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Introdução
A educação em direitos humanos vem se afirmando cada vez com maior força no
Brasil, tanto no âmbito das políticas públicas como das organizações da sociedade civil. As
iniciativas se multiplicam. São realizados seminários, cursos, palestras, fóruns, etc, nas
diferentes regiões do país, promovidos por universidades, associações, movimentos, ONGs e
órgãos públicos. Sem dúvida, a implementação do Plano Nacional de Educação em Direitos
Humanos, cuja segunda edição é de 2006, tem exercido uma função fundamental de estímulo,
apoio e viabilização de diversas atividades.
No entanto, consideramos que existe um descompasso sobre os estudos em relação à
problemática dos direitos humanos atualmente, tanto no plano internacional quanto nacional, e
a própria discussão teórica sobre a noção de direitos humanos e o aprofundamento sobre as
concepções e práticas sobre educação em direitos humanos. Em geral, uma reflexão sobre em
que consiste a educação referida a esta temática se dá por óbvio ou, na prática, a educação fica
reduzida à transmissão de conhecimentos atualizados sobre direitos humanos. Não se
problematiza, nem se articula adequadamente a questão dos direitos humanos com as diferentes
concepções pedagógicas, nem, em geral, se procura construir estratégias didático-
metodológicas que concretizem as perspectivas e concepções dos direitos humanos
privilegiadas. Muitas vezes, identificamos um descompasso e mesmo, em alguns casos, uma
contradição entre as concepções sobre direitos humanos afirmadas e os processos educativos
desenvolvidos, particularmente nos sistemas formais de educação.
O presente trabalho pretende abordar questões que se relacionam com estas temáticas.
Num primeiro momento, problematizaremos a própria expressão educar em direitos humanos,
procurando explicitar diferentes sentidos a ela atribuídos e apresentar a proposta presente no
Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Tendo presente esta concepção, num
segundo momento, apresentaremos alguns princípios pedagógicos que, em coerência com ela,
deverão informar os processos educativos que realizemos. Terminaremos apresentando
estratégias didático-metodológicas que consideramos fundamentais para o adequado
desenvolvimento destes processos e alguns desafios para a formação de educadores na
1
Publicado em: FERREIRA, L.G., ZENAIDE, M. de N e.DIAS, A. A. (org) Educação em Direitos
\humanos no Ensino Superior: subsídios para a Eeducação em Direitos Hhumanos na Pedagogia. J.
Pessoa: Edit. Universitária da UFPB, 2010
perspectiva assinalada.
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Consultora na área de direitos humanos, com ampla experiência de trabalho tanto em ONGs como
atividades relacionadas a governos e agências internacionais. Desenvolveu redes de educadores/as,
materiais, processos de capacitação em educação em direitos humanos em diferentes países da
África, Ásia e Europa, além das atividades que realiza nos Estados Unidos. Possui vasta produção
acadêmica sobre educação em direitos humanos.
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Essa definição foi colocada por Shulamith Koenig, da Década das Pessoas para Educação para os
Direitos Humanos, na lista dos associados (www.hrea.org).
A partir deste ponto de partida, Flowers distingue três tipos de definições de educação
em direitos humanos, segundo os próprios agentes implicados, que caracteriza como:
agências governamentais, incluindo organizações intergovernamentais,
agências da ONU e conferências promovidas por ela;
organizações não-governamentais (ONGs);
intelectuais universitários e educadores.
Segundo essa autora, as definições governamentais se caracterizavam especialmente
por colocar a ênfase na valorização de objetivos e resultados, especialmente aqueles que
preservavam a ordem e o próprio Estado. Em sua aderência a documentos legais, normalmente
elaborados por diplomatas e especialistas da área jurídica, essas definições enfatizavam o
aspecto “direitos” dos direitos humanos. É freqüente encontrar nesses documentos expressões
que relacionavam a educação em direitos humanos com a promoção da paz, a coesão e a
ordem social, em oposição a comportamentos e atitudes perturbadoras dessa mesma ordem.
