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O ANTISSEMITISMO FAtAL

Uma análise do livro nazista O Cogumelo Venenoso à luz da teoria crítica

Raquel Cunha da Costa *


Mauricio Rodrigues de Souza **
The deadly anti-semitism: the poiso-
nous mushroom analysis in light of
critical theory

RESUMO: O Cogumelo Venenoso é um livro ABSTRACT: The Poisonous Mushroom is a nazi


nazista escrito por Ernst Hiemer e símbolo da book written by Ernst Hiemer, and symbol of
propaganda direcionada ao público infantil. propaganda aimed towards children. It’s main
Seu principal intento é o de como identificar intent is one of how to identify the suppose-
a figura do judeu. Assim, este artigo objetiva dly jew figure. This article objective is to
analisar o antissemitismo presente na obra analyze the anti-semitism present in The Poiso-
nazista a partir da ótica de Adorno e Horkhei- nous Mushroom through Adorno’s and
mer em Os Elementos do Antissemitismo de 1947 Horkheimer’s 1947 work, specifically Elements
para refletir acerca dos mecanismos psicoló- of Anti-semitism, to ponder about the current
gicos e sociais presentes nessa obra permeada psychological and social mechanisms that
pelo ódio. permeate this opus of hatred.

PALAVRAS-CHAVE: História. Antissemi- KEY-WORDS: History. Anti-semitism. Cri-


tismo. Teoria Crítica. tical Theory.

* Psicóloga clínica e mestranda no Programa de Pós-graduação em Psicologia na linha de Psicanálise —


teoria e clínica da Universidade Federal do Pará. Pesquisa doutrina e ascensão nazista a partir da psicanálise
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freudiana.
** Doutor em Psicologia e Professor Associado III junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Federal do Pará (Faculdade de Psicologia e Programa de Pós-Graduação em Psicologia).

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INTRODUÇÃO massas para um fim. No presente artigo, tra-
zemos um dos materiais de propaganda con-
Este é um tempo de raios sem trovão, cebido pelo nazismo, a saber, o livro O Cogu-
Tempo de vozes incompreendidas,
De sonos inquietos e vigílias vãs. melo Venenoso de Ernst Hiemer publicado pela
Companheira, não se esqueça dos dias
De silêncios fáceis e demorados, primeira vez em 1938.
Das estradas noturnas e amigas, Pretendemos, portanto, refletir sobre
Das meditações serenas,
Antes que as folhas caiam, os mecanismos antissemitas presentes nessa
Antes que o céu se feche,
Antes que de novo nos desperte, obra por intermédio do texto Os Elementos do
Conhecida, em frente às nossas portas,
Antissemitismo de Theodor Adorno e Max
A batida dos passos de ferro.
(Primo Levi, 1949) Horkheimer, de 1947. Isso tudo incentivado
pela urgência de debates e reflexões de uma

O
século XX é conhe- sociedade onde ainda abundam o racismo, a
cido como o período xenofobia, o preconceito religioso e tantas
das massas, no qual outras violências que se destacam todos os
elas se tornam alvo central das elaborações dias em um tempo onde impera o ódio ao ou-
políticas. Sua opinião, aceitação ou discor- tro, o conservadorismo e onde ideias radicais
dância são fundamentais para a eleição, ma- como o nazismo são resgatadas. Para isso, fa-
nutenção e derrubada de um regime. É pen- remos a seguir uma viagem pelas vias da his-
sando nisso que diversos Governos planejam tória do antissemitismo moderno, pela estru-
suas estratégias e, herdando a espetaculariza- tura do cogumelo venenoso, pela teoria ador-
ção da política utilizada desde a implementa- niana que dá vida ao texto do antissemitismo
ção dos primeiros impérios do ocidente, er- aqui suscitado e, enfim, uniremos a obra pro-
guem sua máquina de propaganda que chega pagandística a uma análise específica do antis-
até as massas levando alguma mensagem. semitismo contido nela.
No caso do nazismo, sua propa-
ganda ajuda a montar o olhar a respeito do
próprio movimento e a instrumentalizar as
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PERCURSO DO ANTISSEMI- estratégico para os principais reinos de sua re-

TISMO gião e, por causa de tantas especificações


como essas, era muito difícil manter a auto-
É difícil precisar o momento da gê-
nomia e liberdade do povo hebreu que se lo-
nese do antissemitismo que, tão extenso ao
calizava no centro geográfico de uma série de
longo de todos esses anos de história da hu-
infindáveis conflitos 1. Diante desse cenário,
manidade, pode se confundir com o próprio
surge a esperança em um Messias que enfim
Gênesis hebreu sempre ameaçado por povos
libertaria os hebreus de tão grande padeci-
vizinhos. Essa reflexão é como tentar desco-
mento e, a partir daqui, há o delineamento das
brir quem veio primeiro, se foi o povo ou o
promessas de Sua chegada.
sentimento de ódio ao outro e, por meio dele,
Anos se passaram e com eles muitas
criada a segregação e a identificação com um
idas e vindas da terra onde costumavam habi-
grupo. Por isso, é importante mergulhar nas
tar ocorreram. Ora por fome2, escravidão ou
águas de onde saiu o povo judeu e sua religião
conflitos. Até que por volta de 950 a. C., anos
chamada de mosaica por causa de um de seus
após o retorno do Egito, onde haviam sido
maiores precursores: Moisés (‫)מֹ שֶׁ ה‬, aquele sa-
escravos, um templo (Beit Hamiqdash – ‫בֵּ ית־‬
ído das águas.
Há mais de cinco mil anos, nas ter- ‫ )הַ ִּמקְ דָּ ש‬é erguido em Jerusalém sob o rei-

ras desérticas próximas ao vale do rio Jordão, nado de Salomão para abrigar a arca da ali-

encontrava-se espalhado um povo nômade ança com as tábuas sagradas3. Esse será um

de origem semita que estava cercado pelo marco no estilo de vida desse povo que vivia

reino do Egito, da Assíria e da Babilônia. A como nômade, percorrendo vários lugares da

estreita faixa de terra em que viviam era ponto

1 SCHILLING, Voltaire. Holocausto: das origens do tribos de Israel a fim de pedir alimento. Para en-
povo judeu ao genocídio nazista. Porto Alegre: Age tender a história, ler o livro de Bereshit (Gênesis),
Editora, 2016. ou primeiro livro da Torá judaica.
2 O povo hebreu vai ao Egito, escapando de uma 3 Além disso, era local da reunião do chamado
grande fome, figurado por Jacó e seus doze filhos Grande Sinédrio, a saber, a assembleia composta
que são conhecidos como os patriarcas das doze
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por 23 juízes hebreus, uma vez que se vivia em


uma espécie de monarquia teocrática (SCHIL-
LING, 2016).

