a perdoar
depois de ter condenado.
Tudo indica que até aqui Juliano ditava seu decreto a um
secretário, mas que, tomado por um impulso repentino,
pegou a pena e escreveu:
De minha própria mão. – Dói-me muito ser desobedecido.
Por todos os deuses, não poderias fazer nada que me
fosse mais grato que expulsar Atanásio de todos os cantos
do Egito, aquele celerado que ousou, sendo eu imperador,
batizar as mulheres gregas de ilustres cidadãos. Que seja
perseguido!
No primeiro decreto aos alexandrinos, o imperador
ordenava que Atanásio fosse banido da cidade. Agora, isso
já não bastava: ele deveria ser banido de todo o Egito. Esta
nova ordem, transmitida ao governador por aquele bilhete
de poucas frases iradas, é desenvolvida amplamente neste
manifesto ao povo de Alexandria:
Juliano aos alexandrinos.
Mesmo que tivessem como fundador um daqueles que,
transgredindo a lei paterna, tiveram o castigo merecido, e
preferiram viver ilegalmente, introduzindo uma revelação
e uma doutrina nova, vocês não teriam razão para pedir
por Atanásio. Mas tendo, ao contrário, Alexandre como
fundador e Serápides como deus protetor, junto com Ísis,
a rainha virgem do Egito... [aqui o texto se interrompe]
...vocês não desejam o bem desta cidade, são uma parte
doente dela que ousa se apropriar de seu nome.
Pelos deuses, eu teria vergonha, ó alexandrinos, se um
único entre vocês confessasse ser galileu. Os pais dos
judeus foram, outrora, servos dos egípcios. E agora, ó
alexandrinos, depois de terem dominado os egípcios (pois
seu fundador conquistou o Egito), vocês oferecem aos
que desprezam as leis pátrias e oferecem àqueles a quem
vocês outrora subjugaram, a sua voluntária servidão. Não
lembram sequer a antiga prosperidade, quando todo o
Egito estava unido no culto dos deuses e desfrutava de
todos os bens. Que benefício trouxeram para esta cidade
aqueles que introduziram esta nova revelação entre
vocês? Seu fundador, Alexandre da Macedônia, o Grande,
foi um homem piedoso que, por Júpiter, não se parecia em
nada com estes últimos e tampouco com os judeus que,
no entanto, valem muito mais do que eles. E por acaso os
ptolomeus, que sucederam ao fundador, não favoreceram
paternalmente esta cidade, como uma filha dileta? Por
acaso a fizeram prosperar com os discursos de Jesus ou
garantiram a opulência de que goza agora por meio da
doutrina dos péssimos galileus? Enfim, quando nós,
romanos, nos tornamos senhores da cidade, destituindo
os ptolomeus, que governavam mal, Augusto disse em sua
apresentação aos cidadãos: “Habitantes de Alexandria,
considero que sua cidade não é responsável pelo que
aconteceu, por respeito ao grande deus Serápides...”
Não vou falar de todos os favores concedidos
especialmente à sua cidade pelos deuses do Olimpo, para
não me alongar demais. Mas como poderiam ignorar os
favores dispensados pelo deuses, a cada dia, não a uns
poucos homens ou a uma única estirpe ou cidade, mas a
todo o inteiro mundo? Não foram capazes, talvez, de
perceber sozinhos o raio que emana do Sol? De saber que
a primavera e o inverno provêm dele? Que dele emana a
vida de todos os animais e plantas? Não compreenderam
quantos bens nos dá a Lua, que nasce dele e que ele
nomeou sua ministra para tudo? E ousam não se inclinar
diante dos deuses? Creem realmente que este Jesus, que
nem vocês nem seus pais jamais viram, deve ser Verbo de
Deus para vocês? E aquele Sol que todo o gênero
humano, desde a eternidade, contempla e venera e que,
venerado, favorece; refiro-me ao grande Sol, imagem viva
e animada e racional e operosa do Todo intelectivo...
O texto interrompe-se neste ponto e perdemos o
fechamento do entusiástico hino. Mas continua depois:
Mas vocês não estarão se desviando do reto caminho ao
acreditar em mim, que o percorro neste meu vigésimo
ano e já lá se vão doze anos, com a ajuda dos deuses.
Se lhes for grato permitir que eu os convença, terão
grandes alegrias. Mas se for sua preferência restar fiéis à
tolice e aos ensinamentos dos maus, entendam-se entre
vocês, mas não me peçam Atanásio. Já são muitos os
discípulos dele que podem confortar seus ouvidos, se
vocês sentem o apelo ou a necessidade de palavras
ímpias. Antes se limitasse a Atanásio a perversidade de
seu ímpio ensinamento, mas vocês têm abundância de
pessoas capazes e não terão problemas de escolha.
