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A ABORDAGEM DESENVOLVIMENTISTA DA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR – 20


ANOS: UMA VISÃO PESSOAL

Article in Revista da Educação Física/UEM · December 2008


DOI: 10.4025/reveducfis.v19i4.6039

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Edison de Jesus Manoel


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DOI: 10.4025/reveducfis.v19i4.6039

ARTIGO DE OPINIÃO

A ABORDAGEM DESENVOLVIMENTISTA DA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR – 20


ANOS: UMA VISÃO PESSOAL

THE DEVELOPMENTAL APPROACH OF SCHOOL PHYSICAL EDUCATION – 20 YEARS: A


PERSONAL VIEW

Edison de Jesus Manoel∗

RESUMO
O livro “Educação física escolar: Fundamentos de uma abordagem desenvolvimentista” foi publicado em 1988. Este ensaio
traz uma reflexão sobre os vinte anos dessa obra a partir de uma discussão do contexto em que ela foi produzida e de suas
bases teóricas. Ante a discussão da natureza do desenvolvimento e as visões sobre processo nos períodos anteriores e
posteriores ao livro, apresentam-se argumentos no sentido de destacar os limites e possibilidades das idéias contidas no livro
de forma a contribuir com os esforços para a constituição da educação física na escola.
Palavras-chave: Desenvolvimento. Educação Física. Escola.

INTRODUÇÃO Contar estórias é muito dificultoso. Não


pelos anos que se passaram. Mas pela
O pensamento pedagógico na educação física astúcia que têm certas coisas passadas –
escolar brasileira viveu um momento singular nos de fazer balancê, de se remexerem dos
anos 1980. Após mais de sessenta anos de escassez lugares (GUIMARÃES ROSA,
de textos que sistematizassem uma prática da Grande Sertão: Veredas).
educação física na escola, são publicadas, num
Trata-se, enfim, de uma apreciação pessoal
intervalo de quatro anos, três obras que fomentaram
do que ficou conhecido como a abordagem
um amplo debate na comunidade, chegando mesmo
desenvolvimentista da educação física escolar.
a dar novos rumos à área (FREIRE, 1990; SOARES
et al., 1992; TANI; MANOEL; KOKUBUN;
PROENÇA, 1988). Não seria exagero dizer que os UMA ABORDAGEM PARA A EDUCAÇÃO
ecos desse debate são sentidos ainda hoje, tendo sido FÍSICA ESCOLAR?
inclusive objeto de análise investigativa o contexto
em que tais obras germinaram (DAÓLIO, 1998). O No início da década de 1980 havia na
meu propósito com o presente ensaio não foi instituição (Escola de Educação Física da USP)
enveredar pelos conteúdos e tempos desse período, onde eu começava o mestrado um sentimento da
tarefa já empreendida por outros de forma muito necessidade de se buscar uma proposta de
competente. A minha intenção é discorrer sobre educação física escolar. Nas aulas da Professora
minhas reminiscências desse tempo, já que fui co- Visitante no programa, Dra. Margareth Thompson
autor de uma das obras mencionadas. Aqui cabe um (Universidade de Illinois, Estados Unidos), tivemos
alerta: oportunidade de refletir sobre o fato de que a


Professor titular do Departamento de Pedagogia do Movimento do Corpo Humano da Universidade de São Paulo,
Grupo de Estudo do Desenvolvimento da Ação e Intervenção Motora.

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educação física escolar é pródiga em abordagens Ciência do Movimento, Estudos do


no que concerne ao desenvolvimento curricular. O Movimento Humano, etc. O enfoque recai
texto básico dessa disciplina, de Jewett e Bain sobre a seleção e sistematização dos
(1985), identificava sete modelos: Educação conhecimentos produzidos nas subdisciplinas
Desenvolvimentista, Educação Física Humanista, da Cinesiologia e organizados em dimensões
Aptidão Física, Educação do Movimento, Estudos biológicas, psicológicas e socioculturais. A
Cinesiológicos, Educação Lúdica e Significado Educação Lúdica busca, com o conceito de
Pessoal. jogo, desenvolver conteúdos que seriam mais
A Educação Desenvolvimentista entende amplos e significativos do que os ligados à
que a escola tem a responsabilidade de criar um atividade física e ao exercício. As atividades
ambiente sintonizado com as necessidades da lúdicas se colocam num continuum que vai do
criança definidas a partir do reconhecimento do espontâneo e relativamente livre de regras
processo de desenvolvimento pelo qual ela para o regulado por regras e com maior
passa. Esse processo é visto como regular e exigência de competência motora para
universal, cabendo ao educador traduzir os participação. Por último, tem-se o modelo de
padrões desenvolvimentistas em atividades que Significado Pessoal, que entende ser papel da
o nutram. A Educação Física Humanista educação física na escola construir
considera os pressupostos da Educação experiências que tenham significado para
Desenvolvimentista, mas prefere enfatizar a cada indivíduo. Nessa busca de proporcionar
singularidade de cada indivíduo, em significado, a educação física se estruturaria
contraposição à idéia de regularidade e em torno de valores, sentimentos e emoções
homogeneidade do modelo desenvolvimentista. dos estudantes e da comunidade em que estão
O papel da educação física seria o de assistir o inseridos.
estudante em sua busca de identidade pessoal. Foge ao escopo do ensaio ir além dessa breve
A Educação do Movimento tem em conta os descrição dos modelos curriculares. De qualquer
dois modelos anteriores e coloca no “movimentar-
forma, o leitor identificará semelhanças e
se” de cada indivíduo o cerne de sua ação.
similaridades entre os modelos descritos e as
Usando do sistema de notação do movimento
propostas de educação física escolar que estão ou
desenvolvido por Rudolph Laban, a Educação do
estiveram em voga no Brasil. Cabe destacar que
Movimento busca fazer com que cada estudante
Jewett e Bain (1985) mostram não só as
explore suas potencialidades para se mover em
dimensões que consideram o que o corpo faz, particularidades de cada modelo, mas também
como o corpo se move, onde o corpo se move e quanto eles se sobrepõem e, em alguns casos, até
quais as relações que se estabelecem quando ele comungam dos mesmos princípios. Digo isso
se move. A Aptidão Física teve uma presença porque na educação física brasileira tem sido
forte na escola a partir da década de 1960, comum o embate entre as diferentes abordagens,
enfocando as práticas de ginástica e de exercício o que levou a uma ênfase nas diferenças e
físico como forma de melhorar as capacidades incompatibilidades filosóficas, acadêmicas e
físicas e assim desenvolver a condição física geral ideológicas entre elas. Todavia, para o
dos estudantes. A partir da década de 1980 essa desenvolvimento curricular e principalmente para
condição física é associada a determinadas visões a atuação do professor, esses embates nem
de saúde, e a preocupação da educação física na sempre foram produtivos. Na dimensão da
escola muda gradualmente para buscar incutir no prática, a possibilidade de articular idéias e
estudante um estilo de vida ativo. noções de diferentes modelos poderia possibilitar
O modelo de Estudos Cinesiológicos ao professor uma melhor condição para construir,
corresponde a um modelo pensado inovar e implementar programas sintonizados
originalmente para ser aplicado no nível com uma realidade que, ao contrário do que
médio de educação escolarizada. O modelo se concebem os modelos, é multifacetada. Não se
fundamenta na concepção de disciplina trata, como pode parecer à primeira vista, de
acadêmica de educação física conhecida por preconizar que não se deva ter uma abordagem,
algumas denominações como Cinesiologia, mas sim, de se ter a condição de dialogar com

