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Dissertação de Mestrado
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This work aims, through an interdisciplinary literature review, to observe the intersections
and frictions between different social systems, as well as recognizing the importance and the
possible democratic expression of popular participation. In doing so, it starts from the study
of legal categories to bring a critical view of fundamental rights and the right to housing,
investigating the effectiveness of their interpenetration and their "gateway" to other
fundamental rights.
It is possible, therefore, to establish a dogmatic basis that embodies popular expectations of
respect and citizenship. Then, layers of analysis are added, densifying the problematization,
putting such normative constructs in friction with empirical data, so that the analyses gain
social, geographical, historical, and economic context, allowing for an increase in the
complexity of the chosen legal structures. Legal arguments are supplemented with empirical
and historical evidence, demonstrating the centrality of housing and the utopian potential of
a concept of the right to housing.
Finally, with the support of theoretical frameworks from systems theory and the theory of
communicative action, the intention is to deepen the complexity of the analysis, examining
systemic interpretations and irritations, bringing social movements into question and their
ability to confront capitalist oppressions and overexploitation, whether by claiming rights or
by seeking to establish symbolic resistances, safeguarding essential aspects and symbols of
the lived space, protecting it from economic encroachments and invasions.
Introdução
A população brasileira se expandiu1 durante o Século XX, mesmo período em que
ocorreram diversas alterações nos modelos políticos de administração pública e até mesmo
se transformaram em urbanas as moradias, de modo que até o final do Século, a urbanidade
da vida no Brasil começa a concatenar elementos essenciais da sociabilidade, dos direitos e
da preocupação com a cidadania, revelando uma a importância desse fenômeno.
Na segunda metade do século XX, a população que reside em áreas urbanas supera
a que vive em áreas rurais, e assim, até o final do século XX o Brasil passa a ter a maior
parte de sua população vivendo nas cidades2, cuja densidade impõe uma convivência mais
intensa entre as pessoas, gerando diferentes possibilidades, mas também conflitos e
contradições, evidenciando-se as desigualdades sócio-econômicas e as diferentes formas
como as pessoas participam da comunidade.
E será no bojo desse crescimento urbano que diversos movimentos sociais
reivindicatórios têm a moradia como espaço de lutas, utilizando-se da expressão “a moradia
é a porta de entrada dos direitos”, tornando clara, a interdependência entre os direitos
humanos, bem como a expectativa de melhorias e a progressão contínuas das reivindicações
populares.
Tal provocação motivou indagações sobre a necessidade de embates e de
reivindicações, e observando que a Constituição Cidadã prevê a moradia como um direito
social, de modo gerou expectativas de construção de políticas públicas e que o Direito estaria
a se ocupar desse tipo de mazela social.
De outro lado, a questão da moradia se apresenta ao observar as desigualdades que
se mostram visíveis nas paisagens, nas precariedades residenciais, bem como se evidencia,
a cada ano, nas tragédias anualmente imprevistas, e cujas vítimas têm uma localização
geográfica específica, bem como um recorte bastante claro de raça e de classe social.
Além desses aspectos, a história recente vai mostrando como vão surgindo
movimentos reivindicatórios (occupy, primavera árabe, protestos da praça Tahir, jornadas de
junho), vocalizando o desejo de mais cidade e mais direitos.
A latência e a sobreposição desses fenômenos sugerem dúvidas sobre a eficácia
constitucional dos direitos fundamentais, notadamente o de uma moradia adequada. Ao
1
Cf. IBGE, Projeção da População do Brasil por Sexo e Idade para o Período 1980-2050 - Revisão 2008.
2
Cf. Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 211.
8
3
Cf. Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 199.
12
4
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 33.
5
Cf. Cícero, Dos deveres, 1999 p. 137.
6
Cf. Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, 2013.
7
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 35.
8
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 38.
9
Cf. Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, 2013.
13
é adequada para a fundamentação dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, porém
pouco ajuda na definição de seu conteúdo jurídico.10
Dentro dessa perspectiva pode-se perceber que a dignidade se apresenta tanto como
um valor transcendental, apriorístico, mas também como atributo material que pode ser
conquistado pelos indivíduos, em uma visão que se torna mais adequada à formulação como
norma jurídica, tendo em vista o seu caráter deôntico.
Assim, enquanto a percepção da dignidade como um valor intrínseco é reconhecida
- e não fundada - pelo Direito, de modo que outros valores e princípios podem ser decorrentes
dessa acepção de que os seres humanos possuem dignidade. Esse é o pensamento de André
de Carvalho Ramos:
Tanto nos diplomas internacionais quanto nacionais, a dignidade humana é inscrita como princípio
geral ou fundamental, mas não como um direito autônomo. De fato, a dignidade humana é uma
categoria jurídica que, por estar na origem de todos os direitos humanos, confere-lhes conteúdo ético.
Ainda, a dignidade humana dá unidade axiológica a um sistema jurídico, fornecendo um substrato
material para que os direitos possam florescer.11
A percepção de que as pessoas têm dignidade, de que há um fundamento imaterial
para a pretensão de igual respeito e consideração, derivada da concepção de que há valor
intrínseco nas pessoas, gera a possibilidade de indagar sobre a possibilidade de sua
conformação jurídica, pois se trata de uma constatação da realidade, de um reconhecimento.
Esse aspecto valorativo, do que se erroneamente depreenderia uma natureza não normativa,
permite, para além de servir como fundamento transcendental do ordenamento jurídico,
como parâmetro ético e material de crítica ao ordenamento jurídico, como princípio jurídico.
Isso determina que o ordenamento jurídico respeite alguns preceitos que decorrem
desse princípio geral, como o respeito à autonomia, e ao igual tratamento entre as pessoas,
como também o respeito à vida. A própria finalidade e razão de existência do ordenamento
jurídico, para Fabio Konder Comparato, é a proteção da dignidade da pessoa humana. 12
A diversidade de conceitos sobre a dignidade da pessoa humana não pode ser
invocada como forma de relativizar sua importância, ao apontar para a dificuldade de fixação
de um conteúdo específico para o princípio. Essas divergências de pensamento não devem
fazer com que a questão seja subtraída do debate, na verdade deve-se concluir exatamente o
oposto: o prolongado debate permitiu uma evolução do conceito, além de tensionar seus
10
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 41.
11
Ramos, Curso de Direitos Humanos, 2016, p. 77.
12
Cf. Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, 2013.
14
13
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 51.
15
14
Cf. Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, 2013.
15
Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 55.
16
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 56.
17
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 66.
16
O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física
e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas,
onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos
e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não
haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, e esta (a pessoa) por sua vez, poderá não passar de
mero objeto de arbítrio e injustiças.18
Com isso se percebe como os elementos para a sobrevivência adequada dos corpos
formam um elemento condicional da dignidade, contudo não suficiente. A vida em sociedade
impõe também o respeito da autonomia e a dignidade referenciada nas relações humana pelo
reconhecimento.
Por isso, adota-se o conceito de dignidade da pessoa humana, desenvolvido por Ingo
Wolfgang Sarlet:
Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida
em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que
assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano como venham
a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover
sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com
os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.19
Assim, tanto os conceitos teórico-filosóficos, quanto a definição acima apontada,
permitem perceber um caráter ontológico, uma dimensão histórico-cultural e as funções de
limitação, ou negativa do Estado e ativa ou prestacional, que implicam as ações para
conquista da dignidade. Somando-se a esta visão, André de Carvalho Ramos também
conceitua a dignidade da pessoa humana como conceito polissêmico, composto por diversas
dimensões:
Assim, a dignidade humana consiste na qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano, que o
protege contra todo tratamento degradante e discriminação odiosa, bem como assegura condições
materiais mínimas de sobrevivência. Consiste em atributo que todo indivíduo possui, inerente à sua
condição humana, não importando qualquer outra condição referente à nacionalidade, opção política,
orientação sexual, credo etc. 20
Por sua vez, Luís Roberto Barroso aponta para o fato da importância da dignidade da
pessoa humana, na medida em que se tornou um consenso, após a segunda guerra mundial.
É desta forma que procura apontar para a sua natureza de princípio constitucional,
ressalvando a necessidade de delimitação de seu conteúdo. Assim, propõe um conteúdo
18
Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 69.
19
Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 70.
20
Ramos, Curso de Direitos Humanos, 2016, p. 77.
17
mínimo para o referido conceito, que poderia gerar um consenso laico e neutro
politicamente. “Portanto, os três elementos que integram o conteúdo mínimo da dignidade,
na sistematização aqui proposta, são: valor intrínseco da pessoa humana, autonomia
individual e valor comunitário”.21
Ele ainda explica: “A autonomia, no plano filosófico, o elemento ético da dignidade,
ligado à razão e ao exercício da vontade em conformidade com determinadas normas”.22 A
autonomia impõe que a autodeterminação dos indivíduos seja respeitada,
independentemente de influências externas. Estabelece que é deste elemento que se extrai o
mínimo existencial, que seriam as bases materiais da autonomia do indivíduo.
Interessante observar que a análise de tais noções de dignidade da pessoa humana
influindo na produção e se revestindo de uma forma jurídica, permitindo sua aplicação, tem
um diálogo com a noção trazida por Jurgen Habermas de como o direito incorpora a eticidade
e pressupostos através do discurso, por meio da valorização e não hierarquização pressuposta
nos participantes de um discurso, o qual estrutura a forma como o sistema jurídico se
operacionaliza23.
21
Cf. Barroso, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Os Conceitos Fundamentais e a Construção
do Novo Modelo, 2015, p. 286.
