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O DIREITO À EDUCAÇÃO SOB A PERSPECTIVA DA PEDAGOGIA SOCIAL 1

Sheila Agda Ribeiro da Silva2


Roberto da Silva3
Roseli Esquerdo Lopes4

RESUMO
O texto discorre sobre parte das anotações realizadas em sala de aula no decorrer
da disciplina Direito à Educação sob a perspectiva da Pedagogia Social, ministrada
pelo Prof. Dr. Roberto da Silva na Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo – FEUSP e tem por objetivo explicitar os limites e possibilidades do Direito à
Educação, problematizando a matriz familiar como fundamento da sociedade
brasileira e defendendo o campo de atuação da Pedagogia Social a partir de seus
fundamentos teóricos e metodológicos.

Palavras-Chave: Pedagogia Social, Educação, Direitos da Criança e do


Adolescente, Direitos Humanos.

ABSTRACT
The text discusses some of the notes taken in class during the course right to
education from the perspective of Social Pedagogy, taught by Professor. Dr. Roberto
da Silva at the Faculty of Education, University of Sao Paulo - FEUSP and aims to
clarify the limits and possibilities of the Right to Education, emphasizing the core
family as the foundation of Brazilian society and defending the playing field of Social
Pedagogy from their theoretical and methodological foundations.

Keywords: Social Pedagogy, Education, Child and Adolescent, Human Rights.