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outras visões, afinal como diz um escritor psicologia cognitivista do desenvolvimento


brasileiro, (BRUNER, 1978).
Todo esse movimento caracterizou-se por
[...] nem a alma de um homem é tão uma “naturalização” da pedagogia, isto é, a
estreita que não caibam nela cousas busca de tornar a pedagogia uma ciência com
contrárias (MACHADO DE ASSIS,
objeto de estudo próprio, nos moldes das
Casa Velha).
ciências naturais. Pedagogos foram buscar bases
científicas para suas ações em ramos da
UMA ABORDAGEM psicologia como a psicologia experimental -
DESENVOLVIMENTISTA? voltada em grande parte para compreender a
aprendizagem – e a psicologia do
À guisa de buscar esclarecer o que considero desenvolvimento. Esses ramos da psicologia
alguns equívocos no que concerne à abordagem foram então associados no âmbito da pedagogia
desenvolvimentista, de pronto é importante para a criação de um campo denominado
destacar que a abordagem desenvolvimentista não psicopedagogia.
surge com o livro de 1988. Jewett e Bain (1985) Além dessa corrente acadêmica, que veio
citam alguns exemplos de propostas dentro dessa fornecer elementos para a constituição de
abordagem que datam da década de 1960 nos modelos desenvolvimentistas na educação, deve-
Estados Unidos. Aliás, do ponto de vista histórico, se destacar outra influência nesse processo. No
é interessante destacar que o primeiro final da década de 1950, ganhou força a
“desenvolvimentista” foi Jean Jacques Rousseau proposição de que os problemas e dificuldades
(1712-1778), que em seu livro “Emílio” usa de que crianças enfrentavam no ensino escolar
uma narrativa ficcional para falar da necessidade estavam relacionados ao pobre desenvolvimento
de a educação considerar as características de habilidades básicas na infância. Essa
específicas da infância, respeitando o proposição é apresentada por Newell C. Kephart
“desenvolvimento” infantil (ROUSSEAU, 1875- no livro The slow learner in the classroom,
2004). publicado em 1960 (a primeira edição brasileira
A partir de Rousseau há o desenvolvimento é de 1986). Na esteira desse trabalho surgiram
de uma escola pedagógica conhecida como propostas de estimulação precoce da criança que
Ativismo, que privilegiava o enfoque na criança gradualmente deram origem, nos anos 1970, a
e em suas necessidades “naturais”, no “fazer” modelos de educação física escolar
como caminho para o “compreender”, no desenvolvimentista nos Estados Unidos, cujos
contato direto da criança com a natureza, na sua melhores exemplos foram o Projeto SEE de
socialização, na experiência como primeira e Thompson e Mann (1977, 1981) e Gallahue,
principal fonte de aprendizagem (CAMBI, Werner e Luedke (1975). David Gallahue, em
1999). Nomes importantes desse movimento no particular, publicou um texto em 1982
século XX foram Edouard Claparède em (Understanding motor development in children)
Genebra e Maria Montessori na Itália. Claparède que foi referência importante na constituição da
fundou em 1912 o Instituto J. J. Rousseau, onde abordagem desenvolvimentista em nosso meio.
realizou pesquisas sobre a criança e a escola e Gallahue tem sido presença constante no Brasil,
teve como membros Henri Wallon e Jean Piaget. realizando palestras e ministrando cursos.
A partir dos anos 1950 e início dos anos 1960, a Jewett e Bain (1985) estabeleceram oito
revolução cognitivista teve sua influência nos indicadores para a caracterização de um modelo
modelos pedagógicos e em particular naqueles curricular, a saber: crenças, metas, estrutura
de inspiração ativista. É Jerome Bruner que vai conceitual, desenho do programa,
catalisar esse movimento. A partir de seu desenvolvimento individual, metas
conhecimento de Piaget e de Vygotsky (até socioculturais, conteúdo e valores. No Quadro 1
então pouco conhecido fora da União Soviética), apresentamos as características de uma
Bruner escreve uma série de textos em que abordagem desenvolvimentista segundo os oito
aplica à psicologia os conhecimentos da indicadores.

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INDICADOR CARACTERÍSTICAS Em suma, não há apenas uma abordagem


CRENÇAS Oportunidades para máximo desenvolvimentista, mas várias. A seguir busco
desenvolvimento; refletir sobre os aspectos particulares da
Desenvolvimento holístico abordagem presentes no livro de 1988, o que
considerando diferenças significa voltar no tempo e relembrar o cenário
individuais; Aprender a
aprender
em que essa obra foi escrita.
METAS Competência;
Individualidade;
O CENÁRIO PARA A ABORDAGEM
Socialização; Integração da
experiência
DESENVOLVIMENTISTA NO BRASIL

ESTRUTURA Características No início da década de 1980 estava em voga


CONCEITUAL desenvolvimentistas
(estágios, seqüência de uma campanha mundial no sentido de mostrar a
desenvolvimento) importância da infância para a vida adulta.
DESENHO DO Temas desenvolvimentistas
Como era comum dizer nessa época, “o adulto
PROGRAMA com base nas necessidades e de hoje é, em grande medida, fruto de sua
expectativas da criança a infância, de seu desenvolvimento e
cada estágio experiências”. Influenciado por esse movimento
DESENVOLVIMENTO Diagnóstico do estado de e vendo suas implicações para um país jovem
INDIVIDUAL desenvolvimento como é Brasil, o Prof. Herbert de Almeida
METAS Preparação para o indivíduo Dutra, da UFMG, então à frente da Secretaria de
SÓCIOCULTURAIS se ajustar à sociedade tal Educação Física e Desportos do Ministério da
como ela é Educação e Cultura (SEED-MEC), resolveu
CONTEÚDO Atividades motoras com fim convocar a Brasília um grupo de docentes e
e como meio pesquisadores de diferentes universidades
VALORES Realização plena do brasileiras. O critério para essa convocação foi
potencial individual que eles tivessem em comum um interesse pela
Quadro 1 - Indicadores e suas características nos aprendizagem motora, desenvolvimento motor e
modelos curriculares desenvolvivmentistas educação física infantil. O Prof. Dutra entendia
(Adaptado de JEWETT ; BAIN, 1985). ser fundamental estruturar a educação física na
escola com base em princípios científicos
Um dos aspectos para o qual gostaria de relativos ao modo como a criança aprende e se
chamar a atenção no Quadro 1 é que, numa desenvolve. Corria o ano de 1982, em que
abordagem desenvolvimentista, o começava a se formar uma massa crítica de
desenvolvimento curricular dever traduzir professores de educação física com título de
princípios e conceitos desenvolvimentistas como Doutor, na maioria dos casos obtido no exterior.
seqüência de desenvolvimento, estágios, e Entre esses professores estavam Ana Maria
comportamentos típicos em metas e conteúdos Pellegrini e Go Tani, da Universidade de São
de aula. Outro ponto a destacar é que a Paulo. De um primeiro encontro resultou um
abordagem enfoca a universalidade do documento sobre importância dos
desenvolvimento. Nesse sentido, ela remete a conhecimentos de aprendizagem motora e
um tratamento homogêneo para toda a desenvolvimento motor para a educação física
população, respeitadas as etapas de infantil (BRASIL, 1982).
desenvolvimento, mas ao mesmo tempo enfoca o No que se seguiu a esse encontro, o Prof.
indivíduo no que concerne ao seu potencial de Dutra obteve junto ao MEC recursos financeiros
realização pessoal - realização que é divorciada para subsidiar a consecução de monografias que
de questões mais amplas, como a sociedade em teriam como tema apresentar e discutir as bases
que o indivíduo está inserido. Como é apontado científicas para a educação física infantil. As
no indicador “Metas Socioculturais”, o modelo temáticas e diretrizes do trabalho foram
desenvolvimentista prepara o indivíduo para se definidas por parte do grupo originalmente
acomodar à sociedade, sem necessariamente reunido em Brasília. Estamos agora em 1984, e a
transformá-la. USP, por intermédio dos professores Ana Maria