22
Cf. Barroso, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Os Conceitos Fundamentais e a Construção
do Novo Modelo, 2015, p. 287. Grifos no original.
23
A questão da dignidade da pessoa humana parece estar pressuposta na origem discursiva dos direitos
fundamentais e pelo princípio da democracia (Cf. Habermas, Facticidade e validade. Contribuições para
uma teoria discursiva do direito e da democracia, 2020, p. 170), tendo em vista que alguns desses elementos
se relacionam diretamente com o outros autores apontam como elementos que decorrem da constatação da
existência desse princípio e de sua transdisciplinaridade.
18
24
Cf. Barroso, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Os Conceitos Fundamentais e a Construção
do Novo Modelo, 2015, p. 296.
25
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 95.
19
bem entendido sem que sejam avaliadas as relações sociais que nele influem. 26
O espaço em que ocorrem os acontecimentos, em que se estruturam as cidades, e no
qual se desenvolvem as sociedades não é um elemento posto pela natureza, tão somente,
imune a intervenções e alheio às questões humanas.
Ao contrário, ainda que tenha uma base natural, é na sua interação com as populações
e agentes humanos que fazem com que seja produzido por tal conjunto social, que nele insere
seus interesses.
Assim, é possível identificar que os espaços urbanos no Brasil são produzidos pelo
Estado, pelo mercado e pelas pessoas agindo com influência dos interesses de acumulação
capitalista27, mas também por pessoas buscando reproduzir as condições de sua reprodução.
Essa percepção torna possível identificar as forças que tensionam a realidade, a
atuação do estado e dos atores sociais, e, também, as contribuições do Direito para que o
espaço seja e continue sendo produzido de uma determinada forma.
O desvelar desses contextos demonstra que o ambiente é socialmente construído, e
mesmo os espaços naturais recebem um significado da comunidade humana que com eles se
relaciona, o que faz que, mesmo formados pela natureza, sejam abrangidos por uma
determinada comunidade de maneira social e artificial.
E a Constituição de 1988, embora inovadora na previsão de um sistema de direitos
fundamentais, e na instituição da dignidade e em uma posição normativa central, com ampla
valorização da democracia,28 ainda deve ser contextualizada historicamente, bem como
avaliar o território pelo qual se espalhará sua influência, verificando sua capacidade de
regular a realidade, uma vez que sua promulgação e eficácia jurídica não resultam, de forma
automática, em efetividade social.
O professor Deàk Csaba aponta que a o Brasil tem problemas de desenvolvimento
que se relacionam com uma acumulação capitalista entravada, isto é, concentrada na
manutenção de uma sociedade de elite, fazendo com que os elementos da vida social
excludentes e com riquezas concentradas sejam reproduzidas.29 Sérgio Buarque de Holanda
também enfrenta a questão dessa sociedade de elite, a qual, desde o período colonial
26
Cf. Souza, Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial, 2013, p. 25-27.
27
Cf. Souza, Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial, 2013, p. 39.
28
Cf. Souza Neto; Sarmento, Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho., 2012, Cap. 4.5,
n.p.
29
Cf. Deák, Acumulação entravada no Brasil e a crise dos anos 80, 1991.
21
Chegou-se ao fim do período colonial com a grande maioria da população excluída dos direitos civis
e políticos e sem a existência de um sentido de nacionalidade. No máximo, havia alguns centros
urbanos dotados de uma população politicamente mais aguerrida e algum sentimento de identidade
regional.34
Grande parcela da população estava, até o fim da primeira república, excluída da
participação política e dos procedimentos democráticos. A formação da população brasileira
ocorre de forma desigual, com a presença de enormes contingentes de mão de obra
escravizada, e impedida de exercer direitos básicos ou a cidadania.
30
Cf. Holanda, Raízes do Brasil, 1995, p. 56-57.
31
Cf. Holanda, Raízes do Brasil, 1995, p. 147-149.
32
Cf. Holanda, Raízes do Brasil, 1995, p. 56-57.
33
Cf. Deák, Acumulação entravada no Brasil e a crise dos anos 80, 1991.
34
Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 25.
22
35
Schwarcz, Sobre o Autoritarismo Brasileiro, 2019, p. 29.
36
Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 17.
37
Furtado, Formação Econômica do Brasil, 2007, p. 204.
38
Schwarcz, Sobre o Autoritarismo Brasileiro, 2019, p. 31.
23
39
Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 57.
40
Cf. Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 126.
41
Cf. Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 194.
24
conexão dos conhecimentos jurídicos com a realidade brasileira enquanto aspecto central
para a ambientação das categorias jurídicas à realidade histórica brasileira, em especial
considerando que os conceitos jurídicos, ainda que dotados de independência e
reconhecimento universais, devem ser situados para serem utilizados.42
Segundo Eduardo Carlos Bianca Bittar, o desenvolvimento histórico brasileiro
permite explicar as causas e problemas que atravessam as tentativas de garantia dos direitos,
sendo as verdadeiras raízes do atraso brasileiro, que ainda gera efeitos no Direito Brasileiro,
apontando que “fica evidente que, os próprios déficits de cidadania, tão presentes, até os dias
de hoje, guardam suas raízes históricas no período colonial”.43
E os espaços urbanos e rurais, e a forma como vêm sendo ocupados, bem como as
populações que não podem usufruir de todas as condições da terra, culminando nas enormes
desigualdades e nos enormes déficits de cidadania do país, mostram as condições sociais,
históricas e culturais em que surge a Constituição de 1988, a qual, mesmo prevendo diversos
direitos fundamentais para as pessoas, enfrenta desafios imensos de efetivação.
O contexto material em que é fundada a ordem jurídica brasileira é marcado por
profundas contradições e por abissais desigualdades, cujas necessidades e desejo de
superação transbordaram para o texto constitucional, como uma possível resposta aos atrasos
e abusos cometidos até então, contudo, a incapacidade de instaurar a modernidade de forma
completa na realidade brasileira demonstra a incompletude desse processo. E é a correção e
seriedade desse diagnóstico que permitirão alguma forma de aprofundamento das instâncias
democráticas, e a busca pela efetividade dos direitos previstos constitucionalmente.44
42
Cf. Bittar, Introdução ao Estudo do Direito: humanismo, democracia e justiça, 2019, p. 217-218.
43
Bittar, Introdução ao Estudo do Direito: humanismo, democracia e justiça, 2019, p. 226.
44
Cf. Bittar, Introdução ao Estudo do Direito: humanismo, democracia e justiça, 2019, p. 239-240.
25
Uma vez estabelecida a noção de dignidade da pessoa humana, percebe-se que uma
de suas dimensões, que diz respeito ao mínimo material para a vida com dignidade, é objeto
de diversos direitos fundamentais.
Desse modo, antes de observar especificamente o direito à moradia, é necessário
compreender como se pode estabelecer e conceituar o gênero que comporta esse direito, que
forma um sistema de direitos fundamentais, e observar as implicações sociais e jurídicas da
existência e de estabelecer tal sistema de direitos.
Há debates a respeito do que significa ou abrange a expressão ‘direitos
fundamentais’, confrontando tal categoria com expressões como ‘direitos humanos’, porém,
45
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 113-
114.
46
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 136.
47
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 138.
26
por serem definições arbitrárias, não se entrará em tal debate, e apenas se apresentará o
conceito as ser utilizado brevemente, evitando equívocos. Assim, pode-se conceituar tal
expressão como, emprestando-se a formulação de André de Carvalho Ramos:
Finalmente, chegamos a duas expressões de uso corrente no século XXI: direitos humanos e direitos
fundamentais. Inicialmente, a doutrina tende a reconhecer que os “direitos humanos” servem para
definir os direitos estabelecidos pelo Direito Internacional em tratados e demais normas internacionais
sobre a matéria, enquanto a expressão “direitos fundamentais” delimitaria aqueles direitos
reconhecidos e positivados pelo Direito Constitucional de um Estado específico.48
Partindo dessa concepção - de direito humano positivado constitucionalmente - o
conceito de ‘direitos fundamentais’, ainda guarda correlação com a dignidade da pessoa
humana. Essa concepção remete à leitura da Constituição de 1988 que estruturar texto
conforme uma certa classificação dos direitos nela previstos.
A Constituição prevê, em situação topográfica privilegiada, em seu “Título II - Dos
Direitos e Garantias Fundamentais”, cinco capítulos que tratam: dos direitos e deveres
individuais e coletivos; dos direitos sociais; da nacionalidade; dos direitos políticos e dos
partidos políticos.
Há menção à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais em outros
pontos da Constituição, que serão oportunamente comentados. Retornando à classificação
efetuada pela Constituição, observa-se que o texto constitucional não utilizou a divisão dos
direitos fundamentais em dimensões, ou gerações, mas uma própria. A escolha de uma
determinada classificação é tributária da finalidade com que se separam os elementos dessa
classificação, inexistindo uma classificação essencial ou correta.
É interessante notar, contudo, que tais direitos também não correspondem a uma
simples abstração, mas são: “acima de tudo, fruto de reivindicações concretas, geradas por
situações de injustiça e/ou de agressão a bens fundamentais e elementares do ser humano”.49
O conceito de direitos fundamentais depende da positivação de um determinado
direito na Constituição, característica chamada por Ingo Wolfgang Sarlet de
fundamentalidade formal, que representa a situação daquele direito em específico constar
como direito previsto na norma que representa o ápice do ordenamento jurídico, com
especial proteção relativa à reforma e aplicados diretamente.
Depende, ainda, da verificação da fundamentalidade material, “isto é, da
48
Ramos, Curso de Direitos Humanos, 2016, p. 52.
