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Aptendízag Nunca descobrimos tanto sobre


o cérebro quanto nos últimos 20 anos.
Como as pesquisas de neurociência podem
impactar a escola, hoje e no futuro
Texto PEDRO ANNUNCIATO Edição WELLINGTON SOARES

26 MARÇO2018 novaescola.org.br
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m por dentro
Keurociência

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,ocê já imaginou se fosse possível ver o "Esses achados demonstram que fatores individu-
que acontece na cabeça do seu aluno ais contribuem para a sincronia além da natureza
durante uma aula? Pois um grupo de do próprio estímulo", afirma o estudo.
pesquisadores do Departamento de Psi- Outra descoberta: a empatia entre professor e
cologia da Universidade de Nova York e de outras aluno e entre estudantes tem grande peso. Os pes-
universidades se propuseram a realizar essa faça- quisadores passaram um questionário para desco-
nha. Eles publicaram, no ano passado, os resulta- brir como eram as relações sociais. Os jovens que
dos de um estudo que observou uma sala de aula tinham mais afinidade com o professor, geral-
de um ponto de vista até pouco tempo inacessível: mente, estavam mais em sincronia do que os que
de dentro do cérebro dos participantes. possuíam menor afinidade. E mais: ela aumenta-
A turma tinha 12 alunos de Ensino Médio e um va muito quando alunos faziam contato visual
professor. Além da observação externa, os cientistas entre si e compartilhavam uma mesma tarefa.
instalaram em cada aluno e no professor um apa- Quer dizer que a neurociência descobriu que,
relho de eletroencefalograma capaz de monitorar colocando os estudantes de frente uns para os
as ondas cerebrais e enviar as informações a um outros, abolindo a aula expositiva e mantendo
computador. Ao longo de 11 dias, os pesquisadores relações de afeto com a turma, todos aprenderão
acompanharam a atividade cere- mais? Bem, não é simples assim.
bral durante quatro tipos de ativi- Os resultados dão uma pista para compreender
dades (aula expositiva, exibição de a aprendizagem, mas muitas coisas ainda são um
vídeo, leitura e discussão da maté- mistério. Afinal, essa é apenas uma pesquisa em
Quando bebês fazem sons, ria) e algumas situações de intera- um ambiente específico, e ainda há muito o que
gestos e expressões e recebem ção (olhando para o professor, fazer. O físico americano Michio Kaku, em seu
reações dos adultos, conexões olhando entre si,próximos de cole- livro O Futuro da Mente, chega a comparar a com-
são fortalecidas. O sorriso, o gas queridos e de menos próximos). plexidade do cérebro humano à do Universo. E
toque suave durante a higiene, O objetivo era avaliara intensi- acredita-se que uma série de respostas sobre quem
conversas, brincadeiras, cores
e formas são exemplos. dade da chamada sincronia: quan- somos e como aprendemos ainda estejam escon-
do os sensores apontam atividade didas nesse pequeno cosmos. Por essa razão, em-
cerebral igual ou muito seme- presas e governos têm investido cada vez mais
São desconfortos temporários lhante entre dois ou mais indiví- nessa corrida. Por exemplo: em 2013, o então
que não causam danos duos que executam uma mesma presidente dos Estados Unidos, Barack Obama,
e ajudam no desenvolvimento:
fome entre refeições, tarefa, ao mesmo tempo. Ou seja, lançou a Brain Initiative (Iniciativa cérebro, em
um machucado leve ou os cientistas queriam descobrir se tradução livre) com um orçamento de 110 mi-
o cansaço depois da escola, alunos e professores estavam "em lhões de dólares para o desenvolvimento de tec-
se rapidamente aliviados, sintonia" durante a aula. nologias capazes de aprofundar a investigação
não causam danos. A pesquisa chegou a conclusões sobre a mente humana.
interessantes. Entre as quatro ati- Mas antes mesmo desse impulso, a ciência ob-
Também chamados de estresse vidades, vídeos e discussões em teve avanços enormes na área — e em tempo mui-
tóxico, ocorrem quando a grupo geraram maior sincronia to curto: houve mais descobertas nos últimos 20
criança passa por abandono, entre os cérebros. Por outro lado, anos do que nos últimos dois séculos. A neuro-
agressões físicas e verbais ou notou-se que o método não era cientista brasileira Suzana Herculano-Houzel,
doenças graves. A ativação tudo. Estudantes com maior capa- em A Vantagem Humana, conta que até recente-
contínua de hormônios do
estresse enfraquece circuitos cidade de foco mantinham-se ali- mente a ciência trabalhava com hipóteses equi-
cerebrais. Ainda irão se sabe se nhados com o grupo e o professor, vocadas para explicar a capacidade humana de
esses danos são reversíveis. independentemente da tarefa. aprender. Pensava-se que a origem dela estava no

