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Editora CRV - Proibida a impressão e comercialização

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Antonio Wardison C. Silva
Romildo Henriques Pinas
(Organizadores)
Editora CRV - Proibida a impressão e comercialização

ELEMENTOS DE TEOLOGIA:
uma abordagem sistemático-pastoral

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2023
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Imagem de Capa: Freepik
Revisão: Os Autores

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CATALOGAÇÃO NA FONTE
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E37

Elementos de teologia: uma abordagem sistemático-pastoral / Antonio Wardison C. Silva,


Romildo Henriques Pinas – Curitiba: CRV, 2023.
180 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-5266-0
ISBN Físico 978-65-251-5267-7
DOI 10.24824/978652515267.7

1. Teologia 2. Cristianismo 3. Pastoral I. Silva, Antonio Wardison C., org. II. Pinas, Romildo
Henriques, org. III. Título IV. Série

CDU 27 CDD 230


Índice para catálogo sistemático
1. Cristianismo - 230

2023
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Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .......................................................................................................... 9
Os Organizadores

TEOLOGIA, SABER QUE NASCE DA FÉ ................................................................. 13


Milena Medeiros e Marques

A CIÊNCIA TEOLÓGICA NA PERSPECTIVA DE TOMÁS DE AQUINO ................. 25


Antonio Wardison C. Silva
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HISTÓRIA E HISTORICIDADE – A REVELAÇÃO DIVINA E O LIMITE DAS


MEDIAÇÕES ................................................................................................................ 45
Romildo Henriques Pinas

ACOLHIDA DA REVELAÇÃO DIVINA E REALIZAÇÃO HUMANA .......................... 69


Elizeu da Conceição
José Aguiar Nobre

NOTAS SOBRE A SINODALIDADE NA HISTÓRIA E NA IGREJA DO BRASIL ..... 79


Ney de Souza

“UM SÓ CORPO E UM SÓ ESPÍRITO” – A RIQUEZA DA MINISTERIALIDADE


DA IGREJA: dos primeiros tempos aos nossos dias ..................................................... 95
Rodrigo José Arnoso Santos

ÉTICA CRISTÃ OU TEOLOGIA MORAL?: análise sobre o sentido da


consciência na decisão e no agir cristão ..................................................................... 109
André Luiz Boccato de Almeida

TEOLOGIA PASTORAL: elementos introdutórios ..................................................... 121


Antonio de Lisboa Lustosa Lopes
Ari Antônio dos Reis

INTRODUÇÃO À TEOLOGIA CATEQUÉTICA: ouvir, acolher, experimentar e


anunciar a Palavra....................................................................................................... 135
Humberto Robson de Carvalho
Caio Henrique Esponton

A NOÇÃO DE PESSOA NO DIREITO ROMANO .................................................... 155


Paulo Manoel de Souza Profilo
POSFÁCIO ................................................................................................................. 175
Sérgio Augusto Baldin Júnior

ÍNDICE REMISSIVO ................................................................................... 177

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APRESENTAÇÃO
A obra, Elementos de teologia – uma abordagem sistemático-pastoral, aborda
temas fundamentais da reflexão teológico-pastoral dos dias de hoje. Os temas pro-
curam tratar conteúdos, de certo modo, pertinentes à reflexão teológica, bem como
à vivência cristã. Como não se trata de uma obra unitária, por não ser escrita por
apenas um autor, pode-se dizer que seu conteúdo vai sendo exposto de uma forma
bastante polifônica ou poliédrica, onde cada um dos autores traz, em sua bagagem,
experiências, conteúdos e reflexões muito específicas dentro da reflexão teológica,
pois toda teologia parte de uma mediação cultural objetiva na qual o teólogo está
inserto. Diante disso, há de se dizer que o livro é portador de uma riqueza de temas
e conteúdos da teologia, capazes de contribuir para qualquer pessoa interessada em
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conhecer um pouco mais a teologia cristã católica.


Mesmo tratando-se de um livro de teologia, uma ciência específica, contudo,
não é uma obra de difícil leitura. Os assuntos são abordados de forma bem acessível
e com uma elaboração bastante tangível no que se refere aos seus conteúdos. Deste
modo, realizaremos uma breve apresentação daquilo que cada autor desenvolveu,
mesmo não conseguindo ser tão completos naquilo que cada capítulo procura dizer
por meio de seus autores.
A obra divide-se em duas partes. Na primeira, o primeiro capítulo, de Milena
Medeiros e Marques, com o título A relação entre estudo da teologia e a experiência
de fé, faz uma inflexão sobre a correlação entre fé, teologia e cultura, ao apontar o
cenário de descrença e de multiculturalidade, onde tanto a teologia quanto a fé são
questionadas e reformuladas no contexto hodierno. Diferente do contexto de cristan-
dade, hoje tanto a fé quanto a teologia devem ser interpretadas dentro de um cenário
cultural secularizado e, desse modo, apelando a uma razoabilidade em seus discursos.
A autora leva a intuir a afirmação de Anselmo: Fides quaerens intellectum.
O Capítulo do professor Antonio Wardison C. Silva, com o título: A ciência
teológica na perspectiva de Tomás de Aquino, resgata a compreensão de teologia à
luz do pensamento de santo Tomás, ao apontar a natureza, o fim, o objeto e o método
desta ciência. Para tal, recorre aos célebres tratados do Aquinate: a Suma contra os
gentios e a Suma Teológica. Trata-se de uma abordagem especulativa e interpretativa.
Fundamentalmente, o autor busca demonstrar o caráter próprio da teologia enquanto
ciência, ao acentuar a profunda relação entre razão e fé, natureza e graça.
Na sequência, o texto de Romildo Henriques Pinas, intitulado História e histori-
cidade: a Revelação divina e o limite das mediações, procura refletir, à luz da teologia
fundamental, o lugar da revelação no contexto histórico hodierno. Mesmo que haja
uma boa incursão na abordagem da história contemporânea, contudo a finalidade
é compreender a implicação dialética e integradora entre revelação e experiência
histórica, pois aos olhos da teologia fundamental, nenhuma das duas pode viver/
acontecer separadamente.
O texto do de José Nobre Aguiar, Acolhida da revelação divina e realização
humana, procura postular a relação integral do processo revelatório de Deus com
10

o ser humano. Para isso, o autor considera a indispensabilidade das mediações cul-
turais e sociológicas da experiência de Deus. A partir da perspectiva cristã, não se
deve dissociar felicidade, realização e experiência ontológica como Transcendência.
Ao homem, como criatura, há sempre a necessidade de se abrir ao Deus Trindade e
acolher a sua fascinante e misteriosa oferta. Diante de tal propositura, o autor debate
a problemática da secularização e alguns desafios para a teologia da revelação no
mundo de hoje.
Já Ney de Souza, com o capítulo Notas sobre a sinodalidade na história e na
Igreja do Brasil, expõe, de forma sintética, o caminho de sinodalidade feito pela
Igreja, realidade que ocorre sobretudo no primeiro milênio. O autor indica alguns
fundamentos bíblicos e que foram base para o caminho da comunidade cristã nos
primeiros séculos. A grande mudança ocorre no segundo milênio quando, no contexto
da escolástica, vai surgindo o princípio de uma Igreja centralizadora e clerical. Expõe,

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também, o caminho de renovação eclesial, sobretudo no contexto da Reforma e do
Vaticano II, onde a Igreja resgata o sentido de participação e lança as bases para a
retomada de sua natureza sinodal. Isso vale para toda a Igreja, mas, de modo muito
especial, para a América Latina e Brasil, onde ocorreram e continuam ocorrendo
várias iniciativas neste sentido.
A segunda parte da obra desenvolve temas mais práticos da vida cristã e eclesial.
O sexto capítulo, de Rodrigo José Arnoso Santos, desenvolve o tema Um só corpo
e um só espírito. A riqueza da ministerialidade da Igreja dos primeiros tempos aos
nossos dias. O autor trata a riqueza e o significado dos ministérios dentro da Tradição
cristã. Eles são dons dados à Igreja pelo Espírito Santo e estão a serviço do anúncio.
A base bíblico-patrística garante a validade dos ministérios e seu fundamento já nos
apóstolos, evangelistas, bem como nos diáconos e presbíteros e bispos do período
apostólico, pós-apostólico e patrístico. Nos primeiros séculos, os catequistas e aque-
les que defendiam a fé das heresias, tiveram papel muito importante no universo da
ministerialidade. Com o Edito de Milão, a Igreja se torna uma instituição mais forte;
desenvolve, com isso, intensa institucionalização, o que vai culminar na forte cen-
tralização ocorrida a partir do século XI. A postura da Igreja no Concílio de Trento,
diante do contexto de enfrentamento dos reformadores protestantes, abre caminho
para uma releitura da estrutura ministerial. Todavia o ponto máximo desse caminho
será o Vaticano II, quando restabelece em seus documentos o sentido de dignidade
de todo povo de Deus, realçando uma Igreja toda ministerial.
O texto: Ética cristã ou teologia moral? Análise sobre o sentido da consciência
na decisão e no agir cristã, de André Luiz Boccato de Almeida, traz uma análise entre
ética cristã e teologia moral, na perspectiva histórica e sistemática. O autor procura
lançar luzes sobre o sentido da consciência e da decisão, essenciais no agir humano
cristão. Sabe-se que hoje há uma busca desenfreada por sentido em todas as esferas da
vida humana. As várias crises que assolam a existência são geradoras de uma necessária
procura por aquilo que é o essencial na decisão. Cabe, também à moral cristã, discutir
e propor respostas aos desafios do mundo de hoje. O capítulo, portanto, procura refletir
o significado de uma linguagem ético-teológica na atual cultura pós-moderna, centrada
no sujeito em busca de ressignificar sua própria existência.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 11

Antonio de Lisboa Lustosa Lopes e Ari Antônio dos Reis discorrem sobre a
Teologia Pastoral: elementos introdutórios. No desenvolvimento do capítulo, expõem
o sentido teológico da fé no âmbito das relações humanas para a vida pastoral da
Igreja. A teologia pastoral deve caminhar entre duas relevâncias da missão teologal:
fazer a leitura e compreensão da revelação de Deus sob o olhar da fé, e a prática da
evangelização fundada na fé, como anúncio do Reinado de Deus. Teologia e Pastoral
são reflexão e ação, ação e reflexão. Elas partem da leitura da ação de Deus na His-
tória, leitura feita sob o olhar da fé. Ação e fé são duas realidades intercambiáveis no
fazer teológico, pois o Deus que se revela na história o faz mediante a ação daqueles
que se convertem em seus interlocutores, porque atenderam às suas interpelações.
O texto procura integrar teologia, fé e prática pastoral, à luz de experiências daquilo
que tem sido a vivência pastoral da Igreja.
O penúltimo capítulo, Introdução à teologia Catequética: ouvir acolher, expe-
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rimentar e anunciar a Palavra, de Humberto Robson de Carvalho e Caio Henrique


Esponton, reflete sobre os desafios para a catequese no mundo de hoje, mostrando
a distinção entre uma catequese escolar e a mistagógica. Sinaliza para o esforço da
Igreja em ressignificar o processo catequético. Os autores fazem ver que o sistema
tradicional da catequese já não funciona, não produz os frutos esperados. Os docu-
mentos do Magistério, especialmente após o Concílio Vaticano II, evidenciam a
profunda relação que existe entre catequese e revelação. Sendo a catequese o ecoar
de uma mensagem, o anúncio de um acontecimento que adquire sua plenitude em
Jesus Cristo, ela supõe uma ação de Deus que se revela e abre-se ao diálogo com o
ser humano em sua história. O texto traz alguns elementos fundamentais para uma
teologia catequética, em diálogo com o Concílio Vaticano II, considerando que o
anúncio catequético é o anúncio da pessoa de Jesus Cristo.
O último capítulo, de Paulo Manoel de Souza Profilo, intitulado A noção de
pessoa no Direito Romano, faz uma abordagem do conceito de pessoa à luz do Direito
Romano. Para tal, recorre a alguns juristas italianos como F. Viola, E, Stolfi, R. Orestano
e outros. O autor expõe as distinções do conceito de pessoa no decorrer da história,
bem como seu enriquecimento pelo diálogo cultural greco-romano. Também associa a
interpretação desse conceito dentro do direito, uma vez que a linguagem jurídica não vai
assimilar em seu linguajar o termo ‘indivíduo’, por isso prefere termos como homem,
sujeito e pessoa. Assim como a teologia, o direito também está inserto em uma cultura
e é mediado por ela, absorvendo dela seus revezes e seus benefícios.

Os Organizadores
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TEOLOGIA, SABER QUE NASCE DA FÉ
Milena Medeiros e Marques1

Introdução
Teologia, do grego, significa falar de Deus. O termo, embora tenha sido usado
originalmente para qualificar os autores de epopeias das mitologias gregas, como
Homero e Hesíodo,2 difundiu-se no Ocidente como o nome da elaboração intelectual
cristã. Historicamente, tal elaboração desenvolveu-se na comunidade de fé, a partir
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da difusão do cristianismo na cultura helênica. Em relação ao surgimento da reflexão


teológica, Ratzinger, em um texto sobre a natureza da teologia, afirma ser esse saber
um fenômeno especificamente cristão, caracterizado pelo pressuposto vínculo entre
fé e verdade.3
Desde a oficialização do cristianismo como religião do Império, a teologia
passou a ocupar o espaço público numa sociedade cristianizada. Essa realidade
consolidou-se nos dez séculos seguintes, por meio do desenvolvimento da reflexão
sobre o dado da fé a partir de aportes filosóficos, dentre os quais merece destaque
a filosofia aristotélica, cujo impacto se fez sentir fortemente na Escolástica. Desde
a Modernidade, porém, com o processo de secularização do Ocidente, tendo sido a
religião deslocada da esfera pública para o âmbito da vida privada, a reflexão teológica
foi perdendo espaço. A reivindicação de autonomia da sociedade e dos saberes em
relação ao domínio eclesiástico levou a uma transformação radical da compreensão
da realidade, formando uma cosmovisão alheia aos princípios da fé religiosa. Nesse
contexto, o próprio princípio que fundamentou a teologia foi colocado sob crítica.
Desde então, a fé e os seus princípios deixaram de existir como paradigma majori-
tário de compreensão da realidade, podendo, quando muito, ser reconhecidos como
herança cultural, sem, porém, se impor como parâmetro de um discurso verossímil
sobre a realidade. Contemporaneamente, todavia, a própria Modernidade tem sido
questionada em seus valores de racionalidade.
No horizonte plural, de formas de compreensão do real, está, ainda hoje, a
teologia. Os itinerários de preparação ministerial das comunidades religiosas cristãs
têm a teologia como parte indispensável da formação; pessoas que professam a fé e
outros que não se declaram pertencentes a alguma comunidade religiosa, se especia-
lizam nesse saber. Nesse contexto, coloca-se a pergunta acerca de como pode a fé,

1 Mestra em Teologia (FAJE), licenciada em Pedagogia (UNESP), bacharel em Teologia (UNISAL/Faculdade


Dehoniana), graduanda em Filosofia (USP). Professora do Centro Universitário Salesiano de São Paulo.
Diretora de Escola da Rede Municipal de Educação da Prefeitura de São Paulo.
2 LIBANIO, J. B.; MURAD, A. Introdução à Teologia. São Paulo: Loyola, 1996. p. 58-61; SCHILLEBEECKX,
E. Revelação e Teologia. São Paulo: Paulinas, 1968. p. 81.
3 RATZINGER, J. Natureza e Missão da Teologia. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 48.
14

marca distintiva da teologia, ser base de conhecimento que seja reconhecido como
expressão legítima de compreensão da realidade, para além de sua importância como
elemento cultural, num horizonte em que a fé não é pressuposto. Que espécie de
articulação é possível entre o discurso teológico e as demais formas (religiosas ou
não) de compreender a realidade? Para tratar dessa questão, far-se-á, primeiramente,
uma apresentação sobre a condição da fé desde a Modernidade; em seguida, algumas
considerações sobre a relação entre experiência e conhecimento para, enfim, delinear
em que sentido pode-se entender a experiência da fé como elemento fundamental
do discurso teológico.

1. A “condição da fé” desde a Modernidade

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1.1 Uma era secular

Um dos principais traços do que se convencionou chamar de Modernidade é


a mudança pela qual passaram a fé e a religião. Secularização é o nome dado a esse
processo. De acordo com Taylor, filósofo canadense, há três acepções para conceber
a secularização4. Primeira, como deslocamento da religião do espaço público para
o privado. Aqui, não se trata do desaparecimento das questões religiosas, mas da
impossibilidade de fundar as bases da sociedade sobre a crença religiosa. Dentre os
fatores que levaram a esse deslocamento, encontra-se, principalmente, a cisão do
cristianismo ocidental com o mundo, o que tornou inviável a estruturação da sociedade
sobre uma fé dividida.5 Desenvolveu-se, a partir desse fato, uma maneira de conceber
a realidade e de organizar a vida política, econômica e social independentemente da
jurisdição eclesiástica.
Progressivamente, um paradigma laico de sociedade se estabeleceu como tal,
independentemente de serem seus membros pessoas crentes ou não crentes. Social-
mente, aconteceu a efetiva diminuição da prática religiosa, à qual corresponde a
segunda acepção de secularização, conforme Taylor. Tal diminuição não significa,
porém, a extinção da prática religiosa. Desse modo, pode-se dizer que o novo ambiente
cultural do Ocidente foi caracterizado pela dissociação formal entre a participação
das pessoas na sociedade e sua confissão religiosa.
Concretamente, independentemente do decréscimo da população que pratica
a religião, essa porção da sociedade coexistirá num mundo em que a fé não é mais
um pressuposto do vínculo social. É dessa maneira que Taylor apresenta sua terceira
acepção de secularidade. A fé assume uma condição inédita que consiste em existir
num contexto em que ela é criticada em seus próprios fundamentos. Essa condição
afeta profundamente a maneira de entender e viver a fé, provocando uma transfor-
mação radical na forma de compreender a religião e seus princípios.

4 TAYLOR, C. Uma Era Secular. São Leopoldo: Unisinos, 2010. p. 13-15.


5 SESBOÜÉ, B.; THEOBALD, C. A Palavra da Salvação: Doutrina da Palavra de Deus, Revelação, Fé, Escritura,
Tradição, Magistério. São Paulo: Loyola, 2006. (Col. História dos Dogmas, 4).
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 15

1.2 O deslocamento das fronteiras entre crer e saber

Dentre os desdobramentos do processo de secularização, pode-se destacar a


elaboração de representações não religiosas de ser humano, de mundo e de socie-
dade. Como exemplos, pode-se citar o ensaio de uma reflexão ética com referências
estritamente antropológicas, como a Declaração dos Direitos do Homem e dos Cida-
dãos6, no contexto do Iluminismo francês, e a formação de uma cosmovisão isenta
de pressupostos religiosos, baseada numa nova visão de ciência.
Quando se comparam as representações religiosas com as novas formas de
compreender a realidade, essas parecem inconciliáveis, constituindo um conflito
para o ser humano e, precisamente, para o crente, um dilema. Para mencionar um
dos campos em que tal conflito é mais evidente, pode-se falar da relação entre fé e
ciência. Tendo a ciência moderna se estabelecido em princípios independentes da fé
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religiosa, a aproximação entre ambas implica certa tensão entre as representações da


realidade que cada uma possui. O teólogo franco-alemão Theobald, num comentário
sobre os resultados de seu trabalho junto a um grupo de pesquisa a respeito de fé e
ciência, destaca que, na base dos problemas de diálogo entre ambas, encontra-se a
função que as representações (científica e religiosa) da realidade desempenha para
cada parte do debate.7
Historicamente, a divergência entre representações da realidade ou cosmovisões
cristãs e laicas ensejou posturas de reação do lado católico. Isso foi, particularmente
patente no século XIX, com a publicação da Encíclica Quanta Cura,8 por Pio IX, onde
foi anexada uma lista de erros modernos, o Syllabus. Não apenas em relação à socie-
dade externa, mas também no interior do próprio catolicismo, houve crises decorrentes
do choque entre a fé cristã e a cultura moderna. Uma das mais importantes, devido
ao lugar a ela dedicado no Magistério Pontifício, foi a denominada crise modernista.
Situada entre o final do século XIX e o começo do século XX, refere-se ao conjunto
de iniciativas de aproximação entre a fé cristã e a cultura moderna e sua reprovação
pelo Magistério.9 As iniciativas dos chamados modernistas se dirigiam a diferentes
frentes de atuação – política, cultural, intelectual – numa tentativa de interpretar a fé
cristã a partir da nova cultura. A empreitada modernista como um todo, porém, foi
alvo da reprovação pelo Magistério que acusou os modernistas de proporem uma
doutrina baseada no agnosticismo, filosofia incompatível com a fé cristã.
Theobald, em sua análise sobre essa crise, considera que, na base da condenação
aos modernistas, está uma compreensão equivocada do seu trabalho. Seus protagonis-
tas são acusados de propor uma doutrina errada, por basear-se no agnosticismo. No

6 Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/contenu/menu/droit-national-en-vigueur/constitution/declaration-


des-droits-de-l-homme-et-du-citoyen-de-1789. Acesso em: 20 jul. 2022.
7 THEOBALD, C. Mon itinéraire au pays de la théologie. Laval théologique et philosophique, v. 68, n. 2,
p. 319-333, 2012.
8 PIO XI, Papa. Encíclica Quanta Cura, 1864. Disponível em: https://www.vatican.va/content/pius-ix/it/
documents/encyclica-quanta-cura-8-decembris-1864.html. Acesso em: 9 ago. 2022.
9 PIO X, Papa. Encíclica Pascendi Dominici Gregis, 1907. Disponível em: https://www.vatican.va/content/pius-x/
en/encyclicals/documents/hf_p-x_enc_19070908_pascendi-dominici-gregis.html. Acesso em: 9 ago. 2022.
16

entender de Theobald, porém, a atuação dos modernistas não se concentra na proposição


de nova doutrina, mas numa prática nova, uma nova maneira de se situar na sociedade
emergente. Conforme o autor, “é o contato com novas práticas que leva a operar revi-
sões conceituais”.10 Nessa perspectiva, a crise modernista evidencia a transformação
no modo de compreender a fé gerada na Modernidade/Secularidade.
Um dos elementos principais dessa transformação refere-se à relação entre
doutrina e cultura. Na Modernidade o que, até então, era crido como objeto de fé,
passa a ser visto como produção cultural. A crise decorrente desse deslocamento
leva à necessidade de distinguir nas expressões da fé aquilo que é elemento cultural
e o que seria seu núcleo perene. Surge daí uma nova maneira de compreender a fé
que, a partir de uma perspectiva simbólica desta, permite relativizar as expressões
históricas que constituem a doutrina de seu significado transcendente, salvaguardando
a fé frente à contingência de suas formulações.

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O exercício da necessária distinção entre as representações, expressões ou lin-
guagens da fé e sua substância foi o que viabilizou a aproximação entre o discurso
da fé, a teologia, e a cultura moderna.
Essa distinção foi explícita e solenemente afirmada na abertura do evento de
maior importância no século XX para a Igreja Católica, marco de sua renovação,
o Concílio Vaticano II (1962-1965). Ao discorrer sobre o objetivo do Concílio, o
Papa João XXIII afirma que não se trata de propor uma nova doutrina, mas de apre-
sentá-la de forma mais adequada às pessoas do mundo de hoje.11 No cristianismo, a
comunicação da fé é tarefa inerente à mensagem cristã. Esta, porém, no contexto de
secularização, não obtinha aderência do homem e a da mulher modernos. A hipótese
diagnóstica desse problema sugeria que a deficiência poderia estar na mensagem,
na sua emissão ou na sua recepção. Descartada a primeira hipótese, pois do ponto
de vista da fé cristã, a mensagem do Evangelho é perene e sempre atual, resta olhar
para sua emissão e sua recepção. Detectar o problema no receptor foi a tendência
predominante até meados do século XX, com as diversas condenações do mundo
moderno. Com a inauguração do Concílio, João XXIII propõe uma mudança de olhar
ao intuir a necessidade de renovação da própria forma de anunciar a mensagem, como
diz: “o que mais importa ao Concílio Ecumênico é o seguinte: que o depósito sagrado
da doutrina cristã seja guardado e ensinado de forma mais eficaz”.12
A condição de possibilidade dessa proposta consiste no reconhecimento de que
o núcleo da fé cristã subsiste para além das expressões com as quais a comunidade
cristã o comunicou em sua história milenar. É, portanto, a distinção entre a substância
da fé e suas expressões que viabiliza a reformulação dessas expressões. Na sequência
do discurso de João XXIII, nota-se a vinculação explícita entre a necessidade de
renovação da forma do anúncio e essa nova maneira de compreender a fé:

10 THEOBALD, C. Le Christianisme comme style: une manière de faire de la théologie em postmodernité.


Paris: Cerf, 2008. p. 230.
11 JOÃO XXIII, Papa. Discurso Gaudete Mater Eclesia. Roma, 1962. Disponível em: https://www.vatican.va/
content/john-xxiii/pt/speeches/1962/documents/hf_j-xxiii_spe_19621011_opening-council.html. Acesso em:
9 ago. 2022.
12 Ibid.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 17

É necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada,
seja aprofundada e exposta de forma a responder às exigências do nosso tempo.
Uma coisa é a substância do “depositum fidei”, isto é, as verdades contidas na
nossa doutrina, e outra é a formulação com que são enunciadas, conservando-lhes,
contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance.13

Numa concepção contemporânea, a fé é entendida como uma atitude que implica


avaliação da realidade.14 É desse ato de avaliação que derivam as representações crentes
da realidade, as linguagens da fé. Essas linguagens são inseparáveis do ato de fé, pois
a fé se manifesta necessariamente em signos culturais. Mas, se do ponto de vista da
história, não se pode separar o ato de fé da linguagem que lhe corresponde, do ponto
de vista teológico é preciso distinguir, sem, contudo, separar, a linguagem da fé de sua
experiência geradora. As linguagens comportam os signos da cultura e trazem em si as
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marcas do tempo e espaço em que foram elaboradas. A fé, como ato humano, por sua
vez, embora se expresse em linguagem, não se coaduna com ela de forma absoluta. As
representações ou linguagens da fé estão ligadas ao ato de fé como expressão deste,
mas sendo expressão histórica, contingente, mantém sempre uma reserva de sentido
que não pode ser completamente manifestada nem apreendida.
Do ponto de vista teológico-pastoral, há, pelo menos, duas consequências dessa
maneira de entender a fé. A primeira diz que a maneira de comunicar a fé deve corres-
ponder ao próprio conteúdo da mensagem. A pertinente distinção entre a substância
do depósito da fé e suas expressões evita que se confunda a mensagem do Evangelho
com os elementos culturais a que as formulações da fé estão submetidas; também,
são os próprios elementos culturais os meios pelos quais a mensagem é transmitida e,
nesse sentido, adquirem eles importância no processo de transmissão da fé. Ignorar a
coerência entre as formas de dizer a fé e o núcleo da mensagem pode significar um risco
à sua transmissão, como assumiu o Papa Francisco, recentemente, ao dizer que “não é
possível anunciar Deus de uma maneira contrária a Deus”, referindo-se à atuação dos
cristãos no processo de colonização dos povos indígenas no Canadá.15
A segunda consequência da nova maneira de entender a fé, decorrente da atenção
às formas de comunicá-la, refere-se à função do receptor da mensagem no processo
de transmissão da fé. Ao afirmar que se deve buscar formas condizentes com a sen-
sibilidade do homem e mulher modernos, supõe-se que a condição do destinatário é
fator relevante no processo de elaboração das formas de anunciar a fé.
A renovação do falar de Deus, pela qual o Concílio Vaticano II trabalhou com
enfoque na recepção da fé, reflete, de certa maneira, o clima cultural moderno vivido
no Ocidente em seu paradigma antropocêntrico. A mudança na maneira de entender

13 Ibid.
14 THEOBALD, C. As narrativas de Deus numa sociedade pós-metafísica: o Cristianismo como estilo. Cadernos
de Teologia Pública, ano VIII, n. 58, p. 6, 2011.
15 FRANCISCO, Papa. Discurso do Santo Padre no encontro com as populações indígenas e os membros da
comunidade paroquial. Igreja do Sagrado Coração em Edmonton (Canadá), 25 jul. 2022. Disponível em:
https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2022/july/documents/20220725-incontroedmonton-
canada.html. Acesso em: 9 ago. 2022.
18

a fé decorrente da cultura moderna está intimamente ligada a uma nova maneira de


compreender o ser humano. A partir da Modernidade, portanto, a pertinência e rele-
vância pública da reflexão sobre a fé estarão associadas à sua capacidade de dialogar
com os novos paradigmas culturais sobre o mundo e o ser humano.

2. Fé e conhecimento
É nesse ponto que se retoma a questão inicial deste texto acerca da relação entre
a fé e o conhecimento: como pode a fé, condição indispensável da teologia, ser base
de conhecimento que seja reconhecido como expressão legítima de compreensão da
realidade, para além de sua importância como elemento cultural, num horizonte que
não tem a fé como pressuposto?

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A nova maneira de compreender a fé, decorrente do contexto de secularidade,
significa que a reflexão sobre a fé, teologia, precisará articular o dado da fé com os
elementos do horizonte cultural em que está inserida. Esta tarefa não é inédita; carac-
teriza a teologia desde sua origem. Desde a Modernidade, no entanto, esse labor tem
uma característica inédita que consiste em articular a fé com a cultura, num contexto
em que a fé e seus princípios metafísicos já não são substrato dessa cultura; contexto
em que crer, ou pelo menos, crer de forma religiosa, não é mais natural.
Nesse contexto, a distinção entre a substância da fé e suas expressões adquire
importância por possibilitar o diálogo com uma cultura que não compartilha os
mesmos signos religiosos, relativizando tal linguagem, sem subtrair a experiência
subjacente a ela. Para entender de que modo tal diálogo pode acontecer, é preciso,
portanto, prestar atenção ao papel da experiência no processo de conhecimento, de
modo geral, e na formulação da linguagem da fé, especificamente.

2.1 Experiência e conhecimento

A experiência (do ponto de vista filosófico) constitui uma das maneiras clássicas
de abordar o processo de conhecimento; ela servirá como base para o ser humano
compreender as coisas. Elaborado classicamente por Aristóteles, retomado na Escolás-
tica, sobretudo por Tomás de Aquino, e vigorosa na Modernidade, principalmente por
autores ingleses, o empirismo postula que todo conhecimento advém da experiência
dos sentidos. As sensações capturadas pelos sentidos, processadas pelo aparato mental,
formam, por meio da imaginação, novas imagens e ideias. Atualmente, as ciências
cognitivas têm avançado na compreensão dos processos de funcionamento do cérebro
que impactam na concepção de mente. Os resultados de muitas dessas pesquisam
corroboram o papel que a experiência exerce na aquisição do conhecimento.16

16 Há vasta bibliografia sobre o tema. Ver, por exemplo: LEOTE, R. Processos perceptivos e multissensorialidade:
entendendo a arte multimodal sob conceitos neurocientíficos. In: ARTECIÊNCIAARTE [online]. São Paulo:
UNESP, 2015. p. 23-44. Disponível em: https://books.scielo.org/id/mqfvk/pdf/leote-9788568334652-05.pdf.
Acesso em: 9 ago. 2022.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 19

Considerando a relevância da experiência no processo do conhecimento, colo-


ca-se a pergunta sobre o tipo de conhecimento advindo da experiência de fé. Essa
questão demanda uma melhor caracterização acerca do próprio termo experiência.
De modo geral, entende-se experiência como o contato com o real que antecede o
saber que dele resulta.17 Mouroux, ao tratar da experiência propriamente cristã, dis-
tingue, primeiramente, três planos possíveis em relação ao conceito de experiência.
O primeiro é o empírico, a experiência não criticada, vivida, mas ainda não refletida.
O segundo é o experimental, que se refere a uma experiência consciente e provo-
cada, manejada de modo a constituir o que, modernamente, se entende por ciência.
O terceiro é o experiencial, que implica o engajamento mais completo da pessoa. É
nesse plano que, conforme o autor, se situa a experiência espiritual.

O experiencial quer dizer uma experiência tomada em sua totalidade pessoal, com
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todos os seus princípios de movimento; uma experiência construída e apreendida


na lucidez de uma consciência que se possui e na generosidade de um amor que
se dá; em suma, uma experiência totalmente pessoal no sentido estrito da palavra.
Nesse sentido – e é assim que nos expressaremos – toda experiência espiritual
autêntica é de tipo experiencial.18

A partir das distinções propostas pelo autor, é possível afirmar que a experiência
espiritual, no âmbito da qual se situa a fé, é um tipo peculiar de experiência humana
qualificada pela integralidade que confere à pessoa. É na perspectiva da “experiência
experiencial” que é possível falar do conhecimento advindo da fé.

2.2 Experiência, fé e conhecimento

Decorre desse dado, acima mencionado, que o conhecimento que lida com a
realidade da fé, a teologia, possui um estatuto epistemológico peculiar; lida com uma
espécie de saber decorrente de uma experiência que engloba a pessoa por inteiro.
Nesse sentido, está em continuidade com o processo humano de conhecimento
baseado, fundamentalmente, na experiência; ao mesmo tempo, supõe uma dimensão
intangível da realidade. Precisa, pois, equilibrar a inevidência radical da realidade à
qual a fé se refere com o modo humano de conhecer.19
Tomás de Aquino, no contexto cultural teocêntrico da Escolástica, abordou a
questão do conhecimento que o ser humano pode ter de Deus, partindo da experiência
dos sentidos, dentro das concepções de física e mecânica de seu tempo. Propôs, assim,
vias de acesso ao conhecimento da realidade primeira a que se denomina Deus.20
A relevância desse seu ensino consiste, dentre outros fatores, no procedimento ou

17 BARBOTIN, E. Experiência. In: LACOSTE, J-Y. Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Loyola; Paulinas,
2004. p. 705.
18 MOUROUX, J. L’Expérience Chretienne. Paris: Montaigne, 1952. p. 24. Tradução livre.
19 CATÃO, F. Falar de Deus: considerações sobre os fundamentos da reflexão cristã. São Paulo: Paulinas,
2001. p. 47-50.
20 AQUINO, T. Suma Teológica, I, q. 2, a. 3. São Paulo: Loyola, 2001. p. 165-169.
20

método traçado pelo autor. Partindo da experiência, estabelece uma argumentação


que leva ao reconhecimento do limite da realidade sensível, apelando a uma realidade
primeira, à qual denomina-se Deus. Para além dos limites conceituais que separam
Tomás da cultura contemporânea, a atualidade de seu ensino se mostra no reconhe-
cimento de que a forma de falar de Deus não pode apoiar-se em ideias que se tenha
acerca dele, mas deve partir da experiência, da realidade.
No primeiro artigo da mesma questão, Tomás trata da inevidência de Deus.
Esse é um dado fundamental do discurso teológico, do qual deriva o procedimento
desenvolvido por ele no terceiro artigo. Não se pode falar de Deus como uma realidade
dentre outras, porque sua existência não é evidente. A elaboração do discurso teoló-
gico depende, em grande parte, do sucesso no equilíbrio entre esse dado fundamental,
a inevidência de Deus, e as exigências do modo humano de conhecer. Em resumo, a
consistência do saber, de modo, geral, e do saber teológico, especificamente, derivam

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de sua sustentação na experiência.

2.3 Teologia, saber que brota da fé

Na tradição cristã, a experiência de fé toma forma a partir da memória em


torno de Jesus, referência do discurso cristão sobre Deus. Na teologia, busca-se a
inteligibilidade desse dado, tarefa qualificada pela fé.21 Supõe que o(a) teólogo(a),
conhecedor(a) das expressões da fé, submeta-as à crítica da razão, com os artefatos
próprios da cultura de seu tempo.
Nesse sentido, Catão explica que as expressões da fé são o artefato da teologia,
o material com o qual se lida para evidenciar a inteligibilidade da fé.22 Ressalta,
porém, que por mais autorizadas que sejam as formulações da fé, não constituem
propriamente a fonte do teologar. Ao comentar acerca da estrutura racional da teo-
logia, observa que:

Na teologia é diferente. Não se pode reduzir tudo à experiência dos sentidos,


nem às evidências da razão. A realidade de Deus de que se fala está, por um
lado, vinculada a determinados dados históricos e, por outro, suas expressões
não podem contrariar em nada nem os dados da ciência, nem os princípios filo-
sóficos. Mas essas expressões, por mais autorizadas que sejam, não são a fonte
do teologar. Podem até ser consideradas fontes da teologia, entendendo-se, pelo
termo, como acontece correntemente, as fontes históricas e racionais da teologia
na sua objetividade, como artefato para cuja elaboração contribuem, cada um a
seu modo. Mas o falar de Deus como objeto, complemento nominal, está baseado
no falar de Deus como sujeito, adjunto adnominal, que somos convidados a
ouvir, no ato livre da fé.23

21 Tal maneira de conceber a reflexão teológica, classicamente conhecida como intellectus fidei, remete a
Agostinho. CONGAR, Y. Theologie. In: DICTIONAIRE de Theologia Catholique. Paris: Librairie Letouzey et
Ané, 1943. col. 351-353.
22 CATÃO, F. Falar de Deus, p. 19-21.
23 Ibid., p. 19-20.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 21

No excerto acima, Catão completa sua definição de teologia fazendo uma deli-
cada passagem da consideração sobre o aspecto material do labor teológico – o lidar
com as expressões da fé – para a marca característica da teologia, aquilo que define,
em última instância um discurso como efetivamente teológico: o fato de originar-se
no ato de crer. Importante nessa afirmação é a base antropológica do argumento, que
vincula a originalidade da reflexão teológica ao processo humano de conhecimento,
baseado na experiência. O saber obtém consistência a partir da experiência sobre a
qual é elaborado. Do mesmo modo, o discurso sobre Deus recebe seu fundamento
da experiência da fé.

Conclusão
Contemporaneamente, alguns teólogos têm chamado atenção para o surgimento
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de um novo paradigma cultural no que se refere à fé e à religião: o pós-teísmo.24


Trata-se de um horizonte que articula a experiência espiritual com a superação das
imagens de Deus. Nesse contexto em que se aceita a insuficiência das narrativas
metafísicas ou de formas totalitárias de interpretação da realidade, o lugar da teologia
no debate público depende de sua capacidade de contribuir, junto aos demais saberes,
para a compreensão da realidade e para a coexistência no planeta.
Nessa perspectiva, a experiência de fé atua na elaboração teológica como um
vetor que desloca o enfoque do aspecto material ou conceitual do discurso para as
formas de comunicação da fé. Dessa maneira, a teologia apresenta-se como uma
maneira de colocar-se no debate.25 A partir do contato com diferentes saberes, pode
a teologia submeter à crítica as próprias representações religiosas, possibilitando a
descoberta de novas perspectivas para a fé.
Por fim, o acento na experiência de fé na elaboração teológica ressalta um
aspecto fundamental do discurso cristão sobre Deus: a fragilidade do crer. Assim
como a existência de Deus não se impõe como evidência racional, nem se apoia
em prova empírica, o modo coerente de falar sobre ele não é capaz de sustentar-se
pela força da argumentação ou eloquência do discurso. A coerência entre a forma e
o conteúdo do discurso teológico está ligada, nessa perspectiva, à incorporação da
fragilidade própria da fé, a qual não se impõe pela força, mas apela à liberdade e à
consciência e tem, no testemunho, seu sinal mais evidente.

24 VILLAMAYOR, S. O Pós-teísmo como superação dialética do teísmo. Cadernos de Teologia Pública, São
Paulo, ano XVIII, v. 19, n. 60, 2022.
25 Essa é a proposta apresentada por Theobald em sua obra Le Christianisme comme style: une manière de
faire de la théologie en postmodernité. Paris: Cerf, 2008.
22

REFERÊNCIAS
AQUINO, T. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2001, v. 1.

CATÃO, F. Falar de Deus: considerações sobre os fundamentos da reflexão cristã.


São Paulo: Paulinas, 2001.

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em: https://www.vatican.va/content/pius-x/en/encyclicals/documents/hf_p-x_
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ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 23

RATZINGER, J. Natureza e Missão da Teologia. Petrópolis: Vozes, 2008.

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THEOBALD, C. Mon itinéraire au pays de la théologie. Laval théologique et


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en postmodernité. Paris: Cerf, 2008.

VILLAMAYOR, S. O Pós-teísmo como superação dialética do teísmo. Cadernos de


Teologia Pública. São Ano XVIII, n. 60, v. 19, 2022.
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A CIÊNCIA TEOLÓGICA NA
PERSPECTIVA DE TOMÁS DE AQUINO
Antonio Wardison C. Silva1

Introdução
O pensamento de Tomás de Aquino representa o resultado mais completo do
esforço intelectual iniciado no Cristianismo primitivo de estabelecer uma relação entre
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fé e razão. Os Apologetas enfrentaram essa questão, ainda que esporadicamente, mas


sistematizada logo a seguir, à medida que a filosofia grega foi resgatada pelos Padres.
Santo Agostinho desponta como aquele que, com propriedade, buscou essa relação ao
incorporar os princípios platônicos em seu pensamento. Até o século XIII – consideradas
a invasão bárbara (séc. V – XII) e a intelectualidade de Anselmo (séc. XI) e Abelardo
(séc. XII) –, a reflexão racional prevalece em uma perspectiva mística.2
Com a maior apuração do pensamento de Aristóteles, particularmente sobre a
sua lógica, a compreensão do conteúdo da fé se torna mais sistemática. Merecem
destaque, neste resgate, Avicena, Averróis, Avicebron e Maimônides, com comentários
sobre a Física, a Metafísicas e a Ética do Estagirita. Aos poucos o Ocidente cristão
atinge um incalculável vigor intelectual, uma síntese segura e capaz de sustentar o
conteúdo da revelação cristã. E, logo, Tomás percebe a robusteza do pensamento
aristotélico, incorporando-o em suas meditações filosófico-teológicas, junto ao pen-
samento de Agostinho, seu grande mestre, mas com acentuada criticidade a ambos.
O Aquinate tem consciência de que o pensamento alheio não é fim, mas meio para se
alcançar a verdade. Por isso, incorpora-o com espírito crítico. E isso o tornou, para
seus contemporâneos, um inovador e até mesmo um revolucionário.3
A perspectiva teológica de Pedro Lombardo, codificada nas Sentenças, abnegava
a razão para explicação dos dogmas, recorrendo ao argumento de autoridade, aos
Padres e, principalmente, a Agostinho. Também Abelardo hostiliza o uso sistemático
da razão, da dialética, considerada um racionalismo extremo. A teologia envereda-se
por um misticismo piedoso e contemplativo, oriundo de São Bernardo e cultivado pela
Escola de São Vítor. Esta prevenção fora estimulada pela redescoberta de Aristóteles,
bem como pelos seus comentadores árabes e judeus.4

1 Pós-Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP; Doutor e Mestre em
Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Mestrando em Teologia pela PUC-SP.
Graduado em Filosofia e em Teologia. Atualmente, Coordenador do Curso de Teologia do Centro Universitário
Salesiano de São Paulo – UNISAL, Campus Pio XI.
2 COSTA, José Silveira da. Tomás de Aquino: a razão a serviço da fé. São Paulo: Moderna, 1993. p. 38.
3 Ibid., p. 38-39.
4 Ibid., p. 39.
26

Tomás, ao contrário, rompe com esta tendência; considera a filosofia um ins-


trumento insubstituível para que a teologia alcance o status de verdadeira e autên-
tica ciência. Consolida, nesse sentido, uma verdadeira harmonia, considerando suas
diferenças, entre a filosofia e a teologia. Para o Santo Angélico, a compreensão
do conteúdo da fé, das suas verdades, não pode resultar de uma pura mística ou
subjetividade, mas da argumentação científica e objetiva. Por isso, deve a teologia
recorrer à lógica e à gramática, como também ao uso das ciências diversas, como a
metafísica, a ética, a psicologia, entre outras. Esse esforço sistemático concedia à
teologia o caráter de ciência, ainda que complexa e difícil, rica e fecunda. Tomás de
Aquino inaugura uma nova época para a teologia: com a colaboração da razão, ela
ficará assegurada e justificada.5
Por sua vez, Tomás utiliza, comumente, a expressão sacra doctrina para refe-
rir-se à teologia. Pois não era comum, até esta época, o termo teologia no contexto

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cristão, dada a sua alusão à filosofia grega, de matrizes platônica, aristotélica e estoica
(termo então utilizado para indicar o estudo das Ideias, da Substância e do Logos);
por isso, tinha conotação muito genérica. Algumas vezes, Tomás refere-se à teologia
como o “saber dos poetas”, “filosofia primeira” ou “metafísica”, concepções tais
absorvidas de Aristóteles.6
O presente capítulo tem a finalidade de discorrer sobre a concepção de teologia
em Tomás de Aquino, ao sublinhar sua natureza, finalidade, alcance, método e fontes.
E isso em mútua relação com a filosofia, o que seria inexequível ao contrário. Pois
não é possível dissociar, em Tomás, estas duas esferas do conhecimento: embora
distintas, estão em perfeita harmonia.

1. A natureza teológica na perspectiva do verdadeiro sábio


A Suma contra os gentios foi escrita no entorno de 1262-1263.7 A obra con-
densa a profundidade do pensamento filosófico-teológico de Tomás de Aquino. Ela,
das obras publicadas por Tomás, se caracteriza por alcançar uma visão completa da
teologia; também, por acentuar, embora seja uma obra teológica, o caráter filosófico.
O escrito nasceu a pedido do seu confrade Raimundo de Penaforte, missionário entre
os mulçumanos. Assim, a Suma adquire grande valor apologético, destinada a com-
bater os erros contra a fé cristã: o Santo Angélico expõe o que há de comum entre a
doutrina católica e a dos gentios; depois, questiona determinados argumentos pela via
racional. Para isso, recorre, fundamentalmente, à filosofia de Aristóteles, repensada
e examinada pela fé. A obra, ainda, retrata as grandes disputas e polêmicas travadas
no ambiente universitário do século XIII, valendo-se de grande testemunho para a
história da filosofia.8

5 Ibid., p. 39-40.
6 MONDIN, Battista. Dicionário Enciclopédico do pensamento de Santo Tomás de Aquino. Tradução: André
Luiz Boccato de Almeida et al. São Paulo: Loyola, 2023. p. 649.
7 JOSAPHAT. Carlos. Paradigma teológico de Tomás de Aquino – sabedoria e arte de questionar, verificar,
debater e dialogar: chaves de leitura da suma de teologia. São Paulo: Paulus, 2012. p. 28.
8 MOURA, Odilão. Introdução à suma contra os gentios. In: TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios.
Tradução: D. Odilão Moura. Campinas: Ecclesiae, 2017. p. 25-26.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 27

Ainda que apologética, a obra tem valor teológico em si mesmo, ao acentuar


a natureza própria da teologia. Com clareza e profundidade, e precisão no método,
Tomás discorre sobre os diversos temas apresentados. Os livros I, II e III recorrem
à razão natural à luz da fé em Deus, examinando, daí, as coisas que a Ele estão refe-
ridas; tratam da doutrina sobre Deus, o cosmo e o homem. Seguramente, expõem
a perspectiva filosófica do Aquinate. O livro IV reflete sobre os dados da fé nos
mistérios da Trindade, da Encarnação, dos Sacramentos e da Vida Eterna. Traz uma
síntese do pensamento teológico de Tomás de Aquino. Em suma, a obra tem uma
perspectiva teocêntrica. Os missionários, então, poderiam estar seguros de levar (e
discutir sobre) a doutrina cristã aos maometanos, judeus e pagãos; estariam seguros,
também, aqueles que argumentariam, em ambiente acadêmico, a favor da fé cristã.
Portanto, a Suma contra os gentios apresenta um verdadeiro compêndio de teologia,
originalmente intitulada Liber de veritate catholicae fidei.9
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Interessa nesta primeira parte do presente capítulo refletir sobre a Introdução


do livro I da Suma contra os gentios: “Deus em si mesmo”. Nela, Tomás expõe
as bases da sua obra: deve o sábio ensinar a verdade e refutar o erro. Assim, deve
o cristão proceder acerca das verdades da fé; apresenta a dupla ordem – teologia
(sobrenatural) e filosofia (natural) – de verdades sobre Deus; e a relação que tais
ordens estabelecem entre si, ao considerar a não contradição entre elas. Nesse hori-
zonte, conjecturamos que sobre a figura do sábio – não podendo separar a teologia
da filosofia e vice-versa –, Tomás apresenta a natureza da ciência teológica, e é isso
que buscaremos acentuar e explorar.
No capítulo I, Tomás de Aquino chama de sábio aqueles que ordenam as coi-
sas e as governam com habilidade, pois é ofício do sábio ordenar, como concebe
Aristóteles em a Metafísica. A ordenação e o governo das coisas dirigem-se para
um fim, pois é o fim o bem de cada coisa. Mas não pode ser sábio aquele que trata
simplesmente do fim das coisas singulares, pois nada mais diz de uma determinada
coisa. O sábio, ao contrário, trata do fim universal de todas as coisas, que é o seu prin-
cípio. E é próprio do sábio se apropriar das altíssimas causas. Ora, o fim último das
coisas está intencionado pelo seu primeiro autor, que é o intelecto; por conseguinte,
convém que o fim último do universo pertença ao bem do intelecto, que é a verdade;
e é ela, a verdade, o fim último de todo o universo. Em sentido próprio, no horizonte
da verdade, diz a Sagrada Escritura que para manifestar a verdade a sabedoria divina
se encarnou, vindo ao mundo. Faz-se, aqui, necessário recordar o que diz Aristóteles
sobre a Filosofia: é, ela, a ciência da verdade, do primeiro princípio do ser e de todas
as coisas; e só pode ser a verdade o princípio de toda verdade, dado que nela, bem
como no ser, as coisas estão dispostas. Na verdade, é natural um termo contrário
refutar o outro e isso é significativo para se compreender o sábio. Pois ele, ao tratar
do primeiro princípio e discorrer dos demais, tem o ofício de refutar o erro contrário.
Deriva daí o duplo ofício do sábio: dizer do primeiro princípio, da verdade divina, e
refutar todo erro contrário a ela.10

9 Ibid., p. 40.
10 TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios, I,1.
28

Para sustentar o ofício do sábio, Tomás recorre não só a Aristóteles, mas tam-
bém a princípios teológicos da realidade, de noções do bem e da ordem do mundo,
assim como à sua concepção de verdade, como bem do intelecto. Neste primeiro
capítulo da Suma, é possível identificarmos cinco conclusões, pois cabe ao sábio
considerar: a) o fim das coisas; b) o fim do universo; c) a verdade das coisas; d) a
verdade primeira; e) a falsidade.11
Vale ressaltar que a finalidade das coisas está sempre pré-fixada desde sempre
pelo seu primeiro autor ou motor. Assim, no plano do cosmos, o intelecto, que é a
potência última das coisas – como acentua Tomás no capítulo acima – estabelece a
verdade como finalidade do ser. O bem, como acima também acentuado, compreen-
de-se como a identificação da coisa com a sua respectiva funcionalidade; pois o ser,
ao realizar-se no seu fim, identifica-se com o bem.12
Em sentido próprio, para o fazer teologia: o teólogo-filósofo é aquele capaz de

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ordenar e governar as coisas ao fim, Deus, visto ser o fim o bem, do próprio homem
e sentido das coisas. A arte do teólogo, que é suprema, não se limita em tratar do
fim das coisas singulares, porque o singular não se encerra em sim. Se assim fosse,
não alcançaria o fim universal de todas as coisas, Deus. O teólogo, de fato, só pode
ser aquele que se dedica ao fim das coisas, que é, ao mesmo tempo, o seu princípio,
Deus. Isto porque pertence ao teólogo considerar as altíssimas causas. E tal fim
(último) é intencionado pelo seu autor ou motor, que é a verdade, Deus. A verdade
fora, plenamente, revelada por Deus, em Cristo, pela ação do Espírito. A verdade,
por conseguinte, é o princípio de toda verdade. Como pertence ao teólogo considerar
o primeiro princípio (Deus) e tudo o que dele decorre (o homem e as coisas), deve
impugnar todo erro contrário. Esta é sua dupla função. Ora, a teologia deve, com
perspicácia, ordenar as coisas ao seu fim, Deus, esclarecendo as verdades que brotam
da própria verdade. Por isso, trata do fim de todas as coisas e não daquelas particulares,
próprias das ciências particulares. Ela, a teologia, não somente pode acessar a verdade
última, como dela participar, do seu ser. Isso a faz uma ciência de altíssimo grau.
Por conseguinte, ao conhecer a verdade, tem a função, nobre, de combater tudo que
desvia o humano de Deus ou tudo que leve a razão, por sua limitação, a corromper
a verdade sobre a suprema verdade, que é Deus.
Nesse horizonte, compreende Tomás de Aquino, no capítulo II, que o estudo da
sabedoria alcança notória majestade: ela é a mais perfeita, pois o homem ao buscá-la
participa, de alguma forma, da verdadeira beatitude; é a mais sublime, porque permite
ao homem aproximar-se da semelhança com Deus que, sabiamente, fez todas as
coisas. Propriamente, a semelhança é causa do amor, visto que o estudo da sabedoria
permite, nesse sentido, a união do homem com Deus, numa relação de amizade; é
a mais útil, porque permite ao homem chegar à imortalidade, ao reino eterno; é a
mais alegre, não podendo, em Deus, ser diferente, pois sua presença e companhia
permitem a ele este estado de espírito.13

11 SOARES, Iago Nicolas de abreu. Os princípios que fundamentam o ofício do sábio segundo Tomás de
Aquino. Logos & Cultura, v. 1, n. 2, p. 132-133, 2021.
12 MELO, Marco César de Souza. A complementaridade entre a filosofia e teologia no pensamento de Tomás
de Aquino. Revista Ideação, n. 40, p. 74-75, jul./dez. 2019.
13 TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios, I,2.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 29

Ora, a sabedoria, que é fruto do exercício filosófico-teológico, permite ao homem


alcançar Deus, o conhecimento a seu respeito. A sabedoria é mais perfeita porque
eleva o espírito humano à perfeição, pois é notório que a razão existe para o aprimo-
ramento do homem. Tomás, assim, “procura conciliar a filosofia com os elementos
centrais da fé cristã e o faz situando o filosofar dentro das práticas que encaminham
o cristão rumo ao aprimoramento espiritual”;14 é a mais sublime porque permite à
criatura aproximar-se do seu criador, da sua semelhança enquanto essência. Pois a
capacidade racional é marca do criador na criatura; é a mais útil porque permite o
homem à imortalidade. Aqui, Tomás expressa a força da razão em mostrar os desíg-
nios escatológicos previstos da doutrina cristã (teologia). O homem está direcionado
para a vida eterna (salvação), ponto culminante da sua existência; é a mais alegre
porque não causa enfado, mas felicidade, que está não somente no fim, mas também
na busca da sabedoria.15
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Em sentido próprio, para o fazer teologia: de todas as ciências, só pode ser a


teologia – considerado seu ardor especulativo, como a filosofia, mas além desta –, ser
a mais perfeita, não somente porque busca a sabedoria, mas porque dela participa. Ao
buscar Deus, participa da sua natureza. Ele não se compreende como um objeto epis-
temológico, ainda que assim possa ser do ponto de vista científico, mas sujeito-objeto
que participa, e se deixa conhecer, de todo o processo de conhecimento, de si mesmo,
do seu próprio ser. Também é a teologia a mais sublime, porque permite ao homem
não somente se aproximar e conhecer o seu amado, mas com ele assemelhar-se, o que
singulariza a sua natureza própria, de participar da natureza do seu Criador. Quanto mais
o homem busca Deus, mas dele se aproxima e se une, traçando com Ele uma relação
plena de amor, de amizade. É o amado que busca o Amor e no Amor se realiza, encontra
sua felicidade plena. Por ser amado, só pode tender para aquele que o ama. A teologia
é útil porque insere o humano no mistério da sua própria existência, no mais profundo
da sua natureza e vocação. Trata, constantemente, do mistério, mas, pelo dom da fé,
já revelado em Cristo, em razão do seu desígnio salvador. Assim, a teologia revela-se
como um convite ao humano, de compreender seu fim no Fim. E não poderia ser senão
a mais alegre, porque ela só pode conduzir o humano ao júbilo eterno, como categoria
escatológica. Ao direcionar-se para Deus, o homem aquece o seu coração e todo o seu
espírito, certo de poder alcançar aquele ao qual, naturalmente, tende. Não pode haver
alegria maior que encontrar e participar da vida do Amor, Deus. Ainda que o homem
seja incapaz e limitado, Deus concede esta graça, de o homem participar de sua vida.
Para Tomás de Aquino – como expõe no capítulo III – não pode haver um único
modo de se manifestar a verdade. Sobre Deus, em particular, é possível investigá-lo
e alcançá-lo por duas vias: uma excede toda a capacidade da razão humana, que
permite afirmar, por exemplo, Deus ser trino e uno; a outra sustenta-se na natureza
do próprio homem, na sua capacidade racional, permitindo-o admitir, por exemplo,
Deus ser, Deus ser uno e demais propriedades. Este é o campo próprio da Filosofia, da

