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Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS:


PRODUÇÃO CULTURAL / DETERMINAÇÃO NORMATIVA

Aura Helena Ramos (UERJ)


Guilherme Nascimento Pereira (UERJ)

Resumo

O estudo analisa o processo de constituição do discurso sobre educação em direitos


humanos, procurando identificar os sentidos que penetram textos curriculares voltados à
normatização da área. Para isso, analisamos o texto das Diretrizes e Nacionais para a
Educação em Direitos Humanos de 2012, e sua repercussão em cursos de formação de
professores da educação básica, posto tratar-se de um documento normativo que cria
demanda para a Universidade. Apoia-se na abordagem pós-crítica da constituição do
social desenvolvida por Chantall Mouffe e Ernesto Laclau, a partir da qual pensar em
uma definição para direitos humanos ou querer apreender um traço comum de identidade
de sujeitos posicionados em função da defesa de tais direitos, será uma tarefa sempre
inacabada e pouco produtiva, uma vez que significados e identidades são vistos como
atribuições estabelecidas provisoriamente no âmbito de processos de associações e
disputas contingentes. Pensamos currículo de educação em direitos humanos com aporte
nos estudos de Elizabeth Macedo que permitem ressituar o lugar da cultura na
constituição do currículo escolar e, ainda, da perspectiva de A.H.Ramos, cujos estudos
propõem uma abordagem de educação em direitos humanos como canal de expressão do
dissenso e espaço de negociação da diferença. Foram considerados textos voltados à
orientação curricular na área da Educação em Direitos humanos e extratos de fórum de
discussão em sala de aula virtual de curso de graduação em pedagogia na modalidade
Educação a Distância, desenhando um campo empírico aberto a diferentes contextos de
produção curricular. Compreendendo diferença não como objeto de reconhecimento, mas
como prática político-discursiva, e currículo como arena de produção cultural,
concluímos que, ao trazer a educação em direitos humanos para a formação de professores
o desafio que está posto é o de superar binarismos que polarizam a Educação em Direitos
Humanos ou como objeto de ensino ou como princípio pedagógico.

Palavras-chave: Educação em Direitos Humanos – Currículo – Diferença

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EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: PRODUÇÃO CULTURAL /


DETERMINAÇÃO NORMATIVA

Neste estudo abordamos o processo de constituição do currículo de educação em


direitos humanos. Operando com uma compreensão de currículo como enunciação
cultural e de cultura como produção discursiva, queremos contribuir para fomentar o
debate deslocando razões hegemonizadas quanto ao significado de direitos humanos
inscritos no contexto histórico das décadas de 60, 70 e 80 do século passado e que
exercem forte influência sobre as políticas curriculares traçadas no campo da educação.
Nesse período as ditaduras militares instaladas na América Latina constituíram-se em
condição de formação de frentes de resistência e luta contra o cerceamento das liberdades
políticas, demanda que aglutinou grupos de diferentes matizes. É no âmbito dessa
conjuntura que, a partir de meados dos anos 80, o emergente discurso sobre direitos
humanos ganha força e significado, demandando processos educativos voltados a
contribuir para assegurar as conquistas democráticas ainda em fase de consolidação.
Ganha expressão, então, o debate sobre EDH (educação em direitos humanos), que tem
seu marco inicial em 1980 (CANDAU, 2000; SILVA, 2000; MORGADO, 2001;
SACAVINO, 2008). Nesse quadro, como observa RAMOS (2011a), a significação que
emerge com força sobre EDH, vem associada:

[...]à narrativa crítica focada nos fragmentos transformação social, resistência,


conscientização, opressão, libertação, exploração, o que é adequado ao sentido
conferido à meta, função e finalidade da escola como perspectivas nas quais
tal discurso tem lugar: a meta de formar o cidadão – o sujeito de transformação
social; a função de difundir a cultura letrada – tomada aqui como instrumento
de criticidade e conscientização; a finalidade de promover a igualdade.
(Ramos, 2011a, p.101)