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região para fugir de conflitos e dos mais di- em consequência de sua chegada realiza o
versos estímulos aversivos, e guardava sua feito que galga a escalada da diáspora6.
arca em um tabernáculo. A partir desse feito, Nesse tempo, diversas rebeliões ju-
inicia-se a transição para um estilo de vida se- daicas se iniciam contra aqueles que, em cul-
dentário4. tura e fé completamente divergentes, profa-
Há anos da construção do impo- navam não só o solo sagrado, mas símbolos
nente Primeiro Templo, os hebreus foram ca- como o templo. Uma dessas revoltas incita a
tivos na Babilônia e, por consequência, o sím- ira do general Tito Flávio que ordena a ter-
bolo físico de sua fé e da identidade daquele ceira destruição do templo. Em uma das últi-
grupo fora arrasado. Esse cativeiro se arrasta mas rebeliões contra o projeto de helenizar
por longos sessenta anos até o retorno do Jerusalém, um grande número de judeus foi
povo a Jerusalém e o reerguimento do que brutalmente assassinado e dispersado. Assim,
será conhecido como o Segundo Templo. aqueles que restaram disso decidiram ir em-
Certo tempo, a unidade do povo do bora dali após a visão de tanta violência colo-
reino de Israel5 entra em colapso, logo após o nizadora e de manifestações duramente sufo-
período de regência de Salomão, e racha em cadas que culminaram na solução extrema do
duas partes: reino de Israel ao norte e Judá ao suicídio coletivo de Massada7, por exemplo.
sul. E é fato, então, que tal separação abre ca- Acontecimento este que se prestava a ser
minho, a partir de agora, para uma série de como um protesto ao cerco romano de Jeru-
invasões na região, dentre as quais visualiza- salém e uma oposição às ameaças de escravi-
mos uma das mais emblemáticas: a romana. dão dispensadas aos manifestantes. Nisso, há
Domínio romano este cuja presença não só é um verdadeiro clamor por um Salvador que
permitida por intermédio de uma dispersão viesse em socorro do povo judeu e restau-
local do antigo reino único de Israel, mas que, rasse o templo, assim como os livrasse do

4 SCHILLING, Voltaire. Op. cit., 2016. 7 Para um debate aprofundado, consultar os escri-
5 Chamado assim em decorrência do pai das doze tos do historiador Flávio Josefo em A Guerra dos
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tribos que de Jacó teve seu nome trocado por Judeus (75 d.C.) e as críticas e revisões de seu tra-
Deus para Israel. balho.
6 SCHILLING, Voltaire. Op. cit., 2016.

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jugo das terras vizinhas e de seus invasores, terras de origem, em uma tentativa de dirimir
como Roma8. a falta de rumo e de identificação grupal.
Em meio a tudo isso, surge o cristi- O contexto agora permite novos
anismo como “seita dissidente” (secta disidente) desafios e nesse caminho o maior conflito é
do judaísmo por seu tronco na doutrina mo- marcado pelo choque com os cristãos, dentre
saica, assim como pelos primeiros adeptos de todos os povos gentios12. A nova religião, que
origem judaica. Apesar de enfrentar grande se expande a partir da adoção romana a ela e
perseguição e dificuldade, essa religião que da relação política que estabelece, antagoniza
surgia ainda incipiente em um momento de os judeus pelo discurso que os identificava
súplica por um libertador divino, social e po- enquanto assassinos de Cristo (deicídio) e,
lítico que restaurasse o grande reino de Israel, por isso, eram também um “povo maldito”13
terá uma parte da responsabilidade atrelada a a quem eram atribuídas características igual-
si na sorte do povo judeu exilado9. mente funestas, ou seja, do próprio diabo, ini-
Indo embora dali, dois fluxos se for- migo máximo do cristianismo, portanto, o
mam: um em direção à Europa (Ashkenazi – maior insulto que esses poderiam elaborar.
‫ )אַ ְש ֲּכ ָּנזִּי‬e outro em direção ao norte da África Nesses termos, vemos o desenvolvimento da
e Peninsula Ibérica (Sefaradi – ‫)ספרדים‬. Aqui crença em uma suposta conspiração semita
adentramos um novo capítulo da história ju- que objetiva trazer o cristianismo abaixo e,
daica, a aurora da época medieval. logo, notamos que na origem das manifesta-
Em um novo cenário, os judeus se ções antissemitas está a xenofobia e o medo
veem na condição de “errantes” 10e transfor- do estrangeiro que se refugiava em suas ter-
mam-se em grupo minoritário que cria ser ras 14 . Sendo esse elemento desconhecido,
“escolhido” por D’us e em cima disso ergue aqueles que os avistam de longe fantasiam e
sua identidade no exílio11, bem longe de suas tecem suposições sobre os intentos judeus.

8 SCHILLING, Voltaire. Op. cit., 2016. 11 WISTRICH, Robert. Op. cit., 2015.
9 WISTRICH, Robert. Hitler y el holocausto. México: 12 Termo usado para designar pessoas de origem
Penguim Random House Grupo Editorial, 2015;
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não-judaica.
SCHILLING, Voltaire. Op. cit., 2016. 13 WISTRICH, Robert. Op. cit., 2015.
10 Ibid. 14 SCHILLING, Voltaire. Op. cit., 2016.

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Por consequência de tudo isso, a roupas específicas como chapéus cônicos 19 .
ideia de dignidade é, assim, desassociada da Entretanto, havia mais do que isso esperando
imagem do judeu porque muitos desses se de- o momento de surgir e potencializar o senti-
dicam aos negócios financeiros, como a mento antijudaico, porque agora tudo se en-
usura, já que tais atividades eram vetadas aos grandecia frente às cruzadas. Lá fora a luta era
cristãos15. No entanto, a maioria é composta contra o Islamismo ao passo que dentro de
de profissionais muito pobres, como alfaiates seus territórios era o Judaísmo20.
(Schneider), sapateiros (Schumacher), marceneiro Assim se deram os primeiros po-
(Zimmer), ferreiros (Haddad, Ferreira, Ferraz), groms, movimentados por cavaleiros cruzados
dentre tantos outros que terão seus nomes re- que antes de partir experimentavam suas vio-
conhecidos por isso no futuro. Sendo assim, lências e espadas nos judeus21. As motivações
os judeus que se aventuraram nas finanças to- não podiam ser outras senão aquelas deriva-
maram, por vezes, lugar importante junto aos das das primeiras crenças de deicídio e cons-
cristãos, já que eles precisavam dos emprésti- piração anticristã. Além delas, assoma-se a
mos feitos a essas figuras devido ao difícil ideia de assassinato ritual de crianças 22 fa-
acesso aos bancos16. zendo alusão, de maneira errônea, aos antigos
Ainda na Idade Média, os judeus são holocaustos santos e ao ato de sangrar o ani-
recolhidos da sociedade em juderías/ Judenhof/ mal de acordo com o abate Kosher23, como um
Judenviertel 17 ou Ghetto 18 e, por vezes, marca- costume estranho aos não-judeus que viviam
dos em suas vestimentas com símbolos ou avizinhados aos judeus.

15 PEREIRA, Wagner. Prefácio à edição brasileira: de 1215 e o Concílio de Viena de 1267 (SCHIL-
nazismo e o inimigo judeu. In: HERF, Jeffrey. Ini- LING, 2016).
migo judeu: propaganda nazista durante a segunda 20 SCHILLING, Voltaire. Op. cit., 2016.
guerra mundial e o holocausto. São Paulo: Edipro, 21 Ibid.
2014, p. 13-34. 22 Uma consequência disso foi o caso do assassi-
16 SCHILLING, Voltaire. Op. cit., 2016.
nato ritual de Simão de Trento (1475), criança
17 Denominações da Ibéria e Alemanha.
cuja culpa de morte recaiu sobre os judeus que,
18 Vocábulo de origem italiana para designar o
supostamente, teriam usado seu sangue para fazer
mesmo que Judería, ou seja, um aglomerado de re- pães sem fermento de páscoa. O garoto foi cano-
sidências judaicas confinadas em uma região.
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nizado e o povo semita severamente punido (PE-


19 Vários decretos pregavam tais medidas, mas é
REIRA, 2014).
necessário destacar aqui o IV Concílio de Latrão 23 Regras alimentares do judaísmo.