14 MELO, Marco César de Souza. A complementaridade entre a filosofia e teologia no pensamento de Tomás
de Aquino, p. 78.
15 Ibid., p. 78-79.
30

razão natural. Contudo, é próprio do conhecer alcançar a substância das coisas, o que
qualifica o conhecimento de algo, pois segundo Aristóteles, conhecer é dizer o que a
coisa é. Assim o intelecto, ao se apropriar da substância, conhece tudo aquilo que per-
tence àquela coisa. Apropriando-se da substância de uma coisa, por sua vez, nenhuma
das realidades inteligíveis desta coisa pode exceder a capacidade da razão humana.
Mas isso não prevalece no conhecimento de Deus, porque o intelecto humano, pela
sua capacidade natural, não pode apropriar-se da substância divina. Ainda mais,
como o conhecimento, na operação do intelecto, é iniciado pelos sentidos, as coisas
não dispostas aos sentidos não podem ser apreendidas pelo intelecto, a não ser que
o conhecimento tenha sido deduzido das coisas sensíveis. E não pode o sensível
permitir ao intelecto o conhecimento da substância de Deus, porque o sensível não
equivale à natureza da causa. Das coisas sensíveis, portanto, o intelecto pode dizer
que Deus é, como também alcançar outros atributos de tal realidade (divina), o que

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é permitido pela razão; outras qualidades, porém, excedem a capacidade humana,
da razão natural.16
Tomás esclarece, nesse sentido, que o objeto-fim do intelecto humano é a ver-
dade e pode a razão alcançá-la, mas nem toda a verdade. Ela, a razão natural, vê-se
limitada diante da verdade Deus. E é próprio da doutrina cristã, da teologia, alcançar
esta verdade, que se encontra no âmbito da revelação, da fé.17 Nessa perspectiva, o
Aquinate sublinha a peculiaridade da sabedoria teológica, que, iluminada pela fé – no
Deus que se revela –, alcança Deus.
Em sentido próprio, para o fazer teologia: o seu modo de conhecer, fundamento
na revelação divina – aquecido pela fé –, permite ao homem alcançar o que a filosofia e
qualquer outra ciência não são capazes. A teologia acessa o mistério, embora não tenha
posse de tal mistério (ou objeto). O fato de exceder a capacidade humana, demonstra
(a teologia) a majestade e superioridade à filosofia: ela, a teologia, advém e se funda-
menta na ciência divina e, por isso, não pode errar. E como acentua o Aquinate, não
pode o intelecto acessar a substância divina, como tal é o critério de conhecimento
nas ciências, de o intelecto acessar a substância das coisas; também, como o conhe-
cimento parte das coisas sensíveis, não pode o intelecto acessar a substância divina,
por não serem equivalentes. Apenas pode conhecer aquilo que é atribuído a Deus, que
é o primeiro princípio. Aqui Tomás estabelece a limitação da filosofia e o alcance da
teologia: a primeira pode conhecer alguns atributos de Deus, porque são acessíveis à
razão; a segunda, excede toda a capacidade humana, isto é, a teologia é a ciência de
Deus e, por isso, só ela pode acessar Deus em seus grandes mistérios.
Portanto, para Tomás de Aquino, como acentuado no capítulo IV, há duas for-
mas de o homem dizer sobre a verdade Deus: uma, pela razão natural; a outra, por
uma instância que está além da razão natural. Ambas são propostas por Deus para
serem acreditadas. Caso Deus fosse somente alcançado pelo esforço do intelecto,
três inconvenientes surgiriam: a) poucos homens chegariam a tal verdade, dada a

16 TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios, I,3.


17 MELO, Marco César de Souza. A complementaridade entre a filosofia e teologia no pensamento de Tomás
de Aquino, p. 80.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 31

constituição natural defeituosa de alguns, impedindo-lhes de atingir o grau supremo do


conhecimento humano, Deus; outros, por dedicarem seus esforços a coisas temporais,
não empregando tempo para a investigação contemplativa sobre Deus; alguns, ainda,
em razão da preguiça, faltando-lhes, inclusive, conhecimento prévio que os ajude
atingir Deus. Quer dizer, a busca das verdades divinas, pela via racional, exige um
grande esforço especulativo, e poucos estão dispostos a este exercício, que é próprio
da metafísica filosófica, que tem como seu objeto as verdades divinas; b) aqueles que
alcançariam a verdade sobre Deus só o conseguiriam após uma prolongada investiga-
ção e isso se daria em razão do aprofundamento e amadurecimento do intelecto sobre
as verdades divinas, do conhecimento prévio adquirido e do amadurecimento do pró-
prio homem, condição privada em sua juventude, quando agitada pelos impulsos das
paixões. Portanto, se somente a via da razão garantisse o conhecimento sobre Deus,
poucos homens – e após um longo processo de investigação – estariam habilitados
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para tal; permaneceria o gênero humano mergulhado na ignorância; c) a investigação,


via racional, poderá ser afetada pelo erro, devido à debilidade do intelecto humano
para julgar as coisas e à interferência das importunas ilusões. Ainda, pelo fato de
muitos não compreenderem a força de demonstração, colocariam em dúvida as ver-
dades demonstradas com firme clareza. Dadas essas razões, foi permitido ao homem
alcançar as verdades divinas, com certeza, pela via da fé. Essa condição fora dada
por Deus por clemência, para que o homem, pela fé, assim como pela via racional,
alcançasse as verdades sobre Ele. Decorre, daí, que todos os homens podem, sem
dúvida e sem erro, conhecer as verdades divinas.18
Em sentido próprio, para o fazer teologia: em razão dos diversos obstáculos, acima
apresentados, que dificultam o intelecto natural de acessar ou alcançar Deus, concede
Deus a graça de ser conhecido, porque Ele mesmo se revela, como dom de si para o
humano. Assim o homem, no ato de fé, pode conhecer com firme certeza e pura verdade
as coisas divinas. A fé, dom de Deus, se estabelece como via de acesso para as verdades
divinas; não somente para aquele desprovido de um profundo esforço intelectual, mas
para o teólogo em todo o seu ofício de fazer teologia. Esta condição permite que todos,
sem dúvida de erro, se tornem participantes das verdades divinas.
No Capítulo V, diz Tomás que ao homem de fé foi dada a possibilidade de
conhecer as verdades divinas, particularmente aquelas que excedem a razão humana.
Ora, todo desejo se dirige para algo a partir de um conhecimento prévio. E o homem,
pela providência divina, está ordenado a um bem mais elevado que a sua capacidade
natural. Assim, a razão aprendeu a desejar algo para além da própria condição humana,
da presente vida. Nesse sentido, também os filósofos procuraram demonstrar bens
maiores que os sensíveis ou aqueles alcançados com base unicamente na capacidade
humana. Esses bens permitem aos homens irem além dos prazeres sensíveis e isso
se dá, fundamentalmente, por aqueles que praticam as virtudes, tanto da vida ativa
quanto da vida contemplativa. Foi necessário, como procede, que o homem, pela fé,
adquirisse um conhecimento mais veraz sobre Deus; e o homem só poderá conhecer
a Deus caso creia que Ele está acima de tudo aquilo que é possível ser pensado, isto

18 TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios, I, 4.


32

é, caso prescinda que o conhecimento da natureza divina excede sua capacidade


natural. Assim, como o conhecimento sobre Deus excede a razão humana, Deus
está acima de tudo aquilo que pode ser pensado pelo homem. E disto resulta, para
o homem, uma utilidade, o afastamento de qualquer presunção, de abarcar, pelo
intelecto, a total natureza das coisas. Contra isso, a ele foi concedido, para além da
sua condição natural, conhecer algumas verdades divinas. Embora pouco o homem
possa captar das substâncias superiores, o alcance é mais amado e desejado de que o
conhecimento de qualquer substância inferior. E isso concede ao homem uma outra
utilidade. Dessas sentenças, conclui Tomás: ainda que limitado seja o conhecimento
das coisas superiores, ele concede à alma a máxima perfeição; embora a razão humana
não seja capaz de alcançar as verdades acima de si, poderá alcançar a perfeição caso
admita tais verdades pela fé.19
Em sentido próprio, para o fazer teologia: Tomás apresenta a razão pelo qual o

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homem pode, pela fé, ascender Deus. Ele, porque ordenado para Deus, não pode esta-
cionar em sua fraqueza humana, dada a limitação do intelecto. Por isso, encontra-se
atraído por Deus e a Ele pode ascender, quer dizer, o intelecto é atraído por algo acima
dele, desejoso de Deus. Tomás, ainda, estabelece uma condição para o fazer teologia,
o que lhe dá peculiaridade: só é possível conhecer Deus envolto da crença de que Ele
está acima de tudo aquilo que pode ser pensado, porque está acima da razão natural. O
contrário desestabiliza ou negligencia o fazer teologia, transformando-se em filosofia
ou qualquer outra ciência. Esta condição situa a Teologia como dependente da ciência
divina, bem como situa o homem como dependente da providência divina. Não pode a
teologia prescindir da fé, como não pode o homem em si e por si alcançar Deus. Deve
sempre o homem elevar-se às coisas imortais e divinas e esta é a missão da teologia.
Importa para a ciência teológica a compreensão de que, embora pouco possa captar da
substância divina, este pouco é mais amado, desejado e perfeito – e digno de júbilo –
que qualquer conhecimento das coisas inferiores.
Ora, a sabedoria divina dignou-se revelar aos homens as suas verdades e inspi-
rou-os com testemunhos condizentes, como afirma Tomás no Capítulo VI. Pois, para
confirmar tais verdades, realizou ações visíveis, de superação de toda a capacidade
natural do homem, como a cura de doenças, ressurreição dos mortos etc. E mais
ainda radiante foi permitir aos homens ignorantes, pelo Espírito, adquirir tão elevada
sabedoria (as suas verdades). Mas não só os ignorantes, também os sábios recorrem
à fé, a fim de conhecer Deus; por Ele, sujeitaram-se a perseguições e sofrimentos;
não buscaram honra e nem prazer, e isso só pode ser fruto da inspiração divina. Deus,
ainda hoje, por meio dos seus santos homens, opera maravilhas para a confirmação
da fé, das suas verdades.20
Em sentido próprio, para o fazer teologia: as verdades aceitas pela fé dão à teo-
logia segurança em seu estatuto científico. Pois Deus dignou-se revelar aos homens
as suas verdades, com ações que excedem a compreensão da razão humana, e não
privou o homem de conhecer os seus mistérios. Nesse sentido, tem a teologia a missão

19 Ibid., I, 5.
20 Ibid., I, 6.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 33

de tonar compreensível ou intelectível aquilo que primeiro é dado ao homem, a


graça da verdade, pela fé. E na fé, com o suporte da razão, a teologia medita e busca
compreender as verdades divinas. Não pode a fé ser fruto do acaso, mas da própria
disposição divina, que permite ao homem conhecer quem Ele é.
Mas para Tomás de Aquino, como exposto no capítulo VII, embora as verdades
da fé cristã estejam acima da razão natural, não podem os princípios da razão, impres-
sos pela natureza, contradizer tais verdades. Isso porque, a) tais princípios, totalmente
verdadeiros, foram impressos na razão natural e não podem ser falsos, como não pode
ser falso o conteúdo da fé, já que recebeu de Deus a sua confirmação. Dado que o falso
é contrário ao verdadeiro, identificado claramente na definição de ambos, é impossível
que a verdade da fé esteja em desacordo com os princípios naturais da razão; b) como
os princípios naturalmente evidentes são infundidos ao homem por Deus, pois Ele
é o autor da natureza, tais princípios estão contidos na natureza divina; disso advém
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que toda contrariedade a tais princípios impugna a própria sabedoria divina. Logo,
as verdades reveladas por Deus não podem contradizer o conhecimento natural; c)
o que é natural não pode mudar se a natureza permanece. Assim, são inconcebíveis
opiniões contrárias em um só sujeito, o que resulta não ser possível Deus infundir
no homem verdades contrárias ao conhecimento natural. Adverte Tomás que não é
possível o intelecto conhecer quando está diante de razões contrárias, pois isso o
impede de alcançar a verdade. Se essa contrariedade fosse infundida por Deus, não
poderia o homem, então, alcançar a verdade das coisas, visto que essa condição não
pertence a Deus. Portanto, quaisquer razões contrárias às verdades de fé não advêm
dos princípios em si mesmos da natureza humana, isso quer dizer: a verdade da razão
natural não é contrária à verdade da fé cristã.21
Fica claro para Tomás não ser possível sustentar a separação entre as duas
esferas do saber, a teologia e a filosofia. Entre elas há uma íntima cooperação, pois
fé e razão advêm da mesma fonte de verdade, Deus. Tanto uma quanto a outra con-
tradizem ao erro: o que pertence à natureza da razão é verdadeiro, da mesma forma
que é verdadeiro o que é revelado por Deus. E por combaterem o erro, devem (a fé e
a razão) “ser igualmente unânimes no conhecimento da verdade”22 e, por isso, estão
em perfeita harmonia. Podemos afirmar que “a fé é um ato da própria razão ou, pelo
menos, do espírito humano. Do espírito humano super-revelado, a incidir num objeto,
numa verdade inacessível a suas capacidades naturais, irredutíveis a suas próprias
demonstrações e certezas”.23
Em sentido próprio, para o fazer teologia: o conteúdo da fé é extremamente
verdadeiro, porque revelado por Deus e, por isso, evidente em Deus. E não pode a
fé ser contrária à razão, porque provindas de Deus. Tomás aponta então a relação
que tais campos devem exercer, de sintonia, ao saber que a razão, retamente, só pode
auxiliar a fé, a construção teológica. Aqui, podemos apontar uma sutiliza do Aquinate:
se fé e razão não podem contradizer-se, isto significa que a razão pode interpretar e

21 Ibid., I, 7.
22 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 451.
23 NICOLAS, Marie-Joseph. Introdução à Suma Teológica, p. 34.
34

compreender o que é dado além dela, ou seja, embora não possa ir além, como a fé,
é capaz de acolher a fé, não sendo esta estranha àquela. Ainda que a fé esteja acima
da razão, não há contrariedade entre elas.
E para conhecer a verdade da fé, como discutido no capítulo VIII, a razão
humana ordena-se a ela, à fé, em busca de encontrar semelhanças verdadeiras, ainda
que sejam insuficientes para que a pretendida verdade seja, de fato, compreendida ou
demonstrada ou, ainda, conhecida em si mesma. Contudo, é necessário que a mente
humana se exercite no conhecimento dessas razões, desde que se afaste da presunção
de querer compreender ou demonstrar essas verdades.24
Em sentido próprio, para o fazer teologia: por mais fraca ou limitada que seja, a
razão (filosofia) pode oferecer à teologia o seu contributo: de suporte à compreensão
das verdades de fé, mas sem a pretensão de compreender de maneira demonstrativa
ou enquanto conhecida em si mesma. A Teologia, nesse sentido, não despreza a

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operação do intelecto, mas a utiliza em função da verdade, que é Deus.
Conclui Tomás de Aquino, no capítulo IX, ao afirmar que o sábio deve buscar
a verdade das coisas divinas, tanto por meio da fé, concedida por Deus, quanto por
meio da razão e, com isso, demonstrar e destruir todo o erro contrário a ela. A verdade
alcançada pela fé ultrapassa todos os esforços da razão. Essas duas vias dizem da
condição do humano, não de Deus, cuja verdade é una e simples. Pode o adversário
ser convencido da verdade pela via da razão (filosofia), dados seus princípios demons-
trativos. Mas não será convencido caso estes mesmos princípios sejam aplicados pela
teologia. Caberá então à teologia valer-se da autoridade das Escrituras, atestada pelos
milagres. E não poderá a razão natural ser contrária à fé. Contudo, devem as verdades
da fé serem esclarecidas, com a apresentação de algumas razões verossímeis, não
para convencer os adversários, mas para auxiliar os fiéis.25
Nesse capítulo, podemos identificar o valor da filosofia para a teologia. Esta
conta com o suporte ou serviço prestado por aquela: “antes de mais nada, a filosofia
assegura os fundamentos da fé, e a defende contra toda a sorte de ataques. Além
disso, ela planteia a racionabilidade da fé e prova certos artigos de fé acessíveis a
ela”.26 Esta prova, por meio de argumentos, deve ser profunda, capaz de desarmar
os inimigos da fé. Além do mais, o conhecimento das coisas naturais é de muito
valor para teologia, pois ela anuncia a sabedoria e a grandeza de Deus. Aquele que
conhece profundamente a natureza não poderá cair no erro, identificando-a com
Deus ou atribuindo a ela propriedades divinas, incompatíveis com a sua essência,

24 TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios, I, 8.


25 Ibid., I, 9. Na Suma contra os gentios, livro II, capítulo II, sustenta Tomás que o conhecimento das criaturas
serve não apenas para o esclarecimento da verdade, mas para eliminar erros, sabendo-se que eles desviam o
ser humano da verdade da fé e, portanto, do verdadeiro conhecimento de Deus. Isso se comprova por quatro
razões, a saber: a) quando se ignora a natureza das criaturas e se concebe que nada existe além delas;
b) quando se atribui à criatura o que é próprio de Deus; c) quando se busca algo das virtudes divinas para
as criaturas, ignorando a natureza da criatura; d) quando se ignora a natureza das coisas, mas sujeitando
tais coisas a certas criaturas, como se verifica naqueles que se submetem aos astros. Em suma, o erro
sobre as criaturas conduz ao erro sobre Deus; o homem, ao submeter-se às criaturas, afasta-se de Deus.
TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios, II, 3.
26 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 452.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 35

ou, ainda mais, aderindo ao mecanicismo, de rigidez dos processos internos naturais,
recusando qualquer interferência divina. Diferentemente, atribuirá à natureza o seu
lugar no conjunto do universo e, por conseguinte, a negação de qualquer influência
incessante dos astros no ser humano, o que revelaria uma afronta àquele que ocupa
lugar central na criação de Deus.27
Em sentido próprio, para o fazer teologia: a teologia, portanto, tem a tarefa de
conhecer Deus, a verdade suprema, que está acima de todos os esforços da razão. Con-
tudo, não abnega a razão, mas dela se fortalece para conhecer os mistérios de Deus.
Como já afirmando, não pode haver contradição entre essas duas fontes de verdade.
Ainda, a teologia estará assegurada por sua autoridade máxima, a Sagrada Escritura.

2. A teologia como ciência


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Em 1265, em Roma, Tomás de Aquino assume um dos Studia Generalia de


sua Ordem, a dos Pregadores. Pois não era pretensão dos Pregadores restringir-se a
cátedras, nas universidades, mas criar escolas próprias onde residissem as ciências
sacras e as ciências profanas. Esta decisão havia partido de um capítulo recente, em
que Tomás e Sto. Alberto participaram. Caberia, então, a Tomás presidir o programa
de estudos naquele momento.28 E precisamente neste ano Tomás inicia os escritos da
Suma Teológica (Summa Theologiae), obra que marcará os seus últimos nove anos
de vida (e de vida intelectual). Ela representa o coroamento de sua longa trajetória
acadêmica: ensino, pesquisa e escrita. Como os demais escritos, a Suma teológica se
caracteriza por uma perspectiva hermenêutica, de interpretação dos textos bíblicos,
aristotélicos e de outros autores renomados, como Boécio; apresenta-se como um
verdadeiro tratado doutrinal, de exposição e defesa da fé.29
De notável organização estrutural e argumentativa, foi composta para os ini-
ciantes, apresentando as questões segundo a ordem lógica, evitando maior extensão
na argumentação, bem como repetição e multiplicação de questões inúteis e sen-
tenças secundárias (acessórios), aquelas expostas para a disputa. A Suma teológica
está composta de três partes: na primeira, inquire sobre Deus uno e trino, de Deus
criador; na segunda, sobre o movimento da criatura racional até Deus; na terceira,
sobre Cristo, caminho para se chegar até Deus.30
Com a pretensão de refletir sobre o “fazer teologia”, apresentaremos a sólida
argumentação do Aquinate sobre a “teologia como ciência”, situada na primeira parte
da Suma Teológica.
Na questão 1, artigo 1, Tomás questiona-se sobre a necessidade de outra ciência,
além da ciência filosófica, o que parece irrisório, como se verifica: não deve o homem
esforçar-se para alcançar o que está acima da sua razão; a doutrina a respeito do ente é

27 Ibid., p. 452-453.
28 NICOLAS, Marie-Joseph. Introdução à Suma Teológica. In: TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. v. 1.
Tradução: Aldo Vannucchi et al. São Paulo: Loyola, 2001. p. 28.
29 JOSAPHAT, Carlos. Paradigma teológico de Tomás de Aquino, p. 27.
30 LARANGE. La síntesis tomista. Tradução: Eugenio S. Melo. Buenos Aires: Desclée, de Brouwer, 1946. p. 35.
36

segura e verdadeira. E a filosofia trata de todos os entes, até mesmo de Deus. Contudo
na Carta a Timóteo se diz que a Escritura, de inspiração divina, é útil para ensinar,
corrigir, refutar, educar. Ora, a Escritura não pertence à ciência filosófica, esta de
caráter da razão. Portanto, se faz necessária uma ciência além daquelas filosóficas.
Pois era necessária para a salvação do homem uma doutrina fundada na revelação
divina, até mesmo porque ele está ordenado para Deus e esta verdade ultrapassa o a
compreensão da razão natural e, por isso, deve compreender aquele que é seu prin-
cípio e fim. Então a necessidade, para a salvação do homem, de uma compreensão
que ultrapasse a sua razão, comunicada por revelação divina, acolhida na fé.31
Nesta questão, Tomás entende o termo “ciência” na perspectiva aristotélica,
quer dizer, “o grau mais perfeito do conhecimento humano, o que conhece a essência
de uma coisa como princípio explicativo desta coisa e de todas as propriedades das
quais dá conta a experiência”.32 A demonstração científica poderá se dar quando, a

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partir da definição da essência, ser possível a conveniência de tal propriedade ao
objeto considerado. Merece destaque, ainda nesta questão, o fato de a teologia estar
direcionada para salvação, como necessidade do homem para entender seu próprio
fim. Portanto, “o dado da teologia é a ordem da salvação”, que se dá em uma tríplice
economia: criadora, redentora e sacramental”.33
No artigo 2, Tomás – seguindo o seu método próprio – questiona se a teologia é
uma ciência. Diz ele, que toda ciência procede de princípios evidentes por si mesmos.
Ora, a teologia, ao contrário, procede de artigos da fé, que não são evidentes por si
mesmos, pois nem todos têm fé. Também, a ciência não pode sustentar-se pela sin-
gularidade. A teologia, todavia, se ocupa de casos singulares, de experiências de vida
e de fé. Esses elementos parecem abnegar o status de ciência à teologia. Contudo, ao
recorrer a Agostinho, sublinha Tomás que a esta ciência pertence apenas aquilo pelo
qual a fé, bem salutar, é gerada, alimentada, defendida, corroborada. Estas funções
pertencem exclusivamente à teologia, extintas a qualquer outra ciência; portanto é a
teologia uma ciência, de natureza muito peculiar. E para entender seu status, faz-se
necessário pontuar os dois tipos de ciência: aquela que procede de princípios conhe-
cidos pelo intelecto, como a aritmética; a outra, de princípios conhecidos à luz de
uma ciência superior, como a música, pela aritmética. A este segundo tipo pertence
a teologia, que procede da ciência de Deus. É, portanto, a teologia uma ciência, que
procede de princípios conhecidos à luz de Deus.34
Ora, Tomás distingue, assim, as ciências arquitetônicas das ciências subalternas.
Esclarece que as primeiras não dependem de nenhuma outra, pois procedem de prin-
cípios primeiros que são a elas conhecidos imediatamente. Já as ciências subalternas
buscam se basear em princípios advindos de outras ciências, das arquitetônicas (supe-
riores). A teologia, como deriva seus princípios de uma ciência superior, “não é uma

31 TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. v. 1. Tradução: Aldo Vannucchi et al. São Paulo: Loyola, 2001. I,
q. 1, a. 1.
32 GEFFRÉ, Claude. Teologia como ciência. In: TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. v. 1. Tradução: Aldo
Vannucchi et al. São Paulo: Loyola, 2001. p. 128.
33 Ibid., p. 130.
34 TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica, I, q. 1, a. 2.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 37

ciência arquitetônica, mas sim subalterna: seu guia é a sabedoria divina, e é de fato
uma participação nela”.35 Mas o fato de ser subalterna não vê seu valor rebaixar-se,
mas desenvolver-se, visto ser a ciência da qual depende a ciência de Deus e dos
bem-aventurados. Por isso, ao proceder da revelação, deve a teologia ser considerada
superior à filosofia. Para o Aquinate, “a ‘sagrada doutrina’ é uma imitação e como
uma marca em nós da ciência do próprio Deus”.36
E graças ao recurso da “subalternação” das ciências, Tomás consegue dar caráter
científico à teologia, na perspectiva de Aristóteles e sem transformar-se em ciência
autônoma, separada da fé. Portanto, como ciência subalterna a teologia parte de prin-
cípios não evidentes, isto é, da fé. Mesmo assim, adquire o status de ciência, “pois
seus princípios são cognoscíveis com evidência na ciência superior, a de Deus e dos
bem-aventurados”.37 A teologia recebe seus princípios da ciência de Deus, da fé. É,
então, a teologia “uma imitação deficiente da ciência de Deus”.38
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Procede Tomás, no artigo 3, ao questionar-se se a teologia é uma ciência una.


Como sublinha Aristóteles, a ciência una deve comportar apenas um gênero (objeto ou
assunto). Mas a teologia trata do criador e da criatura, que são de gêneros diferentes.
Ainda mais, a teologia, ao tratar de tais gêneros, bem como de outros, atinge outras
ciências ou delas se serve. Parece, então, não ser a teologia uma ciência una. Tomás,
porém, ao recorrer ao livro da Sabedoria, que afirma Jacó receber a ciência das coisas
santas, constata a unicidade da ciência teológica. Ora, a unicidade de uma potência
advém de seu objeto formal (e não material); tudo o que é cognoscível por revelação
divina, de acordo com as Escrituras, tem em comum um único objeto formal, e isso
caracteriza a doutrina sagrada, a teologia. A teologia não trata de Deus e das criaturas
do mesmo modo: D’ele se trata em primeiro lugar; depois, das criaturas, referidas a
Ele, como fim último. E não há qualquer prejuízo à sua unicidade, da ciência teoló-
gica. Também, potências inferiores podem se diferenciar de matérias unificadas em
uma potência superior, dado que uma potência superior considera o objeto sob uma
razão formal mais universal. Assim a Teologia, sendo una, considera sob uma única
razão aquelas coisas tratadas em ciências filosóficas diferentes. Esta é a ciência de
Deus, una e simples com relação a tudo.39
Para Tomás, portanto, “a teologia abarca uma infinidade de objetos: todo o mundo
divino, humano e cósmico”,40 mas não se constitui uma ciência fragmentária, mas unitá-
ria. “E isso não só graças à unidade do objeto formal (a luz da revelação), mas também
graças à unidade do objeto material: pois tudo é visto com referência a Deus”.41
No artigo 4, Tomás questiona se a teologia é uma ciência prática. Ao recorrer a
Aristóteles, concebe que o fim da ciência prática é a ação. Ora, o Evangelho ordena
à ação; também, a doutrina sagrada se divide em lei antiga e lei nova; lei é matéria

35 MONDIN, Battista. Dicionário Enciclopédico do pensamento de Santo Tomás de Aquino, p. 652.


36 Ibid., p. 652.
37 GEFFRÉ, Claude. Teologia como ciência, p. 129.
38 Ibid., p. 129.
39 TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica, I, q. 1, a. 3.
40 MONDIN, Battista. Dicionário Enciclopédico do pensamento de Santo Tomás de Aquino, p. 651.
41 Ibid., p. 651.
38

da moral, que é uma ciência prática. Tais argumentos dizem ser a Teologia uma
ciência prática. Não obstante, qualquer ciência prática está referida a obras a serem
praticadas pelo homem, mas a Teologia trata em primeiro lugar de Deus, tendo o
homem como obra maior. E isso vem constatar não ser a Teologia uma ciência prática,
mas, sobretudo, especulativa. Ainda, na filosofia, umas ciências são práticas; outras,
especulativas; a Teologia compreende essas duas perspectivas. Porém, a Teologia
é mais especulativa do que prática porque se refere mais às coisas divinas que aos
atos humanos. E isso se explica pelo fato de os atos, por eles, ordenarem o homem
ao pleno conhecimento de Deus, que consiste na bem-aventurança eterna.42
Esta questão já era objeto de discussão por vários teólogos. Dentre eles, aqueles
da Ordem franciscana (como Boaventura) e aqueles da Ordem dominicana (como
Alberto Magno). Os primeiros acentuavam ser a teologia um saber eminentemente
prático, direcionada para a caridade; os segundos, um saber profundamente especula-

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tivo, em busca do conhecimento da verdade revelada. Ora, Tomás chancela o caráter
especulativo da teologia, mas sem desprezar o seu significado prático.43
Afirmado o caráter especulativo da Teologia, Tomás, no artigo 5, inquire sobre
a perfeição desta ciência, de ser mais excelente que as outras ciências. E parece
não ser ela mais excelente que as demais, dadas as razões: a certeza (precisão de
resultados) é um qualitativo das ciências superiores e isso não é possível à teologia;
as ciências superiores dão suporte às ciências inferiores, como aritmética em rela-
ção à música. Mas como escrito nos Provérbios, as outras ciências são chamadas
servas da sagrada doutrina, isto é, da Teologia. Ora, por ser especulativa e prática,
a teologia ultrapassa todas as ciências. Assim, entre as ciências especulativas “é a
mais certa, porque as outras recebem a sua certeza da luz natural da razão humana,
que pode errar; ao passo que ela recebe a sua da luz da ciência divina, que não pode
enganar-se”;44 a teologia, por conseguinte, vai além da razão. Portanto, a teologia
é a mais excelente das ciências.45
Interessa, agora para Tomás, no artigo 6, examinar se a teologia, a doutrina
sagrada, é uma sabedoria. Mas parece ser a ela negada esta condição, pois qualquer
doutrina que tem seus princípios fora de si não merece o nome de sabedoria; da
mesma forma, não merece o nome de sabedoria uma ciência que não estabelece
os princípios das outras ciências. Contudo, é considerada sabedoria aquilo que
reconhece a causa suprema das coisas; o homem sábio é aquele que reconhece
Deus como a causa suprema de todo o universo. Então, a sabedoria consiste,
como é possível identificar em Agostinho, em o conhecimento das coisas divi-
nas; assim, a teologia confessa Deus como a causa suprema das coisas. E Tomás
conclui: os princípios da Teologia advêm da sabedoria divina, que regula todo o

42 TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica, I, q. 1, a. 4.


43 MONDIN, Battista. Dicionário Enciclopédico do pensamento de Santo Tomás de Aquino, p. 655.
44 TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica, I, q. 1, a. 5.
45 Tomás, neste artigo, sustenta que a teologia pode recorrer às ciências filosóficas, não que isso seja
necessário, mas para explicitar melhor a própria teologia. Ainda, o fato de a teologia servir-se da filosofia
não se explica pela deficiência daquela, mas pela fraqueza do intelecto humano. TOMÁS DE AQUINO. Suma
teológica, I, q. 1, a. 5.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 39

conhecimento do humano e das outras ciências; e não pertence à Teologia estabe-


lecer os princípios das outras ciências, mas julgá-los, pois não podem contrariar
a sabedoria divina.46
Prossegue Tomás no artigo 7: é Deus o objeto da doutrina sagrada? Parece não
ser Ele o objeto desta ciência. Para Aristóteles, toda ciência pressupõe o conhecimento
do seu assunto, o que “é”, mas a Teologia não nos permite dizer o que “é” Deus;
também, todo discurso de uma ciência está compreendido em seu assunto. Mas na
Sagrada Escritura há diversos assuntos além de Deus, como criaturas, costumes,
normatização etc. Então, não pode ser Deus o assunto desta ciência. Todavia, diz
Tomás de Aquino: “o assunto de uma ciência é aquilo de que se fala nessa ciência.
Ora, na ciência sagrada fala-se de Deus: daí seu nome teologia, discurso sobre Deus.
Logo, Deus é o assunto desta ciência”.47 Diz Tomás que há uma total relação entre
o assunto de uma ciência e a própria ciência. E na teologia, “tudo é tratado sob a
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razão de Deus ou de algo que a Ele se refere como a seu princípio ou ao seu fim”.48
E conclui: ainda que não possamos dizer quem Ele “é”, podemos dizer dos efeitos
que ele produz na ordem da natureza ou da graça; tudo aquilo que esta ciência trata
está referido e compreendido em Deus.
No artigo 8, Tomás investiga se a teologia se vale de argumentos. E isso parece
insustentável: os argumentos são fracos e, por isso, rejeitados quando se busca a fé;
caso se valesse de argumentos, seriam com base na autoridade e na razão: o primeiro
não é digno de ciência e se compreende como o mais fraco de todos; o segundo,
corrompe o status de ciência. Contudo, exorta Paulo, na Carta a Tito, que os fiéis se
assegurem do ensinamento seguro, segundo a sã doutrina; ela será capaz de refutar
os adversários. Por isso, deve a doutrina sagrada disputar com aquele que nega seus
princípios, valendo-se então da argumentação. Ora, a teologia não utiliza a argu-
mentação para demonstrar seus princípios, mas parte deles para manifestar outras
verdades (da ressurreição de Cristo para a ressurreição dos homens). E assim Tomás
conclui: ainda que argumentos sejam impróprios para explicar a fé, podem, com base
nos artigos da fé, evidenciar outras verdades; as ciências sagradas apropriam-se de
argumentos de autoridade porque vêm da revelação. Tais argumentos são os mais
elevados e eficazes; porém, recorre aos argumentos da razão não para provar a fé,
mas para explicar alguns pontos da sabedoria divina.49
A necessidade da filosofia para a teologia é legitimada e assegurada por Tomás,
como é possível observar em todas as suas obras. “Trata-se, aliás, de uma con-
sequência lógica do seu modo de conceber as relações entre fé e razão, segundo
o princípio da harmonia, que prevê uma colaboração recíproca entre essas duas
fontes de verdade”.50

46 TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica, I, q. 1, a. 6.


47 Ibid., I, q. 1, a. 7.
48 Ibid., I, q. 1, a. 7.
49 Ibid., I, q. 1, a. 8.
50 MONDIN, Battista. Dicionário Enciclopédico do pensamento de Santo Tomás de Aquino, p. 653.
40

3. Distinção entre filosofia e teologia: finalidades e métodos


Ainda que pensadores anteriores a Tomás tenham se ocupado a estabelecer a
distinção entre filosofia e teologia, não o fizeram com precisão e consistência, ao
menos naquilo que concerne à exposição concreta de suas doutrinas. Coube então a
Tomás estabelecer esta distinção, particularmente suas consequências práticas. Por sua
vez, não lhe é possível, em nenhuma hipótese, conceber uma filosofia completamente
autônoma ou separada, assim como os grandes tratados da filosofia cristã.51
A questão sobre a finalidade52 da teologia e da filosofia pode ser identificada
no objeto “criaturas”, exposto por Tomás no Livro II, capítulo IV da Suma contra os
gentios. Sublinha que a teologia considera as criaturas enquanto nelas houver alguma
semelhança com Deus. O possível erro a respeito delas consistirá no erro a respeito
das coisas divinas. Ora, as criaturas são objeto tanto da teologia quanto da filosofia:

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esta as considera enquanto tais (e, por isso, as diversas partes da filosofia estão cons-
tituídas por diversos gêneros das coisas), de acordo com a sua natureza própria, isto é,
tem a finalidade de investigar as coisas como objetos independentes de pesquisa.53 Ao
contrário, a teologia considera as criaturas enquanto estão ordenadas para Deus, cria-
das por Deus, sujeitas a Ele: por exemplo, não basta a ela investigar o fogo enquanto
fenômeno físico, mas como manifestação da grandeza de Deus.54
Ainda que certos objetos sejam de interesse tanto para a filosofia quanto para a
teologia, o método55 utilizado para a investigação (também) se distingue: a filosofia
alcança o conhecimento ao atingir a essência das coisas, as suas causas próprias; a
teologia, de outra forma, parte sempre da Primeira Causa, isto é, de Deus, “mostrando
que assim é porque foi revelado por Deus ou porque redunda na glória de Deus ou
porque a glória de Deus é infinita”.56 Por isso, a teologia é a sabedoria suprema
porque sua causa é supra altíssima. E não se dissocia da filosofia, mas serve-se dela,
partindo, algumas vezes, dos seus princípios (assim como a filosofia se serve de
outras ciências). Como a filosofia considera as criaturas em si mesmas, parte delas
para ascender a Deus. A teologia, que considera as criaturas enquanto ordenadas para
Deus, parte de Deus para alcançar as criaturas. De outra forma: a filosofia, ao buscar
conhecer, parte das criaturas e alcança Deus;57 a teologia, inversamente, parte de

51 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 450.


52 Ibid., p. 450.
53 É objeto da filosofia tudo aquilo que pode ser apreendido pela razão e, por isso, capaz de se adequar à
lógica racional e demonstrado em discurso ordenado e conciso. Aquilo que foge do domínio da razão, perde
o aporte racional. Então não pode a filosofia investigar Deus ser uno e trino ao mesmo tempo. E por não
corresponder à natureza da razão, tal verdade só pode ser aceita pela fé, portanto, de domínio investigativo
da teologia. MELO, Marco César de Souza. A complementaridade entre a filosofia e teologia no pensamento
de Tomás de Aquino, p. 75.
54 TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios, II, 4.
55 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 450-451.
56 TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios, II, 4.
57 No campo filosófico, o caminho para a verdade (Deus) não pode partir do próprio Deus, por não ser possível
ao homem acessar a essência divina. Ela não está, diretamente, dada ao intelecto. Por isso, deve o homem
partir do conhecimento daquilo que mais se aproxima de si, das coisas, para alcançar Deus. MELO, Marco
César de Souza. A complementaridade entre a filosofia e teologia no pensamento de Tomás de Aquino, p. 75.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 41

Deus e alcança as criaturas. Portanto, é a teologia a mais perfeita por assemelhar-se


ao conhecimento de Deus.58 Fundamentalmente, em seu ato de conhecer, a teologia
busca servir-se de três classes de argumentação: “ora afirma uma verdade, baseando-se
na autoridade da revelação divina; ora apela à glória infinita de Deus, cuja perfeição
se trata de salvaguardar; ora reporta-se ao poder infinito de Deus, que transcende os
limites da ordem natural”.59
Em De Veritate, na questão 14, artigo 9, Tomás expõe, com determinação, a
distinção entre a teologia e a filosofia.60 Diz haver duas formas de conhecimento das
coisas: uma excede a capacidade do intelecto de todos os homens, ao afirmar que
Deus é uno e trino; outra, não excede à faculdade do intelecto, como demonstrar a
existência de Deus e que Ele é único e incorpóreo. A primeira refere-se à teologia; a
segunda, à filosofia. Também, neste artigo, podemos constatar: a) o objeto da fé está
ausente do intelecto; o da filosofia, no intelecto; b) a teologia se aperfeiçoa pela fé; a
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filosofia, pela razão; c) o conhecimento da fé é imperfeito (somente na pátria eterna


poderá o homem alcançar o conhecimento perfeito); o da filosofia, perfeito (por
demonstração). Este artigo pode, seguramente, ser resumido na seguinte afirmação
de Tomás: “não há fé sobre Deus quanto àquilo que é conhecido naturalmente sobre
Deus, mas quanto aquilo que excede ao conhecimento natural”.61
Tomás prossegue – no artigo 10, ao acentuar a necessidade da fé para a razão.62
Diz que a fé é necessária para a salvação do homem; sem ela, o homem será conde-
nado (Mc 16,16). Para o homem alcançar o que está além da sua condição natural,
do intelecto, deverá crer, condição que o leva ao seu fim último, Deus. Ora, a vida
mais elevada clama pelo conhecimento. E sabe-se que a vida da graça é mais elevada
que a vida da natureza. Logo, deve o homem necessitar da vida da graça, que é o
estado de fé. Também, é da natureza do humano ordenar-se para a perfeição, que
consiste no perfeito conhecimento, alcançado somente por graça divina. Mas tal
conhecimento não é acessível de imediato, por isso necessita da fé. Ela poderá dar a
ele o conhecimento perfeito de algumas coisas. Por conseguinte, não terá o conhe-
cimento perfeito de algumas coisas nesta vida (mas somente na pátria celeste), por
excederem a razão; de outras, sim, pela razão demonstrativa. Na relação entre fé e
razão não se pode dizer que a fé destrói a razão, mas a excede e aperfeiçoa. E tal é
a necessidade da fé para a razão.63

4. Fontes da Teologia
Para Tomás de Aquino, a fonte primaz da teologia é a Sagrada Escritura,64 e isso
se evidencia em sua especulação teológica: os dados da fé, os princípios e a verdade

58 TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios, II, 4.


59 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, p. 450.
60 Ibid., p. 451.
61 TOMÁS DE AQUINO. A Fé: quaestiones Disputate De Veritate – questão 14. Tradução: Paulo Faitanin e
Bernardo Veiga. São Paulo: Edipro, 2016. q. 14, a. 9.
62 BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienn;e. História da Filosofia Cristã, p. 451.
63 TOMÁS DE AQUINO. A Fé: quaestiones Disputate De Veritate, q. 14, a. 10.
64 MONDIN, Battista. Dicionário Enciclopédico do pensamento de Santo Tomás de Aquino, p. 653.
42

fundamental são derivados da Revelação, quer dizer, do texto sagrado. Não somente
é o único livro do teólogo, mas sua autoridade segura, da qual pode argumentar com
necessidade. Assim, nenhuma outra fonte pode lhe oferecer tamanha autoridade:
“se o argumento de autoridade fundado na razão é o mais fraco de todos, o que está
fundado sobre a revelação divina é o mais eficaz de todos”.65 Por isso, cabe ao teó-
logo ater-se estritamente às Escrituras, não podendo, como sublinha Tomás na Suma
Teológica – livro I, questão 36, artigo 2, “atribuir a Deus o que não se encontra na
Sagrada Escritura, nem por palavras, nem pelo sentido”.66
Na questão 39, artigo 2, o Santo Angélico reafirma esta máxima: “nada se deve
afirmar de Deus que não esteja expresso pela autoridade da Sagrada Escritura”.67 Por
isso, tal deve ser a regra áurea para o teólogo:68 “primeiro, que a verdade da Escritura se
mantenha inconteste. Segundo, como a Escritura divina pode ser interpretada de várias
maneiras, ninguém deve aderir a uma das interpretações, se constatasse por razões certas

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que é falso o que alguém presume afirmar ser o sentido da Escritura”.69
Afirmado o primado absoluto da Sagrada Escritura, como fonte da Teologia,
Tomás não desconsidera outras fontes, necessárias para o pensar teológico. Do texto
sagrado, reconhece o valor da Tradição e, por conseguinte, do Magistério eclesiástico
(Concílios) e do ensino dos Padres da Igreja.70 Dentre eles, deu grande importância
ao pensamento de Agostinho; também, atribuiu especial significado a Ambrósio, a
Cirilo de Alexandria e ao Pseudo-Dionísio.71 Considera, ainda, o valor dos filósofos
como autoridade alheia.72 Assim, certifica no livro I, questão 8: “a doutrina sagrada
usa também da autoridade dos filósofos quando, por sua razão natural, puderam
atingir a verdade”.73
Da filosofia, Tomás absorveu em demasia, com espírito crítico, o pensamento
de Aristóteles. O Aquinate não se contentou com as traduções de Aristóteles por
meio dos árabes. Por isso, providenciou uma tradução direta do grego; assim tam-
bém procedeu com os textos da patrística. Além de grande conhecedor de Aristó-
teles, Tomás também se aprofunda nos comentadores do Estagirita, como Porfírio,
Temístio, Simplício e Alexandre de Afrodisias. Ainda que tenha se aproximado do
platonismo por meio da crítica aristotélica, também demonstra conhecimento com

65 TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica, I, q. 1, a. 8.


66 Ibid., I, q. 36, a. 2. Para Tomás de Aquino, “a estrutura necessária do Deus bíblico, pessoal e vivo, é o
pressuposto ontológico que torna inteligíveis as intervenções históricas de Deus. Enquanto uma teologia
bíblica segue a ordem concreta e histórica, pela qual Deus se revelou aos homens, a teologia especulativa
organiza os atributos de Deus segundo a sua ordem de inteligibilidade. Ela se atém ao que há de mais
necessário, de mais inteligível em Deus, fazendo abstração do devir histórico da Revelação, ou seja, da
ordem segundo a qual o homem tomou conhecimento do mistério de Deus”. GEFFRÉ, Claude. Teologia
como ciência, p. 130.
67 Ibid., I, q. 39, a. 2.
68 MONDIN, Battista. Dicionário Enciclopédico do pensamento de Santo Tomás de Aquino, p. 653.
69 TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica, I, q. 68, a. 1.
70 MONDIN, Battista. Dicionário Enciclopédico do pensamento de Santo Tomás de Aquino, p. 653.
71 COSTA, José Silveira da. Tomás de Aquino, p. 42-43.
72 MONDIN, Battista. Dicionário Enciclopédico do pensamento de Santo Tomás de Aquino, p. 653.
73 TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica, I, q. 1, a. 8.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 43

as ideias de Platão. Boécio, Avicena e Averróis e Moisés Maimônides são constan-


tes em suas citações. Ainda, obteve grande conhecimento de autores mais recentes,
como Santo Anselmo, São Bernardo, Gilberto Porretano, Hugo e Ricardo de São
Vitor, Joaquim de Flora, Aberlado e Pedro Abelardo. Dos seus contemporâneos,
embora não os cite, tece contato com o pensamento de Alexandre de Halles e São
Boaventura, entre outros.74

Conclusão
Para Tomás de Aquino, a Teologia é uma ciência, alicerçada na revelação divina.
Visa, estritamente, conhecer Deus e tudo o que dele procede. Para tal, reveste-se de
profundo rigor e sistematicidade em seu procedimento investigativo. Constitui-se de
um objeto próprio, Deus; de um fim último, acessar a natureza divina; de um método,
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dedutivo. É subalterna porque deriva seus princípios de uma ciência superior, da


ciência divina e, por isso, é a mais suprema de todas as ciências.
Podemos afirmar que a fórmula que melhor expressa o projeto teológico de
Tomás de Aquino é aquela de Santo Anselmo: fides quaerens intellectum (a fé procu-
rando entender), portanto, compreensão da fé. A teologia, nesse sentido, busca “usar
todas as forças e todos os recursos da razão humana para compreender o que Deus
diz ao homem em sua Revelação; esclarecer e aprofundar, à luz da fé, tudo o que a
razão conhece e procura conhecer em seu campo próprio”.75 Pois “é no interior da
fé que a teologia nasce”.76
Com o suporte da filosofia, do uso da razão lógica, pode a teologia explicar,
esclarecer e defender as verdades de fé. Já a teologia contribui para orientar a razão,
impedindo-a do erro e direcionando-a ao reto uso. Dessa harmonia, entre razão e fé,
resulta uma nova ciência, a teologia. Fundamentalmente, na perspectiva de Santo
Tomás de Aquino, a teologia é uma ciência que conjuga o natural com o sobrenatural,
o humano com o divino.77
Buscamos, no presente capítulo, expor e refletir sobre a teologia enquanto
ciência, de acordo com o Santo Angélico. E podemos afirmar que tanto a introdu-
ção da Suma contra os gentios quanto a introdução da Suma Teológica discorrem
sobre esta pretensão, ainda que revestidas de alto teor filosófico, o que não poderia
ser diferente. Pois aplicar sentido estrito filosófico ou teológico ao pensamento
de Tomás, em qualquer parte de sua obra, pode incorrer ao erro, quer dizer, estas
duas ciências estão em total harmonia e fazem parte de toda sistematização dos
seus escritos.

74 COSTA, José Silveira da. Tomás de Aquino, p. 42-43.


75 NICOLAS, Marie-Joseph. Introdução à Suma Teológica, p. 34.
76 Ibid., p. 35. “Ela [a fé] é como o desenvolvimento, a explicação da Revelação divina. A fé não é apenas a luz
que ilumina toda a sequência, todo o conjunto oriundo dela. É a alma dessa arquitetura intelectual, desse
movimento de busca sempre insatisfeita”. Ibid., 35.
77 COSTA, José Silveira da. Tomás de Aquino, p. 41.
44

REFERÊNCIAS
BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã – Desde
as origens até Nicolau de Cusa. Tradução: Raimundo Vier. Petrópolis: Vozes, 2007.

COSTA, José Silveira da. Tomás de Aquino: a razão a serviço da fé. São Paulo:
Moderna, 1993.

GEFFRÉ, Claude. Teologia como ciência. In: TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica.
v. 1. Tradução: Aldo Vannucchi et al. São Paulo: Loyola, 2001.

JOSAPHAT, Carlos. Paradigma teológico de Tomás de Aquino – sabedoria e arte

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de questionar, verificar, debater e dialogar: chaves de leitura da suma de teologia.
São Paulo: Paulus, 2012.

LARANGE. La síntesis tomista. Tradução: Eugenio S. Melo. Buenos Aires: Desclée,


de Brouwer, 1946.

MELO, Marco César de Souza. A complementaridade entre a filosofia e teologia no


pensamento de Tomás de Aquino. Revista Ideação, n. 40, jul./dez. 2019.

MONDIN, Battista. Dicionário Enciclopédico do pensamento de Santo Tomás de


Aquino. Tradução: André Luiz Boccato de Almeida et al. São Paulo: Loyola, 2023.

MOURA, Odilão. Introdução à suma contra os gentios. In: TOMÁS DE AQUINO.


Suma contra os gentios. Tradução: D. Odilão Moura. Campinas: Ecclesiae, 2017.

NICOLAS, Marie-Joseph. Introdução à Suma Teológica. In: TOMÁS DE AQUINO.


Suma teológica. v. 1. Tradução: Aldo Vannucchi et al. São Paulo: Loyola, 2001.

SOARES, Iago Nicolas de abreu. Os princípios que fundamentam o ofício do sábio


segundo Tomás de Aquino. Logos & Cultura, v. 1, n. 2, 2021.

TOMÁS DE AQUINO. A Fé: quaestiones Disputate De Veritate – questão 14. Tra-


dução: Paulo Faitanin e Bernardo Veiga. São Paulo: Edipro, 2016.

TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios. Tradução: D. Odilão Moura. Cam-


pinas: Ecclesiae, 2017.

TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. v. 1. Tradução: Aldo Vannucchi et al. São


Paulo: Loyola, 2001.
HISTÓRIA E HISTORICIDADE –
A REVELAÇÃO DIVINA E O
LIMITE DAS MEDIAÇÕES
Romildo Henriques Pinas1

Introdução
O presente capítulo faz uma breve reflexão filosófico-teológica da relação entre
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história e teologia da revelação, quer dizer, da revelação como história. Para isso,
faz-se necessário recorrer aos conceitos de história, de consciência e de fé; e, no
uso de tais conceitos, buscar integrar a revelação de Deus na experiência concreta
da vida humana, considerando, necessariamente, as bases ontológico-existenciais
como espaço privilegiado do manifestar divino. Sem as características culturais de
historicidade e da antropologia teológica, certamente a revelação de Deus seria algo
deslocado, deixando de ter o valor fundamental e absoluto para o ser humano como
criatura inserida neste mundo.
Mesmo com todos os limites previstos no contexto da recepção histórica da
revelação, todavia, aquilo que o aforismo hegeliano coloca no prefácio da obra Prin-
cípios da Filosofia do direito,2 indicando a razão como a “rosa na cruz do presente”,
diferentemente, aqui, à luz da tradição mais religiosa que filosófica, pode-se alterar
a máxima de Hegel, pois a rosa das rosas nos sofrimentos da humanidade, a “reve-
lação”, torna-se rosa perene para a fé cristã, desabrochada por definitivo no mistério
pascal de Cristo como revelação plena de Deus e como superação da morte e da cruz
do presente. Jesus Cristo insere o ser humano num lugar onde a razão por si mesma
não consegue levá-lo. Citamos Hegel, não por acaso, pois foi o grande filósofo da
história, contudo, inebriado pelos encantos da razão, acabou preso nas tramas de
tal razão, dando sua contribuição, embora confundindo o Absoluto com a plena
realização da razão.
Diferente do viés filosófico grego, a tradição bíblica vai entender a vida como
experiência efetiva com o Deus único e verdadeiro. Javé é aquele que participa da his-
tória do povo, sofre com ele e o socorre em seus dramas e sofrimentos. Então, torna-se
obrigatório, mesmo que de forma sumária, recorrer à história contida na Sagrada Escri-
tura, sobretudo a vida de Jesus Cristo como dado definitivo e encarnado da revelação de
Deus. Certamente, a contribuição da razão histórica se faz necessária para reconstituir
o caminho da consciência do homem bíblico; diferente disso, os dados contidos na
Escritura tornar-se-iam anacrônicos e sem nenhuma utilidade para o tempo presente.

1 Doutor em Teologia pela PUC-Rio; Professor de teologia sistemática na Faculdade de teologia do Centro
Universitário Salesiano de São Paulo, UNISAL, Campus Pio XI.
2 HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. XXXVIII.
46

Basicamente nosso estudo pode ser definido por três momentos: um primeiro,
quando procuraremos formular o conceito de história, historicidade e fé à luz da
razão moderna; um segundo momento, em que confrontaremos o tema da revelação
de Deus na história à luz da tradição teológico-bíblica, olhando, sobretudo, a revela-
ção em Jesus Cristo; um terceiro momento, como conclusão, no qual sinalizaremos
para alguns desafios históricos do mundo de hoje e a fragilidade das mediações para
a experiência de fé. Tais fragilidades ocasionam todo tipo de incredulidade ou de
práticas religiosas puramente subjetivas. Elas, nas muitas vezes, estão forjadas no
sonho de um progresso puramente secular que substitui as ideias de providência e
revelação da tradição cristã.3 Finalmente, há de se perguntar: como conciliar história
e revelação à luz da secularização intensa do mundo de hoje? Haveria lugar para a
fé, para a religião? De algum modo são questões que nosso estudo procura refletir
mesmo que de modo limitado.