Qualquer um escolhido na multidão não será inferior
àquele que desejam no ensino das Escrituras. Mas se
amam Atanásio por alguma outra habilidade (pois dizem
que o homem é um intrigante) e por isto dirigem a mim
estas súplicas, fiquem sabendo que o expulso da cidade
justamente por este motivo: um homem que quer meter
as mãos em tudo é, por natureza, inapto para governar,
ainda mais se não é nem mesmo um homem, mas um
homúnculo vil, como este grande homem de vocês, que
pensa que está sempre em perigo de vida e é causa de
contínuas desordens. Portanto, para impedir que isto
aconteça, decretamos inicialmente que saísse da cidade e
agora, de todo o Egito.
Que isto seja anunciado aos nossos cidadãos de
Alexandria.36
Atanásio não opôs resistência ao decreto de Juliano.
Aquele homem experimentado e sagaz, que atravessou
tantos outros perigos e aventuras, compreendeu a
inutilidade da tentativa de Juliano. De partida de
Alexandria, disse à multidão chorosa que o cercava:
“Tenham coragem. É só uma nuvenzinha, logo vai
passar”.37 Admirável vaticínio, pronunciado no momento
em que Juliano reinava em toda a sua potência juvenil.
Revela, com a calma e serena segurança da palavra, a
grandeza da mente de um homem insigne, bem mais que as
hiperbólicas invectivas de um Gregório ou de um Cirilo.
O manifesto de Juliano é singularmente interessante e
precioso para compreender o espírito e as intenções do
imperador. Com certeza, não é desprovido de habilidade o
artifício com o qual o escritor tenta envergonhar os
alexandrinos, que se submetem ao jogo dos descendentes
dos judeus, eles que, outrora, haviam subjugado o povo
judeu. Para ele, é profundamente espantoso que os
alexandrinos possam ter mergulhado numa debilidade
intelectual tão grande que levam a sério uma figura
completamente desprovida de importância histórica como a
de Jesus, que nem eles nem seus pais jamais tinham visto,
enquanto contemplam diariamente o Sol, que dá vida e
representa visivelmente o deus supremo! Como Juliano
tinha realmente se fechado para o fascínio do Evangelho, a
história de Jesus não passava de uma fábula composta por
elementos mal costurados entre si e, a bem dizer,
essencialmente irracionais. Achava surpreendente que
pudesse existir uma opinião diferente da sua. Contudo,
apesar da convicção, que se revela no hino ao Sol com
palavras sentidas que são prova de sua sinceridade, Juliano
não se afasta da tolerância. Deplora a cegueira dos
alexandrinos e, por razões de antipatia pessoal, não quer
que Atanásio exerça influência sobre eles, mas não impede
que os cristãos de Alexandria sejam educados em sua
doutrina pelos vários professores de que podem dispor.
Considera realmente inconcebível e doloroso que os
ouvidos dos alexandrinos anseiem pelo estímulo da palavra
cristã, mas, se é assim, que dela disponham ao bel-prazer,
com a única proibição de ouvir a palavra de Atanásio. Esta
feroz antipatia de Juliano pelo bispo de Alexandria só serve
para honrar este último. É uma demonstração viva do valor
singular do insigne personagem. Há em Juliano,
certamente, a ira do militante que vê diante de si um
inimigo mais forte, que não consegue submeter. O
assassinato do bispo Jorge, que parecia ser um sintoma do
retorno dos alexandrinos ao helenismo, só serviu para
devolver a Atanásio a sua antiga potência e, portanto, para
tornar mais eficaz a propaganda cristã. Era natural e
humano que Juliano ficasse incomodado com essa situação
e abandonasse a moderação. Mas ao dar à sua cólera o
caráter de uma luta pessoal, Juliano demonstrou que nem o
insucesso e o desengano eram capazes de levá-lo a uma
perseguição sistemática e geral.
A argumentação de Juliano neste manifesto aos
alexandrinos é bem característica de seu pensamento. A
civilização antiga, com todas as suas glórias, tradições e
recordações era, aos seus olhos, um bem tão precioso que
ele não consegue compreender como é possível aceitar
uma doutrina que não a reconhece, que tem origens
estranhas a elas e que, se for vitoriosa, acabará por
arruiná-la e destruí-la. Como? A tradição será interrompída,
a história encerrada? Todo o esplendor passado será
cancelado para sempre? E cancelado pela intrusão de um
elemento estrangeiro? Quem seria capaz de comparar o
valor deste elemento estrangeiro com a grandeza das
memórias pátrias? Para demonstrar a modéstia desprezível
da origem da nova doutrina, Juliano só chama os cristãos
de galileus. Seria possível que uma força capaz de
combater e vencer as mais luminosas e poderosas tradições
viesse de um pequeno, ignorado e bárbaro cantinho do
imenso Império? Seria possível que os galileus fossem mais
sábios e mais fortes que os gregos? Seria possível que os
alexandrinos esquecessem Alexandre, os ptolomeus, os
romanos, Serápides, Ísis e, enfim, todo aquele complexo de
homens, leis, religião, história sobre o qual se ergueram a
sua civilização, a sua riqueza, a sua boa fortuna? Por que
abandonam tão diletas, grandes e gloriosas memórias para
seguir o chamado de Jesus? De um homem nascido na
Galileia, realmente estrangeiro ao mundo grego e romano,
de um homem obscuro, conhecido tão somente por incertas
e confusas notícias, sem sabedoria, sem força que se deixou
matar miseravelmente? Isto não é a maior das loucuras?