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Pellegrini, José Guilmar Mariz de Oliveira e Go texto em questão esclarecer as dúvidas, de forma
Tani, tinha como incumbência produzir três que os capítulos, em sua forma final, resultavam
monografias. Os recursos incluíam um auxílio das opiniões, comentários e críticas de todos.
financeiro não só para os docentes do grupo, Assim ocorreu também com a conclusão, escrita
mas também para estudantes (de mestrado ou quase literalmente a oito mãos. Esse texto foi
não) que colaborariam na elaboração das encaminhado à SEED-MEC no início de 1985.
monografias. Foi nessa condição que me engajei Na mesma época em que era escrito, fomos
no trabalho com os professores Pellegrini e orientados a escrever artigos na mesma temática
Tani. Na ocasião eu era estudante de mestrado para destacar quais teriam sido nossas
sob a supervisão da profa. Pellegrini e contribuições específicas na monografia. Foi
trabalhamos numa monografia que tinha como assim que o prof. Tani publicou um artigo na
propósito levantar e analisar a literatura de revista Kinesis (TANI, 1987). Eu elaborei dois
educação física infantil existente no Brasil. O textos, um apresentando conceitos básicos de
prof. Tani convidou-me para participar de seu desenvolvimento motor e suas implicações na
grupo, que contava com José Elias de Proença, à educação física infantil (MANOEL, 1985) -
época seu aluno de mestrado, e Eduardo originalmente encaminhado para a Revista
Kokubun, que iniciava o doutorado em Brasileira de Educação Física. Essa revista foi
Fisiologia no Instituto de Ciências Biomédicas desativada nessa época e o texto ficou na gaveta.
da USP. O título dessa monografia foi: Quase dez anos depois eu vim a saber que o
Educação Física Escolar da 1ª. a 4ª. Série do texto tinha sido publicado em um boletim de
Primeiro Grau - Uma abordagem educação física de Manaus1. O outro texto que
desenvolvimentista. O prof. Tani havia escrevi versava sobre implicações da abordagem
realizado sua pós-graduação (mestrado e desenvolvimentista na educação física adaptada
doutorado) na Universidade de Hiroshima no (MANOEL, 1986).
Japão. A idéia de uma abordagem O livro, publicado em 1988 (TANI;
desenvolvimentista originou-se de sua formação MANOEL; KOKUBUN; PROENÇA, 1988),
nessa universidade, onde ele participou de um corresponde quase literalmente à monografia
grupo de estudos que havia proposto tal enviada à SEED-MEC no início de 1985. Uma
abordagem para a educação física escolar das mudanças que gostaria de destacar ocorreu
japonesa (TANI, 1989a). no título, Educação Física Escolar:
Trabalhamos num regime de divisão de Fundamentos de uma Abordagem
tarefas inicialmente coordenadas pelo prof. Desenvolvimentista. Essa mudança foi
Tani, que, além disso, escreveu a Introdução e significativa, pois denotava nossa compreensão
os capítulos Domínios do Comportamento na época de que não tínhamos escrito um texto
Humano e o Movimento e Desenvolvimento sobre a abordagem desenvolvimentista, mas sim,
Hierárquico de habilidades e o Processo de sobre os fundamentos de uma abordagem
Aprendizagem Motora: Das Habilidades desenvolvimentista. Do meu ponto de vista,
Básicas às Específicas. A mim coube escrever nunca escrevemos um texto numa abordagem
parte do capítulo O Processo de desenvolvimentista e esse é o grande débito que
Desenvolvimento Motor, e posteriormente temos para com a comunidade nesses vinte anos:
escrevi, com as orientações e sugestões do prof. falamos de uma abordagem sobre a qual nunca
Proença, o capítulo Desenvolvimento escrevemos. O livro de 1988 traz os
Cognitivo e suas Implicações na Atividade fundamentos do que seria uma abordagem
Motora. O prof. Kokubun escreveu o capítulo desenvolvimentista e nosso projeto na época era
Aspectos Biológicos do Desenvolvimento e o escrevermos pelo menos mais três livros: um
Movimento Humano, e o prof. Proença discorreria sobre as bases curriculares e
escreveu o capítulo Desenvolvimento Afetivo- programáticas da educação física escolar numa
Social e suas Implicações na Educação Física 1
no Ensino de 1º. Grau. Cada texto escrito por Devo essa informação à profa. Inara Marques, que em
1995 finalizava o mestrado na Unicamp e havia achado
um de nós era lido por todos e em grupo, e assim esse texto numa busca pelo sistema de catálogo de
eram discutidos, cabendo ao responsável pelo bibliotecas nacionais.

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abordagem desenvolvimentista, outro sobre inicial, colocando na agenda de pesquisa o que é


processo ensino-aprendizagem da educação necessário investigar e desenvolver para a
física escolar na mesma abordagem e o terceiro construção da abordagem desenvolvimentista.
seria mais próximo de um guia dessa abordagem Nessa direção, vou retomar alguns dos
para o professor. Nesse processo, a nossa fundamentos e refletir sobre eles à luz do que
intenção era realizar pesquisas sobre a conhecemos sobre a natureza do
abordagem desenvolvimentista, indo da teoria desenvolvimento, e para isso vou contar mais
para a prática e da prática para a teoria. Por uma algumas estórias.
série de circunstâncias nada disso ocorreu. Os
livros nunca foram concretizados, as pesquisas Norte da Índia, 1920
nunca levadas a cabo, cada um de nós seguiu um O reverendo J. Singh tinha como missão
caminho. Essa é uma dívida que contraímos com catequizar nativos da selva do Norte da Índia.
a comunidade acadêmica e profissional, não Em suas andanças pela região encontrou em
paga até hoje. Em vários momentos, de forma Godamuri nativos que, agitados, falavam de um
coletiva ou individual, fomos instados a falar fantasma, Manush-Bagha (homem-fantasma),
sobre a abordagem desenvolvimentista em que perambulava pelos arredores. Intrigado com
cursos de atualização para professores, em a estória, o reverendo Singh resolveu investigar
palestras e conferências, em cursos de adentrando a selva com um grupo de homens.
especialização. Tudo que foi dito além dos Depois de alguns insucessos ele finalmente
fundamentos foi resultado de nossas intuições avistou o tal fantasma. Ao se aproximarem de
acadêmicas, uma vez que jamais algum nós uma caverna viram sair primeiro alguns lobos
transformou essa intuição em linhas de pesquisa adultos, seguidos por filhotes e finalmente pelos
no âmbito do que tradicionalmente se denomina “fantasmas”. Apesar da aparência
desenvolvimento curricular2. Se um fantasmagórica das criaturas que se moviam em
levantamento for realizado sobre o conteúdo de
quadrupedia, o reverendo Singh logo reconheceu
dissertações e teses de estudantes sob nossa
neles características humanas. O grupo que o
direção logo se constatará que a construção da
acompanhava hesitou em fazer qualquer
abordagem desenvolvimentista não esteve no
movimento e o reverendo não conseguiu seu
cerne de nossa atividade acadêmica. Nesse
intento de fazer contato com as criaturas.
sentido, posso ressaltar que o status quo dessa
Posteriormente, após arregimentar outro grupo
abordagem de minha perspectiva é o seguinte:
sem fazer qualquer menção aos tais fantasmas, o
ela está, após 20 anos, ainda no seu prólogo.
reverendo retornou ao local e conseguiu capturar
os fantasmas que viviam junto com lobos.
UM PASSO A FRENTE E ALGUMAS Tratava-se de duas meninas, uma aparentando
ESTÓRIAS oito anos e a outra mais jovem, em torno de
quatro ou cinco anos de idade. O reverendo as
Ao longo desses anos, o livro de 1988 tem levou para seu orfanato em Midnapore e as
servido de apoio a professores, tem sido manteve sob seus cuidados. Nos diários que
indicado em concursos públicos e adotado em escreveu sobre seu achado, o reverendo descreve
gestões educacionais no setor público e privado. o comportamento das meninas: locomoviam-se
São esses atores, professores e gestores quem em quadrupedia, tinham hábitos noturnos,
têm feito de fato a abordagem tinham faces sem expressão, embora
desenvolvimentista. Se quisermos dar um passo ameaçassem quem se aproximasse produzindo
adiante é essencial que retomemos o projeto sons similares a rosnados e mostrando os dentes;
tinham predileção por carne crua e se
2
Um caso aparte é o do prof. Proença, que já atuava e alimentavam sem usar as mãos, pegando os
continuou tendo uma atuação importante na alimentos diretamente com a boca. Kamala e
coordenação pedagógica de uma instituição de ensino Amala foram os nomes dados pelo reverendo e
básico e médio, onde com certeza pode experimentar e
desenvolver aspectos da abordagem na linha
sua esposa às duas meninas, sendo o primeiro
originalmente pensada para dar seqüência ao livro de para a mais velha. O reverendo não mediu
1988. esforços para que elas se integrassem com as

