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JANUS 2014

3.22 • Metamorfoses da violência


Crime organizado: um fenómeno em adaptação
e crescimento Maria Eduarda Canas Mendes

O conceito de crime organizado tem A criminalidade organizada regista-se igualmente nografia infantil, pirataria audiovisual, forneci-
sofrido alterações ao longo dos tempos, e enquan- na esfera ambiental, onde, por exemplo, o eleva- mento de artigos contrafeitos, tráfico de espécies
to os criminologistas e os sociólogos tentam do preço do tratamento dos resíduos, propor- ameaçadas, lavagem de dinheiro, imigração ile-
identificar as suas caraterísticas, este rapidamen- cional ao aumento das quantidades, despoletou gal, tráfico de seres humanos, síntese de drogas
te passa a ter uma nova dimensão. Nos últimos o seu transporte ilícito, designadamente para ilícitas, falsificação de moeda, fraude financeira e
dez anos, por toda a Europa, passou a utilizar-se a África Ocidental. Entre os diversos ilícitos am- comércio de armas de fogo proibidas.
a expressão rede criminosa como sendo a mais bientais, integra-se o tráfico de animais exóti- Só no âmbito do tráfico de estupefacientes, im-
ajustada às especificidades deste fenómeno. cos que se gradua no morticínio de espécies, porta salientar que em 2012 surgiram setenta
Perante as variadíssimas definições e consequen- na maioria das vezes em vias de extinção. novas drogas sintéticas e psicotrópicas (psicoa-
tes dificuldades na elaboração de um conceito Também a subida dos preços, desde 2006, de tivas), com venda online.
de crime organizado, consideramos aqui o crité- metais não preciosos, como o cobre, o designa- É também crescente a fraude de cartões de cré-
rio conceptual adotado pela União Europeia na do ouro vermelho, o ferro, bronze e alumínio, dito, por via da sua utilização na internet, que
Decisão-Quadro 2008/841/ JAI do Conselho, de entre outros, tornou bastante atrativo, em todo aparenta ser uma atividade criminal de baixo
24 de outubro de 2008, relativa à luta contra a o espaço europeu e particularmente no nosso risco e altamente lucrativa: em 2012 produziu
criminalidade organizada. Assim, uma organiza- país, o furto destes materiais. Nestes casos, além cerca de 1,5 mil milhões de euros de rendimen-
ção criminosa constitui-se quando mais de duas do prejuízo económico, porque normalmente to para as organizações criminosas na UE.
pessoas colaboram, por um período indefinido incorporados em infraestruturas críticas de abas- Outra atividade criminosa ligada também à utili-
de tempo, na prática de infracções passíveis de tecimento, o furto destes materiais pode afetar zação da internet é o roubo de identidade. Esti-
pena privativa de liberdade cuja duração máxi- drasticamente redes de telecomunicações, cami- ma-se que 12% dos utilizadores da internet so-
ma seja, pelo menos, igual ou superior a quatro nhos de ferro e a distribuição de energia, com freram fraude online e 8% roubo de identidade,
anos, com objetivos lucrativos ou de poder. consequências preocupantes ao nível da segu- ainda que apenas cerca de 30% dos cibercrimes
rança nacional. sejam participados às autoridades policiais.
Identificação da ameaça Importa ainda referir a identificação, no transa- Considera-se ainda que a União Europeia é um
O crime organizado, numa perspetiva social, é to e no corrente ano, em mais de quinze países alvo muito atraente para o cibercrime em todas
um flagelo de dimensão universal, fenómeno europeus, de uma extensa rede de profissionais as suas formas, devido ao alto nível de penetra-
complexo e dinâmico, que retira sagazmente ligados a provas desportivas de alto nível, in- ção da internet – 73% – associada à sua intensi-
benefício das novas tecnologias, da comunica- cluindo o futebol, comprometidos com a vicia- va utilização no quotidiano (SOCTA 2013).
ção universal, da economia global e da socieda- ção de resultados. Bem se pode inferir que tais Além disso, a expansão de serviços encriptados
de plural. eventos estão cada vez mais vulneráveis a esta e de produtores de anonimato na atividade onli-
O tráfico e produção de drogas, a imigração ilegal, atividade criminosa. ne não deixam de ser aproveitados pela crimina-
o tráfico de seres humanos, ou a contrafação de lidade organizada.
moeda são áreas tradicionais do crime organizado. Dimensão e contexto social A fraude financeira, pela sua dimensão e conse-
A verdade é que a criminalidade organizada tem A expansão da criminalidade organizada revela- quências nefastas, destaca-se de entre os crimes
vindo a diversificar as suas atividades e a proje- se por contar já, segundo estimativa do relatório económicos. Priva os Estados de receitas fiscais
tar o impacto da sua nociva presença em áreas estratégico sobre a Avaliação da Ameaça da Cri- e de segurança social e, em autêntica concorrên-
inesperadas da sociedade. E, simultaneamente, minalidade Grave e Organizada, elaborado pela cia desleal, retira rendimentos do mercado legal.
não deixou de potenciar em seu benefício as vul- Europol em 2013, com 3.600 organizações de É o maior indício da falha dos sistemas de regu-
nerabilidades da atual situação económica. Falsi- crime organizado em atividade na União Euro- lação e desestabiliza os sistemas económicos.
ficam-se, agora, bens de consumo diário, deter- peia e, facilitado pelo contexto social, é expetá- Estima-se que a UE perca anualmente cerca de
gentes, alimentos, cosméticos e medicamentos, vel o seu crescimento. cem biliões de euros devido a fraude financeira
para além dos tradicionais produtos de luxo. Na realidade, os cidadãos tornam-se cada vez (SOCTA 2013).
Além da ameaça que os produtos contrafeitos mais tolerantes e recetivos, ainda que incons- Este fenómeno não deixou indiferente o Estado
representam para a saúde e segurança dos con- cientemente, a interesses ilícitos, designada- do Vaticano, como o demonstra a Carta Apostó-
sumidores, não só pela eventual presença de mente no que se refere à aquisição de produtos lica em forma de Motu Proprio do papa Francis-
substâncias tóxicas, como pelo menor efeito contrafeitos, ao tráfico de influências, à corrup- co, de 8 de agosto do corrente ano, sobre a
terapêutico dos medicamentos, é de referir que ção e à fraude fiscal, criando uma proximidade prevenção e o combate à lavagem de dinheiro,
a procura destes produtos, dinamizada pela re- ao crime organizado, o que também dificulta o ao financiamento do terrorismo e à proliferação
dução do poder de compra do consumidor, esti- seu combate. de armas de destruição maciça, ao instituir a Co-
mula a expansão da economia não registada, missão de Segurança Financeira, com a função
vulgo economia paralela1. Em Portugal, já em Operacionalidade de supervisão das instituições que desenvolvem
2009, as operações que escapavam à rede da fis- Alteração relevante, nos últimos anos, na opera- atividade profissional de natureza financeira,
calização das Finanças representavam 24,2% do cionalidade das organizações de crime organiza- respondendo a uma recomendação do Comité
Produto Interno Bruto (Gonçalves, 2010:16-17). do é a utilização das mais modernas tecnologias Moneyval, do Conselho da Europa, que ajuda
Também a concessão fraudulenta de crédito au- de comunicação como o ciberespaço, e a sua os países a cumprir os controlos internacionais
menta o risco de integração na economia nacio- capacidade e propósito de utilização de estrutu- de lavagem de dinheiro.
nal de fluxos financeiros ilícitos, provenientes ras empresariais legais, nos vários países. Mas a atividade das organizações criminosas
da atividade de estruturas criminosas transna- O uso pelo crime organizado das tecnologias de exerce-se muitas vezes por meio de estruturas
cionais (RASI, 2012). comunicação manifesta-se na distribuição de por- de negócio legal, frequentemente com nível

