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A Morte Simbólica do Pai na Perspectiva Freudiana e o Afresco do Criação de

Adão de Michelângelo
Roberta Rotta Messias de Andrade

A religião é uma das necessidades do homem desde o seu surgimento.


Ainda que nos primórdios não tivesse esse nome, povos pré-históricos já
enterravam seus mortos em túmulos (Bezerra, 2011). A humanidade sempre
teve a necessidade de explicar como as coisas funcionavam e, assim, criar
histórias em que as divindades fariam a “mágica” acontecer. Podemos ver isso
desde o surgimento da chamada primeira religião védica, com 3.500 anos, uma
das vertentes do hinduísmo, segundo o site Hipercultura (2023).
Outras religiões foram sendo criadas ao longo no tempo e,
independentemente de suas características, um fio condutor se mostra comum:
um ser supremo que “reina” e governa tudo e todos. Mesmo em religiões
politeístas, sempre há um “deus dos deuses”, pai de todos. No hinduísmo temos
Varuna, o Deus soberano, criador da ordem universal; para os egípcios, o mundo
surgiu das lágrimas do Deus Atum que, por sua vez, surgiu do vazio do universo.
Nas religiões monoteístas, como o judaísmo, cristianismo, islamismo e outras,
há apenas um Deus responsável por toda a criação, ainda que tenha diferentes
nomes.
A questão é central é: por que o ser humano precisa de um Deus soberano
responsável por tudo e por todos?
Para Freud, a criação de deuses e entidades divinas é, em parte, uma
projeção de nossos desejos e necessidades psicológicas. Da mesma forma que
idealizamos nossos pais na infância, muitos de nós idealizam entidades divinas
na vida adulta. Essa projeção psicológica de qualidades e atributos humanos nas
divindades serve a diversos propósitos, como proteção, orientação, explicação
e sentido do mundo, resolução de conflitos internos, além do fortalecimento da
identidade cultural de um povo. Segundo David (2003), Freud entendia que “a
religião se originou do desamparo da criança prolongada na idade adulta. No
lugar do pai protetor da infância, o homem adulto põe o Deus, Pai, Todo-
Poderoso, a quem se deveria louvar e dar graças em todo o tempo e lugar”
(p.14).
Freud argumentava que essa projeção do “Deus, Pai, Todo-Poderoso” era
uma manifestação das mesmas tendências que impulsionavam o complexo de
Édipo e a idealização dos pais na infância. À medida que os indivíduos
amadurecem e passam pelo processo de "morte simbólica do pai", eles podem
começar a separar essas projeções das divindades de uma dependência infantil
e a desenvolver uma compreensão mais diversificada das questões espirituais.
Em sua obra "Totem e Tabu" (1913), Freud explica que a criança vê no
pai seu rival por sua mãe, e não apenas por causa de seu afeto pela mãe, mas
também por causa das ameaças que o pai apresenta com suas proibições. O
pai, portanto, ocupa uma posição central nesse complexo, sendo
simultaneamente objeto de amor e rivalidade.
É nesse contexto que a "morte simbólica do pai" emerge como uma ideia
crucial; à medida em que a criança cresce e se desenvolve emocionalmente, ela
deve superar o complexo de Édipo e a idealização do pai. Isso envolve o
reconhecimento das limitações do pai, a aceitação de sua autoridade e a
internalização de seus valores como parte do processo de socialização. A morte
do pai é um dos acontecimentos mais necessários no desenvolvimento do
indivíduo.
A "morte simbólica do pai" refere-se à uma mudança psicológica
fundamental; é a transição da posição infantil, na qual o pai é visto como
onipotente e infalível, para a maturidade psicológica, em que o pai é reconhecido
como uma figura com limitações e imperfeições, mas ainda assim, uma fonte de
autoridade e orientação. Nesse processo, a criança desenvolve uma identidade
individual mais independente e autônoma, desvinculando-se da dependência
infantil.
Essa ideia também está ligada à formação da consciência moral e do
superego, pois conforme o pai perde sua posição onipotente e se torna uma
autoridade internalizada, ele se transforma em uma parte da psique do indivíduo
que governa as normas e os valores morais. O superego, como conceituado por
Freud, é uma representação do pai internalizado, que avalia e regula o
comportamento do indivíduo, muitas vezes, impondo padrões éticos e morais.
Assim, a "morte simbólica do pai" pode ser entendida como uma transição
do complexo de Édipo e da idealização infantil do pai para uma relação mais
madura e equilibrada com a autoridade paterna. Essa evolução psicológica
desempenha um papel crucial na formação da identidade, da consciência moral
e na capacidade de lidar com a autoridade externa. Como Freud destacou, é um
dos eventos necessários no desenvolvimento individual, moldando a maneira
como os seres humanos interagem com o mundo ao seu redor.
No mesmo livro, Freud explica que os povos primitivos comiam seus
inimigos a fim de adquirir suas qualidades: “Quando alguém assimila partes do
corpo de uma pessoa pelo ato de comê-las, também se apropria das qualidades
que pertenceram a essa pessoa” (1913, s.p.).
A ideia de "comer o pai para adquirir seu poder" pode ser vista como uma
representação simbólica da rivalidade edípica, que faz parte do desenvolvimento
psicossexual de uma criança. No complexo de Édipo, a criança desenvolve
sentimentos ambivalentes em relação ao pai (geralmente o pai do mesmo sexo).
Por um lado, a criança deseja a atenção e o amor do pai (desejo de ser como o
pai) e, por outro lado, pode sentir inveja e rivalidade em relação ao pai,
desejando substituí-lo no afeto da mãe (desejo de superar o pai).
A expressão "comer o pai" é uma metáfora para a tentativa inconsciente
da criança de suplantar ou superar a figura paterna. Isso não se refere a um ato
literal de canibalismo, mas simboliza a busca pelo poder, a autonomia e a
identidade própria que vêm com a separação e a diferenciação em relação ao
pai. É um aspecto do processo de amadurecimento em que a criança busca
afirmar sua individualidade. Na perspectiva Hellingeriana1, chamamos de tomar
o pai, um dos principais conceitos da constelação familiar.
Tanto a ideia de "morte simbólica do pai", quanto o “tomar o pai” são
conceitos em que, à medida que a criança cresce e se desenvolve
emocionalmente, ela deve superar a idealização do pai da infância e reconhecer
suas limitações. Isso envolve a aceitação de que o pai não é uma figura
onipotente, mas sim um ser humano com falhas e imperfeições. Essa transição
é crucial para o desenvolvimento da identidade individual e da maturidade
psicológica.