Na primeira metade da década de 1980, a EDH tinha um cunho não formal,


resultando de ações promovidas por sindicatos, associações profissionais, associações
religiosas, partidos políticos, entidades culturais; organizações de bairros etc. A denúncia
de violações de direitos e o acionamento de mecanismos de proteção eram a tônica das
iniciativas no campo. As iniciativas educacionais se intensificam, a partir de 1985, quando
profissionais de diferentes áreas participaram do II Curso Interdisciplinar de Direitos
Humanos, realizado pelo IIDH-Instituto Interamericano de Direitos Humanos, na Costa
Rica, o que teve como consequência a criação de Núcleos de Direitos Humanos em
diferentes pontos do país, possibilitando uma ação de educação em direitos humanos mais

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institucionalizada e destacando o papel da extensão universitária como propulsora da EDH.


Contudo, ainda que cada vez mais uma intencionalidade educativa se evidencie, as
iniciativas de educação desenvolvidas ainda não têm significativa penetração no discurso
pedagógico. Analisando o processo de inserção da temática dos direitos humanos na
escola, RAMOS (2011a) afirma que, no período:

as proposições de Educação em Direitos Humanos traziam a marca do discurso


libertário, emancipatório, vinculadas aos movimentos de educação popular e
de defesa dos direitos humanos que se articulavam em torno de denúncia das
violações e investimento na promoção de ações de proteção e defesa dos
direitos humanos. (RAMOS, 2011a, p.96)

A partir de 1990, entram em curso profundas transformações no quadro político


nacional, com o restabelecimento efetivo do estado de direito e a
conquista/aprofundamento dos instrumentos legais de proteção dos direitos humanos. No
âmbito de tais mudanças, a promoção da Educação em Direitos Humanos passa a ser
assumida também pelo poder público, reposicionando não apenas as estratégias políticas
de intervenção, mas também as questões identificadas como pertinentes à área. Questões
que evidenciam outras marcas de dominação – étnicas, raciais, religiosas, de gênero, de
orientação sexual etc. – passam a integrar o debate posto e novas identidades políticas
constituem e articulam significados em defesa dos direitos humanos entendendo esse
como ponto de convergência de questões relacionadas à convivência com a diferença.

Não estamos descrevendo uma evolução linear, mas procurando identificar as


demandas que configuram o processo de disputa e negociação em torno da significação
do tema. Analisando as múltiplas definições para Educação em Direitos Humanos, Vera
Candau (2009) pondera que isso se justifica pela coexistência da inspiração de diferentes
marcos político-ideológicos de referência. A autora menciona um artigo de Nancy
Flowers, intitulado “Como definir a educação em Direitos Humanos - uma resposta
complexa a uma pergunta simples”, no qual é relatado um fato que, pelo seu poder
ilustrativo, transcrevemos a seguir:
...em janeiro de 2002, Shulamith Koenig da organização Pessoas
comprometidas com a Década para a Educação em Direitos Humanos
(PDHRE) publicou uma definição de educação para os direitos humanos na
lista de discussão da Associação de Educação para os Direitos Humanos
(www.hrea.org) e solicitou reações. Estabeleceu-se um debate eletrônico
muito vivo. Esta lista de discussão possui mais de três mil educadores para os
direitos humanos ao redor do mundo. [...] Entretanto, apesar desta discussão
ter ajudado a refinar questões vitais sobre educação para os direitos
humanos[...], nenhuma definição de consenso emergiu dela. (FLOWERS apud
CANDAU, 2009, p. 68)

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Vera Candau lembra que mais do que revelar diferentes abordagens, é preciso considerar
que a polissemia do termo gera diferentes concepções quanto às finalidades da educação
em direitos humanos, resultando na promoção de processos que enfatizam temáticas e
estratégias pedagógicas distintas (Candau, 2009), o que, como descreve Ramos (2011a)
configura modos distintos de associar os termos da expressão.