49
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 52-53.
27
Direitos fundamentais são, portanto, todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do
ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância
(fundamentalidade em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da
esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por
seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo,
ou não, assento na Constituição formal (aqui considerada a abertura material do Catálogo).51
Tal conceito mostra-se suficiente, na medida em que traz os direitos previstos pela
Constituição, abrangendo também aqueles não previstos expressamente, conforme o sistema
estabelecido constitucionalmente para os direitos fundamentais.
50
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 76.
51
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 78.
28
(...) além da íntima vinculação entre as noções de Estado de Direito, Constituição e direitos
fundamentais, estes, sob o aspecto de concretizações do princípio da dignidade da pessoa humana,
bem como dos valores da igualdade, liberdade e justiça, constituem condição de existência e medida
da legitimidade de um autêntico Estado Democrático e Social de Direito(...).57
52
Cf. Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 2010, p 563.
53
Cf. Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 2010, p. 564.
54
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 47.
55
Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 2010, p. 569.
56
Cf. Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 2010, p. 572.
57
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 62-63.
29
(...) às normas que preveem direitos subjetivos é outorgada função autônoma, que transcende esta
perspectiva subjetiva, e que, além disso, desemboca no reconhecimento de conteúdos normativos e,
portanto, de funções distintas aos direitos fundamentais.58
A perspectiva objetiva complementa o caráter subjetivo do direito fundamental, que
se reflete na existência de um direito subjetivo correspondente, uma posição exigível
juridicamente. Não se trata de características antagônicas, mas complementares. Têm relação
com as funções que serão exercidas na interpretação e aplicação desses direitos.
A possibilidade de multifuncionalidade dos direitos fundamentais é tratada por Ingo
Wolfgang Sarlet, que resgata a classificação dos status de Georg Jellinek. Tais classificações
utilizam como parâmetro a ação estatal correspondente, ou o direito subjetivo
58
Cf. Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 150.
30
59
Cf. Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 174.
31
José Felipe Ledur adota uma classificação também com base nas funções,
ligeiramente diversa daquela utilizada por Ingo Wolfgang Sarlet, estabelecendo como uma
função jurídico-objetiva a proteção de determinado direito contra intervenções de terceiros,60
enquanto Ingo Wolfgang Sarlet coloca essa função como inserida na categoria prestação
estatal em sentido amplo.61
Superando essas diferentes visões, é esclarecedora a acepção de José Felipe Ledur a
respeito da necessidade de realização de política pública:
Se antes os direitos fundamentais estavam mais centrados na função jurídico-subjetiva, voltada contra
o poder estatal, agora a ela se somam as funções objetivas, destinadas a proteger os direitos
fundamentais de restrições ilegítimas oriundas do poder privado.62
Independentemente dessas previsões, é importante ressaltar a necessidade de
concretização, ou de maior densidade para que os direitos fundamentais possam ser
operacionalizados.
“Se adotamos o entendimento de que as utopias representam (não só, mas também e especialmente,
“horizontes de sentido”, nesse sentido, efetivamente, firmamos convicção no concernente a uma
dimensão utópica de todos os direitos fundamentais”.63
A efetividade dos direitos sociais não se circunscreve à mera prestação material, pois,
atentos à sua operação multifuncional, é possível observar que há nessa categoria de direitos
tanto aqueles em que predomina a função de defesa, como o direito social de greve ou outros
60
Cf. Ledur, Direitos Fundamentais Sociais: Efetivação no âmbito da Democracia Participativa, 2009, p. 36-
37.
61
Cf. Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 197.
62
Ledur, Direitos Fundamentais Sociais: Efetivação no âmbito da Democracia Participativa, 2009, p. 45.
63
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 382.
32
em que predomina o funcionamento prestacional, como ocorre com o direito à saúde, o qual
necessita de prestações estruturadas e organizadas para a sua plena efetivação.
Essa multifuncionalidade também demonstra como a luta pela efetividade desses
direitos deve ser múltipla e complexa.
Eles não têm essa nomenclatura por serem titularizados pela sociedade, de modo
difuso ou abstrato, mas por guardar relação com valores de justiça social, podendo até
mesmo originar posições jurídicas subjetivas individuais, como ocorre com o direito à
educação infantil ou à saúde.
Os direitos sociais pertencem a uma categoria distinta dos direitos coletivos, embora
possa existir direitos que pertencem a esses dois conjuntos. Os direitos coletivos são os
direitos que são titularizados por uma coletividade, ao passo que os sociais são aqueles
classificados assim pela constituição, costumeiramente associados aos de segunda dimensão.
Dessa forma “há direitos sociais que encontram expressão individual e outros que se
expressam coletivamente”.64 Isso evidencia como a categoria ‘social’ dos direitos
fundamentais tem relação direta com as condições materiais necessárias para a vida digna,
ou para o exercício pleno da liberdade e da igualdade, estabelecidas como direitos
fundamentais individuais, mas que, sem o necessário contexto fático, restam esvaziados.
Assim, os direitos sociais estão, muitas vezes, na condição para a aquisição ou para o
exercício de um direito fundamental de primeira dimensão, o que aponta para a interconexão
e para a complementaridade entre estes direitos.
Neste tocante, José Felipe Ledur ainda explica que:
O que se busca, tanto com os direitos sociais gerais e específicos quanto com os coletivos, é garantir
um patamar social que se eleve acima do mínimo existencial, isto é, um conjunto de situações ou
condições individuais e sociais que ao mesmo tempo proporcionem a autonomia do indivíduo e
assegurem o bem comum, ou seja, a comum dignidade da pessoa em sociedade livre, justa e
solidária.65
Uma outra visão sobre os direitos sociais, de José Eduardo Faria:
Os direitos sociais não configuram um direito de igualdade, baseado em regras de julgamento que
implicam um tratamento uniforme; são, isto sim, um direito das preferências e das desigualdades, ou
seja, um direito discriminatório com propósitos compensatórios; um direito descontínuo, pragmático
e por vezes até mesmo contraditório, quase sempre dependente da sorte de determinados casos
64
Ledur, Direitos Fundamentais Sociais: Efetivação no âmbito da Democracia Participativa, 2009, p. 86.
65
Ledur, Direitos Fundamentais Sociais: Efetivação no âmbito da Democracia Participativa, 2009, p. 87.
33
concretos.66
Muitos dos direitos sociais têm na prestação estatal a principal forma de efetivação,
ainda que possam servir como direito de defesa quando se invoca a vedação do retrocesso.
E, por depender de uma ação do Estado, dependem de uma densidade normativa e de uma
conceituação precisa para que possam ter garantida sua justiciabilidade.
Interessante notar que essa prestação pode vir em diferentes formas, como por
exemplo diretamente pelo fornecimento de bens materiais correspondente à satisfação
daquele direito material; ou mesmo a criação de instituições e bens públicos acessíveis para
o cidadão, como por exemplo a criação de um conselho participativo. Ademais, a prestação
pode também corresponder à participação nos bens comunitários, como equipamentos
públicos.67
A concretização desses direitos é condição lógica para que o direito social realmente
tenha uma substância apta a ser exigida judicialmente na forma de um direito subjetivo, e
delimita também quais formas de prestação serão exigíveis ou realizadas pelo Estado. Essa
delimitação implica uma limitação à potencialidade plena do conceito do direito
fundamental, pois estabelecer os elementos que o compõem também implica a exclusão de
todos os outros.
Uma leitura apressada – e equivocada – dos direitos sociais poderia confundi-los com
‘normas programáticas’, tendo em vista que muitos deles têm a finalidade comum com
outras normas programáticas como a redução da miséria e da pobreza, tendo em
consideração que alguns direitos sociais, como é o caso da alimentação ou da moradia,
caminham na concretização destas normas programáticas.
Já para Ingo Wolfgang Sarlet, embora importante, a concretização serve à
operacionalização do direito fundamental, já que a eficácia dependeria mais de condições
materiais do Estado do que propriamente de regulamentação:
66
Faria, O Judiciário e os Direitos Humanos e Sociais: notas para uma avaliação da justiça Brasileira, 2002,
p. 105.
67
Cf. Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 292.
34
68
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 301.
69
“A right to minimal social and economic guarantees can be justified, not only on the ground that people in
desperate conditions will not have good lives but also on the ground that democracy requires a certain
independence and security for everyone” (Sunstein, Designing democracy: What constitutions do, 2001,
p. 235).
70
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 136.
71
Cf. Novais, Direitos Sociais: Teoria jurídica dos direitos sociais enquanto direitos fundamentais, 2017, p.
50-51.
72
Ledur, Direitos Fundamentais Sociais: efetivação no âmbito da Democracia Participativa, 2009, p. 98.
35
existenciais sejam mais elevados, e, além disso, que a concretização seja dada de forma mais
sofisticada e abrangente.
As classificações dos direitos fundamentais são úteis para compreender a
operacionalização do direito e qual é o nível de interposição legislativa necessária para sua
eficácia, e não como argumento para afastar a justiciabilidade ou aplicação e exigibilidade
dos direitos sociais, já que, por serem direitos fundamentais, têm aplicabilidade imediata,
como preceitua o comando do art. 5º, § 1º, da Constituição da República: “As normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
A previsão de aplicação imediata para os direitos fundamentais alcança também os
direitos sociais, já que se constitui numa espécie dessa categoria. Mesmo sem nenhuma
concretização, a previsão de que os direitos têm aplicação imediata exige o esforço do
intérprete, que deve retirar o sentido possível dessa norma, e, em especial, verificar o nível
mínimo para que seja mantida a dignidade da pessoa humana, resguardando-se com isso o
mínimo existencial.