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Ainda mais fundo, encontramos a nasce o pensamento sionista político mo-
acusação de profanadores da hóstia cujo prin- derno, encabeçado, inicialmente, por Theo-
cipal intento seria o de crucificar Cristo mais dor Herzl. Para ele, era impossível uma assi-
uma vez, e o do judeu errante a partir da fi- milação e, mesmo em um tempo herdeiro do
gura de Ahasverus, personagem que teria im- racionalismo e da Revolução Francesa, havia
portunado Jesus no caminho de sua via dolo- certo rogo em nome da “morte aos judeus”
rosa e esse teria o condenado a vagar pelo que não permitia paz. Apesar dos grandes sal-
mundo até Sua volta24. Agora, tendo isso em tos dados pelo pensamento político, filosó-
vista, há um sem-número de violências25, as- fico e científico, os anos de virada para o sé-
sassinatos e expulsões de judeus dos locais culo XX apresentam uma série de ideias se-
onde costumavam viver, tudo assistido pelas melhantes ao ódio antijudaico desenvolvido
lideranças políticas e religiosas do momento. ao longo da história, mas com características
Anos depois do período médio, si- próprias das justificativas científicas e políti-
tuemo-nos, pois, na época de irrompimento cas de seu tempo26.
iluminista, na qual a ideia difundida de igual- Assim despertou o antissemitismo27
dade permite certa emancipação judaica, in- moderno, inspirado pelas teorias racistas,
clusive no período de Revolução na França. como a eugenia de Francis Galton, inspirado
Porém, ao caminharmos para o fim do século na seleção natural de Charles Darwin, a partir
XIX, deparamo-nos com o caso Dreyfus que de 1883, para citar a mais famosa delas28. Ali-
traz à cena francesa uma divisão que desnuda ado a isso estava a orientação política nacio-
a esquerda e a extrema-direita e estimula uma nalista, a partir da qual o judeu não é visto
onda antijudaica. Em vista disso, muitos ma- com bons olhos, posto que não tem seu san-
nifestam o desejo de voltar à Palestina e assim gue ligado à terra onde está. Aqui é dado tudo

24 PEREIRA, Wagner. Op. cit., 2014. 28 COSTA, Raquel. Este artigo sangra história: a
25 A Inquisição pode ser aqui incluída, pois teve mentalidade da sobrevivência em Maus de Art Spi-
papel importante na violência antijudaica. egelman. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, v.
26 SCHILLING, Voltaire. Op. cit., 2016. 7, n. 14, p. 295-322, 2020.
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27 Termo cunhado em 1873 pelo estudioso Wil-

helm Marr em substituição à expressão “ódio ao


judeu” (SCHILLING, 2016).

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pela pátria e aquilo que não ajudar no ideal NOTAS SOBRE O COGUMELO
patriótico é mal visto. Portanto, o estrangeiro VENENOSO
judeu era odiado e tido como parasita, hon-
No ano de 1938, o governo alemão
rando a tradição desse pensamento científico
já subsistia há cinco anos30 sob a autoritária
antissemita.
batuta de Adolf Hitler, e o antissemitismo se
No instauro da República de Wei-
intensificara de tal forma que as violências já
mar na Alemanha, as sanções antissemitas do
eram de ordem legislativa por meio das Leis
antigo regime foram derrubadas, provocando
de Nuremberg31, tornando a exclusão social
um melhor posicionamento dos judeus na so-
ainda mais evidente. Naquele ano, mal sabiam
ciedade alemã. A despeito do afrouxamento
os judeus que a mão do nazismo pesaria sobre
burocrático em direção aos judeus, os nacio-
eles na Noite dos Cristais Quebrados (Kris-
nalistas de extrema-direita associam a sorte
tallnacht) e no início das deportações para
judaica à derrota na Grande Guerra naquele
campos de concentração.
novembro de 1918, como se essa suposta bo-
No mesmo ano ainda, o nazismo já
nança decorresse da guerra29. Com a quebra
havia invadido toda a vida social alemã, bem
da bolsa de Nova York em 1929 e a conse-
como seu imaginário e sua formação de iden-
quente Grande Depressão, o cerco se fecha
tidade. Destarte, não seria novidade a elabo-
ainda mais e o ódio cresce ao ponto de haver
ração de uma quantidade significativa de ma-
um apelo a uma solução autoritária e fascista:
terial de propaganda do ideal do Terceiro
o Partido Nacional-Socialista dos Trabalha-
Reich32. Assim foi com um livro infantil publi-
dores Alemães, ou NSDAP (Nationalsozialis-
tische Deutsche Arbeiterpartei), o partido nazi.

29 SCHILLING, Voltaire. Op. cit., 2016. 31 Um conjunto de leis que retirava o direito à ci-
30 O partido nazista (NSDAP) ganha maior ex- dadania dos judeus das mais diversas formas. Para
pressividade parlamentar após as eleições de 1932 um aprofundamento na temática consultar o livro
e Hitler chega ao poder a partir de manobras po- Bloodlines: recovering Hitler’s Nuremberg laws from pat-
líticas importantes, proporcionadas por essa ex- ton’s trophy to public memorial de Anthony Platt e Ce-
90

pressividade de seu partido (WISTRICH, Robert. cilia O’Leary.


Op. cit., 2015). 32 ROSENBERG, Matthew. Fantasy and Hate: a fan-

tasy theme analysis of der Giftpilz. 2014. Dissertação

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cado por um membro do partido nazista cha- histórias exibidas, a fim de plantar uma iden-
mado Julius Streicher, fundador do jornal an- tidade cultural alemã desde os cidadãos mais
tissemita Der Stürmer e um dos principais ele- jovens. A ideia era dar ferramentas para iden-
mentos da propaganda do NSDAP. A obra tificar o personagem central do livro, ou seja,
tinha por nome O Cogumelo Venenoso (Der Gif- o judeu35.
tpilz) e foi escrita por Ernst Hiemer. O livro é dividido em dezessete ca-
O livro discute a solução nazista pítulos contendo cada um deles mininarrati-
para a “Questão Judaica”. No conteúdo dessa vas, ou pequenas histórias, compondo uma
problemática encontramos um elemento ra- narrativa total que almeja expressar uma
cial a respeito do que deveria ser feito com os grande mensagem que constrói a ideologia
judeus, pois nesse raciocínio o judaísmo é nazista a partir da visão antissemita. Além
como um problema que precisa ser resolvido. disso, a obra tem por intuito instrumentalizar
No alemão se apresenta como “Judenfrage”33 crianças em idade escolar dentro de suas pró-
onde o termo “Frage” pode adotar a função prias instituições.
do vocábulo “questão” em português que No capítulo um, intitulado O Cogu-
pode significar um elemento a ser examinado melo Venenoso (Der Giftpilz), somos apresenta-
e discutido34. A questão é, portanto, como um dos ao coração temático do livro, como um
imperativo necessário para a sobrevivência resumo daquilo que irá se apresentar. Ele ex-
do povo germânico. plica a ideia por trás do nome escolhido para
Mirando no público infantil do a obra nos seguintes termos: “Olhe Franz, as-
Reich, o livro emprega elementos narrativos sim como as pessoas do mundo são os cogu-
que visam imprimir nas crianças uma moral melos na floresta. Há bons cogumelos e boas
nazista. Assim como oferecem elementos pessoas também. Porém, há também aqueles
para uma identificação dos leitores com as que são venenosos, cogumelos maus e pes-
soas más. Nós devemos nos manter vigilantes

(Estudos Interdisciplinares em Artes) – Oregon 34 LANGENSCHEIDT. Langenscheidt Praktisches


91

State University, Oregon, 2014. Wörterbuch. München: Wörterbuch-Verlag, 2015.