1
Na teoria das constelações familiares, criada por Bert Hellinger (2020), um dos
conceitos centrais é o tomar o pai e a mãe. Segundo o autor, essa tomada seria a chave para o
equilíbrio na vida adulta.
Assim, essa relação de “matar o pai” e “tomá-lo” para adquirir seu poder,
pode ser vista como um ciclo de desenvolvimento. A criança inicialmente busca
"comer" o pai (superá-lo ou substituí-lo) como parte do complexo de Édipo, mas,
à medida que amadurece, essa busca pelo poder cede lugar à aceitação das
limitações do pai e à internalização de seus valores. Isso marca o processo de
"morte simbólica do pai," onde a figura paterna idealizada da infância é
substituída por uma autoridade internalizada mais realista.
Esses conceitos se relacionam com a complexidade das dinâmicas
familiares e do desenvolvimento humano, conforme explorados pela psicanálise
de Freud e por Bert Hellinger. Eles destacam como a relação entre pais e filhos,
os desejos e as rivalidades, bem como a evolução da identidade individual, são
aspectos intrincados da psicologia humana.
No entanto, matar o pai e comê-lo, segundo Freud (1913), gera no filho
um “terrível sentimento de culpa” (s.p) que faz com que a consciência moral surja
nessa ambivalência de sentimentos. Não é possível se tornar adulto sem que
faça acontecer o “assassinato do pai”, assim, crescer traz ao homem um grande
sentimento de culpa, ou o que Bert Hellinger (2020) chama de má consciência.
A "culpa por matar o pai" de Freud e a "má consciência" de Hellinger
podem ser interpretadas como formas de lidar com conflitos não resolvidos ou
sentimentos ambivalentes em relação aos pais e às gerações anteriores. Ambos
os conceitos ressaltam a importância de reconhecer e abordar essas questões
emocionais e relacionais para alcançar a cura e o equilíbrio nas relações
familiares. A compreensão desses sentimentos e a sua resolução podem permitir
que as pessoas vivam vidas mais saudáveis e relacionamentos mais
harmoniosos com suas famílias e consigo mesmas.