Independe de concretização, a operacionalização da função de defesa dos direitos
sociais, com a qual o Estado deve abster-se de medidas que interfiram danosamente na
consecução desses direitos, ou que pratique condutas que violem esses preceitos. Ainda há
os efeitos objetivos, que independem de concretização, efetivando a irradiação desses
valores na interpretação do ordenamento jurídico.
Entretanto, isso não afasta a utilidade e a necessidade de concretização, que permita
estabelecer os padrões que permitam efetivar o direito social envolvido, até mesmo
permitindo sua justiciabilidade.
E isso porque esta categoria de direitos guarda relação direta com a realidade social
da comunidade, de modo que podem encontrar na concretização o método para estabelecer
os parâmetros para efetivar o direito, verificando qual será o mínimo a ser garantido para
manter a dignidade, e, tendo em vista o grau de prosperidade e desenvolvimento econômico,
para fixação de padrões mais elevados de efetivação e garantia desse direito.
Há diversas definições do conceito de eficácia, efetividade e aplicação. Neste tocante,
pode-se ter presente o que a este respeito afirma Eros Grau, pois distingue a efetividade da
norma jurídica da eficácia. Assim, seguindo-se o Autor, a eficácia se subdividiria em eficácia
jurídica e social, evidenciando que, mesmo sem produzir efeitos sociais, às vezes a
possibilidade de provocá-los gera consequências jurídicas, ao menos, guardando à ideia de
efetividade semelhança com a eficácia social, que é propriamente a produção de
36
consequências na sociedade.73
Segundo Eduardo Carlos Bianca Bittar, a eficácia de uma norma é um de seus
atributos e, segundo suas palavras: “É o traço da norma que mais a aproxima da realidade
social, funcionando como verdadeiro termômetro das regras jurídicas”.74
Esses contornos da eficácia fazem com que ela sirva para avaliar como estão sendo
produzidas as normas jurídicas, e verificar se está concretizando a pretensão que existia
quando de sua edição. A norma não existe em si mesma, mas sempre é sempre relativa a
fatos sociais.75
A ineficácia de algumas normas pode decorrer de diferentes causas, e tal condição é
até esperada dentro de um ordenamento jurídico, tendo-se presente o que a este respeito
afirma Eduardo Carlos Bianca Bittar. Porém, adverte-se para o fato de que uma persistente
situação crônica de ineficácia pode fragilizar a própria legitimidade do ordenamento
jurídico, produzindo crises.76 Nesse sentido, afirma: “A eficácia não é fundamento de
validade, mas sim condição externa de validade para o sistema.”77.
Outros autores, como Ingo Wolfgang Sarlet, apontam que há conexão entre eficácia
e aplicabilidade, mas que não é necessário que as normas dotadas de aplicabilidade também
sejam eficazes, pois a aplicabilidade se perfaz com a mera potência de produção de efeitos78.
Embora seja importante a delimitação precisa desses conceitos, para a investigação
proposta, o elemento de destaque dessas definições é o elemento de conexão da norma
jurídica com fatos, representando a capacidade de interferir e ocasionar condutas ou
prestações jurídicas. No caso dos direitos sociais, em que a norma não encerra uma conduta,
mas um bem da vida, sua eficácia – além da normativa – se distribui como uma progressão,
isto é, se realiza em graus.
Desse modo, o conceito de eficácia a ser utilizado, para esse tipo de direito
fundamental, não se consubstancia com a possibilidade de aplicação por alguns órgãos do
Poder Judiciário ou com a produção de efeitos jurídicos, mas deve ser medida conforme sua
intervenção nos indicadores sociais relacionados e na realização plena – ou incremento dela
73
Cf. GRAU, A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 2012, p. 305.
74
Bittar, O Direito na Pós-Modernidade, 2014, p. 161.
75
Cf. Bittar, O Direito na Pós-Modernidade, 2014, p. 162.
76
Cf. Bittar, O Direito na Pós-Modernidade, 2014, p. 164-165.
77
Bittar, O Direito na Pós-Modernidade, 2014, p. 156.
78
Cf. Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 246.
37
(...) eventual abertura e indeterminação do enunciado normativo não constituem, por si só, argumento
suficiente para sustentar a dependência dos direitos sociais prestacionais de interposição legislativa,
já que mesmo na esfera dos direitos de defesa e até das normas organizacionais tal circunstância não
impede, de regra, sua imediata aplicabilidade e eficácia (...)80
Acrescenta, que “(...) assume especial relevo a íntima vinculação – destacada
especialmente pela doutrina estrangeira – de vários desses direitos com o direito à vida e
com o princípio da dignidade humana (...)” 81.
E, de forma apriorística à concretização, é possível defender a garantia do mínimo
existencial como uma forma de efetividade que resguarde a dignidade da pessoa humana.
A questão da eficácia do direito à moradia, e de outros direitos fundamentais, mostra-
se central para a legitimação do ordenamento jurídico brasileiro, por se tratar efetivamente
de direitos indispensáveis e interconectados, já que uns são necessários para que os outros
sejam minimamente garantidos.
E, para que seja possível compreender as nuances relacionadas à efetivação dos
direitos fundamentais é indispensável localizar a experiência constitucional inovadora no
tempo e no espaço brasileiros, isto é, verificar as condições econômicas, sociais, culturais e
políticas que permitem ou entravam a eficácia desses direitos.
E é nesse sentido que Eduardo Carlos Bianca Bittar aponta para a necessidade de
“considerar a historicidade da construção da cidadania”,82 e, ao fazê-lo, nota sintomas de
79
Bittar, O Direito na Pós-Modernidade, 2014, p. 162.
80
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 346.
81
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 346.
82
Cf. Bittar, O Direito na Pós-Modernidade, 2014, p. 172.
38
crise, revelados pelos indicadores sociais de pessoas sem a garantia de direitos fundamentais,
que demonstram que o próprio ordenamento jurídico brasileiro pode ser considerado como
padecendo de ineficácia crônica, fazendo derreter sua legitimidade, de modo que o próprio
modelo de Estado escolhido entra em crise.83
Uma vez dotados de conceitos para tratar a dignidade da pessoa humana, os direitos
fundamentais e os direitos sociais, é possível observar o enunciado normativo constitucional
que estabelece a moradia como um direito, cuja natureza é interseccionada por tais conceitos.
Assim, pode-se proceder à leitura do direito à moradia, inserido no artigo 6º da
Constituição da República de 1988, no capítulo dos direitos sociais, sendo possível entendê-
lo como direito social e como direito fundamental, essencial em uma acepção material da
dignidade da pessoa humana seja garantida, compondo o mínimo existencial.
É necessário observar que a Constituição, que é reconhecidamente citada pelos
constitucionalistas como analítica 84, no que tange a esse importante direito fundamental
mostra-se sintética85, já que apenas o enuncia como direito fundamental, e traz algumas
outras previsões que o atravessam, como por exemplo ao trazer um capítulo sobre a política
urbana.
Além disso, é importante mencionar que o direito à moradia não constava do texto
original da Constituição, promulgado em 198886. O direito à moradia somente foi
expressamente87 incluído após a promulgação da Emenda Constitucional N.º 26 de 2000,
resultado de pressões de movimentos sociais.
Todavia, a ausência de menção expressa à moradia não significou que o tema foi
completamente ignorado pelo texto constitucional. Ao contrário, houve fortes inovações
normativas, que incorporaram temas bastante caros à política habitacional, isto é, o capítulo
83
Cf. Bittar, O Direito na Pós-Modernidade, 2014, p. 196-197.
84
Classificação das constituições que considera a constituição extensa e demasiado detalhada.
85
Contraparte da constituição analítica, a sintética traz apenas os tópicos mais importantes, deixando o
detalhamento às leis infraconstitucionais.
86
Os aspectos históricos e a luta política que envolveram a inclusão desses capítulos por meio da atuação do
Movimento Nacional Pela Reforma Urbana bem como o contexto em que a moradia foi expressamente
prevista serão aprofundados no capítulo 2.1.6, desta dissertação.
87
É possível abrir o debate de que o direito à moradia, a despeito de somente ter sido incluído em 2000, desde
a promulgação da Constituição poder ser considerado como um direito fundamental implícito, tendo em
vista a já citada centralidade e interdependência desse direito, cuja efetividade é condição para o exercício
de diversos outros expressamente citados, contudo, tal discussão foge ao escopo inicialmente proposto.
39
da política urbana, que abrangia os artigos 182 e 183, com conteúdo inovador em relação às
constituições brasileiras anteriores, o qual foi resultado da influência e da atuação política
do Movimento pela Reforma Urbana, cuja influência será expandida mais adiante.
88
Cf. Bittar, O Direito na Pós-Modernidade, 2014, p. 164.
40
Ressalte-se, nesse contexto, que o objeto dos direitos sociais a prestações (em última análise, o
conteúdo da prestação) dificilmente poderá ser estabelecido e definido de forma geral e abstrata,
necessitando de análise calcada nas circunstâncias específicas de cada direito fundamental que se
enquadre no grupo ora em exame. 89
De acordo com Ingo Wolfgang Sarlet:
Considerando o silêncio da nossa Constituição no que diz com a definição mínima de um conteúdo
para o direito à moradia, assumem lugar de destaque as disposições contidas nos diversos tratados e
documentos internacionais firmados pelo Brasil e já incorporados ao direito interno.90
O grau de efetividade dependerá de diferentes técnicas de positivação, aceitando que
essa concretização ocorra também por meio da verificação do mínimo existencial ou, ainda,
depois do esforço de definir o conteúdo do direito de moradia, no mínimo indispensável a
uma existência digna. Há que se observar que essa definição passa pelos padrões de moradia
da sociedade em que se insere esse direito, bem como dos recursos de que dispõe essa
sociedade, tendo em vista que a efetividade está diretamente relacionada com prestações e
condições materiais de existência.