28 MARÇO 2018 novaescola.org.br


DESENVOLVIMENTO

Como se faz um cérebro


Ele não nasce pronto. Interações e experiências
da criança são decisivas na primeira infância

DAS CÉLULAS ÀS REDES


neurônio A-- Quantidade de neurônios

sinapsc conexão
forte

neurônio B-----• 3 meses 2 anos 14 anos

PRIMEIRAS CONEXÕES ESTÍMULOS ATIVAÇÃO E DESATIVAÇÃO


ILUSTRAÇÕES OTÁVIO SILVEIRA E PEDRO HAMOAN

Tudo começa nos neurõnios, Nos primeiros anos de vida, Conexões frequentes crescem e
as células que formam o à medida que o uso dos circuitos viram permanentes e as pouco
cérebro. Os neurônios são se torna frequente, eles se usadas vão desaparecendo.
capazes de fazer sinapses, fortalecem e formam conexões Assim como um jardineiro
isto é, de se comunicarem cada vez mais rápidas e fortes. molda o crescimento das
por meio de sinais elétricos, Também ocorrem ligações entre plantas ao cortar alguns ramos,
formando os primeiros diversas regiões do cérebro, as experiências da primeira
circuitos de processamento que criam redes maiores infância definem quais circuitos
de informações. e mais complexas. crescem e quais são eliminados.

FONTES: FUNDAÇÃO MARIA CECÍLIA SOUTO VIDIGAL (FMCSV), CENTER ON THE DEVELOPING CHILD DA UNIVERSIDADE HARVARD;
UNO DE MACEDO, PROFESSOR APOSENTADO DA USE, E U U MIN, NEUROLOGISTA DA FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS DA UNICAMP

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.,Jeurociência

tamanho de nosso cérebro em relação às dimen- de por meio de um processo chamado dupla de-
sões do corpo. Ele seria, proporcionalmente, mui- codificação. "Se você ensinar música e expuser o
to maior do que o de outros animais (o que não aluno a ouvi-la, ele aprende algo. Mas se além
se sustenta, pelas últimas pesquisas), mas não se disso você mostrar uma partitura, a aprendiza-
sabia sequer a quantidade de células presentes no gem é favorecida", explica Roberto. Segundo o
órgão — descoberta feita pela própria Suzana. pesquisador, isso acontece porque quanto mais
O salto da produção científica que nos permi- variados forem os estímulos (visual, auditivo, mo-
tiu conhecer melhor o funcionamento dos nossos tor, emocional...), mais redes de neurônios traba-
pensamentos ocorreu a partir da década de 1990, lharão juntas, fortalecendo as conexões.
com o uso das tecnologias de imagem. "Passamos É pela mesma razão que as emoções ajudam
a enxergar que existem áreas responsáveis por na aprendizagem. Quando uma atividade peda-
cada função e como elas interagem entre si", ex- gógica provoca alegria ou afeto, a ativação da re-
plica Li Li Min, neurologista da Faculdade de Ci- gião das emoções fortalece o processamento de
ências Médicas da Unicamp. neuroimagem informações. Esses conhecimentos ajudam a com-
também permitiu saber mais sobre o desenvolvi- preender porque os alunos analisados em Nova
mento desse órgão, que matura até os 25 anos de York tiveram maior sincronia em momentos de
idade, mas pode se modificar com o tempo", com- maior envolvimento emocional.
pleta. Outro fato já conhecido é a importância dos
primeiros anos de vida no crescimento das cone- A ciência e a sala de aula
xões, e que os estímulos externos são decisivos A grande questão que se abre a partir dos avanços
(leia nos quadros ao longo deste texto). da neurociência é qual será a contribuição efetiva
desse campo à pedagogia. Há quem vislumbre
Memória e emoções uma mudança absolutamente radical no modo
Descobriu-se, enfim, que a capacidade de apren- como aprendemos e se pei niita fazer exercícios
der não é determinada só pela anatomia (que, na que lembram a ficção científica. Michio Kaku che-
verdade, não é muito diferente da de outros ani- ga a falar em uma "internei das mentes", em que
mais) e que o cérebro não nasce pronto, mas é as habilidades e conhecimentos serão baixados
uma obra construída pelas experiências vividas pelo cérebro, como um computador faz o down-
na infância e ao longo da vida. load de um arquivo. Ou seja, um processo educa-
A capacidade de memória, por cional inteiramente focado no cérebro e quase
exemplo, fundamental para a inteiramente mediado pelas máquinas.
aprendizagem, está presente em Embora o campo da neurociência seja fértil
todos os animais mas não é sim- para a imaginação, os neurocientistas do presente
plesmente natural. "A memória não parecem dispostos a soluções como essa — e
acontece pelo fortalecimento das também não têm respostas, pelo menos por en-
conexões em rede e das sinapses quanto, para o seu papel na Educação. Charles
entre os neurônios'; explica Rober- Nelson, professor da Universidade Harvard, en-
to Lent, professor do Instituto de frenta essa questão com os futuros professores que
Ciências Biomédicas da UFRJ e frequentam suas aulas sobre neurociência. "Mos-
coordenador da Rede Nacional de tramos maneiras de identificar as crianças que,
Ciência para Educação, articulada por exemplo, não conseguem aprender a ler. Mas
é o número de neurônios
que temos no cérebro, pelo Instituto Ayrton Senna. ainda não conseguimos pensar em como transpor
segundo os últimos Além disso, já se sabe que a me- esses conhecimentos para o trabalho do professor.
cálculos científicos mória se fixa com maior facilida- Esse deve ser o próximo passo", diz.