O Afresco de Michelangelo Criação de Adão

Umas das representações visuais da relação entre Deus e homem é o


afresco A Criação de Adão pintado por Michelangelo no teto da Capela Sistina
entre os anos de 1508 e 1510, a pedido do papa Júlio II, que poder visitado
virtualmente no site do Vaticano:
https://www.vatican.va/various/cappelle/sistina_vr/index.html.
Imagem 1: Afresco Criação de Adão

Fonte: https://www.vatican.va/various/cappelle/sistina_vr/index.html

Podemos analisar essa relação Homem/ Deus utilizando o afresco, mas


é preciso destacar que o exercício de analisar um afresco pintado no século XVI
por Michelângelo, realizado no século XX pode não retratar a intenção do artista,
ainda que nos sirva de aproximação didática.
A figura mostraria o momento da criação de Adão, o primeiro homem na
Terra, segundo as teorias criacionistas. Ela é composta por dois conjuntos de
imagens: uma representando Deus em seu reino, na parte superior, e a outra,
na parte inferior, mostrando o primeiro homem surgido na Terra.
Essa disposição das imagens já quer mostrar a superioridade do Deus
Todo-Poderoso em relação ao homem, menor, perante o criador. Aqui já
podemos perceber a ideia de que há sempre um Pai todo-poderoso maior do
que homem criança que busca lacunas deixadas pelas figuras parentais que
oferecem proteção, orientação e significado ao mundo. Além disso, o fato de
Deus ser representado como mais velho pode indicar a superioridade intelectual
e cultural em relação a um Adão jovem.
Deus está rodeado de seres angelicais, envolto por uma estrutura
vermelha que se assemelha ao cérebro humano, segundo Laura Aidar (2023A),
referindo-se aos estudos do pesquisador americano Frank Lynn Meshberger, da
década de 1990. Considerando que Michelângelo conhecia anatomia, podemos
pensar que isso não seja apenas uma coincidência. Aidar (2023A, p 5), para
explicar essa possível intenção escreve:
As imagens são realmente muito similares e, segundo os
estudos, Michelangelo representou inclusive algumas partes
internas do órgão, como o lobo frontal, nervo ótico, glândula
pituitária e o cerebelo.

Estaria Michelangelo dizendo que Deus seria um produto da mente


humana? Com certeza, Freud diria que sim, já que a criação de Deuses é parte
da projeção dos desejos e necessidade psicológicas do homem para lidar com
as ansiedades e incertezas do mundo, tendo um Deus como figura protetora e
ao mesmo tempo punitiva, ou seja, o pai totêmico.
Ainda se referindo à mesma estrutura vermelha, junto com as figuras
angelicais, encontra-se uma figura feminina que seria Eva esperando o momento
de vir para a Terra juntar-se com Adão (Aidar, 2023A). No entanto Faustino
explica que há outras interpretações para a identidade dessa mulher, que, nas
palavras dele: “poderia ser a Virgem Maria, Sofia (a personificação da sabedoria
mencionada no Livro da Sabedoria), uma alma humana personificada ou um anjo
de constituição masculina (2023, p. 14).

Figura 2: mulher ao lado de Deus

Fonte: https://www.vatican.va/various/cappelle/sistina_vr/index.html

Relacionando com o pensamento de Freud, a mulher poderia representar


a ambivalência nas relações familiares, incluindo amor e rivalidade, presente do
complexo de Édipo; ela poderia ser vista como um símbolo da complexa relação
entre Adão, a humanidade e a figura divina.
Outro ponto do afresco de Michelangelo que chama atenção é o toque
divino. Há inúmeras teorias acerca de porque os dedos de Deus e de Adão não
se tocam: teria sido feito um reparo na pintura após a queda no exato local do
desenho; outro artista teria terminado a obra de Michelangelo, entre outras
possiblidades.
Uma das histórias interessantes é contada na obra “A Arte Como
Expressão da Vida Litúrgica” de Marko Rupnik (2000 in Faustino, 2023). Marko
diz que inicialmente, Michelangelo teria desenhado os dedos se tocando, mas
após uma divergência entre os teólogos franciscanos e dominicanos, ficou
definido que os dedos não se tocariam para que homem tenha a “livre adesão”
ao alcançar Deus. Porém, Faustino explica que não há nenhum indício que isso
tenha realmente acontecido, tornando essa mais uma curiosidade acerca do
afresco.
Figura 3: Adão