Assim, a verificação da efetividade do direito à moradia guarda relação com a
verificação do mínimo existencial e da presença das condições materiais para sua efetivação,
bem como com o nível material da sociedade em que se está previsto tal direito. 91
O ordenamento jurídico brasileiro, antes de adentrar na ordem jurídica internacional,
já contava com previsões relativas ao direito à moradia, ainda que sem essa inequívoca
literalidade e densidade normativa, como existente nos tratados internacionais de direitos
humanos.
Artigo 25: 1. Todos têm direito a um padrão de vida adequado para a manutenção da vida, da saúde e
do bem-estar seu e de sua família, o que inclui a alimentação, o vestuário, a habitação e os cuidados
médicos e assistenciais indispensáveis, e o direito à segurança diante dos riscos de desemprego,
89
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 292.
90
Sarlet, O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: Algumas Anotações a Respeito de seu Contexto,
Conteúdo e Possível Eficácia, 2003, p. 18.
91
Cf. Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 257.
41
ARTIGO 11.1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível
de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia
adequadas, assim como a uma melhoria contínua suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão
medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a
importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.
A leitura desses documentos, embora evidencie a importância do direito à moradia,
não acrescenta novos conteúdos que delimitem de forma mais específica a sua configuração.
Todavia, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, introduzido pelo
Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
de 1966 - introduzido no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto N.º 591 de
1992 -, emitiu interpretação sobre o tema, aprofundando e concretizando os limites desse
direito em âmbito internacional, estabelecendo hipótese para sua aplicação direta, mas
também os elementos presentes na moradia, para que ela possa ser adequada para preencher
e efetivar esse direito.
Essa interpretação aprofunda o conteúdo do direito à moradia, delimitando sua
composição e estrutura, elementos que permitem averiguar a eficácia desse direito. Assim,
o Comentário-Geral N.º 4 do Comitê interpreta o artigo 11.1. do Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Desta forma, mais que apenas teto ou uma construção, para que a moradia seja
considerada adequada, deve-se atender a algumas condições, como a segurança legal da
posse, referente à proteção jurídica da moradia, que garante estabilidade diante de despejos,
e ameaças; a disponibilidade de serviços e infraestrutura e a bens, como abastecimento por
água, energia elétrica, aquecimento, saneamento, armazenamento de alimentos, eliminação
de resíduos, drenagem e atendimento por serviços de emergência; ter custo acessível, isto é,
que os custos com a moradia não comprometam outras necessidades básicas; habitabilidade,
a construção deve ter condições térmicas adequadas, proteção contra chuva, vento e vetores
de doenças; acessibilidade; localização que garanta acesso a opções de emprego, transporte,
serviços de saúde e educacionais, e adequação cultural, a qual expressa um elemento
“Article 25. 1. Everyone has the right to a standard of living adequate for the health and well-being of himself and
92
of his family, including food, clothing, housing and medical care and necessary social services, and the right to
security in the event of unemployment, sickness, disability, widowhood, old age or other lack of livelihood in
circumstances beyond his control” (UN, Universal Declaration of Human Rights, 1948).
42
93
Cf. Un Committee on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR), General Comment No. 4: The Right
to Adequate Housing (Art. 11 (1) of the Covenant), 1991.
43
94
Cf. Fundação João Pinheiro, Déficit Habitacional no Brasil 2016-2019, 2021.
95
Cf. IPEA, Estimativa da população em situação de rua no Brasil (2012-2022), 2023.
96
Importante anotar que no ano em que o trabalho começou a ser escrito (2021) a estimativa mais recente trazia
o número de 221.869 pessoas em situação de rua, tendo ocorrido um triste e substancial aumento nestes
últimos dois anos.
97
Cf. Lei Nº 8.009, de 29 de março de 1990.
98
Cf. Artigo 1.711 do Código Civil Brasileiro.
44
Art. 2º (...)
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao
saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao
lazer, para as presentes e futuras gerações;
99
Gonçalves, Direito Civil Brasileiro: Volume VI: Direito de Família, 2005, p. 519.
100
Cf. Lei N.º 8.245, de 18 de outubro de 1991.
45
101
Cf. Cf. Lei N.º 10.257 de 10 de julho de 2001 – “Estatuto da Cidade”.
102
Cf. Lei Orgânica da Assistência Social e Decreto N.º 7.053 de 23 de dezembro de 2009.
103
Cf. Lei N.º 6.766, de 19 de dezembro de 1979, lei N.º 11.481 de 31 de maio de 2007 e lei N.º 13.465 de 11
de julho de 2017.
104
Cf. Lei N.º 11.124 de 16 de junho de 2005.
105
Cf. Art. 1.225, XIII, do Código Civil Brasileiro.
106
Lei N.º 11.977 de 07 de julho de 2009.
46
107
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 154.
47
não seja indispensável para essa segurança, tem sido especialmente importante no Brasil,
dado que uma das mazelas sofridas pelas populações desprovidas de moradias adequadas é
exatamente a insegurança, isto é, os riscos de despejos forçados. 108
Essa diferenciação se mostra indispensável para que as políticas públicas com foco
na habitação possam ser encaradas de forma crítica, primeiro porque a concessão de
propriedades de imóveis de forma generalizada tem elevado custo financeiro, e, não esgota
a solução do problema.
Com a diferenciação, torna-se viável a reivindicação de políticas públicas diversas,
focadas na resolução direta dos problemas, ainda que sem a concessão da propriedade à
pessoa necessitada. Nesses termos, é possível focar uma crítica ao Programa Minha Casa
Minha Vida, por ser reduzido à construção de habitações, sem que seus recursos também
fossem voltados à solução de outros problemas, com ações diversificadas.
Assim, mesmo que exista relação entre os conceitos, e que a ‘propriedade’ possa ser
veículo da garantia de moradia, na verdade, a previsão da moradia como direito fundamental
serve como um elemento que a limita, dado que a propriedade deverá atender à sua função
social, que compreende a utilização dela como moradia.
A noção de ‘função social da propriedade’, por exemplo, se aperfeiçoa com a
residência da pessoa na propriedade. O imóvel que está sendo locado ou habitado pelo seu
proprietário, em regra, cumpre sua função social.
A moradia num imóvel também qualifica a ‘posse’, tornando-a apta para alcançar a
usucapião especial urbana109 ou ainda a redução do tempo da usucapião extraordinária110 e
ordinária.111
A garantia da ‘propriedade’ e sua inserção, com sua ‘função social’, entre os
princípios do capítulo sobre a Ordem Econômica, no interior do texto da Constituição
Federal de 1988, denotam que há um esforço de coordenação entre a economia estabelecida
no País, para que essa possibilite a promoção dos direitos fundamentais, o que se faz por
meio da proteção da propriedade, mas condicionada à sua função social. Nas palavras de
108
A questão será abordada mais adiante, ao problematizar, de outro lado, as potencialidades que a garantia da
propriedade também pode gerar a partir da concessão de algum direito aos moradores bem como à sua
segurança.
109
Art. 183 da Constituição da República Federativa do Brasil, ressalvando que a posse decorrente da locação
não habilita o morador a requerer a usucapião.
110
Art. 1.242, Parágrafo Único do Código Civil.
111
Art. 1.238, Parágrafo Único do Código Civil.
48
Eros Grau:
A função é um poder que não se exercita exclusivamente no interesse de seu titular, mas também no
de terceiros [...] não é a coisa objeto da propriedade que tem a função, mas sim o titular da propriedade.
[...] Daí uma alteração na própria estrutura da propriedade. [...] a introdução do conceito de função
social no sistema que reconhece e garante a propriedade implica a superação da contraposição entre
público e privado. [...] Trata-se, então, de um direito subjetivo com uma função necessariamente
social.112.
Assim, fica clara a relação entre a propriedade e a moradia, mas a sua não-identidade
e a não-dependência da moradia da existência da propriedade do habitante. Até mesmo se
pode discutir a fundamentalidade material do direito à propriedade, reduzida à sua
importância econômica, e pela ausência de relação direta com a dignidade da pessoa humana,
como Ingo Wolfgang Sarlet sugere ser possível problematizar.113
112
Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 2012, p. 242-243.
113
Cf. Sarlet, O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: Algumas Anotações a Respeito de seu
Contexto, Conteúdo e Possível Eficácia, 2003, p. 18.
114
Maricato, Brasil, cidades: Alternativas para a crise urbana, 2013, p. 118.
49
Terra urbana significa terra servida por infraestrutura e serviços (rede de água, rede de esgotos, rede
de drenagem, transporte, coleta de lixo, iluminação pública, além dos equipamentos de educação,
saúde etc.). Ou seja, a produção da moradia exige um pedaço de cidade e não de terra nua. Há
necessidade de investimentos sobre a terra para que ela ofereça condições viáveis de moradia em
situação de grande aglomeração.115
E, com essa noção, percebe-se que é indissociável o planejamento da cidade da
produção das suas moradias. Na verdade, a própria construção e delimitações de área onde
se situam as moradias já é um ato de produção também da cidade, e seu crescimento é
planejado ou não-planejado, conforme as necessidades habitacionais são supridas de forma
organizada ou relegadas a um segundo plano.