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demais crianças do orfanato, porém não obteve desenvolvimento apresentou uma topologia
sucesso. Com freqüência elas fugiam com estranha à topologia do meu e do seu
grande habilidade para se locomoverem em desenvolvimento leitor (para mais detalhes sobre
quadrupedia e para enganar quem as perseguia. a metáfora da paisagem epigenética
Após dez meses sob seus cuidados, Kamala e (PERROTTI; MANOEL, 2001). O fato é que
Amala adoeceram vítimas de infecção Kamala e Amala tinham um desenvolvimento
parasitária e a mais jovem, Amala, veio a “normal” até encontrarem o reverendo Singh e
falecer. O reverendo Singh e sua esposa seu grupo pela frente.
incrementaram seus esforços para tornar Kamala
mais “humana”. Ela passou por um treinamento África, 1970/1980
para manter a postura ereta, para locomover-se Um resultado de pesquisa que chamou a
em bipedia, para aprender a falar e a conhecer as atenção de pesquisadores do desenvolvimento
coisas por nome. Kamala aprendeu a caminhar infantil na década de 1970 foi a vantagem que
em bipedia, embora em situações de estresse ela bebês africanos apresentavam em seu
retornasse à locomoção em quadrupedia. Ela desenvolvimento motor em relação a bebês
nunca aprendeu a fala apropriadamente, em que europeus (WERNER, 1972). Nunca se chegou a
pese a ela ter sido capaz de usar algumas consenso nas explicações sobre essa diferença -
palavras. Quanto a emoções, ela raramente seja por conflitos de visões (de um lado estavam
demonstrou sinais de possuí-las. Com os defensores de causas genéticas e do outro os
freqüência, ficava encolhida num canto com que defendiam a influência do meio) seja por
uma face sem expressão. Kamala veio a falecer motivos de ordem metodológica, pois havia uma
após dez anos e o reverendo, sua esposa e quem grande diversidade nos métodos utilizados para
mais teve contato com ela nunca a sentiram avaliar o desenvolvimento motor.
completamente humana. Blandine Bril, uma pesquisadora francesa,
Essa narrativa é conhecida sob o rótulo de resolveu conduzir uma pesquisa diferente com
as Crianças-Lobo. Há algumas referências a enfoque na questão acima posta. Ao invés de
respeito e o resumo apresentado acima é simplesmente aplicar mais baterias de testes em
baseado em duas fontes: Candland (1993) e bebês, ela mudou-se para uma comunidade:
McLean (1978). Assim como para o reverendo, Bambara, em Mali, África Ocidental. Lá, Bril
o sentimento que a estória dessas meninas gera é observou dias a fio como os bebês eram
o de choque e consternação diante de sua manipulados, registrando desde o tempo em que
condição “animal”. Mas ainda são Maturana e permaneciam em diferentes posturas (decúbito
Varela (1987) que nos chamam a atenção para o dorsal ou ventral, posição supina etc.) até algum
fato de que o comportamento e os hábitos das possível tipo de prática/estimulação dos bebês
meninas, embora fossem incompatíveis com um (BRIL, 1986). O quadro que surgiu dessa
contexto humano, estavam em perfeita sintonia investigação de campo revelou dados
com seu hábitat “selvagem”. Fosse possível um interessantes. Por exemplo, aos quatro meses de
exame de seu DNA, não haveria dúvida de que o idade os bebês de Bambara ficavam mais de
resultado indicaria que ambas eram da espécie 70% do dia na posição supina. Bril, ao replicar o
que denominamos humanos, mas o contexto de mesmo tipo de investigação na França,
seu desenvolvimento e o histórico de suas encontrou um resultado oposto, isto é, os bebês
relações com o meio levaram-na a trilhar um franceses ficavam mais de 70% do dia deitados
caminho totalmente diverso do comumente (REED; BRIL, 1996). Em outra comparação,
percorrido pela maioria das crianças de sua Bril encontrou que as mães ou “cuidadoras
idade. A metáfora criada por Waddington (1957) africanas”, aos quatro meses, despendiam cerca
sobre o desenvolvimento se encaixa como uma de 40% do dia realizando algum tipo de
luva na estória das meninas-lobo: as trilhas de estimulação cinética, já mães francesas realizam
desenvolvimento que elas seguiram foram algum tipo de estimulação apenas durante
condicionadas pelo contexto de seu histórico de apenas 5% do dia (REED; BRIL, 1996).
interações com o meio, de modo que a paisagem A variedade de estimulação cinética é
epigenética que caracterizou seu impressionante. Os bebês africanos são