33 HIEMER, Ernst. Der Giftpilz. Nürnberg: Stürmer 35 ROSENBERG, Matthew. Op. cit, 2014.
Verlag, 1939, p. 8.

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para com as pessoas más assim como faze- o que significa pensar como um judeu. Assim,
mos com os cogumelos venenosos [...]” 36 . trechos do texto sagrado do judaísmo são
Nessa ideia, por causa do cogumelo venenoso modificados para mostrar como o pensa-
que pode intoxicar uma família inteira, é ne- mento judeu é uma antítese para a ideologia
cessário saber diferenciar os bons cogumelos nazista. O nome do capítulo é O que é o Tal-
para não ser envenenado. mud? (Was ist der Talmud).
Em Como Reconhecer um Judeu (Wie Mais além, temos o capítulo de
man einen Juden erkennt?), o autor ensina por nome Por que os judeus se permitem ser batizados?
meio de outra pequena história sobre as ca- (Warum lassen sich Juden Taufen?) cuja principal
racterísticas físicas – nariz judeu, lábios incha- tese é a de explicitar que um judeu nunca dei-
dos, sobrancelhas grossas e carnudas37 e etc. xará de ser judeu. Em Como um camponês alemão
– que podem servir para identificar os ju- foi retirado de sua casa e fazenda (Wie ein deutscher
deus38. Em seguida, Hiemer39 conta em Como Bauer von Haus und Hof geleitet wird) o autor
os Judeus Vieram a Nós (Wie die Juden zu uns aborda uma suposta “ganância judaica” acre-
gekommen sind?) por meio da alusão a assimila- ditada pelos nazistas, na qual um fazendeiro
ção dessa comunidade aos povos do oci- alemão é forçado a vender sua propriedade e
dente, o que torna esse povo semelhante aos tem sua fortuna perdida sob a influência de
alemães em tudo que fazem40. um banqueiro judeu. Reforçando, dessa ma-
Entretanto, na tentativa de deixar o neira, a associação antijudaica histórica entre
argumento ainda mais verdadeiro, o autor se judeu e capital financeiro, que é imediata-
utiliza de um elemento interno ao próprio ju- mente abordada no capítulo subsequente
daísmo, o Talmud41 (‫)תַ לְ מּוד‬. Daí entramos em (Como os negociantes judeus enganam – Wie jüdische
uma sinagoga onde um personagem aprende Händler betrügen) no qual um mascate judeu

36 HIEMER, Ernst. Op. cit., 1939, p. 7. 41 Texto importante para o judaísmo rabínico que
37 Jüdische Nase, die Lippen aufgeblasen, die Augebrauen é composto por uma compilação de transcrições
sind meist dicker und fleischiger. e estudos sobre a Lei Oral dada por D’us a Moisés
38 HIEMER, Ernst. Op. cit., 1939. no Monte Sinai. Integra as seguintes partes:
92

39 Ibid. Mishná, livro em hebraico sobre a lei judaica e a


40 Ibid. Guemará, em hebraico-aramaico, que comenta a
parte anterior.

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tenta negociar – e enganar, de acordo com a história, Rosa desembarca na estação do lugar
visão nazista – com uma jovem alemã e sai onde conseguira um emprego e conta que um
irritado ao falhar em sua venda, uma vez que homem a esperava, descrevendo-o como al-
42
a moça o reconheceu enquanto judeu . guém gentil. Porém, a imagem é imediata-
Na sequência (A Experiência de Hans mente desfeita ao colocar um “mas” (aber) ad-
e Else com um Homem Forasteiro – Die Erfahrung versativo para dizer que ela percebeu, de re-
von Hans und Else mit Einem fremdem Mann), te- pente, que era um tipo judeu que a aguardava.
mos a figura de um médico judeu como alici- Assim: “Um homem esperava por mim na es-
ador que oferece doces a duas crianças e pede tação. Ele tirou seu chapéu e foi muito gentil
para as duas o acompanharem. Porém, é comigo. Mas logo percebi que ele era ju-
preso e o clima consequente é de grande ale- deu”45, como se gentileza e judaísmo fossem
gria na família dos pequenos43. Logo, a figura antitéticos.
do judeu é destacada enquanto um assediador Em Como duas Mulheres Foram Enga-
na figura de um médico. O argumento levan- nadas por Advogados Judeus (Wie zwei Frauen von
tado é o de que alemães não podem se con- einem Jüdischen Rechtsanwalt hereingelegt wurden),
sultar com médicos judeus, pois esses, além dois advogados agem maldosamente a fim de
de perigosos para a “honra” das garotas, su- tomar uma boa quantia de dinheiro, mais uma
postamente transmitiriam doenças a fim de vez trazendo a crença medieval entre dinheiro
“destruir” o povo alemão, como que previa- e judaísmo para em seguida resgatar outra
mente planejado em um complô. Tudo isso lenda antissemita histórica, a saber, a dos as-
fica claro na Visita de Inge a um Médico Judeu sassinatos rituais relacionada à lei Kosher de
(Inges Besuch bei einem Jüdischen Doktor)44. sangramento animal (Como os Judeus Maltratam
Depois dessa mininarrativa, vemos os Animais – Wie die Juden Tiere quälen). Na ideia
que na crença nazista o judeu não dispensa
bons tratamentos aos alemães, podendo, in-
clusive, escravizar os seus funcionários. Na
93

42 HIEMER, Ernst. Op. cit., 1939. 44 HIEMER, Ernst. Op. cit., 1939.
43 Ibid. 45 Ibid., p. 34 [tradução nossa].

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nazista, o ato de sangrar o animal evidencia o que estiveram ao lado dos alemães durante a
ato ritual, supostamente, ainda presente46. primeira Grande Guerra, ou aqueles que se
No capítulo seguinte, O que Cristo assimilam em quase tudo no âmbito social,
Disse Sobre os Judeus? (Was Christus über die Juden não são decentes, pois não pelejam pela Ale-
sägte?), entendemos a ideia religiosa por trás manha, mas antes apoiam a revolução a nível
do antissemitismo propagandístico do livro. internacional48.
Nele, Jesus foi morto por expor “a verdade” Enfim, no último capítulo (Sem uma
sobre os judeus. Mesmo judeu, rebelou-se solução para a questão judaica, não há salvação para
contra a comunidade e os amaldiçoou. O au- a humanidade – Ohne die Lösung der Judenfrage gibt
tor diz ainda, por meio desta historieta, que o es keine Rettung der Menschheit), há uma exalta-
Messias teria dito que os judeus seriam filhos ção de elementos do movimento nazista, bem
do demônio, sendo por esse fato os herdeiros como de alguns de seus líderes. Apesar disso,
de tão grandes atos ruins47. a “Questão Judaica” ainda pede por uma so-
Seguido disso, vemos uma série de lução ao fim do livro e o autor chama por ela
três capítulos pequenos, os quais são: A Ri- ao dizer que a pátria alemã só se libertará ao
queza é o Deus dos Judeus (Reichtum ist der Gott der se livrar do judeu. Ao final, Julius Streicher é
Juden), Como o Trabalhador Hartmann se Tornou parafraseado na obra de Hiemer, que diz:
um Nacional Socialista? (Wie wurde Arbeiter Hart- “Aquele que luta contra o judeu está lutando
mann ein Nationalsozialist) e Existem Judeus De- contra o diabo”49.
centes? (Gibt es anständige Juden). O primeiro re-
capitula a associação entre judaísmo e ganân- ADORNO E OS ELEMENTOS
cia, o segundo critica o comunismo dizendo DO ANTISSEMITISMO
que ele não se importava com as questões de
Publicado em 1947, o texto da Dia-
cunho nacional, logo desprezava a causa na-
lética do Esclarecimento foi concebido entre 41 e
cionalista. Enquanto isso, o último dos três,
ambiciona por provar que mesmo os judeus
94