Dessa forma, quando se aponta que existe um direito à moradia, ele traz em si o
direito de acesso à cidade e o direito à participação na cidade.
E assim o direito à moradia mostra sua centralidade na garantia de condições
materiais mínimas para a existência digna, e para exercício de outros direitos fundamentais,
apenas em seu cruzamento com a exigência de respeito à dignidade da pessoa humana e de
atendimento ao mínimo existencial, trazidos como importantes direitos e conquistas no
traçado da Constituição de 1988.
Essa multiplicidade de concepções referentes à moradia adequada implica um retorno
à materialidade do contexto em que se dá a moradia. Isso porque a avaliação de que a
moradia é adequada, conforme os parâmetros normativos116 estabelecidos pelo Comitê de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, depende da avaliação concreta de adequação em
suas diferentes dimensões.
Essa análise fica na dependência de um olhar sobre a moradia que não pode ser
individualizado, isto é, tomado simplesmente pela unidade habitação, mas realizada em face
da principal estrutura que conglomera as habitações: a cidade.
115
Maricato, Brasil, cidades: Alternativas para a crise urbana, 2013, p. 119.
116
Cf. Un Committee on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR). General Comment No. 4: The Right
to Adequate Housing (Art. 11 (1) of the Covenant), 1991.
50
117
A teoria do Direito formulada por Jürgen Habermas tem relação direta com essa tensão que ele apreende no
Direito, verificando os ganhos oriundos da teoria da ação comunicativa, que tem a capacidade de fornecer
um contexto para uma teoria discursiva do direito, ao passo que o direito surge como categoria capaz de
mediar a reprodução da sociedade considerando ainda pretensões de validade transcendentes (Cf.
Habermas, Facticidade e Validade, 2020, p. 40-41).
118
85% da população brasileira vive em zonas urbanas, Cf. IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD), 2015.
119
Cf. Lencioni, Observações sobre o conceito de cidade e urbano, 2008, p. 117.
120
Cf. Ultramari, Conceito de cidade: Dificuldades e Razões para formulá-lo, 2019, p. 290.
51
que é uma área urbana para fins de zoneamento, ou mesmo para tributação do imposto sobre
a propriedade territorial urbana, o faz simplesmente porque precisa categorizar essas
diferenças com o intuito de fazer incidir diferentes regulamentações jurídicas. Assim, o
Código Tributário Nacional, por exemplo, considera urbana, e apta para incidência do
imposto urbano, o imóvel que contém certas melhorias, como calçamento, meio fio,
abastecimento por serviços de água e esgoto, iluminação pública e escola primária. 121
Percebe-se, na situação da verificação da adequação da moradia, a insuficiência dos
termos normativos trazidos pelo Código Tributário Nacional, embora eles tragam em si um
dos elementos trazidos pelos conceitos já citados, vinculando o fenômeno urbano à
existência de serviços públicos naquele imóvel.
O geógrafo Henri Lefebvre também aponta para a centralidade do conceito de
urbano, que vai ganhando proeminência em relação ao rural, ou, conforme comenta: “O
‘tecido urbano’ prolifera, estende-se, corrói os resíduos de vida agrária”.122
Essas constatações demonstram como mais importante do que descrever um conceito
mais preciso de cidade, é delimitar bem os fenômenos que se deseja abarcar pela análise.
E, tendo a ideia da moradia nas cidades brasileiras como fio condutor material da
ideia de cidade, e adotando-se os critérios de aglomeração de pessoas, de mercado e,
principalmente, de administração pública operando na localidade, chega-se à noção de
cidade apta a concentrar os fenômenos de prestação de serviços públicos, de ocupação e de
atuação do mercado nas habitações, destacando-se, ainda, os aspectos simbólicos da vida em
uma cidade, e da habitação de um determinado local, e os encontros que disso resultam.
As cidades, assim, também são construídas e crescem por meio das habitações que
nela se encontram, e, ao situar as pessoas na cidade, uma série de relações entre elas surge e
pode ser objeto de análise, indicando a possibilidade de apontar a existência de um Direito
à cidade.
Evidente que a o componente geográfico desse conceito implica também o aspecto
temporal, a história daquele espaço. Isto é, a verificação dos fenômenos, como dados na
realidade, ocorre de forma dinâmica e complexa, indissociáveis da historicidade.
Assim, a forma como as cidades e as moradias se desenvolveram para ocupar e
produzir as cidades que hoje existem, e como a regulamentação e as forças jurídicas
121
Cf. Art. 32 do Código Tributário Nacional.
122
Lefebvre, A revolução urbana, 2002, p. 17.
52
trabalharam para que isso fosse possível, não são fatores estáticos, mas são indispensáveis à
compreensão do fenômeno e das determinações que a regulamentação e o direito provocam.
É a apreensão dessa fluidez na produção das cidades, assim como o reconhecimento
de que, não obstante as forças políticas, jurídicas, econômicas e sociais envolvidas no seu
planejamento, o indivíduo, o morador, que se situa nesse meio, também tem sua atuação,
sendo-lhe devido o quinhão de influência e de autonomia para participar desse processo.
E, nessa tentativa de abarcar tal fluidez, vem se formando esse conceito de direito à
cidade, compondo a complexidade do objeto, e a pretensão de incluir a autonomia entre os
fatores que tensionam ou se entrelaçam para produzir a cidade.
123
Cf. UN – United Nations - Habitat III – Nova Agenda Urbana, 2016.
53
Contudo, há posturas que são críticas a esses discursos trazidos nessas reuniões,
vendo neles apenas uma incapacidade atávica do capitalismo de efetivamente centralizar as
cidades no indivíduo e garantir outros valores ao mesmo tempo em que, mesmo sem enunciar
claramente, estabelece os critérios mercadológicos e a primazia do crescimento e da
acumulação sejam efetivamente os valores elencados e estabelecidos como orientadores do
planejamento urbano.
E, de forma crítica à forma como as cidades vêm sendo planejada de acordo com
princípios econômicos, e com um planejamento voltado ao crescimento e à valorização, que
124
Cf. Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 92.
125
Saule Junior, A cidade como um bem comum, pilar emergente do direito à cidade, p. 148.
54
David Harvey, chama o direito à cidade de “significante vazio”, na medida em que depende
daquele que enuncia lhe conferir qualquer conteúdo.126
Contudo, ainda que faça essa crítica à possibilidade de atribuir diferentes sentidos à
ideia de direito à cidade, o geógrafo David Harvey destaca a importância desse conceito,
entendido dentro da visão contestatória trazida por Henri Lefebvre, e pelos movimentos
sociais de reivindicação urbana.
Segundo David Harvey, o direito à cidade deve ser entendido como um direito
humano a ser reivindicado por seu potencial revolucionário e anticapitalista.127 Esse direito
humano seria a capacidade de intervir e participar da transformação das cidades.
David Harvey o descreve: “O direito à cidade é, portanto, muito mais do que um
direito de acesso individual ou grupal aos recursos que a cidade incorpora: é um direito de
mudar e reinventar a cidade mais de acordo com nossos mais profundos desejos”.128
Observar a cidade como um objeto representa levar em consideração as relações
humanas que a produzem. Então, dentro dessa visão, David Harvey percebe como a
produção das cidades, sua criação e transformação, recebe a participação de muitos, embora
poucos decidam e controlem tais processos. Assim, o direito à cidade representa
efetivamente a capacidade e a potência de intervir nesses processos, fazendo e refazendo a
cidade e os próprios indivíduos. O direito à cidade, nas palavras de David Harvey, “(...) é
muito mais que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de
mudar a nós mesmos, mudando a cidade”.129
E os processos de criação, destruição e expansão das cidades representam um dos
elementos de sustentação do capitalismo, que precisa constantemente reinvestir os
excedentes de capital, superando as crises de sobreacumulação.130
E os processos de produção da cidade são dominados pelo capital e pela lógica da
mercadoria dentro do capitalismo, de forma que se deve entender o direito à cidade como
uma manifestação da capacidade das pessoas de deter e recuperar a capacidade de agir sobre
esses processos, o que subverte a lógica de tratar a cidade como uma mercadoria. E os
movimentos sociais que reivindicam tais direitos ganham, por isso, uma dimensão de
contestação do próprio capitalismo, pois sua atuação interfere nesse pilar de sua sustentação.
126
Cf. Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p.20.
127
Cf. Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 28.
128
Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 28.
129
Harvey, O direito à cidade, 2013.
130
Cf. Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 92.
55
131
Cf. Rolnik, As vozes das ruas: as revoltas de junho e suas interpretações, 2013.
132
Cf. Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 216.
56
que determinavam a produção do espaço e quais são os atores que conseguem influenciar a
dinâmica e o processo das cidades. Afinal, as cidades não existiram sempre da mesma forma,
e é necessário reconhecer que têm dimensão histórica.
Assim, é necessário retomar contextualizar temporalmente a formação das cidades e
da produção das moradias que as compõe, observando como as terras se distribuíram e foram
ocupadas ao passar dos anos, culminando na situação atual. O espaço construído das cidades
não é um dado estático da realidade, mas sofre diversas determinações e alterações
decorrentes de políticas públicas, de planejamento e das forças envolvidas com a produção
da cidade.
A retomada dos conceitos jurídicos combinada com a análise fática da moradia revela
a centralidade dessa necessidade humana, apontando seu potencial de convergir a
reivindicação da autonomia, o aprofundamento da democracia e a satisfação das
necessidades básicas da pessoa e unindo os diversos direitos e, principalmente, serviços
públicos disponíveis ao cidadão.