Esta argumentação de Juliano, que podia parecer válida
para quem não acreditava no cristianismo, não tinha valor
algum para quem já acreditava. Crer não é fruto de
raciocínio, conveniência ou oportunidade. A fé nasce de um
impulso espontâneo da alma humana, que sente a
necessidade de satisfazer certas aspirações especiais. Não
há raciocínio capaz de apagá-la depois que ela nasceu.
Todas estas lembranças, estes apelos de Juliano a um
passado glorioso caíam no vazio, sem conseguir tocar as
almas que já tivessem sentido o fascínio do cristianismo e
que, atraídas por outros ideiais, corriam para onde eles
poderiam ser satisfeitos. Além disso, já era tarde demais.
Um discurso como o de Juliano teria sido entendido e talvez
tivesse alguma eficácia se tivesse sido pronunciado por um
Marco Aurélio, dois séculos antes, quando o paganismo
ainda vivia em toda a sua majestade e o cristianismo
acabava de nascer. Mas na metade do século IV, quando o
cristiniamo já havia sido oficialmente reconhecido e
dominava meio mundo, este discurso devia ter o efeito de
uma voz fraca e muito distante, sem a força suficiente para
fazer eco nas almas daqueles que a ouviam.
NOTAS
1. Iulian., 356, 19 sg.
2. Ammian. Marcell., I, 271, 8 sg.
3. Idem, I, 271, 15.
4. Gregor.. orat. 3ª, 72-74.
5. Socrat., 151.
6. Idem, 153.
7. Sozom., 488.
8. Liban., 1, 562-10.
9. Idem, 1, 562, 23 sg.
10. Idem, I, 565, 3.
11. Ammian. Marcell., I, 269, 13 sg.
12. Idem, 1, 267, 7 sg.
13. Iulian., 503
14. Idem, 503, 10 sg.
15. Amm. Marcell., I, 271, 17 sg.
16. Iulian., 559, 18 sg.
17. Idem, 485, 14 sg.
18. Idem, 562, 5 sg.
19. Amm. Marcell., I, 289, 28 sg.
19. Iulian., 488.
20. Sozom., 492 sg.
21. Idem, 487 sg. – Gregor., 91.
22. Ver, junto com esta, as leis contidas no Código Teodosiano, sob o título
De paganis, sacrificiis et templis. – Liban., II, 148 sg.
23. Liban., II, 153.
24. Idem, II, 2 sg.
25. Idem, II, 178.
26. Idem, 194, 10 sg.
27. Liban., 202, 10 sg.
28. Sozom., 508.
29. Iulian., 466, 1 sg.
30. Sozom., 511.
31. Iulian., 522.
32. Socrat., 108.
33. Iulian., 547.
34. Sozom., 489.
35. Iulian., 514.
36. Idem, 556.
37. Socrat., 152. – Sozom., 500.
38. Iulian, 559 sg. – Sozom., 501.
39. Euseb., 375.
40. Amm. Marcell., I, 263.
41. Sievers – Das leben des Libanius. Boissier – La fin di Paganisme.
42. Gregor., orat. 3, 97.
43. Socrat., 151.
44. Amm. Marcell., I, 289.
45. Iulian., 544 sg.
E mumsuadoloroso
breve carreira, o infeliz Juliano preparou para si
desengano. Não demorou para que
percebesse que nenhuma das suas medidas atingia o
objetivo que almejava. A propaganda polietísta, embora
criada e dirigida pelo próprio imperador, teve resultados
escassíssimos. O mundo, mesmo onde não existia fervor
cristão, era indiferente à restauração do culto antigo. O
esforço de Juliano caía no vazio. Ele via em toda parte as
provas deste estado de coisas, e sua inteligência aguda
compreendia todo o seu amargo significado. A um amigo
da Capadócia, ele escreveu:1 “Mostra-me, em toda a
Capadócia, um único homem que seja genuinamente
helênico, pois até agora só vi gente que se recusa a fazer
os sacrifícios, e os poucos que aceitam não sabem como
fazer.” No encerramento da carta ao grão-sacerdote da
Galácia, da qual já citamos as instruções relativas à
organização do sacerdócio, ele diz: “Estou pronto a ajudar
os habitantes de Pessinunte, se eles fizerem com que a
Mãe dos Deuses lhes seja propícia; se a negligenciarem,
não serão apenas reprovados, mas, por mais duro que seja
dizê-lo, sofrerão os efeitos de meu desprezo. Se querem
que cuide deles, trata de persuadi-los a serem
unanimemente devotos da Mãe dos Deuses.”2
Realmente estranho e sintomático que, mesmo na cidade
onde se erguia o santuário da deusa que era a principal
figura do politeísmo renovado, Juliano fosse obrigado a
espicaçar o escasso zelo dos habitantes para estimulá-los a
honrar os deuses!
