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Pureza e Perigo – Mary Douglas (Fichamento)

Introdução

O livro é sobre classificação, separação e limpeza. Tematiza a sujeira e os rituais executados


para afastá-la, ou para buscar a purificação.

Ela considera que sujeira e pureza não são intrínsecas, mas sempre em relação a outros
aspectos de um sistema, ou seja, sua abordagem é sistêmica. Os símbolos, a sujeira, a pureza
devem fazer sentido numa estrutura de uma dada cultura e não em si mesmos.

Ela chama atenção portanto para a relatividade da sujeira.

Os tabus de atitudes impuras indicam códigos morais, visam o bom andamento da sociedade.

Segundo a autora ao analisar crenças de poluição sempre se descobre uma carga


simbólica que remete à vida social, ela acredita que “poluições são usadas como analogias para
expressar uma visão geral da ordem social” em cada sociedade.

Exemplifica:
com os tabus de sujeira/poluição sexual: quando algum fluido ligado ao sexo (feminino ou
masculino) é considerado sujo e poluidor para o outro sexo isso fala da relação entre partes da
sociedade e não sobre a relação entre os sexos em si. Do mesmo modo, partes do corpo
simbolizam partes ou aspectos da sociedade.
Assim, regras de “não-limpeza” (sujeira) devem ser interpretadas num contexto global no
âmbito dos perigos possíveis num determinado universo.

 É preciso conhecer a gama de poderes e perigos que uma sociedade reconhece para
entender bem para o que a sujeira aponta naquela sociedade.

O tabu com os limites e orifícios do corpo, por exemplo, diz respeito aos limites da sociedade.
Existem os limites internos e os limites externos, de ambos pode vir o perigo. O mundo é
desordenado e sem a imposição de limites e de classificações impõem uma sistematização à
realidade.

A reação à sujeira é contínua com outras reações à ambiguidade ou anormalidade.


É preciso encontrar um padrão que provoca a reação à sujeira, à ambiguidade ou à anomalia
em cada sociedade. Existe uma chave para o entendimento dessa sociedade nessa relação.

No final da frase ela já antecipa que o que estudamos sobre as sociedades primitivas serve para
lançar luz sobre as sociedades ocidentais.

 Mas ela faz uma separação clara entre sociedades primitivas e modernas: as primeiras não
têm especializações claras como a nossa (separações do aspecto religioso, político, jurídico etc.
em instituições separadas como a igreja, o Estado, o judiciário, a ciência e a religião).

Capítulo 1 – Impureza Ritual

A autora afirma que a ideia de sujeira é pautada por duas questões:


 cuidado com a higiene e
 respeito pelas convenções.
As vezes renunciamos ao aspecto da higiene por amizade ou devoção.
Exemplos:
1) Ela exemplifica com como os aldeões elogiaram um pastor que recusou um copo limpo
só para ele quando lhe ofereceram cidra e ele quis tomar junto aos trabalhadores rurais
nos copos deles, consideraram-no um bom homem, um amigo sem melindres.
2) Ou Santa Catarina de Siena que se culpou ardorosamente por sentir nojo das feridas dos
doentes de quem ela cuidava, ela entendeu que a caridade e a higiene eram
incompatíveis, para se livrar do nojo bebeu uma tigela de pus.

Relatividade da sujeira:

Ela então desenvolve a ideia de que a sujeira e o sagrado/santidade são relativos. Normalmente
pensamos que o sagrado precisa estar longe da poluição, num continuum colocaríamos a
impureza num pólo e o sagrado no pólo oposto. Mas nem sempre isso acontece.

Outro exemplo seria o esterco da vaca na Índia. Fezes de animais são sempre sujos, mas a da
vaca pode purificar até mesmo o Brâmane. Continua sendo suja para os deuses, no entanto. Ou
seja, uma mesma substância pode mudar se muda o referencial da relação, purificante para os
homens, é poluidora para os deuses. A pureza/impureza aqui mostra uma hierarquia entre
homens e deuses.
Sujeira afinal é sempre sobre fazer uma separação dentro de um esquema de classificação.