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1. O conceito de história e historicidade à luz da racionalidade
histórica moderna
Não raras vezes usamos contrapor a história do mundo antigo, olhando aquele
momento como um acontecer ahistórico. Também, é possível passar por nossas refle-
xões que a cultura do homem grego seria desprovida do sentido histórico, um povo
que não valorizaria a história, e a do mundo semita-bíblico,4 provida de história, que
valorizaria a história. Naturalmente que certos extremismos e contraposições são
questionáveis, pois ambas as culturas exprimem ao seu modo a busca da unidade de
sentido histórico. Como lembra Löwith, o mundo grego faz uma história do passado
e o mundo bíblico olha para o futuro; não obstante, tanto Isaías quanto Heródoto e
Tucídides são responsáveis pelo desabrochar da “ciência da história”. O sentido e a
significação do processo histórico estão no centro dessas culturas, inclusive da grega.5
Na verdade, a cultura grega lutou imensamente contra a desesperante monotonia do
“eterno retorno”, sobretudo, no contexto da ética estoica,6 época em que emerge a
experiência do “tempo vivido” como criatividade do espírito e ideia de progresso
histórico. Então, a dinâmica circular ou linear do tempo determinará, já nos tempos
antigos, a emergência da “consciência histórica” como raiz daquilo que será estabe-
lecido no fluxo histórico como evolução da cultura ocidental. Lima Vaz faz ver que
a nova ideia de razão, associada de forma incontrastada com o sentido da história
coloca, desse modo, o problema mais profundo que será desenvolvido no contexto

3 LÖWITH, Karl. Meaning in History. Chicago; London: The University of Chicago Press, 1949. p. 10.
4 HENRIQUE, C. de Lima Vaz. Ontologia e história. São Paulo: Loyola, 2001. p. 168.
5 LÖWITH, K. Weltgeschichte und Heilsgeschehen. Die theologischen Voraussetzungen der
Geschichtsphilosophie. Stuttgart; Weimar: Verlag J. B. Metzler, 2004. p. 16.
6 FORTE, Bruno. Teologia da história. Ensaio sobre a Revelação, o início e a consumação. São Paulo: Paulus,
1995. p. 11. Para os estoicos, a repetição do ciclo cósmico incluía a repetição da história humana no seu
conjunto. Com a repetição do ato cosmogônico, o tempo concreto é projetado para o tempo mítico, in illo
tempore; a realidade é adquirida em virtude da repetição ou participação. O esforço de superação de tal
imaginário será demonstrado em Platão, elevando tal visão mítica à condição de filosofia, buscando assim
responder às questões inerentes ao sentido da “cruz do tempo” e da história.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 47

da consciência moderna, determinando, assim, o lineamento da consciência histórica


que prevalecerá no pensamento filosófico, emergido do Iluminismo a Hegel, de Hegel
a Marx e Kierkegaard, de Nietzsche e do historicismo.7
K. Löwith acertadamente atestou que a interpretação da história tem em primeira
e última instância o objetivo de compreender o sentido do agir e do padecer do homem
que se encontra inserido nela; buscar o sentido para aquilo que aparece sem sentido, as
cruzes da vida.8 Então, a história é a ciência que disciplina e dirige o conhecimento dos
fatos humanos. Ela ordena, numa unidade de sentido como historiografia, o passado,
a tradição do mundo como feitos humanos. Não que o passado deixe de ter sentido,
mas, na tradição, constitui uma dinâmica dynamis9 como historicidade que atualiza o
sentido transformador ou atualizador dos projetos, aquilo que Heidegger chamou de
“destino”.10 A história dos indivíduos está entretecida na história do mundo e dos povos;
com isso, a ação do indivíduo determina o curso da história, de certo modo, integrando
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indivíduos e mundo.11 Um horizonte de sentido emerge no Ocidente judaico-cristão


como princípio norteador da história. O pensamento hebreu-cristão deu lugar a uma
questão fundamental; esta implica em perguntar pelo significado último da história
que não conduz a um vazio, mas à esperança da fé.12
Na forma como entendemos a história hoje, na sua condição de ciência profana, foi
Voltaire o primeiro a propor a reflexão puramente filosófica de seus conteúdos, opondo-a,
assim, à construção teológica da história que sempre relacionou nos seus fundamentos a
história da salvação.13 No contexto moderno, a história, ao modo que entendeu Voltaire,
Marx e outros, adquire uma cientificidade, esvaziando o seu sentido bíblico-teológico
que reinou na tradição cristã desde Agostinho até Bousset, épocas em que ela sempre
garantia seus fundamentos em uma história teológico-dogmática baseada na história
da revelação e da fé.14 Pode-se afirmar que Agostinho foi o primeiro a pensar a história
como um plano providencial que ocorre para superar o drama enfrentado entre as duas
cidades.15 De algum modo, Orígenes já falara da história como desenvolvimento, cul-
minando com o retorno do mundo a Deus numa apocatástase.16

7 VAZ. Ontologia e história, p. 169, 172.


8 LÖWITH. Weltgeschichte und Heilsgeschehen, p. 16.
9 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 503.
10 O termo alemão Geschichte não deixa de fora a raiz da palavra destino. K. Löwith lembra que isso não é
possível em outras línguas europeias: I giochi di parole, caratteristici del concetto heideggeriano di storia, sul
termine “storia” nel significato di sorte (Geschick), ventura (Schickung) e destino (Schicksal) non si possono
imitare nelle altre lingue europee. Storia, histoire e history non hanno nulla in comune con destino, destin e
destiny. LÖWITH, K. Storia e fede. Roma-Bari: Laterza & Figli, 1985. p. 126.
11 PANNENBERG, Wolfhart. Anthropologie in theologischer Perspektive. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht,
1983. p. 472.
12 LÖWITH, K. Significato e fine della storia I presupposti teologici della filosofia della storia. Milano: il Saggiatore
S.P.A., 2010. p. 24.
13 LÖWITH. Weltgeschichte und Heilsgeschehen, p. 11-12. “Nos objetivos de Troeltsch e Dilthey de superar as
suposições dogmáticas da teologia e da metafísica da história, a fé dogmática no valor absoluto da história
constituiu como tal o único e autêntico parâmetro”. Ibid. [Tradução nossa].
14 Ibid., p. 9.
15 AGOSTINHO, Santo. De Civitate Dei contra Paganos, Opera Omnia, XI, 17. Disponível em: http://www.
augustinus.it/latino/cdd/index2.htm. Acesso em: 13 set. 2022.
16 ABBAGNANO. Dicionário de Filosofia, p. 505.
48

O conceito de futuro ou fim da história, na perspectiva judaico-cristã, foi subs-


tituído no contexto moderno. Isso ocorreu devido ao aprimoramento da razão. É inte-
ressante notar que todos aqueles que vão seguir a abordagem histórica do iluminismo
ou do idealismo alemão cairão nas tramas da imanentização subjetiva e horizontal da
história. Voltaire acabou tornando-se um referencial neste sentido, pois “o sentido e
o fim da história consistem em aprimorar, pela própria razão, as relações humanas,
tornar os homens menos ignorantes, ‘melhores e mais felizes’”.17
Então, conforme alguns autores modernos, sobretudo Hegel e Marx, a “consciên-
cia histórica” não é mais somente um a priori diante dos fenômenos, como pensava
Kant; para aqueles, ela é o próprio movimento concreto e dialético de autoconhe-
cimento. Marx vai falar de “consciência histórica” como interpretação do passado,
mas em vista de uma transformação do presente pela práxis e a criação do futuro.
Entretanto, será a filosofia hegeliana a primeira a exprimir a colossal tentativa da

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subjetividade moderna de mensurar o espaço da transcendência sobre o mundo e a
profundidade da interiorização do mundo no espaço das criações culturais ocorridas
nele.18 Como expõe Löwith, “nem o paganismo nem o cristianismo se entregaram
à moderna ilusão de que a história é uma evolução progressiva, na qual o problema
do mal e do sofrimento se resolve por sua paulatina superação”.19 O próprio Hegel,
seguindo em muito o que pensara Agostinho,20 propõe o sentido da história como
algo que transcende o conhecimento possível do homem. A filosofia e a teologia
da história têm de ocupar-se dos fundamentos e das metas últimas, temas que os
historiadores secularizados não puderam assumir. A história para Hegel, diferente
do que pensou Marx, assume um sentido progressivo, não somente até a revolução
do proletariado como realização escatológica imanente no mundo; diferentemente,
é um movimento histórico como um dado progressivo, onde a ideia do cristianismo
deveria se realizar cada vez mais no mundo.21
A compreensão de história ou de historiografia, conforme elaborada no contexto
moderno e positivista, contexto de exacerbação dos valores da razão e do sujeito,
certamente não se enquadra na forma antiga de fazer ou de contar a história. Pela
inserção da noção de sujeito como consciência histórica, isso não somente garante
a individualização dos membros com o acontecer da história; mais ainda, eles são
integrados ao mundo, aos grupos e aos acontecimentos. História descrição e história
realidade revelam a própria historicidade da consciência, permitindo projetar um
sentido, uma inteligibilidade para os acontecimentos e para a experiência vivida
como história.22

17 LÖWITH. Weltgeschichte und Heilsgeschehen, p. 118. O autor comenta que os gregos foram mais humildes,
pois não estavam preocupados em buscar o sentido final da história; contentavam-se em contemplar as
maravilhas do cosmo, explica-se assim a teoria do eterno retorno.
18 VAZ. Ontologia e história, p. 180ss.
19 LÖWITH. Weltgeschichte und Heilsgeschehen, p. 13.
20 Ibid., p. 67. A diferença entre Agostinho e Hegel consiste em que este vai enquadrar a religião cristã na
perspectiva especulativa, racional. A tarefa da história é que a religião apareça como razão humana.
21 Ibid., p. 41.
22 VAZ. Ontologia e história, p. 166.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 49

O termo “consciência histórica” é o que constitui, sobretudo depois de Hei-


degger, aquilo que dinamiza a historicidade como abertura para o ser no tempo, pois
a história como descrição revela-se ao homem como historicidade da consciência. É
a historicidade da consciência que permite a projeção de um sentido histórico como
inteligibilidade ocorrida na temporalidade dos fatos em relação ao ser de consciên-
cia.23 O conceito de historicidade implica, obrigatoriamente, a noção de sujeito livre
diante da história.24 Neste ponto, cabe falar de mútuo acontecimento: a história faz
o homem e o homem faz a história, pois o sujeito realiza a si mesmo atuando no
mundo histórico, assim torna-se decisiva a relação antropologia e história.25 Sem o
intercâmbio permanente entre homem e história, isto é, consciência e fatos, certamente
a história seria totalmente vazia de sentido. Sabe-se que a história se contrapõe à
primeira natureza.26 Nos movimentos temporais em seu conjunto e, para além da
temporalidade, a história almeja um sentido meta futuro.27 Trata-se de uma dinâ-
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mica que pode melhor ser compreendida à luz do olhar da tradição judaico-cristã;
tal perspectiva supera certo fechamento histórico da estrutura cíclica do mundo da
antiguidade grega.28
O conceito de historicidade está relacionado ao historicismo; obviamente,
adquire um sentido mais complexo a partir do movimento história-consciência,
sobretudo no existencialismo. Sua finalidade se concentra na verdade da história,
contrapondo ao anseio de busca do ideal metafísico.29 Não obstante, ele exprime
também o movimento da história e suas implicações efetivas na vida e na cons-
ciência do ser humano. É a pessoa que faz e sofre os resultados da própria história;
também ela, relê a história no seu conjunto de significados; atualizando-a para o
presente. Já no sentido existencialista, em Heidegger, sobretudo a historicidade, de
uma parte, busca-se superar o relativismo historicista; assim, procura esforça-se, de
outra parte, em vista de conduzir a reflexão sobre o homem ou o aprofundamento
da subjetividade para além do naturalismo positivista.30 Como entendeu Blondel, ou
o homem se fecha definitivamente na sua condição de finitude ou, ao contrário, se
abre arriscadamente ao infinito.31

23 Ibid., p. 166.
24 PANNENBERG. Anthropologie in theologischer Perspektive, p. 478. O teólogo luterano entende que Heidegger
concebeu a historicidade do homem como uma constante de sua estrutura existencial que precede a toda
experiência histórica concreta.
25 Ibid., p. 488.
26 LÖWITH, K. Significato e fine della storia I presupposti teologici della filosofia della storia. Milano: Il Saggiatore
S.P.A., 2010, p. 17s. Sem entrar nos pormenores dos debates, sobretudo no contexto moderno, “primeira
natureza” quer significar o mundo posto como tal diante do homem. Ela representa todas as coisas intocadas
na sua forma de ser. Aquilo que seria cunhado como mundo natural. Ao dizer que a história contrapõe a
tal realidade, então a filosofia vai falar de uma “segunda natureza”; essa segunda, nada mais seria que a
intervenção racional do ser humano diante das realidades, é a cultura como tal.
27 LÖVITH. Weltgeschichte und Heilsgeschehen, p. 15.
28 ABBAGNANO. Dicionário de Filosofia, p. 503.
29 PINAS, Romildo Henriques. A salvação para todos. São Paulo: Loyola, 2018. p. 126.
30 VAZ. Ontologia e história, p. 185.
31 FRIES. Heirich. Teología Fundamental. Barcelona: Herder, 1987. p. 281.
50

2. Revelação de Deus por meio da história de Israel e sua plenitude


em Jesus Cristo

2.1 História e revelação

O conceito moderno de história, processado nas trilhas do racionalismo pré-ilu-


minista e nas malhas da razão instrumental, não deixou muito espaço para preservar
na sua inteireza teológico-transcendental o sentido místico-religioso da revelação de
Deus na história. As diversas abordagens sobre a história ou a filosofia da história e
suas críticas resultam da arrojada reviravolta racional-epistemológica que será forjada
ao longo de pelo menos cinco séculos, como faz ver o pensador Charles Taylor.32
O resultado dos avatares históricos da contemporaneidade, todos, cada um na sua

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especificidade epistemológica, arribados no território da razão instrumental, seja ela
idealista ou materialista, não resulta em nada diferente, mas tem como consequência
a imanentização do sentido religioso transcendental que demarcou a história ocidental
desde os primórdios da tradição judaica e que fora culminado na experiência defi-
nitiva da fé cristã em Jesus Cristo. Os dois grandes operários em tamanha façanha
foram Kant e Hegel, o primeiro com a chamada “revolução copernicana”, em que
colocou o sujeito como centro determinante do saber histórico-racional. Hegel, no
momento em que translada para dentro do processo histórico a esperança cristã e seu
cumprimento escatológico último, fazendo ocorrer nela mesma, pela dinâmica do
espírito, seu juízo, então emerge a supremacia da história, pois ela se justifica por si
mesma.33 O que permeia a mentalidade racionalista moderna, como consequência,
acaba determinando o esvaziamento do sentido judaico-cristão de revelação. Com
isso, ocorre uma rejeição do sentido sobrenatural do conceito de revelação. Mesmo
quando se afirma a ideia de Deus, faz-se ao modo do deísmo; trata-se de um Deus
esquadrejado nos moldes da razão.34
A história, quando olhada na perspectiva judaico-cristã, funda-se nas bases de
perguntas e respostas que buscam um sentido no seu interior para toda criação e,
também, para um futuro promissor já revelado definitivamente em Jesus Cristo.35 A
inquestionável tarefa da teologia, na perspectiva histórica, é integrar a historicidade
humana nos seus eventos e acontecimentos corriqueiros da vida ao projeto integral
de Deus para a pessoa. Esse princípio estava contido na cultura desde o Israel Antigo
e fora desenvolvido no contexto cristão da teologia da história. À luz da tradição
judaico-cristã, a historicidade não quer ser compreendida aqui como a característica
do que é histórico, do acontecido e de que pode ser demonstrado por uma metodologia
adequada, permitindo assim identificar os eventos históricos para além da pura natu-
reza. Diferentemente, visa compreender a historicidade como a condição da pessoa

32 TAYLOR, Charles. Uma era secular. São Leopoldo: Unisinos, 2008. p. 41ss.
33 LÖWITH, Karl. El Hombre em el centro de la historia. Barcelona: Herder, 1998. p. 253.
34 FRIES. Teología Fundamental, p. 269.
35 PANNENBERG, Wolfhart. Grundfragen systematischer Theologie. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht,
1967. p. 22.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 51

inserida na dinâmica da vida, fato que ocorre mesmo quando a pessoa se encontra
situada no tempo e no espaço. Na verdade, a pessoa é solidária com o passado histó-
rico de sua existência, e, ao mesmo tempo, dele se liberta e se projeta livremente na
direção do futuro como transcendência e mistério. Futuro esse já realizado na pessoa
de Jesus Cristo como plenificador da história do homem. O sentido de historicidade
quer, de certa maneira, se opor ao conceito de historicismo; almeja compreendê-lo
numa perspectiva dinâmica, de modo que ao reconhecer os fatos e eventos aconte-
cidos no passado, a história se encarrega de atualizá-los no seu viés transcendental.
Naturalmente, quando esses eventos são eventos religiosos, então essa atualização
projeta tais acontecimentos para o um futuro escatológico, absoluto.
Como ficou patente, sobretudo na primeira parte do século XX, a teologia da
história permite à fé cristã corrigir o rigor cético da teologia existencial de R. Bult-
mann e Gogarten, ao entenderem que a história se resolve na simples historicidade
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da existência; corrige também a visão de Martin Kähler quando entendia o conteúdo


real da fé como supra-histórico.36
A obra publicada pelo grupo de jovens teólogos da Universidade de Heidelberg,
Offenbarung als Geschichte, será um marco definitivo para a compreensão do tema
da revelação à luz da história. Ainda em tempos quentes das teses de demitologização
defendidas por Bultmann; por sua vez, o jovem Pannenberg apresenta como primeira
tese de seu texto da obra referida acima, a afirmação de que Deus não se revela de
forma teofânica, mas indiretamente pelos eventos da história.37 Para explicar tal
afirmação, o autor perfaz o caminho da revelação no contexto da história de Israel.
Mostra como Javé usou das mediações para se fazer presente na vida do povo por
meio da eleição e da realização das promessas. O propósito fundamental da teologia
da história da revelação, por um lado, corrige o paralelismo ao qual caiu Cullmann
ao delinear uma história da salvação distinta da história do mundo, mostrando que
a história do mundo se desenvolve fora da história da salvação (Heilsgeschichte);38
por outro, de certo modo, ainda corrige a tensão (Spannung) entre transcendência e
história, pois a história já é crescimento para uma plenitude.39
Finalmente, é importante considerar o debate sobre a filosofia da história e seus
questionamentos emergentes desde Kant, Hegel, Dilthey e Heidegeer, debate desen-
volvido também por parte dos teólogos da história pós-bultmanianos. Na verdade, o
que subjaz à dinâmica epistemológica em torno do problema em relação à história é o
esforço em formular uma resposta adequada para seu desenvolvimento à luz da razão
moderna e da subjetividade constituídas no seio dessa mesma razão. O caminho que a
teologia cristã fará, sobretudo no século XX, será aquele de definir o lugar teológico
da história à luz da cristologia. Para essa empreitada, a teologia que antecede o Con-
cílio Vaticano II, como também aquela que vem posterior a ele, pode ser identificada
pelo empenho colossal para resgatar o lugar da revelação e da transcendência como

36 Ibid., p. 22.
37 PANNENBERG, Wolfhart. Offenbarung als Geschichte. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1965. p. 91.
38 GIBELLINI, Rosino. A teologia do século XX. São Paulo: Loyola, 2002. p. 256.
39 VAZ. Ontologia e história, p. 196.
52

partes integrantes da história humana. A revelação passa pelas mediações históricas:


profanas ou não,40 todavia não está concomitantemente suprassumida integralmente
nelas. A história da salvação é irredutível “ao mundo das conexões naturais”.41 O
sentido da unidade da história é uma perspectiva em aberto. O modo que Dilthey
havia pensado a história ainda prevalece para nossos dias, pois estava mais centrado
no aspecto psicológico da experiência histórica; não obstante a isso, sua reflexão
comportava uma perspectiva integradora da experiência de subjetividade e abertura.42
A tarefa da teologia contemporânea consiste em enfrentar a aporia gestada no seio da
epistemologia estritamente racionalista, dialética malsucedida, onde razão e revelação
tornaram-se inconciliáveis. Tal fato ocorre desde Kant – com sua A Crítica da Razão
Pura, onde conceitos metafísicos como “alma”, “mundo” e “Deus” deixam de ser
considerados objetos do conhecimento racional –, até Heidegger, que no conceito
metafísico de Dasein não garante conter a superação da historicidade como fatalidade

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imanente.43 Por mais que esse autor tenha tentado fazer o movimento transcendental
do “ser”, e, por meio do conceito de historicidade, corrigir o relativismo historicista,
ou sua busca de superar o naturalismo positivista, todavia, acabou ainda enredado na
trama de um “ser” simplesmente imanentizado, reduzido de certo modo à consciência
histórica, essa fadada ao fim que é um Sei zum Tod.44

2.2 A história enquanto revelação de Deus ou história e a revelação


de Deus?

Quando se olha para o ser humano como um ser religioso, pode-se dizer que o
sentido da revelação é caracterizado pela autocompreensão de toda religião como de
valor divino. Barth havia entendido isso quando atestou que a revelação é a “palavra de
Deus” pronunciada na história humana.45 Uma síntese textualmente encantadora como
dinâmica histórica da revelação de Deus está belamente esculpida como que um florão
no portal de entrada para a Carta aos Hebreus; nela estampa o caminho histórico da
autocomunicação de Deus ao longo dos tempos: “muitas vezes e de modos diversos
falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos,
falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e pelo
qual fez os séculos” (Hb. 1,1-2). Esta frase demarca na história da humanidade o valor
progressivo da revelação de Deus e o sentido histórico de sua plenitude na pessoa de
Jesus Cristo, Verbo encarnado. Então, mesmo que brevemente, cabe neste momento
do estudo colocar alguns elementos da história da salvação como traços constitutivos
da experiência de Israel e das comunidades cristãs, essas últimas fundadas em torno
da pessoa de Jesus Cristo como plenitude da revelação de Deus.

40 SCHILLEBEECKX, Edward. História humana revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 2003. p. 33ss.
41 VAZ. Ontologia e história, p. 175.
42 PANNENBERG. Offenbarung als Geschichte, p. 497-498.
43 PANNENBERG, Wolfhart. Uma historia de la filosofía desde la idea de Dios. Salamanca: Sìgueme,
2001. p. 222.
44 VAZ. Ontologia e história, p. 185.
45 QUEIRUGA, Torres Andrés. A revelação de Deus na realização humana. São Paulo: Paulus, 1995. p. 20.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 53

2.2.1 A fé na revelação divina em Israel

A revelação é a aceitação da fé. Ao Deus que se revela e fala ao povo deve-se


crer e obedecer. Para toda a antiguidade é comum e natural a aceitação de experiências
revelatórias onde Deus se dá a conhecer em instrução e orientação ao ser humano.46
A fé é adesão que compreende a consciência e o amor. Amor como resposta a Deus
que se doa e se abre graciosamente ao ser humano. A resposta humana à revelação
é dom e graça. É ao Espírito e aos seus dons que se deve atribuir o aprofundamento
da revelação. O Espírito confere uma ciência mais profunda da revelação.47 A fé se
liberta da estreiteza de um procedimento puramente intelectualista e passa a dinami-
zar a própria vida do crente. Ela não pode ser entendida de outo modo: totalmente
ação de Deus como também totalmente ação da pessoa humana.48 Como mostra a
Sagrada Escritura, Israel se vê envolvido com Deus no processo de crescimento de
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sua fé relacional e histórica.


Conforme a Dei Verbum, Deus cria por meio de sua Palavra, no intuito de abrir o
caminho de uma salvação superior, manifestando-Se a Si mesmo desde os primórdios
a nossos primeiros pais. Ele vela permanentemente pelo gênero humano; a fim de dar
a vida eterna a todos aqueles que, pela perseverança na prática do bem, procuram a
salvação (Rm. 2,6-7). A seu tempo, chamou Abraão a fim de fazer dele um grande
povo (Gn. 12,2-3), ao qual, depois dos patriarcas, ensinou, por meio de Moisés e dos
profetas, a reconhecê-lo como único Deus vivo e verdadeiro.49
Israel não tem somente um termo para falar da revelação de Deus. Conforme a
história vai sendo processada, também o conceito de revelação não deixa de passar
por transformações. Os acontecimentos da vida e a atitude de escuta da “Palavra de
Deus”, transmitida por vários mediadores, são manifestação da vontade de Deus junto
do povo. A Palavra de Deus-Javé tem poder transformador; ela demarca o caminho
de libertação e salvação, assim foi com Abraão, com Moisés e com os profetas.50 Os
eventos históricos da saída do Egito, da tomada da terra, a realização da aliança, bem

46 BÖTTIGHEIMER, Christoph. Manual de Teologia Fundamental. A racionalidade da questão de Deus e da


revelação. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 193.
47 LATOURELLE, René; “O’COLLINS, Gerald (org.). Problemas e perspectivas de Teologia Fundamental. São
Paulo: Loyola, 1993. p. 333.
48 BÖTTIGHEIMER. Manual de Teologia Fundamental. A racionalidade da questão de Deus e da
revelação, p. 296.
49 PAULO VI. Constituição Dogmática Dei Verbum: sobre a revelação divina. In: COMPÊNDIO DO VATICANO
II. Constituições Decretos Declarações. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. n. 3.
50 QUEIRUGA. A revelação de Deus na realização humana, p. 55ss. Queiruga expõe que o movimento profético
é um dos mais impressionantes de toda história religiosa da humanidade. Trata-se de certa imediatez do
contato com Deus que impressiona, pois o profeta fala, revela em nome de Deus. Interessante também
observar que o profeta não cai como um meteoro; ele está dentro de uma tradição, família de profetas. Os
enunciados proféticos normalmente começam com: “assim diz Iahweh” ou “palavra de Iahweh” e outras. O
profeta encarna, assume a Palavra de Deus. Chega até a comê-la como ocorre com o profeta Ezequiel; a
palavra queima as entranhas como atesta Jeremias. O profeta verdadeiro fala em nome de Iahweh, cobra
fidelidade à palavra e chama para a justiça. A revelação vai acontecendo por meio do drama pessoal do
povo ou dos próprios profetas.
54

como os momentos difíceis dos quarenta anos de deserto ou no Exílio da Babilônia,


em todos esses fatos, Deus vai se autorrevelando ao povo como o Deus da história.
Importante realçar que, mesmo sendo o Deus da história, Javé não está envolvido com
ela ao ponto de se confundir; por isso, ao mesmo tempo, Ele é o Deus transcendente
que habita as alturas dos céus; continua sendo a realidade que tudo determina, o Todo
Poderoso. Ele é o Santo, e por isso, distingue-se completamente do mundo.51
A Bíblia, sobretudo os primeiros 11 capítulos do Livro do Gênesis, expõe os fun-
damentos etiológicos de uma protologia. Tais fundamentos se alicerçam na ideia de
uma revelação primordial identificada num contexto em que Israel, como post factum,
experimenta o sentido revelador de Deus como criador e salvador. A base dos capítulos
mencionados corrige as teogonias do Oriente Médio pela fé em Javé; reconhece que
tudo é obra de suas mãos. A criação não revela somente a existência de Deus, mas tam-
bém sua essência, seu poder, sua sabedoria e sua bondade. Como se vê no contexto do

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pós-exílio, Javé, enquanto Deus da aliança, é o Senhor do universo, o criador do céu e
da terra.52 O longo caminho histórico que passa pelo nomadismo até o momento em que
Israel se estabelece como nação sedentária, sobretudo no contexto da tomada da terra
e da monarquia, essa última como período que possibilita a redação da memória de fé
processada ao longo dos séculos, então, ao longo de todo processo histórico, nota-se a
estabilização da centralidade do culto a Javé como único Deus; passa-se do henoteísmo
para o monoteísmo. Javé torna-se o único Deus para o povo.53
A perspectiva bíblica da revelação, conforme relatada na promessa feita a
Abraão, indica a dinâmica relacional de Deus e homem: Ele promete e Abraão acre-
dita incondicionalmente. O chamado de Abraão funciona como paradigma da relação
Deus e Israel. Por isso, Abraão é chamado de nosso pai na fé (Rm. 4, 16). A aliança
com Abraão pode ser caracterizada por dois elementos indispensáveis. Tais elementos
são centrais para se falar da revelação de Deus no Primeiro Testamento; são eles:
promessa e cumprimento. Em Abraão, Javé se mostra como o Deus da promessa. No
décimo segundo capítulo do Gênesis, inicia-se a revelação especial de Deus como
história da promessa. Então, a promessa é realizada no acontecer de uma sucessão,
de uma descendência, na forma de futuro. A esperança e o cumprimento do trato de
Deus com Abraão tornam-se possíveis no filho Isaac. Como vai dizer posteriormente
a tradição neotestamentária: ‘Abraão esperou contra toda esperança’ (Rm. 4,18). Ele
é o marco da aliança feita com Javé; ele torna-se modelo de fidelidade para os outros
patriarcas, Isaac, Jacó, José. Os relatos dos patriarcas atestam o modo de ser de Israel
como propriedade de Deus. Isso se torna kerigmático para o povo quando recorda o
passado como quando vivencia o presente.54
Outro personagem imprescindível para entender a revelação em Israel é Moisés.
Ele torna-se o profeta por antonomásia, pois assume a condição de mediador junto ao
Faraó. As descrições teofânicas presentes no Livro do Êxodo constituem uma narrativa

51 FRIES. Teología Fundamental, p. 313; Lv 11, 44.


52 BÖTTIGHEIMER. Manual de Teologia Fundamental. A racionalidade da questão de Deus e da
revelação, p. 197.
53 FRIES. Teología Fundamental, p. 313.
54 Ibid., p. 303.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 55

teológica do processo de libertação do Egito com a mediação de Moisés. Javé atesta,


como fizera a Abraão e aos patriarcas, sua fidelidade permanente. Agora resta ao povo
corresponder confiantemente ao projeto de libertação. Ao mostrar-se a Moisés como
o Deus dos pais, Javé garante a autenticidade da revelação. Não suplanta o processo
histórico como tal, mas o vincula ao presente de sofrimento na terra egípcia.
A tomada da terra e, posteriormente, a instalação da monarquia são conquistas
que o povo obtém depois do longo deserto. Imiscuindo com outros povos vizinhos,
a nação eleita por Deus cai em tentação, esquece o elo de fidelidade e irrompe-se
na idolatria. O longo percurso que vai desde a tomada da terra, a constituição da
monarquia e a segunda escravidão no exílio de 586-539 expõe o sentido profano que
o povo vai assumindo, deixando em esquecimento a fidelidade a Javé e aderindo a
Baal e Astartes. Os momentos de grande crise serão marcados pelo grito dos profetas
que apelam para a aliança feita com os pais; retomam o evento da libertação do Egito
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e da tomada da terra como marcos da justiça de Javé55 (Ex. 19, 4-6). A opção pela
monarquia, exigência feita ao último Juiz, Samuel, se aos olhos políticos poderia
indicar que Israel estava progredindo como Nação, aos olhos da fé na revelação, tal
ato indica uma apostasia, pois somente Javé deveria ser realmente Rei. Não obstante
o dilema, Deus aceita o pedido do povo, mas que o rei seja uma mediação de justiça
e santidade. De algum modo, isso será retratado na figura do rei Davi. Contudo a
monarquia fracassou pois, o povo foi infiel, os reis falharam na sua submissão ao
Senhor; doravante, aquilo que Davi representava, a unidade do povo, com sua morte
e com os conflitos sucessivos, vai desaguar na divisão do reino do Sul e do Norte,
bem como na deportação do povo para a Babilônia.
O profetismo teve papel decisivo para desenvolver em Israel uma consciência
messiânica contida primordialmente na palavra como instrumento da autocomunica-
ção divina. É relevante recordar que o profeta era identificado com a “boca de Deus”.
Todo verdadeiro profeta fala em nome de Deus.56 O tema da revelação mediante a
“palavra de Deus”, no Primeiro Testamento, pode ser expresso em três aspectos bem
definidos: a iniciativa do Senhor; a resposta humana; o efeito da palavra sobre a
vida e a história do povo.57 A linguagem profética e apocalíptica vai prenunciar o dia
de Javé, prevendo uma época messiânica, tempo em que Deus mandará o Messias
libertador, o Justo, o Príncipe da paz (Is. 7,1-25; 9,1-6; 11,1-16); ele será um Bom
Pastor (Ez. 34,23-31) ou será ainda identificado com os que sofrem; será humilde
e agirá em favor dos fracos; será o Redentor do mundo (Is. 42, 1-9.18-25). Dentro
da moldura profética houve espaço para formular o sentido revelador de Deus na
pessoa de Jesus Cristo. Para a tradição neotestamentária, Jesus é a verdade de Javé,
que se fez carne, tornando-se o Messias de Deus, o Libertador. Abstendo-se de
considerar a visão progressiva da revelação em Israel, se tornaria incompreensível
o mistério de Deus revelado em Jesus de Nazaré. Deus é conhecido primeiro por
sua manifestação no cosmo. Depois, se revela por suas sucessivas intervenções na

55 Ibid., p. 305.
56 FORTE, Bruno. Teologia da História. Ensaio sobre a Revelação, início e a consumação. São Paulo: Paulus,
1995. p. 127.
57 Ibid., 127.
56

história. Cada uma dessas revelações, ultrapassando aquela que veio antes, não a
destrói, por sua vez, a assume.58
Não obstante todas as contradições, a literatura veterotestamentária, tanto as
grandes fontes Javista, Eloísta, Deuteronomista ou Sacerdotal, quanto textos profé-
ticos ou sapienciais vão identificar, ao longo de séculos, que na base da constituição
da nação de Israel está a ação de Deus. Javé é um Deus permanentemente atuante
na vida do povo, fato que acontece desde o chamamento de Abraão, dos grandes
patriarcas, da libertação da escravidão no Egito por meio de Moisés. Os textos do
Pentateuco evidenciam a fidelidade de Javé e a renovação contínua de sua promessa.
Se a promessa fracassa, não é da parte de Javé, mas consequência da infidelidade do
povo.59 A história de Israel é constituída pela tradição relacional entre Javé e o povo.
Trata-se de um drama permanente e não pouco conflituoso, pois o povo é inclinado à
idolatria e à infidelidade. Esse dado contrapõe-se ao sentido de exclusividade exigido

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por Deus. Tal exclusividade está contida na profissão de fé como fórmula central do
culto “ouve, Israel” (Dt. 6,4-9).
Quando tomamos as literaturas histórica, sapiencial e profética há como identifi-
car um processo progressivo no acontecimento da revelação, pois se trata de um dado
muito entranhado na vida cotidiana da fé do povo. Moisés e muitos outros personagens
do povo falaram com Deus ou ouviram sua voz (Ex. 33,20; Is. 6,5; 1Sm. 3,1-21; Is.
6,1-7). A palavra por Ele revelada determina a história de Israel ao longo da vida,
define sua organização como sociedade. Esse estado de coisas é constatável desde
os Patriarcas até os Juízes, desde a Monarquia até o Profetismo.60 A ação de Deus é
onipresente e oni-compreensiva, tais elementos estão implícitos ao nome de Javé.61
A história do povo é história de Deus, fato evidente na manifestação contundente de
Deus a favor do povo (Ex. 7,17;8,16.18; 9,14); como também na passagem do Mar
Vermelho, momento decisivo da fé em Javé como libertador (Ex. 14). Dos vários
eventos que marcam o percurso histórico da relação de Deus com o povo, certamente
foi decisiva a realização da Aliança no Sinai (Ex. 20,1s), bem como a entrada na terra
prometida (Js. 1-5). Tais acontecimentos trazem para o presente aquilo que estava
caracterizado como promessa. Não obstante isso, a promessa sempre terá um viés
escatológico, inesgotável.
Como se nota, a história é o lugar dos feitos de Deus. Israel vai organizando a
sua experiência pela ação de mediadores: patriarcas, juízes, profetas. Por meio de tex-
tos e conjuntos literários vai-se construindo o sentido da revelação como experiência

58 DANIÉLOU, Jean. Sôbre o mistério da história. A esfera e a cruz. São Paulo: Herder, 1964. p. 127.
59 BÖTTIGHEIMER. Manual de Teologia Fundamental. A racionalidade da questão de Deus e da revelação, p.
199s; FRIES. Teología Fundamental, p. 304-306. É significativo observar que o clima vivido no Egito colocava
em xeque a relação de Israel com Javé. O Deus dos pais tornava-se fraco diante do poder régio. O evento
de libertação torna-se um marco para Israel, pois Deus mostra sua justiça e poder por meio de Moisés. A
saída do Egito torna-se um marco etiológico para as futuras gerações conforme a história ulterior. As crises
que vão surgir em Canaã, o dilema diante dos deuses estranhos, tudo isso reflete a vulnerabilidade da fé e
a necessidade de resgatar os fundamentos da tradição dos pais.
60 FISICHELLA, Rino. Introdução à Teologia Fundamental. São Paulo: Loyola, 2000. p. 71.
61 FRIES. Teología Fundamental, p. 304.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 57

da relação de Deus com o povo.62 A palavra falada e posteriormente registada em


textos é a expressão codificada e vivenciada da revelação; a ruah se cristaliza no
dabar de Javé, dabar verdadeiro e que vai se efetivando na história. A Aliança
sinaítica está contida nas dez palavras (Ex. 20,1; 34,1.27s; Dt. 4,10.13.36; 5,5.19;
9,10; 10,2.4). O destino do povo é obra da palavra de Javé; com isso, constitui em
Israel a religião da Torá.
E a pergunta sobre a verdade da história acha sua resposta no Deus dos pais,
pois Ele é quem se revela em seus feitos como Verdade, revela a sua identidade; suas
obras são verdadeiras e justas (Sl. 111,7).63 Quando Moisés interroga pela identidade
de Deus, então vem uma resposta tão clara e tão obscura: “Eu sou aquele que está
sendo” ou “Eu sou o ‘Eu-estou aí”’(Ex. 3,13s). A apresentação exprime de certo
modo o sentido teofânico da revelação como tal, apesar de, ao mesmo tempo, ocultar
o divino no conteúdo da própria afirmação, pois ela resguarda na própria dinâmica
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do diálogo o sentido de mistério absoluto do “ser” de Deus. Deus se apresenta como


o que Ele já fez e promete fazer. Trata-se, portanto, de uma promessa dinâmica e
capaz de se efetivar.64
Na manifestação de Deus, de um lado o Mistério como tal permanece; por outro,
a verdade de Deus como revelação histórica está na identidade do revelador.65 O Deus
do Primeiro Testamento tem nome: Ele não é alguém estranho e alheio à vida do povo.
Quando se manifesta para Abraão deixa claro: “Eu sou o Deus poderoso” (Gn.17,1s),
o mesmo princípio ocorre na manifestação do Sinai para Moisés. Há nestas teofanias
algo que identifica Deus com o sobrenatural, destarte, ao mesmo tempo se aproxima
da história. Ele é um Deus que também tem história: “Deus de Abraão, Isaac e Jacó”
(Ex. 3,6). A condição de povo eleito possibilita a Israel ver os acontecimentos como
salvíficos (Heilsgeschichte). A consciência histórica adquire um sentido singular em
Israel, isso foi constatado por meio de estudos hodiernos daquele contexto cultural.
Tal sentido emerge da compreensão de uma relação que entende a história no seu
sentido de cumprimento.66 A identificação de Deus como criador e salvador demarca
a evolução unificadora da fé do povo de Israel. O manifestar-se de Deus é também

62 QUEIRUGA. A revelação de Deus na realização humana, p. 30.


63 PANNENBERG, Wolfhart. Grundfragen systematischer Theologie, Band 2. Göttingen: Wandenhoeck &
Ruprecht, 1980. p. 117.
64 POUSSEUR, Robert; TEISSIER, Jacques. Gli interventi di Dio nella storia degli uomini. Torino: ELLE DI CI,
1982. p. 60.
65 THEOBALD, Christoph. A Revelação. São Paulo: Loyola, 2006. p. 29s. O sentido que subjaz ao conceito de
revelação, apokalýpten (descobrir) ou revelare (desvelar), ao mesmo tempo que indica o desvelar de um
mistério ou de uma novidade absolutamente inédita, resguarda o aspecto de ocultamento, pois não se trata
de uma revelação apenas de fenômenos naturais. A palavra “revelação”, conforme usada na Escritura, não
significa exatamente ter tudo transparente e alcançável pelo racional. Ela traz o sentido de destino do homem
em Deus, destino ad ifinitum, pois Deus é o fundamento da eternidade e do absoluto de todas as realidades.
Revelar significa também abrir o horizonte para o indeterminado, o inominável que é Deus. Por fim, cabe
dizer que o ideal de transparência forjado na ração moderna Aufklärung não comporta suficientemente o
sentido complexo da palavra revelação no sentido teológico.
66 PANNENBERG, Wolfhart. Grundfragen systematischer Theologie. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht,
1967. p. 23.
58

um ocultar, pois sempre vai supor a fé; Deus nunca vai se mostrar frente a frente,
mas de costas (Ex. 33,23) ou por suas mediações, Moisés, Elias, Jesus.67
Ainda cabe considerar, já que faz parte do processo revelatório, a perspectiva de
futuridade. Pois o passado e o presente estão em vista do futuro de Deus. Conforme
o profetismo, a marcha em direção ao futuro demarca o destino da promessa de Deus
feita a Israel. Todos os acontecimentos, por maiores que pareçam ser, apontam para
o acontecimento pleno e definitivo do agir de Deus como cumprimento, plenitude e
realização de seu reinado.68 Não pretendemos desenvolver no presente estudo, mas
a perspectiva de futuro está amplamente delineada tanto no profetismo quanto na
literatura apocalíptica. Essas literaturas vão abrir horizonte para a esperança judaica
do Messias como o enviado de Deus. A esperança messiânica torna-se mais nítida,
sobretudo, nos últimos dois séculos que antecedem a Encarnação do Verbo.
Finalmente, há de se perguntar: como Israel chegou à noção de uma história

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impregnada pela fé em Javé como Deus manifesto, revelado? Certamente, toda a
experiência da realidade do mundo – os eventos acontecidos em favor do povo, a
saída do Egito de forma triunfante, a posse de uma Pátria, assim como o conjunto
da sucessão de eventos extraordinários – vai demarcando a certeza cada vez maior
da presença de Deus, atuando em sua história.69 A Escritura relata determinados
eventos de forma exuberante: Deus age diretamente em favor do povo e contra
seus inimigos (Ex. 14,16.21ab. 22.26.27a. 28a). Não somente na libertação do Egito
(entretanto, como se vê em vários textos bíblicos, ao longo de séculos), Javé atua
permanentemente em favor de Israel. É obviamente necessário considerar a media-
ção cultural-histórica tanto para ler a experiência da revelação na vida do povo
quanto para compreender aquilo que foi registrado na Escritura. A revelação se faz
por relações, há uma linguagem, há um contexto histórico, há uma cultura, não tem
como ser de outro modo, mas tais mediações garantem a decodificação e a validade
da revelação de Deus. A revelação está contida dentro de um contexto de vida, ela
não é um oráculo isolado de um vidente ou um profeta; trata-se da experiência de
vida do povo com o sagrado70.

2.2.2 Jesus Cristo como plenitude da revelação e da história

Para a Sagrada Escritura, tanto no Primeiro quanto no Segundo Testamentos,


a manifestação de Deus acontece por via da história. No Primeiro Testamento,
Deus fala de diversos modos e atua também de várias maneiras como alguém
que garante a vida de Israel. Na história o povo responde ao Senhor pela fé. Tal
moldura determina a plenitude da revelação histórica de Deus acontecida no envio
de seu Filho, realizando de vez a manifestação plena da salvação.71 A história da
revelação e da Palavra atingem o vértice com o evento da Encarnação do Verbo.

67 THEOBALD. A Revelação, p. 59.


68 FRIES. Teología Fundamental, p. 316.
69 QUEIRUGA. A revelação de Deus na realização humana, p. 49.
70 Ibid., p. 54.
71 CULLMANN, Oscar. Le salut dans l’histoire. Paris: Delachaux & Niestlé, 1966. p. 94s.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 59

Deus, outrora, falou muitas vezes e de várias maneiras, mas nestes dias, que são
os últimos, falou por meio de seu Filho (Hb. 1,1s).
O kerigma primitivo dos cristãos teve como motus central a profissão de fé
em Jesus Cristo como revelação salvífica e plena de Deus. Esse dado perfaz todo o
Segundo Testamento. Sua confirmação busca assentar nos fundamentos da tradição
veterotestamentária, sobretudo a profética e apocalíptica. Por isso, os textos cristãos
terão de recordar a tradição da espera messiânica. É neste diapasão que se enqua-
dram os textos paulinos ou os Evangelhos para explicarem a fé na pessoa de Jesus
de Nazaré como plenitude do evento progressivo da revelação de Deus. Jesus, com
sua missão, seus ensinamentos, curas e fidelidade ao Pai, revela a verdade perfeita
como Palavra vinda de Deus. O projeto do reino é o ápice de tudo aquilo que os
antigos já esperavam; daí entender porque muito cedo Jesus receberá todos os títulos
messiânicos da tradição veterotestamentária: Messias, Salvador, Filho do Homem etc.
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A verdade de Jesus como Cristo foi confirmada para as comunidades cristãs com sua
morte de cruz e ressurreição. Pela ressurreição Deus se revela como verdade cabal
na pessoa de seu Filho amado; por isso ele será professado como o Cristo, Ungido
de Deus. Aquilo que era esperado como futuro na perspectiva profético-apocalíptica
agora tornou-se realidade visível e presente.
O Segundo Testamento diz que é no destino de Jesus Cristo onde encontramos
um fim definitivo e já antecipado para a automanifestação de Deus. Instante em que
a soberania de Javé entra concretamente na história humana: “Agora meus olhos
viram a salvação” (Lc. 2,30). Não por acaso, Paulo aos Gálatas alude à plenitude
dos tempos, pois no tempo presente, continuação dos tempos de outrora da Antiga
Aliança, Deus fala por meio de seu Filho. Na sua vida, morte e ressurreição, a história
chega ao seu Pleroma.72 Todo homem, de agora em diante, sabe o que lhe espera
no futuro. Jesus situa nossa realidade vital à luz da decisão última, Ele nos justifica
definitivamente pela autorrevelação de Deus na história.73 A manifestação histórica
(Encarnação), revelação por mediação humana, confronta a tradição judaico-cristã
com a mentalidade gnóstica que via uma revelação direta de Deus ao mundo.74 No
mesmo diapasão do Primeiro Testamento, a fé dos primeiros cristãos é uma fé demar-
cada pela história; ela resulta da experiência com Jesus Ressuscitado.75
Na Palavra feita pessoa, realiza-se de maneira perfeita o dabar do Primeiro
Testamento, pois Jesus Cristo não somente fala as palavras de Deus, comunicando a
verdade do reino do Pai; ele mesmo provém de Deus como Filho, como Verbo eter-
no.76 Por isso, os Evangelhos estão recheados de expressões que objetivam desvelar
a intimidade de Jesus e sua autoridade como alguém que veio de Deus e, por isso, o

72 PANNENBERG. Grundzüge der Christologie, p. 393s.


73 Ibid., p. 105.
74 A visão gnóstica, presente no contexto do cristianismo primitivo, desvia-se da tradição israelita e cristã no seu
sentido fundamental. Mesmo a teologia da Encarnação, por ter alguma raiz em parte na ideia gnóstica da
revelação, não pode constituir-se tampouco como base autônoma e independente do pensamento teológico.
Para ser compreendida precisa estar ligada à automanifestação histórica de Deus no destino de Jesus de
Nazaré: em sua atividade terrena, em sua morte de cruz e de modo decisivo em sua ressurreição.
75 FRIES. Teología Fundamental, p. 319s.
76 FORTE. Teologia da história, p. 133.
60

revela por excelência. “ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o
Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt. 11,27). A manifes-
tação de Jesus como profeta singular, os seus feitos, milagres e prodígios, sobretudo
o culminar de sua vida com a cruz e ressurreição, tornam-se chave de interpretação
para todo o desenrolar dos tempos, desde a protologia até ao éschaton. Vários textos
neotestamentários vão usar expressões como “‘nova criação”, “nova aliança” etc. Ao
ler a passagem de Isaías na sinagoga de Nazaré, Jesus certifica que aquela profecia
havia se tornado realidade: “hoje se cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem
da Escritura” (Lc. 4,18s. 21).77 Ao fazer tal afirmação, Jesus mostra que para seus
seguidores, diferente do que era vivido na tradição antiga, Deus não é mais o Deus
da promessa, mas da realização no agora da história.78 Os vaticínios messiânicos em
favor dos pobres e sofredores tornaram-se realidade em Jesus de Nazaré. Por sua
vez, cabe observar, embora já tendo presente a plenitude da revelação de Deus em

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Jesus Cristo, ela ainda é marcada pela futuridade do reino; daí entender o sentido da
“segunda vinda” de Cristo. A esperança futura já é prolepticamente realidade no hoje
da história, pois Cristo a desvelou como esperança plena no seu convívio cotidiano
com as pessoas. As suas ações demostraram que esse futuro já é realidade, porém sem
esvaziar o permanente mistério divino. Há de convir que toda história não consegue
esgotar o sentido absoluto da revelação de Deus; há sempre uma reserva escatológica
que permanece velada no Absoluto do mistério. Conforme o Segundo Testamento,
o acontecimento Cristo é o cumprimento das promessas feita ao antigo Israel. Por
isso, os dois Testamentos estão interligados no sentido de promessa e realização, de
história e profecia.79
Finalmente, há de compreender a revelação como um movimento revelador
que parte de Deus, mas conta também com a participação do ser humano, pois Deus
sempre falou ao ser humano, sua Palavra esteve continuamente presente junto de seu
povo eleito. Como parte da pedagogia divina, a Encarnação foi a forma mais perfeita
que Deus teve para falar não mais somente para Israel, mas para toda humanidade,
para todos nós. Esse fato tornou-se possível no momento em que o ser humano viu,
ouviu e acreditou na pessoa de Jesus de Nazaré como o Cristo de Deus. A revelação
é também relação, encontro, recepção na história de todos e de cada um, recepção
acontecida razoavelmente na fé. Sem história não há revelação e sem revelação a
história se esvazia de sentido para a teologia cristã.

3. Razão e revelação: a crise da transcendência perante um


mundo que se fecha no imanentismo imediato
O drama entre imanentismo e transcendência nunca se mostrou de fácil solução.
É incômodo, ainda hoje, o movimento de certo modo “dicotômico” entre revelação
e história ou querigma e história. Esse problema já fora desenvolvido por Bultmann

77 Ibid., p. 134.
78 FIRES. Teología Fundamental, p. 323.
79 Ibid., p. 326.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 61

e seus asseclas. Demitologizar também foi sinônimo de esvaziar o sentido histórico


da fé, fato que assume evidências no contexto cristão moderno quando os “buscado-
res do Jesus histórico” se defrontaram com o esvaziamento do sentido histórico da
Encarnação. Grandes autores como Cullmann, Käseman, Daniélou ou Balthasar pro-
curaram, não obstante os conflitos, refletir sobre o lugar da história diante da revelação
judaico-cristã. Trata-se de um problema que já fora levantado desde o século XIX
e depois no XX; o que estava em jogo na cristologia era a busca do Jesus histórico.
Nos territórios demarcados por R. Bultmann e seus seguidores, esse empreendimento
ocasionou uma profunda crise entre fé e história ou razão e fé. A tendência racionalista
dentro dos temas teológicos é reflexo dos ideais da revolução iluminista, pois a razão
moderna colocou o conteúdo da revelação em um compartimento específico, reservado
à superstição e ao descrédito, fruto de uma sociedade cada vez mais imanentista e
secularizada. O Vaticano I, na Constituição Dei Filius, tentou superar o dilema entre
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fé e razão, entre revelação natural e sobrenatural, contudo não foi resolvido a contento.
Na verdade, perdura até nossos dias uma cultura que se tornou obstáculo para admitir
um sentido transcendente para a história, sentido que responda pelo fim último da
realidade; trata-se de uma cultura fechada, imanente.80
Charles Taylor usa a expressão “estruturas de mundo fechadas” para indicar
o novo modo do ser humano lidar com as realidades que o circunda. Isso possibi-
lita levantar questionamentos sobre verdades que até então eram intocáveis, como
exemplo os “transcendentais”.81 Na verdade, todo arcabouço moderno que Taylor
demarca a partir de 1500 vai-se aprofundando progressivamente até chegar a uma
sociedade fortemente marcada pela secularização, pela autonomia da razão, pela
crítica à cristandade e o fechamento diante do sagrado, sobretudo nos moldes pro-
postos pela fé cristã do modelo de cristandade. O contexto histórico hodierno deu
total autonomia ao ser humano; com isso, não cabem mais mediações que dificul-
tem o acesso direto às realidades. Mesmo quando a pessoa professa uma fé, o faz
fora da ortodoxia das instituições, não tendo que aceitar os dogmas e preceitos.82 A
autossuficiência da razão gerou grande ceticismo perante temas como revelação, fé e
transcendência. Desde o século XVII que o pensamento ocidental inicia a trajetória
de esvaziamento da metafísica; esse ocorrido atingiu frontalmente os dados da fé
na revelação, pois esses são de cunho sobrenatural, não podem estar estritamente
fechados à história e à razão.
O modo de a razão moderna abordar as realidades produziu agudo esvaziamento
do sentido integral do saber humano. A epistemologia clássica procurou construir
o conhecimento das realidades à luz dos fundamentos racionais e ontológicos, fun-
damentos pautados pela ideia de perfeição, de absoluto e de mistério. A inversão
do modelo clássico com a reviravolta epistemológica kantiana resultou no apogeu
reducionista da razão instrumental que não concedia mais espaço para o mistério e
para a ontologia no sentido integrador do ser como tal. Tal cenário fecha as portas

80 FRANÇA, Mario Miranda. Vislumbres de Deus. São Paulo: Paulinas, 2019. p. 31.
81 TAYLOR. Uma era Secular, p. 655s.
82 Ibid., p. 603.
62

à revelação de Deus como gratuidade, impondo a ela um reducionismo ao imanente


da razão como ocorrera no deísmo ou até seu esvaziamento total no ateísmo subje-
tivista de nossos dias. Diante deste contexto, há de se perguntar: então a revelação
não teria mais sentido? Teria sido um equívoco toda a trajetória trimilenar da cultura
humana ocidental que instalou os fundamentos do ser na plenitude da transcendência
para a qual se destina como fim último? Seriam as religiões todas uma farsa? Estas
e outras perguntas podem nos ajudar a delinear, mesmo que de forma brevíssima,
algum rudimento de resposta.
Diante de tais perguntas, cabe resgatar o percurso da ideia de revelação no
contexto do pensamento moderno. A ruptura com a estrutura clássica de pensamento
e com o modelo medieval de cristianismo abriu espaço para a centralidade antro-
pológica moderna e com tal centralidade entra em cena o poderio exacerbado da
razão especulativa. A filosofia moderna coloca tudo sobre o tribunal da razão, como

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fizera Kant. Agora fala-se de uma fé pautada pelas ciências ou de uma religiosidade
racional-deísta. O auge desse percurso será a famosa afirmação de F. Nietsche, de
que Deus estaria morto. Todo esse contexto produziu desmedidas, dificuldades para
a fé na revelação, inclusive questionando a manifestação histórica acontecida na
pessoa de Deus em Jesus Cristo, verdade central para a fé cristã. Entende-se tal
época como tempo de abandono da religião e de seus dogmas.83 Depois daquilo
que Moingt chama de tempo de luto, emergirá no debate teológico dos séculos
XIX e XX uma volta ao problema da revelação e intenso debate sobre a validade
da reveladora história de Jesus de Nazaré como o Cristo de Deus. Autores como
Bultmann, Barth e Tillich, na tradição Protestante, ou Rahner e M. Blondel, na
tradição católica, vão procurar restabelecer o lugar da fé na revelação de Deus
na história. Há quem vá centrar mais no princípio a priori da graça reveladora de
Deus como dádiva de seu mistério, o que ocorre, por exemplo, com Barth; outros,
como vemos, Rahner e Tillich buscaram, em diálogo com a existência e com os
fenômenos que implicam a experiência do ser no mundo, formular, pelas media-
ções antropológicas e históricas, uma teologia da revelação de Deus. Defrontando
com o imanentismo da razão moderna, Rahner vai ser categórico em dizer que
o homem está aberto ao mistério e à revelação, contudo não é um mistério que
possa ser esgotado no horizonte de nossa racionalidade. Deus é autocomunicação
graciosa e plena acontecida em Jesus Cristo. Tal ato é sentido e destino de nossa
existência; não se trata nem de um panteísmo, nem de uma intervenção abrupta na
história (extrinsecista), mas ato de soberana liberdade e graça. Deus se comunica
ao homem tal como ele é: mistério inacessível; por isso, não há como apreendê-lo
de forma racional, mas por um ato de liberdade e de conhecimento existencial,
pois Deus é o fundamento transcendental da vida.
O fundamento religioso contido no ‘capax Dei’ de Agostinho, embora tenha
sofrido abalos devido a densas tormentas que o atingiram, resistiu aos impactos da
razão moderna. Caso tivesse sucumbido, caso a palavra “Deus” tivesse desaparecido
por completo, então, como dissera Rahner, o homem como homem também teria

83 MOINGT, Joseph. Deus que vem ao homem. Do luto à relação de Deus. v. I. São Paulo: Loyola, 2010. p. 83.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 63

desaparecido em sua identidade, pois o constitutivo do ser pessoa exige o sentido


de transcendência e de absoluto, como fundamento da realidade ontológica.84 A
proporcionalidade do autoconhecimento resulta do quanto se conhece a realidade
e o mundo; por sua vez, ao encurvar-se exclusivamente sobre si, a pessoa nunca se
encontrará por completa; nela há uma fenda aberta para o infinito, para o eterno.85
A crise da revelação emerge no momento histórico de esquecimento do transcen-
dente e no momento em que há uma imersão do homem em si mesmo como abso-
luta imanência mediada pela razão prática. Isso contradiz o sentido perene de uma
antropologia integral nos moldes da filosofia clássica e da fé cristã bíblica. Então,
havemos de nos perguntar: qual é o lugar da revelação cristã hoje? Para responder
a tal questão, certamente exigiria um longo caminho de reflexão, isso não é possível
neste momento. Então, a título de conclusão do nosso estudo, indicaremos apenas
três elementos que podem ajudar a ressignificar o sentido da revelação de Deus na
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vida, morte e ressurreição de Jesus.