Mas particularmente interessante, também sobre esse
tema, é a graciosíssima carta que Juliano escreve a Libânio,
narrando a sua marcha de Antióquia a Hierápolis.3 No fim
da primeira etapa, em Litarbo, Juliano é alcançado pelo
Senado de Antióquia, a quem dá audiência na casa onde
estava alojado. É provável que os antioquenses desejassem
aplacar a irritação do imperador que, ao abandonar
Antióquia, havia dito que não pretendia mais voltar. Ele não
revela o resultado da conversa, deixando para relatá-lo
pessoalmente a Libânio quando se reencontrassem, caso
ele ainda não soubesse. De Litarbo ele vai para Bereia,
onde fica um dia para visitar a Acrópole, sacrificar um
touro branco a Júpiter e reunir-se brevemente com o
Senado para discutir o culto aos deuses. Mas, ai de mim,
diz Juliano com um sorriso triste e irônico, “todos
elogiaram o discurso, mas poucos mostraram-se
convencidos, e estes já o estavam antes do meu discurso!”
De Bereia, Juliano parte para Batnas, lugar encantador,
comparável apenas a Dafne, subúrbio de Antióquia, antes
do incêndio que destruiu o templo de Apolo. A beleza da
planície, os graciosos bosques de verdes ciprestes, o
modesto palácio imperial, o jardim que o cerca, menos
esplêndido que o de Alcinoo, mas semelhante ao de Laerte,
as aleias cheias de legumes e árvores carregadas de frutos,
tudo faz dele um deleite. E flutuam por todo lado os
perfumes de incenso e veem-se em toda parte sacrifícios e
pompas solenes. Mas nem mesmo aqui o imperador, a
quem o zelo religioso não dava descanso e que tinha prazer
em atormentar-se, estava totalmente satisfeito. Achou a
agitação excessiva e excessivo o luxo daquelas festas. Os
deuses devem ser venerados com tranquila dignidade. Ele
providenciará mais tarde um modo de acomodar as coisas.
Talvez o suspeitoso Juliano visse naquele excesso de
manifestações, mais que uma prova sincera de devoção,
uma tentativa de deitar poeira em seus olhos. Mas,
finalmente, ele chega a Hierópolis, onde é recebido por
Sópatro, aluno e genro de Jâmblico, um deus em terras de
Juliano. Sua alegria é imensa, pois gosta especialmente de
Sópatro porque, tendo hospedado Constâncio e Gallo, foi
pressionado a abandonar os deuses, mas soube resistir e
não se deixou contagiar pela moléstia.
Ele não escreve a Libânio a respeito das coisas políticas e
militares, pois seria impossível colocar tudo numa carta.
Mas, para dar uma ideia do que está fazendo, relata que
mandou uma missão aos sarracenos para estabelecer uma
aliança, organizou um serviço de exploração, presidiu
tribunais militares, reuniu uma quantidade de cavalos e
mulas para transporte e de barcas fluviais carregadas de
trigo e de pão seco. Juntem-se a isso a correpondência
epistolar que o segue onde quer que vá e as leituras nunca
interrompidas. Sem dúvida, nunca se viu um homem mais
intensamente ocupado.
Mas a prova mais evidente do fracasso de Juliano é
fornecida por Amiano Marcelino. Como não era cristão,
seria de se esperar que, ao escrever a história do
imperador apóstata, ele reservasse palavras de entusiasmo
para a tentativa que iniciou e saudasse em Juliano o
ansiado restaurador. Nada disso. Amiano é de uma
indiferença glacial a este respeito. Tem algumas palavras
de desdém para com os cristãos, dizendo que se odeiam
uns aos outros mais que as bestas ferozes, mas não
demonstra nenhum interesse pela obra de Juliano que, para
ele, como se vê, não passa de um exercício, talvez até uma
fixação de filósofo, à qual não valia a pena dar muita
atenção. E chega a julgar excessivo, como vimos,
inclemens, o decreto que retira dos professores cristãos o
direito de usar livros pagãos. Não hesita em manifestar sua
desaprovação pelas manias rituais do fervoroso imperador.
Ora, se Amiano – um homem que, por sua cultura, era
particularmente devoto das memórias antigas – pensava
assim, é fáci imaginar a profunda indiferença, ou melhor, a
hostilidade que Juliano encontrou na massa social, para
quem os ideais do helenismo tinham se tornado estranhos.