O termo educação como um direito humano sublinha a ideia de educação como


um bem universal e inalienável, o que aprofunda seu reconhecimento legal
como direito social que deve ser garantido pelo Estado.
Educação para os direitos humanos remete a uma finalidade da ação
educativa. Implica a compreensão de que, ao implementar uma educação para
os direitos humanos, está-se investindo em determinado horizonte social, uma
visão prospectiva que parte da educação mas avança para além dela, trazendo
para o centro uma dimensão filosófica. O polo direitos humanos do binômio é
privilegiado e a educação é uma via para que se alcancem objetivos sociais
mais amplos, relativos a igualdade, democracia etc.
A expressão Educação em Direitos Humanos indica a assunção dos princípios
dos direitos humanos como um pressuposto, um eixo norteador das práticas
educativas. Ganha centralidade o polo educação do binômio, ressaltando-se
para o termo uma dimensão propriamente pedagógica. (RAMOS, 2011a, p.92)

O que consideramos importante destacar, é que esta não é nem uma questão
meramente semântica nem a percepção de uma diversidade de nomenclaturas indicativas
de ênfase posta em distintos aspectos do tema. Quando falamos em processo de
significação, estamos trazendo para o centro da discussão a dimensão de disputa
hegemônica, que envolve poder de subjugação e silenciamento do outro e de enunciação
do mesmo como modelo universal. Em outras palavras, por meio de práticas discursivas,
são universalizados modelos com poder de se enunciar como portadores de uma
humanidade superior. Analisando o caráter universal atribuído aos Direitos Humanos,
Ramos (2011a) examina a Declaração Universal dos Direitos Humanos e afirma ser
indiscutível reconhecer sua validade e importância em relação ao momento histórico em
que o documento foi concebido, tendo se tornado um relevante instrumento de afirmação
do desejo de paz com a convicção de que a paz é uma produção possível, desde que em
função dela se assumam compromissos traduzidos por ações efetivas. (RAMOS, 2011a,
p.39). Mas pondera que...
...um a um, todos os artigos abordam questões sensíveis às sociedades
ocidentais e dão a elas tratamento segundo a ética moderna produzida por essas
sociedades. Não são cogitadas ou consideradas outras possibilidades de
entender família – que não passam pelo casamento monogâmico; trabalho –
não enquadradas nos moldes produtivos fundados pelo capitalismo; e
organização política e social – que desconhecem o imperativo do voto da
democracia representativa, presentes, por exemplo, nas sociedades africanas,
ameríndias, orientais, indianas. (RAMOS, 2011a, p.39)

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Entendemos essa como uma questão central, polêmica, tensa e não resolvida do campo
dos Direitos Humanos e é a partir dela que nos aproximamos da temática da Educação
em Direitos Humanos.

Ao abordar “humano” como algo que se insere em um processo de significação


marcado por relações assimétricas de poder, nossa pergunta deixa de ser formulada em
termos de “o que é educação em direitos humanos?”, para se voltar à compreensão do
modo como o discurso da educação em direitos humanos se constrói, o que implica nos
perguntarmos sobre que significados estão em disputa e quais os canais de expressão da
diferença (expressão de significados outros) estão disponíveis; o que é enunciado e o que
é silenciado em um processo discursivo no âmbito do qual disputam diferentes
significados de educação, de direito, de humano, de direitos humanos...

Analisadas segundo a compreensão de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2004)


sobre a dinâmica de constituição do social, situamos as idéias de “direito”, de “humano”
ou de “direitos humanos”, como algo que emerge de processos de significação que em
determinados momentos une diferentes grupos em função de demandas comuns não
atendidas. O que esses grupos partilham não é uma identidade original, mas algo externo,
contingente e provisório que, como tal, será permanentemente reconfigurado, produzindo
novos arranjos de identificação no âmbito de disputas por significação que não se
esgotam. Por essa perspectiva, pensar em uma definição para direitos humanos ou querer
apreender um traço comum de identidade de sujeitos posicionados em função da defesa
de tais direitos, será uma tarefa sempre inacabada e pouco produtiva, uma vez que
significados e identidades são vistos como atribuições estabelecidas provisoriamente em
processos de associações e disputas contingentes.