Conclusão
A título de conclusão vamos sinalizar três pontos que podem ajudar a pensar a
crise contemporânea diante do conteúdo da revelação e da história humana. Certa-
mente, haveria muitos outros pontos, contudo aqui não é possível elencá-los.
a) O homem é ser de razão, mas também dotado de espiritualidade (fé). Ele
sempre buscou um sentido transcendente para sua vida. A pessoa almeja a totalidade
de sentido, pois o termo “Deus” insere a criatura numa realidade maior, garantindo
a pergunta pelo sentido fundamental e último da história.86 A crise antropológica
ocorreu a partir do momento em que a pessoa inebriada pela beleza da razão se
esqueceu que era também criatura dotada de uma espiritualidade, de um existencial
que não de contrapunha a Deus, mas o guiava para Ele. O racionalismo resultou no
desequilíbrio entre fé e razão, pois seguindo um instinto prometeico, a criatura quis
assumir o lugar de Deus ou negá-lo racionalmente.
As consequências da dissociação antropológica estabelecida pela razão
moderna, como se sabe, resultam evidentemente numa mudança radical na forma
do ser humano se relacionar com o mistério. Para o pensamento clássico, pela
“fé racional” o homem recebe a revelação como dom e graça, pois essa, mesmo
pressupondo o antropológico e o natural, resulta da livre autocomunicação gra-
tuita de Deus.87 A modernidade, sobretudo as teorias deístas, querem colocar a
revelação dentro da moldura racionalista, resultando, assim, num reducionismo
da fé aos limites da pura razão. Trata-se de um neopelagianismo sofisticado e que
não consegue integrar o mistério da revelação à história unitária do ser humano

84 RAHNER, Karl. Grundkurs des Glaubens. Freiburg, Basel, Wien: Herder, 2008. p. 51s.
85 João Paulo II. Carta Encíclica Fides et Ratio: sobre as relações entre fé e razão. São Paulo: Paulinas,
1998. n. 1-6.
86 FRANÇA. Vislumbres de Deus, p. 63s.
87 FISICHELLA. Introdução à Teologia Fundamental, p. 70s.
64

como alguém dotado de um “existencial sobrenatural”. Aqui cabe indagar: qual


é o impasse dessa problemática e qual seria a sua solução? Provavelmente, tra-
ta-se de restabelecer ao homem a sua condição de integralidade antropológica,
com isso, restabelecendo de forma humilde e razoável a tarefa da razão diante da
experiência histórico-espiritual.
b) O fechamento das ciências à razão instrumental e ao historicismo imanentista.
O mundo de hoje, como dissera Charles Taylor, é um mundo fechado, desencantado.
Trata-se de uma realidade que contenta com o processar histórico da razão técnica,
bem como do florescimento da subjetividade autossuficiente. Toda especulação das
ciências centra-se no que está dado e alcançado pela epistemologia empirista, demons-
trativa. Infelizmente, tal propósito também acabou servindo para as questões da
história e da revelação. Aqueles valores da tradição judaico-cristã, onde o mundo não
está “fechado sobre si mesmo”, mas aberto e, por isso, a pessoa projeta sua história

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para o plano divino. Pois o homem, conforme a revelação bíblica, é transcendência
radical sobre a natureza, sobre sua própria natureza, já que a pessoa ultrapassa seu
próprio ser “dado”, para formar-se como ser aberto, chamado à transcendência.88 O
historicismo, que teve suas bases já lançadas com a reflexão histórica de Hegel, ignora
o sentido da revelação sobrenatural de Deus, compreendendo a revelação como dado
inalcançável pela teoria da história, pois esta se ocupa dos eventos demonstráveis
e provados racionalmente. Para a razão moderna, tudo tem que ser transparente,
acessível, sem mistério.
c) Finalmente, a busca do homem integral. A essência da revelação cristã está
fundada na existência e ação de Jesus Cristo, fato ocorrido na história. Na pessoa
de Jesus, Deus se faz participante da história humana e a insere num processo de
evolução e salvação como destino final da vida. A Encarnação confere à história a
sucessão dos tempos, na sua forma de “história sagrada” ou de “economia” salví-
fica, uma estrutura ontológica dinâmica até a plenitude.89 Alcançar a ideia integral
de homem é resgatar nele o sentido original da criação “imagem e semelhança de
Deus”. Para a fé cristã, Jesus Cristo é a evidência daquilo que já havia sido revelado
ao homem nos tempos anteriores. A sua vida, morte e ressureição desvelam a nós o
futuro da história e do mundo.
Como fechamento cabe perguntar: por que a ideia de revelação diz pouco
para o mundo de hoje? Teria o ser humano se esvaziado do mistério e do desejo
de Deus? Não cabe aqui fazer longo arrazoado sobre isso, pois muitos autores têm
tratado profundamente tal problemática. Contudo, parece evidente que a pessoa
sempre busca um sentido maior para a sua vida. O imanentismo antropológi-
co-racional acabou esvanecendo ou pulverizando o primado da revelação nas
experiências alternativas do mundo secularizado. A tradição moderna ajudou a
fé cristã a se corrigir de vários desvios e abusos diante da própria revelação de
Deus. Hoje, a teologia da revelação deve reformular sua linguagem. Cabe buscar
maior proximidade com os desafios seculares do mundo, enxergando na revelação

88 VAZ. Ontologia e história, p. 189s.


89 Ibid., p. 202.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 65

acontecida em Jesus Cristo o caminho de encontro, de diálogo autêntico com outras


religiões e com a sociedade. Não há mais lugar para uma revelação puramente
doutrinal, conceitual e distante da vida. O magistério do Papa Francisco vem dando
bons passos no resgate dos valores fundamentais da fé na perspectiva histórica e
contextual. Não há duas histórias: uma religiosa e outra profana, há um mundo
onde todos estamos inseridos, onde todos desejamos a plenitude e a felicidade.
Por mais que as ciências nos ajudem, elas nunca revelarão para o ser humano os
fundamentos originários, “protologia” de seu ser, e o destino conclusivo, “‘esca-
tologia” de sua história, ou isso está fundado no Mistério absoluto de Deus, do
Deus revelado em Jesus Cristo, ou não está em lugar algum.
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66

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ACOLHIDA DA REVELAÇÃO DIVINA
E REALIZAÇÃO HUMANA
Elizeu da Conceição1
José Aguiar Nobre2

Introdução
Dizer algo sobre a acolhida da revelação divina como condição para a realização
humana tem sido uma prática de teólogos da contemporaneidade, em cuja percepção
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desta tese já se deram conta. Dito de outra forma, compreendemos que todos os
seres humanos procuram, naturalmente, ser felizes; do ponto de vista teológico, essa
felicidade se efetiva melhor na medida em que o humano acolhe a oferta que Deus
mesmo disponibiliza a ele. Ressaltamos que a resposta ou acolhida da oferta divina
é inerente à própria existência da criatura em processo de contínuo crescimento na
sua genuína humanidade. Em vista disto, compreendemos que a realização humana
se dá mais fortemente na medida em que acontece a efetivação dessa felicidade.
O presente capítulo tem como fio condutor o seguinte questionamento: a “rea-
lização humana” tem relação com a “busca de sentido na vida” ou a vida postula um
sentido que a transcenda? Deus tem relação com a questão de sentido e de realização
humana? Se tem, então, por que ainda é visto como hostil a uma vida de gozo e
felicidade? Cristo é um mestre do sentido ou a revelação e a encarnação mesmas do
sentido que, consciente ou inconscientemente, todos buscamos?
Partimos destas questões com a seguinte tese: a partir da perspectiva cristã, enten-
demos que a tão almejada felicidade ou realização, a que todo ser humano busca, se efeti-
vará na máxima medida em que o humano captar a genuína ontologia do Transcendente,
isto é, do Deus Trindade e acolher a sua fascinante e misteriosa oferta. Para embasarmos
este pensamento, refletiremos sobre a busca primária do ser humano contemporâneo e
sobre o aprofundamento no sinuoso processo de acolhida da revelação divina.

1. A busca de compreensão do ser humano contemporâneo


Em todo ser humano é inelutável a pergunta pelo sentido de sua existência,
bem como é inevitável a busca por uma resposta. Assim, recordemos a perspectiva

1 Doutor em Teologia Pastoral pela UPS-Roma. Mestre em Teologia pela UPS-Roma, com especialização em
Pastoral Juvenil. Bacharel em Teologia pelo ITESP, Bacharel em Filosofia pela PUC-Campinas. Sacerdote
e religioso Estigmatino. Foi Assessor Provincial da Pastoral Juvenil e Conselheiro Provincial e responsável
pelo Setor Pastoral. Membro da Secretaria Geral no Sínodo para a Amazônia.
2 Pós-Doutorado em Filosofia (UFPR); Pós-Doutorado em Educação (PUC-Campinas); Doutor em Teologia
Sistemática (PUCRJ). Doutorando em Filosofia (UFPR). Mestre em Educação (PUC-Campinas). Professor
da Faculdade de Teologia da PUC-SP.
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de Merleau-Ponty, ao nos levar a entender que, “porque estamos no mundo, estamos


condenados ao sentido”.3 Recordemos também que, segundo Clodovis Boff, é o sen-
tido quem “dá à vida movimento e impulso”.4 É, então, a partir deste movimento que
podemos encontrar uma chave de leitura para apresentarmos um retrato, ou melhor,
alguns traços antropológicos da humanidade contemporânea.
Com a crise sanitária do covid-19 e com uma economia que continua exibindo
forte volatilidade nos últimos meses, a instabilidade refletiu uma piora nas condições
de vida da grande maioria da população dos países latino-americanos. Os impactos
diretos das mudanças atuais se traduzem no aumento da incerteza diante do que o
próprio modelo econômico faz sonhar. Com o evento galopante das New medias,
o sonho de ter comodidade através de bens materiais se tornou próximo a todas as
pessoas, mesmo aos que vivem nas mais cruéis periferias urbanas. Todos se encontram
diante de uma imensa variedade de fornecedores de sentido.

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As ofertas Wellness, que prometem mais do que simples bens; a grande variedade
de cursos de mediação e práticas esotéricas; mesmo várias formas de consu-
mismo, que prometem ao menos, em poucas palavras, a satisfação dos profundos
desejos e nostalgias.5

Essas ofertas propagam a ideia de satisfazer a busca constante e primária do ser


humano, que é a busca de uma realização pessoal ou do sentido da vida. O mercado
espertamente entendeu o que Viktor Frankl define como “uma vontade de sentido”.6
E, como isso é latente, de modo especial no humano contemporâneo, que tem sede e
se coloca em constante busca da felicidade, então o mercado se posta de forma muito
perspicaz para seduzi-lo. Com a realidade da globalização em que vivemos, difundida,
principalmente pela internet e pela televisão, o ser humano é massificado e padronizado,
com grandes vantagens para as agências de publicidade e aos grupos comerciais que os
abocanham como suas vorazes ganâncias. Fazem isso matematicamente, impulsionando
os desejos humanos para viciá-los na primeira oportunidade.
Assim, surgem diversas propagandas e ofertas de felicidade fácil. No entanto,
a sedução por caminhos ambíguos demonstra o problema fundamental da existência
humana da busca de realização fácil. Quanto mais o ser humano sente o desejo de
felicidade, mais o futuro parece ameaçador e incerto. Desse modo, tanto mais a von-
tade de viver o prazer e as emoções do presente os atraem, quanto mais embaraçadas
e carentes ficam as pessoas. E isto parece estar carregado de armadilhas nas diversas
dimensões humanas, de tal forma que até mesmo na fé estas armadilhas estão em
alta. Conforme Ulrich Beck,7 podemos encontrar sociólogos que defendem a ideia de
que entramos em uma época de um Deus pessoal. E isso transforma uma lógica que

3 MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 18.


4 BOFF, Clodovis. O livro do sentido. Qual é, afinal, o sentido da vida? v. II. São Paulo: Paulus, 2018. p. 32.
5 CONFERENZA EPISCOPALE AUSTRIACA – CEA. Annuncio e nuova evangelizzazione, in Annuncio e
nuova evangelizzazione nel mondo di oggi. Bologna: Edizioni Dehoniane, 2013. p. 490.
6 FRANKL, Viktor E. Em busca de Sentido. Petrópolis: Vozes, 2015. p. 124.
7 BECK, Ulrik, Il Dio personale. La nascita della religiosità secolare. Laterza: Bari, 2009.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 71

passa do externo ao interno da pessoa, ou seja, do visível ao sentimental, da instituição


ao sujeito, da oferta à pergunta de sentido, da ênfase sobre a moral à ênfase sobre a
consciência. Enfim, da participação ativa à liberdade de escolha. Tal passagem carrega
aspecto positivo, mas é mais evidenciada no modo de viver atual em que, geralmente,
se faz a escolha pelo imediato, pelo agora, e tudo, inclusive Deus, pode ser alcançado
nas prateleiras do supermercado à pronta entrega. É uma transformação radical em
que tudo se torna secularizado, sob o domínio pessoal.
Assim, podemos “entender a secularização como uma queda da fé e da prática
religiosa por parte das pessoas, fenômeno que também pode ser observado em nossos
dias em alguns países ocidentais”.8 As práticas institucionais parecem não responder
mais aos novos anseios humanos. As referências tradicionais, como os mitos, os
deuses, a transcendência, foram corroídos pelo desencantamento do mundo. A secula-
rização, que se desenvolveu na Modernidade, privilegia os recursos sobre os valores,
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gerando uma inversão de importância ética no viver humano. Se antes os valores


éticos eram vistos como principais fundamentos do bem-viver, agora a comodidade
e os prazeres oferecidos pela técnica são mais importantes. Como tudo é abarcado
com o fenômeno da globalização, as mudanças de paradigmas são evidentes e a busca
primária do ser humano evidencia-se, mas, estranhamente, parece ser saciada com o
que esvazia de sentido. Por isso, pensamos: será que refletir e provocar uma reflexão
sobre o processo de acolhida da revelação divina pode ser um caminho plausível para
encontrar o sentido da própria existência?

2. Aprofundamento no processo de acolhida da revelação divina


Voltamos ao questionamento: Deus tem relação ou não com a questão do sentido
e da realização humana e o porquê é visto, de maneira ampla, como hostil a uma
vida humana feliz? Este questionamento pode nortear uma compreensão tanto do
abandono da prática religiosa por algumas pessoas, quanto de uma busca pessoal ao
modelo neopentecostal, por parte de outras. O teólogo galego Andrés Torres Queiruga
já apresentava a constatação de que há uma ideia de que Deus se interessa apenas
pela dimensão religiosa do ser humano, como se o resto fosse profano e por isso
não lhe agrada: “pensando que só interessa a Deus o diretamente relacionado em
nós com o ‘sagrado’”.9 Ora é bem verdade que Deus se interessa fortemente pela sua
criatura, tanto é que os Evangelhos estão a todo momento apontando o cuidado e a
delicadeza de Deus para com os seus discípulos, na pessoa de Jesus de Nazaré: “Eu
sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas” (Jo. 10,11). Então, vamos
entendendo que a verdadeira questão não está tanto em perguntar se Deus se coloca
no plano do sentido ou não, mas em como acolher, no mundo moderno, a revelação
divina que traz sentido ou desvela o sentido da existência humana.
Na América Latina, os bispos chegaram à conclusão de que:

8 MIRANDA, Mario de França. Igreja e Sociedade. São Paulo: Paulinas, 2009. p. 110.
9 QUEIRUGA, Andrés T. Recuperar a Criação. Por uma religião humanizadora. São Paulo: Paulus, 2011. p. 78.
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Jesus Cristo, a plenitude da revelação de Deus, um tesouro incalculável, a “pérola


preciosa” (cf. Mt. 13,45-46), o Verbo de Deus feito carne, Caminho, Verdade e
Vida dos homens e das mulheres, aos quais abre um destino de plena justiça e
felicidade. Ele é o único libertador e Salvador que, com sua morte e ressurreição,
rompeu as cadeias opressivas do pecado e da morte, revelando o amor misericor-
dioso do Pai e a vocação, dignidade e destino da pessoa humana.10

Para se chegar a esta visão, certamente é necessário um caminho feito de escuta,


de diálogo e de sintonia com a realidade. Como sabemos, é a escuta que faz ouvir a
mensagem subliminar em todos os seres vivos. Ou seja, aprender a escutar a men-
sagem contida em cada elemento vivo faz com que a mensagem seja inteligida e,
consequentemente, acolhida, saboreada, vivida. Quem aprende a escutar vive em
comunhão com os demais seres e sabe cultivar a riqueza do encontro. O diálogo e o

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encontro também são mais do que apenas falar ao outro e estar com ele, mas a cons-
trução de relações que dizem o que sentimos e somos; para isso, às vezes é necessário
usarmos não somente as palavras, mas nos colocar em processo de convivência e
compaixão. Compreendemos, assim, que somente no diálogo e no encontro é que
crescemos como pessoas no mais genuíno sentido que se espera da teleologia humana.
Esses elementos levam, necessariamente, à sintonia com a realidade em que se vive.
Dito isso, argumentamos que não é possível experimentar a felicidade quando o ser
humano vive desconectado da própria realidade. Do contrário, isto seria fantasia,
“cortina de fumaça” que passa e esvai com o primeiro vento contrário. Podemos nos
perguntar, então, onde está a revelação de Deus nisso tudo? Como compreendê-la
para acolher e viver?
Parece evidente e claro que Deus não é desfavorável à realização e à felici-
dade humana. Justamente o contrário, pois ele foi capaz de entrar em determinado
momento em nossa história e demonstrar o caminho de doação plena para nós,
homens e mulheres, para que sejamos felizes, já aqui nesta vida. Há um chamado à
participação humana na graça divina destinado a todos. E, participar da graça divina
é participar da felicidade que o Criador reservou àqueles que fez à sua “imagem,
conforme sua semelhança” (Gn. 1, 26). “Devemos evidenciar que o chamado à graça
não pertence apenas à visão do homem cristão, mas à noção cristã do homem”.11
Portanto, quem pode participar da graça provinda de Deus é todo ser humano, sim-
plesmente por ser humano.
Na acolhida da graça e da revelação divina está o encontro com a realidade, ou
seja, está aí a superação da fantasia religiosa e as condições para uma sempre maior
realização humana. A graça é real, Deus é real, a vida humana é real, não é uma fantasia
o tão sonhado desejo de realização mesma do humano. Justamente a realidade mais
atraente e perfeita consiste na manifestação de Deus de forma plena no humano Jesus
de Nazaré. “Toda realidade é um gesto ativo e voluntário de Deus, que através dela se

10 CELAM. Documento de Aparecida, Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano


e do Caribe. Brasília: CNBB, 2008. n. 6.
11 LADARIA, Luis F. Introdução à antropologia teológica. São Paulo: Loyola, 1998. p. 105.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 73

manifesta e se revela ao ser humano”.12 Na realidade da encarnação de Deus no Homem


de Nazaré, são dadas as condições imprescindíveis para que o mundo possa conhecer
a Deus. Nesse sentido, é possível entender que “a realidade mesma é já visibilidade
de Deus; nela o ser humano o está vendo enquanto exteriorizado em seu mundo, em
sua criação e em sua história”.13 Por isso, não é a separação do mundo que nos leva ao
reconhecimento da manifestação de Deus, mas é justamente a comunhão plena com
toda criação que pode nos colocar em processo de reconhecimento da presença divina,
que é dinâmica e criativa. O ser humano criado-criador é inserido nesse dinamismo
para que o processo de paixão divina pelo ser criado continue a surpreender o milagre
da existência. Em vista disso, destacamos, aqui, dois pontos que podem nos ajudar a
aprofundar o processo de acolhida da revelação divina.

2.1 A consciência a partir de Jesus


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A consciência possibilita ao ser humano uma profunda relação consigo mesmo.


É ela que formata o erigir da autoconsciência. Cabe à imaginação e ao bom uso
da consciência teológica uma releitura completa do conjunto da realidade. Ambas
conseguem situar-se no tempo presente livrando o ser humano de uma divagação
abstrata apenas no futuro, ou seja, o situa em seu tempo presente.
Jesus, o Homem consciente não somente de sua condição, mas também da rea-
lidade em que estava inserido, realiza o encontro entre o divino e o humano de forma
visível e demonstra que este encontro abre um fascinante e estupendo caminho para
todos os seres humanos, indistintamente. Nesse encontro entre o divino e o humano
apresentam-se duas exigências como questão antropológica. Segundo o teólogo jesuíta
Karl Rahner, que enfrentou com maior empenho essa questão na realidade católica,
a impostação antropológica é uma exigência da Revelação, já que:

A humanidade de Cristo não é (simplesmente) o instrumento, em modo exterior,


com o qual um Deus que permanece invisível se faz notar, mas precisamente aquilo
que Deus mesmo (permanecendo Deus) se torna quando se afasta e se desposa de
si mesmo na dimensão de outro-de-si-mesmo, do não-divino.14

Deus, de maneira simples, miraculosa e encantadora, se faz humano em todas as


condições humanas, exceto no pecado; está sujeito, inclusive, à violência extrema. Ele,
ao sair do seu escondimento e assumir a condição humana, foi tão bom que demons-
trou o caminho de realização humana a todos humanos, a fim de que eles não ficassem
desprovidos de um modelo e nem abandonados à sua própria sorte. Este caminho está
na doação plena da vida e no paradoxo assim compreendido: “quem se agarrar à vida
irá perdê-la, quem a perder por mim a conservará” (Mt. 10, 39). Ao mesmo tempo, a

12 QUEIRUGA, Andrés T. Repensar a revelação. A revelação divina na realização humana. São Paulo: Paulinas,
2010. p. 210.
13 QUEIRUGA, Andrés T. Recuperar a Criação. Por uma religião humanizadora. São Paulo: Paulus, 2011. p. 211.
14 RAHNER, Karl. Antropologia teologica. In: SACRAMENTUM MUNDI. Barcelona: Herder, 1974. p. 282.
74

referente questão é uma exigência humana, posto que, para Rahner, graças à sua natureza
espiritual o ser humano é capaz de Deus e é essencialmente aberto ao Infinito, a Deus.
Sendo aberto à vida, o caminho da realização não é a morte, mas a doação.
Assim, podemos compreender a realidade humana a partir da revelação divina,
principalmente aquela em Jesus de Nazaré. Ele é o grande sinal da aliança divina
com a humanidade. A verdadeira consistência da criatura, portanto, está então na sua
existência, ou seja, na sua capacidade de estar fora (ex-sistere), de abrir-se ao Outro
e de hospedá-lo em si. Nisso tudo, a consciência tem sua função relevante, já que é
exatamente isso que nos distingue dos demais seres criados. Temos consciência de nós
mesmos e de nossa condição e não só isso; temos a imaginação que nos impulsiona
à frente, à vida, à felicidade. A luta para fugir do sofrimento e da tristeza, a luta por
se afastar da morte traz em si uma grande verdade: somos seres criados para a vida
realizada, feliz. Ressaltamos que é a partir desse horizonte que o ser humano avança

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tanto mais no entendimento quanto mais na assimilação das delicadezas de Deus
desveladas em Jesus Cristo. Tal revelação, quando bem comunicada ao ser humano
hoje, será sempre mais acolhida na prática existencial, ou seja, será encarnada na
cotidianidade da vida e não apenas em momentos específicos.

3. Acolhida da revelação divina frente à sensibilidade moderna


A sensibilidade moderna está bem acentuada quanto à sensibilidade do indiví-
duo. Motivado, principalmente pela rapidez e instantaneidade digital, o ser humano
desperta em si um frenesi de experiências que o empobrece na delicadeza processual
e lenta da revelação e da compreensão racional daquilo que lhe é revelado.
Compreendemos que a acolhida da revelação divina no dinamismo da história
acontece na mesma medida em que o mistério da encarnação vai sendo, cada vez
mais, acolhido e, consequentemente, compreendido. A paixão de Deus pela criação
faz com que o ser humano participe de sua felicidade. Quanto mais esclarecido para os
seres humanos, que ao longo dos diversos contextos, o amor desconcertante de Deus
desvelado em Jesus de Nazaré se faz realidade cativante, tanto maiores chances de
efetivação da realização humana. Não obstante essa compreensão, percebemos que,
na atual conjuntura eclesial, um dos grandes riscos que sofremos é o de reduzirmos
a profundidade da revelação em sentimentos ou sentimentalismo. É a propagação de
uma equívoca separação entre a beleza das rosas e o realismo da cruz. É o risco de
acreditarmos que a experiência divina só acontece na emoção, no temor disseminado
por uma certa teologia da cruz e do medo tão perigosamente propagado atualmente.
A esse respeito, vale destacar que a cruz sem a beleza das rosas é terror e as rosas
sem a cruz são piegas, são sentimentalismos.
Por vezes, notamos que é generalizada a ideia do seguimento a Jesus, como se
certos “fiéis” que vivem mais sentimentalismos do que seguimento concreto fossem
mais crentes que os outros. Isso está muito presente na eclesiologia contemporânea
com sinais sensíveis de posturas fundamentalistas. Na verdade, estamos sendo vítimas
de uma pregação rasa e sem fundamento sobre a genuína vivência do Evangelho.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 75

Nesse sentido, estão embutidas posturas na liturgia, como: o uso de véus, comunhões
de joelhos e na boca, que representam mais uma mentalidade de “pureza” adquirida
pelo esforço pessoal do que a mentalidade de participar do sacrifício eucarístico
como um “dom” da Páscoa do Senhor. Tratam-se de certas práticas de piedade que,
na verdade, trazem para a vivência religiosa as mesmas vaidades dos pecados capi-
tais. Muitos “penduricalhos” acabam por atrapalhar uma espiritualidade encarnada,
simples e acolhedora, ou seja, a espiritualidade que segue os passos do modo de
rezar de Jesus de Nazaré que tanto os evangelhos nos fazem ver. Jesus não preci-
sava de malabarismos e nem de muitos palavreados. Ele, pelo seu modo de falar e
agir, conduzia os seus discípulos ao mistério mesmo de Deus “quem me vê, vê o
Pai” (Jo. 14,1-14). Ele não seduzia as atenções para si, com atitude de vaidades e
nem de exibicionismos pueris. Tanto é verdade que, tudo leva a crer que até quando
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alguns discípulos tinham alguma resistência às suas atitudes e revelavam uma certa
infantilidade, Ele era certeiro para deixar que seguissem suas vidas em um caminho
diferente do seu caminho: “querem ir embora também?” Ao que Pedro responde: “a
quem iremos Senhor, só tu tens palavras de vida eterna” (Jo. 6,60-69).
Jesus, dada a sua exigência, fez com que o povo, de seu tempo, seguisse-o
com fervor. E os discípulos o seguiram com mais consciência para assim combater
qualquer atitude de espiritualidade descarnada a partir da acolhida das exigências de
Jesus. Ao refletir sobre essa realidade indagamos: o que entendemos por espirituali-
dade desencarnada e sentimentalista? Deste modo é possível entender que:

É a redução da espiritualidade a “espiritualismo” desencarnado e abstrato, distan-


ciado da vida real e alheio ao corpo. Como se a espiritualidade remetesse à “outra”
vida e não chamasse antes a viver a fundo “esta” vida daqui da terra com a máxima
qualidade em todas e cada uma de suas dimensões: corporais e anímicas, individuais
e comunitárias, em sua fugacidade e em sua permanência (aqui, sim, insere-se a
maravilha já vivida desta “outra” vida, porque “esta” já é “vida eterna”).15

Nesse sentido, a sensibilidade humana leva-nos a pensar que a pessoa, quando


se coloca em busca de sua realização, deve considerar a qualidade da sua relação
com o divino, uma vez que Ele lhe possibilita tanto mais o alcance dessa felicidade
ou realização quanto a relação ser humano-Deus for mais estreita e amigável. E,
para tanto, se faz necessário partir prontamente de um interesse pessoal de prestar
atenção nas generosas ofertas divinas. Deus sempre está a nos oferecer os seus dons
e riquezas que, sem uma atenção por parte do humano, acabam “por cair por terra”.
O seguimento de Jesus não é algo que acontece ao acaso, mas uma busca consciente
e um investimento em si mesmo. Trata-se de um caminho antropologicamente cons-
truído mediante o qual se procura conhecer as riquezas e bondades de Deus que nos
potencializa para o aprimoramento do processo de criação. Deus cria toda vez que o
ser humano, na medida de suas capacidades, acolhe as inspirações divinas e se coloca

15 QUEIRUGA, Andrés T. Recuperar a Criação. Por uma religião humanizadora. São Paulo: Paulus, 2011. p. 79.
76

a serviço da implantação do Reino. Nisso se efetiva a maior realização do humano,


da sua teleologia, porque ele se faz um ser de práticas religiosas na medida em que
coloca em prática as suas capacidades.
Argumentamos que já existe no interior humano uma faísca divina que o provoca a
caminhar em direção ao Todo Divino, e por esse motivo falamos da necessidade de acolhida
da revelação, pois essa já está acontecendo na realidade de cada existência. Não é uma
iniciativa puramente racional ou puramente humana caminhar em direção ao divino, pois
é Ele próprio que atrai o ser humano; como princípio criador e redentor atrai a Si o ser
humano marcado pelo desejo de reconciliação e de contínua expansão e criação.
Fundamentalmente, na medida em que ocorre o exercício da proximidade humana
com o mistério de Deus, mais ocorre a realização da humanidade de cada pessoa. Ela
vive no processo sinuoso de crescimento e efetivação do sonho mesmo de Deus para
conseguir concretizar o seu longínquo sonho de uma humanidade feliz, plena, realizada.

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Deus nos dá as suas forças, chaves e inspirações mediante o Espírito, que é a caracte-
rística mais apta da dialogicidade específica e latente na vida humana.

Conclusão
Neste capítulo, partimos do entendimento de que a tão almejada felicidade ou
realização humana se efetivará na máxima medida quando captar a genuína ontologia
do Transcendente, isto é, do Deus Trindade. Mas captar o ser divino presente na vida
humana é um desafio que pode e deve ser encarado por todos. O seguimento a Jesus,
mesmo que de diferentes formas, não é enquadrado previamente em explicações, pro-
grama, meta, ideal. Quando Jesus chamava alguém, simplesmente dizia: “segue-me”
(Lc. 9,59). O chamado, no entanto, não é para sair de suas atividades e seguir um modelo
religioso; mais do que isso, é para ressignificar o que se está vivendo e, a partir disso,
orientar todas as ações para uma vida condizente com a vida humana.
Portanto, a busca de felicidade do ser humano está contemplada na revelação
divina, que quer para todos uma vida em abundância. Corresponder a esta revelação
é a grande chave para a realização humana. Não significa, no entanto, vida fácil,
vida alegre o tempo todo, mas vida digna, vida plena. Movido pela revelação divina,
foge-se, então, da ideia de perfeição religiosa e busca-se a inteireza do ser na exis-
tência, ou seja, busca-se o estar por inteiro naquilo em que está inserido e no que
se está vivendo. Essas categorias de “perfeição” e “inteireza”, embora não tenham
aparecido no decorrer da reflexão, representam a distinção necessária para alcançar
a realização humana na cotidianidade da vida.
Uma espiritualidade encarnada, ou seja, com o compromisso pela justiça e pela
vida, estará em consonância com o ensinamento de Jesus: “para que todos os povos
tenham vida” (Jo. 10,10). Este é o fundamento da existência humana, que, superando
a ideia de uma fé como simples aceitação de doutrinas, ou apenas como uma opção
ética, leva o humano ao grau mais alto da sua condição, ou seja, na sua configuração
com a “imagem, conforme a semelhança de Deus” (cf. Gn. 1,26). Somente nesta
consonância, impregnada de sentido de fé que se faz doação é que o ser humano,
no processo constante de acolhida da revelação divina, poderá experimentar a sua
maior realização existencial.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 77

REFERÊNCIAS
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Bari, 2009.

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RAHNER, Karl. Antropologia teologica. In: Sacramentum Mundi. Barcelona:


Herder, 1974.
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NOTAS SOBRE A SINODALIDADE NA
HISTÓRIA E NA IGREJA DO BRASIL
Ney de Souza1

Introdução
O presente capítulo apresenta, inicialmente, um panorama dos primórdios da Igreja
e a temática da sinodalidade; a partir daí, adentra com tal reflexão no contexto do Concílio
Vaticano II (1962-1965) e discorre sobre seus desdobramentos na Igreja do Brasil.
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Escrever sobre a temática da sinodalidade é desafiador em todos os períodos


históricos. A prática sinodal tem se mostrado um desafio ainda maior na atualidade.
Contudo, se a finalidade é a renovação da vida eclesial, se “requer ativar os processos
de consulta de todo o povo de Deus”.2
A Igreja sinodal é aquela “participativa e corresponsável. No exercício da sinoda-
lidade, esta é chamada a articular a participação de todos, segundo a vocação de cada
um...”.3 O Papa Francisco afirma que “o caminho da sinodalidade é o caminho que Deus
espera da Igreja no Terceiro Milênio”.4 A sinodalidade é o caminhar juntos; é o “com-
prometimento e a participação de todo o povo de Deus na vida e na missão da Igreja”.5

1. Primórdios da sinodalidade
A primeira experiência, de cunho sinodal, começou no “concílio de Jerusalém”,
ano 49 (cf. At. 15,6-29). Apóstolos e presbíteros reuniram-se com a comunidade para
discutir sobre Antioquia; a decisão, provinda desta reunião, foi comunicada por meio
de uma carta (At. 15, 22). Em vários outros relatos é possível constatar diversas for-
mas de colegialidade, de assembleias reunidas para tratar e resolver assuntos locais,
tendo a participação dos diferentes membros da comunidade (cf. At. 1,14; 6,1-6;
14,27; 1Cor. 5,3,13; 7,17; 11,34; 16,1; Ef. 2, 25-29; Mt. 18,15-17). Tito recebeu o
encargo de completar a formação da comunidade, constituindo, em cada cidade, um

1 Pós-Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Doutor em História
Eclesiástica pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Docente e Pesquisados no Programa de
Estudos Pós-Graduados em Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Líder do
Grupo de Pesquisa Religião e Política no Brasil Contemporâneo (PUC SP/CNPq).
2 COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. A sinodalidade na vida e na missão da Igreja, n. 65. Disponível
em: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_cti_20180302_sinodalita_po.
html. Acesso em: 20 mar. 2022.
3 Ibid., n. 67.
4 AAS. Acta Apostolicae Sedis 107 (2015), 1139. Disponível em: http://www.vatican.va/archive/aas/
documents/2015/acta-novembre2015.pdf. Acesso em: 21 jan. 2022.
5 COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. A sinodalidade na vida e na missão da Igreja, n. 7.
80

colégio de presbíteros6. É evidente que cada comunidade local exercitava a colegia-


lidade. De acordo com Atos 1,14, toda a comunidade se envolveu na substituição de
Judas por Matias. Os sete diáconos (At. 6,1-6) foram eleitos pela comunidade. Nas
comunidades paulinas ocorreram assembleias comunitárias para resolver assuntos
locais (cf. 1Cor. 5,3,13). Paulo orienta a comunidade; isto implica a coparticipação
dos mais diferentes membros nas atividades do grupo (1Cor. 7,17; 11,34; 16,1; Fl.
2,25-29; Mt. 18,15-17).
No primeiro milênio, a Igreja estava unida na preservação da fé apostólica,
mantendo a sucessão apostólica dos bispos, desenvolvendo estruturas de sinodalidade
vinculadas à primazia; a autoridade era compreendida como serviço. Porém, este
modelo de sinodalidade passou a sofrer diversas alterações, dentre elas, centralizando
a autoridade nos membros ordenados. Gerou-se, com isso, o autoritarismo, presente
até os dias de hoje.7 O teólogo jesuíta França Miranda afirma que:

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A história da Igreja nos ensina que o protagonismo ativo foi se tornando responsa-
bilidade apenas de uma elite, a saber, da classe de clérigos dotados de uma forma-
ção especial e separados do restante do povo de Deus. As razões dessa mudança
são várias: o perigo das heresias, a elevação do cristianismo à religião oficial do
império romano, a sociedade medieval com suas classes sociais bem definidas, a
disputa pelo poder da Igreja com os principados no tempo da cristandade e poste-
riormente com o Estado nascente, apresentando-se como uma sociedade perfeita,
tal como a sociedade civil dotada de hierarquias e distribuição desigual de poder.
Desse modo, chegou-se ao extremo de ver nos clérigos os únicos sujeitos ativos
na Igreja a instruir e guiar um laicato majoritário, porém, passivo e carente de
formação adequada, a tal ponto que, quando então se falava de Igreja, para louvar
ou para se criticar, se referia sempre ao Papa, aos bispos e aos padres.8

No decorrer do tempo histórico, se estabeleceu uma progressiva extinção da


pluralidade de ministérios e carismas dentro da Igreja e acentuação de um único
ministério, o sacerdotal. Com o início da estruturação da Idade Média, o laicato
perde qualquer possibilidade de presença ativa e produtiva no plano da reflexão
religiosa. Nesta Igreja do período da cristandade, surge a divisão entre clérigos
e leigos; acontece, também, a ruptura entre a Igreja Ocidental Latina e a Igreja
do Oriente e, na transição de épocas, a divisão entre a Igreja romana e as Igrejas
da Reforma e as divergências entre a sociedade e a Igreja.9 Em 1517 tem início
um dos momentos mais importantes e marcantes da Época Moderna. Trata-se do
embate entre Martinho Lutero e o Papa Leão X, do qual resultou a excomunhão
do primeiro. O movimento teve causas e clamores profundos. A resposta da Igreja
Católica virá com o Concílio de Trento (1545-1563).

6 ALBERIGO, G. Sinodo come liturgia. Storia del Cristianesimo, 28 (2007), p. 6.


7 SOUZA, N. Dimensões históricas da sinodalidade. In: AQUINO, F.; PASSOS, J. D. (org.). Por uma Igreja
sinodal. Reflexões teológicos-pastorais. São Paulo: Paulinas, 2022. p. 26-27.
8 MIRANDA, M. de F. A Igreja em transformação. São Paulo: Paulinas, 2019. p. 15-16.
9 SOUZA, N. A Igreja na História: notas introdutórias de um Tratado. Fronteiras 2 (2019). p. 5-6.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 81

O fato é que “a Reforma tridentina não admitia nenhum diálogo com o povo
[...]. O resultado foi uma distinção radical entre um povo puramente passivo e um
clero que tinha todos os poderes”.10 O fosso entre clero e laicato se aprofunda; assim,
a Igreja se distancia da sua origem e, por consequência, do estilo sinodal. Além
disso, Trento oficializa disciplinarmente a fundação dos seminários, modelando uma
tipologia de clérigo. De certa maneira, ocorre o prolongamento até a atualidade, com
uma urgência de transformação do modelo.11

2. Lumen Gentium e a definição conceitual de Igreja


Sínodo e sinodalidade são duas das principais questões postas às Igrejas hoje
como também à pesquisa histórica. Teólogos católicos romanos têm trabalhado sobre
essetema desde o final dos anos cinquenta, quando a necessidade de comunhão
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entre bispos se tornou uma das questões essenciais para o Concílio Vaticano II.
Provinda de diferentes caminhos científicos – estudos patrísticos sobre eclesiologia,
pesquisas litúrgicas sobre a consagração dos bispos, estudos históricos a respeito
da historia conciliorum e o impulso ecumênico a revisitar a atitude em relação
ao papel do Romano Pontífice – todos marcaram uma mudança na percepção do
tema e de sua centralidade.12

O historiador italiano Giuseppe Alberigo afirma que “a difícil e insatisfatória


recepção do Vaticano II mostrou que estão essencialmente em jogo as potencialidades
do vigor profundo do Concílio da sua dynamis de coenvolver a comunidade ecle-
sial”.13 No Concílio,14 pela primeira vez, a Igreja deu uma definição de si mesma na
Constituição Dogmática Lumen Gentium. Nesse documento, privilegia-se o caráter
de mistério e uma concepção mais bíblica, com uma raiz litúrgica, atenta a uma visão
missionária, ecumênica e histórica, em que a Igreja é descrita como sacramento da
salvação. Retoma-se o conceito primordial da comunhão, ideia central da definição
de Igreja no Vaticano II (com Deus, pela Palavra e sacramentos, que leva à unidade
dos cristãos entre si; e isso se realiza concretamente na comunhão das Igrejas locais
em comunhão hierárquica com o Bispo de Roma). Uma das categorias determinantes
da eclesiologia do Vaticano II foi a de comunhão. Na Constituição Lumen Gentium, o
termo “comunhão” expressa a essência mais profunda da natureza eclesial, a Trindade
Santa”.15 Assim, “a comunhão eclesial não é fruto de um esforço voluntarista. É obra

10 COMBLIN, J. O povo de Deus. São Paulo: Paulus, 2002. p. 390.


11 Cf. SOUZA, N. Dimensões históricas da sinodalidade, p. 29-30.
12 MELLONI A.; SCATENA, S. (org.). Synod and Synodality. Theology, History, Canon Law and Ecumenism.
In: NEW CONTACT. International Colloquium Bruges 2003. Münster: Lit Verlag, 2005. p. 1.
13 ALBERIGO, G. Sinodo come liturgia, p. 2-3.
14 SOUZA, N. Contexto e desenvolvimento histórico do Concílio Vaticano II. In: GONÇALVES, P. S. L.;
BOMBONATO, V. (org.). Concílio Vaticano II análise e prospectivas. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 17-67;
LATOURELLE, R. Vaticano II. In: FISICHELLA, R.; LATOURELLE, R. (Dir.). Diccionario de Teologia
Fundamental. Madrid: Ediciones Paulinas, 1992. p. 1596-1609.
15 WOLFF, E. Comunhão. In: PASSOS, J. D.; SANCHEZ, W. L. (org.). Dicionário do Concílio Vaticano II. São
Paulo: Paulinas; Paulus, 2015. p. 162, 164.
82

da graça. Tem sua origem e referência na Trindade Santíssima”.16 Desta forma, “o


termo grego koinonia é traduzido para o latim como communio, communicatio e,
para o português, comunhão. Os termos correlatos são, sobretudo, aliança, unidade,
participação, partilha, comunicação, relação, compromisso, corpo. Há vários acentos
nos documentos do Concílio sobre a comunhão: LG 4, 8, 13-15, 18, 21, 24-25; DV
10; GS 32; UR 2-4, 14-15, 17-19, 22; AG 22). Somente na Lumen Gentium, o termo
comunhão aparece 22 vezes.17

As estruturas colegiadas ou sinodais na Igreja não são um problema puramente


exterior de estrutura nem uma questão puramente organizacional. Elas tampouco
são uma questão de simples repartição do poder na Igreja: pelo contrário, elas
estão ancoradas na essência da Igreja como communio, e devem cunhar a sua vida
e seu estilo de modo geral.18

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A Igreja trouxe, à luz da fé trinitária, a sua identidade mais profunda. Ela vem
de Deus; portanto, possui uma dimensão divina. A recuperação da eclesiologia de
comunhão faz parte do movimento de “volta às fontes” e do resgate da dimensão
espiritual da Igreja.

O Concílio recuperou a vivência comunial das primeiras comunidades evangéli-


co-patrísticas. Os documentos conciliares, máxime a Lumen Gentium, superam a
apresentação da Igreja como sociedade, sociedade desigual ou sociedade perfeita,
característica da eclesiologia anterior (Idade Média, Trento, Vaticano I). Predo-
mina a dimensão mistérica da Igreja.19

3. Kenosis, serviço, ministério


É necessário evidenciar que houve um espírito de mudança que animou o Con-
cílio na direção da descentralização, no sentido de Kenosis, humilde serviço ou
ministério. Essa descentralização se deu em cinco direções: a) a Cristo, pois antes
a atenção se direcionava para o Papa e os bispos como centro; b) ao mundo todo,
gerando a colegialidade; c) ao povo de Deus; d) à abertura ao diálogo com outras
religiões; e) a uma solicitude para com o mundo e seus problemas20. A eclesiologia
conciliar representa a valorização de tudo o que é autêntico sobre a realidade da
Igreja. O Concílio rejeitou a postura apologética da eclesiologia pós-tridentina. Vol-
tou à Escritura e à patrologia, mas sem escravizar-se ao tempo passado.21 O núcleo
central desta reflexão foi constituído pela consideração da própria Igreja, sobre o seu
ministério, identidade e estruturas.

16 SANTOS, B. B. dos. O projeto eclesiológico do Vaticano II. Revista de Cultura Teológica, São Paulo, v. 12
-n. 48, p. 11, jul./set. 2004.
17 Cf. WOLFF, E. Comunhão, p. 162, 164.
18 KASPER, W. A Igreja católica – Essência, realidade, missão. São Leopoldo: Unisinos, 2012. p. 343.
19 LOPES, Geraldo. Lumen Gentium: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2011. p. 17.
20 SCHILLEBEECKX, E. La Chiesa l’uomo moderno e il Vaticano II. Roma: Edizione Paoline, 1966. p. 159.
21 CIPOLINI, P. C. A identidade da Igreja na América Latina. São Paulo: Loyola, 1987. p. 48.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 83

A Igreja deixou de considerar-se exclusivamente nas categorias de sociedade per-


feita ou corpo místico, para compreender-se também como sacramento de salvação
universal, como povo de Deus peregrinante na história e como comunhão católica
na fé. Novos aspectos..., a carismaticidade de suas estruturas, a diaconalidade em
suas funções, a co-responsabilidade ordenada em suas decisões.22

4. Povo, conceito judaico-cristão


Pode-se afirmar que, “com o conceito povo de Deus, os padres conciliares
tinham a intenção de mudar a imagem piramidal tradicional da Igreja para outra de
forma circular, em que todos pudessem participar ativamente”.23 O conceito povo é
criação judaico-cristã e não meramente um elemento sociológico.
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O conceito de “povo” é conceito espiritual, não científico. É significativo que nem


os filósofos nem as ciências humanas deram muita importância a este conceito.
O “povo” é tão fundamental no cristianismo como o conceito de “liberdade”,
de “palavra”.
Se a Igreja é povo, isso quer dizer que a sua unidade não consiste simples-
mente na comunhão de fé, de sacramentos e de governo. Essas funções geram
uma comunhão espiritual. Porém, essa comunhão deve encarnar-se numa
comunhão humana.24

É fundamental compreender a sinodalidade a partir do conceito de povo de


Deus. No povo de Deus, a comunhão se realiza na vertical e na horizontal. Nesse
sentido, o Vaticano II fechou a porta ao individualismo, abrindo-se à fraternidade.
Deus quer salvar em comunidade,25 pois “o individualismo não nos torna mais iguais,
mais irmãos”,26 sustenta o Papa Francisco. E ainda, afirma:

A evangelização é dever da Igreja. Este sujeito da evangelização, porém, é mais do


que uma instituição orgânica e hierárquica; é, antes de tudo, um povo que peregrina
para Deus. Trata-se, certamente, de um mistério que mergulha as raízes na Trin-
dade, mas tem a sua concretização histórica num povo peregrino e evangelizador.27

Um dos traços de grande relevância do Vaticano II sobre a temática eclesioló-


gica foi a passagem de uma eclesiologia jurídica e apologética para uma eclesiologia

22 PASTOR, F. A. Reino e história. São Paulo: Loyola, 1982. p. 22.


23 CAVACA, O. A Igreja, povo de Deus em comunhão – Lumen Gentium1-59. In: ALMEIDA, J. C.; MANZINI, R.;
MAÇANEIRO, M. (org.). As janelas do Vaticano II: A Igreja em diálogo com o mundo. Aparecida: Santuário,
2013. p. 124.
24 COMBLIN, J. O povo de Deus. São Paulo: Paulus, 2002. p. 14, 147.
25 PAULO VI. Constituição Dogmática Lumen Gentium: sobre a Igreja, n. 9. Disponível em: https://www.vatican.
va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19641121_lumen-gentium_po.html.
Acesso em: 29 out. 2022.
26 PAPA FRANCISCO. Fratelli tutti. Todos irmãos, sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Loyola,
2020. n. 105.
27 PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulinas, 2013. n. 111.
84

pneumática; de uma eclesiologia voltada para si mesma para uma eclesiologia vol-
tada para a sociedade contemporânea; de uma eclesiologia societária e corporativa
para uma eclesiologia comunial e colegial; de uma eclesiologia dogmatizada para
uma eclesiologia cristocêntrica; de uma eclesiologia clericalizada e hierarquizada
para uma Igreja de todo o Povo de Deus. Desse modo, o Vaticano II recuperou a
eclesiologia de comunhão dos primeiros séculos da Igreja. É uma Igreja que almeja
deixar-se guiar novamente pelo Espírito Santo, e qualquer modo de uniformidade é
contrário ao Espírito.

5. Francisco e a sinodalidade
O processo sinodal guiado pelo Papa Francisco é verdadeiramente o que se
entende na história por processo: fase preparatória, celebrativa e atuativa.28 O Papa

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afirma que “para caminhar juntos, a Igreja de hoje precisa de uma conversão à expe-
riência sinodal”.29 A necessidade de exercer a sinodalidade é expressa nestes termos
pelo perito conciliar De Lubac: “mais do que uma instituição a Igreja é uma vida que
se comunica”.30 Francisco orienta no sentido de que “a história da Igreja testemunha
amplamente a importância do processo consultivo, para se conhecer o parecer dos
Pastores e dos fiéis no que diz respeito ao bem da Igreja”. E, continua: “assim, é de
grande importância que, mesmo na preparação das Assembleias sinodais, receba
especial atenção a consulta de todas as Igrejas particulares”.31
Na proposta sinodal de Francisco não há conflito entre a comunhão de todos na
Igreja e sua estrutura hierárquica. Do Sínodo dos Bispos, a esse respeito, o Papa afirma
que é “instrumento adequado para dar voz a todo o povo de Deus precisamente por
meio dos Bispos”.32 E também, que a dinâmica sinodal promove a comunhão entre
todos os membros da Igreja.

Graças também ao Sínodo dos Bispos, aparecerá cada vez mais claro que, na Igreja
de Cristo, vigora uma profunda comunhão quer entre os Pastores e os fiéis, pois
cada ministro ordenado é um batizado entre os batizados, constituído por Deus
para pastorear o seu Rebanho, quer entre os Bispos e o Romano Pontífice, pois o
Papa é um Bispo entre os Bispos, chamado simultaneamente – como Sucessor do
apóstolo Pedro – a guiar a Igreja de Roma que preside no amor a todas as Igrejas.33

28 PAPA FRANCISCO. Constituição Episcopalis Communio. Disponível em: https://www.vatican.va/content/


francesco/pt/apost_constitutions/documents/papa-francesco_costituzione-ap_20180915_episcopalis-
communio.html. Acesso em: 22 dez. 2021.
29 PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazônia, n. 88. Disponível em: https://www.
vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20200202_
querida-amazonia.html. Acesso em: 23 fev. 2022.
30 DE LUBAC, H. Meditación sobre la Iglesia. Madrid: Encuentros, 1980. p. 53.
31 PAPA FRANCISCO. Constituição Episcopalis Communio. 2018, n. 7. Disponível em: https://www.vatican.va/
content/francesco/pt/apost_constitutions/documents/papa-francesco_costituzione-ap_20180915_episcopalis-
communio.html. Acesso em: 22 dez. 2021.
32 Ibid., n. 6.
33 Ibid., n. 10.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 85

A sinodalidade promove a corresponsabilidade missionária de todos os membros


da Igreja. A condição de “primeiro nível da sinodalidade” atribuída à Igreja local tem
sua razão de ser na convivência e na colaboração cotidiana entre todos os membros da
Igreja, já que é primariamente nesse âmbito eclesial que se concretizam a correspon-
sabilidade e a participação na evangelização, bem como nos processos conduzidos em
vista do regular funcionamento das estruturas e dos eventos de natureza sinodal (o Papa
menciona o Sínodo diocesano e os “organismos de comunhão”: Conselho Presbiteral,
Colégio dos Consultores, Cabido de Cônegos e Conselho Pastoral). Diversas vezes,
Francisco pede que o Bispo ouça o que o “Espírito diz às Igrejas” (Ap. 2, 7).34
E, ainda, é fundamental relembrar o pensamento elaborado por Joseph Ratzinger
(Papa emérito Bento XVI) que afirma que há duas grandes distorções históricas a respeito
do conceito original de Igreja. No primeiro momento, na compreensão bíblico-patrística,
a Igreja foi concebida como Povo de Deus que se concentra no corpo de Cristo mediante
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a celebração da eucaristia, que é uma concepção eclesiológica sacramental. A primeira


distorção foi o conceito medieval que apresentou o corpus ecclesiae mysticum, uma
concepção do corpo jurídico corporacionista. A Igreja é, desse modo, compreendida não
como corpo de Cristo, mas como corporação de Cristo. E a segunda distorção foi nos
tempos modernos, onde se preferiu desenvolver o conceito romântico Corpus Christi
Mysticum, misterioso organismo místico de Cristo. É uma concepção místico organo-
lógica. O hoje Papa emérito Bento XVI concluiu que o conceito povo de Deus e Corpo
de Cristo estão em uma perfeita harmonia: “como o Antigo Testamento está incluído
no Novo, assim, o povo de Deus está imerso no Corpo de Cristo”.35 Da compreensão
também desta realidade depende o assumir o estilo sinodal no século XXI.36

6. Eventos sinodais no Brasil


A seguir, serão apresentadas notas de alguns eventos sinodais na Igreja do Brasil.
Organizados dentro da dinâmica da pirâmide invertida, se começa pelas Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs). Eventos, como acontecimentos sinodais, se desdobraram
em práticas sinodais na busca de mudanças na estrutura da instituição, para que toda
a organização seja sinodal; outros acontecimentos continuam como eventos.

6.1 Comunidades eclesiais de base (CEB’s)

A tarefa de se precisar o momento do nascimento das CEB’s no Brasil não é fácil.As


CEB’s37 não foram resultantes de uma ação burocrática, administrativa, planejada por

34 PAPA FRANCISCO. Constituição Episcopalis Communio, n. 6. Disponível em: https://www.vatican.va/content/


francesco/pt/apost_constitutions/documents/papa-francesco_costituzione-ap_20180915_episcopalis-
communio.html. Acesso em: 22 dez. 2021.
35 RATZINGER, J. O novo Povo de Deus. São Paulo: Paulinas, 1974. p. 97-98.
36 SOUZA, N. Dimensões históricas da sinodalidade. In: AQUINO, F.; PASSOS, J. D. (org.). Por uma Igreja
sinodal. Reflexões teológicos-pastorais. São Paulo: Paulinas, 2022. p. 21-40.
37 CNBB. Diretrizes. Disponível em: https://www.cnbbo2.org.br/wp-content/uploads/2016/11/04-Diretrizes-
Gerais-da- a%C3%A7%C3%A3o-Pastoral-da-Igreja-no-Brasil-1975-1978.pdf. Acesso em: 29 mar. 2022.
86

algum órgão já estabelecido. No documento da CNBB Diretrizes (1975-1978) aparece


pela primeira vez o nome comunidade eclesial de base: “embora numerosas e válidas,
as primeiras experiências das “comunidades eclesiais de base” não conseguiram ainda
indicar os caminhos para uma extensão e verdadeiramente ampla dessas experiências”.38
O início, do que mais tarde se denominaria Comunidade Eclesial de Base, foi de ações
isoladas e com objetivos de evangelização bem definidos, para atender as necessidades
pastorais de uma determinada diocese ou região. Essa experiência evangelizadora se
deu com o desenvolvimento da prática da vida comunitária. Estes são alguns pontos
comuns a todas elas: a partir da leitura e reflexão da Sagrada Escritura, tendo como
ponto principal o Mistério Pascal, estendia-se a vida existencial da comunidade, com
suas dificuldades, injustiças e desigualdades sociais. Ainda, as CEB’s surgiram em áreas
pobres, rurais, onde o poder público era ausente e a Igreja-instituição não era atuante.
A experiência evangelizadora das CEB’s migrou do meio rural para o meio urbano,
principalmente para as periferias pobres e desassistidas das cidades.

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As experiências ocorridas no final da década de 1950, em Barra do Piraí (RJ), com
Dom Agnelo Rossi, e em Natal (RN), no MEB (Movimento de Educação de Base),
com Dom Eugênio Salles, são geralmente citados como acontecimentos precursores
das CEB’s. O movimento de Barra do Piraí se originou por uma falha da estrutura ecle-
siástica.Devido à falta crônica de sacerdotes, a população ficou desassistida e, com o
crescimento das igrejas pentecostais, na época chamadas de “igreja dos crentes”, o bispo
Dom Agnelo Rossi lançou um programa que formava e instruía o laicato para ocupar
algumas atividades eclesiais e, desse modo, suprir a falta de sacerdotes. A instrução
era fornecida para um ou uma catequista popular que sabia ler. O leigo que tivesse
boa vontade e quisesse ajudar a Igreja, recebia um material catequético a ser lido na sua
comunidade, mas, de modo algum, devia comentá-lo ou interpretá-lo. “Dar a leigos
morigerados, de boa vontade, o material necessário para que eles leiam. O catequista
popular lê e não fala. É um leitor, não um pregador ou um improvisador”.39
As comunidades formadas visavam, sem dúvida, atender, primeiro, as necessida-
des eclesiais do povo, devido à ausência de sacerdotes. Porém, com o crescimento do
movimento, passaram a ocupar todos os povoados da diocese. Os lugares de encontro
deixaram de ser as capelas e passaram a ser os salãos comunitários, onde a reunião siste-
mática organizava a vida comunitária e passava a responder por soluções das demandas
existenciais da população, fornecendo cursos de alfabetização, corte e costura, mutirões
para a construção de outros salões etc.; também, buscava-se a arrecadação de recursos.
A experiência originária de uma necessidade pastoral adentra para a reflexão e o
agir de uma experiência de vida. O crescimento dos núcleos comunitários foi expressivo.

6.2 O movimento de Natal


“Qualquer plano de desenvolvimento que não se baseia na organização de
comunidades – com uma efetiva participação de seus membros – e na preparação de

38 CNBB. Diretrizes, n. 2.3 Disponível em: https://www.cnbbo2.org.br/wp-content/uploads/2016/11/04-Diretrizes-


Gerais-da- a%C3%A7%C3%A3o-Pastoral-da-Igreja-no-Brasil-1975-1978.pdf. Acesso em: 29 mar. 2022.
39 ROSSI, A. Uma experiência de catequese popular. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, n. 17, fasc. 3,
p. 732, 1957.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 87

seus líderes será extremamente difícil de concretizar-se”.40 O Movimento de Natal


(RN) foi o primeiro e o mais consistente programa de alfabetização popular. Neces-
sário recordar que naquele período, a taxa de analfabetismo no Nordeste era superior
a 60% da população. Esta experiência foi levada a efeito por Dom Eugênio de Araújo
Sales, bispo auxiliar de Natal (futuro arcebispo do Rio de Janeiro e cardeal) que, por
meio das escolas radiofônicas, levava para as classes mais desassistidas não apenas
a alfabetização, mas formação social, comunitária, religiosa e de conscientização
política. O Movimento de Natal também surgiu de uma necessidade material, da
realidade de miséria em que vivia grande parte da população nordestina e da preo-
cupação de alguns padres em fazer algo para mudar aquela situação.41

6.3 Nísia Floresta


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Ainda no Movimento de Natal, presenciou-se a experiência pastoral de Nísia


Floresta, onde mais uma vez, por falta de sacerdotes, o arcebispo Dom Eugênio
Sales incentivou e estabeleceu que freiras assumissem a condução de uma paróquia,
exercendo tarefas sacerdotais, incluindo a Celebração da Palavra durante a semana.
Isso em uma época em que se rezava a missa em latim, de costas para o povo e o
laicato não podia se aproximar do altar. Um padre celebrava a missa aos domingos
e ministrava outros sacramentos.42 Nesta localidade está o embrião da Campanha
da Fraternidade (CF), sinal de sinodalidade. A primeira Campanha ficou restrita à
Arquidiocese de Natal. Em 1964 será organizada como Campanha nacional, o que
ocorre até a atualidade, tornando-se um evento do “caminhar juntos”. Até 2021 foram
realizadas 5 Campanhas da Fraternidade ecumênicas e isso revela “a abertura da
Igreja Católica para as outras Igrejas e Comunidades eclesiais no empenho irreversí-
vel para caminhar juntos em direçãoà plena unidade na diversidade reconciliada das
respectivas tradições”.43 Aqui, um outro fator pertinente, no decorrer desses anos, que
vai além da CF, é a “convergência da Igrejacomo Koinonia, que se realiza em cada
Igreja local e na sua relação com as outras Igrejas através de específicas estruturas e
processos sinodais”.44
No período pós-conciliar as CEBs se multiplicaram pelo Brasil e alcançaram as
periferias das grandes cidades. O laicato se engajava decididamente em uma nova forma
de ser Igreja ou de participar da Igreja e se lançava nas chamadas pastorais sociais, fé e
vida, ou qualquer outro nome para tentar transformar as estruturas seculares que influen-
ciavam a sua existência. A Bíblia tornou-se companheira das comunidades, suscitando

40 SALES, E. A Igreja na América Latina e a promoção humana. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis,
v. 28, fasc. 3, p. 65, 1968.
41 SALES, E. Uma experiência pastoral em região subdesenvolvida do Nordeste brasileiro. Revista da
Conferência dos Religiosos do Brasil 10, p. 129-136, 1964.
42 TEIXEIRA, F. L. C. A gênese das ceb’s no Brasil. São Paulo: Paulinas, 1988. p. 67-71.
43 COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. A sinodalidade na vida e na missão da Igreja, 106d. Disponível
em: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_cti_20180302_sinodalita_po.
html. Acesso em: 20 mar. 2022.
44 Ibid., 116.
88

iniciativas ecumênicas como o CEBI (Centro de Estudos Bíblicos). É evidente que este
é um “empenho prioritário e critério de toda a ação social do povo de Deus o imperativo
de escutar o grito dos pobres e aquele da terra...”.45 Neste processo histórico, a próxima
etapa das CEBs foi a organização dos Encontros Intereclesiais.