A verdade é que Juliano só era compreendido pelos
retóricos e pelos filósofos que faziam parte do cenáculo
neoplatônico. Para ver sua obra apreciada, é preciso
recorrer ao discurso necrológico escrito por Libânio, que,
entre os méritos e glórias de Juliano, inclui o de ter trazido
de volta à terra o sentimento religioso que dela estava
eLivros.4
Mas, em meio a seus desenganos, Juliano também
encontrou algum conforto. Sua alegria devia ser grande
quando algum ilustre personagem da Igreja retornava ao
seio do politeísmo, embora isso fosse bastante raro. Era
claro o sentimento de todos sobre a inutilidade da tentativa
de Juliano e o esgotamento do politeísmo. O único caso
conhecido é o do bispo Pegásio, narrado pelo próprio
Juliano numa carta que é uma das mais preciosas de seu
epistolário, inclusive como um retrato vivaz do ambiente.
Parece que Juliano havia alçado o bispo apóstata a um alto
posto sacerdotal, o que ofendeu a sensibilidade de algum
helenista mais puro. Eis a resposta do imperador:5
Nós certamente não teríamos acolhido Pegásio tão
facilmente se não tivéssemos verificado que, mesmo
quando era bispo dos galileus, ele não era alheio ao
reconhecimento e ao amor aos deuses. E não te digo isso
por ter ouvido daqueles que costumam falar por amor ou
por ódio, pois mesmo ao meu redor bisbilhotou-se muito a
respeito dele, de modo que, pelos deuses, quase acreditei
que devia odiá-lo mais que a qualquer outro daqueles
infelizes. Mas, quando fui convocado por Constâncio para
o Exército, pus-me a caminho, partindo de Trôade antes
do amanhecer e chegando a Troia na hora do mercado.
Ele veio ao meu encontro, e quando eu disse que queria
visitar a cidade – o que era um pretexto para entrar nos
templos –, ofereceu-se para ser meu guia e conduziu-me
por toda parte, agindo e falando de um modo que me fez
pensar que ele não ignorava seus deveres para com os
deuses.
Há, em Troia, um sacrário dedicado a Heitor onde, num
pequeno templo, fica sua estátua de bronze. Em frente, a
céu aberto, colocaram o grande Aquiles. Se já visitaste o
lugar, sabes do que falo. [...] Vendo os altares ainda
acesos, quase chamejantes, e brilhante de unguentos a
estátua de Heitor, perguntei a Pegásio: “O que significa
isto? Os habitantes de Troia ainda seguem os rituais dos
deuses?” Queria sondar sua opinião sem dar na vista. E
ele: “O que há de estranho neles venerarem um homem
valoroso, seu concidadão, como nós honramos nossos
mártires?” A semelhança não era apropriada, mas
naquele momento percebi que a intenção era louvável. E
em seguida disse: “Vamos ao templo de Minerva Ilíaca.”
Ele, cheio de boa vontade, acompanhou-me, abriu o
templo com as próprias mãos e mostrou-me
atenciosamente, como se lhe importasse, que todas as
estátuas sagradas estavam salvas, sem fazer nada daquilo
que os ímpios costumam fazer, como o sinal da cruz sobre
a fronte, nem ficou murmurando consigo mesmo, como
eles. O máximo da teologia para eles está nestas duas
coisas: imprecar murmurando contra os demônios e
assinalar a cruz na testa.
Já te contei estes dois fatos, mas não quero esquecer de
um terceiro que me veio à mente. Ele seguiu-me ao
santuário de Aquiles e mostrou-me o túmulo intacto.
Fiquei sabendo que o sepulcro havia sido descoberto por
ele, que mostrava uma atitude de grande respeito. Tudo
isso eu vi pessoalmente. Soube depois por aqueles que
hoje são seus inimigos que, secretamente, ele orava e se
prosternava para o Sol. Por acaso o deus não me acolhia
deste modo quando eu não fazia profissão de fé em
público? Que testemunho pode ser mais confiável sobre a
disposição de cada um de nós em relação aos deuses que
o dos próprios deuses? Teríamos nomeado Pegásio
sacerdote se soubéssemos que ele pecava em algo
relacionado aos deuses? Se, naqueles tempos, seja por
vaidade de poder, seja, como ele disse várias vezes, para
salvar os templos dos deuses, ele vestiu aqueles trapos e
fingiu, só nas palavras, que acompanhava a impiedade
(de fato, não causou nenhum dano aos templos além de
derrubar algumas pedras do teto, para tornar possível a
salvação do resto), devemos culpá-lo por isso? E não
ficaríamos desgostosos se o tratássemos de um modo que
alegrasse os galileus, que gostariam de vê-lo sofrer? Se
tens consideração por mim, honrarás não apenas este,
mas todos os outros que se converterem, de modo que
nos deem ouvidos mais facilmente, a nós que os
convidamos ao bem. Se rejeitamos aqueles que nos
procuram espontaneamente, ninguém responderá ao
nosso apelo...