46 Ibid. 48 HIEMER, Ernst. Op. cit., 1939.


47 Ibid. 49 Ibid., p. 54.

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44. Os Elementos do Antissemitismo, que trata so- derno antissemitismo; nas duas teses subse-
bre os limites do conceito principal explorado quentes – V e VI – há a elaboração filosófica
no livro, o esclarecimento, possivelmente te- de uma suposta pré-história do antissemi-
ria sido adicionado tardiamente ao conjunto, tismo; já a última delas (VII), incluída no ano
já que no ano em que seus esboços estavam de 1947, faz um entrelaçamento entre nacio-
prontos, em 1942, ele não estava contido50. A nal-socialismo e antissemitismo.
obra é um resultado do "projeto sobre a dia- A obra adorniana que abarca o texto
lética" sonhado por Horkheimer. Nessa em- do antissemitismo aborda discussões acerca
preitada vários autores colaboraram e aqui do motivo pelo qual a sociedade, em lugar de
cabe lembrar que um deles, Löwenthal, aju- caminhar para um estado de maior humani-
dou na construção do texto do antissemi- dade, está caminhando em direção à barbárie.
tismo51. Para isso, traz-se o conceito de esclareci-
O capítulo intitulado Elementos do mento, que é importante ao texto do antisse-
Antissemitismo, é o quinto capítulo do livro e mitismo, associado ao conceito de mimese.
possui sete partes, ou teses, dentre as quais as Uma vez que a teoria crítica está assentada so-
três primeiras (I, II e III) tratam sobre “[...] o bre pilares marxistas e psicanalíticos, vale a
antissemitismo moderno, capitalista e, em pena lembrar as raízes freudianas que ajudam
particular, sua culminação nazista [...]” 52 ; a a construir o conceito de mimese.
quarta (IV) fala da dimensão religiosa do an- Para Adorno e Horkheimer53, o es-
tissemitismo e cita a obra freudiana Moisés e o clarecimento diz respeito ao desencanta-
Monoteísmo e os seus desdobramentos no mo- mento do mundo, ou seja, substituir os mitos

50 SILVA, Eduardo; CAUX, Luíz. Uma pré-história 52 SILVA, Eduardo; CAUX, Luíz. Op. cit., 2019,
filosófica do antissemitismo: Adorno e Horkheimer p. 256.
sobre a genealogia do ódio antissemita. Problemata: 53 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, M.
International Journey of Philosophy, Paraíba, v. 10, n. 4, Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
p. 255-272, 2019. Editor, 2014.
95

51 COSTA, Virginia. Idiossincrasia, mimese e antis-

semitismo em “dialética do esclarecimento”. Sofia,


Vitória, v. 5, n. 2, p. 463-474, 2016.

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e a imaginação que tentavam explicar a natu- mítica, mas vigia para que a humanidade não
reza em favor do saber e da racionalidade ins- recaia nessa fase, sendo, portanto: “[...] mo-
trumental. Tal natureza é, a partir disso, pura mento da dominação oposta à mimese origi-
objetividade. Essa transformação da humani- nária [...]”55.
dade é semelhante ao desenvolvimento hu- Isso nos leva a outro lugar, o qual é:
mano e os dois são como espelhos. se a mimese é a imitação, ou assimilação – do
Na infância, o processo de aprendi- outro – da natureza por parte do sujeito que
zagem infantil se dá por intermédio da imita- anseia por uma aproximação dela, caso haja
ção da alteridade, sendo por ela que ocorre a um movimento em que essa pessoa faça com
constituição de si. O desejo do pequeno su- que o outro pareça consigo – o mundo se
jeito é dado pelo outro e, portanto, é o desejo torna semelhante ao sujeito – então temos
do outro. Todavia, ao longo de seu cresci- uma mimese da mimese, ou falsa projeção.
mento, a criança é ensinada e incentivada a No momento em que me torno semelhante
abandonar a imitação e ceder lugar à raciona- ao mundo a fim de dominar essa realidade, o
lidade54. Nesse início, é característico a pre- estranho se torna familiar, enquanto na falsa
sença do prazer relacionado à pulsionalidade, projeção o conteúdo interno que salta ao ex-
o qual será controlado, posteriormente, pela terior age de modo que o mais familiar dos
instância fixa do Eu e seu princípio de reali- objetos se torne hostil56.
dade. É assim que percebemos que na fase Por projeção entendemos, em psica-
mítica os seres humanos eram marcados pela nálise, a operação na qual o sujeito expulsa de
mimese, a qual é descrita como uma forma de si mesmo em direção a uma pessoa ou as pró-
adaptação orgânica ao outro. Apesar disso, o
esclarecimento não somente substitui a fase

54Os autores não consideram que a racionalidade morto, ou a própria mimese (ADORNO;
seja totalmente contrária à mimese, mas exclui a HORKHEIMER, 2014).
alma da natureza dominando-a a partir da imita- 55 COSTA, Virginia. Op. cit., 2016.
96

ção de sua rigidez e exclusão de si mesmo como 56 COSTA, Virginia. Op. cit., 2016; ADORNO,

animista. Nesse caso, o ser do esclarecimento re- Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Op. cit.,
calca a mimese e a ratio é a mimese do que está 2014.