6.4 Encontros intereclesiais

Para a renovação da missão da Igreja “é essencial a participação dos fiéis leigos.


Estes são a imensa maioria do povo de Deus e se tem muito a aprender da sua parti-
cipação nas diversas expressões da vida e da missão das comunidades eclesiais, da
piedade popular e da pastoral de conjunto, assim como da sua específica competência
nos vários âmbitos da vida cultural e social”.46
Os Encontros Intereclesiais das Comunidades de Base são de enorme relevância

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em sua história no Brasil na perspectiva da sinodalidade. Os eventos, que somam 14
até o momento, contam com a participação do laicato, de bispos, religiosos, religio-
sas, padres, membros de outras comunidades religiosas e participação de pessoas de
outros países. O 1º Intereclesial foi realizado em Vitória (ES – 1975), com o tema:
Uma Igreja que nasce do povo pelo espírito de Deus. Em sequência vieram os outros
13: Vitória (ES – 1976), João Pessoa (PB – 1978), Itaici (SP – 1981), Canindé (CE
– 1983), Trindade (GO – 1986), Duque de Caxias (RJ – 1989), Santa Maria (RS –
1992), São Luís (MA – 1997), Ilhéus (BA – 2000), Ipatinga (MG – 2005), Porto Velho
(RO – 2009), Juazeiro do Norte (CE – 2014), Londrina (PR – 2018). Do encontro de
Juazeiro do Norte participaram2248 mulheres e 1788 homens, 72 bispos, 232 padres
e 146 religiosas e religiosos, 75 indigenas, 20 membros de outras igrejas cristãs, 35
pessoas de outras religiões,36 estrangeiros e 68 assessores e membros da coordenação
ampliada. Assim foi se evidenciado a tipologia sinodal destes Encontros.

6.5 CNBB, Assembleias das Igrejas locais, regionais e Assembleias do


Episcopado

No final dos anos 40, a Igreja no Brasil vivia uma profunda descentralização,
justamente no momento em que o país caminhava para uma centralização.
É neste contexto que o padre Helder Câmara procura unir os bispos numa Con-
ferência episcopal. A fundação da CNBB acontece no Rio de Janeiro, no palácio
São Joaquim (14/10/1952),tendo como 1º Presidente Dom Carlos Carmelo de Vas-
concellos Motta (cardeal arcebispo de São Paulo) e Secretário Geral, D. Helder
Pessoa Câmara (bispo auxiliar no Rio de Janeiro).47 No ano de 1954 foi criada

45 Ibid., 119.
46 PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulinas, 2013. n. 126; COMISSÃO
TEOLÓGICA INTERNACIONAL. A sinodalidade na vida e na missão da Igrejan. 73. Disponível em: https://
www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_cti_20180302_sinodalita_po. html.
Acesso em: 20 mar. 2022.
47 BARROS, R. C. Gênese 3 consolidação da CNBB no contexto de uma Igreja em plena renovação. In:
INSTITUTO NACIONAL DE PASTORAL (org.). Presença pública da Igreja no Brasil. São Paulo: Paulinas,
2003. p. 26-31.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 89

a CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil), responsável pela renovação da


vida religiosa e articuladora para a participação dos religiosos na pastoral de
conjunto da Igreja no Brasil.
Na V Assembleia da CNBB (1962) foi aprovado o Plano de Emergência (PE),48
um conjunto de diretrizes e medidas pastorais com o propósito de renovação eclesial.
Informalmente teria início o Plano de Pastoral de Conjunto (PPC). O PPCfoi discutido
e votado na VII Assembleia da CNBB em Roma durante o último período do Concílio
Vaticano II. A aprovação do PPC se deu em 15 de novembro de 1965. De acordo com
o objetivo geral, o PPC deveria criar meios e condições para que a Igreja do Brasil
se ajustasse, o mais rápido e plenamente possível à imagem do Vaticano II. Coubeà
X Assembleia (1969) rever o PPC e levar adiante o processo, mesmo sem grandes
demonstrações de entusiasmo pelo Plano. Neste momento é criado o órgão executivo
colegiado da entidade, a Comissão Episcopal de Pastoral (CEP) e a elaboração de
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Planos Bienais (a partir de 1971); a partir de 1974, das Diretrizes Gerais da Ação
Pastoral que, significativamente, desde 1995, muda o nome para Diretrizes Gerais
da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil.
A CNBB – com suas Campanhas (Fraternidade e Evangelização), 12 Comissões
Episcopais de Pastoral para promover a pastoral orgânica, 23 Pastorais Nacionais,
articulando a ação pastoral da Igreja no Brasil, 16 Organismos que representam as
diversas categorias do povo de Deus (a título de exemplo,CNLB, Conselho Nacional
do Laicato do Brasil; CIMI-Conselho Indigenista Missionário, lutando pelo direito
dos Povos Indígenas e a CPT- Comissão Pastoral da Terra com as Romarias da Terra,
posteriormente Terra e Água), 5 Entidades parceiras e vinculadas à Conferência e
18 Regionais – pôde, muitas vezes, vivenciar a sinodalidade da Igreja no Brasil. As
Assembleias dos Regionais, das Províncias, das Dioceses e Prelazias e tantas outras
atividades ligadas a estas, constituem um inerente ardor de uma ação conjunta, um
desejo e ato de caminhar juntos. Eis um sinal de sinodalidade, mesmo com sinais
pontuais de pensamentos e práticas diversos.
A Igreja do Brasil participou e participa ativamente da sinodalidade latino-
americana e caribenha, como, por exemplo, as Conferências Gerais do Episcopado
em Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007).
E recentemente, 2014, na organização da REPAM (Rede Eclesial Pan-Amazônica).49
As entidades fundadoras da REPAM são: Conselho Episcopal Latino-Americano
(CELAM), Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Secretariado da
América Latina e Caribe da Caritas (SELACC), Conferência Latino-Americana e
Caribenha de Religiosos e Religiosas (CLAR).

Conclusão
Enquanto o clericalismo mantiver acento primordial pela “porta central”, a
sinodalidade não “sai correndo”, mas é expulsa pela “janela”. Para que a sinodalidade

48 FREITAS, M. C. Uma opção renovadora. A Igreja no Brasil e o planejamento pastoral, estudo genético-
interpretativo. São Paulo: Loyola, 1997. p. 95-136.
49 Outras informações em: https://repam.org.br/?page_id=868 e https://repam.org.br/. Acesso em: 5 set. 2022.
90

seja a prática efetiva da instituição é urgente que a grande maioria da hierarquia se


reconcilie com o Evangelho, com o Concílio Vaticano II e com o laicato. O laicato
não é inimigo do clero; o Vaticano II afirma que o ministério sacerdotal somente pode
ser exercido em comunhão com todo o corpo da Igreja.50 É o sacerdócio comum dos
fiéis: “os leigos, dado que são participantes do múnus sacerdotal, profético e real de
Cristo, têm um papel próprio a desempenhar na missão do inteiro povo de Deus, na
Igreja e no mundo”.51 Sem dúvida, “o futuro da Igreja e a Igreja do futuro dependerão
da vitalidade da participação dos leigos”.52
Sem espírito de serviço nunca ocorrerá a sinodalidade. O autoritarismo é uma
das grandes causas do afastamento dos fiéis das comunidades. Estes se sentem ali-
jados de qualquer processo da condução da comunidade e, de maneira especial, das
transferências dos padres das paróquias e das decisões internas das comunidades,
dioceses. É urgente a inversão piramidal. Na Igreja sinodal “não convém que o

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Papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas
que sobressaem nos seus territórios. Neste sentido, sinto a necessidade de proceder
a uma salutar descentralização”,53 afirma Francisco. Uma Igreja centralizadora está
fadada à infertilidade e ao descrédito por mais que tenha visibilidade.
O que é mais do que evidente é que a Igreja necessita de renovação.

Uma Igreja sinodal é como estandarte erguido entre as nações (cf. Is 11, 12)
num mundo que, apesar de invocar participação, solidariedade e transparência
na administração dos assuntos públicos, frequentemente entrega o destino de
populações inteiras nas mãos gananciosas de grupos restritos de poder. Como
Igreja que caminha junta com os homens, compartilhando as dificuldades da
história, cultivamos o sonho de que a redescoberta da dignidade inviolável dos
povos e da função de serviço da autoridade poderá ajudar também a sociedade
civil a edificar-se na justiça e na fraternidade, gerando um mundo mais belo e mais
digno do homem para as gerações que hão de vir depois de nós.54

As mudanças ainda dependem de uma realidade piramidal. Em parte, alguns


clérigos pensam que a sinodalidade é um exercício de legislar contra si mesmos. Só
o Espírito para abrir mentalidades e horizontes para que a instituição caminhe num
processo sinodal. A sinodalidade está na origem da Igreja. É necessário voltar às
fontes, tendo os pés fincados na realidade do tempo presente.

50 PAULO VI. Presbyterorum Ordonis: sobre o mistério e a vida dos sacerdotes, n. 15. Disponível em: https://
www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decree_19651207_presbyterorum-
ordinis_po.html. Acesso em: 22 mar. 2022.
51 PAULO VI. Apostolicam Actuositatem: sobre o apostolado dos leigos, n. 2. Disponível em: https://www.
vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decree_19651118_apostolicam-
actuositatem_po.html. Acesso em: 26 mar. 2022.
52 LIBANIO, J. B. Concílio Vaticano II, em busca de uma primeira compreensão. São Paulo: Loyola, 2005. p. 182.
53 PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, n. 16.
54 PAPA FRANCISCO. Discurso comemorativo dos 50 anos do Sínodo, 2015. Disponível em: https://www.vatican.
va/content/francesco/pt/speeches/2015/october/documents/papa-francesco_20151017_50-anniversario-
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ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 91

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“UM SÓ CORPO E UM SÓ ESPÍRITO”
– A RIQUEZA DA MINISTERIALIDADE
DA IGREJA: dos primeiros
tempos aos nossos dias
Rodrigo José Arnoso Santos1

Introdução
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As comunidades cristãs, desde as suas primeiras horas, seguindo o mandato de


Jesus de anunciar a todos o Evangelho (Cf. Mc 16, 15-16), sempre reservaram uma
atenção particular à sua dimensão ministerial. Em todos os tempos e contextos, sob o
impulso dinamizador do Espírito Santo, os membros das comunidades eclesiais fize-
ram surgir ministérios que se colocaram a serviço da animação da vida missionária da
Igreja. Aliás, a diversidade ministerial na Igreja é um dos grandes testemunhos de que
o Espírito Santo sopra onde deseja (cf. Jo 3,8). Na sua essencialidade a comunidade
eclesial é missionária; por isso, através da pregação do Evangelho, ela torna o Cristo
conhecido e convoca todos a viverem a partir Dele e Nele. Entretanto, a missionariedade
da Igreja gera os seus frutos mais promissores quando advém de um autêntico exercício
ministerial que, abraçado pelos batizados, faz crescer o Reino de Deus, em favor de
todos. No ontem e no hoje, ao atravessar diversos séculos, a vida ministerial da Igreja
viveu momentos de avanços e retrocessos, aberturas e fechamentos, profecia e omissão.
O que precisamos ressaltar é que, para o campo da ministerialidade eclesial, a expressão
latina ecclesia semper reformanda nunca foi deixada de lado, mas há muito tempo vem
servindo de estímulo para se repensar a sua diversidade ministerial. A preocupação
primeira da Igreja não está na manutenção de suas estruturas, mas nas pessoas a serem
evangelizadas, no como evangelizá-las e ser evangelizada por elas.

1. Os ministérios no período apostólico e pós-apostólico


As comunidades eclesiais primitivas logo após os eventos da cruz, da Ressurreição
do Senhor e de Pentecostes viveram um profícuo período de expansão.2 Este movimento

1 Missionário Redentorista, presbítero. Mestre em Sagrada Liturgia pelo Pontifício Instituto Litúrgico de Roma,
Ateneo Sant’Anselmo. Doutorando em Teologia pelo Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUC-SP.
Membro do Grupo de Pesquisa Teologia Litúrgica e Inteligência Senciente. Professor no Centro Universitário
Salesiano de São Paulo. Campus Pio XI e no Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP), na área
de teologia sacramental e introdução à liturgia. Secretário-executivo da Associação dos Liturgistas do Brasil.
2 VELASCO, R. A Igreja de Jesus: Processo histórico da Consciência Eclesial. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 53-54.
96

se deu sob a orientação dos apóstolos que, com fidelidade criativa, buscaram, por meio
do testemunho, ações e gestos continuar a missão de Jesus. O livro dos Atos dos Após-
tolos é rico em diversas passagens que apontam a criatividade apostólica. É interessante
anotar que a ministerialidade da Igreja, nas suas primeiras horas, foi engendrada em
meio a uma situação de perseguição. As iniciativas empreendidas por imperadores,
que tentavam fazer calar a voz dos primeiros discípulos de Jesus, dão origem a uma
ministerialidade, sinal de oposição contundente aos que achavam possível a decadência
do grupo dos discípulos do “Caminho”, como eram conhecidos.

As primeiras comunidades cristãs nasceram da experiência de encontro com Jesus


de Nazaré, acolhido pela fé como o Cristo, mas também a partir da pregação de
seus discípulos, seja depois de Pentecostes como também antes. Nessas comu-
nidades se formaram, desenvolveram e estruturaram as mais variadas formas

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de ministérios.3

Da estrutura deixada pelo Jesus histórico dos 12 apóstolos, dos quais podemos
colher alguns testemunhos dos evangelhos sinóticos4, do Evangelho de João5, dos Atos
dos Apóstolos6, da Primeira Carta de Paulo aos Coríntios7 e no Livro do Apocalipse8,
aparecerá a diaconia, os diáconos. Estes serão os colaboradores diretos dos apóstolos,
na koinonia de atendimento aos pobres, órfãos, viúvas e os estrangeiros das primeiras
comunidades. Dos testemunhos bíblicos, colhemos que os sete primeiros diáconos rece-
beram a imposição das mãos (gesto herdado do judaísmo) com tarefa de possibilitarem
aos apóstolos um tempo maior de serviço à pregação do Evangelho de Cristo. O gesto da
imposição das mãos, desde o início da Igreja, será utilizado pela comunidade cristã como
um sinal de transmissão de um ministério, por meio da invocação do Espírito Santo.9
Um dos principais serviços exercidos por aqueles que recebiam a imposição
das mãos era o da pregação da Palavra. O ministério da pregação ou anúncio do
Senhor exercia uma dupla tarefa essencial: em primeiro lugar, consistia num modo
de fazer o Cristo Ressuscitado conhecido e de perpetuar os seus ensinamentos; em
segundo lugar, num método eficaz de exortação das comunidades eclesiais primi-
tivas, com o intuito de mantê-las unidas, mas também conscientes do propósito de

3 AZEVEDO, C. P. Onde estamos nós? Uma reflexão histórico-teológica sobre os ministérios na Igreja. In:
SOUZA, N. (org.). Teologia em Diálogo: Os desafios da reflexão teológica na atualidade. Aparecida: Santuário,
2011. p. 380.
4 Nos Evangelhos Sinóticos, encontraremos diversas passagens em que os 12 apóstolos serão recordados
como fiéis colaboradores do próprio ministério de Jesus Cristo. Em Mateus encontraremos 9 referências:
10,1; 10,2; 10,5; 11,1; 19,28; 20, 17; 26,14; 26,20, 26,47; em Marcos, 11 referências: 3,14; 3,16; 4,10; 6,7;
8,19; 9,35; 10,32; 11,11; 14,10; 14,17; 14,43; em Lucas, 7 referências: 6,13; 8,2; 9,1; 9,12; 18,3; 22,3; 22,47.
5 No livro de João, os 12 apóstolos serão recordados por quatro vezes: 6,67; 6,70.
6 No livro dos Atos dos Apóstolos, encontraremos apenas uma única referência: 6,2.
7 O Apóstolo dos gentios, recordando as manifestações de Jesus após a sua ressurreição, recorda que
apareceu a Céfas e depois aos doze: 15,5.
8 No livro do Apocalipse de São João, encontraremos uma menção aos apóstolos: 21,14.
9 FERRARO, G. Ordem/ordenação. In: SARTORE, D.; TRIACCA, A. M. (org.). Dicionário de Liturgia. São
Paulo: Paulus, 2004. p. 828-829.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 97

existirem. “O anúncio indica o ‘aqui e agora’, o ‘momento favorável’ (kairós) da


graça, para atender como possibilidade de encontro e de comunhão com Deus que
nos alcança em Jesus”.10
Além dos ministérios dos apóstolos e dos diáconos é possível também encon-
trarmos outros serviços ministeriais que vão ao encontro das necessidades do acom-
panhamento dos membros da comunidade eclesial. Paulo, em sua Primeira Carta aos
Coríntios, faz aparecer um elenco riquíssimo de ministérios como resultado de uma
ação do Espírito, que mantém a dinamicidade da comunidade (cf. 1Cor. 12,4-11). Os
ministérios são diversos, todavia, o Espírito é único, e faz da comunidade um único
corpo, cuja cabeça é o Cristo. Weizenmann, em um estudo sobre os ministérios na
Igreja, afirma:

Além de Pedro e dos Onze, a comunidade cristã não recebeu nenhum ministério
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específico de Jesus histórico. Ainda assim, o Novo Testamento testemunha incon-


teste participação ativa e multiforme de serviços ao interno da comunidade cristã.
Parece que a Igreja se tenha permitido os ministérios de acordo com as suas neces-
sidades (cf. At. 6,1-6), sendo que os escopos a serem atingidos determinavam os
ministérios. Na explicitação ministerial, a Igreja é conduzida pelo Espírito Santo,
simultaneamente seu princípio de unidade (cf. 1Cor. 12,4-7) e de multiplicidade.11

A ministerialidade no período apostólico indica a dinamicidade vivida pelas


primeiras comunidades, aquelas que responderam criativamente ao serviço de fazer
chegar aos confins da terra a proposta do Evangelho de Jesus Cristo. As perseguições
e o martírio experimentados por muitos discípulos do Ressuscitado contribuíram
para que a chama da fé pudesse fumegar, com mais intensidade, em muitas partes
do mundo. O resultado da perseverança dos discípulos, no propósito do anúncio do
Evangelho, pode ser observado na ministerialidade exercida por aqueles que se dedi-
caram a registrar, para a posteridade, os atos, fatos e ensinamentos experimentados
pelas comunidades nascentes e florescentes, em meio à perseguição.

O ministério primitivo não é potestade, poder ou dignidade, nem constitui um


estado ao modo dos senhores romanos, mas sim uma função de serviço aos demais;
assim, seu caráter diaconal significa que a Igreja inteira e cada comunidade em
concreto são servidoras.12

Na experiência ministerial das primeiras comunidades é possível constatar os


esforços dos discípulos em fazer surgir comunidades e em assistir aos seus membros.
Aqueles que pelo batismo são acolhidos na comunidade são formados pela pregação
e pelo alimento oferecido através da celebração da fração do pão, para um discipu-
lado consciente, ativo e pleno. O anúncio do querigma faz a Igreja crescer. Assim,

10 BISCONTIN. C. Pregar a Palavra: A ciência e a arte da pregação. Brasília: CNBB, 2015. p. 32.
11 WEIZENMANN, M. Os Ministérios na Igreja. Teologia em Questão, Taubaté, ano XVI, jul./dez. 2017. p. 15.
12 COSTA, A. D. Os ministérios no Novo Testamento. Revista de Cultura Teológica, São Paulo, ano VII, p. 64,
abr./jun. 1999.
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do pequeno ao grande serviço, todos empenham-se em frutificar a semente do Reino,


plantada pelo próprio Jesus. Tudo isto será realizado à luz do Espírito Santo que, desde
o princípio, deu à Igreja um renovado ardor missionário. Nesta realidade nascente,
a ministerialidade da Igreja é alimentada pelo binômio comunidade-ministérios.

Todos os esforços da Igreja, que tem por fim dilatar o Reino de Deus e comunicar
a salvação dada a nós no Mistério Pascal de Cristo, são feitos através dos ministé-
rios. Eles constituem a força da Igreja e é através deles que ela realiza sua missão
e vocação: instaurar o Reino de Deus.13

Do período apostólico, paulatinamente passamos para o período pós-apostólico,


testemunhado por algumas páginas do Novo Testamento. Nestas são nomeados alguns
ministérios que vão ocupando pouco a pouco um papel de destaque nas comunidades

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primitivas, sobretudo na liderança e coordenação do povo da nova aliança. Todavia,
precisamos anotar, em primeiro lugar, que o período apostólico se encerra com as
mortes dos apóstolos Pedro e Paulo, em torno dos anos 64-67. O Atos dos Apóstolos
e as Cartas Paulinas serão testemunhas deste novo tempo que se descortina para
a Igreja. Encontramos um conjunto de textos que fala dos ministérios dos Profetas
e dos Doutores, responsáveis no tempo pela celebração da liturgia, pela pregação,
ensino e proclamação da Palavra. Estes são guias e animadores das comunidades
(cf. At. 13,1-2). As Cartas Paulinas recordam os ministérios dos profetas, doutores
e apóstolos. Entretanto, um outro testemunho que encontraremos nestas cartas é o
da participação das mulheres, em alguns ministérios de colaboração e animação das
comunidades (cf. 1Cor. 11,5; Rm. 16; Cl. 4,5; Fm. 1-2).
Ainda neste período das Cartas Pastorais, recolhemos o testemunho de dois
outros importantes ministérios presentes nas comunidades primitivas: dos Evangelis-
tas e dos Pastores. “Os evangelistas e pastores surgem logo após o desaparecimento
daqueles que passaram a ser conhecidos como os fundadores da Igreja (cf. Ef. 2,20):
os apóstolos e profetas; não é mais tempo de grandes expansões geográficas, mas de
consolidação das comunidades.14
Aos Evangelistas cabia o serviço da didaskalia (cf. 1Tm. 4,16; Tt. 2,1). Tal ser-
viço era realizado no seio da assembleia litúrgica, seja pela proclamação da Palavra,
seja pela sua explicação ou pregação (cf. 1Tm. 4,13; 2Tm. 63,1). Os Evangelistas e
Pastores tinham por função zelar para que os membros das primeiras comunidades
pudessem manter-se animados na prática da fé e no exercício missionário unidos uns
aos outros, num só corpo e num só espírito. Faz-se necessário aqui recordar que estes
dois ministérios não podem ser confundidos com outros ministérios encontrados nas
Cartas Pastorais que, naquele tempo, estavam a serviço da organização e manuten-
ção da harmonia dos membros das comunidades, como dos presbíteros (cf. Tt. 1,5)
e dos diáconos (cf. 1Tm. 3,8-13). Com os ministérios testemunhados pelas Cartas

13 MAZZOCHINI, L. No ministério de Cristo: os ministérios da Igreja. Teologia em Questão, Taubaté, ano VII,
p. 40, jul./dez. 2017.
14 AZEVEDO, C. P. Onde estamos nós, p. 388.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 99

Pastorais, conclui-se o conjunto de ministérios apresentados pelo Novo Testamento e


que surgiram a partir das necessidades e problemas vividos por comunidades locais.15
Neste período se forja, cada vez mais, a consciência de que “a Igreja exerce a
diaconia ministerial de Cristo, confessa e proclama seu Salvador e ela a faz a partir
de todos os seus membros, que pelo batismo se tornam participantes do seu minis-
tério de Salvador”.16

2. Os Padres da Igreja e a ministerialidade


A Igreja nascente, após o período apostólico e pós-apostólico, assiste um flores-
cer cada vez maior da sua ministerialidade. À medida que as comunidades eclesiais
primitivas se desenvolvem engendram-se também novos ministérios, com a missão
de continuar os passos dos primeiros discípulos de Cristo. Aqui nos encontramos
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num período que, imbuída do Espírito, a Igreja gera uma ministerialidade a serviço
não só da pregação, mas também do registro dos princípios básicos para se viver
com coerência evangélica os valores cristãos. “O passar dos tempos foi forjando uma
fé mais sistematizada e estruturas comunitárias organizadas”.17 As novas estruturas
eclesiais vão requerendo novos ministérios, por isso é preciso pensar a teologia que
os sustentam e os ritos conferidos aos membros das comunidades.
No século II da era cristã, as comunidades começam a conviver com o fenômeno
das heresias, que colocava em xeque a unidade entre os seus membros. Inácio, na
Carta aos Efésios, assevera:

De fato, existem algumas pessoas que dolosamente costumam levar o nome (de
cristãos), mas agem de modo diferente indigno de Deus; é preciso que eviteis
essas pessoas como se fossem feras selvagens. Com efeito, são cães raivosos que
mordem sorrateiramente. Atentos a eles, pois suas mordidas são difíceis de curar.
Existe apenas um médico, carnal e espiritual, gerado, Deus feito carne, Filho de
Maria e Filho de Deus, vida verdadeira na morte, vida primeiro passível e agora
impassível, Jesus Cristo nosso Senhor.18

Tal situação, diante de uma Igreja em crescente evolução, pedirá pela sistemati-
zação da fé e também pelo surgimento de estruturas capazes de manter a unidade entre
aqueles que pelo batismo tornavam-se membros destas comunidades. Recordamos que
neste tempo estas comunidades eram autônomas, por isso elas detinham a liberdade
de criar ministérios, segundo as suas necessidades, sem transmiti-los por meio da
imposição das mãos sobre o escolhido. “A práxis da Igreja será, pois no seguimento
de Jesus, o serviço à humanidade, à realização humana, a que o ser humano assuma
seu poder, sua liberdade, seja autor”.19

15 Ibid., p. 390.
16 MAZZOCHINI, L. No ministério de Cristo, p. 43.
17 AZEVEDO, C. P. Onde estamos nós, p. 390.
18 INÁCIO DE ANTIOQUIA. Carta aos Efésios. In: Padres Apostólicos. São Paulo: Paulus, 1995. p. 84.
19 TABORDA, F. A Igreja e seus ministros: Uma teologia do ministério ordenado. São Paulo: Paulus, 2011. p. 55.
100

Documentos do período irão registrar a existência da tríade ministerial, já tes-


temunhada anteriormente pelas Cartas Paulinas: apóstolos-profetas-doutores. A
Didaqué, as Cartas de Inácio de Antioquia e a Tradição Apostólica de Hipólito de
Roma são documentos elementares para compreendermos a ministerialidade da Igreja
neste tempo.20 Nestas fontes não encontramos apenas as indicações dos ministérios
existentes nas comunidades, que eram livres para criá-los, mas indicativo de elemen-
tos que auxiliam os membros das Igrejas, no discernimento entre os verdadeiros e
falsos servidores do Senhor.21
Entre os ministérios existentes neste período, assumirá grande importância
o dos catequistas. Era deles a responsabilidade da proclamação da Palavra, dentro
das ações litúrgicas da comunidade; aos poucos, vão assumir também o serviço da
instrução dos catecúmenos. Surgem aqueles que elaborarão as famosas catequeses
mistagógicas como Orígenes, Clemente de Alexandria, Agostinho, Cirilo de Jeru-

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salém, entre outros.22
Às fontes acima recordadas, registram-se, ainda, outros ministérios: leitor, sub-
diácono, exorcista, ancião leigo, salmista, acólito, cura, confessor, viúva e virgem.23
Estes ministérios não necessitavam da imposição das mãos; eram instituídos nas
celebrações da comunidade, sem muita ritualidade.
Todavia, o processo de institucionalização dos ministérios faz com que as comu-
nidades comecem a assumir alguns elementos da estrutura imperial. Nesse contexto,
o episcopado passará por um processo de desenvolvimento; qualquer ato oficial da
Igreja deverá “passar pelo crivo” do epíscopo. Por exemplo, o matrimônio entre dois
cristãos dependia da decisão do bispo. Cabia ao bispo também a administração dos
bens temporais da comunidade, bem como a institucionalização litúrgica e canônica
dos ministérios. As comunidades tinham liberdade para criar ministérios, mas não
podiam instituir seus bispos.
Fruto deste período é o processo de estruturação e clericalização dos ministérios
associados à celebração da Eucaristia: a tríade bispo-presbítero-diácono passará a
ser denominada de clerus. Em consequência, o termo leigo passará a denominar
aqueles que não exerciam atividades ligadas à liturgia. Porém, é preciso anotar que
clerus e leigos não se configuravam como forças que se opunham. Constata-se, neste
momento, a liberdade para o exercício dos ministérios.

3. Os ministérios da Idade Média ao Concílio de Trento


O processo de estruturação e institucionalização dos ministérios assume novas
configurações a partir do século IV. Isto se dá por dois eventos que marcarão o iní-
cio deste novo tempo para a história da Igreja e, consequentemente, para a sua vida

20 Na Tradição Apostólica de Hipólito de Roma, de 2-13 encontramos uma lista de alguns dos muitos ministérios
existentes na Igreja de Roma. O documento não fala apenas do significado dos ministérios, mas como se
dá a sua transmissão.
21 DIDACHÉ: dottrina dei dodici apostoli. Cinisello Balsamo: San Paolo, 1999.
22 AZEVEDO, C. P. Onde estamos nós, p. 391.
23 IPPOLITO DI ROMA. La Tradizione Apostolica. Milano: Paoline, 2010. p. 71-75.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 101

ministerial posterior: Editos de Milão e Tessalônica. “A partir do Edito de Milão,


quando o império se faz cristão, muitos se tornaram cristãos por interesse, começou
o relaxamento do fervor antigo”.24 A proclamação destes dois editos é o marco do
nascimento de uma nova eclesiologia e o fim da organização de ministérios, com
características mais carismáticas. Neste período acontece a oficialização da Igreja
como religião do Estado; com isso, as comunidades passam a seguir as estruturas do
Império, em suas estruturas de governo local.25
Na Idade Média se engendrou o princípio da dupla autoridade, que irá influenciar
a vida eclesial até o século XX, com o Concílio Vaticano II. Os séculos VIII e IX
foram marcados pela teoria dos dois princípios, no que tange ao governo da Igreja.26
O imperador passa a ter um poder de influência na Igreja, compreendido como um
tipo de ministro de Deus no mundo; determina, até mesmo, quem seriam os novos
bispos; ainda, convoca Concílios que viriam a tratar das mais diversas questões ligadas
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à fé. Um dos famosos imperadores cristãos foi Carlos Magno.27


Aos papas, neste período, cabia consagrar os imperadores; tal consagração vinha
marcada pelo estabelecimento de concordatas entre o papa e o novo imperador. Aos
papas eram entregues porções territoriais; aos poucos, foram se transformando em
soberanos de Estado. O ministério ordenado ganha cada vez mais prestígio. Assim,
cada grau da ordem transforma-se num degrau para se ascender a uma ordem superior,
atingindo o ponto de se comparar o ministério ordenado à carreira militar.28
O século XI testemunha um desejo de mudança. Membros da Igreja ansiavam
por modificações no seu tipo de governo e pensamento eclesial. Ressalta-se, aqui,
a figura dos monges da abadia de Cluny, que gestaram os princípios da Reforma
Gregoriana.29 O cume desta reforma se dará no século XIV, com o apogeu da hie-
rocracia, fazendo a Igreja uma monarquia eclesiástica. O maior expoente deste tipo
de monarquia foi Gregório VII. Não podemos desconsiderar que esta reforma tenha
gerado frutos para a vida pastoral e espiritual da Igreja.
Os séculos XIV e XV continuam testemunhando o desejo de uma transforma-
ção eclesiológica, em busca de distinguir obediência da fé e obediência ao papa.
Aqui, entram em conflito dois modelos eclesiológicos: um que nasce com a Reforma
Gregoriana e outro que busca um retorno à experiência das comunidades primitivas,
denominado eclesiologia de comunhão. Dá-se início a uma reflexão que buscava
explicitar a existência de algo mais fundamental que o papa, que é a Igreja. As estru-
turas da Igreja devem ser definidas a partir da finalidade a que servem.
O Concílio de Pisa já havia afirmado esta autoridade, pelo fato de representar
toda Igreja. Os Concílios de Constança (1414-1418) e de Basileia (1431-1449) rea-
firmaram o princípio da autoridade máxima da reunião conciliar, como lugar para se
resolver e refletir os problemas da Igreja. No século XV, a Igreja vive um tempo forte

24 SOUZA. N. História da Igreja: Notas introdutórias. Petrópolis: Vozes, 2020. p. 78.


25 AZEVEDO, C. P. Onde estamos nós, p. 394.
26 SOUZA. N. História da Igreja: Notas introdutórias, p. 92-95.
27 AZEVEDO, C. P. Onde estamos nós, p. 395.
28 Ibid., p. 395.
29 SOUZA. N. História da Igreja, p. 98-99.
102

de ampliação da sua mentalidade de hierarcologia. Já o século XVI será marcado


pelo surgimento de Martin Lutero, em um contexto que chamava a Igreja a viver um
tempo de reforma. Lutero será o pai da Reforma Protestante, ao colocar em dúvida
inúmeras práticas dos cristãos católicos.30
Infelizmente, a Igreja neste momento busca enrijecer ainda mais as suas estru-
turas eclesiais. O Concílio de Trento (1545-1563) dedica-se mais em dar respostas
aos questionamentos levantados pelos reformadores sobre aspectos que ameaça-
vam a fé católica, como: a relação entre Sagrada Escritura e Tradição, a temática
da justificação pela fé, o tratado sobre os sacramentos, a questão do sacerdócio
ministerial. Faltou no Concílio, todavia, uma tratativa mais profunda sobre o tema
da eclesiologia.31
O Concílio de Trento estabeleceu algumas reformas necessárias que demoraram
a ser implementadas, tais como: do clero, dos seminários e do laicato. A Igreja do

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pós-Concílio (de Trento) vive em um mundo marcado por constantes transformações.
No século XVIII acontece a Revolução Francesa e, com ela, a defesa dos princí-
pios da liberdade, igualdade e fraternidade. Neste contexto, a Igreja se apresenta cada
vez mais reacionária e conservadora. Por isso, do século XIX ao século XX nascem
alguns movimentos, como: o litúrgico, o bíblico e o patrístico. Esses movimentos
motivarão a Igreja a rever a sua finalidade de estar no mundo. O ápice e resposta a
um apelo por mudanças nas estruturas eclesiais desta época se dará com a convocação
e abertura do Concílio Vaticano II.

4. O Concílio Vaticano II e a busca por uma Igreja toda ministerial


Os anseios que vinham sendo cultivados pela busca de uma Igreja capaz de
estabelecer caminhos de diálogo com o mundo contemporâneo tornam-se reais com
a abertura do Concílio Vaticano II. O papa João XXIII, eleito para ser um papa de
transição, assumi um papel fundamental no alvorecer de novos tempos para a vida
pastoral, espiritual, teológica e litúrgica da Igreja, no mundo contemporâneo.
A proclamação e realização deste Concílio significou o acender de uma nova
esperança para toda a comunidade eclesial; aguardava-se um tempo novo, de uma Igreja
que pudesse encontrar nas suas fontes primeiras elementos essenciais para a vivência
da fé em um mundo marcado por muitas transformações. As quatro Constituições
Conciliares Sacrosanctum Concilium, Lumen Gentium, Gaudio et Spes e Dei Verbum,
que serviram de base para vários outros documentos conciliares, apontam o itinerário
vivido por uma Igreja sedenta em escutar os apelos do Espírito, buscando ler os sinais
dos tempos em vista de uma conversão eclesial ou, caso se prefira, pastoral.32
De um modo explícito ou implícito, todos os documentos conciliares e aque-
les que os tiveram como base, tocarão na questão da ministerialidade da Igreja e,

30 Ibid., p. 191-196.
31 VERNARD, M. O Concílio Lateranense V e o Tridentino. In: ALBERIGO, G. (org.). História dos Concílios
Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 2011. p. 340-347.
32 SEBOUÉ, B. Não tenham medo! Os ministérios na Igreja de hoje. São Paulo: Paulus, 1998. p. 68-73.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 103

sobretudo, da sua importância para uma Igreja salvadora: sacramento de salvação.33


“Entender a Igreja como sacramento é uma forma de superar a compreensão da Igreja
como sociedade perfeita, como o fizera a teologia pós-tridentina”.34 Com o avançar
das propostas do Vaticano II, assistimos uma passagem do binômio clero e leigos
para Igreja e ministerialidade.

O vento do Concílio não só arejara as velhas estâncias e instâncias eclesiásticas,


mas sacudira antigas certezas, revolucionara arraigados quadros mentais, ques-
tionara estruturas e instituições seculares, urgindo da Igreja em todos os seus
níveis e em todos os seus membros uma profunda renovação, interior e exterior,
impelindo-a, ao mesmo tempo, a uma criativa inventividade.35

A definição da Igreja como “povo de Deus aponta para uma nova eclesiologia que
conclama a participação de todos os batizados nas decisões da vida eclesial. Todos os
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ministérios são chamados a edificar um novo jeito de ser Igreja. Por isso, é ‘o Espírito
que conduz e vivifica, sustenta e acompanha o seu incansável e atribulado esforço de
dar novas formas a seu indefectível ser, tirando de seu tesouro coisas novas e velhas’”.36
Partindo do princípio de que todos os cristãos devem assumir um serviço, como
resposta ao compromisso batismal, fica claro que toda ministerialidade eclesial tem
um fundamento teológico, com suas raízes nas Sagradas Escrituras, na Tradição e
no Magistério da Igreja. Pensar uma Igreja toda ministerial é despertar todo o povo
de Deus para a consciência de que, no seio da comunidade cristã, cada membro é
chamado a uma vocação própria. A pluralidade de ministérios na Igreja é o retrato de
uma comunidade expressão da Trindade, fundamento da nossa fé batismal.37
Ao resgatar e discorrer sobre a riqueza ministerial, o Concílio Vaticano II recu-
pera a força dinâmica da Igreja como povo sacerdotal, comunidade a serviço do
anúncio do Evangelho. Por isso, é fruto do Vaticano II a busca por uma esmerada
formação de toda a comunidade cristã. A superação do binômio clero e leigos só se
torna possível a partir do desenvolvimento de uma nova mentalidade eclesial, que
nasce do resgate das origens históricas e teológicas dos ministérios na Igreja.
Como já apontamos, os ministérios surgem segundo as necessidades das comuni-
dades. O Concílio Vaticano II, em sua busca de diálogo com o mundo contemporâneo,
colocou como um dos princípios do novo que se apresentava à Igreja, a necessidade de
voltar às fontes da fé cristã. O retorno às fontes não significou a reprodução de ações
anacrônicas, de repetição dos mesmos gestos das comunidades primitivas, mas criativa
tentativa de repensar a sua ação missionária, à luz da ação destas comunidades, em um
mundo que exigia das comunidades eclesiais abertura e diálogo, no serviço do anúncio
e edificação do Reino de Deus. “As Igrejas do Novo Testamento, sobretudo as paulinas,
testemunham a exuberância de carismas, serviços e ministérios”.38

33 PAPA PAULO VI. Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja. São Paulo: Paulus, 2007. n. 48.
34 VELASCO, R. A Igreja de Jesus: Processo histórico da Consciência Eclesial. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 244.
35 ALMEIDA, A. J. Teologia dos ministérios não ordenados na América Latina. São Paulo: Loyola, 1989. p. 30.
36 Ibid., p. 30.
37 Ibid., p. 11-13.
38 Ibid., p. 15.
104

Diante das interpelações do mundo contemporâneo, sobretudo para o pensar


teológico, foi preciso repensar a ministerialidade da Igreja. Com isso, assistimos a
uma profícua tentativa de superação do binômio clero e leigos. Isto se concretiza
a partir de uma nova eclesiologia, que compreende a Igreja como povo de Deus e
que chama os seus membros à prática da sinodalidade. Diante disso, a Igreja é cha-
mada a repensar, a partir de bases teológicas, históricas, pastorais e celebrativas o
sentido do ministério ordenado, bem como o valor e a importância dos ministérios
laicais. A Igreja, na diversidade dos seus ministérios, é então chamada a ser um
único corpo, em Cristo.39
Guiada por uma nova eclesiologia, a Igreja busca refletir sobre os três graus do
sacramento da ordem, levando em consideração a tarefa de cada grau.40 Ao bispo, cabe
o serviço de governar a porção do povo de Deus lhe confiado, mantendo a unidade,
exercendo um magistério seguro na busca de santificar a todos.41 Ao presbítero, cabe

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participar e colaborar com o tríplice múnus do bispo, no governo de uma pequena
porção da Igreja Particular, formando os membros da comunidade em uma fé viva,
transformadora e consciente; tem a tarefa de auxiliar a todos no processo de busca de
uma vida de santidade.42 Resgata-se o diaconato como a expressão maior da Igreja que
se coloca a serviço da caridade. Pois o Vaticano II recupera o diaconato permanente.43
Fica claro que o serviço primeiro do diácono não se encontra na dedicação ao altar; este
só tem sentido se é motivado pela caridade e atenção para com os mais sofredores da
comunidade. A nova mentalidade sobre o mistério ordenado vem acompanhada pela
criação de programas de formação, capazes de preparar pessoas livres e conscientes
do serviço que buscam, no seio da Igreja e inseridos no mundo.
Um outro grande avanço conciliar foi aquele de repensar a vida e missão dos
leigos no seio da Igreja.44 Uma comunidade cristã dinâmica e servidora não existe
apenas porque no seu seio encontramos a presença do ministério ordenado. A sua
existência também depende da valiosa presença do laicato.45 Partindo disso, encontra-
mos hoje na Igreja uma variedade de ministérios exercidos por leigos que expressam
a consciência de uma nova eclesiologia. Podemos falar dos ministérios dos leitores
e dos acólitos, do ministro qualificado do matrimônio, do ministro extraordinário da
eucaristia, do ministro da visitação, do ministro da bênção, do ministro extraordinário
das exéquias, entre muitos outros ministérios.
A nova mentalidade sobre a vida ministerial da Igreja a torna mais dinâmica e
sinal edificante no mundo, do Reino de Deus. Faz despertar no seio da comunidade
eclesial a necessidade pela busca de uma formação teológica, humana, pastoral, litúr-
gica e espiritual de todo o povo de Deus, em vista da vivência de uma fé encarnada,
ativa, profética e engendradora de novos tempos.

39 Ibid., p. 21.
40 Lumen Gentium, n. 18-19.
41 Ibid., n. 20-27.
42 Ibid., n. 28.
43 Ibid., n. 29.
44 Ibid., n. 30.
45 ALMEIDA, A. J. Novos ministérios, p. 26.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 105

5. O exercício dos ministérios em uma Igreja em saída


Na busca da vivência de uma ministerialidade salutar, como resposta aos
desafios que se colocam à evangelização, no contexto contemporâneo, o ministério
papal de Francisco vem chamando a atenção pela construção de uma Igreja sinodal.
A expressão de tal desejo pode ser encontrada nos muitos documentos produzidos
por este pontificado, onde se tem buscado resgatar um projeto eclesial conciliar,
que motiva a existência de uma Igreja consciente da sua missão de evangelizar um
mundo ferido por projetos políticos, religiosos, econômicos, sociais e educacio-
nais. Diante da sociedade da “coisificação da pessoa”, dos projetos que sustentam
as “necropolíticas” e da mistanasia, que, sorrateiramente, eliminam vidas, somos
convidados por Francisco à experiência de construir uma Igreja em saída.46 Este
princípio nos faz pensar o exercício da ministerialidade diante de três realidades:
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nas periferias reais e existenciais, no cuidado para com o cosmo e na busca pela
fraternidade universal.
Fazer-se presente entre as periferias reais e existenciais é uma resposta contun-
dente de uma Igreja que reconhece a raiz da sua ministerialidade: Jesus. Aquele que
envia os seus discípulos, como podemos ler nas entrelinhas dos Evangelhos, para
visitar todos os povos e promover a libertação da pessoa, na sua totalidade. Aqui
estamos diante de uma Igreja que, por meio dos seus ministérios, se faz hospital
de campanha, isto é, se coloca à disposição para curar os corações ultrajados pelas
forças contrárias ao Evangelho. “A Igreja deve ser o lugar da misericórdia gratuita,
onde todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados e encorajados a viverem
segundo a vida boa do Evangelho”.47
No cuidado do cosmo, a ministerialidade da Igreja coloca-se a serviço do sur-
gimento de uma nova mentalidade universal, que desperta nas pessoas, à luz da fé,
a responsabilidade para com a casa comum. Cuidar do cosmo torna-se um ato de
consciência: um dos elementos essenciais do ser cristão encontra-se no proteger e
promover a vida nas suas mais diversas instâncias na casa comum.48
Buscando a solidificação da fraternidade universal, nos encontramos diante de
um projeto que nos lança na conquista de um amanhã capaz de promover relações de
fraternidade. Pois o ser humano não foi criado e nem muito menos lançado no mundo
para viver sozinho. É na experiência comunitária e nas relações intersubjetivas que
ele se desenvolve como pessoa e ser religioso. Desse modo, viver a ministerialidade
na promoção da fraternidade universal desperta a pessoa para Cristo, aquele que nos
convida a sermos um só corpo, a vivermos num só Espírito e a sermos uma única
família, em Deus.49
A vivência da ministerialidade em uma Igreja em saída clama de nós atitu-
des audaciosas, capacidade de leitura dos sinais dos tempos, disponibilidade para

46 FRANCISCO, Exortação Apostólica Evangelli Gaudium sobre o anúncio do evangelho no mundo atual.
Brasília: Edições CNBB, 2013. n. 49.
47 Ibid., n. 114.
48 FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Sì: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulus; Loyola,
2015. n. 13.
49 Id. Carta Encíclica Fratelli Tutti: sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Paulinas, 2021. n. 55.
106

enfrentar o novo, como apelo do Espírito. Eis aqui os desafios, se desejamos ser
uma Igreja toda ela ministerial e, ao mesmo tempo, sinodal.

Conclusão
Uma das mais belas riquezas da Igreja é a sua capacidade de se reinventar em
sua missão, à luz do Espírito. Em todos os tempos, quando olhamos a história da
ministerialidade eclesial, constatamos avanços e retrocessos, momentos significativos
de abertura e de fechamento em si mesma. Todavia, assistimos hoje uma revaloriza-
ção e um resgate da teologia dos ministérios, acompanhado de um novo pensamento
eclesiológico que encontra no termo “povo de Deus” a sua síntese mais plena. Um
ministério na Igreja não dá um status para a pessoa que o recebe, mas a faz servidora,

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a exemplo de Cristo, de toda a ecclesia.
A compreensão do mistério como serviço à comunidade nos ajuda a entender
que formamos um só corpo, cuja cabeça é Cristo. E, por isso, guiados por um único
Espírito, nos fazemos comunidade eclesial discípula-missionária que encontra na
celebração do Mistério Pascal uma fonte perene de espiritualidade, capaz de nos
impulsionar a viver uma experiência de Igreja em saída; Igreja que a exemplo de
Deus vê, sente, desce e socorre os seus filhos e filhas.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 107

REFERÊNCIAS
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XVI, p 13-17, jul./dez. 2017.
ÉTICA CRISTÃ OU TEOLOGIA MORAL?:
análise sobre o sentido da consciência
na decisão e no agir cristão
André Luiz Boccato de Almeida1

Introdução
A presente reflexão apresentará uma distinção, em forma analítica, entre ética
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cristã e teologia moral, a partir de uma perspectiva histórica e sistemática. Com isso,
tem o objetivo de lançar luzes sobre o sentido da consciência e da decisão, essenciais no
agir humano cristão. Sabe-se que hoje há uma busca desenfreada por sentido em todas
as esferas da vida humana. As várias crises que assolam a existência são geradoras de
uma necessária procura por ressignificar o que é o essencial na decisão.
Deste modo, a questão ética ocupa um espaço de grandeza e sentido. Incluso
a esta, a da consciência e os imperativos sobre o agir também voltam à centralidade
neste momento de confusões em torno da realização do humano. Não seria exagero
dizer que de uma cultura estética, estamos retornando ao coração da ética, onde a
pessoa é chamada a recriar seu modo de ver a existência. É dentro desta perspec-
tiva que a teologia também pode oferecer um horizonte de sentido, quando supera
certos tipos de olhares reducionistas, fundamentalistas e fanáticos. Cabe, portanto,
ao teólogo “moralista” entrar nesta discussão e propor respostas menos simplistas
às interpelações contemporâneas que, de um certo modo, aceitam ainda uma visão
humanista de religião aberta à personalização.
Nesse horizonte, o presente capítulo se propõe a inquirir, teologicamente, a partir
da indagação ética fundamental, sobre o papel da consciência no agir do cristão. Por
isso, questiona-se, inicialmente, a diferença entre uma narrativa centrada numa dis-
tinção entre “moral” e “ética” de inspiração cristã. A tradição cristã tem algo ainda a
dizer no cenário pós-moderno de redução do ético à consciência? Posteriormente, será
resgatado o que se entende por consciência na tradição teológico-cristã e seu impera-
tivo decisional. Enfim, será refletido o significado de uma linguagem ético-teológica
na atual cultura pós-moderna centrada no sujeito em busca de ressignificar sua própria
existência. Este triplo caminho pretende resgatar elementos da tradição a serem revistos
e que necessitam estar em diálogo com o saber atual.

1 Pós-Doutor em Teologia (PUC-PR); Doutor em Teologia Moral (Lateranense de Roma – Afonsiana); Mestre
em Teologia (PUC-SP); Especialista em Educação Sexual (UNISAL); Bacharel em Teologia (EDT/Angelicum);
Licenciatura em Ciências Sociais; Psicanalista; Professor no UNISAL, Campus Pio XI, e na PUC-SP.
110

1. Ética cristã ou teologia moral? Distinções e perspectivas


As tradições religiosas, em geral, apresentam uma visão cosmológica, antro-
pológica e teológica sobre a existência. Com linguagens e semânticas diferenciadas,
exprimem a verdade sobre a vida, resguardando o mistério que envolve o existir,
em sua origem e em seu caminho de plenificação. As religiões, embora nem sempre
reconhecidas em sua positividade pelos contemporâneos, oferecem uma perspectiva
que pode ajudar as pessoas a se reconstruírem enquanto sujeitos, para além dos limites
e dos tempos de personalização.
O cristianismo, enquanto movimento ou caminho daqueles que reconhecem em
Jesus de Nazaré – descrito nos evangelhos canônicos – uma referência interior e para
toda a vida, está na base da concepção ou modelo de ética que os cristãos procuram
seguir. No contexto da pessoa de Jesus e de sua prática, os cristãos e os discípulos do

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mestre de Nazaré constroem um modo próprio de conceber a existência.2 Podemos
dizer que é deste “imperativo jesuânico” que brotam as exigências ético-morais para
viver no dia a dia a existência com seus percalços e adversidades. O grande problema,
para nós contemporâneos, está em traduzir esta centralidade do amor em linguagem
humana imperativa e propositiva e não repressora ou impositiva.
Pode-se dizer que, paulatinamente e ao longo da história, foi se erigindo, em
torno da memória sobre Jesus, um complexo processo de elementos ou dispositivos
que poderiam direcionar o agir do cristão. O patrimônio teológico e intelectual que
possuímos hoje no campo da teologia moral evidentemente não é produção exclusiva
de nossa época, mas o resultado da vivência e da reflexão que se foi construindo ao
longo de toda a história do cristianismo. E o próprio pensamento cristão muitas vezes
buscou e incorporou valores de épocas anteriores a Cristo e de culturas e reflexões
alheias ao âmbito cristão.3
A moral cristã é a área da reflexão teológica que enfrentou os maiores reptos
teóricos para renovar-se e responder aos impasses e desafios práticos do sujeito
agente de sua fé, suscitados pelo processo cultural moderno. Essas provocações
intelectuais devem ser normais para a moral, porque ela trata do agir humano, que é
algo contingente e passível de sofrer as influências das transformações culturais. A
moral cristã, se quiser desenvolver uma reflexão relevante, deverá estar muito atenta
aos novos desafios da realidade sociocultural, explicitando a sua mensagem ética em
uma linguagem pertinente e compreensível às gerações de cada época.4
É relevante fazer uma distinção, de caráter didático, entre os termos “moral” e
“ética” para depois situar o horizonte cristão. A palavra ética vem do grego ethos que
significa, em primeiro lugar, o “habitat”, exatamente a maneira de uma espécie animal
habitar o mundo. Pode significar também, num segundo momento, o caráter de uma
pessoa, a maneira como ela habita o mundo em função de suas disposições naturais.