1
Texto elaborado em forma de relatório para a Disciplina Direito à Educação sob a Perspectiva da
Pedagogia Social, ministrada pelo Prof. Dr. Roberto da Silva no 1º semestre de 2011 na Faculdade
de Educação da Universidade de São Paulo - FEUSP.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar). E-mail: sagda_04@hotmail.com
3
Professor Livre Docente do Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação,
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). E-mail: Kalil@usp.br
4
Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal
de São Carlos (UFSCar). E-mail: relopes@power.ufscar.br/relopes@ufscar.com.br
LIMITES E POSSIBILIDADES DO DIREITO À EDUCAÇÃO
A Educação como Direito Humano Fundamental é um discurso relativamente
recente na medida em que foi resultado de um processo histórico que teve que
superar, dentre outros eventos, as ideologias que negavam humanidade a gentios,
índios e negros. Cristianização, ocidentalização e globalização são as três matrizes
culturais que dominam a vida contemporânea, portanto, este é um viéz de análise
bastante privilegiado para entendermos os limites e possibilidades do Direito à
Educação.
A cristianização se refere à tentativa de estabelecer uma base de valores
comuns para toda uma civilização e esses valores, com pretensão de hegemonia,
são os valores da cultura cristã, católica e ocidental. Quando pensada dentro desta
matriz cristã e ocidental, se observa claramente que a Educação estava voltada,
preponderantemente, para fazer a transição entre a barbárie e a civilização, o que
levou alguns teóricos a denominar esta fase como domesticação (NIETZSCHE,
2004, p. 104), ou seja, eliminar na espécie os seus instintos animais e acrescentar-
lhe os vernizes da civilidade. Os instintos que presidem a busca por alimento e
proteção, a fuga e a reprodução foram, de alguma forma, colocadas sob controle,
seja por instrumentos elaborados pela Religião, seja pela consolidação das
convenções sociais ou ainda recorrendo-se aos poderes do Estado. Esta é uma
hipótese que subsidia o entendimento de Educação como direito fundamental da
pessoa humana.
A ocidentalização é uma decorrência da cristianização, ou seja, a tentativa de
se estabelecer como hegemônica a cultura branca cristã, tida como superior e em
detrimento de culturas locais, dizimadas em sua maioria (LE GOFF, 1984). A
globalização, por sua vez, do ponto de vista da Educação tem a ver com a pretensão
do estabelecimento de uma Cultura Educacional Mundial Comum (CEMC). No
essencial, os proponentes desta perspectiva defendem que o desenvolvimento dos
sistemas educativos nacionais e as categorias curriculares se explicam através de
modelos universais de educação, de estado e de sociedade, mais do que através de
fatores nacionais distintivos (DALE, 2004, p. 425).
A convergência destes três pilares de sustentação do discurso sobre
Educação como Direito Humano Fundamental nos autoriza a redefinir o próprio
conceito Direito à Educação dentro de estreitos limites: 1. É escolarização e não
Educação; 2. Está adstrita à capacidade de financiamento dos estados nacionais e
não às necessidades humanas e; 3. É rigidamente conformado pela Pedagogia
Escolar e pela Educação Escolar, desconsiderando todos os demais processos de
ensinagem e de aprendizagem.
Os estudos que chamo de tradicionais sobre Direito à Educação recorrem a
fontes forjadas no âmbito da cultura hegemônica acima delineada, ou seja, a
História, as Reformas Educacionais e a legislação. Ora, a História é, segundo Walter
Benjamin (1994, p. 223), sempre o ponto de vista dos vencedores, portanto, uma
visão elitista, unilateral e que interessa ao dominador. As Reformas Educacionais no
Brasil sempre foram no sentido de alinhar a Educação aos objetivos político-
ideológicos dos grupos que se alternam no poder e atender às demandas do capital
(MÉSZÁROS, 2005, p. 26-27). Da mesma forma, a lei é a expressão da correlação
de forças em determinado momento histórico, geralmente com a supremacia dos
grupos dominantes.
Logo, estudar o Direito à Educação sob esta matriz eurocêntrica pressupõe
admitir tanto a subjacência de uma ideologia dominante quanto limitações no
exercício do direito, que nada tem a ver com Justiça (BOBBIO, 1997, p.158.).
Estudar o Direito à Educação sob a perspectiva da Pedagogia Social significa
estudá-lo para além dos estreitos limites da Educação Escolar, analisando as
potencialidades que oferecem a Educação que “abrange os processos formativos
que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas
instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da
sociedade civil e nas manifestações culturais” (LDB, Art. 1º).
O limite legal e formal estabelecido pelo Estado brasileiro no exercício do
Direito à Educação está estatuído no parágrafo primeiro da mesma lei acima citada:
“Esta lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por
meio do ensino, em instituições próprias”.
Criada então a dicotomia Educação Formal x Educação não Formal é de se
perguntar: qual o lugar que ocupa a Educação dita não formal no Direito à
Educação? Simplesmente nenhum! As práticas de educação popular, social e
comunitária carecem de políticas públicas, de financiamento, de avaliação, de
política de formação de professores e são pejorativamente cognominadas não