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internacional, suportadas em atividades legíti-
Aprovado
mas cujos recursos são depois investidos nas nível
atividades criminosas, como a corrupção. Pene- Internacional
trando no mundo empresarial legal, assim ca-
UE UE
muflada, infiltra-se e confunde-se na sociedade. Tipologia criminal Harmonização
Assistimos assim à deliberada infiltração destas uniforme regime sancionário
Conceito
redes criminosas na sociedade, nomeadamente crime
organizado
influenciando a economia e os altos represen-
Diretivas sobre
tantes de instituições nacionais ou locais. regras de
transparência; Identificação Base de dados
Os criminosos tentam o branqueamento de ima- Legislação
Divulgação de do europeia;
comum
gem, a credibilização socioeconómica e procuram dados dos titulares COMBATE AO crime Cooperação
cargos públicos CRIME
a respeitabilidade, conectando-se com o poder
ORGANIZADO
público, quiçá infiltrando-se e atacando o seu
interior, as suas leis e os seus altos dirigentes, e
UE
consequentemente as organizações estatais. Enfoque Partilha UE
de Investigação Acompanhamento
Enquanto fenómeno interno, será um problema prospetivo
informação criminal
de cada Estado. Todavia é inquestionável a sua
internacionalização, propiciada por um conjun-
to de circunstâncias como a maior liberdade Utilização de Protocolos;
novas tecnologias;
de circulação de pessoas, mercadorias e capi- Capacidades
Regras de utilização ao nível europeu
bem definidas UE
tais, o esbatimento das fronteiras, a criação do
Prevenção
espaço Schengen, o incremento das trocas co-
merciais à escala mundial, a implosão da União
Soviética e a disseminação da corrupção. Estrutura de combate ao crime organizado. Fonte: Autora.