2 CASTILLO, José M. A Ética de Cristo. São Paulo: Loyola, 2010. p. 17.


3 KONZEN, João A. Ética Teológica Fundamental. São Paulo: Paulinas, 2001. p. 31.
4 JUNGES, José Roque. Evento Cristo e Ação Humana. Temas fundamentais da ética teológica. São Leopoldo:
Unisinos, 2001. p. 11. (Coleção Theologia Publica 1).
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 111

Destes dois sentidos, provém o de estudo reflexivo dos costumes. Já a palavra moral,
tradução latina de “ética”, advém das expressões mos (no plural “mores”) – modos
ou costumes – e exprime o que é relativo aos comportamentos.5
Dessa forma, moral diz, em latim, exatamente a mesma coisa que ethos, em
grego. São duas palavras perfeitamente semelhantes, mesmo tendo sido forjadas a
partir de raízes diferentes. Moral é a tradução, no latim clássico, do que os gregos
chamavam de ética. Na época moderna, considerou-se com frequência que o termo
“moral” pudesse estar reservado ao tipo de normas e valores herdados do passado e
da tradição ou então da religião. “Moral” especializou-se mais ou menos no sentido
daquilo que é “transmitido”, como código de comportamentos e juízos já constituídos,
mais ou menos cristalizados. A moral parece constituir, a partir disso, um conjunto fixo
e acabado de normas e regras. Já o termo ética, hoje, é empregado principalmente para
os campos em que as normas e regras de comportamento estão por ser construídas,
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inventadas, forjadas por meio de uma reflexão que é geralmente coletiva.6


Segundo Cortina e Martínez, corresponde à ética uma tripla função: 1) esclarecer
o que é a moral, quais são seus espaços específicos; 2) fundamentar a moralidade, ou
seja, procurar averiguar quais são as razões que conferem sentido ao esforço dos seres
humanos, de viverem moralmente; 3) aplicar aos diferentes âmbitos da vida social os
resultados obtidos nas duas primeiras funções, de maneira que se adote nesses âmbi-
tos sociais uma moral crítica – racionalmente fundamentada –, em vez de um código
moral dogmaticamente imposto ou da ausência de referências morais.7
Diante destas distinções e perspectivas, pode-se refletir sobre o sentido de usar
a expressão ética cristã ou teologia moral. Sabe-se que a teologia moral (católica)
sempre foi filha do seu tempo, e isso vale também para o presente8. O teólogo mora-
lista pensa e faz teologia no interior de uma longa tradição, mas, ao mesmo tempo,
interpelado pelas novas questões que emergem de sua época. O uso por parte dos
teólogos das expressões ética cristã ou teologia moral exprime justamente a meto-
dologia e capacidade interdisciplinar que o teólogo usa como ferramenta em seu
magistério e pesquisa.
Em linhas gerais, não há consenso por parte dos teólogos na adoção destas duas
terminologias. Ela se tornou mais habitual na fase posterior ao Concílio Ecumênico
Vaticano II, principalmente a partir das duas linhas teológicas que se propuseram a
traduzir as reformas e a renovação iniciada no interior dos debates conciliares.
Uma, tradicionalista, mais ligada à burocracia eclesiástica, articulada com grupo
minoritário de bispos nos diversos países, pensava um Concílio na linha do pontifi-
cado de Pio XII. A outra tendência, de cunho inovador, se alimentava especialmente
das experiências pastorais dos bispos do mundo inteiro e da teologia moderna que
queria instaurar profícuo diálogo com o mundo moderno e com as igrejas da Refor-
ma.9 Alimentava o desejo de contato direto com a fonte sempre viva da Palavra de

5 DROIT, Roger-Pol. Ética. Uma primeira conversa. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 13-17.
6 VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. 20. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 24.
7 CORTINA, Adela; MARTÍNEZ, Emilio. Ética. São Paulo: Loyola, 2005. p. 21.
8 DEMMER, Klaus. Introdução à teologia moral. São Paulo: Loyola, 1999. p. 11.
9 LIBANIO, João Batista. Igreja contemporânea. Encontro com a modernidade. São Paulo: Loyola, 2000.
p. 70-73. (Coleção CES).
112

Deus, proclamada e comentada na Igreja, não se atendo unicamente às doutrinas dos


manuais. Buscava respostas novas de acordo com os princípios permanentes para
questões novas, levantadas pelas correntes de ideias contemporâneas.
Nesta salutar tensão presente nos debates conciliares, buscou-se explicitar a ideia
segundo a qual o cristão adulto que reflete sobre a sua fé em Jesus Cristo está ciente da
importância que tem o seu crer para o seu agir: o chamamento de Deus é um chamado
a viver a relação com Ele e a resposta a Ele toma corpo nas decisões da vida e no com-
portamento cotidiano.10 É pela consciência – núcleo decisional intransferível – que o
cristão sabe que sua resposta deve ser “pessoal”, isto é, deve proceder do coração de
seu entender e querer, para abranger a totalidade de sua vida.
Este insistente exercício de confrontar a verdade na consciência perpassa as capa-
cidades humanas, embora nem sempre seja possível pacificar a harmonia entre natureza
e graça, entre razão e fé; permanece a experiência de divisão interior, de luta entre a

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carne e o espírito. É na experiência sincera, livre, responsável e consciente que a pessoa
é chamada a amadurecer sua decisão e o seu complexo processo do agir.
No contexto de recepção pós-conciliar as duas principais correntes teológicas,
provenientes de olhares distintos sobre as teologias em conflito, tentaram articular esta
interconexão entre fé e razão, carne e espírito, natureza e graça; buscaram metodologias
distintas para melhor exprimir a influência da Escritura na teologia moral. É nesta ten-
tativa de priorizar um enfoque interdisciplinar e científico à ética de inspiração cristã
que apareceram os partidários da “moral autônoma” e da “ética da fé”.11
Enquanto para um grupo a fé era vista como fonte de uma ética específica, que
deve ser entendida e vivida como uma ética própria da fé, isto é, uma ética da fé,
para outro, a fé é o contexto de referência para uma ética que deve ser ao mesmo
tempo ética da racionalidade autônoma, ou seja, uma autonomia teônoma. Esta dupla
tendência pode ser compreendida como uma necessária busca de integração do plural
no horizonte da fé, sem perder propriamente sua especificidade.
A primeira perspectiva, conhecida como moral autônoma, partindo da autono-
mia racional da pessoa, buscava justificar uma estrutura teônoma da ética. Os prin-
cipais autores europeus que seguem esta orientação (A. Auer, F. Böckle, J. Fuchs, D.
Mieth, B. Schuller), com nuances diferenciadas, partiam da ideia de que é necessário
respeitar a ordem humana racional, em harmonia com a criação. Deus, segundo esta
compreensão, respeita a liberdade estrutural da pessoa, dando sentido ao que já está
presente no ser humano.12
A segunda, conhecida como ética da fé, pretendia justificar a ética cristã no
dinamismo da própria fé. Os autores que seguem esta tendência (B. Stockle, H. Shur-
mann, J. Ratzinger, U. Von Balthazar, K. Hilpert, J. Piegsa) pretendiam justificá-la

10 BASTIANEL, Sergio. Autonomia e Teonomia. In: COMPAGNONI, Francesco; PIANA, Giannino; PRIVITERA,
Salvatore. Dicionário de Teologia Moral. São Paulo: Paulus, 1997. p. 66.
11 ALMEIDA, André Luiz Boccato de. A pluralidade hermenêutica como indicativo ético-crítico no horizonte
da moral fundamental. In: MILLEN, Maria Inês de Castro; ZACHARIAS, Ronaldo (org.). Fundamentalismo.
Desafios à ética teológica. Aparecida: Santuário, 2017. p. 164.
12 AUER, Alfons. Morale autonoma e fede cristiana. Torino: San Pablo, 1991. p. 38-55.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 113

criticamente na dinâmica do ato de crer.13 Estas duas formas convergentes e plurais


de analisar certa tentativa de fundamentação da moral cristã na fase pós-conciliar
terão nuances diferenciadas no tema da consciência, essencial para qualquer refle-
xão ético-moral.

2. O sentido da consciência na narrativa moral rumo ao agir e


à decisão
O tema da consciência assume um lugar de grande importância porque repre-
senta a dignidade da pessoa e a responsabilidade de sua ação moral. Esse fato vale
sobretudo no contexto de uma sociedade pluralista e tolerante que praticamente
escreveu em seu programa oficial o dever do respeito ativo também para com os
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que têm uma consciência diferente da própria. Relacionar ética, moral, consciên-
cia e seguimento de Jesus tornou-se uma preocupação de primeira mão dos ditos
“moralistas cristãos”.
Na tradição teológica ocidental, a consciência era compreendida, num tempo
não muito longínquo, num contexto geral da manualística pré-conciliar, fundamen-
tada sobre os argumentos da lei natural ante a Sagrada Escritura. Era embasada mais
na razão que à luz da Revelação, referindo-se à obrigação moral dos preceitos do
Decálogo que ao duplo mandamento do amor.14 A superação de uma moral estrita-
mente apoiada na natureza humana em vista de uma moral fundada na revelação
cristã constitui a estrutura hermenêutica na qual se coloca o ensino conciliar sobre
a consciência.15
Os Padres Conciliares veem a consciência como o lugar hermenêutico privile-
giado em que se revela o projeto de Deus com o homem, o sacrário mais íntimo do
indivíduo, seu centro mais oculto, do qual brotam todas as decisões morais indivi-
duais.16 Pressupõe-se, portanto, tacitamente, que no homem há uma imediata e vívida
consciência de Deus, uma espécie de contemplação espiritual que supera todo tipo
de experiência empírica. Na consciência são captados, com uma certeza infalível,
os primeiros princípios da moral, subtraídos à discrição do homem e reconhecidos
como algo que o próprio Deus estabeleceu.17
Esta opção do Concílio não é casual, mas é o resultado dos trabalhos teológi-
cos preliminares utilizados na época por uma teologia moral conforme a Sagrada

13 VIDAL, Marciano. Nova moral fundamental. O lar teológico da ética. São Paulo; Aparecida: Paulinas, Santuário,
2003. p. 479-480.
14 FUMAGALLI, Aristide. L’eco dello Spirito. Teologia della coscienza morale. Brescia: Queriniana, 2012. p.
275. (Biblioteca di Teologia Contemporânea, 158).
15 CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Decreto sobre a formação sacerdotal Optatam Totius. São Paulo:
Paulinas, 1998. n. 16.
16 CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes, sobre a Igreja no mundo
contemporâneo. São Paulo: Paulinas, 1998. n. 16.
17 CAPONE, Domenico. La teologia della coscienza morale nel Concilio e dopo il Concilio. Studia Moralia 24
(1986). p. 221-249; CLÉMENCE, J. Le mystère de la conscience à la lumière de Vatican II. Nouvelle Revue
Théologique 94 (1972). p. 65-94.
114

Escritura. Somente com esta última foi possível evidenciar que o conceito de cons-
ciência (syneidesis) surge, em um primeiro momento, apenas na literatura sapiencial,
proveniente do pensamento helenístico (Sb. 17,10).
Nos escritos precedentes do Antigo Testamento aparece a palavra “coração”
(leb), que representa aquela interioridade que leva o piedoso israelita ao confronto
com o juízo verdadeiro de Deus sobre suas obras (Gn. 3,7-11; 4, 10-12; Dt. 30,14;
Jr 31,31). No fundo, estes textos exprimem uma verdade ainda a ser desdobrada: a
dignidade do homem consiste em ser julgado por Deus e em viver em harmonia com
a própria consciência.
No Novo Testamento a syneidesis ora indica a capacidade de formar um juízo
moral que caracteriza cada homem – crente e não crente –, ora assume também o
significado de um juízo interior ou de um testemunho interior, e a referência a Deus
é pensada ao mesmo tempo de forma implícita ou mesmo explícita (Rm. 14,23;

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4,10-12; Tt. 1,15). Já que a consciência exprime a verdade da pessoa em busca por
seu sincero agir, contexto insubstituível onde se decide, ela necessita ser formada
durante a vida inteira. Neste longo processo existencial, o recurso às autoridades
morais permanece irrenunciável, uma vez que o indivíduo pode facilmente cair na
armadilha de seus próprios preconceitos, aos quais, talvez, até esteja inclinado e dos
quais procura em vão libertar-se18.
Em São Paulo, o termo syneidesis se põe a serviço da nova concepção teológica,
recolhendo, sem dúvida, o aspecto de globalidade e centro da pessoa que expressava
o “coração” bíblico; por ela, a “consciência” equipara-se à fé. Mas junto a este sen-
tido aparece o de testemunha e juiz interior do valor moral, o de instância crítica do
próprio comportamento (Rm. 2,15; 2Cor. 1,12). Aparece em Paulo também o sentido
de mediação antecipadora que faz responsabilizar-se do que se deve fazer, como se
coloca explicitamente a questão dos idolothytos, da comida destinada aos ídolos,
tratada nos textos paralelos de 1Cor. 8 e Rm. 14.19 Ele defende, nestas perícopes, a
necessidade de seguir o ditame da própria consciência e o dever de respeitar a cons-
ciência alheia, ainda quando for errônea. Em outras palavras, há a primazia absoluta
da consciência na hora de decidir.
No mundo moderno, haverá uma outra forma de lidar com o tema da cons-
ciência. Esta, na verdade, vem readquirindo uma certa importância na reflexão da
ética cristã, principalmente a partir do século XIX. Isto se justifica pelo fato de as
discussões em torno da consciência (séculos XVI – XIX) terem se reduzido a um
órgão de ressonância de uma lei moral como dado, em detrimento de sua riqueza
e profundidade.
Foi somente a partir do século XIX em diante que se iniciou uma lenta passagem
epocal de um modo prevalentemente unitário de perceber a realidade para uma perspec-
tiva de fragmentariedade e de uma certa desordem. O paradigma de um mundo unitário,

18 VEREECKE, Louis. Autonomie de la conscience et autorité de la loi. Le Supplément 155 (1985), p. 15-27;
também: KACZYNSKI, E. La coscienza morale nella teologia morale cattolica. Angelicum 68 (1991). p. 65-94.
19 GÓMEZ, Carlos. Consciencia moral. In: CORTINA, Adela (Directora). 10 palabras clave en etica. Navarra:
Verbo Divino, 1994. p. 20.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 115

apoiado por uma ordem objetiva dada pelo Criador, foi progressivamente perturbado
pelas críticas radicais ao sistema, como a realizada por Nietzsche.20
Outras críticas circunstanciais também se impuseram aos poucos, tais como:
acontecimentos históricos ligados ao totalitarismo; a imposição de uma lógica cien-
tificista e positivista em detrimento do sentido religioso; o desenvolvimento da glo-
balização, potencializando as trocas culturais, e, assim, a relação entre culturas; o
influxo do pensamento frágil e o historicismo, que transformaram as certezas de um
tempo em opiniões subjetivas e superadas.21
Compreende-se, deste modo, que não estamos mais em um regime de solidez,
mas de contínua liquidez,22 onde o sujeito é chamado a ser protagonista das suas
decisões. Esta perspectiva foi substituindo lentamente uma anterior, na qual a visão
de mundo regulada por uma ordem intrínseca se traduzia em um paradigma ou
modelo moral caracterizado pela ordem normativa: a harmonia presente no cosmo,
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querida pelo Criador, compreendida pela criatura racional e expressa nas leis morais.
Tratava-se apenas de saber qual norma deveria prevalecer em determinada situação
e adequar o respectivo comportamento.
Assim, tendo refletido sobre o sentido da consciência enquanto indicadora do
agir e da decisão ética, convém abordar a importância de uma perspectiva formadora
no horizonte do desafio da complexidade e na busca pelo sentido. Este caminho exige
um olhar positivo sobre a responsabilidade do sujeito e a abertura aos desafios con-
temporâneos que aos poucos vai se impondo no paradigma em gestação.

3. A centralidade da formação da consciência na cultura da


complexidade e do sentido perdido
A profundidade e a complexidade da consciência e a função que lhe compete
em toda a vida moral fazem com que se entenda facilmente a necessidade de sua
correta formação. Aliás, pode-se, sem dúvida nenhuma, dizer que hoje esta tarefa
deve ser considerada, por todos, pela sociedade, como o dever ético mais funda-
mental. Formar bem é um compromisso que deve acompanhar o ser humano ao
longo de toda sua vida.
Qualquer experiência religiosa implica uma determinada concepção moral, pois as
religiões, em geral, contêm necessariamente considerações valorativas sob determinados
aspectos da vida, considerações que, por sua vez, permitem formular princípios, normas
e preceitos para orientar a ação. Qualquer sujeito religioso, isto é, alguém que personaliza
a concepção moral religiosa, interiorizando-a e aceitando-a em consciência como sua
própria, vive uma salutar tensão a ser sempre discernida na vida vivida.
Deste modo, o sujeito recebe da religião uma dupla referência: a concepção
moral do grupo (prescrições que procedem da divindade por meio da revelação e

20 DEMMER, Klaus. Introdução à teologia moral. São Paulo: Loyola, 1999. p. 34.
21 MAGRO, Fabio. La coscienza individuale di fronte ai conflitti posti dalla situazione odierna della società.
Credere Oggi 33, n. 195, p. 6, mar. 2013.
22 BAUMAN, Zygmunt. Modernità liquida. Roma: Laterza, 2002.
116

do magistério) e o código de normas (prescrições para orientar a ação, podendo


ser consideradas racionalmente exigíveis a toda pessoa).23 Muitos fiéis praticantes
da religião – de modo particular do cristianismo – não têm certa consciência desta
dupla dimensão (religiosa e moral).24 Há, portanto, uma exigência moral centrada
na pertença religiosa, na influência do grupo sobre a pessoa e uma exigência moral
de cunho racional que toca diretamente a consciência do sujeito, e está para além
do vínculo ao grupo. Distinguir esta dupla dimensão exige um processo educativo
pleno de conflitualidade.
No que toca ao específico da reflexão teológico-moral sobre a consciência e
sua formação, há um longo caminho a ser realizado na escuta dos vários saberes.
Há de se superar os vários exercícios de poder e autoridade, com seus mecanismos
e dispositivos complexos usados em referência ainda a um modelo heteronômico;
estes nem sempre levaram em consideração a realidade misteriosa da pessoa e da

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própria consciência, produtora ou criadora de sonhos.25 Urge escutar o não dito e
o não falado presentes na consciência. Trata-se de captar o silenciamento existente
nas histórias de vida nas mais variadas arqueologias de sentido e de linguagem. A
atual cultura, marcada pela reverberação de vozes nem sempre ouvidas, desmascara
e explicita as repressões autoritárias históricas e pessoas, favorecendo uma descida
aos porões do coração humano.
Toda a psicologia humanista que resgata o sentido da vida, em nuances que
fogem à racionalidade filosófica tradicional, oferece uma nova luz para um aprofun-
damento do agir a partir de uma consciência lúcida. A manualística teológico-moral,
precedente ao Concílio Vaticano II e hoje presente em várias perspectivas religiosas
proselitistas,26 nem sempre captou a profunda contribuição de caráter formativo, res-
ponsável e amadurecido. As correntes psicológicas – comportamental, psicanalítica
e fenomenológica – aprimoraram as várias dimensões das fases de desenvolvimento
no decorrer da vida que tendem para uma consciência mais autônoma.27 O teólogo
moral pode aprender ainda muito com esta discussão, pois não basta esforçar-se
para agir corretamente; é preciso, em última instância, agir também em sintonia
com o ser da pessoa.
Até antes do século XX acreditava-se que bastava obedecer aos imperativos
externos à consciência – leis divinas e humanas/eclesiásticas – para que a moralidade
fosse considerada suficiente. Atualmente, a distinção entre consciência psicológica
e moral tornou-se comum entre os moralistas que aprofundam este tema. Não pode

23 CORTINA, Adela; MARTÍNEZ, Emilio. Ética. São Paulo: Loyola, 2005. p. 42.
24 Há uma relevante reflexão de caráter filosófico sobre o tema: NODARI, Paulo César; CESCON, Everaldo.
Ética e religião. In: TORRES, João Carlos Brum (org.). Manual de Ética. Questões de ética teórica e aplicada.
Petrópolis: Vozes, 2014. p. 489-509.
25 ALMEIDA, André Luiz Boccato de. Sonhar a teologia moral ao alcance do povo. In: ANJOS, Márcio Fabri
dos; ZACHARIAS, Ronaldo (org.). Ética entre poder e autoridade. Perspectivas de teologia cristã. Aparecida:
Santuário, 2019. p. 358.
26 Sobre este tema, convém aprofundar: TRENTIN, Giuseppe. Riabilitazione della casuistica in teologia morale?
Il metodo del caso. Credere oggi 33, n. 195, p. 84-114, mar. 2013.
27 PIGHIN, Bruno Fabio. Os fundamentos da moral cristã. Manual de ética teológica. São Paulo: Ave-Maria,
2005. p. 186.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 117

acontecer a consciência moral, ou seja, a decisão responsável em um agir consciente


se falta a consciência psicológica, isto é, um mínimo domínio das próprias potencia-
lidades pessoais e sociais.28 Isso se verifica tanto na dinâmica do desenvolvimento,
que passa por várias fases, quanto nas particulares escolhas que sofrem o condicio-
namento de pulsões inconscientes e de mecanismos de defesa, tanto nas situações
de inconsistência psíquica, quanto, finalmente, nas doenças psíquicas tais como a
neurose e a psicose.
Esta perspectiva lança uma luz fundamental à formação da consciência. Em meio
à cultura da complexidade e da perda de sentido, emerge uma visão segundo a qual a
ação deve brotar de uma livre convicção, porque só assim será possível responder por
ela quando surge a suspeita de que se está diante de uma consciência mais treinada
do que formada. Do ponto de vista prático, não é possível se limitar a perspectivas
e soluções morais recebidas durante a infância ou a adolescência.29 Certamente, há
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uma continuidade nos valores e nas perspectivas fundamentais; também, precisamos


desenvolvê-los incessantemente.
A relação indissociável entre crer e agir deve, para o cristão, realizar-se posi-
tivamente no contexto de uma sociedade pluralista, e nisso há um desafio crítico
que pode tornar-se um grande peso para a pessoa. A sociedade não pode substituir,
de forma alguma, a escolha de uma decisão porque se move entre a tolerância e a
indiferença; o cristão nada tem a temer e muito menos a esperar da sociedade. Por
isso, ele precisa governar-se por si mesmo, e a formação da consciência deve levar o
indivíduo a essa meta e a alcançar gradualmente uma personalidade moral. Não pode
bastar, nesse sentido, uma simples consciência e execução das normas, que ignora
as exigências do presente, verificando apenas a correspondência entre a própria ação
moral e as normas pré-fabricadas do agir. Este tipo de paradigma, mais presente na
manualística pré-conciliar, não é suficiente porque não abarca toda a realidade que se
apresenta sempre com novas surpresas. O indivíduo deve ser posto antes na condição
de poder reconhecer o sentido das normas: é necessário o dom do discernimento para
uma obediência sensata e responsável.30
A sociedade contemporânea abriga uma multiplicidade de obrigações e novas
formas de controle dos comportamentos. Estes condicionam a forma de pensar e
influenciam profundamente a decisão e o agir do sujeito. O forte poder que a mídia
e o ambiente digital exercem sobre a consciência é objeto de estudo e de aprofun-
damentos das mais variadas perspectivas das áreas do saber.31 Necessitamos hoje de
um novo paradigma humanista, formador da consciência, que leve em consideração
a dimensão do cuidado, da vulnerabilidade e da compaixão.

28 DEMMER, Klaus. Introdução à teologia moral. São Paulo: Loyola, 1999. p. 35.
29 MAJORANO, Sabatino. A consciência. Uma visão cristã. Aparecida: Santuário, 2000. p. 129. (Coleção
Moralia 4).
30 VIDAL, Marciano. Progresso moral. In: VIDAL, Marciano. Dez palavras-chave em moral do futuro. São Paulo:
Paulinas, 2003. p. 297-315. (Coleção ética).
31 ALMEIDA, André Luiz Boccato de; FERREIRA, Lúcia Eliza; MELO, Aloisio. A formação da consciência em
uma cultura de “sujeitos bolhas” cristãos. Uma análise ético-teológica propositiva a partir da moral social
do Papa Francisco. Encontros Teológicos, v. 36, n. 1, p. 153-172, jan./abr. 2021.
118

Conclusão
A reflexão em torno da ética cristã ou teologia moral apresenta-se hoje na
centralidade do discurso teológico. Ela é tão variada quanto a vida à qual serve; e,
antes de alcançar sua forma atual, percorreu uma história longa e atribulada. Novos
desafios se apresentam, e a complexidade cada vez maior do mundo em que vivemos
repercute sobre a maneira de compreender e de exercitar a teologia moral como
ciência ligada à Igreja. Há um consenso de que a teologia moral necessita do apoio
das outras disciplinas teológicas, sobretudo da dogmática e da teologia fundamental,
porque deve reaprender a pensar os conteúdos morais em relação a Deus, tornan-
do-os compreensíveis e transparentes para os outros homens. Problematizar Deus
é insuficiente se não se propõe uma forma de vivenciar o Deus de Jesus Cristo na

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experiência vivida e concreta.
Esta contribuição pretende sensibilizar acerca da necessidade de pensar a ética
cristã ou a moral fundamental a partir da consciência do cristão aberta a Deus e
ao próximo. A teologia moral está na fronteira entre uma ciência rigorosa e um
envolvente testemunho de vida. Quem pretende dedicar-se ao seu estudo deve estar
disponível para relacionar esses dois âmbitos, se não quiser passar ao largo da exi-
gência presente na matéria e permanecer uma abstração desconectada da vida real
das pessoas. É verdade que a vida não se deixa aprisionar em um sistema. A vida
é um mistério profundo presente na consciência de cada pessoa, mas também pre-
sente nas mais complexas discussões sociais, bioéticas, políticas e sexuais, ainda por
conhecer e aprofundar.
Urge, hoje, reaproximar as grandes reflexões ético-morais ao tema da cons-
ciência. Esta, durante séculos, ficou relegada a uma máquina fria de decisões ou
aplicações de leis. Com a reviravolta humanista, personalista e hermenêutica, iniciada
a pouco tempo, os teólogos foram chamados a repensar suas interpelações a partir
do mistério da consciência, núcleo secretíssimo de todo ser humano. É verdade
que a cultura da indiferença e dos individualismos se impôs com toda a sua força,
gerando polarizações estéreis, radicalismos fanáticos, ódios inflamados, guerras sem
sentido e muitos novos expectadores dessa condição. Este cenário denuncia o quanto
é necessário pensar a formação da consciência.
Assim, à luz do Papa Francisco, urge educar as consciências contra todo tipo
de autorreferencialidade, narcisismo, anestesiamento do empenho em buscar a ver-
dade moral nas convivências. Ao teólogo moralista cabe a árdua tarefa de repropor
o Evangelho e suas implicações aos novos sujeitos engendrados na cultura das pos-
sibilidades, oportunidades e da pós-verdade.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 119

REFERÊNCIAS
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formação da consciência em uma cultura de “sujeitos bolhas” cristãos. Uma análise
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TEOLOGIA PASTORAL:
elementos introdutórios
Antonio de Lisboa Lustosa Lopes1
Ari Antônio dos Reis2

Introdução
Quando se trata de teologia e de pastoral, a práxis se dá no âmbito das relações
humanas, com uma singularidade que é fundamental, a fé. E ela, a fé, é compreen-
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dida na experiência de vida comunitária cristã. Estudar Teologia Pastoral significa


caminhar entre duas relevâncias da missão teologal: a Teologia, mediação de leitura e
compreensão da revelação de Deus sob o olhar da fé; a Pastoral, ação prática, fundada
na fé, voltada para o anúncio do Reinado de Deus, a evangelização.
Neste campo investigativo é relevante que a caminhada seja feita a partir da
experiência de quem está inserido numa comunidade de fé, mas também a partir da
experiência de agentes de pastoral engajados nas comunidades eclesiais. Os pés, o
coração e a cabeça são orientados por estas duas grandezas importantes ao bom pensar
teológico. Teologia e Pastoral são reflexão e ação, ação e reflexão. Pode-se dizer que
a pastoral precisa evoluir para a práxis da fé cristã. A ausência de um destes pilares
compromete o processo do fazer teológico no seu todo.
É possível estudar as diferentes áreas da Teologia à luz da experiência que é
feita na prática pastoral, no engajamento da comunidade de fé. O estudo será ilumi-
nado pelas pesquisas e estudos diversos nas várias áreas da teologia. A experiência
de agente de pastoral é substrato imprescindível para a reflexão teológica.
A disciplina de Teologia Pastoral assume o desafio de tentar organizar o diá-
logo necessário para que se faça uma boa experiência acadêmica. Nossa abordagem
compreende a seriedade da reflexão teológica e a seriedade e densidade da ação
pastoral. Ao longo deste instrumento nos debateremos entre estas duas instâncias
de saber. A Teologia e a Pastoral têm um ponto de partida que é o seu pressuposto.
Partem da leitura da ação de Deus na história. É uma leitura feita sob o olhar da
fé. Ação e fé são duas realidades intercambiáveis no fazer teológico, pois o Deus
que se revela na história o faz mediante a ação daqueles que se convertem em seus
interlocutores porque atenderam às suas interpelações. Isto é, o agir do crente não

1 Padre da Arquidiocese de São Paulo. Docente de Teologia Prática do UNISAL e PUC-SP. Mestre em Teologia
Prática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (SP) e Doutor em Ciências da
Religião pela Universidade Metodista de São Paulo.
2 Padre da Arquidiocese de Passo Fundo (RS). Docente de Teologia Pastoral em ITEPA Faculdades em Passo
Fundo (RS). Mestre em Teologia Prática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção
(SP). Assessor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB (2008 – 2015).
122

é apenas a ação de alguém, mas é a ação divina que tem na mediação do crente
correspondente à revelação o seu formato de atividade histórica.
A experiência da fé vivida nas comunidades cristãs tem desafiado a Igreja a
pensar uma forma de preparar quem é chamado a atuar na ação evangelizadora,
razão da teologia pastoral. A reflexão teológica e pastoral conta com a disposição de
pastoralistas em assumir as responsabilidades de pensar a teologia e a pastoral, pois
a disciplina tem um referencial teórico, porém abre-se à construção teórico/prática
dos que a estudam. Ao mesmo tempo em que conhecemos a metodologia e os con-
teúdos de teologia pastoral, enriquecemos a sua estrutura por meio da experiência e
da reflexão que assumimos.

1. Pastoral e evangelização

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A palavra pastoral origina-se do termo “pastor”. O pastoreio era uma atividade
econômica fundamental para os povos da antiguidade. O povo hebreu já fazia esta
experiência. Os cultos antigos compreendiam o uso de animais como oblação (Gn.
4,4), oferenda ao Senhor, agradecimento pelas primícias que eram fruto da sua bon-
dade. Eram atividades significativas para estes povos, base de sobrevivência.
Jesus, o Filho de Deus encarnado, lembra o trabalho do bom pastor e o cuidado
para com o rebanho como referencial da atenção especial que dirigia ao povo. O cap.
10 do evangelho de João nos apresenta esta indicação. Jesus é o “Bom Pastor” que
veio para que todos tivessem vida (Jo. 10,10).
No final do texto de João, Jesus, vitorioso, tendo enfrentado a morte, surge no
meio dos discípulos, sopra sobre eles o Espírito Santo e os envia em missão (Jo. 20,21).
No Evangelho de Mateus lê-se o envio dos discípulos para evangelizar partindo da
Galileia e dirigindo-se para todas as nações, fazendo discípulos, batizando e ensinando,
na certeza da presença de Jesus até o final dos tempos (Mt. 28,19).
Esses textos indicam o sentido da pastoral. Revestida da tradição bíblica e
eclesial, que nasce da prática de Jesus, a pastoral é o meio da Igreja evangelizar,
ou seja, anunciar o reinado de Deus. Vejam que nos deparamos com outra palavra
importante: evangelizar. O que significa evangelizar? Qual é a relação entre evan-
gelização e ação pastoral?
O verbo evangelizar origina-se da palavra evangelho, que significa boa notícia.
Então, evangelizar é anunciar a boa notícia. Jesus, segundo o evangelho de Marcos,
convidava as pessoas à conversão e à crença no Evangelho, a boa notícia que vinha
de Deus (Mc. 1,15). Para os cristãos, evangelizar é anunciar e testemunhar Jesus
para as pessoas. A boa notícia vem de Deus, encarnou-se em Jesus (Jo. 1,1) e, por
isso, para os cristãos, evangelho significa o anúncio de Jesus. Desde os apóstolos
este compromisso vem sendo assumido pelas comunidades cristãs.
Existe uma distinção entre ação pastoral (pastoral) e ação evangelizadora (evan-
gelizar). O documento da CNBB, de 1995, Diretrizes gerais da ação evangelizadora
da Igreja no Brasil, apresenta uma definição de evangelização e nos ajuda a com-
preender a distinção entre pastoral e evangelização: evangelizar é a palavra-chave
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 123

que resume toda a ação de Jesus, é fazer chegar a Boa Nova que Jesus anuncia, é o
Reinado de Deus e a salvação para toda humanidade.3
Segundo o texto das Diretrizes, evangelizar significa anunciar Jesus e o Reino
por ele proposto, para quem ainda não tem conhecimento deste projeto. A evangeli-
zação tem um primeiro interlocutor, os que não conhecem Jesus. O texto da CNBB
sugere outro interlocutor. Refere-se também aos grupos de batizados que perderam o
sentido vivo da fé, conduzindo a vida que está distante de Cristo e do seu Evangelho.4
Este segundo caminho da evangelização foi reforçado por ocasião da Conferência
de Santo Domingo, que sugere no documento final uma nova evangelização como
novo ardor e novo método.5
Ação pastoral tem como interlocutores as pessoas que já têm um sentido de per-
tença eclesial e estão ligadas à vida comunitária procurando testemunhar a sua fé. A
pastoral é um meio especial de evangelizar. O agente de pastoral é um evangelizador,
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preocupa-se com o anúncio do Evangelho. A evangelização aponta para a necessidade


do Reinado de Deus, um anúncio que também convida ao testemunho.
Compreende-se também que a evangelização supõe abertura para a autoevan-
gelização. O agente de pastoral é um evangelizador que está aberto à evangelização e
demonstra esta abertura na prática assumida no cotidiano. A ação pastoral e a evangeli-
zação se voltam para o Reinado de Deus. O Reinado de Deus é o sentido e o fim destas
atividades que caracterizam a missão de Jesus, dos discípulos e a missão da Igreja. O
Reinado de Deus é o lugar da vida plena para todos. Está em processo na história dos
homens e mulheres que aprendem amar, perdoar e servir-se mutuamente e se prolonga
para além da história humana; não se esgota nas realidades terrestres.6

2. A disciplina de teologia pastoral


A teologia pastoral tem um objetivo que é ao mesmo tempo a sua identidade.
Podemos afirmar que visa à orientação para o bem agir da Igreja que assume o
compromisso de cumprir o mandato deixado por Cristo (Mt. 28,16-20). É uma
perspectiva eclesial importante e que reafirma o ser da Igreja, o seguimento de
Jesus Cristo. A teologia pastoral também se refere à ação do cristão no mundo, um
compromisso que, assumindo a pertença religiosa e eclesial, prolonga-se no enga-
jamento histórico, na perspectiva de um mundo justo e solidário para todos, sinal
do Reinado de Deus7. Enquanto ciência, a teologia pastoral pode ajudar os cristãos

3 CNBB. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil (1995-1998). São Paulo: Paulinas, 1995.
n. 7. (Documento 54).
4 Ibid., n. 7.
5 O papa João Paulo II, no discurso de abertura à Conferência de Santo Domingo, menciona a necessidade de
uma nova evangelização, como novo ardor e novo método. SANTO DOMINGO. Conclusões da IV Conferência
do Episcopado Latino-Americano. Discurso de abertura do papa João Paulo II. São Paulo: Paulinas, 1992.
6 XAVIER, D. J. A Dimensão social da fé. In: XAVIER, D. J.; SILVA, M. F. da (org.). Pensar a fé teologicamente.
São Paulo: Paulinas, 2007. p. 237.
7 BRIGHENTI, A. A pastoral dá o que pensar. A inteligência da prática transformadora da fé. São Paulo:
Paulinas, 2006. p. 61.
124

a assumirem mais eficazmente o compromisso com o Reino anunciado por Jesus.


Este compromisso é mediado pela Igreja e a Igreja conta com os seus membros, os
batizados, para assumi-lo.
Contudo, a ação eclesial exige um planejamento e uma reflexão da sua prática.
A teologia pastoral contribui neste propósito à medida que busca ligar a reflexão
teológica com a prática pastoral, uma prática voltada para o Reinado de Deus. Nesse
sentido, compreendemos a teologia pastoral a partir de três dimensões: a) a ação da
Igreja comprometida com o anúncio do Reinado de Deus no seguimento à proposta
de Jesus de Nazaré; b) a organização desta ação como algo pensado, planejado, com
clareza de objetivos, estes sintonizados com o objetivo maior que é o Reinado de
Deus; c) a reflexão crítica sobre como a ação está se desenvolvendo, se ela se abre à
iluminação teológica e se ajuda a teologia no seu processo reflexivo, pois a pastoral
apresenta implicações concretas para a teologia e vice-versa8.

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Os sujeitos deste processo são todos os batizados, toda a Igreja, Povo de Deus,
isto é, tanto o clero quanto os leigos, mas existem especificidades nas tarefas. A
responsabilidade da teologia pastoral está em ajudar o processo acontecer de uma
forma eficaz, respeitando as funções e papéis que são diferenciados.

3. Elementos históricos da teologia pastoral como disciplina


teológica
A preocupação quanto à pastoral, ou seja, o caminho prático de evangelização,
fez com que a Igreja pensasse uma forma de organizar a disciplina de pastoral. Já
no Concílio de Trento (século XVI), sob a necessidade de reformular o processo de
formação dos futuros padres, despontava a preocupação quanto a sua atuação pastoral,
o exercício do ministério presbiteral.9
Os manuais, fundamentados no direito canônico, buscavam ajudar o clero na
cura de almas e na administração de sacramentos. Na Áustria (século XVIII), efe-
tivou-se outra tentativa mais substancial, também ligada à perspectiva de reforma
dos estudos eclesiásticos, porém a orientação pastoral ainda era vista sob o ângulo
funcional e pragmático.
Assim, as duas propostas de reformulação tinham um fundo pragmático mais
que reflexivo. Voltavam-se à praticidade do exercício do pastoreio, de como fazê-lo.
Compreendia os pastores como os sujeitos que agiam em nome da Igreja e tinham o
povo (leigos) como os destinatários passivos da ação pastoral dos ministros ordenados.
Contudo, se demonstrava a preocupação com a prática evangelizadora da Igreja e a
possibilidade da iluminação teológica dela.
No decorrer da história, com preocupações e olhares diferentes, os pensadores
da teologia pastoral foram sugerindo caminhos diversos no sentido de ajudarem
os estudantes de teologia a terem um fio condutor para suas atividades pastorais.

8 LIBANIO, J. B.; MURAD, A. Introdução à Teologia. São Paulo: Loyola, 1996. p. 209.
9 LIMA, Luiz Alves de. A catequese do Vaticano II aos nossos dias. A caminho de uma catequese a serviço
da Iniciação à Vida Cristã. São Paulo: Paulus, 2016. passim.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 125

Citamos Johann Michel Sailer (1731-1832) que, preocupado com o fundamento da


pastoral nas Sagradas Escrituras e no princípio kerigmático, propõe um caminho
pastoral enfocando a obra salvadora de Jesus. A pastoral deveria ajudar a salvar a
humanidade. Anton Graf (1814-1867), por sua vez, buscou acentuar a ação pastoral
como missão de toda a Igreja. Sugeriu o termo Teologia Prática no lugar de Teologia
Pastoral, sendo estruturada com base científica, eclesiológica e pastoral. Compreende
que o sujeito da ação não é apenas o ministro ordenado, mas todos os batizados.
A reflexão da ação pastoral deixa de centrar-se no presbítero para voltar-se para a
análise da ação de toda a Igreja. J. Amberger, discípulo de Graf, sugere um projeto
dividido em Direito Canônico e Teologia Pastoral. Volta a ter como objeto de atenção
a atividade do pastor.
O pastoralista M. Benger segue a trajetória de J. Amberger e define teologia
pastoral como a introdução científica do pastor no âmbito da administração do seu
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ofício. Este último autor, citado, também compreende pastoral como uma prática pró-
pria de ministros ordenados. Acentua o pragmatismo e não supõe a teologia pastoral
como espaço de reflexão da missão da Igreja. Este modelo de pensamento implica
em um reducionismo da teologia pastoral, pois não concebe a prática como uma
atividade além da ação dos ministros ordenados e nem vê a mesma ação pastoral
como um espaço de reflexão.
No século XX, o tema teologia pastoral continuou como preocupação dos teó-
logos na tentativa de superar o pragmatismo que implicava no seu empobrecimento,
pois não era concebida como espaço de reflexão da missão da Igreja. O viés clerica-
lista ainda estava muito presente e era algo a ser superado. O desafio de superação do
pragmatismo, de superar a ausência de uma reflexão mais profunda e o clericalismo,
era uma constante. Constantin Noppel, tendo presente esta preocupação, sugere à
teologia pastoral um caminho não somente de aplicação de princípios teológicos,
mas como ensino do governo pastoral e do cuidado da Igreja como Povo de Deus.
Enfoca o papel dos leigos como membros ativos da missão da Igreja, que não se
reduz à tarefa dos pastores, mas de todos os batizados.
Franz Arnold (1898-1969) afirmava que a pastoral tem um objeto próprio emba-
sado na palavra, sacramentos e ação (ação da Igreja). A Igreja é mediadora da ação
divina na vida humana, contudo a primazia é a ação salvífica de Deus. Retoma o
princípio de Constantin Noppel de que a Igreja como congregação dos batizados
compreende todos como responsáveis pela sua ação.
P. A. Liegé (1921-1979) define teologia pastoral como a reflexão sistemática
sobre todo o ministério da Igreja. É a ciência teológica da ação eclesial. Percebe-se
que acentua o caráter científico e reflexivo da teologia pastoral. Afirma também que
é uma ação eclesiológica, de toda a Igreja e não somente dos clérigos. Nesse sentido,
a Igreja assume os ministérios profético, litúrgico e caritativo. Heinz Schuster (1974),
discípulo de Karl Ranher, afirma que a teologia pastoral diz respeito à realização
da Igreja no presente e no futuro. Nesta tarefa conta com a colaboração de todos os
seus membros. Manifesta a preocupação com o planejamento da ação da Igreja e a
preparação dos seus agentes para cumprir esta tarefa.10

10 BRIGHENTI, A. A pastoral dá o que pensar. A inteligência da prática transformadora da fé, p. 50ss.


126

Percebemos, a partir destes teólogos, a evolução do pensar sobre a teologia


pastoral. Houve a busca da superação do pragmatismo que fazia da teologia pastoral
um receituário da ação do clérigo e a superação de uma visão de teologia pastoral
como ação própria do ministro ordenado, a qual tinha presente a Igreja como o único
caminho da Salvação.
O Concílio Vaticano II foi importante na superação desta perspectiva eclesial
centrada na figura do padre e que implicava na ação pastoral. Ele foi precedido por
alguns movimentos importantes que interferiram na compreensão da experiência
cristã nos níveis espiritual, eclesial e pastoral.11 As reflexões propostas pelo Concílio
sugerem um modelo de Igreja diferente do que era assumido até então. Se propunha
o desafio do diálogo aberto ad intra, que diz respeito à organização interna da Igreja
e ad extra, ao diálogo com o mundo.12
A Igreja assume como seus principais elementos a ideia de que é comunhão

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– enquanto unidade na diversidade de seus membros –, o que compreende todos
os batizados; é sacramento da salvação; não o único caminho da salvação, pois a
salvação pode acontecer por outros caminhos, diferentes dos da Igreja; desempenha
um serviço ao Reinado de Deus, pois compreende que o sentido da Igreja está no
anúncio do Reino. Então ela é sinal do Reino na história humana.13
Tais referências eclesiológicas apontam para desdobramentos na ação pastoral e na
teologia pastoral. O agir pastoral foi iluminado por uma nova compreensão de Igreja que
se colocava frente ao ser humano na perspectiva de diálogo e solidariedade, sobretudo
com os enfraquecidos, como afirma o Concílio Vaticano II: “as alegrias e as esperanças,
as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que
sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípu-
los de Cristo”.14 O diálogo com o homem moderno e a tentativa de compreendê-lo e às
suas diferentes realidades não eximiam a Igreja de assumir o compromisso profético, a
denúncia das situações contrárias ao Reinado de Deus.

3.1 A reflexão pastoral na América Latina e no Brasil

A opção profética da prática pastoral, enquanto esforço de anunciar o Reinado


de Deus em meio às tantas realidades de antirreino nas sociedades, foi uma realidade
constante no Continente latino-americano e configurou a reflexão teológica pastoral
no percurso pós-conciliar. Lembramos que uma das grandes preocupações da Europa
era o afastamento das pessoas de Cristo e, consequentemente, da Igreja, e isto dire-
cionava a prática eclesial europeia após o Concílio.
Na América Latina, particularmente no Brasil, a realidade era outra. Não havia
a preocupação com o secularismo e o indiferentismo religioso. Existia uma realidade

11 ALBERIGO, G. (org.). História dos Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995. p. 394.
12 BARROS, P. C. Lumem Gentium, n. 12, o sensus fidelium: uma Igreja à escuta do Povo de Deus a serviço
do mundo. A Igreja, espaço de escuta e discernimento. In: FREITAS, M. C. Teologia e Sociedade: relevância
e funções. São Paulo: Soter/Paulinas, 2006. passim.
13 FORTE, B. A Igreja ícone da Trindade: breve eclesiologia. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005. passim.
14 PAULO VI. Constituição Pastoral Gaudium et Spes: sobre a Igreja no mundo atual. In: DOCUMENTOS DO
CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. São Paulo: Paulus, 1997. n. 1.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 127

de miséria, pobreza, injustiça social e perda da liberdade humana. A leitura compro-


metida desta realidade influenciou a reflexão da teologia pastoral. A disciplina assume
uma configuração diferente da proposta europeia avalizada no contexto do Concílio
Vaticano II. Própria do contexto latino-americano, a teologia pastoral vai buscar
uma sintonia com este contexto, opção que acabará por influenciar profundamente
a reflexão. Lembramos três características deste projeto:15

a) A reflexão que supera a práxis eclesial, voltando-se também para a práxis


das pessoas em geral; o compromisso com o Reino está além da ação
eclesial, não se esgota nela. Aqui vemos reforçada a opção da Igreja como
sacramento da salvação;
b) É a reflexão da práxis da Igreja, das pessoas em geral e feita na ótica do
pobre. Há interesse profundo, o compromisso com o pobre, a “parciali-
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dade” que vem de Deus (Ex 3,7ss) aquele que toma a defesa dos excluídos.
Esta opção acontece na perspectiva da libertação. O interesse é a causa dos
pobres e a possibilidade real de incluí-los em um mundo justo e solidário,
expressão do Reinado de Deus.
c) A reflexão extrapola o compromisso dos teólogos profissionais. A teologia
parte primeiramente do compromisso com o lugar do pobre, que é o enga-
jamento. Num segundo momento surge a reflexão da prática da Igreja, das
pessoas sob a perspectiva do pobre. Neste caminho, a teologia pastoral
abre-se ao diálogo com as ciências humanas que ajudam a compreender, a
partir de outros olhares, a realidade e a possibilidade da sua transformação
que, para a teologia, acontece na perspectiva do Reinado de Deus.

No caso do Brasil, no contexto de transformação da pastoral, foi valiosa a


contribuição da ação católica especializada, uma proposta de ação pastoral e social
idealizada por Joseph Cardijn, na Bélgica, e que existia no Brasil desde a década
de 1940 sob a liderança do Pe. José Távora. Até então as orientações em termos de
proposta de evangelização eram oriundas, em grande parte, do texto da Pastoral
Coletiva, de 1915.
A ação católica, inicialmente, era compreendida como o braço leigo da hierar-
quia eclesial, agindo na sociedade. No Brasil, se estruturou, sobretudo, a partir da
ação dos jovens. A riqueza deste projeto está na abertura da ação evangelizadora à
participação dos leigos que atuaram em diferentes segmentos da sociedade. Lembra-
mos a JOC – Juventude Operária Católica; a JEC – Juventude Estudantil Católica;
a JUC – Juventude Universitária Católica; a JAC – Juventude Agrária Católica; a
JIC – Juventude Independente Católica. Não era uma atuação desarticulada, mas
organizada, na qual os leigos se faziam protagonistas da ação enquanto organização,
atuação e avaliação.
O projeto da ação católica especializada ajudou a impulsionar o método Ver,
Julgar e Agir, marcante na trajetória pastoral das últimas décadas. Foi no interior

15 BRIGHENTI, A. A pastoral dá o que pensar. A inteligência da prática transformadora da fé, p. 56ss.


128

dos movimentos e no seu raio de atuação que se plasmou, pouco a pouco, a relação
fraternalmente evangélica entre militantes, dirigentes, sacerdotes e bispos, pois os
membros do ministério hierárquico atuavam, antes de tudo, como educadores da fé
e recebiam, dos militantes e dirigentes, intuições de inestimável valor sobre a reali-
dade dos meios em que estavam inseridos.16 E isso provocou alterações no jeito de
pensar a pastoral de parte da Igreja. A criação do CELAM, na América Latina, e da
CNBB, no Brasil, ajudaram a aprofundar as mudanças. Estes fatos serão vistos nas
próximas unidades deste capítulo.
O itinerário histórico que seguimos aponta uma evolução significativa da teolo-
gia pastoral. Ressaltamos que o ato de pensar a pastoral implica em saber o conteúdo
da evangelização, mas também o jeito, o método, a forma de como isto pode acon-
tecer. A boa vontade, as boas intenções implicam em condições para exercitá-las. O
saber supõe o diálogo e a interação com outros saberes. É o conhecimento que se

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transforma em sabedoria. A sobriedade e a atitude reflexiva quanto às nossas práticas
são um caminho salutar de sabermos como estamos exercendo o compromisso cristão,
o compromisso com a defesa e promoção da vida.

4. Pastoral e reflexão teológica


A ação pastoral, compreendida como ato evangelizador, está envolvida por
compromissos e responsabilidades que a tornam uma atividade extremamente signi-
ficativa, não só na perspectiva de evangelização, mas também da reflexão teológica.17
Sem dúvida, a ação pastoral realiza historicamente o mandato apostólico deixado
por Jesus Cristo à sua Igreja.
Compreende-se que a prática (ação primeira) é envolvida por uma complexi-
dade especial. Não é uma prática assistemática ou desorganizada, sem rumo certo.
Também não é uma prática plasmada pelo espírito autoritário, no qual o agente, dono
da verdade e do saber, busca evangelizar uma comunidade formada de pessoas vistas
como objetos, destinatários do saber e da verdade da qual o agente considera-se por-
tador. Este modelo de relação é próprio de uma orientação pastoral que desconhece
a vitalidade de uma comunidade de fé.
A perspectiva de prática pastoral que norteia um trabalho que quer ser evange-
lizador é aquela em que o agente de pastoral busca, na relação com a comunidade de
fé, fortalecer o mesmo processo de evangelização. Nesse sentido, a evangelização
é um desafio assumido por diferentes sujeitos. Para o agente, a evangelização é um
processo pelo qual ele evangeliza e, ao mesmo tempo, é evangelizado. Ele não é o
dono da verdade da fé e nem aquele que sabe tudo. É alguém que, a partir da opção
de fé, se coloca a serviço da comunidade.
Através deste diálogo percebe-se que a prática pastoral tem o referencial da
teoria teológica e a teologia defronta-se com a experiência que advém da prática de
evangelização. Deste confronto surge um novo pensar teológico. A teoria entra em

16 Ibid., p. 29.
17 BOFF, C. Teoria do Método Teológico. Petrópolis: Vozes, 1999. passim.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 129

diálogo com a prática através de um processo dialético que vai se aprofundando e se


intensificando na medida do seu desenvolvimento. O saber não se estrutura somente
na teoria e nem somente na prática, mas compreende estas duas dimensões. São dois
momentos de uma mesma unidade.18
Então, teologia e pastoral não são momentos estanques e isolados um do outro.
Uma dimensão provoca a outra e sugere a constante avaliação no método e no con-
teúdo. Cada vez que o agente reflete sobre a sua experiência pastoral o faz iluminado
pela luz da teologia. Cada vez que estuda teologia o faz provocado pelas inquirições
que surgem da sua experiência pastoral. Assim, os conhecimentos teológicos, tais
como liturgia, moral, sacramentos, estudo da Sagrada Escritura, vão se complemen-
tando e se aprofundando.
Porém, existem tensões na relação entre o pensar teológico e a ação pastoral.
Como a pastoral e a teologia exigem do agente atenção e prioridade, este é desafiado
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a buscar o equilíbrio entre estas duas atividades.19 Com equilíbrio, o diálogo é mais
fecundo. Caso se priorize apenas a pastoral corre-se o risco de relativizar a força e a
importância da teologia como iluminadora da prática. Isto implicará no empobreci-
mento da ação pastoral. Caso se priorize apenas o estudo teológico, isso também rela-
tivizará o compromisso pastoral, o que será prejudicial para o pensar teológico pela
ausência do contato mais efetivo e crítico com a realidade. Estudar teologia implica
não somente em assumir o compromisso com a missão pastoral, como também ter a
capacidade de sustentar o diálogo equilibrado entre estas experiências fundamentais
da vida de estudante. Todo agir pastoral se dá pela e na realidade histórica, a partir
das suas condições sociais, econômicas e culturais.
Trata-se de, como afirma Libânio, duas grandezas distintas, a teologia e a pastoral.
Elas põem-se a serviço da mesma causa: o processo evangelizador. No entanto, no fazer
teológico, ambas as instâncias estão em contínua tensão. Cada uma delas apresenta
natureza própria, disputando com a outra o tempo, o empenho e a energia do teólogo.

5. Diálogo da teologia pastoral com as disciplinas teológicas


A ação pastoral orientada pela teologia pastoral torna-se instância de reflexão
e de produção de conhecimentos pastorais e teológicos. Pastorais, porque ajuda a
orientação da prática pastoral para que não seja uma prática sem base e sem orienta-
ção, mas algo pensado, planejado e que tem fins claros. Tem fins Teológicos, porque
a pastoral, pela dinamicidade da relação com diferentes sujeitos, provoca tensões em
nível do saber teológico e provoca também toda a teologia a pensar esta ou aquela
dimensão do seu referencial epistemológico, o conhecimento da revelação de Deus
na história humana.
A teologia não está pronta enquanto um saber sobre a revelação de Deus. A
vitalidade do pensamento teológico vem deste peregrinar permanente que está entre
a revelação de Deus e a realidade do ser humano, destinatário da revelação. Então,

18 TABORDA, F. Fé cristã e práxis histórica: sobre a estrutura do conceito de práxis e seu emprego em teologia.
Revista Eclesiástica Brasileira, v. 41, n. 162, p. 61, jun. 1991.
19 LIBANIO, J. B.; MURAD, A. Introdução à Teologia. São Paulo: Loyola, 1996. 202s.
130

a partir da pastoral, ela recebe “provocações” no sentido de responder as dúvidas e


interpelações oriundas das relações pastorais. As interpelações referem-se à teologia
moral, à liturgia, à eclesiologia, aos sacramentos e outras.
A teologia pastoral permite este diálogo que sustenta a vitalidade da própria
teologia e, ao mesmo tempo, oferece a fundamentação teológica da pastoral. Neste
caminho não é conveniente buscar simplificações e receituários prontos. Isto impli-
caria negar a importância da teologia pastoral. As diferentes disciplinas da teologia
têm seu estatuto e seu processo próprios. O diálogo não parte da busca de respostas
prontas e sim de um processo de reflexão profundo que impactará na teologia pastoral
e nas demais disciplinas teológicas.

6. Teoria e prática assumem caminhos comuns

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O potencial libertador da fé cristã assume uma configuração especial e pode
ser viabilizado através da prática consequente. Tal prática, porque eficaz quanto ao
método (caminho que percorre) e quanto aos objetivos (onde quer chegar), contribui
ao pensar teológico. Considera necessário o diálogo com a teologia no sentido de
contribuição e de enriquecimento. Porém, preza o ponto de partida da sua reflexão e
os temas que dali emergem. A índole da teologia a motiva a valorizar a prática pastoral
como uma ação de libertação, dado essencial na sua epistemologia. Mencionamos o
aspecto da libertação porque a prática e a teologia têm este objetivo como pressuposto
inalienável. É um dos elementos que as fazem comungantes com a missão de Jesus
(cf. Lc. 4,16ss). A prática pastoral e a reflexão teológica são atitudes voltadas para a
libertação. Teoria e prática carregam o compromisso libertador. E as duas recebem
igual importância.
No universo epistemológico da teologia não há relativização da importância
da teoria, mas uma valorização maior a partir de outro parâmetro que a compreende
no seu processo. O fato metodológico “partir da prática” aprofunda a sintonia
entre teoria e prática. O momento teórico permite o debruçar-se criticamente
sobre a atuação do agente de pastoral. Os dois momentos (teoria e prática) estão
profundamente interligados.
Não há como supor a teoria como dependente da prática e nem relativizar o seu
valor em relação à prática no processo epistemológico. A teoria compõe o processo
como questionadora e qualificadora da prática. Sem o crivo da teoria, a prática não
pode se apresentar como produtora de sentido e de transformação da realidade. Pode
ser ativismo, ação isolada, ação “orientada” pelo senso comum, porém, não prática
estruturada como processo evangelizador e gerador de conhecimentos.
Este pressuposto básico da interação teoria e prática, mesmo sendo conflitivo,
vai qualificando o processo pastoral como práxis histórica, que se volta criticamente
para o seu processo e para a totalidade que a envolve, a realidade antirreino que
precisa ser transformada. O olhar crítico da pastoral vai nestas duas direções: um
olhar interno e um olhar externo. Sem a luz da teoria não é possível compreender
e qualificar a prática pastoral, pois em si mesma ela é frágil como ação orgânica,
tendendo mais para o ativismo.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 131

Rever a ação pastoral não significa gastar tempo com conversas aleatórias ou
tirocínio infundado de ideias, mas fazer uma reflexão criteriosa à luz da Palavra de
Deus e da teologia, da ação pastoral dos estudantes de teologia. A luz da teoria ilumina
e tira das sombras a prática. É o momento necessário, princípio da práxis, e esta é
dinâmica permanente, fundada nestes dois momentos: teoria e prática.
Como a práxis volta-se para si criticamente; seus dois momentos são passíveis
de transformação. A prática em si, como ponto de partida da reflexão, pode sofrer
intervenções se estiver ameaçada como processo evangelizador e como possibilidade
de construção de conhecimentos. O próprio agente de pastoral, sujeito da prática,
junto com outros sujeitos, em alguns momentos é aconselhado a rever seus posicio-
namentos. Esta postura crítica volta-se também para o momento teórico. Se a teoria
ilumina a prática é também iluminada por esta. O receber luzes significa sugestão
de revisão, transformação na perspectiva de sintonia com o momento prático. A
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dialeticidade da práxis implica também na modificação da teoria.


Nessa perspectiva, o julgar a ação evangelizadora não é um ato qualquer. Exige
metodologia e teoria claras e a teologia como reflexão criteriosa a partir da com-
preensão da revelação de Deus. A orientação que vem da teologia implica no partir
da prática, porém uma prática situada, contextualizada. O ato seguinte implica em
colocar esta prática à luz da teoria, perguntando pela sua pertinência como ação
evangelizadora, transformadora da realidade e geradora de conhecimentos.
A prática e a reflexão são a constante do processo. O agente volta à prática com
uma nova compreensão do seu trabalho e, em alguns momentos, com a necessidade
de observá-lo melhor, estando atento a outros elementos que exigem um olhar mais
perspicaz. Ao mesmo tempo ele volta “revigorado” para agir como evangelizador.
Neste caminho, a sua opção vai se fortalecendo.
O agente de pastoral e teólogo são o mediador entre os diferentes momentos do
processo metodológico. Como evangelizador ele se vê mergulhado na prática pastoral,
como pensador que é convidado a refletir a revelação de Deus num contexto próprio
e original brasileiro e latino-americano. Como articulador entre estes momentos,
sujeito do agir e do pensar, traz para a reflexão, ao lado das interpelações da prática,
os temas da tradição teológica. Estes são lidos, estudados e refletidos a partir da luz
do contexto da ação pastoral. O agir se dá não só na atividade pastoral, mas também
na atividade intelectual.
Aqui se percebe claramente a importância da pastoral e da teologia na vida
de um agente que age pela sua fé em nome da Igreja que quer ser anunciadora do
Reinado de Deus. Agir pastoralmente sem o aporte da reflexão é arriscado. Refletir
teologia sem um olhar apurado da realidade e a experiência pastoral do cotidiano é
tentar “caminhar no ar”. A revelação de Deus aconteceu historizada, pois lemos esta
revelação aportados na história, na realidade que nos cerca e interpela.
A teologia pastoral caminha neste itinerário. Ela permite que toda a teologia,
estudo da revelação de Deus, tenha um olhar para a realidade, para aqueles que
também são interlocutores da proposta amorosa do Pai. Permite, por outro lado,
que o agente de pastoral tenha um substrato no seu trabalho, que é evangelizador.
Ele age com uma base sólida, com fundamentos teóricos constituídos ao longo da
132

tradição da Igreja e que, por sua vez, devem sempre ser atualizados e repensados
a partir dos novos desafios.