Palavras como paz, democracia, tolerância, desenvolvimento, justiça social são privilegiadas
em suas declarações.
Acreditar em que uma sociedade diferente pode se tornar real. Esta é a paixão que a
inspira e que está presente nos processos de educação em direitos humanos que a têm como
referência.
Na América Latina as contribuições de Paulo Freire são reconhecidas como
particularmente importantes na construção da perspectiva crítica em educação, particularmente
a partir dos anos 60. Entre nós seu pensamento exerceu forte impacto, especialmente no âmbito
da educação popular e serviu de fundamentação para a educação em direitos humanos, desde
as primeiras experiências desenvolvidas na segunda metade dos anos 80. Alguns aspectos do
seu pensamento foram e são particularmente pertinentes para a educação em dDireitos
humanos: a crítica a uma educação bancária e a defesa de uma perspectiva problematizadora da
educação; a centralidade dos temas geradores, oriundos das experiência de vida dos educandos,
para o desenvolvimento das ações educativas; o recohecimento dos universos sócio-culturais e
dos saberes dos educandos; a afirmação da relevância epistemológica, ética e política do
diálogo e das práticas participativas e a necessidade de favorecer processos que permitam
passar da conscência ingênua à consciência crítica das realidades e da sociedade em que
vivemos.
Na década dos 80, no nosso país se deu um forte e instigante debate entre diferentes
autores e posições que se situavam no âmbito da pedagogia crítica. Este confronto se
concretizou principalmente entre a pedagogia freiriana e a pedagogia crítico-social dos
conteúdos, também intitulada pedagogia histórico-crítica, que teve como principal autor o
professor Dermeval Saviani. Na sua perspectiva a função específica da escola se relaciona à
socialização do saber elaborado. (Saviani, 1991, p.102), e assim explicita esta posição:
Elaboração do saber não é sinônimo de produção do saber. A produção do saber é
social, se dá no interior das relações sociais. A elaboração do saber implica em
expressar de forma elaborada, o saber que surge da prática social. Essa expressão
elaborada supõe o domínio dos instrumentos de elaboração e sistematização. Daí a
importância da escola. Se a escola não permite o acesso a estes instrumentos, os
trabalhadores ficam bloqueados e impedidos de ascenderem ao nível da elaboração
do saber, embora continuem pela sua atividade prática real, a contribuir para a
produção do saber. O saber sistematizado continua a ser propriedade privada a
serviço do grupo dominante. Assim, a questão da socialização do saber, neste
contexto, jamais poderia ser assimilada à visão do funcionalismo durkheniano,
porque se inspira toda na concepção dialética, na crítica da sociedade capitalista
desenvolvida por Marx. (Ibidem, p. 81-82).
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Foram muitos os seminários, encontros, congressos e publicações que visibizaram esta
polêmica. A pedagogia histórico-crítica obteve uma ampla difusão no país e uma hegemonia no
campo acadêmico. No entanto, é possível afirmar que não teve maiores impactos no que se
refere às experiências e produções relativas à educação em direitos humanos.
É fundamental que tenhamos consciência da pluralidade de perspectivas que podem ser
nomeadas como pedagogia crítica, ou melhor, pedagogias críticas. Mencionamos duas mas
outras também podem ser mencionadas, como a crítico-reprodutivista, a libertária e a
pedagogia dos conflitos5. Mas, para o objetivo de nosso trabalho, consideramos mais relevante
ressaltar as características comuns às diferentes tendências, tais como: conceber os processos
educacionais como historicamente situados, articular a educação com outros processos sociais,
trabalhar sistematicamente a relação teoria-prática, favorecer os processos de construção de
sujeitos autônomos e solidários, capazes de ser sujeitos de direitos no plano pessoal e coletivo,
e de participar de ações orientadas á transformação da realidade e à emancipação social.
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Para um maior aprofundamento desta temática, ver LIBÂNEO, José C. Democratização da escola
pública - A pedagogia crítico-social dos conteúdos. São Paulo: Cortez Editora, 1985..