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prias coisas: “[...] qualidades, sentimentos, de- na qual seu pensamento sobre as coisas
sejos e mesmo ‘objetos’”57 estranhos a si. Em ocorre em blocos, isto é, há a adesão descui-
acréscimo, Adorno e Horkheimer 58 expri- dada e passiva de uma realidade social. Tal ra-
59
mem que “[...] conhecer é projetar” , ou seja, ciocínio funciona de maneira binária – sim ou
para conhecer o mundo é necessário um de- não – e é aceito ou rejeitado de maneira blo-
terminado grau de projeção, uma projeção de cada, diferenças não são bem-vindas. Por
si no exterior. Entretanto, a peculiaridade da conseguinte, o ticket antissemita é vendido
falsa projeção é a falta de capacidade de dife- pelo movimento nazista, que não aceita ele-
renciação do que provém de si e do exterior. mentos diferentes e oferece um sujeito na di-
Nessa confusão, o patológico do comporta- reção de quem é possível projetar falsamente
mento antissemita é a ausência de reflexão, ou os elementos intragáveis presentes em si.
seja, não há a devolução ao objeto do que dele Esse sujeito para os nazistas é o judeu, que,
se recebeu, resultando em um empobreci- em consequência, é o que há de mais hostil na
mento de si. Isso acrescenta uma falta de re- sociedade, o próprio inimigo diabólico60.
flexão sobre si mesmo, o que acaba retirando
do sujeito a habilidade de diferenciar a reali- O ANTISSEMITISMO DESVE-
dade de si. LADO EM O COGUMELO VE-
Tão cedo a falsa projeção faz emer-
NENOSO
gir um conhecimento equivocado acerca do
Mergulhando no lago sombrio do
mundo, logo o sujeito antissemita que projeta
conteúdo do Cogumelo, rodeamo-nos por sé-
falsamente exprime a mentalidade do ticket,
ries de caracterizações de como é e o que faz

57 LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Ber- Marcos. A epistemologia do pensamento autori-


trand. Vocabulário de psicanálise. 4. ed. São Paulo: Mar- tário na educação à luz da teoria crítica: contribui-
tins Fontes, 2001, p. 374. ções e desafios. Revista Valore, Volta Redonda, v.
58 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER,
3 (Edição Especial), p. 130-139, 2018; RODRI-
Max. Op. cit., 2014. GUES, Pedro. A psicologia do sujeito cativo: narcisismo
59 COSTA, Virginia. Op. cit., 2016, p. 468.
e regressão da consciência. 2015. Dissertação (Mes-
60 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER,
97

trado em Psicologia) – Programa de Mestrado em


Max. Op. cit., 2014; CARNIO, Michel; NEVES, Psicologia, Universidade Federal de São João Del-
Rei, São João Del-Rei, 2015.

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um judeu, a fim de que ele seja segregado com Adorno63 nos diz que aquilo que o
mais “eficiência” no seio da sociedade na- antissemita considera “o judeu”, por meio de
zista. Ora, ao notarmos esse material voltado características como as listadas por Hiemer,
ao público infantil, supomos seu caráter edu- são aspectos miméticos; e tendo em vista que
cativo em direção ao antissemitismo, o qual é o modo de vida mimético fora, há muito,
um dos pilares do nazismo, sendo ele – o ju- abandonado, sua figura é inteiramente conde-
deu – o centro da linguagem do Terceiro nável. No entanto, no estranhamento das ca-
Reich e de sua cosmovisão61. Sendo assim, na- racterísticas que foram superadas em nome
dar nestas águas requer uma criticidade atenta da civilização, é revelado, em verdade, um de-
às especificidades antissemitas que inundarão sejo onírico por elas, posto que o conteúdo
estas páginas. inquietante já foi familiar um dia e só mobiliza
Dos judeus é dito que podem ser re- o sujeito devido ao seu recalcamento, ou seja,
conhecidos pelos trejeitos e comportamento. jogou para o inconsciente a representação li-
E é assim que o formato de seu nariz é tido gada a uma pulsão cuja realização traria des-
como único – “Ele se parece com a forma do prazer64.
número 6”, “Sie sieht aus wie die Form 6”62 –, a Apesar da suposta visão intragável
barba grande dos ortodoxos é tida como no- do judeu que lança mão de impulsos renunci-
jenta, a orelha, o jeito como anda, gesticula, o ados pela sociedade, há um instante em que é
timbre da voz nasalado, o odor adocicado e permitido ao perpetrador da violência antis-
enjoativo (einen Widerlichen, süβlichen Gesuch) semita se utilizar desses elementos condená-
que pode ser bem farejado por um nariz fino, veis, a saber, quando o objetivo do uso é des-
como o dos arianos que figura o ideal estético truí-lo. Sendo assim, embora o sentido do ol-
nazista. fato relembre um momento remoto em que a

61 HERF, Jeffrey. Inimigo judeu: propaganda nazista 64 FREUD, Sigmund. O infamiliar/das Unheimli-
durante a segunda guerra mundial e o holocausto. che/Sigmund Freud; seguido de o homem da
São Paulo: EDIPRO, 2014. areia/E.T.A Hoffman. Belo Horizonte: Autêntica
62 HIEMER, Ernst. Op. cit., 1939, p. 11 [tradução Editora, 2019; LAPLANCHE, Jean; PONTALIS,
nossa]. Jean-Bertrand. Op. cit., 2001; ROUDINESCO,
98

63 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER,


Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise.
Max. Op. cit., 2014. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

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partir dele os seres pleiteavam um ato de
Hoje eles se vestem de maneira elegante
união com a natureza, imiscuindo-se no outro E há tempo não querem mais ser judeus
considerados.
e com ele se identificando, tal como o ato mi- Por isso mantenha os olhos abertos e se
mético, os antissemitas, com seus finos nari- lembre:
Uma vez judeu – judeu sempre!
zes, almejam identificar um judeu por inter-
médio de seu olfato65. Nesse momento, há o evocar de
O estranhamento do judeu é impul- imagens da diáspora judaica no capítulo inti-
sionado pelo nacionalismo que sustenta o tulado Como os judeus vieram até nós?. Nelas, te-
pensamento nazista, o qual é uma reação à mos a evidência da designação estrangeira
tentativa de igualdade. Nisso, o privilégio dada aos judeus, um povo não ariano prove-
ocorre para aqueles que estão ligados à terra niente do médio oriente. Porém, a inquieta-
de maneira natal e transgeracional, mas ao es- ção não poderia ser maior uma vez que, após
trangeiro não é estendido um direito de cida- anos, esse povo se assimilou67 e possui dife-
dania. Ora, o povo é estrangeiro em terra ger- renças mínimas68 nas quais o ódio a eles se an-
mânica e tem por precursor uma figura dupla- cora. Por conseguinte, “O que repele por sua
mente estrangeira, ou seja, Moisés, nem egíp- estranheza é, na verdade, demasiado fami-
cio, nem hebreu. Assim, Hiemer66 ressalta: liar”69. O que se percebe nas peculiaridades
são as idiossincrasias que, resultante de ele-
Uma vez, do Oriente eles vieram, mentos miméticos que foram renunciados
Sujos, miseráveis, os bolsos vazios estive-
ram, pelos antissemitas, são projetadas agora nos
Mas após alguns anos
Negócios tiveram

65 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, 68 Pilar central do Narcisismo das Pequenas Dife-
Max. Op. cit., 2014; HIEMER, Ernst. Op. cit., renças de Sigmund Freud. Para um debate mais
1939. acurado, consultar O Tabu da Virgindade (1918),
66 HIEMER, Ernst. Op. cit., 1939, p. 15 [tradução Psicologia das Massas (1921) e Mal-Estar na Civi-
nossa]. lização (1930).
67 Sobre a assimilação judaica ocidental, consultar 69 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER,

materiais sobre Iluminismo Judaico (Haskalá – Max. Op. cit., 2014, p. 172.
99

‫ )השכלה‬e o filósofo berlinense Moses Mendels-


sohn. O livro Haskalá – O Iluminismo Judaico de
Arnaldo Niskier aborda o assunto.