Compreendido como algo dado por meio de articulações políticas que instituem
sentidos provisórios, vemos que é a luta por demandas específicas (por direitos) que
define a identidade sempre provisória dos sujeitos indicando o que é humano. – o que é
partilhado não é uma identidade original de humano, mas uma demanda comum não
atendida.

Assim, com apoio na abordagem pós-crítica da constituição do social


desenvolvida por Chantall Mouffe e Ernesto Laclau, concluímos que pensar em uma
definição para direitos humanos ou querer apreender um traço comum de identidade de
sujeitos posicionados em função da defesa de tais direitos, será uma tarefa sempre
inacabada e pouco produtiva, uma vez que significados e identidades são vistos como

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atribuições estabelecidas provisoriamente no âmbito de processos de associações e


disputas contingentes. Operando com essa perspectiva teórica, o estudo ocupa-se em
analisar o processo de constituição do discurso sobre educação em direitos humanos,
procurando identificar os sentidos que, em diferentes contextos de produção curricular,
temas reconhecidos como pertinentes a direitos humanos são significados. Mais
especificamente, busca-se compreender fragmentos de discurso que se destacam e o modo
como são significados, para identificar de que forma a diferença se articula nos espaços
curriculares voltados a formação de professores em educação em direitos humanos.

Pensamos currículo de educação em direitos humanos com aporte nos estudos de


Elizabeth Macedo que permitem ressituar o lugar da cultura na constituição do currículo
escolar. Abordando currículo como processo não linear de produção de significados,
Macedo (2002; 2004; 2006) abre espaço para uma leitura do campo orientada pela
perspectiva discursiva. A autora assume currículo como produção cultural que enuncia
possibilidades para além das determinações emanadas do Estado, o que redimensiona o
poder que é conferido à esfera governamental na definição de políticas na área, e sugere
que, para avançarmos na compreensão dos fenômenos curriculares, é preciso investir na
compreensão dos processos de negociação e articulação que se dão em múltiplos
contextos. Nesse sentido, é importante considerar que as diferentes arenas de negociação
discursiva instituintes dos sentidos curriculares não são instâncias estanques, isoladas,
que possam ser apreendidas como uma totalidade. São, sim, arenas de emersão de
demandas e articulação hegemônica, produtoras de significados, espaços heterogêneos e
dinâmicos no interior dos quais a diferença está presente, negocia, hibridiza e institui
consensos provisórios que não as apaga – consensos conflituosos –, enunciando sentidos
para as demandas comuns (como educação de qualidade, educação democrática, direitos
humanos, Educação em Direitos Humanos etc.) em função das quais as identidades
provisórias são instituídas pela equivalência dos significados que enunciam.

Em nossos estudos, temos identificado uma forte penetração do discurso crítico


no processo de significação da área da Educação em Direitos Humanos, alimentada por
uma disputa discursiva sobre cultura, identidade e diferença. Vemos a prevalência de
um enfoque apoiado na significação da diferença como diversidade e pluralidade,
supondo educação em direitos humanos como espaço de mediação dos conflitos gerados
pela convivência de tal diversidade/pluralidade, evocada pela construção de consensos
que permitiriam a convivência pacífica com o outro.

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Afirmamos nossa afinidade quanto aos princípios ético-políticos afirmados pelas


abordagens críticas, mas interrogamos suas referências relativas à identidade, política e
hegemonia, argumentando que a ideia de “diversidade” remete a uma perspectiva de
justaposição de múltiplas identidades culturais, mantendo traços etnocêntricos em sua
constituição. Adotamos uma noção de diferença a partir da compreensão de enunciação
cultural que, tomada como processo de significação, não remete a um antes, mas é
articulada, de modo contingente e indeterminado, num espaço discursivo de luta política.