Este Pegásio devia ser bastante esperto. Provavelmente
ouviu falar das tendências helenistas de Juliano e, prevendo
a eventualidade de vê-lo subir ao trono como único
herdeiro sobrevivente da família de Constantino, o astuto
bispo resolveu preparar o terreno para uma futura
evolução, mas sem se comprometer com as autoridades
dominantes. A arte com que se insinou no espírito de
Juliano, dizendo sem dizer, é bastante fina e sagaz, e o
imperador, ingênuo como todos os apóstolos fervorosos,
deixou-se ludibriar e confundiu um intrigante astuto e uma
cena de comédia com um homem sério e com provas de
uma crença profunda. Os recrutas que fazia entre os
desertores do cristianismo só podiam ser homens
desprezíveis como Pegásio. Seus amigos e partidários
protestaram contra as honras que ele lhes prestava, mas o
infeliz imperador, na pobreza de seus resultados, tinha de
contentar-se com qualquer simulacro de sucesso e
encontrar na impostura um motivo de satisfação.
NOTAS
1. Iulian., 484
2. Idem, 515.
3. Idem, 515.
4. Idem., 249
5. Idem., 602
6. Amm. Marcell., I, 287, 3 sg.
7. Liban., 1, 492, 15.
Capítulo VII. O príncipe
e o homem
N ogenialidade
curso deste
a
estudo, já aparece em toda a sua
natureza singular deste príncipe
apaixonado que, no trono dos Césares, colocava a serviço
de um ideal irrealizável as virtudes intelectuais e
espirituais que, liberadas da preocupação religiosa, teriam
feito dele um grande imperador. Mesmo que Juliano tivesse
reinado mais tempo e sem outro objetivo além da defesa e
da organização do Império, ele não teria conseguido deter
a decadência fatal do mundo antigo. Talvez conseguisse, no
máximo, reduzir seu ímpeto e impedir que desaguasse na
catástrofe bárbara.
A passagem de Juliano pelo trono imperial foi como o
aparecimento de um meteoro luminoso que, mal começou a
brilhar, já se apagou. Ele não teve tempo de deixar uma
marca duradoura de sua ação nos fatos e nas coisas. Não
fossem seus escritos, que são o espelho genuíno de seu
caráter, de sua intenções, dos dotes e defeitos de seu
espírito excelso, sua memória viveria apenas nas
caricaturas traçadas pelos escritores cristãos, que
limitavam sua obra à guerra contra o cristianismo e o
retratavam como um homem odioso e condenável. É
verdade que temos em Libânio e Amiano Marcelino as
provas da admiração que Juliano despertava em seus
contemporâneos. Mas Libânio é suspeito por estar muito
envolvido e comprometido com a tentativa de restauração
politeísta, e Amiano Marcelino não tem autoridade
suficiente para fazer frente a Gregório de Nazianzo,
Sócrates Escolástico, Sozomeno e, enfim, a toda a tradição
católica. Assim, a figura genial de Juliano chegou à
posteridade trazendo na fronte a marca do apóstata. Ficou
esquecido o fato mais interessante do ponto de vista
psicológico e histórico: este infeliz apóstata que tentou
sufocar o cristianismo era, sob todos os aspectos, um
homem essencialmente virtuoso, o melhor dos homens que
apareceram no horizonte da vida pública do Baixo Império.
O bom Amiano Marcelino, ao tecer o elogio de Juliano,
depois de narrar sua morte heroica, conta como ele era
brilhante pela castidade e pela temperança na vida, pela
prudência na ação: virtute senior quam oetate, studiosus
congnitionum omnium, censor moribus regendis acerrimus,
placidus, opum contemptor, mortalia omnia despiciens.1
Perfeita a sua justiça, mitigada pela clemência, admiráveis
o conhecimento das coisas de guerra e a autoridade com
que comandava seus soldados, incomparável a coragem
com que combatia entre os primeiros, encorajando suas
fileiras e reconduzindo-as à batalha ao primeiro sinal de
incerteza. Sábia e moderada a sua administração, voltada
para diminuir o peso dos impostos, arbitrar os litígios entre
o fisco e os particulares, restaurar as finanças arruinadas
das cidades e, por fim, frear a terrível desordem que
reinava no ávido e parasitário governo do Império. Mas o
honesto historiador não dissimula os defeitos de seu herói,
que, aliás, são bastante leves em confronto com as virtudes.