30 MARÇO 2018 novaescola.org.br


APRENDER A APRENDER

Memória, controle e flexibilidade


Para que um indivíduo seja capaz de aprender e executar as tarefas
do dia a dia, o cérebro precisa desenvolver três principais funções

AS FUNÇÕES ESSENCIAIS PARA A APRENDIZAGEM

MEMÓRIA DE TRABALHO CONTROLE INIBITÓRIO FLEXIBILIDADE COGNTTIVA


ILUSTRAÇÕES OTÁVIO SILVEIRA E PEDRO HAMDAN

É a capacidade de reter e acessar Essa função está ligada à É a capacidade de reorganizar


informações em curtos períodos. capacidade de resistir a impulsos pensamentos e procedimentos
Crianças a desenvolvem com e afastar distrações, mantendo o para adequá-los a diferentes
base em experiências com uma foco e a concentração. Sem ela, situações. Ela permite modificar
sequência de ações. É comum na as crianças não conseguiriam uma rota para escapar de um
leitura e em tarefas que exigem parar de pensar no recreio para obstáculo, flexibilizar uma
planejamento, como a resolução se concentrar nas tarefas ou regra, trocar de estratégia
de problemas e brincadeiras conter o desejo de tomar um para resolver um probelma ou
com diversas instruções. brinquedo da mão de um colega. buscar saídas para um conflito.

FONTES: CENTER ON THE DEVELOPING CHILD DA UNIVERSIDADE HARVARD E LI LI MIN, NEUROLOGISTA DA FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS DA UNICAMP

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Neurociência

O que se vê em algumas universidades estran- darta Ribeiro e Fernando Louzada mostram em