Fonte: https://www.vatican.va/various/cappelle/sistina_vr/index.html

Quanto à postura de Adão, Aidar (2023B p. 3) diz que ele teria acabado
de acordar, “pois podemos perceber seu corpo relaxado e sua feição
acomodada”. No entanto, a postura corporal de Adão passa mais a sensação de
desdém do que sonolência, inclusive a falta de energia na mão, simétrica à de
Deus, poderia ser interpretada como falta de vontade de alcançar o divino.
Considerando ainda que Adão foi o primeiro ser humano na Terra, ele não
teria a experiência infantil que nos afeta a todos, consequentemte, ele também
não teria passado pelo complexo de Édipo, portanto, podemos pensar que Adão
se tornou um homem adulto, sem uma projeção de desejos e necessidades
psicológicas de idealizar entidades divinas, como os homens.
Nesse caso, Adão, sem essas necessidades humanas, não precisaria da
religião como os outros homens para compensar a culpa, já que ele não teria
tido a necessidade de matar o pai. Dessa forma, Adão não teria a necessidade
de buscar o divino, o que poderia explicar a falta de energia na mão dele para
buscar o divino Deus.
Se, assim como Adão, os homens não tivessem a necessidade da
existência de uma entidade externa, onipotente e onipresente, criadora de tudo,
ainda assim, o homem precisaria de uma “entidade reguladora” das regras
sociais, éticas e morais atuando como superego para regular seu
comportamento instintivo de busca do prazer. Nessa hipótese possivelmente
víssemos menos religiões, mas os fenômenos ainda teriam a necessidade de
explicação

Referências Bibliográficas
AIDAR, Laura. A Criação de Adão de Michelangelo (com análise e
releitura) in Cultura Genial. Site. 2023A. Disponível em:
https://www.culturagenial.com/a-criacao-de-adao-michelangelo/ Acessado em:
28/09/2023.
AIDAR, Laura. A criação de Adão: análise da obra de Michelangelo in
Toda Matéria. Site. 2023B. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/a-
criacao-de-adao-michelangelo/ acessado em: 28/09/2023.
BEZERRA, Karina. História geral das religiões in UNICAP, 2011.
Disponível em: https://www1.unicap.br/observatorio2/wp-
content/uploads/2011/10/HISTORIA-GERAL-DAS-RELIGIOES-karina-
Bezerra.pdf Acessado em 28/09/2023.
DAVID, Sérgio Nazar. Freud e a religião. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
FAUSTINO, Marco. Michelangelo pintou o afresco “Criação de Adão”
com os dedos de Deus e Adão se tocando? In e-farsas. Site. 2023. Disponível
em: https://www.e-farsas.com/michelangelo-pintou-o-afresco-criacao-de-adao-
com-os-dedos-de-deus-e-adao-se-tocando.html, acessado em 28/09/2023.
FREUD, Sigmund. Tótem e Tabu. Porto Alegre: L&PM Pockets. 1913,
versão para kindle.
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versão para kindle.
HELLINGER, Bert. Minha obra minha vida. São Paulo: Cultrix, 2020.
HIPERCULTURA. Conheça a primeira religião do mundo e seus
deuses. 2023. Disponível em: https://www.hipercultura.com/primeira-religiao-
mundo-deuses/ Acessado em: 28/09/2023.
MACIEL, Karla Daniele de Sá Araújo; ROCHA, Zeferino de Jesus
Barbosa. Dois discursos de Freud sobre a religião. Rev. Mal-Estar
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http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-
61482008000300008&lng=pt&nrm=iso> Acessado em 28/09/2023.
VATICANO. Capela Sistina. Disponível em:
https://www.vatican.va/various/cappelle/sistina_vr/index.html Acessado
em 28/09/2023.

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