Partindo desta concepção ampla da pedagogia crítica, e tendo como interlocutor
priivilegiado o pensamento de Paulo Freire, Magdenzo (2005) asssinala alguns princípios que
devem orientar as práticas da educação em direitos humanos que nela se inspiram. São eles:
1) Princípio de integração
Os temas e questões relativas aos direitos humanos devem ser integrados no
desenvolvimento das diferentes áreas curriculares e na realização permanente do projeto
político-pedagógico das escolas. Não se trata de incluir novas disciplinas ou unidades
didáticas, nem de um tratamento destes temas exclusivamente em momentos específicos. O
desafio está em integrá-los tanto no plano cognitivo, quanto afetivo e comportamental no dia a
dia das escolas em suas diferentes dimensões.
2) Princípio de recorrência
Este princípio está relacionado à necessidade de que a parendizagem dos direitos
humanos seja constantemente trabalhada e retomada. Estes direitos não constituem um
conteúdo que uma vez ensinado é imediatamente incorporado. Afeta não somente o plano
cognitivo mas a sensibilidade, as mentalidades, atitudes e comportamentos. Os direitos
humanos devem ser apresentados de modo deliberado e sistemático através de diferentes
situações, oferecendo-se aos educandos diversas formas de interiorizá-los e vivenciá-los, o que
não significa uma repetição mecânica, e sim propiciar oportunidades diferenciadas de
aprendizagem e não momentos esporádicos, dispersos e isolados. Os conceitos que
fundamentam os direitos humanos são complexos e supõem diversos níveis de análise,
discussão e apropriação. De acordo com as etapas evolutivas e os níveis de ensino, as
aprendizagens vão adquirindo maior profundidade e, neste sentido, é importante formular
sequências adequadas de modo a ir fortalecendo uma apropriação crítica e criativa dos
mesmos.
3) Princípio de coerência
A aprendizagem dos direitos humanos é favorecida quando existe um ambiente propício
ao seu exercício. A coerência entre o que se diz e o que se faz é fundamental. Esta coerência
deve ser trabalhada desde a sala de aula até as atividades globais da escola. Também entre o
que o professor ou professora dizem e as estratégias didático-metodológicas que utilizam. É
contraproducente que o/a educador/a afirme, por exemplo, a necessidade de respeito a cada
pessoa humana e, ao enfrentar um conflito na sala de aula, utilize estratégias autiritárias, sem
dar cabida a que os diferentes implicados sejam ouvidos e sem favorecer posturas de escuta
mútua e diálogo.
Para Mosca e Aguirre (1990,p.19), educadores uruguaios pioneiros da educação em
direitos humanos no continente latino-americano:
Um dos maiores obstáculos para a difusão da educação em direitos humanos é o
abismo existente entre o discurso, as palavras, os fatos e as atitudes. Se um/a
educador/a, se um sistema escolar pretende educar para os direitos humanos, deve
sempre começar por praticá-los. Não há educação em direitos humanos, não há
projeto educativo válido neste campo sem profundo compromisso social para
torná-los realidade.
A vida cotidiana oferece múltiplas situações relacionadas aos direitos humanos. Ter
presente este fato, tanto em relação à realidade das vidas individuais dos alunos e alunas, como
de suas famílias, da comunidade, do país e do planeta é fundamental. Trata-se de desvelar as
questões de direitos humanos em que estamos submergidos, reconhecê-las e analisá-las, tanto
quando se referem a violações de direitos, quanto a sua afirmação. Neste sentido, é importante
resgatar as histórias de vida dos alunos e alunas, procurando-se incorporar seus conhecimentos,
visões e perspectivas. Isto permite desenvolver uma análise crítica e ressignificar o vivido na
ótica dos direitos humanos. Ter como ponto de partida das práticas educativas as situações
concretas referidas aos direitos humanos vivenciadas pelas crianças e adolescentes,
começando-se pelos seus próprios direitos, constitui um componente básico da educação em
direitos humanos.