Conclusão
Aqui, procurou-se desenvolver os elementos estruturantes da disciplina de
Teologia Pastoral, a saber, o seu ponto de partida, a relação pastoral e evangelização
e a experiência de Jesus Cristo, o Bom Pastor como luz que orienta toda a ação
da Igreja. Teologia e Pastoral são duas experiências fundamentais na vida do ator
eclesial. A dedicação a estas duas atividades, as quais imprimem uma compreensão
de vida cristã diferenciada, é conjugada na reflexão proposta pela disciplina que
se está trabalhando.

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A disciplina de Teologia Pastoral tem uma história marcada pela confliti-
vidade que é própria de quem caminha e foi construindo, neste caminhar, o seu
referencial de conhecimento. A dinamicidade e o caminhar são próprios dos que
são abertos ao saber. A partir deste trabalho, outros elementos devem ser apro-
fundados, sobretudo na História da Teologia Pastoral, pois aqui foi apresentado
um fio condutor bem rudimentar.
Esta opção é própria de quem busca o conhecimento. A experiência do coti-
diano da evangelização ilumina e provoca a teologia no seu pensar; a teoria teológica
ilumina e desafia a pastoral como ação evangelizadora no sentido da profundidade e
orientação metodológica. O teólogo e agente de pastoral é o sujeito deste processo,
um sujeito que faz esta experiência em diálogo com outros sujeitos envolvidos, tanto
na reflexão teológica quanto na ação pastoral.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 133

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INTRODUÇÃO À TEOLOGIA
CATEQUÉTICA:
ouvir, acolher, experimentar
e anunciar a Palavra
Humberto Robson de Carvalho1
Caio Henrique Esponton2
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Introdução
A Igreja, nos últimos decênios, tem se empenhado na missão de ressignificar o
processo catequético. Observa-se no magistério eclesial e na vida das comunidades de
fé o desejo por uma catequese verdadeiramente mistagógica, diferente de uma catequese
escolar. A catequese na contemporaneidade exige uma teologia própria, uma reflexão
elaborada à luz de seus fundamentos mais elementares, para que as comunidades eclesiais
possam delinear ações pastorais concretas e eficazes: “pode-se dizer, em termos gerais,
que o sistema tradicional da catequese já não funciona, não produz os frutos esperados”.3
Uma teologia catequética deve sempre partir da compreensão cristã da revela-
ção: “a revelação nos encaminha, portanto, a uma catequese que responda aos anseios
humanos e promova uma vida mais gratificante para todos, como estava desde sempre
no desígnio de Deus”.4 Os documentos do Magistério, especialmente após o Concílio
Vaticano II, evidenciam a profunda relação que existe entre catequese e revelação. Sendo
a catequese o ecoar de uma mensagem, o anúncio de um acontecimento que adquire
sua plenitude em Jesus Cristo, ela supõe uma ação de Deus que se revela e abre-se
ao diálogo com o ser humano em sua história. É nesse contexto que toda a teologia
catequética deve se encaminhar para que ela não se reduza a uma discussão pedagógica
ou metodológica que, por tanto tempo, ocupou o centro da catequese. Para além de
novas metodologias e pedagogias que, em seu devido lugar, possuem sua importância
indiscutível, é necessário que os cristãos ampliem sua busca de informações no que se
refere aos fundamentos do ato de catequizar. Faz-se necessário que conheçam aquilo

1 Mestre em Educação; Especialista em Catequese, Liturgia e Espiritualidade. Coordenador dos Cursos de


Pós-Graduação em Catequese e Espiritualidade do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, UNISAL,
Campus Pio XI. Pároco da Paróquia Nossa Senhora Aparecida – Região Episcopal Santana da Arquidiocese
de São Paulo. Membro da Sociedade Brasileira de Catequese (SBCat). Escritor da Paulus Editora.
2 Mestrando em Ciências da Religião; Especialista em Espiritualidade; Bacharel em Filosofia. Participa do
Grupo de Pesquisa da PUC-Campinas: Ética, epistemologia e religião. Desenvolve pesquisas nas áreas de
filosofia e teologia patrística, ciências da religião, ética, espiritualidade e mística. Escritor da Paulus Editora.
3 ALBERICH, E. Catequese evangelizadora: manual de catequética fundamental. São Paulo: Salesiana,
2004. p. 37.
4 CNBB. Diretório Nacional de Catequese. Brasília: CNBB, 2006. n. 17.
136

que os motiva a iniciar novos cristãos no mistério da fé: “é importante lembrar que a
revelação é entendida hoje na Igreja como o diálogo entre Deus e a humanidade, cujo
ponto culminante é a pessoa de Jesus Cristo”.5
É a partir dessa necessidade, cada vez mais urgente na Igreja, que tal reflexão pre-
tende trazer alguns elementos indispensáveis para se formular o esboço de uma teologia
catequética. Toda teologia é catequética, pois ela busca iniciar a pessoa na vida cristã e
colocar o cristão diante da realidade divina do mistério que se revela. No entanto, uma
teologia a respeito do ato de catequizar visa buscar as motivações mais elementares
que colocam homens e mulheres em todo o mundo a anunciar a fé e a transmiti-la por
meio da palavra e do testemunho. As informações que compõem esta reflexão tratam de
alguns pressupostos básicos para que a catequese, oferecida nas comunidades eclesiais,
seja um meio pelo qual o próprio Deus se comunica, se faz compreender, atrai para si
todas as gerações e possibilita uma experiência profundamente pessoal e comunitária
do seu amor salvífico revelado em Jesus Cristo.

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O percurso aqui trilhado deseja oferecer uma reflexão que colabore para uma
catequese mais eficaz nas comunidades, capaz de assegurar a transmissão da fé como
experiência de Jesus Cristo e perpetue no mundo a experiência de salvação nascida
do amor sempre presente de Deus na história humana.

1. Os pressupostos para uma teologia catequética


A reflexão pós-conciliar, na América Latina e no Brasil, desenvolveu, de modo
muito significativo, a catequese como um ato eclesial que toca diversas realidades.
Partindo do dinamismo da revelação, fonte da catequese, o ato de catequizar coloca-se
em diálogo com a fé, com a educação da fé, com a evangelização e com a comunidade
eclesial em sua totalidade. O ato de catequizar não é um ato isolado, uma ação pastoral
que prepara crianças e jovens para a recepção do sacramento pois é sempre constante
o apelo da Igreja para que se supere a visão sacramental da catequese. Mais do que um
momento preparatório, a catequese é um processo que acompanha o cristão em toda
sua caminhada até a plenitude. Não é um processo que encontra um final. O ato de ser
catequizado e catequizar é intrínseco ao próprio ato de professar a fé e vivê-la.
A catequese pressupõe alguns elementos que colaboram para que os cristãos a
compreendam mais como um caminho de iniciação à vida cristã e um ato eclesial
inspirado pelo Espírito do que uma mera preparação para a recepção dos sacramentos.
No alvorecer deste tempo, observa-se uma redescoberta do desejo de experiência,
de contato direto com o divino. A diversidade de movimentos religiosos, que atraem
multidões, pretende, de uma forma ou outra, levar o fiel à experiência com Deus. Este
desejo de experimentar Deus é autenticamente cristão e não deve ser negligenciado
na catequese da Igreja. O conhecimento autêntico de Deus não nasce da adesão a um
conjunto de normas doutrinais, mas do contato íntimo com este mistério que encontra
o ser humano em sua história.6 Este contato é mediado pela Igreja, especialmente

5 CELAM. Manual de Catequética. São Paulo: Paulus, 2008. p. 16.


6 BINGEMER, M. C. A espiritualidade hoje: novo rosto, antigos caminhos. In: GONÇALVES, P. S. L.;
TRASFERETTI, J. A. (org.). Teologia na pós-modernidade: abordagens epistemológica, sistemática e
teórico-prática. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 364.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 137

pelos catequistas. Redescobrir a catequese como iniciação e fundamentá-la, a partir


da visão do Concílio, são dois pilares básicos para uma teologia catequética que se
mostre realmente eficaz e parceira no processo evangelizador.

1.1 A catequese como caminho de iniciação cristã

A Igreja possui uma longa história. Por quase dois mil anos o anúncio do
evangelho constitui um fato que mudou a história. Toda ação pastoral e toda a refle-
xão nascida da fé em Jesus Cristo, o agir da Igreja e o anúncio do evangelho, são
realidades que trazem consigo anos de história, compreensões, reflexões e visões de
mundo, muitas vezes contraditórias, que marcam a vida cristã ainda hoje. A catequese
está inserida, de modo particular, nesta dinâmica histórica do anúncio do Evangelho
pela Igreja, pois é ela o meio pelo qual se transmite a fé às gerações mais jovens. É
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no processo catequético que se observa, de modo privilegiado, como, ao longo dos


anos, a fé da Igreja foi se desenvolvendo no campo da compreensão. Isto permite
aos catequistas e teólogos aprofundar o conceito e o método da catequese: “tudo
o que a Igreja é e tudo o que a Igreja faz encontra seu fundamento último no fato
de que Deus, em sua bondade e sabedoria, quis revelar o mistério de sua vontade,
comunicando a si mesmo às pessoas”.7
Os primórdios da Igreja são caracterizados por um contexto histórico de per-
seguição e hostilidade ao cristianismo. Os primeiros cristãos viviam sua fé em um
mundo que não os reconhecia como cidadãos. Os relatos dos homens e mulheres dos
primeiros séculos são marcados pela experiência de uma Igreja bastante diversa em
seus modos de proceder, celebrar e se encarnar nas culturas nas quais as comuni-
dades se enraizavam. Havia uma pluralidade no interior da Igreja que não permitia
considerar a imposição de uma metodologia uniforme para o desenvolvimento da
catequese. Mas nessa pluralidade, alguns elementos apresentavam-se comuns nas
comunidades cristãs ao redor do mundo conhecido. A transmissão da fé precedia
a recepção dos sacramentos do batismo, da confirmação e da eucaristia. Havia,
portanto, um momento dedicado a transmitir para os novos cristãos aquilo que era
vivido e acreditado no interior da comunidade. Esse tempo não era regrado crono-
logicamente, mas desenvolvido de acordo com as necessidades e particularidades
de cada um dos catecúmenos.8
Esse tempo de preparação ganhou consistência com a liberdade da Igreja. Nos
séculos III e IV o processo de catecumenato já estava bastante estruturado:

O catecumenato era entendido como um aperfeiçoamento do propósito pessoal


de conversão que chegava ao seu ápice na experiência ritual da iniciação cristã.
Tal iniciação desdobrava-se em números ritos e etapas. Em especial, na noite
da Páscoa, a iniciação chegava ao seu ápice, pois realizava-se o banho batismal

7 PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO. Diretória para a Catequese.


São Paulo: Paulus, 2020. n. 11.
8 LIMA, L. A. A catequese do Vaticano II aos nossos dias. São Paulo: Paulus, 2016. p. 19-30.
138

(Batismo propriamente dito), a unção pós-batismal (Crisma) e a primeira par-


ticipação à Ceia Eucarística.9

O catecumenato ganha espaço na Igreja antiga e torna-se o modelo para a ini-


ciação à fé. Uma das principais características deste período é a ideia de uma inserção
paulatina e gradual da pessoa ao mistério da fé. Existia um processo que mesclava em
sua dinâmica o transmitir oral e a experiência sensitiva e sacramental. O processo de
iniciação à vida cristã não era um processo dissociado da vida litúrgica e comunitária,
mas era o meio pelo qual a vida litúrgica e a vida comunitária da Igreja eram assimiladas
pelos iniciantes. Havia uma preocupação para que a fé fosse professada a partir de um
encontro com a pessoa de Jesus Cristo e não pela assimilação de um conhecimento
teórico. Os primeiros escritores cristãos evidenciam a diferença entre o cristianismo e
as diversas filosofias devido ao caráter experimental do primeiro.

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Já na Idade Média e Moderna, o processo catequético é ocultado no interior
da vida da Igreja. A sociedade cristianizada, ao longo dos séculos que sucederam
a queda do Império Romano, tornou-se ela mesma uma sociedade catequética.
As famílias e a sociedade eram os próprios catequistas das novas gerações. Ser
cristão tornou-se sinônimo de ser partícipe do mundo.10 O não cristão, o não bati-
zado, ou aquele que renegava a fé cristã via-se destinado à marginalização, não
só da Igreja, mas da sociedade como um todo. No findar deste período, a Igreja
depara-se com grandes crises, especialmente oriundas dos séculos XVI e XVIII.
A reforma protestante e o iluminismo francês colocaram à prova a consistência da
fé da sociedade cristã do período, o que levou a Igreja a redescobrir e incentivar
a catequese como processo de iniciação ao cristianismo. Entretanto, a catequese
deste período foi evidentemente uma catequese de reafirmação da doutrina e
da memorização.11
É no século XX, com o advento do Concílio Vaticano II e das reflexões pos-
teriores, especialmente aquelas desenvolvidas na América Latina e no Brasil, que a
catequese recupera alguns elementos e compreensões da Igreja primitiva. A redes-
coberta dos textos patrísticos e da vida litúrgica dos primeiros séculos constitui
condições propícias para que a Igreja, na contemporaneidade, reencontre o signifi-
cado da iniciação cristã como elemento basilar do processo catequético. Supera-se,
cada vez mais, o modelo escolar que se utilizava na catequese.12 Encontram-se nos
documentos da Igreja uma perspectiva catequética voltada para a iniciação experien-
cial ao cristianismo. Esta nova postura assumida pela Igreja redefine os caminhos
da catequese e coloca no centro da reflexão e da ação evangelizadora a pessoa de
Jesus Cristo. A partir da experiência com ele é que se pode elaborar uma reflexão
compreensiva da fé.13

9 CNBB. Itinerário Catequético. Iniciação à vida cristã – um processo de inspiração catecumenal. Brasília:
Edições CNBB, 2014. p. 17.
10 Ibid., p. 32-36.
11 Ibid., p. 37-40.
12 Ibid., p. 53-54.
13 CNBB. Catequese renovada. São Paulo: Paulinas, 2009. n. 73.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 139

É neste sentido que a catequese como iniciação à vida cristã não constitui uma
novidade no interior da vida da Igreja. Ela é uma recuperação do modo de proceder das
primeiras comunidades cristãs. Porém, ao mesmo tempo que é recuperação, é também
aprofundamento e inovação. Iniciar a vida cristã não significa repetir aquilo que faziam
os primeiros cristãos, mas tomar deles aqueles elementos que são indispensáveis para
que a fé em Jesus Cristo nasça de um contato real e íntimo com sua pessoa e não de
memorização de algumas proposições a respeito dele. Iniciar a vida cristã é fazer da
catequese um processo existencial, um processo que toque todas as dimensões da vida
da pessoa e a insira na dinâmica da salvação. A salvação, compreendida como experiên-
cia pessoal e comunitária do amor de Deus revelado em Jesus Cristo decorre de uma
abertura sensível à comunicação de Deus. Tal comunicação, mais que a proposição de
verdades enunciadas, é o encontro profundo com o mistério. A catequese, que adquire
características de iniciação, torna-se mistagógica. Repleta de sinais, pouco a pouco
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insere o catecúmeno na comunidade cristã por meio de um aguçar da sensibilidade à


experiência de Deus, até tornar-se um autêntico cristão:

Sabemos que o processo de Iniciação à Vida Cristã requer novas disposições pas-
torais. São necessárias perseverança, docilidade à voz do Espírito, sensibilidade
aos sinais dos tempos, escolhas corajosas e paciência, pois se trata de um novo
paradigma. Foi este o caminho percorrido por evangelizadores como Paulo, os
primeiros cristãos e muitos missionários.14

1.2 Uma necessidade apontada pelo Concílio Vaticano II

O Concílio Vaticano II não elaborou nenhum documento específico a respeito


da catequese. Não obstante, o processo catequético foi amplamente transformado
pela reforma conciliar. O Concílio constitui-se como um divisor de águas entre o
mundo cristão medieval e o moderno e a contemporaneidade. Por mais que se busque
uma hermenêutica da continuidade e por mais que a continuidade seja uma realidade
no tocante à totalidade da história da Igreja, ao se analisar o fenômeno conciliar, é
necessário perceber que o Concílio realiza uma mudança radical de perspectiva.15 A
Igreja que se fundamenta no Concílio Vaticano II não se compreende mais como o
centro do mundo, mas companheira do ser humano na construção de uma sociedade
mais humana. O Concílio rompe com a ideia de uma Igreja que se impõe ao ser
humano e assume o ser humano como sujeito eclesial e social, no qual ela encontra
uma parceria para sua missão de humanizar por meio do evangelho.
A nova perspectiva eclesial que se desenvolve no Concílio impacta radicalmente
a catequese. A educação e a transmissão da fé abandonam gradualmente as concepções
impositivas. A constituição Dei Verbum, sobre a revelação divina, adquire contornos
novos em relação aos seus antecedentes, especialmente a Dei Filius, do Concílio
Vaticano I. A compreensão de revelação contida na Dei Verbum apresenta-se como

14 CNBB. Iniciação à vida cristã: itinerário para formar discípulos missionários. Brasília: CNBB, 2017. n. 9.
15 LIMA, L. A. A catequese do Vaticano II aos nossos dias, p. 74.
140

uma novidade ao afirmar a dialogicidade do evento da revelação. Deus torna-se amigo


e fala aos seres humanos como amigos: “o Senhor falava com Moisés face a face,
como um homem fala com seu amigo” (Ex 33,11). É o próprio Deus que assume a
iniciativa de se comunicar com o ser humano para fazê-lo parceiro na construção da
história da salvação. Na Dei Verbum, e a partir dela, fica evidente que a revelação
não é a história de uma imposição de verdades e leis às quais o ser humano deve
acatar sem nenhuma resistência e sob ameaça. A revelação é o contato amoroso de
Deus com a humanidade na construção da história da salvação. A revelação é um ato
de amor que se desdobra por meio da Palavra e de eventos que vão se constituindo
para o ser humano caminhos para o conhecimento experiencial de Deus: “Em Jesus
Cristo, o rosto invisível de Deus tornou-se visível”.16
Sendo a revelação um ato de Deus que se coloca como amigo do ser humano e
deseja ser conhecido por seu amor, a centralidade do conhecimento de Deus torna-se

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experiência. Com o Concílio Vaticano II e o contato mais profundo da Igreja com a
modernidade, a categoria “experiência” se torna cada vez mais frequente. São diversos
os documentos conciliares e pós-conciliares que enfatizam o caráter experiencial do
encontro com Deus. A antiga concepção de salvação, que nascia da ideia de escutar o
evangelho como norma de vida e segui-lo a partir de uma moral estabelecida, cede lugar
ao caráter experiencial e existencial que o cristão vivencia no contato profundo com a
presença salvadora de Deus em Jesus Cristo. A salvação torna-se uma experiência de
encontro com o amor de Deus desdobrado na Palavra e na história. Este encontro se
dá naquele lugar mais íntimo e sacratíssimo: a consciência humana, na qual, segundo
o próprio Concílio, apenas Deus e o homem podem se encontrar.17
É a partir da consolidação da experiência e da consciência que a teologia conci-
liar coloca no centro da reflexão o ser humano em sua integralidade. É o ser humano
percebido como pessoa, como alguém dotado de liberdade e responsabilidade que o
Concílio irá colocar em evidência. De simples destinatário de uma mensagem ofe-
recida pela Igreja e percebida como mensagem atemporal e a-histórica, o Concílio
enfatiza o ser humano como uma realidade constituinte e indispensável da história
da salvação e na missão evangelizadora da Igreja.18 Ao conceber o ser humano como
pessoa dotada de capacidades e fragilidades, a catequese encontra-se diante de um
novo paradigma, diante de um novo contexto a ser analisado já que se pretende reno-
var. A mensagem catequética não é indiferente ao ser humano, mas deve se adaptar
e se modelar às diversas realidades que permeiam a vida e o tempo de cada pessoa,
inserindo-se na dinâmica da vida social, educacional, intelectual e eclesial de cada
geração humana.
A inculturação torna-se um tema muito importante nos documentos pós-conci-
liares. Tanto em relação à liturgia quanto à catequese, muitos documentos e teólogos
falam da necessidade de que a fé seja inculturada, de que ela seja vivida no interior

16 MANNUCCI, V. Bíblia Palavra de Deus: Curso de introdução à Sagrada Escritura. São Paulo: Paulinas,
1986. p. 31.
17 PAULO VI. Constituição Pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje. In: COMPÊNDIO do
Vaticano II: Constituições, decretos, declarações. Petrópolis: Vozes, 2000. n. 16.
18 Gaudium et Spes, n. 2.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 141

das culturas e sociedades: “para a inculturação da catequese é preciso muita atenção


à situação cultural da gente simples (culturas indígenas, cultura popular) e em espe-
cial ao fenômeno da religiosidade popular, expressão privilegiada da inculturação da
fé.”19 Este movimento de kenosis da mensagem cristã é um movimento que ganha
força no decorrer dos anos pós-conciliares. Há uma tendência cada vez mais evidente
de se deixar de lado aspectos secundários e evidenciar aqueles aspectos da fé que
sejam primordiais, tal como já aludia Santo Agostinho: “... mas devemos abranger
todas as coisas de modo resumido e geral, de tal maneira que escolhamos alguns dos
fatos mais admiráveis, maravilhosos, que todos gostam de ouvir e que se constituem
como eixos da narrativa”.20 Desta maneira, na catequese, houve uma recuperação da
centralidade da Palavra de Deus, da pessoa de Jesus Cristo, da experiência comu-
nitária e da missão evangelizadora como elementos necessários para a formação do
cristão em sua integralidade. A catequese deve, se quiser estar em comunhão com
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o Concílio, enfatizar aqueles elementos que sejam fundamentais na evangelização,


como afirma o Papa Francisco, retomando o espírito conciliar, ao dizer que no centro
da catequese está o querigma, o anúncio da salvação.21
A catequese, portanto, é impactada pelo Concílio de diversas formas. É a partir
da concepção do ser humano como pessoa e parceiro da Igreja em sua missão de
evangelizar que a catequese deve pensar sua identidade. Se a própria revelação de
Deus é um ato de amor, amizade e diálogo, quanto mais a catequese deve sê-lo. O
processo catequético é um processo de iniciação à experiência de Deus, que deve
fazer emergir no cristão o sentido da fé e a alegria de vivenciá-la. É preciso apresen-
tar uma catequese que pense o ser humano em sua integralidade existencial capaz
de renovar a perspectiva eclesial, seja favorecendo uma Igreja de comunhão, seja
evidenciando aquilo que é realmente importante para o cristianismo. O Concílio
Vaticano II possibilitou que a catequese se inserisse na dinâmica da transmissão da
fé como passagem de uma experiência de salvação.

2. Ouvir e acolher a palavra


O movimento de renovação teológica e eclesial, que precedeu e acompanhou
o Concílio Vaticano II, é marcado pela emergência do ser humano como paradigma
para pensar a fé. O pensamento teológico precedente enfatizava uma visão da reve-
lação constituída hierarquicamente que justificava a estrutura eclesial hierárquica
de comunicação e transmissão da fé, na qual a hierarquia eclesiástica exercia uma
autoridade incontestável. A visão de revelação divina piramidal que marcou o mundo
cristão pré-conciliar desdobrava-se em uma catequese ordenada segundo os cate-
cismos. O catecismo tornou-se o símbolo da sistematização e da síntese doutrinária
necessária para a vida cristã dos fiéis. Ao lado das sumas e dos manuais de teologia,

19 ALBERICH, E. Catequese evangelizadora: manual de catequética fundamental, p. 133.


20 AGOSTINHO, Santo. Primeira catequese aos não cristãos. São Paulo: Paulus, 2013. p. 74.
21 FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. São
Paulo: Paulus, 2013. n. 164.
142

os catecismos consolidaram a concepção de que a adesão à fé é similar à aceitação


de propostas verdadeiras emanadas por força do Espírito Santo à Igreja, preservadas
e transmitidas de maneira perfeita ao longo do tempo.22
Questionando-se sobre a solidez teológica e a eficácia pastoral deste modelo
eclesial de compreensão da revelação e de evangelização, teólogos do século XX,
que participaram da renovação conciliar, propuseram uma nova perspectiva. Nesta
nova mentalidade, a centralidade da reflexão teológica deixa de ser a verdade dou-
trinária sistematizada em manuais e torna-se o ser humano. É a conhecida virada
antropológica que se dá no mundo contemporâneo no âmbito das ciências humanas,
como também da teologia.23 Nesta virada antropológica, nomes como Karl Rahner e
Edward Schillebeeckx, na teologia europeia; Gustavo Gutierrez, Juan Luís Segundo,
Jon Sobrino e Leonardo Boff, na teologia latino-americana, tornaram-se referenciais
para pensar a questão da fé no interior do mundo contemporâneo.

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2.1 O ser humano aberto à revelação que se faz diálogo

A revelação de Deus é o ponto de partida para a fé. A fé existe na medida em


que Deus se revela na história humana. A catequese depende da revelação e torna
a revelação compreensível aos homens e mulheres de cada tempo. É por meio da
catequese que a revelação adquire uma linguagem adaptada e compreensível a todas
as gerações. Justamente por isso, a revelação não pode ser vista como um elenco de
verdades estabelecidas, mas sempre como um caminhar progressivo do ser humano
na experiência do mistério inesgotável de Deus. A revelação supõe processo, dinami-
cidade, compreensão hermenêutica do mundo e da palavra de Deus neste mundo.24 É
comum se dividir a realidade em duas dimensões, muitas vezes consideradas opostas:
a história profana e a história da salvação. Tal divisão é incompreensível para uma
fé amadurecida e experimentada, pois a história é uma única história na qual Deus
se revela, se faz presente para salvar e humanizar.
É no interior da única história, com todas as suas vicissitudes, que Deus se dá a
conhecer. O dar-se a conhecer de Deus é um ato de amor, próprio da natureza trinitária.
O nosso Deus é um Deus trinitário e a Trindade é relação de comunhão e amor per-
feitos. Consequentemente, compreende-se que Deus é em si mesmo comunicação. Ao
comunicar-se amorosamente no interior de si mesmo como Trindade, o Deus cristão é
essencialmente movimento, diálogo e interação. O ser dinâmico de Deus implica em
uma saída de si mesmo, pois o amor e o bem tendem sempre a ser comunicados. Na
medida em que Deus sai de si mesmo para comunicar seu amor, uma vez que o amor só
tem sentido quando é destinado a alguém, existe a criação e a salvação. Tanto a criação
quanto a salvação são atos oriundos do amor de Deus que se comunica. É neste sentido
que a revelação é uma autocomunicação de Deus que nasce do seu amor e visa efetivar
esse amor na história humana, tornando-a uma história plenificada.25

22 SCHILLEBEECKX, E. História humana, revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994. p. 254-255.
23 LIBANIO, J. B.; MURAD, A. Introdução à teologia: perfil, enfoques, tarefas. São Paulo: Loyola, 1996. p. 147-160.
24 SCHILLEBEECKX, E. História humana, revelação de Deus, p. 24-27.
25 FORTE, B. Teologia da história: ensaios sobre a revelação, o início e a consumação. São Paulo: Paulus,
1995. p. 47-55.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 143

É Deus quem entra na história para torná-la plena, pois a ação de Deus tende
sempre para o bem. Entretanto, o bem não é uma ação que possa ser realizada soli-
tariamente. É da natureza do bem que ele seja sempre uma ação conjunta, pois só é
verdadeiramente um bem aquilo que é realizado na liberdade e em vista da realiza-
ção de todos. É precisamente aqui que a revelação divina expressa seu fundamento.
Deus que se revela e salva não impõe seu desejo à humanidade, mas reconhece o ser
humano como uma pessoa, dotada de liberdade e responsabilidade, capaz de acolher
o chamado divino e responder conscientemente a este chamado, visando a felicidade
almejada. O ser humano não é um destinatário passivo e calado diante do amor de
Deus que se oferta, mas é alguém capacitado pelo próprio Deus para acolher ou
rejeitar a graça que lhe é oferecida.26
A teologia da revelação pós-conciliar enfatiza o ser humano como alguém aberto
ao transcendente em busca do infinito. É mister rememorar que, desde a teologia
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patrística, a questão do desejo do infinito, do absoluto, que se encontra no interior


do ser humano, é um tema presente. Os padres da Igreja, especialmente Agostinho,
enfatizam a inquietação que move o ser humano a buscar, a desejar ardentemente
respostas para as questões mais radicais da sua existência. O movimento do querer, do
desejar conhecer, do desejar possuir a verdade que leve o ser humano a compreender
a própria vida e o mundo no qual está inserido é o meio pelo qual o próprio homem
compreende que sua vida não se restringe à imanência.27 A imanência está sempre
aberta ao horizonte da eternidade. É olhando para este contexto que o ser humano se
defronta com o sentido último de sua vida e sua existência: Deus. Ele não é apático,
mas vem ao encontro do humano para lhe dirigir a palavra.
A palavra torna-se o meio de diálogo pelo qual Deus se aproxima do ser humano
para interpelá-lo a uma vida plena. Ele não é um Deus mudo, mas é um Deus que
fala: “Deus ama os homens. Falando na sua linguagem, Deus se comunica com
eles, se faz compreender e, ao mesmo tempo, restitui à linguagem humana a sua
veridicidade”.28 Porém, compreender o que significa a palavra de Deus implica em
observar a totalidade da história da salvação. A palavra de Deus, como já enfatizou
o Concílio, se dá no diálogo. Antes de ser palavra, a palavra de Deus é experiência
dele. No encontro com Deus, o ser humano abre-se a uma experiência que confere
novo significado à sua vida e sua história. A experiência do ser humano com Deus é
permeada por realidades diversas. Há um certo temor, mas também um certo fascí-
nio pela presença de Deus. O temor leva o ser humano a compreender-se como uma
criatura dependente de Deus. O fascínio leva o ser humano a permitir-se tocar por
Deus e abrir-se ao diálogo com ele. É neste diálogo que o ser humano compreende
melhor a si mesmo, consciente da sua responsabilidade em colaborar com Deus na
realização do projeto de humanização da história.29
Partindo da teologia da revelação como uma teologia da acolhida de Deus pelo
humano, pode-se perceber que diante do mistério divino, o ser humano reconhece

26 RAHNER, K. Curso fundamental da fé. São Paulo: Paulus, 1989. p. 50-57.


27 AGOSTINHO, Santo. Confissões, I, 1. São Paulo: Paulus, 1984. p. 15.
28 MANNUCCI, V. Bíblia Palavra de Deus: Curso de introdução à Sagrada Escritura, p. 16.
29 RAHNER, K. Curso fundamental da fé, p. 96-103.
144

quem ele realmente é e qual seu lugar ao lado de Deus na construção da história da
salvação. Para a catequese, a compreensão da revelação como diálogo no qual o ser
humano tem parte ativa é de fundamental importância. Apenas ao perceber-se como
pessoa aberta ao infinito, aberta a Deus que vem comunicar-se amorosamente com
a humanidade, é que o cristão se torna capaz de assumir a sua fé a partir de uma
experiência radicalmente profunda com Deus. A fé nasce de um processo de aber-
tura ao Outro que se comunica, que amorosamente se doa em favor da humanidade.
Catequizar é reconhecer que aquilo que se comunica não é Deus em si mesmo, mas
são os caminhos que levam o ser humano a realizar uma experiência com Deus, que
é presença viva e atuante na história. A catequese não transmite a revelação como
um conjunto de dados apenas, mas leva o ser humano a abrir-se para os horizontes
de Deus: “o catequista é testemunha da fé e guardião da memória de Deus, experi-
mentando a bondade e a verdade do Evangelho em seu encontro com a pessoa de

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Jesus, o catequista custodia, alimenta e testemunha a vida nova que dele vem e se
torna sinal para os outros”.30

2.2 A acolhida de Deus na história humana

Aberto à revelação e disposto a acolher na liberdade o dom de Deus e sua


presença salvífica, o ser humano torna-se coparticipante de Deus na construção da
história. Deus que se revela não é um Deus alheio à história humana, mas é uma
presença viva que atua no meio desta história: “Deus se exprime, fala de si, revela
aos homens a si mesmo e a sua vida íntima, para convidá-los e admiti-los à comu-
nhão de vida com ele”.31 É no interior da história que o ser humano e Deus assumem
um projeto conjunto de salvação no qual, como cooperadores, buscam fazer da vida
uma experiência de liberdade e realização. É evidente, porém, que a história humana
parece ingrata. Tanto para cristãos quanto para não cristãos a vida experimentada
no interior da sociedade e do tempo é, por vezes, amarga. Um olhar sobre a história
torna evidente os absurdos que a humanidade foi capaz de cometer em nome de ideais
pouco condizentes com o desejo de Deus.
É no interior de uma história marcada pelo sofrimento e pela contingência que
a revelação de Deus se faz compreender por meio das opções expressas pelo próprio
Deus, a partir da experiência que os seres humanos fazem de Deus. As Sagradas Escri-
turas, consideradas uma das fontes principais da revelação e, consequentemente, da
catequese, evidenciam que a experiência de salvação é primeiramente realizada pelos
pobres. São os pobres os personagens principais no enredo da ação de Deus em seu
amor revelado. São eles os escolhidos para serem sacramentos da presença viva de
Deus no meio da história, pelo fato de serem eles aqueles que em nada podem depo-
sitar sua confiança. O fato de os pobres estarem despojados de todas as seguranças
do mundo permite que eles sejam mais sensíveis às ações de Deus, pois possuem um

30 PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO. Diretório para a Catequese.


São Paulo: Paulus, 2020. n. 113a.
31 MANNUCCI, V. Bíblia Palavra de Deus, p. 33.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 145

olhar mais aguçado para perceber, nos reveses da vida, o agir de Deus, Aquele que
prefere estar ao lado dos sofredores. É no absurdo da história, onde todos os projetos
humanos falham, que a presença de Deus se revela de maneira mais radical.32
Observar esta presença de Deus no absurdo da história implica em responder
a interpelação divina a partir de uma nova perspectiva. Deus não intervém milagro-
samente na história, forçando a liberdade humana a aceitá-lo sob ameaça de alguma
pena. Deus, ao contrário, adentra os meandros obscuros da sociedade para expressar a
distância longínqua que seu amor e sua salvação podem atingir. Jesus, para os cristãos,
é o mais claro exemplo desta presença salvadora de Deus na história que não é acom-
panhada de um poder fundado na força da lei ou da violência, mas sim de um poder
de salvação e liberdade que se dá na proximidade com os mais necessitados, com os
que são crucificados.33 A revelação de Deus, em sua mais alta expressão, a pessoa de
Jesus de Nazaré, é uma revelação surpreendente, não só pelo fato de que em Jesus,
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Deus adentra a história humana como humano, padecendo das mesmas vicissitudes que
todos os homens e mulheres padecem ao longo de suas vidas; mas adentra a história
como um homem pobre que faz do amor e da misericórdia os imperativos de sua ação.
Em Jesus, Deus expressa o seu projeto de plenitude e humanização.
É movido pelo desejo de humanizar a vida que Deus se faz presente na história.
É por meio da parceria humana com Deus que a história se torna marcadamente mais
plena de Deus. Para uma compreensão teológica da catequese, estes elementos são
fundamentais. É necessário a anulação de um discurso que enfatize o poder inter-
ventor de Deus como um poder que prescinde da liberdade e da responsabilidade
humanas. Deus não suplanta a história, mas adentra a história em sua particularidade,
fazendo-se companheiro do ser humano no aqui e agora do tempo. A presença de
Deus não é uma presença atestada apenas no passado das histórias bíblicas, mas é
uma presença sentida, vivida e compreendida na atualidade. O catequista é mais
do que um contador de histórias passadas, ele é um mistagogo, ele é alguém que
leva o catequizando a experimentar a presença de Deus atuando no concreto da
vida: “o catequista, inspirado pela mistagogia, deve oferecer um caminho integral
de iniciação, possibilitando o encontro pessoal com Jesus Cristo e a participação na
vida da comunidade que se encontra, mesmo em sua diversidade, em união para a
celebração litúrgica”.34
A catequese torna-se eficaz quando se compreende como meio pelo qual a
experiência da revelação de Deus continua a acontecer. Deus não cessou de se revelar,
de se fazer presente, de se mostrar como aquele amor que se comunica e dialoga.
Deus é aquela presença que está no reverso do mundo, que está em meio às situa-
ções incompreensíveis com que todos são confrontados. Catequizar é considerar a
existência em sua complexidade e abrir caminhos para que esta existência humana
seja iluminada pela luz da fé. A fé que ilumina e dá sentido ao mundo no qual todos
estão inseridos não é alheia aos conflitos e crises que permeiam este mundo. Não

32 SCHILLEBEECKX, E. História humana, revelação de Deus, p. 49.


33 Ibid., p. 117-124.
34 CARVALHO, H. R.; BARBOSA NETO, J. S. Catequese, liturgia e mistagogia. São Paulo: Paulus, 2022. p. 119.
146

se pode pensar a fé como um dado monolítico e inalterável de verdades que leem a


realidade sobre uma única ótica, mas como uma força que leva o cristão a ampliar
seus horizontes para ler e sentir a presença de Deus na história, chamando-o para
colaborar no projeto de salvação. Deus não salva suplantando a humanidade, mas
salva convocando a humanidade a experimentá-lo como experiência de vida.
Acolher a revelação no interior da história é inserir a própria fé no interior de
sua dinâmica. O ser humano, confrontado com a sua finitude e as questões comple-
xas com as quais é chamado a lidar, necessita de uma resposta, de um sentido que o
sustente para que não caia na amargura de um vazio que não espera nada do futuro,
onde as esperanças se dissolvem. Este confronto com a vida em sua complexidade
é o lugar privilegiado onde Deus se mostra como resposta absoluta às perguntas e
dores próprias da humanidade. A presença de Deus não exime a história pessoal e
humana de suas vicissitudes, mas torna-a compreensível a partir de uma nova ótica.

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É esta nova capacidade de compreensão que a catequese, inserida na dinâmica da
revelação, deve proporcionar aos cristãos. Como pessoas sensíveis à presença de Deus
na história, abertas à sua palavra que se comunica no devir da história, cada cristão
é chamado a experimentar Deus como sentido pleno e esperança futura, abrindo-se
como sujeito responsável à parceria com ele no projeto de salvação.

3. Experimentar e anunciar a palavra


As reflexões conciliares evidenciaram o primado da experiência no caminho da
fé. A teologia da revelação e todo o arcabouço teológico posterior ao Concílio colo-
caram às claras sobre a importância da palavra como meio pelo qual Deus se torna
acessível e compreensível à humanidade. É por meio da palavra e do diálogo salvífico
que a presença de Deus se faz perceber na história humana. Esta presença é recebida
na história graças à bondade do próprio Deus que se comunica amorosamente ao ser
humano, convidando-o a colaborar em seu projeto de salvação. A comunicação de Deus
na história implica em uma abertura do ser humano para acolher em sua liberdade o dom
salvífico de Deus que se dá no desejo de plenitude para a humanidade e para a criação.
É no ato amoroso de se comunicar que a palavra assume um aspecto fundamental no
conjunto da revelação e, consequentemente, na teologia catequética.
Como transmissão da experiência de fé, a catequese é um itinerário marcado
pela palavra. É por meio da palavra que a experiência de fé se torna compreensível
ao ser humano, podendo ser assimilada em seus conteúdos fundamentais. A palavra
é meio pelo qual a revelação se sacramentaliza no ambiente eclesial de fé e se torna
um caminho para que a experiência originária não seja perdida, mas esteja sempre
disponível aos cristãos.35 A experiência e a palavra visam consolidar um único movi-
mento do coração rumo a Jesus Cristo, que é o rosto perfeito de Deus. Neste tópico,
a reflexão desenvolver-se-á em dois momentos. O primeiro será destinado a refletir
sobre a experiência, como aquela situação na qual o ser humano em sua integridade

35 QUEIRUGA, A. T. Repensar a revelação: a revelação divina na realização humana. São Paulo: Paulinas,
2010. p. 32-38.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 147

se volta para Deus. No segundo momento, observar-se-á o ministério do catequista


como a culminância de um processo de fé que amadurece ao longo da vida cristã no
meio de diversas realidades, muitas vezes, contrastantes entre si.

3.1 A experiência de fé como fundamento da vida cristã

A teologia fundamenta-se no diálogo de salvação, que se estabelece entre o homem


e Deus. Esse diálogo não está isento de historicidade. Toda teologia desenvolve-se no
interior de uma história da qual ela adota termos, categorias, visões de mundo e modos
de sistematizar linguisticamente o mistério experimentado. Não há uma teologia perene
que perpasse toda a história da Igreja, mantendo inalterável ao longo dos séculos as
formulações doutrinárias da fé.36 A teologia é sempre dinâmica, sempre em processo
de construção e desconstrução, assim como todos os saberes.
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Nos primórdios da Igreja, especialmente na patrística, a teologia era uma refle-


xão profundamente ligada à experiência de fé. A comunidade primitiva estava muito
mais alinhada com a linguagem narrativa e simbólica do que com o discurso racional
e lógico. Os textos patrísticos procuravam comunicar em linguagem compreensível
a experiência inefável do mistério cristão. Os autores patrísticos caminham em uma
linha tênue entre a mística e a teologia como discurso religioso. Deste período fértil
da Igreja pode-se extrair a compreensão fundamental de que toda a teologia, antes
de ser discurso ordenado, é experiência do mistério.37 É um pressuposto fundamen-
tal da teologia que ela seja experiência de Deus na história humana, antes de ser
uma formulação linguística desta experiência. A linguagem teológica e dogmática é
sempre um ato posterior. Primeiro, há a revelação de Deus inserida na dinâmica da
experiência humana e, depois, a formulação oral e escrita desta experiência de Deus.
Os padres da Igreja compreendiam isto de maneira muito significativa e se recusavam
a separar a teologia da vida em sua concretude existencial.
Com o advento da Idade Média e da Modernidade, a teologia torna-se muito
mais especulativa. O aristotelismo, redescoberto no século XII, reelaborou o discurso
teológico a partir da lógica. Tomás de Aquino e toda a posteridade, até o Concí-
lio Vaticano II, acostumaram-se a elaborar um discurso teológico rígido, segundo
as categorias estabelecidas pela lógica formal. A teologia torna-se um conjunto de
verdades e deduções radicalmente ordenado segundo os critérios formais da lógica
aceitos como meios racionalmente seguros para expor e compreender a verdade.
Com o Concílio, a Teologia retomou os escritores patrísticos, com a experiência
como um dado indispensável na elaboração do discurso religioso. A redescoberta
da experiência como algo inalienável da fé cristã é um elemento fundamental para
a reconstrução de todo o edifício teológico e de toda a compreensão que se tem da
transmissão da fé e da catequese.
Pela catequese, o catequista leva o catequizando a realizar uma experiência
profunda de Deus e sua salvação. O catequista é aquele que insere o catequizando

36 RAHNER, K. Curso fundamental da fé, p. 55-56.


37 LIBANIO, J. B.; MURAD, A. Introdução à teologia, p. 117-126.
148

no âmbito do mistério. Ele é um mistagogo. Enquanto mistagogo, ele conduz o


catequizando para que o mistério de Deus seja experimentado e compreendido; é
necessário que haja alguma mediação linguística. A fé supõe a linguagem e se dá na
própria linguagem. Ela é discurso, ela é elaboração linguística de uma experiência.
Atualmente, ocorre uma aproximação cada vez mais profunda entre os estudos teo-
lógicos e a linguística, seja colocando o discurso religioso em diálogo com a filosofia
da linguagem, seja fazendo-o dialogar com a literatura e outras formas de expressão
artística. Tal proximidade entre a teologia e a linguagem não é um evento vazio, mas
é uma oportunidade para que a teologia, como tentativa de tornar compreensível a
experiência do mistério, se reconheça em suas limitações e possibilidades.
Tanto a teologia quanto a catequese lidam com o mistério inefável de Deus. O
caráter inefável da experiência de Deus é evidente de modo especial na mística. Os mís-
ticos são aqueles que melhor sintetizam a radicalidade da experiência de Deus que está

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além de qualquer conceituação humana. Porém, a mística não é uma experiência que se
pode tomar como parâmetro para a elaboração de uma reflexão racional. A pluralidade
de relatos e experiências que estão sob o bojo da mística impede que ela seja tomada
como um discurso racional para sistematizar a fé.38 A inefabilidade do mistério percebida
pelos místicos é a mesma que se apresenta para os teólogos, catequistas e cristãos. A
experiência de salvação realiza-se na intimidade de cada pessoa, sendo uma experiência
inefável, intraduzível, dificilmente compreendida. A revelação e ação de Deus tocam a
história de modo sempre surpreendente. Deus está sempre a agir e se comunicar, de modo
a superar todas as expectativas, fazendo, inclusive do absurdo da história, do limite do
humano, o lugar privilegiado de sua epifania. Quando colocado diante dos limites da
própria existência, da contingência de todos seus planos, o humano percebe a presença
de Deus em sua força salvífica e parceira. Ele está no meio de nós.
É esta experiência inefável que está na base de toda a teologia e da catequese.
A linguagem que busca sistematizar e sintetizar esta experiência é sempre um meio
falho.39 Tanto a expressão oral quanto escrita da catequese é sempre superficial. A
linguagem humana não é suficiente para elaborar a complexidade da revelação. Jus-
tamente por essa limitação linguística que a catequese é sempre convidada a enfocar
o mistério como experiência e incentivar o catequizando a se tornar sensível para
perceber a ação de Deus em suas surpreendentes manifestações no interior de si e
da história no qual está inserido. Como teologia catequética, a ênfase no mistério
é um aspecto central para a compreensão de todo o processo catequético como um
processo de encontro com o sagrado em seu mistério comunicado para além de todas
as mediações. O catequista é aquele que utiliza a palavra, sabendo sua limitação,
tornando-a meio para uma experiência única na vida dos catequizandos.

3.2 O ministério do catequista como culminância de um itinerário de fé

O catequista compreendido como mistagogo é um iniciador. A visão conciliar da


catequese como experiência do mistério de Deus motiva o catequista a examinar sua

38 SCHILLEBEECKX, E. História humana, revelação de Deus, p. 104.


39 Ibid., p. 36-40.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 149

própria experiência como critério decisivo para compreender aquilo que a linguagem
eclesial lhe oferece. O catequista é uma pessoa experimentada na fé pelo seu próprio
itinerário pessoal e comunitário. Não é um simples transmissor de palavras ou enuncia-
dos, mas alguém que realiza uma profunda experiência de Deus no interior da própria
vida e a compreende no horizonte simbólico da comunidade de fé da qual participa. Ele
transmite aos seus catequizandos as consequências deste encontro com Deus e facilita
para eles o caminho de realização deste encontro. O catequista é um vocacionado: “a
vocação do catequista é semelhante à vocação do profeta. Por isso, torna-se verdadeiro
e incansável anunciador da Palavra e denunciador das injustiças. É o apóstolo a serviço
da vida e da esperança do povo de Deus (cf. Jr. 1, 4-10)”.40
A fé é resultado deste encontro que cada cristão é chamado a realizar. Apenas
a partir deste encontro com Deus revelado é que a fé pode ser considerada em sua
autenticidade. A fé é sempre resposta a uma iniciativa amorosa de Deus que se coloca
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em diálogo com o humano, adentrando nas vicissitudes de sua história. É no interior da


história que a fé é chamada a ser resposta e testemunho.41 Apesar da singularidade da
experiência de fé e de seu aspecto subjetivo, é apenas no interior da comunidade ecle-
sial que a fé assume suas verdadeiras características. Especialmente no cristianismo, a
fé torna-se um evento comunitário. Da mesma forma que Deus é comunidade perfeita
de pessoas em comunhão e doação, também o cristão é chamado a ser comunidade
com seus irmãos e irmãs. Descobrir Deus e experimentá-lo implica em assumir a
radicalidade do amor, em participar do mistério de Deus que é amor.
Deus, que se revela no amor, convida o ser humano a participar do amor originado
na Trindade. O chamado ao amor é o chamado a viver em comunidade. Quem realiza
a experiência de Deus e responde com a fé e comprometimento assume na comuni-
dade eclesial a missão de anunciar e testemunhar a radicalidade desta experiência de
salvação. O testemunho e o anúncio da experiência de salvação são resultados de um
processo contínuo de contato com o mistério de Deus. Da mesma forma que a revelação
não cessa de interpelar o ser humano e o convidar a viver no amor divino, também
o diálogo com Deus em sua presença salvífica não cessa de construir e reconstruir
horizontes e percepções na pessoa de fé. O mistério que é experimentado é confrontado
com as diversas realidades da vida de cada cristão e ressignificado no interior deste
confronto.42 Desta forma, percebe-se que a dinâmica da fé é sempre uma constante
entre aquilo que é essencial e aquilo que se altera ao longo do tempo.
O catequista vive imerso nesta dinâmica. Nele há sempre aquela experiência
única e radical na qual Deus se mostrou em toda sua bondade salvadora, mas também
há sempre aquela necessidade de encontrar Deus nas diversas etapas da vida e diante
das realidades mais plurais. Este encontro com Deus no itinerário da própria existência
torna o catequista alguém sensível. O ministério do catequista, tal como foi vivenciado
na Antiguidade, é um ministério eclesial que encontra significado na sua corresponsabi-
lidade na missão evangelizadora da comunidade cristã. É na colaboração do catequista

40 CARVALHO, H. R. Ministério do catequista: elementos básicos para a formação. São Paulo: Paulus,
2018. p. 98.
41 SCHILLEBEECKX, E. História humana, revelação de Deus, p. 41.
42 Ibid., p. 44.
150

com a comunidade cristã que se torna evidente a procedência eclesial deste ministério.
Entretanto, a evangelização supõe uma experiência radicalmente profunda de Jesus
Cristo. É ele o centro de toda a evangelização e de toda Igreja.
É a pessoa de Jesus Cristo que torna clara as intenções de Deus. A revelação
de Deus é plenificada na pessoa de Jesus e no seu ministério. Jesus expressa aquilo
que o Pai tem a dizer de maneira definitiva. A compreensão de quem seja Jesus e
como ele expressa a vontade do Pai exige uma contínua reinterpretação do evento de
salvação que nele se encontra. Os catequistas são os facilitadores desta experiência,
pois são eles que inserem paulatinamente as gerações mais jovens no mistério de
Deus revelado em Jesus Cristo. Antes de falar de Jesus, o catequista é chamado a
apresentá-lo como pessoa presente, viva e atuante na Igreja, como aquele que está
diante do catequizando e o interpela em sua profundidade a segui-lo. É este o critério
de eficácia da catequese: o conhecer experiencial de Jesus Cristo como aquele que

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está vivo e atuante na história.43
O ministério do catequista constitui a conclusão deste percurso pessoal de
percepção da presença de Jesus Cristo no interior da comunidade eclesial e de sua
ação sempre surpreendente no mundo. O catequista é aquele que, aberto ao trans-
cendente, acolhe a presença divina que se revela e interpela. A abertura ao diálogo
com Deus e a experiência de salvação que é vivida pelo catequista torna-o capacitado
para comunicar ao mundo que em Deus encontra-se o sentido absoluto da vida, as
respostas para as questões dolorosas da existência. Este sentido encontrado em Deus
não é uma total satisfação e plenitude. Não obstante, ainda que parcial e de modo
confuso, em Deus há a experiência de um sentido e de uma esperança no meio do
absurdo humano. É neste limiar entre o absurdo e a fé que o catequista experimenta
constantemente a presença de Deus a lhe interpelar para que ele anuncie sem cessar
o amor salvador do Pai às gerações mais jovens.

Conclusão
O encontro com a pessoa de Jesus Cristo e a experiência de Deus que nele se rea-
liza constitui-se o fundamento inalienável da fé. A autenticidade da fé cristã e sua ação
no interior da história como elemento sacramental e transformador nasce da apurada
consciência de que Jesus Cristo está presente com sua força de salvação e atua ainda
hoje no mundo em prol de um projeto humanizador. Especialmente após o Concílio
Vaticano II, a Igreja compreende-se como aquela que está no mundo para servi-lo. Mas
este serviço não é fruto de uma decisão pessoal ou desejo nascido no coração humano.
O servir da Igreja é uma obediência humilde ao mandato do Senhor para tornar presente
o amor. É a experiência do amor salvador de Deus que impulsiona os cristãos a serem
presença capaz de renovar a história. Afirma Santo Agostinho: “se antes hesitávamos
em amar o próprio Deus, pelo menos agora não mais hesitamos em retribuir amor
àquele que nos amou primeiro e não poupou seu único Filho, mas o entregou por nós.
Pois não existe maior convite para amar do que ser amado antes”.44

43 Ibid., p. 61-62.
44 AGOSTINHO, Santo. Primeira Catequese aos não cristãos. 2013. p. 77.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 151

O fato de que o cristianismo nasce de uma experiência de amor, supõe uma


relação entre aquele que ama e aquele que é amado. A esta relação de amor profundo
e salvífico, a Igreja denomina “revelação”. É no interior da teologia da revelação que
a catequese encontra o terreno fértil para pensar seus próprios fundamentos. O que
está na base de toda a catequese é uma experiência radical e amorosa de Deus que se
revela na história humana e abre novos horizontes de esperança para a humanidade.
É no interior da dinâmica da revelação que se torna possível esboçar uma teologia
catequética, uma reflexão a respeito dos fundamentos da catequese. Como momento
de preparação e acompanhamento na fé, a catequese é o lugar privilegiado para que
os cristãos se dediquem com maior afinco a ouvir e experimentar Deus em seu eterno
mostrar-se. É na catequese que pouco a pouco o cristão torna-se sensível ao amor de
Deus revelado em sua presença salvífica no meio da humanidade.
Esta reflexão buscou elencar alguns elementos fundamentais sobre as bases
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do ato de catequizar. A catequese é muito mais do que uma ação pastoral que visa
preparar o cristão para a recepção dos sacramentos. Ela é um itinerário existencial
que acompanha a vida de todos os cristãos até a eternidade. Ela é o meio pelo qual
se realiza uma experiência de Deus radicalmente transformadora e renovadora. Por
meio de uma catequese mistagógica, todas as dimensões do cristão são inseridas
na dinâmica do encontro com Deus e da experiência de salvação que dele decorre.
Ouvir, acolher, experimentar e anunciar a palavra são quatro elementos que nascem
de uma experiência salvadora com Deus na pessoa de Jesus, iluminada pelo Espírito.
O catequista é aquele que está inserido na dinâmica da Trindade. É a partir desta
intimidade com Deus-trindade, revelado na pessoa de Jesus, que o catequista se torna
um anunciador, pois faz ecoar uma mensagem que mais do que palavra é experiência
de amor e de vida.
152

REFERÊNCIAS
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AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Paulus, 1984.

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CARVALHO, H. R.; BARBOSA NETO, J. S. Catequese, liturgia e mistagogia. São

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LIBANIO, J. B.; MURAD, A. Introdução à teologia: perfil, enfoques, tarefas. São


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LIMA, L. A catequese do Vaticano II aos nossos dias. São Paulo: Paulus, 2016.

MANNUCCI, V. Bíblia Palavra de Deus. Curso de introdução à Sagrada Escritura.