Admitimos direitos humanos como eixo articulador da diferença no processo


agonístico de disputa hegemônica exercido no campo político de uma democracia radical,
(MOUFFE, 2000 e 2006). Na perspectiva que assumimos, educação em direitos humanos
constitui-se, como arena do dissenso e não é mediação, mas articulação de relações
contingentes em que os sentidos precários vão sendo instituídos pela negociação da
diferença – dinâmica descrita por Laclau e Mouffe (2004) como prática articulatória.
Entendendo mediação como estratégia política que parte da afirmação de um estado
futuro ao qual se deseja chegar, um estado afirmado de antemão como representante da
justiça e da democracia (de uma determinada ideia de justiça e de democracia),
questionamos essa como prática que possa corresponder a experiência de educação em
direitos humanos tal qual a entendemos, visto que, se já há um lugar ao qual se nomeia
como democrático e tudo o que se precisa é encontrar uma forma dialogada de se chegar
a exatamente ele, então o que há é um arremedo de diálogo e de democracia, posto que
tudo já está previamente estabelecido. Optamos por admitir o diálogo como instrumento
de articulação da diferença, diálogo conflituoso como prática produtiva, uma vez que não
se ocupa em converter aquele com quem dialoga a uma condição supostamente superior,
posto que supostamente completa, nem mesmo em produzir no encontro dialogado um
acordo que fixe posição de sujeitos unidos por uma identidade entendida como original.
(RAMOS, 2011a, p.107). Concluímos, assim, por abordar educação em direitos humanos
como expressão do dissenso e espaço de negociação da diferença.
De acordo com nossos estudos (RAMOS, 2011a, 2011b, 2010), na última década
presenciamos no país um importante esforço em torno do debate na área com vistas à
normatização curricular – o que, tem mobilizado consideravelmente diferentes esferas do
poder público, universidade e sociedade civil organizada. No presente estudo,
consideramos pertinente discutir como as políticas vão se configurando, o que fazemos
analisando o texto das Diretrizes e Nacionais para a Educação em Direitos Humanos de

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2012, e sua repercussão em cursos de formação de professores da educação básica, posto


que trata-se de um documento normativo que cria demanda para a Universidade ao dispor
que:
Art. 8º A Educação em Direitos Humanos deverá orientar a formação
inicial continuada de todos/as os/as profissionais da educação, sendo
componente curricular obrigatório nos cursos destinados a esses
profissionais.
Art. 9º A Educação em Direitos Humanos deverá estar presente na
formação inicial e continuada de todos/as os/as profissionais das
diferentes áreas do conhecimento.

Aqui claramente a ideia de fixação da Educação em Direitos Humanos a partir de


um “conteúdo dado e disciplinarizado” aparece de forma explícita. Contudo, essa
proposição precisa se articular com projetos de formação na Universidade e aí nos cabe
indagar: o que orienta a formação de professores? Que sentidos damos a ela?
A essa pergunta respondemos com a intenção de posicionar a formação como ação
política que considere:
El consenso sobre los derechos Del hombre y los princípios de
igualdade y de libertad es necessário, sin duda, pero no se lo puede
separar de una confrontación sobre La interpretación de esos princípios.
Hay muchas interpretaciones posibles y niguna de ellas puede
presentarse como la única correcta. Precisamente, La confrontación
sobre las diferentes significaciones que se ha de atribuir a los princípios
democráticos y a las instituciones y las prácticas en las que se concreten
es lo que constituye El eje central del combate político entre
adversários, en el que cada uno reconoce La imposibilidad de que el
processo agonístico llegue alguna vez a su fin, pues eso equivaldría a
alcanzar La solución definitiva y racional. (Mouffe, 1999, p.19)