Este texto defende uma tese: não é possível dissociar a questão das estratégias
metodológicas para a educação em direitos humanos de uma visão político - filosófica, de uma
concepção dos direitos humanos e do sentido de se educar em direitos humanos numa
determinada sociedade e em um momento histórico concreto. As estratégias pedagógicas não
são um fim em si mesmas. Estão sempre a serviço de finalidades e objetivos específicos que se
pretende alcançar.
Neste sentido, na perspectiva que assumimos, as estratégias metodológicas a serem
utilizadas na educação em direitos humanos têm de estar em coerência com a concepção que
apresentamos, uma visão contextualizada e histórico-crítica do papel dos direitos humanos na
nossa sociedade e do sentido da educação neste âmbito que apresentamos, na perspectiva da
pedagogia crítica..
É bastante comum que afirmemos que queremos formar sujeitos de direito e colaborar
na transformação social e, no entanto, do ponto de vista didático-pedagógico, utilizarmos
fundamentalmente estratégias centradas no ensino frontal, isto é, exposições, verbais ou
midiáticas, quando muito introduzindo espaços de diálogo em momentos determinados. Este
tipo de estratégias atua fundamentalmente no plano cognitivo, quando muito oferece
informações, idéias e conceitos atualizados, mas não leva em consideração as histórias de vida
e experiências dos participantes e dificilmente colaboram para a mudança de atitudes,
comportamentos e mentalidades. Em geral, no melhor dos casos, propiciam espaços de
sensibilização e motivação para as questões de direitos humanos, mas seu caráter propriamente
formativo é muito frágil.
A perspectiva pedagógica que apresentamos supõe a realização de processos formativos.
A palavra processo é fundamental. Exige uma série de atividades articuladas e desenvolvidas
em um determinado período de tempo. Nos últimos anos temos assessorado e promovido
diferentes projetos de educação em direitos humanos, na maior parte das vezes orientados à
formação de educadores para serem multiplicadores nas suas respectivas instituições de
educação formal ou não formal. Em geral, estas experiências supõem processos sistemáticos,
por períodos de seis meses a um ano de duração, desenvolvidos através de encontros
periódicos e da realização de atividades de diferentes tipos.
Uma estratégia metodológica que nos processos que vimos desenvolvendo é privilegiada
são as chamadas oficinas pedagógicas, concebidas como espaços de intercâmbio e construção
coletiva de saberes, de análise da realidade, de confrontação de experiências, de criação de
vínculos sócio-afetivos e de exercício concreto dos direitos humanos. A atividade,
participação, socialização da palavra, vivência de situações concretas através de sociodramas,
análise de acontecimentos, leitura e discussão de textos, realização de vídeo-debates, trabalho
com diferentes expressões da cultura popular, etc, são elementos presentes na dinâmica das
oficinas. O desenvolvimento das mesmas se dá, em geral, através dos seguintes momentos
básicos: aproximação da realidade/sensibilização, aprofundamento / reflexão, síntese
/construção coletiva e fechamento / compromisso. Para cada um desses momentos é
necessário prever uma dinâmica adequada, sempre tendo-se presente a experiência de vida dos
sujeitos envolvidos no processo educativo, o reconhecimento dos saberes previamente
construídos pelos/as participantes e o diálogo e confronto com os conhecimentos científicos e
as informações socialmente disponíveis.
Considerações finais
CANDAU, V.M. Educação em direitos humanos: principais desafios. Rio de Janeiro: 2005
(mimeo).
FLOWERS, N. Como definir Direitos Humanos em Educação? Uma resposta complexa para
uma pergunta simples. In: GIORGI, V. e SEBERICH, M. (Eds.). Perspectivas internacionais
em educação em direitos humanos. Gütersloh: Bertelsmann Foundation Publishers, 2004.
PEREZ, L. A. Educación para los derechos humanos. El gran desafío contemporaneo. In: Paz y
Justicia, nº 8, oct-dic. Montevideo: Serpaj, 1986.