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In: COMPÊNDIO do Vaticano II: Constituições, decretos, declarações. Petrópolis:
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A NOÇÃO DE PESSOA NO
DIREITO ROMANO
Paulo Manoel de Souza Profilo1

Introdução
O direito aspira sempre a uma linguagem técnica, a mais possível unívoca e pre-
cisa, porque busca compreender e prever as ações das pessoas. De fato, porque o direito
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está ligado à variedade e complexidade da vida social, na linguagem da lei há muita


confusão e uma progressiva estratificação e sobreposição dos termos semelhantes. Os
juristas, os cientistas do direito, se esforçam para encontrar um sentido unitário, mas
o resultado é quase sempre uma reconstrução prescritiva do significado dos termos,
reconstrução que soma àquelas dos legisladores e dos juízes. Esta incerteza e variedade
de semântica jurídica também diz respeito ao conceito de pessoa.2
A linguagem jurídica não conhece o termo “indivíduo” e usa três termos simila-
res (homem, sujeito e pessoa), mas com diferentes significados e implicações norma-
tivas.3 A história das diversas acentuações de um ou de outro desses termos é muito
instrutiva. Aqui, neste capítulo, vamos aprofundar a origem, o desenvolvimento e a
noção especialmente do termo pessoa no direito romano, pois, apesar da antiguidade
do conceito jurídico de pessoa, hoje está em andamento uma sensibilização signifi-
cativa das suas implicações, sejam jurídicas, filosóficas ou teológicas.4
Geralmente se acredita que foi o cristianismo, e em particular a teologia trinitá-
ria, a pôr um foco sobre o conceito de pessoa. Sem dúvidas, isso é verdade do ponto
de vista teológico, talvez filosófico, ético, mas não do ponto de vista jurídico.5 Na
realidade, quando o cristianismo começou a exercitar o seu influxo cultural, já era
enraizado na cultura romana, também na grega, o uso do conceito de pessoa. Esse
uso deixou os seus traços nas tradições jurídicas até os nossos dias e foi misturado

1 Salesiano de Dom Bosco, presbítero, Licenciado em Filosofia pelo Centro UNISAL, bacharel em Teologia pelo
Centro UNISAL e pela Pontifícia Universidade Salesiana de Roma, pós-graduado em Educação Sexual pelo
Centro UNISAL, mestre em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, Doutorando
em Direito Canônico pela Faculdade de Direito Canônico São Paulo Apóstolo, professor de Direito Canônico
no Centro UNISAL – campus Pio XI, professor de Direito Canônico na Faculdade de Direito Canônico São
Paulo Apóstolo, defensor de vínculo do Tribunal Eclesiástico Arquidiocesano de Aparecida, oficial do Tribunal
Eclesiástico Arquidiocesano de São Paulo, membro da Sociedade Brasileira de Canonistas.
2 VIOLA, F. Lo statuto giuridico della persona in prospettiva storica. In: PANSINI, G. (Ed.). Studi in memoria di
Italo Mancini. Napoli: Scientifiche Italiane, 1992. p. 691; STOLFI, E. La nozione di persona nell’esperienza
giuridica romana. Filosofia Politica, v. 3, n. 23, p. 380, 2007.
3 STOLFI, E. La nozione di persona nell’esperienza giuridica romana, p. 381.
4 ORESTANO, R. Il problema delle persone giuridiche in diritto romano. Roma: G. Giappichelli, 1968. p. 7.
5 VIOLA, F. Lo statuto giuridico della persona in prospettiva storica, p. 621.
156

e fundido com aquele que mais diretamente influenciou a cultura cristã. A cultura
jurídica, como todos os conhecimentos fundamentados na tradição, evoluiu por acu-
mulação e não por substituição.6

1. A antropologia romana
Antes de chegarmos propriamente dito ao conceito e à noção de pessoa no
direito romano, precisamos fazer alguns passos. O primeiro deles é entender qual era
a visão que os romanos antigos tinham do ser humano, a sua antropologia. As fontes
permitem concluir que há uma grande aproximação da mentalidade arcaica de ser
humano entre Grécia e Roma, ao contar com três elementos, um visível e material,
o corpus, e outros dois elementos espirituais ou ao menos de uma matéria mais sutil,
que vem a ser anima e animus.7

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Comecemos pelos elementos anima e animus. Em alguns fragmentos conser-
vados da obra de Áccio (170-85 a.C), podemos ler “sabemos por meio do animus,
disfrutamos por meio da anima”.8 Já o gramático Nônio, na primeira metade do
século IV d.C, diz: “animus e anima se distinguem nisto: animus é aquilo por meio
do qual sabemos; anima, aquilo pelo qual vivemos”.9 O animus é situado na zona do
peito, a sede do conhecimento, da consciência e das emoções.10 O animus se extin-
gue com a morte do indivíduo. O animus faz parte da estrutura psíquica do homem;
expressa simplesmente o conhecimento e decisão voluntária. O animus, na língua
dos juristas romanos, não é somente a intenção, mas a decisão e a vontade baseada
no conhecimento, ou seja, a atividade consciente e racional.11
Mas porque é importante trazemos à tona esse conceito de animus? Porque o
reconhecimento da vontade como elemento psíquico reside em pressupostos antro-
pológicos que vão formar, mais tarde, o conceito de pessoa, conceito ético-jurídico
que exige o admitir de uma vontade livre e responsável.12
Já a anima se atribui ao espírito de vida, ao feito da própria existência. Este conceito
geral se conservou também na esfera do direito; e podemos encontrá-lo, por exemplo,
nas Instituciones de Gaio (Gai. 3,217), nas Instituciones de Justiniano (1J. 3,7,4) bem
como na doutrina do Direito Pontifical sobre uma classe de vítimas sacrificais, as hostie,
que incluía os animais.13 A vida do ser humano se assemelha de um modo especial com
a dos animais, precisamente por ter em comum o princípio da vida; em culturas mais
arcaicas, também são estendidas para a vida vegetal ou de toda natureza.14 Por isso, em
toda oferenda ritual a promessa de imolação afetava a todos, incluindo o ser humano.15

6 Ibid., p. 622.
7 ALBA, J. M. R. Desde el derecho romano a la teologia cristiana. Granada: Comares, 2011. p. 39.
8 Ibid., p. 40.
9 Ibid., p. 40.
10 Ibid., p. 40.
11 Ibid., p. 41.
12 Ibid., p. 41.
13 Ibid., p. 42.
14 ORESTANO, R. Il problema delle persone giuridiche in diritto romano, p. 39.
15 ALBA, J. M. R. Desde el derecho romano a la teologia cristiana, p. 44.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 157

A sede da vida, da anima, o espírito vital, se situa na cabeça, em latim, caput.


Podemos chegar a essa conclusão porque muitas práticas sacrificais dão fé a essa cren-
ça.16 O caput é o lugar do princípio vital seja do varão, da mulher, do livre, do escravo;
tem um caráter divino identificado com o espírito da vida e da procriação.17 É por isso
que a cabeça, o caput, tem um papel de referência na hora de articular a descrição e
atribuição dos efeitos jurídicos. Com o termo caput se designava o ser humano em sua
situação jurídica em respeito ao grupo; porém um conceito alheio ao universo moral,
diferentemente, por exemplo, do conceito de pessoa.18 O conceito de caput vem trazer
à tona uma perspectiva mais pública ou grupal, pressupondo a ideia de ser parte de um
grupo. Porém, cabe identificar um conteúdo individual derivado das crenças religiosas
vinculadas a este conceito e que é um antecedente direto do conceito de pessoa.19
Ainda na antropologia precisamos falar sobre o conceito de corpus porque é de
suma importância para entender o conceito de pessoa. Com a chegada da filosofia
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grega a Roma a partir do século II a.C. e o fato de que tanto os gregos quanto os
romanos compartilhavam praticamente de uma mesma psicologia, fez com que o
dualismo corpo-alma também influenciasse o pensamento romano.20 Os romanos
entendiam que tanto o animus quanto a anima tinham uma natureza corpórea que
dava origem ao corpo e o movia. O corpo é como um vaso que contém o animus,
que não pode existir fora do corpo. Todavia, esse dualismo tem um limite, pois o
animus está unido ao corpus pela interpenetração dos átomos e nenhum dos dois
pode existir por si mesmo.21 Para Cícero, por exemplo, a identidade subjetiva deriva
da conjunção de ambos os elementos, animus e corpus, no entanto o animus é o
mais importante.22 Assim, há uma valorização maior do animus em relação a anima;
entre animus e corpus há uma interconexão absoluta.23 Isso faz com que os romanos
entendam que exista uma continuidade temporal do corpo, que faz com que exija,
assim, a mediação do tempo para dar lugar a uma verdadeira consciência, ou seja,
consciência de duração, consciência do eu e do tempo.24 O corpo se mostra como
um pressuposto inevitável da vida espiritual: as faculdades do corpo, o movimento,
a sensação, a índole física e vital possibilitam a construção de uma verdadeira vida
interior que deve desprender-se do tempo.25

2. O conceito de homem
Após entendermos a antropologia dos romanos antigos, passamos ao conceito
de homem. O substantivo que, em latim, designa o ser humano em geral é homo e

16 Ibid., p. 48.
17 Ibid., p. 49.
18 Ibid., p. 51.
19 Ibid., p. 58.
20 Ibid., p. 61.
21 Ibid., p. 61.
22 Ibid., p. 62.
23 Ibid., p. 64.
24 Ibid., p. 65.
25 Ibid., p. 65.
158

no plural, homines.26 O conceito de homo pertence à época mais arcaica da história


jurídica de Roma, provavelmente da fase pré-cívica quando Roma não era ainda uma
comunidade com base predominantemente no território, mas baseada em relações
de parentesco.27 É um termo também compartilhado em outras línguas itálicas, que
assinala a existência de uma oposição entre o celeste e o terrestre. É o deus que se
opõe ao homem; a palavra e o termo “homem” portavam um significado negativo,
o ser não celeste.28 É interessante, pois, podemos notar já uma consciência religiosa
desde as origens e o fato de que, na Roma antiga, deuses e homens formavam uma
comunidade percebida como real.29
Assim, podemos nos perguntar: qual o ponto de convergência entre os deuses e
os homens? Parte, na verdade, de uma crença em uma ordem cósmica universal em
que os deuses e os homens formam uma sorte de comunidade real, que bem mais tarde
será racionalizada pelas escolas filosóficas, como o platonismo e o estoicismo.30 Esta

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consciência de uma ordem cósmica e de uma lei natural nas sociedades arcaicas é um
fenômeno muito anterior à aparição do pensamento teológico, filosófico e jurídico.
Dessa maneira, podemos afirmar que onde faltava a filosofia, reinava a didática do
símbolo e do mito e era necessária a eficácia do ritual para assegurar a ordem do
mundo com arranjos baseados nos princípios jurídicos-religiosos.31
Estes são traços que permitem a configuração comunitária e jurídica entre os
deuses e os homens. Há um fluxo de reciprocidade que preserva a superioridade dos
deuses e autenticidade do sentimento religioso dos homens.32
A concepção romana de homem engloba um sentido masculino e feminino, usado
para varões e varoas. Esse sentido procede do direito arcaico quando trata, por exemplo,
das leis dos ritos fúnebres, quando se proíbe de enterrar um cadáver dentro da urbe.33
Com isso, podemos entender que o conceito de homem está ligado, ao menos, a dois
elementos interconectados, o de racionalidade e de culto após a morte.34
Também, a categoria de homem constitui o fundamento do status de cada ser
humano.35 Representa a dignidade que se reconhece a todo homem; esse conceito se
aplica inclusive aos restos mortais do defunto. E essa ideia tem origem no ius fetiale,
que se ocupava dos tratados e formalidade de declaração de guerra e que levava em
consideração a reflexão do estrangeiro como sujeito, como homo.36 Temos, assim, já a
ideia de um reconhecimento jurídico tanto do povo ao qual se declara guerra, quanto de
todos os seres humanos que a integram. Pode-se concluir então que “a ideia de homem
se concentra em um aspecto plural, universal e aberto do Direito Romano arcaico”.37

26 Ibid., p. 19.
27 Ibid., p. 33.
28 Ibid., p. 19.
29 Ibid., p. 20.
30 Ibid., p. 21.
31 Ibid., p. 22.
32 Ibid., p. 22.
33 Ibid., p. 22.
34 Ibid., p. 24.
35 VIOLA, F. Lo statuto giuridico della persona in prospettiva storica, p. 623.
36 ALBA, J. M. R. Desde el derecho romano a la teologia cristiana, p. 25.
37 Ibid., p. 29.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 159

Seguindo ainda nesta esteira do status, o uso do conceito de homem aparece


muito claro nas Instituciones de Gaio, onde se permite produzir uma mudança da
situação jurídica do homem, o status hominis.38 O conceito aparece também desde
os tempos de Júnio Bruto, no âmbito da discussão doutrinal sobre usufruto, onde
prevalece a opinião segundo a qual os nascidos de uma escrava não podem conside-
rar-se frutos porque “in fructu hominis homo esse non potest” (D. 7,1,68 pr).39 Aliás,
a inclusão dos servos dentro do conceito jurídico de homem provocou, em muitas
ocasiões, a identificação entre os dois termos.40 Mas o termo homo não quer dizer
juridicamente servus porque homo “constitui uma categoria geral que se aplica aos
cidadãos e não cidadãos, a varões, mulheres, servos e livres e também aos nascidos
e os a quem in útero”.41
Podemos concluir, então, que homo é todo ser humano reconhecido em sua
dignidade pelo Direito, uma dignidade que procede da semelhança com os deuses,
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de sua racionalidade. É um conceito jurídico, consequência de uma forma de ver o


mundo, de uma teologia.

3. Corpus, universitas, nomem, populus e collegium como


realidades jurídicas
Quando toda antropologia e conceito de homem dos romanos é aplicado ao mundo
jurídico e político, temos uma novidade no que se refere ao entendimento de corpus. A
noção de corpus passa também a designar, e não se sabe desde quando, grupos dotados
de certa unidade organizativa,42 a uma certa imortalidade coletiva e mundana do corpus
que corresponde à imortalidade individual supraterrena do animus.
A identificação entre corpo humano e corpo político foi natural e objeto de
consideração teórica, largamente desenvolvida no pensamento político e jurídico
ocidental supondo, por exemplo, uma das causas que levaram a construção medieval
de personalidades jurídicas dos entes coletivos.43 A utilização do conceito corpus
pelos juristas romanos tem uma grande influência estoica e está classificada em três
tipos de corpos diversos já apresentados pelo jurista romano Pompônio (II século d.
C).44 O primeiro é o quod continetur uni spiritu, corpos contidos e um único espírito.
Significa que a matéria pode permanecer, porém a forma é que outorga identidade
ao corpo e a vontade se impõe acima da matéria e da forma.45 O segundo é o corpo
ex contigentibus o ex cohaerentibus, corpos compostos ou resultado de uma agre-
gação. Significa que a unidade do corpo é consequência de várias forças de coesão,
ou seja, todas as realidades corporais são membros de um só corpo, já trazendo a

38 Ibid., p. 33.
39 Ibid., p. 33.
40 STOLFI, E. La nozione di persona nell’esperienza giuridica romana, p. 383.
41 ALBA, J. M. R. Desde el derecho romano a la teologia cristiana, p. 33.
42 Ibid., p. 65.
43 ORESTANO, R. Il problema delle persone giuridiche in diritto romano, p. 11.
44 ALBA, J. M. R. Desde el derecho romano a la teologia cristiana, p. 71.
45 Ibid., p. 74.
160

ideia de espécie. O que dá a individualidade é o animus.46 E o terceiro é o corpo ex


distantibus, que são corpos integrados por corpos separados que formam uma uni-
dade extrínseca, de tipo funcional, que se manifesta no nome coletivo, por exemplo,
o povo, uma legião, um rebanho.47
Esse último conceito de corpus foi o mais adequado para ser usado para os entes
coletivos, formados por uma pluralidade de seres humanos; como consequência, um
fenômeno de corporalização destes grupos provavelmente simultâneo ao de persona-
lização dos seres humanos individuais.48 Mais tarde, os juristas repartem os conceitos,
usando o de persona para o ser humano individual e de corpus para os grupos humanos,
entendidos como centros de atribuição de direitos e deveres.49 Com o termo corpus se
pretende individualizar, dar caráter unitário em maior medida, a um conjunto de fenô-
menos da experiência em que se percebe certa unidade intrínseca, ou seja, se reconhece
uma existência única a uma realidade aparentemente plural.50

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A utilização de corpus para designar entes jurídicos coletivos e aqueles grupos
dotados de capacidade jurídica supõe o conceito universitas, que é um termo prova-
velmente criado por Cícero a partir do modelo grego e relacionado com corpus, em
sentido mais amplo, o universo, todas as coisas.51 A sua utilização é posterior a de
corpus, mas compartilha a origem filosófica semelhante.
Antes mesmo de se levar em conta todas essas classificações e conceitos gerais
como corpus e universitas, a experiência jurídica romana já tinha uma categoria
fundamental, que era a de populus Romanus, apresentada como o modelo das que
seriam chamadas no futuro pessoas jurídicas.52 A organização jurídica é a res publica
da qual constitui seu status, forma o constitutivo.53 É interessante notar que a ideia de
populus vai mais além do que uma ideia de pluralidade. Na verdade, é uma entidade
diversa de suas partes e de seus cidadãos porque se admite e se pressupõe a existência
de uma voluntas Populi, que é qualitativamente diferente da do indivíduo que exerce,
por exemplo, o poder e o princípio, por exemplo, da maioria.54
Na época arcaica, o populus Romanus e outras entidades políticas apareciam
descritas com o termo nomem, que não só designa o significado, mas a mesma coisa
significada, que pode nomear as coisas que podem ser vistas e tocadas como as coi-
sas incorporais que se percebem somente pelo intelecto; e não podem ser vistas ou
tocadas como a piedade, a justiça ou a dignidade.55 Dessa maneira, quando o jurista
assinala o nome como elemento unificador, está apelando a um expediente perifé-
rico, um artifício, a algo parecido, a uma ficção que recorre a um fator que mostra
diretamente a realidade da coisa.56

46 Ibid., p. 75.
47 Ibid., p. 75.
48 Ibid., p. 77.
49 Ibid., p. 77.
50 VIOLA, F. Lo statuto giuridico della persona in prospettiva storica, p. 625.
51 ALBA, J. M. R. Desde el derecho romano a la teologia cristiana, p. 80.
52 STOLFI, E. La nozione di persona nell’esperienza giuridica romana, p. 388.
53 ALBA, J. M. R. Desde el derecho romano a la teologia cristiana, p. 81.
54 Ibid., p. 84.
55 Ibid., p. 82.
56 Ibid., p. 88.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 161

Desde as origens, o vínculo jurídico entre os indivíduos se desenvolve não


somente nas relações familiares, de clientela e política, mas, também, em uma esfera
voluntária de associação cujas primeiras manifestações apresentam um forte com-
ponente sacro, de finalidade estritamente religiosa que incluíam competências, por
exemplo, funerárias. Na linguagem dos juristas o nome habitual para essas entidades
é collegium.57 Depois, com o passar do tempo, foi se atribuindo a possibilidade de
atribuir direitos e obrigações de capacidade jurídica que dão origem ao conceito de
personalidade jurídica.58
E aqui chegamos a um ponto crucial para começar a entender a formação
do conceito de pessoa. Porque, uma vez aceita a existência jurídica de um grupo,
entendido como corpus ou até mesmo como collegium, se faz necessário considerar
o problema da sua representação. É nesse momento que a ideia de pessoa encontra
sua primeira aplicação nos entes coletivos, como elemento reitor do corpo; dado
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que o corpus atua por meio da pessoa de seu representante, era inevitável que se
produzisse um deslocamento do conceito chegando até mesmo corpus ser qualificado
como pessoa, como se pode encontrar, por exemplo, nos textos de Cícero (De officiis
I, 34, 124).59 Assim, o corpus manifestava sua existência na esfera jurídica por meio
de uma vontade própria e este era um dos traços característicos da pessoa. Podemos
entender que houve um processo de personalização dos corpos porque tanto o populus
Romanus quanto os collegium dispunham de uma vontade própria.60

4. Figuras e máscaras funerárias


Na Roma antiga, o culto aos antepassados, entendidos como membros vivos da
própria família, constituía a peça-chave da religião doméstica. Até meados do século
V, até ser introduzida a Lei das XII Tábuas, o funeral se concluía habitualmente
com o enterro ou depósito das cinzas na própria casa do defunto.61 Assim, após a
lei, os familiares tinham que se deslocar até a tumba, não só no dia do funeral, mas
também nos aniversários e outras festas anuais como na Parentalia.62 No entanto,
parte do ritual continuou sendo feito nas casas, como é o caso do culto aos espíritos
dos defuntos, que sempre foi um culto doméstico no sentido mais estreito do termo.
Sendo assim, podemos supor que essa separação entre a casa e o sepulcro intensificou
a necessidade de dispor de imagens que faziam ser possíveis a realização dos ritos
domésticos funerários e a comunicação com o defunto.63
As figuras de barro que aparecem como parte dos ritos funerários desde
muito tempo servem ao propósito de fazer possível algo parecido a um corpus que
pudesse substituir o corpo real, um corpus que procure a continuação da vida e a

57 Ibid., p. 95.
58 Ibid., p. 99.
59 Ibid., p. 101.
60 Ibid., p. 102.
61 Ibid., p. 126.
62 Ibid., p. 126.
63 Ibid., p. 127.
162

comunicação com o animus e com a anima do defunto.64 Desde o século VII a.C.,
era possível encontrar urnas cinerárias com uma máscara ou cabeça com traços
individuais que demonstravam a existência de espaço para a identidade individual,
pessoal, de cada ser humano.65
A imagem, a figura, não significava só a imagem material, artificial e o concreto.
A máscara de cera do defunto, por exemplo, fazia referência ao próprio animus,
ao elemento espiritual do ser humano.66 Por incapacidade humana de representar
mentalmente uma alma separada do corpo e porque em sua relação com os vivos os
defuntos se manifestam com sua anterior forma ou figura humana, as imagens são
formas de representação dos próprios espíritos.67
Sendo assim, é possível concluir que o conceito e o uso das máscaras funerárias
são consequência de uma tradição muito antiga, com raízes nos princípios fundamen-
tais da antropologia romana e impõem um princípio de forma, fixando imutavelmente

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a identidade da pessoa.68

5. Rituais fúnebres e o conceito de pessoa


Algo comum em várias culturas arcaicas é a aproximação dos mundos dos vivos
e dos mortos, de sorte que se volta às origens de uma unidade primitiva e, nesse
contexto, a utilização das máscaras no âmbito funerário é bem conhecida. Em Roma,
por exemplo, havia a Saturnalia e a Lupercalia, que compreendia uma aproximação
entre os deuses, seres humanos e defuntos.
Toda a indagação sobre o conceito de pessoa deve iniciar-se pelo ponto de
partida das crenças e rituais relacionados com o mundo da vida após a morte. Geral-
mente, quando falamos do conceito de pessoa logo, e quase que automaticamente,
vem à mente as máscaras do teatro grego. Mas deixar de levar em consideração essa
realidade dos rituais funerários, é deixar de lado uma parte substancial, e talvez a
mais determinante e significativa das origens do conceito de pessoa.69 Claro que a
máscara teatral pressupõe um teatro pré-literário onde o rito, a dança, a música e as
palavras expressam uma invocação religiosa vinculada aos deuses e na qual a vida
após a morte tem um peso essencial.70
Por sua vez, precisamos deixar claro que estamos diante de um fenômeno de
sobreposição de categorias, cada uma delas herdeira, em alguma medida, das ideias
expressas por termos de procedência mais antiga. Por isso, não podemos nos contentar
somente em fazer uma aproximação do termo persona com máscaras. O conceito de
persona se constrói sobre o pressuposto dos conceitos de anima, caput, homo, corpus,
como vimos acima. É claro que isso inclui termos mais próximos à pura simbologia
da máscara, entendida como representação do corpo em sua totalidade.

64 Ibid., p. 127.
65 Ibid., p. 127.
66 Ibid., p. 132.
67 Ibid., p. 132.
68 Ibid., p. 151.
69 Ibid., p. 106.
70 Ibid., p. 106.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 163

A utilização de figuras representativas do corpo humano constitui um traço


conhecido da religião e costumes romanos mais antigos, entre eles um tipo de funeral
em que não se tinha presente o corpo do defunto, por exemplo, no caso de soldados
que morriam em batalha e se tinha que, segundo os ritos e as leis, fazer cumprir o
ritual ao enterrar uma imagem.71 Esse rito, chamado de funus imaginarium ou funus
imperatorium, no caso dos imperadores, tem grande valor e o aspecto mais relevante
consiste em determinar a natureza jurídica segundo os princípio do Direito pontifical.
Esse rito significa que a cerimônia tem como objeto uma imagem representativa
do defunto, imagem que leva uma máscara, sendo que, para a mentalidade arcaica,
a efígie atrai a alma do morto que se faz presente.72 A utilização da máscara tem a
ver com a crença na imortalidade da alma; serve à finalidade de ser um lugar para
recepcionar o espírito do defunto.73 E aqui temos um dado importante, a presença
de um deus na imagem: há uma vinculação entre o defunto e o símbolo material que
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o representa, um pressuposto essencial. O conceito de pessoa tem aqui a sua raiz


primordial.74 De forma ordinária, a imagem evoca a deus e possibilita a comunicação
com ele. No mundo romano, a genuína teoria da imagem divina se aplica às imagens
humanas quando se quer presente a alma (anima/animus), em ausência do corpus
autêntico. Assim sendo, a efígie e a máscara são pontos de encontro da alma do
defunto, fazendo possível a comunicação com o mundo dos mortos.
Um olhar importantíssimo deve ser dado aos ritos e festas da cultura arcaica
romana. Já citamos a festa da Lupercalia, anterior à fundação da cidade. Em outros
ritos e festas, como a Paganalia, Compitalia e ferie latine, encontramos máscaras
e figuras como objetos de celebração ritual. Nas Compitalia, festa móvel nos prin-
cípios de janeiro, é realizada uma celebração em honra aos lares compitais onde
se colocavam, durante a noite nas encruzilhadas, pequenas capelas com bolas e
bonecos de lã, representando os lares e as almas dos defuntos. Essas imagens tinham
por nome maniae e eram a mãe dos lares e, também, representavam os espíritos
dos defuntos que se consideravam divinizados. Justamente para estas figuras os
Pauli Excerpta utilizavam a palavra persona na acepção de máscara: tales maniae
son turpes deformesque personae.75
Um termo importante que constitui um precedente imediato de persona é a
larva, a alma dos defuntos malvados. As larvas atemorizavam os vivos, inclusive os
faziam enfurecer, segundo a crença. Da opinião comum, larva era uma das formas de
significar os espíritos dos mortos, mais precisamente um sentimento de terror diante
de tais espíritos. Delimitando de modo mais preciso o significado, pode-se dizer
que, habitualmente, designava a alma do defunto. Pois bem, larva também signifi-
cava máscara, esta concebida em uma conjunção de significados, alma de defunto e
máscara, chave interpretativa do posterior conceito de pessoa.

71 Ibid., p. 109.
72 Ibid., p. 111.
73 Ibid., p. 135.
74 Ibid., p. 111.
75 Ibid., p. 118.
164

6. Phersu e persona
Muitas das práticas que comentamos acima foram recebidas e assumidas pelos
romanos por meio da cultura etrusca ou ao menos influenciadas por ela. É possível
dizer que na época mais antiga a máscara representava os defuntos tanto no âmbito
estritamente funerário quanto nas encenações teatrais, dado que muitas destas ceri-
mônias dramáticas formavam parte do ritual mortuário realizado no dia do sepul-
tamento.76 Uma atenção especial e determinante deve ser dada a uma personagem
mascarada, contemplada nas várias tumbas etruscas datadas do século VI e IV a.C.
Seu nome, Phersu aparece escrito duas vezes: na tumba dos Augures, descoberta
em 1878, e, também, na tumba de Pulcinella e del Gallo, começo do século IV a. C,
todos na cidade de Tarquinia.77
Desde a sua aparição, alguns investigadores defendem a identificação ou deri-

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vação fonética e substancial entre os termos pherso e persona. A hipótese levantada
por José Maria Ribas Alba é a seguinte:

Phersu é o deus dos mortos e a raiz do termo indica separação, afastamento,


partida. O sufixo -ena acrescenta a noção de senhor. Portanto, poderia haver uma
possibilidade inexplorada: a existência em tempos arcaicos de outro termo para
designar o próprio Phersu: Phersu-ena ou Phersuna [...] Phersuna ou Phersona,
deus dos mortos, senhor dos que se afastam. Representada por uma personagem
mascarada, uma máscara que, mais ou menos grosseiramente, também servia
para representar e venerar o falecido, a evolução semântica para a designação de
máscara e depois, através de um processo simétrico, para o indivíduo já humano
que a usa, é razoável.78

Assim sendo, o termo persona é, provavelmente, derivado de um dos nomes


etruscos do deus dos mortos, Phersu, divindade que, como Dionísio, é o deus da
máscara.79 Resulta ser um termo anterior ao influxo direto do teatro literário grego,
em Roma, provavelmente anterior ao século III a. C.80 Pode-se concluir que o termo
persona, de modo excepcional, não faz parte do grande elenco de empréstimos lin-
guísticos que o grego ofereceu ao latim e que empregou no vocabulário teatral. Isto
pode significar que se tratava de um termo já consolidado porque, só assim, poderia
fazer frente à influência grega.

7. A insuficiência do conceito grego de pessoa


Agora, precisamos entender por que o conceito latino de persona não é equiva-
lente puro e simplesmente ao de prosopon grego. Prosopon significa primariamente o

76 Ibid., p. 121.
77 Ibid., p. 121.
78 Ibid., p. 123.
79 Ibid., p. 151.
80 Ibid., p. 151.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 165

rosto, o aspecto exterior do homem, do animal, do objeto e somente secundariamente


a máscara que cobre o rosto81. O termo latino, desde o princípio, significa máscara,
para o significado primário do grego prosopon, o latim usa vultus o facies.82
Como vimos acima, no uso das figuras e das máscaras, há um grande fundo
ideológico e que condicionou uma das grandes contribuições de Roma ao mundo da
cultura, uma contribuição que, não de forma casual, é coetânea com a configuração
do conceito jurídico de pessoa. Um dos dados importantes é considerar que a antro-
pologia romana tem uma preferência pelo singular, pelo particular, um traço que
permite explicar por que o conceito de pessoa no Direito e, até mesmo na Teologia,
é de origem romana.
É importante entender que as figuras e as máscaras deram origem ao retrato: ao
se criar máscaras fúnebres para representar os mortos, buscou-se, principalmente em
Roma, dar maior semelhança de tais máscaras com os rostos, com a face da pessoa
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falecida; também, temos a presença desses retratos na Grécia. E a compreensão da


diferença entre eles possibilita o entendimento da diferença do conceito que se formará,
então, de pessoa, tanto na Grécia, o prosopon, quanto em Roma, a persona.
Quando se compara o retrato romano com o retrato grego, pode-se perceber que
a arte grega tende à idealização, a um retrato psicológico.83 Já o romano, por causa das
origens fúnebres, explica um realismo, que podemos dizer até primitivo.84 O retrato
romano manifesta os acidentes, as particularidades individuais, as rugas, deformações,
cicatrizes; é um retrato pessoal, frente ao grego que busca uma representação ideali-
zada.85 O retrato romano se situa no tempo, na história e na biografia; o grego, pelo
contrário, é sem tempo, fora da história; busca o plasma de um arquétipo, participa
de um modelo previamente desenhado.86 O retrato romano concerta a personalidade
individual e o rosto porque supõe uma imagem da alma situada na cabeça.87
Vale mencionar que Roma gosta da história, do sucesso irrepetível que só pode
ser fruto de uma liberdade autêntica; assim, o retrato romano manifesta uma visão
de ser humano centrada em sua individualidade. Já o pensamento grego, cuja maior
expressão nesse aspecto é a teoria platônica das ideias, não deixava espaço para
aquilo que os romanos chamavam de persona.88
Sendo assim, o conceito jurídico e o conceito teológico de persona consti-
tuem uma contribuição especificamente romana, que ocupa, desde a sua criação,
um posto central na tradição do Ocidente.89 Pode-se admitir qualquer paralelismo
entre os termos e conceitos prosopon e persona, até a confluência final de ambas as
categorias, tanto no âmbito jurídico quanto teológico, porém persona é o fruto de

81 Ibid., p. 120.
82 Ibid., p. 120.
83 Ibid., p. 144.
84 Ibid., p. 144.
85 Ibid., p. 145.
86 Ibid., p. 145.
87 Ibid., p. 145.
88 Ibid., p. 147.
89 Ibid., p. 161.
166

uma mentalidade, de um sistema de crenças, de princípios jurídicos, de uma forma


de ver o mundo que surgiu e se desenvolveu em Roma. Esse conceito nasce da forma
mens latina, herdeira de uma antropologia jurídica e teológica que já mostrou os
seus primeiros traços na época arcaica: um direito fecial baseado na ideia universal
de homo e nas crenças de vida após a morte, fundadas na perpetuidade da anima
animus e na necessidade do culto aos defuntos. Entre outros elementos, fazem chegar
à configuração de persona como um ser dotado de específicas qualidades, fundadas
na razão, no parentesco entre os deuses e homens e por uma particular dignidade
atribuída a cada ser humano pelo fato de sê-lo.90
Mas com toda a metafísica grega, porque o conceito de prosopon é limitado
diante do conceito latino de persona? É o fato de que toda a metafísica grega esteja
construída sobre a base de uma centralidade da ideia de espécie, à qual subordina
o indivíduo.91 Esta metafísica está fundamentada já na figura de Parmênides, que

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apresenta o ser como realidade única, eterna e imóvel, incompatível com a plura-
lidade e o tempo, o que influenciará Platão em sua teoria do mundo das ideias.92
Assim sendo, este pressuposto metafísico nega a realidade autêntica do mundo
empírico e das entidades individuais.93 Platão afirma que o verdadeiramente real
não está nesse mundo; os homens individuais reproduzem em um nível inferior,
mutável, fragmentário, a verdadeira realidade situada na ideia de homem.94 As
ideias platônicas são agora forma de cada substância, pois elas se encarnam no
mundo empírico. O indivíduo humano é deixado subordinado à forma de huma-
nidade de modo que a ação individual, incluso o caso exímio de ação humana,
segue fundada em uma concepção que concede pouco espaço ao particular e que
eleva o universal.95
Contudo, podemos entender que o mundo platônico e aristotélico, que represen-
tam a linha fundamental da reflexão grega, é um âmbito no qual os indivíduos não
contam, ou ao menos, não são notados em uma plena realidade. O homem é sempre
o mesmo, pois há uma indefinida substituição dos que morrem pelos que nascem, ou
seja, uma preeminência da espécie sobre o indivíduo, junto à ideia de ciclo.
Já em Roma, a experiência imediata derivada da persistência de uma religião
doméstica, fundada no culto aos antepassados, entendidos não somente em sua ver-
tente coletiva, senão também individual, como demostram as figuras e as máscaras
mortuárias, se soma à consolidação de uma ciência do direito, desde a época da
jurisprudência pontifical96 que explica a aparição de um original conceito de persona,
entendida como expressão do animus imortal de cada ser humano, plasmado de forma
realista e individualizada na máscara funerária.97

90 Ibid., p. 162.
91 Ibid., p. 164.
92 Ibid., p. 165.
93 STOLFI, E. La nozione di persona nell’esperienza giuridica romana, p. 385.
94 ALBA, J. M. R. Desde el derecho romano a la teologia cristiana, p. 165.
95 Ibid., p. 165.
96 Ibid., p. 170.
97 Ibid., p. 215.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 167

8. As quatro pessoas de Cícero


O conceito de pessoa aparece tematizado pela primeira vez em uma passagem
do livro primeiro De officiis, livro terminado por Cícero em 44 a.C. O conceito de
base é, neste caso, equivalente a persona – personagem. Cícero realiza a divisão de
todo ser humano em quatro pessoas:98

Entendendo também que a natureza quase nos deu dois papéis, um é comum a
todos, enquanto todos somos partícipes da razão e daquela superioridade, pela qual
nos distinguimos dos animais; da qual deriva o honesto e o decoro e o qual remonta
o conhecimento do dever; o outro é atribuído a cada um em modo particular [...]
Porém, somam-se àquelas duas personalidades que mencionei acima uma terceira,
que o acaso ou a situação impõe a alguém; existe ainda uma quarta, que acomo-
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damos a nós mesmos por decisão individual (De offiis 1, 30, 107; 1. 32, 115).

Cícero aborda sua divisão das pessoas no contexto da filosofia moral de tra-
dição estoica e tem uma finalidade metafísica, quer dizer, alguns objetivos relacio-
nados com a estrutura do ser pessoal enquanto ser e que, claro, pressupõem uma
visão antropológica.99
A primeira pessoa100 é comum a todos os seres humanos porque todos participam
da razão, ratio ou logos: quod oportet, quod decet. Isso implica uma declaração de
igualdade entre os seres humanos; isto é interessante porque tal conceito está diante
de uma realidade social que vive a realidade institucional da escravidão. Também, ser
participante da razão significa participar igualitariamente da natureza divina; entre
os deuses e os homens se dá uma comunidade de razão. A presença de um elemento
racional na alma dos homens foi sempre um grande argumento para provar que a alma
é imortal. Esse elemento racional, identificado com o divino, tem uma atenção espe-
cial por parte de Cícero. Aqui, temos uma evidente influência da religião tradicional
romana, particularmente do culto aos defuntos, com o pressuposto da imortalidade,
regulado pelo Direito pontifical.
À segunda pessoa101 se atribui cada indivíduo particular: altera autem quae
proprie singulis est tributa. É um dado notável, pois aparece pela primeira vez no
pensamento ético greco-romano um elemento estritamente individual, uma ideia de
que cada homem é tomado de sua individualidade. Cícero utiliza a estrutura antro-
pológica básica fundada na divisão entre corpus e animus. Há um espaço concedido
ao corpo e com ele ao tempo, à memória e à história. O corpo é entendido por Cícero
como um princípio real por meio do qual se constitui cada ser humano na existência.
É sugestivo recordar que a Idade Média debaterá profusamente sobre o problema se
a alma separada do corpo goza ou não da consideração de pessoa.

98 STOLFI, E. La nozione di persona nell’esperienza giuridica romana, p. 386.


99 ALBA, J. M. R. Desde el derecho romano a la teologia cristiana, p. 194.
100 Ibid., p. 196-200.
101 Ibid., p. 201-204.
168

A terceira pessoa102 constitui a situação social, a pessoa na sua circunstância e


no seu tempo: tertia adiungitur, quam casus aliqui aut tempus imponit. O ser humano
nasce em uma circunstância, imposta ao homem; nasce em meio a ela, se apresenta,
por sua vez, como fruto da história. O termo casus significa o elemento irresistível
das circunstâncias vitais de cada um. A união do casus com o tempus sugere uma
consideração particular à temporalidade humana como cenário próprio da vida do
homem: o valor do passado, das circunstâncias familiares e políticas, da trama de
acontecimentos que condicionam o ser humano.
Para a quarta pessoa103 o tempo que importa é o futuro, que pode orientar sua
escolha de vida, a partir da vontade, a partir de uma perspectiva moral e social:
quarta etiam, quam nobismet ipsi nostro accomodamus; [...] ipsi autem genere quam
personam velimus voluntate proficiscitur. A quarta pessoa, centrada na escolha de
vida e no resultado e no tempo desta escolha, se manifesta de modo particular na

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preferência romana pela voluntas. A quarta pessoa coroa a identidade social e moral
do ser humano e se articula com a opção vocacional na qual, sobre o fundamento
dos fatores anteriores, se identifica com uma decisão livre.
Os quatro conceitos de pessoa de Cícero permitem entender que a constituição
do conceito de pessoa passa por pressupostos de linhas evolutivas que, entrelaçadas,
ajudam a constituir o conceito de pessoa. Assim Cícero contribui com o aspecto que
podemos chamar de filosófico-moral, que incorpora aspectos gramaticais, retóricos
e jurídicos.104

9. A criação do conceito jurídico de pessoa


O uso do termo persona, em um texto jurídico romano, em um decretum pon-
tifício, é atribuído à iniciativa de Quinto Mucio Escévola, o Pontífice, talvez com
precedentes doutrinais em seu pai, Públio, que foi diretamente transcrito de Cícero.105
A incorporação muciana chegaria possivelmente por intermédio de Sabino, até as
Instituiciones de Gaio, que não só faz seu o conceito, mas o utiliza como elemento
sistemático na conhecida tripartição que serve de fundamento: personae, res, actio-
nes (Gai. 1,8).106 O decreto de Quinto Múcio, transcrito por Cícero, estabelece cinco
classes de obrigações aos sacra. A primeira é a dos herdeiros: heredum causa iuis-
tissima est; nulla est enim persona, quae ad vicem eius, qui e vita emigrarit propius
accedat. Essa é a primeira das aparições do conceito de persona em um contexto em
que resulta clara a ideia de continuatio a respeito ao defunto.107
Temos aqui uma adaptação ao esquema jurisprudencial do termo persona que
aproveita a riqueza do significado de uma palavra até então usada para descrever a

102 Ibid., p. 204-205.


103 Ibid., p. 205-208.
104 Ibid., p. 155.
105 Ibid., p. 155.
106 Ibid., p. 155.
107 Ibid., p. 234-235.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 169

máscara funerária, que passa a significar um fenômeno análogo: a continuação da


persona do defunto por meio do herdeiro.108 Sendo assim, pode-se perceber que se
dá uma certa secularização do termo persona, de uma concepção estritamente espi-
ritual, derivada de uma mentalidade animista arcaica, onde a máscara permite uma
comunicação real com o defunto, até um significado no qual a expressão faz refe-
rência a alguém que assume duas identidades, porque representa, em certas relações
patrimoniais, o que está do outro lado da morte. Ao conteúdo religioso se acrescen-
tam componentes pragmáticos, regulados pelo Direito pontifical, os quais não são
contraditórios com o princípio original.109
A partir de agora resulta que ao conceito de persona se juntam dois elementos:
por um lado, a individualidade da máscara funerária como representação de um ser
humano único e concreto; do outro, o sujeito de deveres morais, como garantidor
da utilização corrente do conceito no plano estritamente jurídico, semelhante ao que
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tem a expressão muito posterior de sujeito de direitos.110


Essa união de conceitos deriva a originalidade absoluta da categoria de pessoa
e o feito de que, com ela, seja qual for o contexto jurídico da sua utilização, sempre
apareça uma valorização moral da vida humana: persona será, a partir de então, um
nomen dignitatis, não um simples sinônimo de ser humano, entendido como realidade
do mundo natural ou social.111
Dissemos acima que no decreto havia cinco classes de obrigações; na segunda
classe, sempre que o legatário houvesse conseguido aquilo que corresponde ao her-
deiro, era integrado ao grupo dos que haviam adquirido por donatio mortis causa ou
por legado. A terceira se referia ao usucapio pro herede, relativa a coisas singulares
e não ao título hereditário. A quarta se encontra formada por aqueles que, havendo
adquirido os bens do defunto, após uma execução patrimonial, asseguravam uma
maior porcentagem de cobrança aos credores.
Na quinta classe do decreto volta a aparecer o termo persona, referindo-se aos
devedores do falecido que, não tendo um herdeiro para pagar a dívida, recebem o perdão
da dívida: extrema ill persona est, ut is, si qui ei, qui mortuus sit, pecuniam debuerit
neminique eam soverti, proinde habeatur, quase eam pecuniam ceperit.112
A partir de Quinto Múcio Escévola, o Direito romano passa a contar com uma
expressão para designar o ser humano, tanto em sua dimensão de indivíduo, com
identidade própria, quanto parte integrante de uma relação jurídica tipificada: se
falará da pessoa jurídica do pai, do servo, do credor, do legatário etc. Há, assim, uma
união dos aspectos substanciais e funcionais significando que estamos diante de um
indivíduo concreto, também incluído em um tipo de relação jurídica.113
O conceito nasce unido à ideia de sujeito de atribuição. À diferença do que
ocorre nos ordenamentos modernos, a atribuição implica necessariamente não um

108 Ibid., p. 235.


109 Ibid., p. 235.
110 Ibid., p. 236.
111 Ibid., p. 236.
112 Ibid., p. 236.
113 Ibid., p. 237.
170

direito subjetivo senão um dever jurídico. Vale entender que mesmo que exista
um conceito jurídico de persona isso não exclui a utilização do termo em sen-
tido, por exemplo, metafórico pelos juristas romanos, pois ainda não se está fun-
damentado em um sistema estritamente formalizado como uma coisa matemática,
porém não invalida a existência de um conceito jurídico básico que manifesta a sua
força significativa.114
O mundo romano, notavelmente influenciado por seu realismo social de raiz
jurídica, é o mundo dos homens. Neste sentido, a criação do conceito de persona
produz uma separação radical entre o âmbito das coisas, a res, e dos seres humanos.115
Logicamente, a possibilidade de ação livre, pressuposto do ordenamento jurídico,
não separa o homem da natureza, mas alcança no ser humano, entendido como per-
sona, sua maior perfeição. Assim, passados os séculos, a tradição romana clássica
se expressará com suma perfeição nas palavras de Boécio: a pessoa não pode existir

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além da natureza (Contra Eutychen el Nestorium 2, 9-18).116 Quando o conceito
jurídico de persona se converte em categoria substantiva e não somente funcional,
há a separação e uma contraposição radical entre persona e res com o conceito de
persona, fundamentado na soma das virtudes e das circunstâncias sociais e o de res
aludindo aos fatos mesmos que integram a causa e mais tarde a divisão das coisas
em res corpóreas e res incorpóreas.117
A partir dos juristas do século II d.C., a utilização do termo persona se fez
muito frequente e é particularmente significativo seu emprego na jurisprudência de
tradição cassiana, como ocorre com Javoleno e Juliano e a utilização sistemática nas
Instituciones de Gaio.118 Assim, o conceito que inclui em sua gênesis interior toda
a evolução da antropologia jurídica encontra, depois de longos séculos de reflexão
jurídica, um posto fundacional na exposição do Direito: um mundo fundamentado
na dignidade do ser humano, entendido precisamente como persona.119
O conceito jurídico de persona no direito romano corresponde ao ser humano
(livres e servos) considerado em racionalidade e imortalidade como sujeito de
atribuição de deveres e ou direitos.120 Os juristas, valendo-se de alguns aspectos
do rico significado de persona, aplicaram, em alguns casos, um conceito, diga-
mos que estendido para explicar vários fenômenos. 121 Trata-se de construções
com as quais o pensamento jurídico personifica figuras inexistentes, como ocorre
emblematicamente com as chamadas pessoas jurídicas e mais, limitadamente,
com o pecúlio ou herança jacente. Assim sendo, estas aplicações são chamadas
de ficções dogmáticas.122

114 ALBA, J. M. R. Desde el derecho romano a la teologia cristiana, p. 238-239.


115 Ibid., p. 240.
116 Ibid., p. 241.
117 VIOLA, F. Lo statuto giuridico della persona in prospettiva storica, p. 628.
118 STOLFI, E. La nozione di persona nell’esperienza giuridica romana, p. 380.
119 ALBA, J. M. R. Desde el derecho romano a la teologia cristiana, p. 248.
120 STOLFI, E. La nozione di persona nell’esperienza giuridica romana, p. 383.
121 Ibid., p. 390.
122 ORESTANO, R. Il problema delle persone giuridiche in diritto romano, p. 22-23.
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 171

10. Algumas aplicações jurídicas do termo persona


Tratamos agora de algumas aplicações que os juristas romanos fizeram do termo
persona fora do seu conceito estritamente nuclear.123 Em primeiro lugar persona se
aplica ao defunto; é onde se marca a transição entre o uso restrito, técnico e o amplo
fundado na ficção.124 Na realidade o componente pontifical da ideia de persona facili-
tava a utilização do termo para os defuntos. Em segundo lugar, há a vinculação entre
o pai e o filho dentro da família agnatícia.125 A família era considerada um corpus e o
filho, effiges atque imago do pai.126 Em terceiro lugar, percebem-se alguns fenômenos
relativos à herança e, particularmente, à herança jacente que podiam ser conceitua-
dos, indo para a ficção da pessoa ainda que com diversas modalidades de construção
teórica. No sentido estrito a hereditas es res incorporalis, nomem iuris, ou seja, o
herdeiro se configura como sucessor do defunto assim como representante dele.127
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A mesma ideia de continuatio que encontramos nas máscaras funerárias é a mesma


que atribui ao herdeiro a herança. Em particular, o herdeiro representa neste mundo
a pessoa do defunto tanto nas obrigações derivadas do Direito pontifical quanto nas
relações familiares e patrimoniais.128 O herdeiro encarna o defunto de uma maneira
muito parecida ao modo com que a imagem funerária faz. Em quarto lugar, as posi-
ções jurídicas do tutor e do curador podem ser interpretadas como a de alguém que
representa a pessoa do dono.129 Em quinto lugar, pode-se aplicar a ficção pessoal ao
servo comum dado que o servo goza da consideração de pessoa; a ficção radica a
ideia de que o servo comum atua como se fosse duas pessoas distintas.130 Em sexto
lugar, vê-se a aplicação de persona às chamadas pessoas jurídicas.131 A respeito dessa
categoria o Direito romano havia elaborado anteriormente uma categoria técnica, fruto
do triunfo de um uso metafórico de linguagem que uma vez adquirido se utiliza como
conceito puramente jurídico.132 Aqui a sequência corpus – animus – persona parece
evidenciar o pensamento de fundo, a utilização por analogia da antropologia jurídica
romana, aplicada aos entes coletivos para explicar qual deve ser o papel, deveres e
direitos, do magistrado que faz as vezes do seu princípio racional.133 A aplicação do
conceito de pessoa às pessoas jurídicas permitia reforçar a solução ao problema da
identidade deste tipo de entidade no tempo.134 Na persona se faz implícita sempre a
ideia de continuatio, porque seu ponto de partida é o animus imortal do ser humano,
tal como o concebia o Direito pontifical da época mais antiga.135

123 STOLFI, E. La nozione di persona nell’esperienza giuridica romana, p. 386-387.


124 ORESTANO, R. Il problema delle persone giuridiche in diritto romano, p. 9.
125 ALBA, J. M. R. Desde el derecho romano a la teologia cristiana, p. 249.
126 Ibid., p. 249.
127 Ibid., p. 249.
128 Ibid., p. 250.
129 Ibid., p. 251.
130 Ibid., p. 251.
131 ORESTANO, R. Il problema delle persone giuridiche in diritto romano, p. 26-27.
132 J.M.R. Alba, Desde el derecho romano a la teologia cristiana, 252.
133 Ibid., p. 252.
134 Ibid., p. 252.
135 Ibid., p. 252.
172

Conclusão
O conceito de pessoa no direito romano percorre toda uma história e um grande
caminho. Do uso das máscaras em rituais arcaicos, das representações teatrais, da
influência estoica e de tantos outros movimentos e influências, o que permanece é
uma referência individualizadora de cada ser humano. Com o transcurso do tempo,
o termo pessoa passou a se referir aos próprios personagens dramáticos e, depois,
aos próprios atores, que, enquanto portadores das máscaras estilizadas, valiam-se da
persona justamente para dar existência representativa aos papéis que interpretavam
na obtenção teatral da realidade.
Nessa cadeia de eventos etimológicos, o termo pessoa findou-se ainda na
antiguidade romana por ser assimilado pelo léxico técnico-jurídico, passando
a designar, de ordinário, os seres que detêm, nos termos do direito positivo, a

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capacidade genérica e potencial de titularizar direitos e de contrair obrigações
no mundo jurídico, isto é, diz respeito ao que se costuma denominar, no direito
moderno, de sujeitos de direitos e obrigações, ou, simplesmente, de sujeitos de
direito. Refere-se, portanto, a todo ente subjetivo investido de personalidade pela
ordem jurídica, entendida esta como a aptidão genérica de figurar-se como sujeito
ativo ou passivo na vida jurídica, diferenciando-se, em razão disso, das coisas
da res, tidas como objeto das relações jurídicas, como objeto de direito, as quais
são, por sua vez, insuscetíveis, enquanto tais, de titularizar quaisquer direitos e
de contrair obrigações.
A liberdade de ação do sujeito de direito dá-se na medida em que permanece
sujeito no sentido etimológico, ou seja, um ser submetido ao respeito da ordem
jurídica posta. A investidura jurídica na personalidade se dá, pois, nos termos do
direito que confere “vida” para que as pessoas existam no universo jurídico. A
pessoa constitui, nessa compreensão específica, uma invenção jurídica, um sujeito
de existência heterônoma, que vive e morre no marco simbólico delineado pelo
direito positivo.
Um dado importante acerca desse conceito de pessoa diz respeito ao fato de
que ele envolve, num certo sentido, uma necessária operação de igualação jurídica,
notadamente entre os que forem qualificados como tais pelo direito, na medida em
que, ao serem alocados na mesma categoria dos sujeitos de direito, os entes inves-
tidos de personalidade passam a gozar, indistintamente da aptidão de se valerem
das faculdades e compromissos jurídicos chancelados pelo direito. Essa igualdade
reside e, portanto, faz parte da capacidade genérica decorrente da personalidade;
é essencial à noção de pessoa que enquanto sujeito de direito; é, no fundo, “um
conceito de igualdade”.
É interessante notar que, de acordo com o que dispuser o respectivo marco
jurídico a esse respeito, a noção positivada de pessoa, sem a compreensão cristã
hodierna, pode-se converter numa fonte de absoluta desigualdade entre os seres
humanos, visto que a personalidade não lhes é reconhecida como inerente, mas
lhes é imputada ou atribuída posteriormente pelo ordenamento jurídico, de forma
que ninguém seria pessoa por natureza ou nascimento. Ante a possibilidade de
ELEMENTOS DE TEOLOGIA: uma abordagem sistemático-pastoral 173

negação jurídica da personalidade a certos homens, o nível de liberdade e de igual-


dade entre os seres humanos numa determinada sociedade é passível, portanto, de
ser mensurado pelo alcance inclusivo ou excludente de seu respectivo conceito
funcional de pessoa.
Contudo, aquilo que o conceito de persona contém na sua raiz romana, que não
é somente aquele da tradicional conotação estoica e grega associado à simples exterio-
ridade humana (a prosopon), invereda pela interioridade do homem, desvelando sua
face íntima mais característica: a razão. Boécio predicou, em definição que se tornou
clássica: “diz-se propriamente pessoa a substância individual da natureza racional”.
Não se trata, contudo, da razão humana em abstrato, mas da razão associada a uma
substância individual, a um ser concreto.
Por sinal, a ideologia contemporânea dos direitos humanos gravita fundamen-
talmente em torno do conceito universal, agnóstico e metajurídico de pessoa humana,
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que se baseia, por seu turno, na afirmação dogmática da existência de uma essencial
igualdade entre os seres humanos, reconhecidos como titulares de direitos universais
inalienáveis, pelo simples fato de sua humanidade imanente, independentemente
de qualquer prescrição heterônoma do direito positivo para tanto, bem próximo do
conceito romano de persona.
174

REFERÊNCIAS
ALBA, J. M. R. Desde el derecho romano a la teologia cristiana. Granada: Coma-
res, 2011.

ORESTANO, R. Il problema delle persone giuridiche in diritto romano. Torino: G.


Giappichelli, 1968.

STOLFI, E. La nozione di persona nell’esperienza giuridica romana. Filosofia Poli-


tica, v. 3, n. 23, 2007.

VIOLA, F. Lo statuto giuridico della persona in prospettiva storica. In: PANSINI, G.

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(ed.). Studi in memoria di Italo Mancini. Napoli: Scientifiche Italiane, 1992.
POSFÁCIO
Cara leitora, caro leitor. Após sua aventura teológico-pastoral trilhada nas
páginas desta presente obra, permanece o estímulo de que todo o saber construído
e o esforço de pesquisa engendrado pelos nossos autores possa auxiliá-los na tarefa
mais importante relacionada à própria investigação teológica: tornar-se vida e
resposta aos desafios atuais impostos às pessoas e comunidades cristãs nos mais
diversos cenários de eclesialidade que se nos apresentam como desafio e também
como profecia.
A reflexão sobre a experiência de fé, que necessariamente busca a razão e a
aproximação histórico-fatual, permite um olhar mais aguçado sobre a dimensão da
Revelação cristã, como possibilidade de realização do próprio ser humano, situado
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em uma comunidade, uma assembleia, uma Eclesia.


Tais fontes, constantemente revisitadas, provocam, cada vez mais, uma revisão
e atualização da práxis pastoral, que se dá, sobremaneira, pelo testemunho pessoal e
comunitário e pelas novas e perenes maneiras de evangelizar e de formar para Cristo
e para seu Reino.
Enfim, esta breve obra encontra seu desfecho na centralidade da pessoa humana
que experimenta, acolhe e testemunha a fé de maneira a realizar o anúncio com a sua
própria vida. Que as bênçãos do Senhor Encarnado e Ressuscitado possam recair
sobre todos aqueles que empreenderam esta obra e sobre você, em seu contínuo
empenho pelo saber e pela santidade.

Sérgio Augusto Baldin Júnior


Reitor do UNISAL
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ÍNDICE REMISSIVO
A
Aquino 7, 9, 18, 19, 22, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39,
40, 41, 42, 43, 44, 80, 85, 94, 147

C
Consciência 7, 10, 19, 21, 25, 45, 46, 47, 48, 49, 52, 53, 55, 57, 71, 73, 74,
75, 95, 99, 103, 104, 105, 108, 109, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 118, 119,
120, 140, 150, 156, 157, 158
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E
Elemento cultural 14, 16, 18
Ética 7, 10, 15, 25, 26, 46, 71, 76, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116,
117, 118, 119, 120, 135

J
Jesus cristo 11, 45, 46, 50, 51, 52, 55, 58, 59, 60, 62, 64, 65, 72, 74, 96, 97,
99, 112, 118, 123, 128, 132, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 145, 146, 150

M
Mediação 7, 9, 10, 45, 46, 51, 52, 55, 58, 59, 61, 62, 70, 114, 121, 122,
148, 157
Ministerialidade da igreja 7, 10, 95, 96, 98, 100, 102, 104, 105
Moral 7, 10, 38, 71, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 118, 119,
120, 129, 130, 140, 157, 167, 168, 169

N
Noção de pessoa 7, 11, 155, 156, 172

R
Realização humana 7, 9, 52, 53, 57, 58, 67, 69, 71, 72, 73, 74, 76, 77, 99,
146, 153
Revelação divina 7, 9, 11, 30, 36, 37, 41, 42, 43, 45, 46, 50, 52, 53, 54, 57,
58, 59, 60, 62, 63, 64, 67, 69, 71, 72, 73, 74, 76, 77, 121, 129, 131, 139, 141,
142, 143, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 153
178

S
Sinodalidade 7, 10, 79, 80, 81, 83, 84, 85, 87, 88, 89, 90, 91, 94, 104

T
Teologia catequética 7, 11, 135, 136, 137, 146, 148, 151
Teologia pastoral 7, 11, 69, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130,
131, 132, 133, 134

V
Vaticano 10, 11, 16, 17, 51, 53, 61, 66, 79, 81, 82, 83, 84, 89, 90, 91, 92, 94,
101, 102, 103, 104, 107, 111, 113, 116, 119, 124, 126, 127, 133, 134, 135,

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137, 138, 139, 140, 141, 147, 150, 152, 153
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SOBRE O LIVRO
Tiragem: Não comercializada
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5 | 11,5 | 13 | 16 | 18
Arial 8 | 8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal | Supremo 250 g (capa)

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