formais, sendo ofertadas em espaços precários, na maioria das vezes por ONGs e
organizações populares, sociais e/ou comunitárias como se fosse uma educação
pobre para uma população pobre.
A esta concepção hegemônica de Educação, que Roger Dale (2004, p.425 )
denominou Cultura Educacional Mundial Comum (CEMC) emerge uma concepção
com pretensões contra-hegemônica por ele mesmo denominada Agenda Global
Estruturada para a Educação, (AGEE), fortemente ancorada nos movimentos
populares, sociais e comunitários, com maior visibilidade no Fórum Social Mundial e
no Fórum Mundial de Educação. E é no âmbito deste movimento de resistência que
situa-se a Pedagogia Social referenciada em Paulo Freire enquanto possibilidade de
proposta contra-hegemônica para a efetivação da Educação como política pública.
Objetivamente como nos posicionamos frente aos limites desse conceito
clássico de Educação? Para nós é evidente que os limites estão expressos na
própria lei e são resultados da correlação de forças, de um embate político que se
estabelece na discussão da lei. Podemos dizer que a Constituição Federal (CF 88),
a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
são mais apropriadamente colchas de retalhos nas quais predominam a visão de
mundo de um determinado grupo. As liberalidades inscritas nas leis são meras
concessões aos grupos sociais minoritários que participam do debate político, sem
que sejam assegurados os meios para sua efetivação.
É isso que vai fazer com que por vezes o texto da lei pareça ambíguo. Diante
da impossibilidade de ignorar as bandeiras de lutas de certos setores da sociedade
suas reivindicações são contempladas no texto da lei, o que não significa que o
Estado brasileiro irá disponibilizar os meios necessários para efetivação dessas
reivindicações. São as chamadas leis que foram feitas para não pegar. A vantagem
é que estas concessões acabam por institucionalizar uma ordem de direitos
fomentando uma arena política para o debate entre a sociedade civil, os partidos
políticos e os governos.
Este espaço não geográfico, mas político, de embates entre sociedade civil,
Estado e governo, é o espaço da negociação, das reivindicações e da politização
das discussões no sentido de aprimorar o conceito Direito à Educação.
Qual é o potencial de inclusão da Educação Social em uma perspectiva de
ampliação do Direito à Educação? Quantas são as ONGs que atuam na Educação
dita não formal? Quantos educadores atuam na Educação popular, social e
comunitária? Quem são esses educadores, que nível de formação possuem, quais
as condições de trabalho? Quantos alunos são atendidos? Qual o montante do
investimento?
Com esta dicotomia Educação Formal versus Educação não Formal o Brasil
escamoteia a função social que a escola pública cumpre e relega a oportunidade de
fazer uma Educação integral, integrada e integradora.
A marginalização da Educação não Escolar e a ignorância quanto à função
social da escola pública provoca uma grave distorção na avaliação da Educação
brasileira. Cada nível e modalidade de ensino possui um sistema próprio e/ou
integrado de avaliação com quesitos específicos tanto para a Pedagogia Escolar
quanto para a Educação Escolar, referenciadas nas competências lógico filosóficas
(Português e Redação) e lógico matemáticas (Matemática e Ciências). Estes
indicadores colocam a Educação brasileira atrás até mesmo de países em
desenvolvimento suscitando críticas e desesperança em todo o sistema de ensino.
Defendemos a tese de que a função social da escola precisa de indicadores
próprios de avaliação e que sua ampla divulgação certamente melhoraria
significativamente a percepção que o Estado, governos, gestores, professores, pais,
alunos e a sociedade em geral tem da Educação.
Omite-se o fato de que importantes ganhos sociais conquistados no Brasil e
alardeado mundo afora tem sido obtido não pelo mérito de políticas setoriais – que
quase não existem ou são incipientes -, mas tem sim via escola pública. A redução
de mortalidade infantil, por exemplo, é resultado de política de saneamento básico,
de melhoria das condições de alimentação e de habitação ou foram conquistadas
com as creches e com a merenda escolar? Onde é que se combate efetivamente a
prostituição infantil, o trabalho infantil e a exploração sexual de crianças e
adolescentes? Onde é que o Brasil consegue uma taxa superior a 90% de vacinação
em massa da população? Onde é que se ensina cidadania, respeito à diversidade,
ética, Educação Ambiental, Educação Sexual e cuidados básicos de higiene e
saúde? Todo o processo eleitoral brasileiro é o que é devido à capilaridade e
exposição quem tem a escola pública e não por méritos de partidos políticos ou pela
eficiência da Justiça Eleitoral.
Esse é o trabalho invisível da escola, mas pelo fato de não serem atribuições
da carreira do magistério ele não é contabilizado na conta da escola e é apresentado
à sociedade como realizações políticas de governos e partidos.
Há um vasto e inexplorado campo teórico e conceitual que permite a
expansão do Direito à Educação para além dessa configuração clássica que hoje
temos: é a nova fronteira do Direito à Educação, cuja transposição requer a
superação da dicotomia Educação Formal e Não Formal, a conciliação entre
Pedagogia Escolar e Pedagogia Social e a integração entre Educação Escolar e
Educação Social.

FUNDAMENTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS DA PEDAGOGIA SOCIAL


Pedagogia Social é a teoria que fundamenta a prática da Educação Social. No
Brasil a Educação Social abrange as práticas indevidamente rotuladas como não
formal.
Pedagogia Social é análoga à Pedagogia Escolar, assim como Educação
Social é análoga à Educação Escolar. Não existem entre elas contradições nem
disputas, pois são complementares quando se pensa em uma educação integral que
não separe o mundo da vida e o mundo da escola.
ajuda a humanizar os ambientes não escolares. As categorias também
precisam ser relativizadas em relação ao lócus que temos e as pessoas que
trabalhamos. Não se trabalha com o conceito inclusão/exclusão, ninguém está
excluído de nada, pode estar no momento em condição de marginalização.
Para ser ciência a Pedagogia Social precisa:
• Ter área própria de conhecimento – a Educação Social;
• Ter estatuto epistemológico – é uma das Ciências da Educação;
• Ser uma Teoria Geral da Educação;
• Ter campo distinto de atuação – a Educação Social;
• Utilizar-se de espaços não-escolares - Educação Social;
• Ter objeto de estudo próprio – a educabilidade social do sujeito;
• Utilizar os métodos universais de pesquisa – observação, descrição,
comparação, análise e síntese;
• Ter métodos e técnicas próprias de trabalho – a ação sociopedagógica.
• Poder fazer a síntese de todos os métodos;

Nessa perspectiva, os objetivos da Pedagogia Social são:


• Ser um projeto de sociedade em que todos os espaços e todas as relações
sejam essencialmente pedagógicas;
• Constituir-se como parte entre a Educação Escolar formal e a Educação não
formal;
• Elevar-se ao status de política pública;
• Constituir-se em componente formativo para as demais profissões.

As áreas de domínio da Pedagogia Social são:


Domínio sociocultural
O domínio sociocultural tem como áreas de conhecimento as manifestações
do espírito humano expressas por meio dos sentidos, tais como a Arte, a Cultura, a
Religião, a música, a dança e o Esporte em suas múltiplas manifestações e
modalidades. Inclui a Culinária e a Saúde. Pelas características destas
manifestações por suas características, locus privilegiados para a intervenção sócio
cultural todos os espaços públicos e privados onde elas possam acontecer.
A intervenção neste domínio tem por objetivo a recuperação de suas
dimensões históricas, culturais e políticas, com vistas a dotá-las de sentido para o
público alvo desta modalidade de ação.
Domínio sociopedagógico
O domínio sociopedagógico tem como áreas de conhecimento a Infância,
Adolescência, Juventude e Terceira Idade. A intervenção sociopedagógica neste
domínio tem como objetivo principal o desenvolvimento de habilidades e
competências sociais que permitam às pessoas a ruptura e superação das
condições de marginalidade, violência e pobreza que caracterizam sua exclusão
social.
Por suas características, são locus privilegiado para a ação sociopedagógica
os abrigos, as unidades de internação de adolescentes autores de ato infracional,
asilos para idosos, instituições psiquiátricas e unidades prisionais, mas também
considera a Rua, a família e a empresa.
Domínio sociopolítico
O domínio sociopolítico tem como áreas de conhecimento os processos
sociais e políticos, expressos, por exemplo, na forma de participação, protagonismo,
associativismo, cooperativismo, empreendedorismo, geração de renda e gestão
social. A ação sociopolítica tem como objetivo o desenvolvimento de habilidades e
competências para qualificar a participação na vida social, política e econômica da
comunidade onde o sujeito está inserido ou dos espaços onde a pessoa queira estar
como sujeito.
Por suas características, a ação sociopolítica tem como locus privilegiado os
grêmios estudantis, associações de pais e mestres (APM), conselhos de escola,
associações de moradores, conselhos de direitos, movimentos sociais, organizações
não-governamentais, sindicados, partidos políticos e as políticas públicas e sociais.

Os princípios da Pedagogia Social são:


• Ter a Educação como a própria essência das relações do ser humano,
consigo mesmo, com o outro, com a vida e com o meio ambiente;
• Educação como processo de formação integral do ser humano e que ocorre
em todos os espaços e em todas as relações;
• a Pedagogia Social não admite a fragmentação epistemológica que também
fragmenta o ser humano e as ações dele e para ele (as políticas);
• A Pedagogia Social não se subordina a determinações político-ideológicas,
doutrinárias ou dogmáticas;
• História, Cultura, Direito e contexto social são categorias orientadoras das
ações pedagógico sociais.