Exemplos de que sujeira é sobre organização e separação em conjuntos:


1) comida na cozinha não é sujeira, mas comida derramada na sala ou no quarto é sujeira;
2) roupas não são sujeira, mas se largadas no chão pela casa são sujeira.

A autora faz uma longa digressão sobre inferiorizações que teriam sido feitas por antropólogos
precedentes que separaram magia e religião, ritual e religião e colocaram demasiada ênfase na
preocupação com a eficácia ou não de rituais. Ela discorda de tudo isso para dizer que tais
separações e tentativas de inferiorizar as religiões primitivas são infrutíferas ao pensamento
antropológico, critica Tyler, Frazer, Eliade e parcialmente de Durkehim.

Ela segue o esquema durkheimiano de que religiões são sobre classificações, mas não segue a
lógica desse autor de que sagrado e profano estão absolutamente separados e opostos
(Durkehim teria feito essa separação para fazê-la coincidir com a separação sociedade x
indivíduo), mas para ela sagrado e profano são relativos.

Ela concorda com Durkheim que os deuses primitivos são parte e parcela das comunidades que
os adoram. Suas formas expressam acuradamente os detalhes da estrutura, seus poderes
punem ou recompensam os homens em favor da estrutura.

Crítica à separação entre sociedades primitivas x modernas:

Da página 35 até a 41 a autora se empenha em demonstrar o quão preconceituoso e


condescendente Frazer foi com os primitivos e o quão pernicioso foi seu legado para a
antropologia feita depois dele, por conta da separação entre magia, religião e ciência e
consequente colocação do primitivo como inferior. No meio do caminho ela se afasta e se
aproxima de Roberton Smith, de quem teriam bebido tanto Durkheim quanto outros
antropólogos (evolucionistas).
Finalmente ela declara:
Ou seja, deixar de separar, mas comparar em pé de igualdade, essa seria a saída.

Capítulo 2 – Profanação Secular

Nesse capítulo ela se dedica a desconstruir a visão dos modernos sobre as religiões antigas
baseada no que ela chama de “materialismo médico”.

O materialismo médico seria a mania dos modernos de ver nas proibições religiosas uma
preocupação com a higiene, como se as religiões não estivessem preocupadas com o simbólico,
mas com a razão prática. Essa visão trataria os ritos como formas de higiene, mas formas tolas,
uma vez que a nossa preocupação com a higiene seria correta e os ritos deles apenas tolices
com intenção de higiene.

Exemplo: o incenso. A fumaça do incenso representa simbolicamente a fumaça que sobe aos
céus quando se faz algum sacrifício lançando um corpo ao fogo. Mas na visão do materialismo
médico o incenso seria um modo de disfarçar o mal cheiro da humanidade desasseada. Do
mesmo modo, o fato de judeus e muçulmanos não comerem carne de porco seria uma
tentativa de evitar o risco de passar mal com essa carne nos dias quentes.

A gente faz a mesma coisa dando a higiene como desculpa. Não comemos pastel na rodoviária.

Para a autora reconhecer os benefícios de ações rituais é uma coisa, mas se contentar com
essas explicações é uma lástima. Pode ser que as regras dietéticas de Maomé tenham eficácia
na saúde e na higiene, mas reduzir a isso seria transformá-lo num mero administrador de saúde
pública em vez de um líder espiritual. Ela insiste que o motivo das separações é simbólico.

Ao mesmo tempo, ela diz que a visão contrária de que os rituais primitivos nada teriam a ver
com nossas práticas de limpeza é também equivocada.
Aqui ela está afirmando que nossas ações de limpeza e higiene também são simbólicas. Ela
discorre longamente sobre exemplos de poluição hindus, o contato com suor, saliva, comida
cozida e até tocar o mesmo objeto ao mesmo tempo que um intocável pode poluir um
brâmane. Ela conclui que quanto mais estudamos essas proibições de contato, mais temos
certeza de que estamos diante de um sistema simbólico. E se pergunta: será mesmo então que
todas as preocupações deles são simbólicas e as nossas são de higiene? Ela responde:

Ela sugere então nos determos sobre nossas noções de sujeira. Sociedade modernas teriam
duas percepções fundamentais sobre o tema:
1) supomos que nossa noção de sujeira é sobre estética e higiene e que não tenha nada
de religiosa, mas isso é efeito apenas da moderna especialização da vida que separou em
instituições separadas o que antes era inseparável;
2) nossa ideia de sujeira é atualmente dominada pelo conhecimento de organismos
patogênicos.