Uma certa leviandade ao tomar decisões, uma excessiva
facilidade e abundância de palavra, que deviam ser, a nosso
ver, reflexo de uma impressionabilidade excessiva,
constatável também naqueles entre seus escritos que são a
efusão sincera de seu espírito. Finalmente, e este era o
defeito mais grave de Juliano, consequência inevitável de
seu sistema filosófico, uma tendência à superstição, que
fazia com que desse à exterioridade da religião que
pretendia restaurar uma importância que muitas vezes
beirava o ridículo e era uma das causas que enfraqueciam
sua propaganda. Este é o retrato moral do imperador
esboçado por Amiano, no qual ele descreve também a sua
figura ao mesmo tempo forte e ágil, e o rosto, singular pela
barba hirsuta que acabava em ponta, objeto de zombaria
dos antioquenses, e esplendoroso pela beleza dos olhos
cintilantes, que deixavam transparecer a argúcia de mente
– venustate oculorum micantium flagras, qui mentis ejus
argutias indicabant.
Mas antes de estudar Juliano por meio de seus escritos,
que são a fonte genuína da verdade, daremos ainda uma
olhada na imagem que dele deixaram os seus
contemporâneos Libânio e Gregório de Nazianzo, com
objetivos opostos, o primeiro de exaltar sua memória, o
segundo de cobri-la de lama e vergonha. No decorrer do
nosso estudo, já colhemos nos campos desses escritores,
mas não será inútil renovar a colheita: certamente
recolheremos alguns feixes de informações preciosas.
Começaremos por observar que nos lamentos de Libânio
pela tragédia de Juliano é impossível não perceber a
expressão de um sentimento verdadeiro e profundo, mais
ainda se pensarmos que o Discurso necrológico e a
Monódia foram escritos quando já não havia mais nenhum
traço da tentativa de restauração pagã. O cristianismo
dominava, novamente soberano na Corte e na população e,
portanto, a manifestação daquela dor podia constituir um
perigo para o escritor. Como adaptar-se, exclama Libânio,
ao pensamento de que o ímpio Constâncio
dominou sobre a terra, que ele contaminava, por
quarenta anos e dela partiu por motivo de doença. E
aquele que renovou as leis sagradas, reordenou as boas
instituições, reergueu as moradas dos deuses, refez os
altares, reconvocou as fileiras de sacerdotes escondidos
nas trevas, restaurou as estátuas, sacrificou manadas e
rebanhos, ora no castelo, ora fora, ora de noite, ora de
dia, entregando toda a sua vida nas mãos dos deuses,
partiu depois de ocupar por breve tempo o cargo menor
do Império e por um tempo ainda mais breve, o maior,*1
de modo que a Terra, que mal havia experimentado tanto
bem, não pôde se satisfazer. [...] Se pelo menos a volta
dos nossos males tivesse ocorrido pouco a pouco. Mas a
boa fortuna, assim que nos via, logo se retraiu, como em
fuga. Por Hércules, isto é atroz demais e é obra de
demônios atrozes.2
quais ele só teve conhecimento depois de ler meu livro, ensaio este que pelo
domínio das fontes e pela acuidade e imparcialidade de julgamento é uma
excelente contribuição para os estudos julianistas, sustenta uma tese que me
parece um pouco arriscada: os panegíricos de Constâncio teriam sido escritos
por Juliano com intenção irônica, de modo que, em vez de serem a expressão
de um oportunismo deplorável, seriam um ataque ferino, embora velado, contra
o novo protetor. Ora, é indubitável que Juliano, no íntimo de seus pensamentos,
não levava a sério os desmedidos louvores que esbanja com o primo. Mas isto
não basta para dar a seu discurso o caráter da ironia. Para tanto, seria
necessário que, tendo algum interesse em deixar transparecer seu verdadeiro
pensamento, ele escrevesse de modo que os ouvintes ou leitores pudessem
captá-lo nas entrelinhas de um texto que diz o oposto do que ele pensa. Ora,
estes panegíricos foram escritos na lua de mel da conciliação de Juliano com
Constâncio, o primeiro durante sua estadia em Milão, o segundo na Gália, na
véspera de suas primeiras campanhas. Depois de ter aceito o novo posto que
fazia dele o segundo personagem do Império, é razoável que Juliano desejasse
consolidar sua base e ganhar cada vez mais as boas graças do imperador ou
pelo menos dissipar as suspeitas que ainda poderiam se esconder em seu
espírito. Seria muita leviandade de sua parte se, justamente no momento em
que recebia de Constâncio o título de César para exercê-lo em seu nome, ele
tivesse resolvido ofendê-lo com as alfinetadas de uma transparente ironia! Os
dois panegíricos foram escritos e são, em parte justificáveis, em razão do
objetivo de erradicar a desconfiança que a consciência da perversidade das
próprias ações despertava em Constâncio. O ponto mais delicado nas relações
entre os dois primos devia ser a lembrança do massacre do pai e dos parentes
de Juliano perpetrado por Constâncio, quando da morte de Constantino. Pois
bem, em seu primeiro discurso, Juliano toma posição nitidamente, ao repetir
em seu próprio nome a desculpa usada por Constâncio para atenuar o crime.