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massageados, alongados, mantidos em pé, de estágios de desenvolvimento, que poderia


lançados para cima, etc. Essa variedade de ser sintetizada em três estágios: inicial - com
movimentos constitui o que poderia ser participação apenas do braço de arremesso,
denominado práticas corporais realizadas com o sem rotação do tronco ou afastamento ântero-
bebê, que exercem um efeito marcante de posterior das pernas; elementar – início de
estimulação do sistema vestibular (BRIL, 1986). rotação do tronco, mas sem dissociação com o
O sistema vestibular desempenha um papel giro do quadril e com passada, sem oposição
fundamental no sistema de orientação e de entre o braço de arremesso e a perna que vai à
locomoção, o que explicaria a vantagem que os frente; Maduro – afastamento ântero-posterior
bebês africanos apresentam em relação aos das pernas com oposição do braço de
europeus. Blandine Bril inquiriu as mães e arremesso em relação à perna que vai à frente e
cuidadoras sobre essas práticas e assim ela pôde rotação do tronco dissociada do giro do quadril
constatar que nessa cultura não existe uma (GALLAHUE; OZMUN, 2003). A surpresa
palavra para desenvolvimento, sendo vigente a ocorreu quando fomos analisar os movimentos
crença de que todo bebê necessita ser estimulado do arremesso na condição do alvo. Muitas
e estar em constante contato dinâmico com um crianças que haviam demonstrado estar no
adulto. O trabalho de Bril evidencia o papel do estágio maduro do arremesso, “regrediram” ao
contexto no desenvolvimento, particularmente o arremessarem no alvo. Elas mostravam um
que ela denominou de atitudes culturais e seu comportamento qualificado como pertencente
impacto no desenvolvimento. O contexto em ao estágio rudimentar. Minha orientadora, a
Bambara poderia ser colocado da seguinte profa. Pellegrini, afirmou que algo estava
forma: as mães africanas nunca leram Arnold errado na análise do vídeo, já que não seria
Gesell. possível uma criança regredir de condição. As
análises estavam corretas, nós, pesquisadores, é
Muzambinho, MG, 1982 que havíamos negligenciado um aspecto
Nessa cidade conduzi minha primeira básico: o contexto e os objetivos da tarefa.
investigação com o tema desenvolvimento Ainda que, como experimentadores, nós
motor. Na ocasião eu já estava sob a orientação restringíssemos os tipos de arremesso que a
da profa. Pellegrini, que tinha interesse em criança poderia utilizar (só valia arremesso
investigar os padrões fundamentais de com uma mão por cima do ombro), não
movimento ou habilidades básicas que à época podíamos determinar como esse arremesso
eram objeto de atenção nos Estados Unidos. Os seria feito. No contexto da tarefa em que devia
estudos norte-americanos buscavam descrever ser executado o arremesso ao alvo colocamos
e identificar a seqüência de desenvolvimento uma demanda de precisão que não havia na
de vários padrões fundamentais de movimento condição-padrão. Quando há uma demanda de
(WICKSTROM, 1977). Surgiu então a idéia de precisão, uma estratégia de controle eficaz é
verificar se as crianças brasileiras passavam reduzir o número de graus de liberdade (no
pelos mesmos estágios. Foi assim que caso, o número de segmentos do corpo em
delineamos um estudo longitudinal sobre o ação) na realização do arremesso. O estágio
desenvolvimento do arremessar pela criança. rudimentar corresponde à perfeita escolha para
Algo que fizemos na época de uma forma um o arremesso ao alvo. De fato, as crianças que
tanto intuitiva foi incluir uma segunda “regrediram” demonstraram uma plena
condição de arremesso à condição-padrão dos compreensão da relação entre meios
estudos até então realizados. Além de (movimentos) e fins (objetivo e demanda da
arremessar uma bola de tênis o mais longe tarefa de arremesso ao alvo). Anos depois
possível (condição padrão), solicitamos às realizamos uma pesquisa que replicava o
crianças que também lançassem a bola a um estudo original de Muzambinho, mas dessa vez
alvo colocado a cinco metros de distância com um acréscimo: agora mediríamos a
(MANOEL; PELLEGRINI, 1984, 1985). A distância a que a bola fosse arremessada e a
análise da condição-padrão demonstrou que precisão no alvo (MANOEL; OLIVEIRA,
nossas crianças obedeciam à mesma seqüência 2000). Inicialmente, as crianças foram

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A abordagem desenvolvimentista da educação física escolar – 20 anos: uma visão pessoal 481

solicitadas a arremessar uma bola o mais longe sistema nervoso: fase reflexiva – em que bebês
possível, com a finalidade de identificar em até o quarto mês pós-nascimento locomovem-se
qual grupo de desenvolvimento se situariam na água de forma instintiva quando colocados
(inicial, elementar ou maduro). Depois elas em decúbito ventral nesse meio, e os
realizaram as duas tarefas: arremessar a movimentos apresentados seriam reflexos, isto
distância e a um alvo. Houve uma correlação é, controlados em nível subcortical; fase
positiva entre o grupo de desenvolvimento e a desorganizada – em que bebês com mais de
distância alcançada, isto é, quem estava no quatro meses não conseguem mais se locomover
estágio rudimentar arremessava mais perto do na água, debatendo-se ao ter contato com esse
que quem estava no estágio maduro, ficando meio, razão pela qual ela usou o termo
em uma distância intermediária as crianças “desorganizada”; e fase voluntária – após os
classificadas no estágio elementar. Já no primeiros doze meses, quando o bebê retoma a
arremesso ao alvo não houve relação entre condição de realizar movimentos organizados
estágio e pontuação obtida. As crianças no que podem levar à locomoção, só que agora com
estágio elementar obtiveram, em média, maior movimentos de natureza voluntária.
número de pontos, seguidas dos grupos Essa seqüência é plenamente conhecida por
empatados de crianças nos estágios rudimentar aqueles que estudam o desenvolvimento
e maduro. Ao analisarmos mais detalhadamente neurológico, mas sua validade tem sido
o desempenho do grupo maduro na condição do desafiada em dois estudos em setenta anos.
alvo, observamos que elas mudaram muito Esses estudos tiveram como foco o reflexo da
pouco a forma de arremessar da condição a marcha, que apresenta a mesma seqüência do
distância para a do alvo. Nessa amostra em nadar. O primeiro foi conduzido por Philip
particular, a qualificação no estágio maduro Zelazo, que conseguiu fazer com que o reflexo
superestimou as crianças, já que a grande da marcha não desaparecesse após o quarto mês
maioria não foi capaz de perceber que era por meio de estimulação sistemática desse
preciso modificar o padrão para o arremesso ao reflexo (ZELAZO; ZELAZO; KOLB, 1972). O
alvo. Em síntese, os estágios referem-se a segundo foi conduzido por Esther Thelen, que
movimentos, ao passo que no desenvolvimento mostrou que o aparecimento ou desaparecimento
é necessário considerar como se dá a do reflexo da marcha depende de variáveis que
compreensão da relação meio-fim, relação nada têm a ver com a maturação do sistema
sobre a qual as crianças de Muzambinho já nos nervoso, como ganho de massa corpórea e
haviam ensinado em 1982. variações no meio físico (THELEN; FISHER;
RIDLEY-JOHNSON, 1984). Foi com base
Londrina, PR, 2006 nesses estudos que o prof. Xavier Filho
Quando o prof. Ernani Xavier Filho, da conduziu sua tese de doutorado observando e
Universidade Estadual de Londrina, decidiu intervindo no nadar de bebês (XAVIER FILHO,
ingressar no doutorado na USP, sua motivação 2006).
era fazer algo que pudesse ter uma repercussão Como Zelazo e Thelen haviam observado
em sua atividade acadêmica voltada para a com o reflexo da marcha, o prof. Xavier Filho
intervenção que enfocava programas de nadar também constatou que a intervenção sobre o
para crianças e bebês. O desafio era atar os fios reflexo do nadar fez com que este não
de tecidos individuais: de um lado o estudo do desaparecesse após o quarto mês, demonstrando
desenvolvimento, e do outro a intervenção via que os efeitos obtidos pelos dois pesquisadores
programas de nadar. Lembrei-lhe que Myrtle norte-americanos são mais robustos, isto é, não
McGraw, apesar de não ser professora de são dependentes de um comportamento em
natação, havia realizado um estudo interessante particular. Mais do que isso, o prof. Xavier
sobre o nadar nos anos 1930 (McGRAW, 1939) Filho trouxe dados para mostrar que a seqüência
- estudo que não teve seguidores. Do ponto de de desenvolvimento não é apenas suscetível a
vista teórico, o estudo de McGraw mostrou que fatores ambientais e do organismo, mas é
havia uma seqüência no desenvolvimento do também fruto do design - no caso, seu programa
nadar, provavelmente associada à maturação do de intervenção.