Ou seja, há de se investir em outra possibilidade de articulação entre


universalismo/particularismo, que aqui defendemos como perspectiva híbrida, de caráter
discursivo – como disputa por significação – no lugar da fronteira cambiante das culturas.
O que se observa a partir das Diretrizes Nacionais Para a Educação em Direitos
Humanos (DNEDH) é o embate de forças que dotam de sentidos as práticas que
pretendem hegemonizar, de forma ambivalente, a criação de demandas e, ao mesmo
tempo, a resposta à demandas já criadas de discussão, a partir da emergência da
preocupação com o múltiplo, o outro, o diferente. O discurso que se constitui a partir daí,
é um hibrido produzido no encontro de diferentes matizes do pensamento moderno que,
seja numa perspectiva liberal ou crítica, enuncia a universalidade dos seus temas, destaca
a igualdade como sua expressão basilar e a convivência tolerante como horizonte de
sentido dos direitos humanos.

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Esse é um texto que resulta de uma intervenção do poder público que expressa
uma política articulada em função do controle do currículo através de ações em diferentes
áreas, destacando-se tanto a promoção de processos normativos, quanto o investimento
em processos de formação de educadores. Em ambos os casos, a universidade ocupa
lugar de destaque, seja na expressividade da participação dos membros acadêmicos na
constituição da comunidade política de formulação dos textos curriculares (RAMOS,
2011a), seja no direto envolvimento e protagonismo dessa instituição em ações de
formação na área. A normatização curricular da área que a publicação das Diretrizes
promove, acentua a demanda posta para a universidade que, na condição de instância
privilegiada de formação inicial de educadores, assume a responsabilidade de atender, em
seus currículos de licenciatura e pedagogia, as demandas expressas nas diretrizes
propostas no campo da educação em direitos humanos. Reiteramos, contudo, que tais
demandas não advêm do documento em si, mas são produzidas em processos de disputa
hegemônica que se dá em múltiplos contextos e para as quais a universidade vem
elaborando diferentes respostas.
Levando em conta a força da organização disciplinar dos currículos acadêmicos,
em levantamento exploratório realizado em nossos estudos sobre o tema1 procuramos
identificar como a temática dos direitos humanos aparece nas grades curriculares vigentes
das Faculdades de Educação das universidades públicas federais das cinco regiões do
Brasil2.
Nas discussões sobre os apontamentos desse levantamento inicial e da própria
instituição da temática dos Direitos Humanos, naquilo que marca a trajetória do/no
campo, o que identificamos no atrelamento à memória histórica de repressão em tempos
ditatoriais, que marca esse sentido, ampliamos o levantamento exploratório para a
observação também das grades curriculares dos cursos de Direito e Serviço Social
também.
Sintetizando a dimensão quantitativa dos dados produzidos, o quadro Direitos
Humanos nas disciplinas acadêmicas permite observar que, embora direitos humanos
seja tema pouco expressivo nos cursos das Faculdades de Educação – apenas 02
disciplinas dentre as 39 identificadas remetem diretamente ao tema, a questão da
diversidade/diferença já assume destaque nos currículos de formação de educadores/as –
24 no total das 79 disciplinas presentes nos três cursos. Isso parece indicar que, se a
questão dos direitos humanos entra na formação de educadores via DNEDH trazendo uma
demanda para esses cursos, o próprio documento pode ser entendido como resposta a um

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processo de significação da área que disputa com o discurso exclusivamente jurídico,


ressaltando a diferença como elemento constitutivo do que se nomeia como direitos
humanos.
Nessa análise, observamos que a inserção da temática nos cursos, inclusive de
Educação, não se inicia com a formulação da DNEDH, mas as antecede e participa do
jogo de forças que disputam sentidos nessa produção. Evidencia-se também como, nesse
trajetória, a própria DNEDH se institui como estratégia de deslocamento de sentido.
Desse modo, se a questão dos direitos humanos entra na formação de educadores via
DNEDH trazendo uma demanda para esses cursos, o próprio documento pode ser
entendido como resposta a um processo de significação da área que disputa com o
discurso exclusivamente jurídico.