Juliano fala das sábias medidas tomadas por Constâncio ao assumir o Império e
acrescenta em seguida esta frase: “salvo que, forçado pelas circunstâncias,
contra a tua vontade não impediste que outros cometessem excessos” (Iulian.,
19). Como demonstramos em nossa exposição, esta desculpa absolutamente
não desculpava Constâncio, mas, de todo modo, fornecia uma escapatória para
fugir das censuras, jogando nos outros a culpa pelos erros. A explicação era
aceita oficialmente como uma espécie de dogma que, na corte de Constâncio,
tinha de ser aceito de olhos fechados. Juliano, como ele mesmo diz no
Manifesto aos atenienses, não acreditava nisso, o que não impede que sua
declaração, no momento em que foi feita, fosse considerada uma garantia de
que ele esquecia o passado e desistia de qualquer pensamento de vingança,
qualquer sentimento de cólera e horror. Dado este passo de reconhecimento
hipócrita da virtude de Constâncio, que deve ter sido o mais difícil e
repugnante para ele, Juliano entrava a velas despregadas e sem obstáculos nas
águas da retórica aduladora de seu tempo e cumpria o esquema do panegírico
oficial com uma matéria que, à exceção de alguns pontos do segundo texto, já
estava pronta nos depósitos retóricos da escola.
Até a batalha de Estrasburgo, Juliano pensava que poderia viver num acordo
pacífico com Constâncio e tentava, por seu lado, infundir no ânimo do primo,
com fatos e com palavras, a confiança nele e em seu trabalho. É verdade que,
em escritos posteriores, Juliano tenta nos convencer de que desde o primeiro
dia, quando desfilava triunfante na carruagem imperial pelas ruas de Milão,
tinha o pressentimento da verdade e a certeza da traição de Constâncio. Não
devemos, porém, tomar ao pé da letra tudo aquilo que o hábil polemista diz em
sua defesa. Por outro lado, boa parte disso deve-se aos efeitos da perspectiva
histórica, que diminui as distâncias e mostra um recorte de acontecimentos
que, na realidade, percorrem um longo caminho. Creio, portanto, que posso
concluir que os dois panegíricos foram escritos por Juliano na intenção real de
agradar a Constâncio e espelham um momento determinado da vida do nosso
herói. [N.A.]
Capítulo VIII. Conclusão
A omais
começar este estudo, afirmei que nenhum destino foi
miserável que o de Juliano, pois a Igreja,
inutilmente combatida por ele, vingou-se cobrindo sua
nobre figura com uma máscara odiosa e tornando
execrável o seu nome, que teria todo direito ao respeito e à
admiração das gerações futuras. Porém, depois de estar
tão longamente em sua companhia, fica ainda mais viva a
compaixão por seu destino, pois talvez não haja na história
outro exemplo de tantos e tão esplêndidos dotes
completamente desperdiçados numa empresa inútil.
Poucos entre os homens que surgiram na cena do mundo
possuíam, como ele, todas as forças necessárias para
exercer uma ação duradoura sobre os acontecimentos. E
nenhum desapareceu mais miseravelmente, sem deixar
nenhum traço de si. A obra de Juliano foi passageira e vã
como a esteira de um barco na superfície da água. Assim
que passa a popa, as águas divididas juntam-se de novo e o
sulco não é mais visível. Assim, mal Juliano expirava em
sua tenda, na planície persa, sua tentativa efêmera
desaparecia no nada e a história retomava seu curso como
se ele nunca tivesse existido. Pode-se dizer que o
cristianismo nem chegou a perceber a guerra que Juliano
lhe movia. Não conseguiu deter sua propaganda nem um
instante e não influiu de modo algum em sua orientação e
em suas manifestações posteriores.
O destino resolveu colocar sobre o trono dos Césares, no
ocaso do Império, um homem de inteligência viva e espírito
forte e reto. E ele não serviu para nada! Seus esforços
esgotaram-se no vazio. Deixou-se dominar por uma ideia
completamente equivocada e impulsionou sua ação numa
direção em cujo extremo havia apenas o abismo. Ele
avançou para lá como um sonâmbulo que não tem
consciência do mundo real que o cerca. Não há, na história,
espetáculo mais triste que este desperdício de forças
preciosas, mas não há também espetáculo mais
interessante, pois o estudo das causas que tornaram
possível o surgimento de uma ilusão tão grande num
espírito tão aberto e inteligente permite compreender e
avaliar a revolução religiosa que levou a antiga civilização
à ruína.
Examinamos e discutimos tais causas no decorrer deste
trabalho. Mas não será inútil resumi-las e reafirmá-las, pois
nelas reside todo o interesse da vida de Juliano e em sua
análise está a razão do longo estudo que empreendemos.