PEDAGOGIA SOCIAL COMO A TEORIA GERAL DA EDUCAÇÃO SOCIAL


A concepção de uma Pedagogia Social genuinamente brasileira
fundamentada no pensamento pedagógico de Paulo Freire representa uma
importante contribuição para a pesquisa, análise e reflexão das ricas e diversificadas
práticas de educação popular, comunitária e social oriundas dos movimentos sociais
e populares, por vezes fragilizadas por falta de fundamentação teórica,
marginalizada pela academia, desprovida de instâncias de formação e com
produção completamente fragmentada sem nenhuma organicidade teórica ou
conceitual.
Dizendo de outra forma, Pedagogia Social é o referencial teórico que
fundamenta, dá organicidade e cientificidade às práticas de Educação Popular,
social e comunitária forjadas nos movimentos populares, sociais e comunitários no
Brasil. Adotada como Teoria Geral da Educação Social (que serve também à
Educação Popular e à Educação Comunitária), sua vocação primordial é tirar estas
práticas educativas da posição marginal a que foram relegadas, tanto pela academia
quanto pela legislação e pelas sucessivas políticas educacionais.
O estatuto epistemológico da Pedagogia Social como área de conhecimentos
das Ciências da Educação foi consolidado pelas práticas socioeducativas
constituídas em países como Alemanha, França, Espanha, Itália, Portugal, Finlândia,
Suíça, Suécia, Áustria, Argentina, Chile e Uruguai e em todos estes países se
reconhece a centralidade do pensamento de Paulo Freire como aporte teórico e
metodológico para o trabalho do educador que atua na intersecção entre Educação
e Sociedade.
A Pedagogia Social ora em construção no Brasil tem, portanto, a cara do
brasileiro Paulo Freire. Embora ele mesmo - reconhecemos - não tenha utilizado
essa nomenclatura, toda sua obra é orientada para um único propósito: desenvolver
no ser humano a vocação de ser mais, tendo como pressupostos teóricos e práticos
para a transformação social a liberdade, a autonomia, a emancipação, a consciência
de si, do outro e do seu lugar no mundo.
No Brasil, as resistências à teoria do conhecimento formulada por Paulo
Freire não se deve à complexidade do seu pensamento, mas sim às estratégias de
luta social nele enunciadas e às possibilidades - assustadoras - de que o ser
humano - inclusive o opressor - compreendendo as causas de seus infortúnios, da
violência e da miséria, se liberte das estruturas econômicas, políticas, sociais e
culturais que o oprimem (FREIRE, 1977, p. 16.).
Qualquer elite ciosa dos seus instrumentos de dominação, sejam eles de
natureza cultural, política, econômica, militar, religiosa, social ou acadêmica, lutou,
luta e lutará para manter tais instrumentos de dominação ainda que seja por meio da
alienação, da passividade, da negligência ou da omissão.
No livro A ordem do discurso Michel Foucault assevera com propriedade que

em toda sociedade a produção do discurso é controlada selecionada,


organizada e redistribuída por certo número de procedimento que tem
por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seus
acontecimentos aleatórios, esquivar sua pesada e temível
materialidade e isso acontece porque (...) o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo por que e pelo que se luta, o poder do qual
queremos nos apodera (1996, p. 8-10).

A Pedagogia Social ora em construção no Brasil se serve do vasto vernáculo


constituído no âmbito da Educação Popular, social e comunitária visando, sobretudo,
à recuperação do significado histórico, político, social e cultural dos quais foram
destituídas estas práticas educativas quando obnubladas pelo conceito amorfo de
Educação não-formal5.