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482 Manoel

Alguns pontos de convergência apropriadas num contexto (MANOEL, 1998). O


pesquisador do desenvolvimento que tem como
1. Desenvolvimento é um processo de seu objeto movimentos não raro acaba se
construção em que o sujeito é ator de seu tornando o investigador do controle motor em
próprio desenvolvimento. diferentes idades. As repercussões desse modo
Como nos mostram as meninas-lobo, o de pensar são várias e, sem dúvida, o controle
desenvolvimento não é prescrição (genética, motor como um tema de pesquisa ganhará muito
maturacional ou ambiental), mas resultado da com essa perspectiva, porém a compreensão do
interação de uma entidade com outras, de um ser desenvolvimento será empobrecida. O enfoque
em formação com outros em diferentes estádios na ação e seu desenvolvimento é essencial para
de organização no tempo e no espaço. Daí uma avaliação e intervenção que tenham como
decorre que o contexto do desenvolvimento foco o indivíduo.
ganha grande significado para o estudo do 3. Não há uma seqüência de desenvolvimento,
desenvolvimento, como nos mostra Blandine mas trilhas desenvolvimentistas.
Bril em seus estudos com diferentes
comunidades e suas atitudes para com o bebê. As estórias de Kamala e Amala referem-se
No processo de desenvolvimento sempre se aos extremos de uma lógica: não há uma
reconheceu, de um lado a sua universalidade, seqüência de desenvolvimento, mas trilhas
atribuída a fatores genéticos, e de outro, sua desenvolvimentistas. As duas meninas
variabilidade, decorrente de fatores ambientais. desenvolveram-se, mas por trilhas muito
As estórias aqui contadas mostram como essa diferentes das que eu e você, leitor, seguimos.
distinção se desfaz. A universalidade é fruto De Londrina, o prof. Xavier Filho também
tanto de nossa estrutura e conformação biológica mostrou que a seqüência esperada de
como de crenças e atitudes culturais, o mesmo aparecimento de um reflexo primitivo (o nadar)
podendo ser dito da variabilidade. Urge colocar e seu posterior desaparecimento pode ser posta
na agenda de pesquisa o estudo de como os de lado, a depender da natureza das intervenções
indivíduos constroem sua experiência. Saber a que os indivíduos - no caso, os bebês - são
mais sobre isso é essencial para delinear tanto submetidos. Os resultados do prof. Xavier Filho
estudos do desenvolvimento como programas de juntam-se aos resultados clássicos de Esther
educação formal. Thelen e Philip Zelazo, que também
2. Não há desenvolvimento motor, mas sim, conseguiram “alterar” seqüências esperadas por
desenvolvimento da ação. meio de intervenções e alterações no contexto
As crianças de Muzambinho já nos em que os movimentos são realizados.
ensinaram - só faltou aprender: não basta Aqui também a metáfora da paisagem
realizar movimentos, é preciso contextualizá-los, epigenética tem sua voz: as trilhas
tanto do ponto de vista físico como do ponto de desenvolvimentistas podem ser vistas como as
vista social. Kevin Connolly, em um artigo hoje diferentes configurações topológicas que a
pouco lembrado, já dizia que desenvolvimento paisagem epigenética pode assumir a partir da
motor consistia no desenvolvimento e convergência de fatores internos e externos ao
elaboração de um programa de ação organismo em desenvolvimento (CONNOLLY,
(CONNOLLY, 1977). Considero que há um 1986; MUCHISKY; GERSHKOFF-STOWE;
desenvolvimento motor no que concerne ao COLE; THELEN, 1996; NEWELL; LIU;
período pré-natal e imediatamente pós-natal, MAYER-KRESS, 2003); mas o que falar da
mas o bebê em busca de regularidades na sua aparente universalidade do desenvolvimento? A
relação com o meio físico e social começa a resposta a essa questão é dada por Valsiner
estabelecer relações entre movimentos (1997): o desenvolvimento é parcialmente
reativos/reflexos e espontâneos e suas aberto ao mesmo tempo em que se mantém em
conseqüências internas (sensoriais) e externas formas conservadoras, num processo com
(resultados e efeitos no meio físico e social). Há, indeterminância limitada. Assim a
aí, a gênese da ação e desenvolvimento e, variabilidade comportamental é tanto causa
principalmente, a elaboração de ações como efeito de um processo dinâmico em que

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A abordagem desenvolvimentista da educação física escolar – 20 anos: uma visão pessoal 483

estados do sistema são a um só tempo estáveis e repercussão posterior no desenvolvimento. A


instáveis (MANOEL; CONNOLLY, 1997). idéia de progressão resulta numa visão voltada
ao produto do desenvolvimento e ao
4. A idéia de progresso no desenvolvimento é
desempenho excepcional de atletas, artistas e
equivocada, a ubiqüidade é a essência do
pessoas altamente habilidosas. A conseqüência
desenvolvimento, e nela, a diversidade.
dessa visão é que o bebê, o idoso ou o indivíduo
Na abordagem desenvolvimentista é comum portador de alguma deficiência são tratados
pensar em progressões tais como: como sistemas deficitários pois se fala em
• do rudimentar para o elaborado; imaturidade, atrasos, regressões. O desempenho
• do imaturo para o maduro; motor desses indivíduos está sempre aquém do
desempenho maduro, avançado e especializado.
• do atrasado para o avançado; A década de 1980 foi rica em trabalhos
• dos movimentos fundamentais para os evidenciando as habilidades de bebês para imitar
especializados. (ver os trabalhos de Alan Meltzoff), para
O ideal de progressão se deve, em parte, a antecipar objetos (ver, por exemplo, os estudos
noções que influenciaram concepções de de Claes von Hofsten) e intenções dos adultos
evolução desde o século XIX. Como é destacado (ver os trabalhos de Colwyn Trevarthen). No
por Gould (1996), criou-se a falsa noção de que lado do idoso, Paul Baltes introduziu o conceito
o processo evolutivo caracteriza-se por uma de Life Span, dando margem a que as
direção: maior complexidade, tendo como degenerações do sistema motor do idoso
pináculo os mamíferos e em particular a espécie passassem a ser vistas, em grande medida, como
humana. Gould argumenta que, do ponto de adaptações. O mesmo ocorreu com a visão sobre
vista teórico, a proposição darwiniana refere-se o indivíduo portador de deficiência (MANOEL,
1996).
exclusivamente à adaptação de organismos às
A noção de progressividade tem sido
condições de seu nicho ecológico. Do ponto de
constantemente desafiada também no estudo dos
vista empírico, Gould apresenta dados
movimentos pré-natais. Heinz Prechtl, pioneiro
mostrando que os sistemas vivos mais
nesse estudo e a principal autoridade nessa
abundantes em nosso planeta mostraram pouca
temática, fala que, após pesquisar movimentos
ou nenhuma evolução em milhões de anos, como
pré-natais durante mais de trinta anos, não
é o caso das bactérias e insetos. Se a evolução
conseguiu identificar nenhum padrão de
tivesse como direção o progresso, isso não
mudança que caracterizasse algum tipo de
deveria ocorrer. Nesse sentido, essência do
progressão como do simples para o complexo
processo evolutivo, como argumenta Gould, é a
nos movimentos fetais (comunicação pessoal
dinâmica da diversidade orgânica, que se
(PRECHTL, 1997).
expande e se contrai de acordo com inúmeros
Pessoalmente, tenho investigado a
fatores, em sua maior parte aleatórios. É a partir
modularizacão3 nas ações motoras, porém não
desse pool de variabilidade orgânica que surgem
encontrei dados robustos para sustentá-la. Os
alguns acidentes, dos quais nós somos o melhor
estudos que conduzi nos últimos dez anos não
exemplo.
refutam a idéia de um desenvolvimento
O desenvolvimento de ações motoras não
pode ser equacionado com o processo evolutivo,
entretanto a idéia de progressividade é muito 3
Modularização ou modularidade refere-se à idéia de
presente também na concepção de que o desenvolvimento ocorreria a partir da formação
desenvolvimento. A hegemonia dessa concepção de unidades ou módulos que seriam organizados e
reorganizados em estruturas com graus de
na caracterização do desenvolvimento tem feito complexidade variados. Trata-se de uma estratégia
com que alguns aspectos desse processo sejam biológica mais econômica e eficaz: econômica porque a
negligenciados. Por exemplo, o desenvolvimento partir de um número finito de módulos é possível
apresenta regressões (MANOEL, 2003), a “criar” inúmeras possibilidades de ações, e eficaz
porque os módulos, sendo estruturas relativamente
infância apresenta adaptações ontogenéticas
estáveis, possibilitam ao organismo enfrentar os
(OPPENHEIM, 1981), isto é, modificações desafios do ambiente sem a necessidade de “reinventar
comportamentais que não têm nenhuma a roda” a cada obstáculo novo encontrado.