Essa centralidade se percebe porque a moradia desvela o fluxo de forças produtivas
e econômicas atuantes na sociedade e das conexões jurídicas que atravessam esse direito
fundamental,
A centralidade da moradia exige que algo seja enunciado, quase de forma tautológica:
As pessoas precisam ter um local para morar. Essa necessidade se impõe, independentemente
da existência de contingências que obstaculizam a satisfação, como ausência de locais
adequados, de moradias bem construídas, ou de políticas públicas habitacionais, ou mesmo
de salários que arquem com seu custo.
Embora seja inegável que as cidades são variadas, e, consequentemente, plurais seus
problemas, pois têm diferentes históricos de formação e peculiaridades; ainda assim, há
elementos que são comuns e que as influenciam, em maior ou menor grau. São os elementos
vinculados às questões e tendências macroeconômicas, ou ainda determinações e atuações
políticas de âmbito nacional.
Assim, antes de apontar as dificuldades envolvendo o planejamento urbano, o grau
de déficit habitacional, e a existência de diversas necessidades e reivindicações nas cidades,
é importante observar como se deu a formação das cidades e a construção das moradias
brasileiras. E, juntamente com isso, é importante observar também como se processaram,
nas nascentes cidades, o descontrole e a ausência de cidadania.
58
O Brasil teve sua economia dependente da escravidão durante quase 400 anos, nela
estruturando relações sociais, culturais e familiares. E, no decorrer do século XIX houve a
publicação de diversas leis que, sob a retórica de abolir de forma gradual a escravidão, na
verdade cumpriam o papel de retardar a abolição plena, como forma de atender às pressões
internas e externas que exigiam o fim da mercancia e do tratamento de pessoas como
mercadorias.
Enquanto eram publicadas normas que antecipavam a abolição, de forma gradual,
outras estavam sendo pensadas e instituídas para preparar o sistema jurídico fundiário,
garantindo que, após a escravidão, houvesse ainda mão de obra para as fazendas.134
Um marco da legislação fundiária da época é a Lei de Terras, publicada em 1850,
que regulamentava a propriedade privada da terra. Ela permitiria que os exploradores de mão
de obra escravizada passassem a ser efetivamente proprietários das terras que antes eram
meramente objeto de posse e não de propriedade. Até 1822 as terras eram distribuídas por
sesmarias (graça do rei de Portugal), e, entre 1822 e 1850, simplesmente ocupadas, sem uma
categoria jurídica para justificar essa situação.135
Nas palavras de James Holston, podemos compreender o emaranhado legal que foi
arquitetado:
Essa transformação conceitual não foi completada até a Constituição imperial de 1824 garantir a
propriedade fundiária privada e a Lei de Terras de 1850 consolidar suas fundações de mercado ao
estabelecer que doravante as terras públicas só poderiam ser adquiridas pela compra. 136
Diante dessa circunstância jurídica, em que as terras poderiam ser ocupadas e
lavradas, a ideia de libertação das pessoas escravizadas gerou um receio de que houvesse um
esvaziamento de mão de obra, de modo que essa norma tinha o propósito de escassear as
amplas terras disponíveis no Brasil de maneira artificial, garantindo que apenas por meio de
compra elas estivessem disponíveis, forçando as pessoas recém libertas, bem como futuros
imigrantes, a se submeter ao trabalho empregado, sem outros meios de acesso direto à terra.
Importante relembrar que a cidadania, na época, era vinculada à possibilidade de
133
A opção pela expressão “fratura” para designar o grau de desigualdade social brasileiro é justificada pelo
fato de a palavra guardar em si uma noção de violência e de trauma, evocando essas características, bem
como a profundidade e a dificuldade de reatar. Assim, o termo parece remeter bem à origem traumática e
violenta das desigualdades, cuja raiz pode ser traçada na escravidão e na formação brasileira.
134
Cf. Schwarcz, Sobre o Autoritarismo Brasileiro, 2019, p. 30.
135
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 17.
136
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 169.
59
Comum a todos era a proposta de ligar os novos trabalhadores às fazendas de forma que não fossem
criados nem um mercado de trabalho livre nem um mercado de terras acessível aos trabalhadores,
pois, sem esses mercados, os imigrantes livres não teriam escolha a não ser trabalhar nas fazendas. 138
Assim o ordenamento jurídico promove uma limitação artificial à aquisição das
terras, garantido que os trabalhadores apenas pudessem adquirir as propriedades após terem
trabalhado (ou explorados) por um bom número de anos, com políticas ativas para bloquear
o acesso à terra.
Assim, a regulamentação da terra passou também pelo propósito de restringir a
propriedade da terra, tanto para os negros, como para os imigrantes, os quais substituiriam
nos trabalhos, sob a forma assalariada. Ela consolidava as propriedades para os fazendeiros
que já as tinham, solidificando na propriedade os latifúndios.
Havia a explícita proibição de aquisição das terras por estrangeiros que imigravam
para trabalhar nas lavouras e, após, nas primeiras indústrias. Essa medida se mostrava
necessária para restringir, de maneira artificial o acesso às terras, retirando do assalariado
qualquer opção para sua subsistência alternativa ao trabalho.139
A escravidão e a forma como foi extinta, de forma gradual, sem reparações ou outras
formas de inserção social farão com que a segregação social brasileira receba matizes
principalmente raciais.140 A população negra, antes escravizada, terá obstado seu acesso à
137
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 172.
138
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 179.
139
Cf. Deák, Em busca das categorias da produção do espaço, 2011, p. 144.
140
Cf. André, O ser negro: um estudo sobre a construção de subjetividades em afro-descendentes, 2007, p.
131-132.
60
O uso social do termo ‘pardo’ para definir a cor das pessoas afirma, ao mesmo tempo, um certo ‘status
social’ daquele que, não sendo preto, nem branco, estaria previamente excluído dos benefícios que a
brancura oferece. Mas estaria, também, livre das violências prévias que recaem sobre os pretos, em
função de sua cor, que, ‘por definição’, autoriza os maiores desmandos e intrusões.142
Em estudo específico, Maria da Consolação André também menciona a
estigmatização que recaiu sobre a população negra, demonstrando-se como conexas a
estigmatização e a exclusão social.143 Associam-se às medidas de despossessão estigmas
ideológicos que inferiorizavam o olhar sobre os negros.
A terra permitirá o acúmulo de riquezas, já que se trata de uma ‘mercadoria’144 que
não se deteriora e, de forma direta, não pode ser reproduzida pelo trabalho. 145 O valor da
terra não deriva do trabalho, portanto, mas de sua localização,146 o que significa que seu
preço incorpora os bens da natureza do entorno e os trabalhos de produção da cidade,
produzidos pelas pessoas e pelo Estado.
Um outro aspecto que o entravamento formal da aquisição das propriedades ocorre
141
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 188.
142
Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 30.
143
Cf. André, O ser negro: um estudo sobre a construção de subjetividades em afro-descendentes, 2007, p.
136-138.
144
A terra não é uma mercadoria em um sentido estrito, pois, embora possa ser individualmente consumida e
comercializada, tem sua produção efetivada de forma coletiva, apenas, de modo que não se adequaria desse
modo à forma-mercadoria, embora tal forma seja utilizada para sua exploração. Cf. Deák, Em busca das
categorias da produção do espaço, 2011, p. 46.
145
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 16-17.
146
Cf. Deák, Em busca das categorias da produção do espaço, 2011, p. 45.
61
Para envolver a terra numa teia de transações legítimas, um grileiro ou proprietário poderia pagar
impostos sobre sua posse, vender um pedaço dela, doar parte para uma organização religiosa, fazer
um levantamento da propriedade, usá-la como garantia para um empréstimo, deixar de herança ou
concedê-la como dote.148
As terras vão compondo uma trama caótica entre a regulação e os poderes locais 149,
trama esta que vai cobrir e impactar a vida do trabalhador, fragilizando a sua moradia e até
mesmo seus salários.
A moradia tem uma vinculação direta com o pagamento dos salários, pois será
provida e garantida com uma parcela dos pagamentos realizados ao trabalhador, sendo um
gasto obrigatório para aqueles que não têm uma propriedade ou moradia vinculada ao
próprio trabalho. Observando que a moradia não é um bem divisível e que concentra um
valor muito superior ao salário do trabalhador, os gastos com a moradia exigirão o
pagamento de parcela considerável do salário em aluguéis e cortiços.
Assim, dificilmente o trabalhador poderia adquirir um bem de grande valor, sendo
restrito aos aluguéis, já que os salários são incongruentes com o custo da moradia. Afinal,
não há como mendigar a moradia, ou solicitar os restos de uma casa.150
Será no início do século XX, apenas, que as cidades irão começar a atrair pessoas do
campo, ocasionando seu crescimento. E, dadas as dificuldades para aquisição das casas, sua
produção não era realizada pelos trabalhadores, mas por aqueles que tinham a intenção de
extrair renda dessas terras através dos aluguéis. Com isso, generalizam-se os cortiços. Assim,
as habitações utilizadas pelas classes populares se tornam, em geral, moradias locadas, e,
não raro, moradias precárias em cortiços.
Arlete Moysés Rodrigues é quem relembra que as mansões são contemporâneas às
147
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 191-
195.
148
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 195.
149
Há registros de que havia um aumento da violência, com a contratação de pistoleiros e jagunços, bem como
uma corrida de grileiros que tinham o intuito de aumentar os seus estoques de terras, inclusive com invasão
e usurpação de terras alheias pelos coronéis. (Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia
e da modernidade no Brasil, 2013, p. 201-203).
150
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 14.