5
Vide as Notas Introdutórias do livro Pedagogia Social, Expressão e Arte Editora, 2009.
Enquanto Teoria Geral da Educação Social a Pedagogia Social não pode se
furtar ao desafio de recontextualizar as doutrinas, teorias, constructos e conceitos
que fundamentam as práticas de Educação Escolar no Brasil, especialmente
aquelas que se prestam à perpetuação das relações de dominação e de opressão.
Além disso, deve-se considerar que a Pedagogia Social possui elevada vocação
para promover a liberdade, a emancipação e a autonomia do sujeito, rompendo
ciclos de marginalização e rupturas na relação opressor/oprimido, logo, sua práxis
precisa desmistificar a palavra do opressor, pois ensinar a ler as palavras ditas e
ditadas é uma forma de mistifìcar as consciências, despersonalizando-as na
repetição – é a técnica da propaganda massificadora. Aprender a dizer a sua palavra
é toda a Pedagogia, e também toda a Antropologia (FREIRE, 1970, p. 10).
A libertação do oprimido, segundo Paulo Freire (idem) não pode ser unilateral,
pois este processo implica na libertação do opressor também (FREIRE, 1987),
portanto, a Pedagogia Social tem em vista a libertação, a emancipação e a
capacidade de autodeterminação do sujeito para participação na vida coletiva.
Preferimos a categoria oprimido/opressor e não explorado/explorador ou
capital/trabalho , pois ela é suficientemente dialética e relativa: ninguém é oprimido o
tempo todo e nem é opressor o tempo todo, depende do plano relacional em que as
pessoas se colocam, portanto não é uma relação estática e sim dinâmica.
As categorias próprias da Pedagogia Social incluem o universo da
marginalidade social, mas não se limitam a ele. Entender a Pedagogia Social como
um projeto da sociedade significa que defendemos a ideia de que Educação se faz
ao longo da vida, em todos os espaços e que todos são potencialmente educadores.
Não obstante sua vocação emancipatória a Pedagogia Social não se inscreve
dentro das práticas ideologicamente rotuladas como revolucionárias. A natureza da
transformação que se quer não é a substituição de uma classe opressora por outra,
mas transformação na qualidade das relações que são estabelecidas. A própria
tomada de consciência em relação aos papéis de oprimido/opressor já é parte do
processo de libertação, sobretudo para que os mesmos sejam exercidos de forma
consciente.
A ampliação do Direito à Educação sob a perspectiva da Pedagogia Social,
leva em consideração, dentre outras coisas:
• A inclusão na política educacional dos novos sujeitos de direitos, emergidos
pela Constituição Federal de 1988;
• A concepção de que Educação se faz ao longo de toda a vida e não em faixas
etárias pré-determinadas;
• A concepção de que todos os espaços, públicos e privados, são
potencialmente educativos, inclusive a escola e a sala de aulas;
• A aceitação de que a legislação social brasileira (Estatuto da Criança e do
Adolescente, Código de Defesa do Consumidor, Estatuto do Idoso, Estatuto da
Igualdade Racial, Lei de Execução Penal, Lei Maria da Penha, etc.) é instrumento de
Educação Social;
• A compreensão de que a Educação de Infância se faz, preferencialmente, em
espaços públicos e não no ambiente privado e doméstico;
• A educabilidade social do sujeito nos novos espaços de socialização;
• Implantação da Escola de Tempo Integral, mas que seja integrada e
integradora;
• Reconhecimento da função social da escola pública;
• Legitimar a função educativa das ONGs, dos movimentos sociais e das
comunidades organizadas;
• Tornar educativos os programas e projetos sociais de transferência de renda;
• Eliminar a precariedade do trabalho social;
• Dar identidade ao educador social por meio da regulamentação da profissão;
• Dotar os órgãos e serviços públicos dos profissionais capazes de exercer as
atribuições previstas em lei;
• Dar formação pedagógica aos agentes da lei e administradores públicos;
• Realizar a mediação pedagógica dos conflitos sociais.