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judeus. O contato com esse conteúdo recal- Eva e Adão e o anseio de se tornarem simila-
cado causa o ódio e o anseio por aniquila- res à natureza (divina) ao esperar que a maçã
mento. É o ódio direcionado à idiossincra- os tornasse como D’us. Entretanto, esse não
70
sia . é o único elemento intragável, mas o deicídio
Nisso, o judeu que é identificado e a traição de Judas, sendo ambos desempe-
como aquele que pratica tais idiossincrasias nhados por judeus72. Sendo assim, a imagem
não é considerado enquanto pessoa, posto do judeu é construída a partir do traço diabó-
que não renunciou às estratégias miméticas. lico repugnante ao nazista.
Então, Hiemer71 mostra, por meio de um per- O demônio é como a figura tenta-
sonagem infantil, em seu capítulo intitulado dora que desperta a inconformidade e os de-
Como um camponês alemão foi retirado de sua casa e sejos recalcados. A figura demoníaca era
fazenda, a exclusão de judeus como a exceção. como os anjos, senão um dos maiores, e se
A criança afirma que quando tiver uma pro- transforma nessa figura funesta após uma
priedade, ela sempre pensará em seus vizi- tentativa de ser maior ou como o próprio
nhos, exceto se esses forem judeus. D’us. Assim como na alegoria, os judeus que
Na idiossincrasia projetada ao judeu tentaram se assimilar ao máximo dentre a cul-
encontramos as características enganadora, tura alemã agora são demonizados pelas pe-
trapaceira, astuta e ardilosa, as quais são atri- quenas divergências que possuem. Logo, ele
buídas ao diabo na Bíblia cristã e aqui pos- é como o grande Mal cristão a respeito do
suem um papel similar, já que a cosmovisão qual é necessário identificar e combater. É
cristã banha o ideal nazista de mundo. Dessa como a destruição dos justos preconizada bi-
forma é repudiado o atributo demoníaco pri- blicamente: “Pois os judeus querem destruir
mevo surgido entre as relações humanas, ou a nós alemães”73. Mas, antes de tudo, neces-
seja, a astúcia da cobra, a mentira que engana
100

70 Ibid. 73HIEMER, Ernst. Op. cit., 1939, p. 31 [tradução


71 HIEMER, Ernst. Op. cit., 1939. nossa].
72 PEREIRA, Wagner. Op. cit., 2014.

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sita de um Salvador para que os irmãos uni- de sangue do próprio antissemita, o qual é
dos em uma comunidade vençam efetiva- justificado racionalmente na eliminação do
mente. “elemento indesejado”75.
Com efeito, o antissemitismo renega A paz virá e quando vier será pela
o seu viés religioso, mas demonstra seu pro- eliminação do inimigo judeu, associado pelos
fundo elo com a religião. Em lugar daqueles arianos ao conhecimento marxista em que a
que pelejam em favor de sua religião, temos sociedade é vista a partir da lente da luta de
os fanáticos nazistas que também podem ter classes que, por conseguinte, é como o motor
ódio para com aqueles que não partilham da do modo de produção capitalista. No en-
mesma “fé”, ou não se encaixam em seus tanto, tal modelo social e econômico é, se-
mandamentos74. gundo a mundividência nazista, implantado
O desejo de eliminação revela o di- pelo judeu. Assim, caso ele suma, irá junto
recionamento religioso presente na propa- dele o raciocínio da luta de classes. Essa é a
ganda dissecada no Cogumelo Venenoso, pois é ideia do judeu internacional, na qual há um
a luta contra o mal e o anseio por extirpá-lo complô extramuros, portanto estrangeiro,
para alcançar a paz e a felicidade da comuni- contra a Alemanha. A figura internacional
dade que a isso aspira. Assim, as imagens evo- justifica a violência desenfreada76.
cadas do judeu sedento por sangue em Como Isso nos traz à memória o posicio-
um camponês alemão foi retirado de sua casa e fa- namento antiglobalização77 que nesse mesmo
zenda ou sendo lembrado pela crença dos as- raciocínio transfere seu repúdio aos movi-
sassinatos rituais em Como os judeus maltratam mentos de cunho internacional, bem como a
os animais nos falam sobre pontos insuportá- reação a movimentos que tem em sua base o
veis que devem ser eliminados do seio da so- ideal de igualdade social. Dessa maneira, o an-
ciedade, mas, acima de tudo, revelam o desejo tissemitismo não sobrevive sem o dirigido
101

74 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, 77O livro Mein Kampf (1925) de Adolf Hitler
Max. Op. cit., 2014. aborda isso, assim como o A Doutrina do Fascismo
75 HIEMER, Ernst. Op. cit., 1939; Ibid. (1932) de Benito Mussolini e Giovanni Gentile.
76 HERF, Jeffrey. Op. cit., 2014.

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ódio ao alvo judaico, fato que demonstra a miméticos a que o nazista alemão renunciou
atuação da falsa projeção. para que sua nação se tornasse uma das refe-
No cerne desse mecanismo, o na- rências em produção intelectual e científico-
zismo da propaganda do Cogumelo Vene- industrial. Apesar de todo o esforço, tal
noso projeta na figura do judeu elementos de praxe79 é como: “[...] os verdadeiros assassi-
sua própria essência como uma forma de de- natos rituais”80.
fesa do seu próprio funcionamento narcísico Nesse ideal, o livro de Ernst Hiemer
de similaridade paranoica. Os pontos negati- é um ticket vendido àqueles que decidiram
vos inaceitáveis ao sujeito antissemita são re- apoiar o nazismo. Sua obra entrega um pa-
calcados e, na presença do judeu, falsamente cote de pensamentos que compõem o movi-
projetados. Assim, o judeu é como que pre- mento nazista e que devem ser aceitos, posto
gado na cruz e, por meio de um assassinato que não há espaço para a igualdade entre di-
ritual, o mundo seria remido de todo o mal ferentes. Nesse raciocínio, o homem ariano é
que o assola na figura diabólica do judeu, uma entendido como superior aos demais povos e
vez que: “Sem uma solução para a questão ju- a característica de um movimento no qual to-
daica, não há salvação para a humanidade”78. dos os seus seguidores precisam pensar da
Sendo assim, a performance antissemita é maneira mais similar possível é elemento ca-
como um “ritual da civilização”, pois anseia racterístico dos movimentos de massa a partir
por retirar da sociedade aquilo que resiste ao do século XX81.
esclarecimento e remonta aos modos de vida

78 HIEMER, Ernst. Op. cit., p. 56, [tradução lência antissemita realizada há séculos no territó-
nossa]. rio. Para entender mais sobre o assunto, consultar
79 Adorno cita os pogroms em específico, os quais a obra de Howard Sachar de nome The Course of
se caracterizavam por um conjunto de violências Modern Jewish History, ou a de Raul Hilberg intitu-
dirigido a uma comunidade étnica ou religiosa. O lada A Destruição dos Judeus Europeus e a de Marcos
termo tem origem na Rússia czarista e significa Margulies chamada Os Judeus na História da Rússia.
“destruir violentamente” ou “causar estragos”. O 80 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER,

uso do vocábulo se torna mais popular a partir do Max. Op. cit, 2014, p. 81.
102

assassinato do czar Alexandre III por revolucio- 81 BARROS, R.; JOSEPHSON, S. A invenção das

nários, dentre os quais se encontrava uma jovem massas: a psicologia entre o controle e a resistência.
judia, fato que intensificou uma história de vio- In: JACÓ-VILELA, Ana Maria; FERREIRA, Ar-
thur; PORTUGAL, Francisco. (Orgs.). História da