geiras é uma integração cada vez maior do campo seus estudos, com base em diversas pesquisas da
da neurociência com os conhecimentos já cons- área, como a fase profunda do sono, chamada
truído pelos pesquisadores da Educação. Harvard, R.E.M. (Rapid Eye Movement, ou movimento
MIT e Stanford — algumas das instituições mais rápido dos olhos) está ligada à seleção das infor-
prestigiadas dos Estados Unidos — já possuem gru- mações que serão fixadas na memória. Com base
pos interdisciplinares para discutir o assunto. em evidências científicas, os pesquisadores fazem
Juntar esforços pode ser desafiador, especial- duas propostas: que o horário de início das aulas
mente quando as conclusões de cada área do co- sejam fixados mais tarde e que se introduza na
nhecimento são divergentes. Tracey Tokuhoma- rotina momentos para a sesta (um sono leve que
-Espinosa, professora de neurociência em Har- dure de 60 a 90 minutos).
vard, toma como exemplo as experiências a res- Decisões como essas envolvem uma interlocu-
peito de ambientes estimulantes. Cientistas inse- ção com a gestão pública — outro desafio do cam-
riram ratinhos em locais bem diferentes dos que po. O esforço mais recente para unir política e
estão habituados, com formas, cores, sons e sensa- neurociência veio da França: o Ministério da Edu-
ções diversas, lógica parecida com a das salas de cação do país acaba de criar um conselho cientí-
aula para crianças. Eles, então, monitoraram o fico formado por 21 integrantes, entre os quais
cérebro dos animais e constataram que a mudan- seis são neurocientistas, incluindo Stanilas Deha-
ça de ambiente aumentou sensivelmente a ativi- ene, um dos maiores pesquisadores da área.
dade cerebral. Mas, ao repetir o experimento com Outra possível contribuição vem do estudo de
humanos, as alterações foram mais sutis. O resul- crianças com desenvolvimento considerado atípi-
tado parece desmentir a importância de se criar co, corno as que têm dislexia. "Estudos apontam
um ambiente físico rico, mas a pesquisadora é uma probabilidade de que esse transtorno tenha
cautelosa ao dizer que neurociência, psicologia e fundamento não apenas comportamental mas
pedagogia precisam dialogar para chegar a con- genético", afirma apsicóloga Katerina Lukasova,
clusões traduzíveis para as salas de aula. professora da Universidade Federal do ABC
Roberto Lent concorda: "A neurociência não (UFABC), que pesquisa o assunto há 20 anos. Por
esgota a explicação de como as crianças apren- outro lado, o conhecimento sobre essas condições
dem, porque isso ocorre não só nos níveis que ajuda a entender como a leitura e a escrita acon-
essa área aborda, que são células, tecidos e o cére- tecem no cérebro (leia o quadro à direita).
bro, mas também nos níveis abor- Os casos de inclusão de alunos com autismo
dados pela psicologia, a sociolo- também podem tirar proveito da neurociência. O
gia e até a economia". Os avanços professor Charles Nelson, que estuda o tema,
na aprendizagem, portanto, de- acredita que as descobertas podem ajudar a ma-
vem nascer da união das ciências pear melhor o transtorno. `As descobertas darão
biológicas com as ciências huma- apoio para que professores identifiquem mais
nas e a pedagogia. rapidamente essa condição. Nossa pesquisa mos-
A distância que ainda existe tra que autismo não é causado por pais relapsos
entre os laboratórios e as escolas — e isso já ajuda a tirar da frente uma série de
não significa que ninguém esteja equívocos na hora de lidar com a situação", diz.
tentando. Unia das certezas que Ver o que se passa dentro da cabeça dos alunos
já se têm é a importância do sono é só um primeiro passo. Ainda há muitos misté-
no funcionamento da memória. rios e perguntas que, com sorte, podem ser res-
Os pesquisadores brasileiros Si pondidas nos próximos anos. ■

32 MARÇO 2018 novaescola.org.br


O CÉREBRO E A ESCOLA

O que sabemos sobre a aprendizagem


Alguns estudos dão pistas sobre como ocorrem
as primeiras aprendizagens sobre letras e números

COMO APRENDEMOS COMO APRENDEMOS


OS NÚMEROS A LER

■ Nos primeiros meses de • No cérebro, a Área da Forma


idade, humanos conseguem Visual das Palavras é ativada
diferenciar quantidades e notar para diferenciar escritos de
transformações como adição imagens e sinais gráficos.
e subtração de elementos. • O reconhecimento dos
■ Diferentes áreas do cérebro sons utilizados na fala
áreas do é fundamental para a
são ativadas. Uma responde cérebro que
ao trabalho com pequenas reconhecem aprendizagem da leitura.
quantidades e com precisão. palavras Dificuldades com a oralidade,
Outra é responsável por portanto, estão relacionadas
operar estimativas e a problemas na alfabetização.
ILUSTRAÇÕES OTÁVIO SILVEIRA E PEDRO HAMOAN

grandes quantidades. • Em cérebros com dislexia,


■ Quando entramos na escola, foram identificadas algumas
o uso dessas áreas se une às alterações em relação aos
habilidades da linguagem para de crianças sem o transtorno.
permitir que dominemos o Mas ainda não há clareza
sistema de numeração, ou seja, se essas diferenças são a
que finalmente aprendamos causa ou a consequência da
o conceito de número. dificuldade em aprender a ler.

FONTES: LIVRO DEVELOPMENTAL COGNITIEL NEUROSOENTE (NEUROCIÊNCIA COGNITIVA DO DESENVOLVIMENTO, EM TRADUÇÃO LIVRE), DE MARK H.JOHNSON E MICHELLE DE
HANN; EARTIGO LEARNING TO SEE WORDS (APRENDENDO A VER PALAVRAS, EM TRADUÇÃO LIVRE), DE BRIAN A WANDELL,ANDREAS M. RAUSCHEKER EJASON D. YEATMAN.

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