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484 Manoel

hierárquico, mas sugerem que ele está muito conjunto de movimentos que, na concepção de
ligado à diversidade presente no comportamento progressividade, consistiria em um padrão
motor, como é destacado por Michael Turvey ao rudimentar.
refletir sobre unidades modulares: elas seriam
maleáveis, funcionais, orientadas à tarefa e ao
contexto (TURVEY, 2004, comunicação A PROPÓSITO DE UMA SÍNTESE
pessoal). Há, obviamente, processos que levam a
Várias são as versões da abordagem
uma maior complexidade e especificidade em
desenvolvimentista na educação física. Aqui
habilidades, como descrito por Tani dentro da
cabe lembrar a construtivista, baseada nas idéias
noção de processo adaptativo (TANI, 1989b).
de Piaget e seus seguidores (FREIRE, 1990), e a
Todavia, como foi ressaltado por Connolly
ecológica, baseada na teoria de Brofenbrenner
(2000), o aspecto que mais chama a atenção no
(KREBS, 1997). Neste ensaio enfoquei aquela
desenvolvimento não é a excepcionalidade no
centrada em teorias e conceitos do
comportamento, representada por habilidades desenvolvimento motor sintetizadas em obras
cada vez mais específicas e complexas, mas sim, como as de Gallahue e Ozmun (2005) e Tani,
sua ubiqüidade, isto é, o repertório de ações Manoel, Kokubun e Proença (1988). Em relação
motoras que nos permite interagir diariamente a essas duas versões, suas proposições se deram
em nossos meios físico e social. Nesse em meados da década de 1980. David Gallahue
particular, podemos retomar a noção de tem-se preocupado em atualizar sua proposição
diversidade como um aspecto marcante do em face dos avanços no estudo do
desenvolvimento, por nos possibilitar usar as desenvolvimento motor; todavia penso que as
propriedades dinâmicas da ação para nos minhas reminiscências sobre a construção da
ajustarmos e inovarmos de acordo com nossas abordagem desenvolvimentista e as reflexões
necessidades e sentidos. Ao considerarmos a que apresento levam à tese de que os
ubiqüidade e diversidade no desenvolvimento conhecimentos utilizados como base para a
podemos estabelecer um paralelo com a elaboração do livro de 1988 estão em grande
evolução. Como nos mostram Latash e Anson parte ultrapassados ou não fazem mais sentido
(1996), o comportamento motor não seria diante do que se sabe (e já se sabia ao final da
caracterizado por uma progressividade, mas sim, década de 1980) sobre o desenvolvimento. A
por uma ampla variabilidade intra-individual e seguir, sintetizo os motivos para essa conclusão:
interindividual. Haveria um espectro no 1. A visão de desenvolvimento expressa na
comportamento em que em uma ponta se tem o referida abordagem não acompanhou as
idoso, o bebê, o deficiente, e na outra mudanças fundamentais na concepção da
(geralmente vista como o cume da pirâmide), o natureza desse fenômeno, tais mudanças
atleta olímpico. Esse espectro consiste num poderiam ser sintetizadas pela denominação
continuum de variações na capacidade de de visão sinergética4 (OYAMA,
solucionar problemas motores e da GRIFFITHS; GRAY, 2001; VALSINER,
disponibilidade de ter meios para solução. 1998; VALSINER; CONNOLLY, 2005).
Ser habilidoso não significa mostrar o
comportamento mais complexo (termo de difícil 4
A visão sinergética do desenvolvimento refere-se à
operacionalização, como destaca Gould (1997), noção de que não há nesse processo nenhum tipo de
mas quem tem maior grau de liberdade de prescrição ou programa de instruções, seja genético seja
escolha dos meios para solução do problema. ambiental, sobre o que muda, como muda e quando
muda no organismo. Nessa visão o organismo é
Parece-me que essa é a essência do
concebido como um sistema em desenvolvimento com
desenvolvimento. Foi a falta dessa liberdade de inúmeros elementos (gene, célula, órgão, sistema
escolha que fez com que as crianças do estudo nervoso, corpo, ambiente físico, ambiente social,
de Manoel e Oliveira (2000), embora sistemas simbólicos etc.) cada qual com sua lógica
qualificadas como maduras, não fossem capazes interna de funcionamento e mudança, mas que se
influenciam de forma recíproca. É da interação
de selecionar outro meio de solução para a tarefa dinâmica desses elementos que emerge o
de arremesso ao alvo. Para essa tarefa, o meio de desenvolvimento do indivíduo com suas regularidades e
solução adequado implicava empregar um idiossincrasias.