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Para Freud82, em todas as relações da formação de identidade por meio da alie-
há um sedimento de afetos de amor e ódio nação 84 . Ele vende o ódio desmedido que
que os qualificam como ambivalentes. Po- move as engrenagens do nazismo para que ele
rém, se nos voltarmos para a massa unida a possa funcionar, nazificar a sociedade da pri-
partir da identificação de todos com algum meira metade do século passado e das déca-
elemento em comum, nossa primeira consta- das posteriores por meio da herança e recru-
tação é a de que no interior dela não há es- descimento do pensamento de tradição na-
paço para a hostilidade que é, assim, projetada zista ou fascista.
para fora, ou seja, para um outro que se en-
contra fora desse grupo. Daí que esse outro CONSIDERAÇÕES FINAIS
odiado pode ser aquele que inspira estranha- No regime do Terceiro Reich, a pro-
mento. Em definitivo, a mentalidade do ticket paganda se tornou uma verdadeira máquina
tem como sua via principal a raiva pulsante de grande rendimento agindo em favor da
pela divergência surgida no interior do movi- formação e adesão de mais pessoas ao con-
mento nazista que, antes de tudo, prega a na- junto de pensamento nazista. O livro Cogumelo
zificação do mundo: “... Hoje a Alemanha é Venenoso é, nesse imbróglio, uma das literatu-
83
nossa! Amanhã será o mundo todo!” . ras de propaganda fundamentais produzidas
Dentro da mesma ideia, o Cogumelo pelo partido nazista a fins de educação ideo-
Venenoso é o próprio ticket antissemita materi- lógica. A ideia era, portanto, oferecer um con-
alizado e vendido ao público infantil para que junto de reflexões violentas a respeito de uma
as primeiras gerações cresçam aderindo à re- das pedras angulares do nazismo: o antisse-
alidade oferecida pelo movimento nazista e mitismo.
reproduzindo seus slogans. Esse é o intento Para entender a obra de maneira crí-
tica, um percurso foi trilhado que vai desde

psicologia: rumos e percursos. Rio de Janeiro: Nau, 83 LUTES, Jason. Berlim. São Paulo: Veneta, 2020, p.
103

2008, p. 441-461. 522.


82 FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise 84 ROSENBERG, Matthew. Op. cit., 2014.

do eu e outros textos: (1920-1923). São Paulo: Com-


panhia das letras, 2011. (Obras completas, v. 12).

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os primórdios do povo hebreu no mundo an- do próprio mal e o mundo precisa de salva-
tigo, passando por sua diáspora e conse- ção, bem como de um salvador. Por fim, o
quente convivência com uma série de xeno- ideal antissemita é apresentado como um
fobias e preconceitos, até chegar no moderno ticket e assim vendido ao público infantil.
antissemitismo e suas implicações na Idade O ódio ao judeu que é característico
Contemporânea até a ascensão nazista. Após da obra pode ser, então, abordado das mais
isso, um resumo minucioso é feito da obra de diversas maneiras, mas nos chama a atenção
Hiemer e, em seguida, um resumo da obra do a possibilidade de leitura a partir da Teoria
antissemitismo de Adorno para explicar con- Crítica, pelo olhar de Theodor Adorno e Max
ceitos e partes fundamentais de serem apre- Horkheimer cujas vidas ocorreram contem-
sentadas antes de qualquer discussão, a saber: poraneamente à ascensão e implementação
esclarecimento, mimese, projeção e mentali- do regime nazista, e sobre quem as mãos
dade de ticket e falsa projeção. desse Estado pesou, se consideramos suas
Pela lente adorniana, percebemos origens judaicas. Por isso, a obra da chamada
que o judeu é associado a imagens miméticas primeira geração dessa teoria acaba por refle-
o que faz com que seja repelido, visto que há tir diversas vezes sobre o fenômeno do fas-
muito tempo a civilização abandonara o estilo cismo e nazifascismo que estavam se desen-
de vida mimético. Além disso, o judeu é recu- volvendo no momento da escrita de tais tra-
sado como estranho estrangeiro que carrega balhos. É o caso do antissemitismo integrado
este título por suscitar questões não resolvi- à obra da Dialética do Esclarecimento.
das e familiares àqueles que os excluíam. É A partir da leitura conjunta do livro
neste raciocínio que a figura do judeu é de- de Ernst Hiemer e da obra de Adorno e
monizada e segue a ideia de comparação de- Horkheimer, verificamos que ler o Cogumelo
moníaca do antijudaísmo da Idade Média e Venenoso é como visualizar um exemplo de
Moderna. Logo comparamos o nazismo com tudo aquilo que os autores compreenderam,
os sistemas religiosos, por mais que eles não pois o Cogumelo Venenoso é a própria mentali-
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quisessem se denominar desta forma. Na dade de ticket nazista. Ele oferece não só os
ideia religiosa, o judeu é como a encarnação

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elementos para um pensamento segregacio- não há um conhecimento do mundo que con-
nista, mas as ferramentas de identificação da- sidera a voz do outro, mas só a sua própria
quilo que é diferente de sua doutrina. O ticket concepção. Este texto revela, enfim, a falta de
antissemita oferecido por essa obra nazista diferenciação entre os limites de si e do outro,
sustenta a própria mentalidade blocada que pois a partir disso surge a dominação, exclu-
procura jogar em algum inimigo as inquieta- são e assassinato desse outro.
ções de si mesmo, já que o nazismo, rígido em
sua doutrina militar, não aceita dissensões, REFERÊNCIAS
posto que são um só povo – Ein Volk, ein ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER,
85
Reich, ein Führer . Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2014.
Para além disso, o livro se vale de
uma estrutura discursiva similar àquela que BARROS, R.; JOSEPHSON, S. A invenção
das massas: a psicologia entre o controle e a
eles rejeitam no judeu. Uma delas é a religiosa resistência. In: JACÓ-VILELA, Ana Maria;
que acusa um grupo também religioso, iden- FERREIRA, Arthur; PORTUGAL, Fran-
cisco. (Orgs.). História da psicologia: rumos e
tificando os judeus enquanto figuras diabóli- percursos. Rio de Janeiro: Nau, 2008, p. 441-
cas e adotando a crença em uma salvação, 461.
pois é após a exclusão dos judeus que o CARNIO, Michel; NEVES, Marcos. A epis-
mundo será remido. Dessa forma, para iden- temologia do pensamento autoritário na edu-
cação à luz da teoria crítica: contribuições e
tificar um judeu, lançam mão de estratégias desafios. Revista Valore, Volta Redonda, v. 3
miméticas com a justificativa de resolver a (Edição Especial), p. 130-139, 2018.
Questão Judaica. COSTA, Raquel. Este artigo sangra história:
O livro é, assim, um ataque propa- a mentalidade da sobrevivência em Maus de
Art Spiegelman. Revista Poder & Cultura, Rio
gandístico violento contra os judeus, a partir de Janeiro, v. 7, n. 14, p. 295-322, 2020.
de um juízo criado pelos nazistas, sem o co-
COSTA, Virginia. Idiossincrasia, mimese e
nhecimento acerca daqueles que eram seus vi- antissemitismo em “dialética do esclareci-
zinhos. Pois que pelo uso da falsa projeção, mento”. Sofia, Vitória, v. 5, n. 2, p. 463-474,
2016.
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85Famoso slogan nazista que significa: Um povo


(Volk), um reino (Reich), um líder (Führer).

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