Reestruturação do crime organizado


Em termos estruturais, a suposta homogeneida-
de étnica e a hierarquia dos grupos criminosos Atualmente também assistimos à denominada cri- Impõe-se assim, para além de medidas repressi-
pertencem ao passado. Estima-se que 70% das minalidade itinerante (RASI: 2012), com forte vas, porque o sentimento de impunidade fragiliza
organizações criminosas em atividade na Euro- impacto à escala europeia. São redes de indivídu- as instituições do Estado de Direito, que a comu-
pa têm membros multinacionais, com cidadãos os com capacidade de operar numa base interna- nidade internacional elabore uma estratégia com-
de dentro e fora da Europa (SOCTA 2013). cional e em múltiplas áreas do crime, explorando preensiva, de colaboração multidimensional, in-
Por outro lado surgem coligações ad hoc, de opor- em seu benefício as diferenças existentes entre os dispensável no combate ao crime organizado. n
tunidade e de cooperação, muito mais importan- trinta ordenamentos jurídicos nacionais existen-
tes do que relações de estrutura ou comando formal. tes na União Europeia.
A diversidade jurídica é um catalisador para estes
grupos criminosos, que assim usufruem da eva-
são ao sistema judiciário. A título de exemplo, a
Urge pois que os Estados, mefedrona, estimulante cujos efeitos físicos são
ainda que sacrificando comparáveis aos da cocaína, começou a ser co-
mercializada em 2007 na Europa, estando apenas
a sua soberania jurídica, proibida em quinze dos seus Estados-membros.
harmonizem ordenamentos A criminalidade organizada constitui assim um novo
legislativos e práticas tipo de ameaça para a economia, para a segurança
policiais de investigação. e um sério risco para as instituições democráticas Notas
dos Estados. 1 Engloba todas as transações económicas que contribuem para
Pela natureza e caraterísticas do crime organiza- o PIB, mas que, por diversas razões, não são tidas em conta, e
do, a sua contenção é uma questão de segurança inclui a produção ilegal, produção não declarada (oculta ou sub-
A doutrina ortodoxa do crime organizado base- humana, que só a cooperação interna e interna- terrânea), produção informal, produção para uso próprio (auto-
consumo) e produção subcoberta por deficiências da estatística.
ada nas organizações criminais hierarquizadas cional permite combater com eficácia.
está substituída por um paradigma mais sofisti- Urge pois que os Estados, ainda que sacrificando Referências bibliográficas
cado e moderno, como o espírito empresarial a sua soberania jurídica, harmonizem ordena-
e o conceito de redes sociais fluídas. mentos legislativos e práticas policiais de investi- Carta Apostólica em forma de Motu Proprio para a prevenção
e o combate à lavagem de dinheiro, financiamento do terro-
Assim, por uma combinação de fatores como a gação. E na investigação criminal é indispensável rismo e proliferação de armas de destruição de massa, Papa
proximidade dos principais destinos dos merca- a recolha e partilha de informação e enfoque Francisco, 8 de agosto de 2013. [Em linha]. [referência de 1
dos, localização geográfica, infraestruturas crimi- prospetivo da atividade criminal, essencial no Novembro de 2013]. Disponível na internet em:
http://www.vatican.va/holy_father/francesco/motu_proprio/
nais, tipos de grupo e processos de migração sobre combate eficaz ao crime organizado, já que, para
documents/papa-francesco-motu-proprio_20130808_preven-
criminosos chave ou grupos criminosos organiza- além da sua penalização, impõe-se combater este zione-contrasto_po.html.
dos em geral, desde 2007 que o relatório do EU fenómeno em prol da paz e segurança dos Estados. Decisão-Quadro 2008/841/JAI do Conselho, de 24 de outubro
Organised Crime Threat Assessment identificou Em suma, a criminalidade organizada, para além de 2008, relativa à luta contra a criminalidade organizada. JOL
300 de 11.11.2008, p. 42-45.
uma “criminalidade de territórios”. Esta surge ado- de uma ameaça ao Estado de Direito, é uma ame- EU Organised Crime Threat Assessment (OCTA (2007).
tando centros estratégicos, que recebem fluxos, aça à segurança. Ainda para mais quando se EU Serious and Organised Crime Threat Assessment (SOCTA)
espalham os seus efeitos na UE e para além dela, assiste ao avolumar das ligações entre o crime (2013).
Gonçalves, Nuno Miguel Vilarinho (2010) — “A Economia
criando maiores oportunidades de crescimento, organizado e redes terroristas. Ligações que poten-
Não Registada em Portugal”. Tese de Mestrado em Economia.
mais e maiores mercados criminais; são os chama- ciam a projeção desta ameaça no espaço europeu Faculdade de Economia, Universidade do Porto.
dos criminal hub. de Liberdade, Segurança e Justiça. MAI, Relatório Anual de Segurança Interna (2012), Lisboa.

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