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A abordagem desenvolvimentista da educação física escolar – 20 anos: uma visão pessoal 485

2. Considerando-se a visão sinergética do Tomando esses pontos em conjunto, entendo


desenvolvimento, a questão central para o que há uma transfiguração radical na chamada
estudo e intervenção nesse processo é a abordagem desenvolvimentista, que é tirada do
compreensão de como a experiência é plano microscópico, como era colocada por Tani
construída pelo bebê, pela criança, pelo et al. (1988), e colocada em alinhamento com
jovem, pelo adulto, pelo idoso. outras abordagens consideradas macroscópicas,
num movimento que pode até questionar a
3. O enfoque muda do movimento, dos padrões validade de se continuar falando na existência de
fundamentais de movimento, das habilidades tal abordagem. Nesse sentido, é preciso
básicas, para a ação motora, trazendo à cena a reconhecer que as abordagens de Freire e Krebs
intencionalidade, o significado e o contexto. suplantam em parte alguns limites. Freire, dentro
4. Surge um novo elemento de peso no estudo e de sua visão construtivista, deu mais ênfase à
na intervenção: o contexto do individualidade característica do
desenvolvimento, dando vazão à necessidade desenvolvimento, aproximando-o de uma
de se considerar a intersubjetividade nas abordagem humanista da educação física,
ações, juntamente com o ethos5 de cada tendência que veio a marcar profundamente seu
comunidade. pensamento quando consideramos seus livros
posteriores. Por caminhos diferentes, Krebs, ao
5. O peso da abordagem desenvolvimentista abraçar o modelo de Brofenbrenner, acaba
tradicional recaía sobre progressividade, dando destaque especial ao contexto do
continuidade, regularidade, padrões desenvolvimento, aspecto ausente de abordagens
seqüenciais, excepcionalidade no desenvolvimentistas tradicionais.
desempenho, e universalidade, e com a visão
sinergética o pêndulo oscila para a
diversidade, descontinuidade, variabilidade, E A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR?
trilhas desenvolvimentistas, ubiqüidade do
desempenho, heterogeneidade (QUADRO 2). Na introdução do livro de 1988 diz-se que
toda abordagem deveria considerar e dar
Visão dominante direções para aspectos centrais para a
constituição da educação física escolar no que se
• Progressividade
refere ao seu significado, objetivo, método,
• Continuidade
• Regularidade
conteúdo e avaliação. A idéia de que os
• Universalidade conhecimentos oriundos do estudo do
• Padrões seqüenciais desenvolvimento humano dão subsídios à
• Excepcionalidade intervenção deve ser considerada à luz dos
• Homogeneidade avanços alcançados no estudo desse processo.
De um lado o estudo do desenvolvimento
Visão marginal humano e de outro a intervenção no sentido de
• Não-direcionalidade promover o desenvolvimento humano referem-
• Descontinuidade se a ações divorciadas, todavia elas têm mais em
• Variabilidade comum do que se imagina, como bem colocam
• Diversidade Bruner e Connolly (1976, p. 309-310):
• Trilhas desenvolvimentistas
• Ubiqüidade A humanidade vive num mundo feito
• Heterogeneidade por ela que ao mesmo tempo molda seu
comportamento para esse fim [...].
Quadro 2 - Visão dominante e visão marginal de Nesse importante sentido, o estudo do
uma abordagem desenvolvimentista. desenvolvimento envolve o que tem
sido chamado de “ciências do
5
Uso o conceito de ethos proposto originalmente por artificial”- construindo modelos e
Gregory Bateson para se referir ao conjunto de padrões modos de operação. Assumindo essa
comportamentais – gestos, rituais, danças, expressões concepção seriamente faz com que a
corporais etc. – típicas de uma cultura. ciência descritiva torne-se rapidamente

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486 Manoel

em normativa e prescritiva. O estudo do era preciso “criar” as condições ideais para a


desenvolvimento é, então, uma ciência realização do ensino e da pesquisa, e assim
política preocupada em avaliar a privilegiamos as atividades-meio (administração
exeqüibilidade de metas no universitária operacionalizada nos cargos de direção,
desenvolvimento e o valor dos vários chefia, presidência de comissões etc.) em detrimento
meios possíveis para atingir tais das atividades-fim (ensino, pesquisa e extensão)! Era
metas... O cientista do como se o poder que advém das atividades-meio nos
desenvolvimento, numa mudança sutil procurasse e nós o aceitássemos com resignação. A
de perspectiva, torna-se o pedagogo cada final de ano, ao nos sentarmos à mesa das
teórico e deste passa ao reflexões natalinas, lamentávamos as idéias de
experimentalista das estratégias pesquisa não postas em prática por termos sido
pedagógicas para logo voltar à consumidos pelo fogo da administração universitária,
descrição e explicação dos resultados por entidades abstratas aparentemente “criadas”
das estratégias que ele mesmo criou... a apenas para nos desviar do “bom” caminho. Mas hoje
fronteira entre estudar e intervir no eu me pergunto: quem faz o caminho? De quem é a
desenvolvimento é na verdade obscura escolha? E aqui deixo o meu caro leitor na companhia
[...]”. de Guimarães Rosa para refletir sobre seus próprios
botões e formular suas próprias respostas:
Parece-me que o caminho a seguir na
(re)construção da abordagem desenvolvimentista já Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora
havia sido traçado por Jerome Bruner e Kevin estou aqui, quase barranqueiro. Para
Connolly no texto referenciado acima. Quando penso velhice vou, com ordem e trabalho. Sei
que grande parte da literatura aqui citada já era de mim? Cumpro. O Rio de São
disponível na época em que escrevemos o livro, o Francisco – que de tão grande se
sentimento de débito para com a comunidade é maior comparece – parece um pau grosso, em
ainda. Hoje pelos corredores da universidade é pé, enorme... Amável o senhor me
comum ouvir os lamentos e indignações de colegas ouviu, minha idéia confirmou: que o
nas mais variadas direções, mas sempre a culpa por Diabo não existe. Pois não? O senhor é
todas as mazelas é colocada no sistema, na um homem soberano, circunspeto.
instituição, nos órgãos de fomento, nos colegiados, Amigos somos. Nonada. O diabo não
enfim em algo que aparentemente está distante ou há! É o que eu digo, se for... Existe é
acima de nós. Quantas vezes eu e meus colegas homem humano. Travessia.
autores do livro de 1988 não deixamos de lado a (GUIMARÃES ROSA, Grande
pesquisa que daria suporte à abordagem Sertão: Veredas).
desenvolvimentista porque “tínhamos” que nos
envolver com a administração da universidade
(“alguém tem que fazer” era a justificativa), porque

THE DEVELOPMENTAL APPROACH OF SCHOOL PHYSICAL EDUCATION – 20 YEARS: A PERSONAL


VIEW

ABSTRACT
The book “Educação física escolar: Fundamentos de uma abordagem desenvolvimentista” was published in 1988. This essay
brings a reflective thinking on the twenty years of this book from a discussion of the context in which it was done and on its
theoretical foundations. Bearing in mind the nature of development and regarding the view of this process in the periods
before and after the book, a set of arguments are put forward to highlight the limits and possibilities of the ideas born out of
the book as an effort to constitute the physical education in schools.
Keywords: Development. Physical Education. School.

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Agradecimentos
Aos professores, estudantes e profissionais que me apresentaram questões e críticas no debate que
se seguiu a três conferências relacionadas ao tema deste ensaio realizadas nos seguintes eventos: III
Congresso Paulista de Educação Física Escolar, UNICSUL, São Paulo; Congresso Internacional de
Pedagogia do Esporte, UEM, Maringá - ambos em 2007, e Aula Inaugural do Curso de Mestrado em
Educação Física, UFES, Vitória em 2008. Ao CNPq pela bolsa produtividade em pesquisa concedida
nos períodos de 2002 a 2007. Aos colegas Luiz Eduardo P. B. T. Dantas, Ernani Xavier Filho, Inara
Marques, Roberto Gimenez, Cássia Regina Palermo Moreira, Andréa Caccese Perrotti e Gizele
Nicoletti, pela confiança e porque ninguém faz ciência sozinho. A Kevin Connolly pela constante
inspiração.

Endereço para correspondência: Edison de Jesus Manoel. Rua Paraguai, 300, REc Inpla, CEO 6350170, Carapicuiba-
SP, Brasil. E-mail: ejmanoel@usp.br

R. da Educação Física/UEM Maringá, v. 19, n. 4, p. 473-488, 4. trim. 2008

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