Em outros termos, o desafio que as Diretrizes trazem à universidade, como


instituição de formação de educadores em todos os níveis, é o de conceber no currículo
das licenciaturas – através da inclusão de disciplinas ou não - processos de difusão da
cultura dos direitos humanos, o que implica conscientização quanto ao caráter injusto e
discriminatório de determinados projetos sociais e divulgação dos instrumentos jurídicos
de proteção e efetivação dos direitos humanos.

Ainda que, a princípio, não haja contraposição entre o que nomeamos como
prespectiva jurídico-política e perspectiva pedagógica3 (RAMOS, 2011a) quanto ao
entendimento do papel do campo dos direitos humanos nas experiências educacionais,
compreendemos que a diferença está presente e disputa hegemonia pela significação dos
sentidos quanto a noção de democracia, cultura, cidadania, justiça, igualdade e até mesmo
diferença. Isso se dá mesmo dentro desse bloco que o discurso de direitos humanos, pela
afirmação de universalidade dos seus princípios, tenta apresentar como homogêneo. Em
nossos estudos, temos afirmado que
Entendemos que enunciar a necessidade de reconhecimento de direitos
humanos universais significa anular a pluralidade de sentidos sobre vida,
dignidade, composição de família e relação familiar, morte, justiça e liberdade,
entre outros, presentes em diferentes localidades. Implica anular as diferenças
e ignorar a produção de novos significados possibilitados pelas hibridações
culturais que o mundo globalizado intensifica. Além do mais, o alcance do
consenso em torno de questões consideradas chave para a convivência no
mundo contemporâneo não é apenas uma busca por adesão; faz parte da luta
hegemônica travada no plano internacional em um mundo globalizado,
processo no qual é importante reconhecer que as condições para que diferentes
vozes se façam ouvir são extremamente assimétricas. (RAMOS, 2011a, p.193)
Buscando uma visão alternativa àquelas propostas pelo discurso universalista,
abordamos direitos humanos pela ótica da heterogeneidade do social, pela qual afirmamos

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a diferença como elemento inerradicável da democracia pluralista e radical (MOUFFE,


2000). Nessa direção, admitimos uma pluralidade de projetos sociais demandados por
adversários legítimos que compartilham valores e princípios éticos, nos quais os sentidos
estão em disputa (agonismo), e não as de inimigos que devem ser destruídos ou
subjugados (antagonismo) em nome de um projeto pretensamente universal. Admitimos
que tal relação não prescinde de alguns consensos éticos e políticos, mas, com Mouffe
(2001) lembramos que esses são consensos precários, conflituosos, posto serem
configurados por processos de significação que expressam interpretações conflitantes.
Tal proposição conduz a pensarmos educação em direitos humanos a partir da efetivação
de espaços institucionais nos quais a diferença tenha trânsito e o dissenso possa se
manifestar (Mouffe, 2001), o que indica o esforço por ressignificar direitos humanos e
educação em direitos humanos a partir de um olhar não universalista e sugere que se
questione o próprio modelo de escola que atravessa o mundo moderno e contemporâneo:
uma instituição homogeneizante, voltada a formação do cidadão universal, finalidade que
se realiza pela aquisição ou apropriação do saber elaborado visto como instrumento para
o exercício da cidadania e como vetor da igualdade social. Questionar tal perspectiva nos
desafia ao esforço de ressignificação não apenas de direitos humanos, mas da própria
instituição escolar, configurando para ela finalidades que correspondam à afirmação do
outro como adversário legítimo nos espaços de disputa hegemônica. Essa é uma ideia
que rejeita o caráter universalista tanto dos direitos humanos quanto dos saberes e práticas
consagrados como específicos da escola pelo pensamento moderno – liberal e crítico -
por reconhecer no universal um particular hegemonizado – o que o discurso da
universalização voltado à promoção da igualdade tenta ocultar.

