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A Flandres e os flamengos

Quando visitei pela primeira vez os Açores, passei por uma aldeia que foi fundada há
séculos por compatriotas meus, chama-se Flamengos e fica no Faial. Foi lá que ouvi uma
das perguntas mais interessantes sobre a minha terra: perguntaram-me se a Flandres
também era uma ilha. Achei divertido que no pensamento ilhéu, a Flandres não passava de
algo imaginário, tão imaginário provavelmente como os próprios Açores para os meus
compatriotas antes de embarcarem. O que já não achei divertido, mas sim preocupante, foi
a constatação que até intelectuais das ilhas têm ideias bastante imaginárias sobre a Flandres.
No seu livro sobre o falar da ilha de São Jorge, Olímpia Soares de Faria julga que os
flamengos falam francês e tenta explicar os gritos dos camponeses quando levam o gado a
beber água como sendo de origem flamenga. Esta etimologia extremamente duvidosa
baseia-se no francês, enquanto os flamengos nunca falaram francês, muito menos os
camponeses no século XV. Achei por isso que valia a pena informar melhor os açorianos -
já que muitos (Dutra, da Silveira, Brum, de Bruges, etc.) ainda têm algumas gostas de
sangue flamengo nas veias - sobre o que é afinal a Flandres.

Ao contrário do que com frequência se lê em livros de história, a Flandres nunca foi um


país independente. Os flamengos são decendentes de tribos germânicas, principalmente
francos e saxões, que se estabeleceram numa zona da Europa que, por ser plana, chamavam
os Países Baixos. Foi lá que nasceu o condado da Flandres. Este condado teve, sobretudo
depois da vitoriosa Batalha das Esporas Douradas em 1302, uma grande autonomia, mas o
conde da Flandres tinha que prestar vassalagem ao rei da França. No início da Idade Média,
a Flandres era uma das regiões mais prósperas da Europa e tinha cidades como Bruges e
Gande que podiam fazer concorrência a Londres ou Paris. No século XV, a indústria têxtil
entrou em crise e as grandes cidades flamengas perderam muita influência aos novos donos
dos Países Baixos: os duques da Borgonha. Foi nessa altura que se deu a emigração de um
pequeno grupo de flamengos da zona de Bruges para os Açores.
No século XVI, a Flandres é arrastada numa guerra civil e religiosa contra o domínio
espanhol. Como resultado da guerra, pela primeira vez na história dos Países Baixos, uma
parte torna-se independente, é o Norte que vulgarmente se disigna como a Holanda, mas
cujo nome oficial é Reino dos Países Baixos. Só uma pequena parte do antigo condado da
Flandres passa a fazer parte deste novo país, é a chamada Flandres Zêlandesa.
O resto da Flandres fica, tal como todo o Sul dos Países Baixos, nas mãos dos espanhóis o
que estimula muitos flamengos (aproximadamente 10%) a emigrar para o Norte, onde
financiam com o seu dinheiro a conquista do um império colonial holandês. Mais tarde, no
Século XVIII, o Sul passa a ser dominado pelos austríacos e entretanto, Louis XIV ocupava
uma pequena parte da Flandres, a chamada Flandres Francesa. Após um breve período de
reunificação entre o Norte e o Sul, de 1815 até 1830, o Sul se torna independente e adopta o
nome a Bélgica. A Bélgica desde o seu início foi um país de pouca coesão; além daquilo
que restava do antigo condado da Flandres, também o Sul dos antigos ducados de Brabante
e Limburgo faziam parte do país, tal como uma região francófona que se chama a Valónia.
Na Flandres não se falava francês, mas sim um dialecto flamengo. A mesma coisa
aconteceu no Brabante e no Limburgo, onde se falava, respectivamente, um dialecto
brabantino e limburguês. Estes dialectos pertencem a uma língua que vulgarmente se
chama holandês, mas cujo nome oficial é neerlandês. Embora a maioria da população não
falasse francês, o governo belga de então decidiu que apenas o francês seria língua oficial e
para garantir a coesão do novo país, convidaram um nobre alemão, Leopoldo, para ser rei
da Bélgica. A partir daí, começou a crescer uma rivalidade entre a região da Flandres (que
passou a significar o conjunto do antigo condado da Flandres, com os restos dos ducados
do Brabante e do Limburgo) e, por outro lado, a Valónia, a zona francófona da Bélgica. Os
flamengos tiveram que lutar - de uma maneira pacífica, pois nunca houve um único morto a
lamentar - vários anos antes de conseguir o direito de poder usar a sua própria língua no
estado belga. Só depois da primeira Guerra Mundial, a Bélgica se tornou um país bilingue e
além do francês, também o neerlandês se tornou língua oficial. Na prática, os flamengos
continuavam a falar os seus dialectos, usando apenas a língua padrão, o neerlandês, como
língua formal (isto é: no ensino, na comunicação social, como língua escrita, etc.). Pouco a
pouco, estes dialectos começavam a desaparecer e hoje são poucos os flamengos que ainda
sabem falar um dialecto flamengo. A língua que se usa actualmente na Flandres é o
neerlandês, a mesma língua portanto que aquela que é falada pelos holandeses. Como a
resolução da questão linguística não conseguiu acabar com a rivalidade entre flamengos e
valões, em 1989, a Bélgica se tornou um país federal, dividida em três regiões autónomas: a
Valónia, onde só se fala francês, a Flandres, onde só se fala neerlandês e Bruxelas, onde se
fala as duas línguas.

Para terminar, só uma pequena explicação etimológica dos nomes açorianos de origem
flamenga:

Dutra - descendentes de Joost de Hurtere, primeiro capitão-donatório da Ilha do Faial. O


nome provavelmente tem a ver com o verbo antiquado horten, uma atividade agrícola,
nomeadamente a de peneirar (trigo).
de Bruges - descendentes de Jacob van Brugge, capitão donatório da Ilha Terceira, o nome
não significa necessariamente da cidade de Bruges, pois por Bruges entendia-se naquela
época toda uma região à volta da cidade que corresponde actualmente à província Flandres-
Ocidental na Bélgica.
da Terra - descendentes de Joost van Aartrijke, uma pequena cidade perto de Bruges onde
ainda existe o castelo desta família da nobreza flamenga.
da Siveira - descendentes de Willem van der Haegen, o que significa literalmente de facto
"da Silveira", família de origem nobre.
Brum - descendentes da família dos de Bruyn, literalmente "o castanho", no entanto, na
Idade Média, o nome referiu-se ao urso, significando portanto: ter as características de um
urso (valente, guloso, etc.).

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