Mas esse conhecimento data de uns cem anos antes da época que a autora está escrevendo
(1966), mas nossas ideias de sujeira não são tão recentes assim, logo há mais que esse
conhecimento (bacteriologia) por trás da sujeira para os modernos. Então ela afirma:
Isto é, onde há sujeira há sistema, a sujeira aponta para alguma coisa fora do lugar ou rejeitada
no sistema, a sujeira é algo que contradiz a classificação ideal.

Além da sujeira outra parte importante da classificação que nos ajuda a compor/fechar o
sistema são as coisas ambíguas ou anômalas. A anomalia é algo que não se ajusta a um
conjunto ou série e a ambiguidade é um tipo de afirmação sujeita a duas interpretações. No
fundo, para a autora elas são quase sinônimas. “Quando algo é firmemente classificado como
anômalo, o esboço do conjunto no qual ele não é considerado como membro se torna claro”.

Exemplo: uma passagem de Sartre sobre a viscosidade, algo que não é nem líquido, nem sólido.
O pote de mel onde uma criança coloca a mão transforma para sempre a noção que a criança
tem de sólido e líquido. O viscoso é ambíguo e anômalo no conjunto das coisas sólidas e das
coisas líquidas. É um “fluido aberrante ou um sólido derretido”. Ele é uma armadilha, pois
olhando o mel não imaginamos como ele é pegajoso e como ele borra a fronteira do nosso
corpo com sua matéria quando o tocamos ou como escorre quando tentamos segurá-lo. É
diferente de entrar na água, na água ela continua líquida e nosso corpo continua sólido.

A ambiguidade ou anomalia do viscoso nos faz ter certeza do sólido e do líquido. Todo sistema
produz anomalias e é por isso que todas as culturas têm alguma previsão cultural de como lidar
com a anomalia. Ela enumera cinco formas culturais de lidar com a ambiguidade.
E conclui:
Ela fecha o capítulo aludindo novamente a diferença entre primitivos e modernos: apenas uma
questão de especialização e compartimentalização de dimensões do social e suas respectivas
instituições.

Capítulo 3 – As Abominações do Levítico

É um capítulo sobre contaminação. E sobre isso ela diz que a contaminação só ocorre em vista
de uma disposição sistemática de ideias, ela nunca é um acontecimento isolado.

Ela vai usar o Levítico como ilustração dessa afirmação e reforçar que não podemos olhar as
proibições do Velho Testamento como o materialismo médico faz. E ela novamente enfatiza
que qualquer interpretação que tome os nãos do Levítico de modo fragmentado falhará.
Douglas combate a fragmentação entendendo que os nãos são uma forma de por em separado
o que é sagrado.

Outro ponto é que os ordenamentos do Levítico são eficazes e não apenas expressariam uma
ideia.

O Levítico também mostra que o sagrado é íntegro, sem anomalias, sujeiras ou imperfeições.
O sagrado é o templo, mas também as lutas do exército israelita. Sem uma bênção não se
vencia a guerra e assim como para entrar no templo o devoto deve estar limpo e íntegro,
também o soldado precisar estar assim para adentrar o campo de batalha. Do contrário há risco
de contaminação tanto do templo quanto dos demais soldados e do campo de batalha.

Aqui ela coloca os híbridos junto da ambiguidade, como confusão que é abominada. O sagrado
separa/abomina toda “perversão”, palavra cujo sentido original significa justamente mistura ou
confusão. Novamente a santidade requer separação e se mantém pela não confusão entre
coisas de classes diferentes.

Ela conclui dizendo que o mandamento “vós sereis santos” não significa nada mais que
“vós sereis separados”.

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