MATRIZ FAMILIAR COMO FUNDAMENTO DA SOCIEDADE BRASILEIRA


Os estudos de demografia histórica (BACELLAR, SCOTT, BASSANEZI, 2005)
demonstram que a estrutura social brasileira foi concebida a partir de uma matriz
que tem a família nuclear como célula básica de organização da sociedade.
Também de origem ocidental e cristã, adotou como paradigma o estereótipo do
homem branco, cristão, proprietário e, letrado, estando a mulher e os filhos
subordinados a este paradigma para o processo de legitimação social. Os arranjos
sociofamiliares e as pessoas que não se enquadravam nesse padrão foram
relegados à marginalização social, marcadas por rótulos, estigmas e preconceitos
que afetaram e ainda afetam famílias, mulheres e filhos (SILVA, 2004).
No trato social houve duas maneiras de se olhar essa população e também
de lidar com ela: a medicalização e a criminalização dos comportamentos. A
medicalização dos comportamentos consistia em dar explicações médicas para os
distúrbios comportamentais quando estes ocorriam em família cuja forma de
organização era aceita socialmente, tinha as bênçãos da Igreja e a proteção jurídica
do Estado: hiperatividade, déficit de atenção, stress, responsabilidade moral eram
alegadas como justificativas para malvadezas, violências e crimes, nada que não se
resolvesse com a intervenção do padre, do médico, do psicólogo ou do terapeuta. O
que não se queria era a intervenção do Estado e de seus agentes em um arranjo
familiar que se supunha coeso, firmado sobre um princípio de fé e com os meios
para resolução interna de seus próprios conflitos.
Já na perspectiva da criminalização dos comportamentos, os integrantes de
famílias rotuladas como desestruturadas, mães solteiras e filhos gerados fora da
relação de casamento não contavam nem com a aceitação social, nem com a
simpatia da Igreja e muito menos com a proteção jurídica do Estado, justificando-se
para a elas a intervenção, especialmente por meio da polícia e da justiça.
A mudança desse quadro só foi possível a partir da Constituição Federal de
1988 e mais especificamente pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990,
mas o estigma, o preconceito e a discriminação gerados ainda afetam milhares de
família, de homens, mulheres e crianças no Brasil, constituindo-se este um dos
grandes desafios a ser superado por uma educação que respeite as diferenças.
Em um país onde o poder institucionalizado não faz concessões, onde o
direito só é conquistado mediante a organização da sociedade civil e onde ocorre a
apropriação da riqueza nacional por uma minoria, a Educação cumpre um papel
estratégico, seja para a dominação seja para a libertação.
Vivemos em uma democracia tutelada, onde os direitos são entendidos como
favores e a cidadania um processo de estratificação social que acentua a
desigualdade social. Segundo T. H. Marshall (1967), cidadania é um status atribuído
pela sociedade ao indivíduo e comporta três tipos de direitos: civis, sociais e
políticos. Na idéia contratualista de Marshall a concepção de cidadania significa o
retorno da lógica do bem estar social – Wefare State – e neste sentido o bom
cidadão – aquele a quem a sociedade reconhece direitos e com os quais o Estado
tem obrigações – é o contribuinte, aquele que contribui para a formação da riqueza
coletiva.
Castel (2008, p. 303) também chamou atenção para o fato de que “O governo
não deve nada a quem não o serve. O pobre não tem direito senão à comiseração
geral”.
Uma das expressões utilizadas para reforçar esse pensamento era: “Governa-
se mal, quando se governa demais” e que a “beneficência também é uma espécie
de tutela”, para o autor tutela, proteção, capacidades ou autoridade social, são
noções fundadoras de um plano de governabilidade referente às classes inferiores,
direcionado principalmente aos intitulados vagabundos, definidos por um jurista
Lionês como:

[...] pessoas ociosas, preguiçosas, pessoas que não pertencem a um


senhor, pessoas abandonadas, pessoas sem domicílio, ofício e
ocupação, [...] pessoas que só são úteis como números, sunt pondus
inutilae terrae “são o peso inútil da terra” (idem, pp. 120-121).

A educabilidade das instituições, dos governos e do Estado também é parte


integrante da Educação Social e por esta razão é importante compreender o
processo de transformação dos padrões de famílias, a evolução das instituições e os
paradigmas que presidem a relação do Estado com o indivíduo e com a sociedade
civil.
Como um modelo pedagógico que prioriza trabalhar a natureza e a qualidade
das relações humanas e sociais, inclusive com a terra, o meio ambiente e os bens
intangíveis, a Pedagogia Social não se ocupa diretamente da transformação das
condições materiais de existência porque entende que estas devam ser pautadas
pela qualidade das relações entre cidadãos livres e cidadania é incompatível com
qualquer presunção de renúncia da liberdade.
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