Isso posto, fica o desafio para a Universidade de, ao trazer a educação em direitos
humanos para a formação de professores, discutir sob qual prisma a desenvolve.
Operando a partir da compreensão da diferença cultural não como objeto de
reconhecimento, mas prática político-discursiva, ao propormos a articulação entre o eixo
pedagógico – que remete a tradição, rememoração de uma história constituída no passado
– e o performático – como interação no presente que perturba em sua indeterminação a
imagem totalitária e originária do pedagógico; defendemos que se trata de superar
binarismos que polarizam a Educação em Direitos Humanos ou como objeto de ensino
ou como princípio pedagógico.

_________________________

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1
Levantamento exploratório de disciplinas oferecidas nos cursos superiores de Universidades Federais
Brasileiras, realizados no âmbito das discussões nas pesquisas desenvolvidas no Grupo.
2
Levantamento feito a partir da consulta das grades curriculares dos cursos disponíveis nos sites das
Universidades e leitura das ementas das disciplinas. Em alguns casos, foi necessário o contato direto com
a Universidade para ter acesso às ementas das disciplinas oferecidas. Destaca-se que todos os cursos
apresentam grades curriculares elaboradas no período que antecede a publicação da DNEDH.
3
Termos usados por nós para diferenciar uma abordagem que entende educação em direitos humanos como
forma de garantia e aprofundamento de direitos adquiridos no processo histórico de luta pela superação das
desigualdades sociais (perspectiva jurídico-política) de uma perspectiva que aborda educação em direitos
humanos como espaço de construção de formas não destrutivas de relação com o outro em um mundo
multicultural.

Referências Bibliográficas

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EdUECE - Livro 3
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Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

______, A. H. Educação em Direitos Humanos: o local da diferença. Revista Brasileira de


Educação v. 16 n. 46 jan./abr. 2011b.

______, A. H. Significações em disputa na constituição do discurso curricular de


Educação em Direitos Humanos. Rio de Janeiro, 2010. Tese de doutorado. Instituto de
Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

SACAVINO, Suzana B. Educação em/para os Direitos Humanos em processos de


democratização: o caso do Chile e do Brasil. 2008. Tese (Doutorado em Educação) –
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

SILVA, Aída Monteiro. Escola básica e a formação da cidadania – possibilidades e


limites. 2000. Tese de doutorado. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. São
Paulo, 2000.

Quadro Direitos Humanos nas disciplinas acadêmicas.


REGIÕES
NORTE NORDESTE SUDESTE SUL C. OESTE TOTAL
DISCIPLINAS
EDUCAÇÃO EDUCAÇÃO EDUCAÇÃO EDUCAÇÃO EDUCAÇÃO EDUCAÇÃO
0 2 0 0 0 2
A
DIREITO DIREITO DIREITO DIREITO DIREITO DIREITO
ADISCIPLINAS 1 12 7 8 2 30
IDENTIFICADAS
COMO DE DIREITOS SERVIÇO SERVIÇO SERVIÇO SERVIÇO SERVIÇO SERVIÇO
HUMANOS SOCIAL SOCIAL SOCIAL SOCIAL SOCIAL SOCIAL
0 4 1 1 1 7

TOTAL A 1 18 8 9 3 39
EDUCAÇÃO EDUCAÇÃO EDUCAÇÃO EDUCAÇÃO EDUCAÇÃO EDUCAÇÃO
1 10 8 3 2 24
B
DISCIPLINAS
RELACIONADAS À DIREITO DIREITO DIREITO DIREITO DIREITO DIREITO
TEMÁTICA DA 3 2 1 1 4 11
DIFERENÇA /
SERVIÇO SERVIÇO SERVIÇO SERVIÇO SERVIÇO SERVIÇO
DIVERSIDADE
SOCIAL SOCIAL SOCIAL SOCIAL SOCIAL SOCIAL
0 1 3 0 1 5

TOTAL A 4 13 12 4 7 40

TOTAL A+B 5 31 20 13 10 79

EdUECE - Livro 3
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