62
favelas, indicando que não há uma evolução e uma homogeneidade temporal relacionadas
às habitações.151 Essa coexistência é que revela a fratura existente na sociedade brasileira,
entre as classes que têm direitos e as que não têm, e tal fratura se revela no direito, e na
paisagem urbana. Ela é um testemunho da imensa diferença econômico-social, que
acompanha o Brasil desde larga data, na produção das cidades e na ocupação dos espaços
urbanos.
Então, percebe-se que o crescimento das cidades brasileiras, no início do século XX,
ocorre em um contexto de sociedade que acabava de decretar o fim da escravidão, mas tendo
o cuidado de manter as pessoas que eram escravizadas em uma situação marginalizada, sem
estender até elas os direitos civis plenos. Assim, esse período pós-emancipação ocorre sem
nenhum esforço para integrar as pessoas à sociedade.152
Neste período, houve dificuldade de acesso a meios de subsistência, ou até mesmo,
de trabalho, pois, de um lado se vedava o acesso à terra, e, por outro, se obstou o trabalho
assalariado às pessoas antes escravizadas, com a preferência dos latifundiários e industriais
pela mão de obra branca, cuja imigração foi fomentada para suprir essas necessidades e para
‘embranquecer’ a população.153
A exclusão social, inaugurada pela escravidão, continua a marcar a sociedade mesmo
após seu fim, mesmo com o crescimento populacional, dada a ausência de políticas de
integração. De outro lado, essa segregação se acentuava, mesmo em relação aos imigrantes,
já que as alternativas de reprodução social por subsistência estavam bloqueadas,
especialmente pelas restrições do acesso à terra, tornando o trabalho assalariado a única
possibilidade de adquirir os elementos básicos de sobrevivência.
Esse é o contexto histórico em que, no início do crescimento das cidades, sua
população se expande, e milhares migram para elas em busca de trabalho e melhores
condições de vida.
Além disso, nessa época se cristalizam as dificuldades e ambiguidades regulatórias,
com dificuldades burocráticas com escapes aos poderes de fato, aptos a contornarem com a
151
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 12.
152
Cf. Schwarcz, Sobre o Autoritarismo Brasileiro, 2019, p. 30.
153
Cf. Andre, O ser negro: um estudo sobre a construção de subjetividades em afro-descendentes, 2007, p.
113-114, aborda a questão do embranquecimento da população como uma política ativa realizada pelas
elites como forma de dirimir os “problemas raciais, apontando, ainda, como se construiu a harmonia racial
como um mito e como a miscigenação foi um processo que também continha sua violência, pois a
miscigenação que traria esse embranquecimento se deu por meio de três métodos, a violência sexual, os
relacionamentos interraciais e pela imigração.
63
154
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 18.
155
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 20.
64
bairros, que eram divididos em ‘operários’ e ‘finos’, a partir de 1880.156 Esse olhar para as
classes mais pobres, a partir de um viés ‘higienista’, ou seja, com preocupações relativas à
saúde pública, é o início de uma visão elitista e preconceituosa que se projeta sobre áreas
inteiras da cidade.
O enorme influxo de pessoas faz com que surgissem moradias precárias e apressadas,
o que fez com que os cortiços se multiplicassem. Os cortiços são uma forma de auferir renda
da terra, enquanto ela valoriza; neles, há uma coabitação forçada (pelas condições materiais)
de vários núcleos familiares, com condições estruturais precárias, banheiros e cozinhas
compartilhados, e alta ocupação. Nunca é demais afirmar que as condições sanitárias e
estruturais eram péssimas.157
A visão higienista vem de influência europeia, e recebe esse nome porque tem o
intuito de trazer “limpeza”, “higiene” e saúde para o contexto territorial, possibilitando o
combate às doenças e à corrupção e deterioração, estigmas que eram associados às
habitações populares como algo revelador do caráter impróprio de seus moradores, e não
simplesmente como denúncia das dificuldades e pobreza.
Como contraparte à preocupação com higiene e associação desses estigmas às classes
populares, torna-se possível defender a segregação e a exclusão sociais de pessoas pobres e
negras utilizando-se de uma retórica de saúde pública.
O pensamento higienista tem atuado no planejamento urbano tem como um de seus
expoentes o Barão de Haussmann, que na paris do séc. XIX promoveu extensas reformas
urbanas com a justificativa de melhorar as condições sanitárias e de higiene da cidade, mas
que tiveram como resultado a remoção dos pobres das áreas centrais de Paris158.
Para Mike Davis, “Como na Paris da década de 1860 sob o reinado fanático do Barão
de Haussmann a reconstrução urbana ainda luta para maximizar ao mesmo tempo lucro
particular e o controle social final.”159, ou seja, assim como as intervenções urbanas que
transformaram Paris na cidade luz serviram de influência e modelo para as intervenções
urbanas nos países periféricos.
Tal ideário veio a ser implementado em São Paulo a partir de 1938, com a
implantação do plano de avenidas do então prefeito Prestes Maia, que “Propunha transformar
156
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 21.
157
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 46-48.
158
Cf. Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 105.
159
Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 105-106.
65
160
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 224.
161
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 54-55
162
Também percebe e aponta a imoralidade permeando os cortiços, justificando os estigmas, James Holston,
que cita estudo do Idort, o qual aponta a necessidade de uma residência de 7 cômodos para uma família,
permitindo a separação sexual de funções e de habitações, o que permitiria a formação do caráter e da
saúde. (Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013,
p. 222-223).
163
Cf. Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 62.
66
incluindo-se as tarefas de uma polícia sanitária que atuava de forma autoritária. Conforme
descreve Nabil Bonduki:
Portanto, das medidas contra as duas epidemias de 1893 surgiram três frentes de combate – legislação
urbanística, planos de saneamento básico e estratégia de controle sanitário -, que são a origem da
intervenção estatal no controle da produção do espaço urbano e da habitação. 164
E logo são os cortiços e habitações coletivas que serão alvo de intervenções do
Estado, com remoções sem possibilidade de retorno, tendo em vista que a especulação
imobiliária e as próprias intervenções valorizavam aquelas áreas, aumentando os valores dos
aluguéis165. Se, de um lado, os cortiços se mostravam necessários, pois garantiam que
houvesse moradia a um custo acessível, o que mantinha a força de trabalho com salários
rebaixados, de outro lado, gerava condições sanitárias de habitação que eram dignas de
repulsa de parcelas da sociedade.166
Embora nunca tenham desaparecido completamente, seu número se reduziu nas
décadas seguintes, sendo que outras formas de habitação foram promovidas e incentivadas
pelo Estado, mas também pelos seus habitantes. Assim, o modelo ideal de habitação, até
incentivado pelo Estado, era a vila operária, sabendo-se que estas eram produzidas pelas
empresas para os seus próprios funcionários, ou seja, produzidos pela iniciativa privada.
A situação precária dos cortiços levou o Estado a incentivar a construção de vilas
operárias no início do século XX, o que reduzia a pressão sobre os salários que as indústrias
pagariam, além de garantir certo controle sobre a mão de obra, uma vez que o operário, ao
perder o emprego, também seria despojado de sua moradia.167
Contudo, ainda que se construíssem vilas operárias, com enormes vantagens
sanitárias (além da pureza moral que se mostra possível com a habitação unifamiliar, ideal
para conformar a família aos moldes da moral burguesa), os preços da moradia ainda
compeliam os trabalhadores a ocuparem os cortiços, de modo que, durante o período da
República Velha, a maior parte das moradias ainda eram locações nessas habitações
164
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 33.
165
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 224-
225.
166
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 39.
167
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 54-55.
67
coletivas.168
Posteriormente, durante a era Vargas, ocorrerá uma transição desse modelo de
habitação para a classe trabalhadora. Da casa locada e dos cortiços, passa-se ao modelo da
casa enquanto propriedade do próprio trabalhador, normalmente produzida por meio da
autoconstrução.
A partir de então, a ‘casa autoconstruída’ irá se generalizar como modelo, tornando-
se a principal forma de provimento da moradia das classes trabalhadoras. A autoconstrução
é estimulada, ocorre uma ampla oferta de terrenos situados na periferia das cidades, seja por
meio de financiamentos ou de parcelamentos; ela é viabilizada por meio dos esforços do
próprio trabalhador, na medida em que este irá se utilizar de suas horas de descanso para a
produção de sua casa.169
2.1.4 Evolução das habitações no Brasil: a produção do espaço urbano sob um paradigma
de exclusão e segregação
A produção das moradias que compõe a cidade é realizada por diversos agentes
sociais, as pessoas, os agentes financeiros, incorporadores e o próprio Estado.
A participação desses atores e o volume de moradias que produziram não coloca o
Estado em um papel secundário, ainda que ele não as tenha produzido diretamente, pois a
atividade estatal que regulamenta, faz investimentos, planeja algumas medidas e políticas
públicas, e até mesmo a política monetária, que interfere nos financiamentos vai direcionar
e interferir nas decisões dos agentes privados, orientando a forma como atuam, e na
localidade em que são autorizados ou que são estimulados a produzir as moradias.
Assim, por exemplo, o mercado financeiro é amplamente regulamentado, de modo
que a definição de taxas de juros e regras mais estritas para a realização de financiamentos
tem impacto direto na produção de habitações, ou ainda a forma como se efetiva e garante
as locações e os despejos, perpassando, assim, o rentismo e a produção de moradias para
locação.
De outro lado, a delimitação de áreas para o mercado imobiliário e outras ilícitas, as
168
Cf. IBGE, Censo demográfico 1940, 1950, p. 161, apenas 43% das moradias eram habitadas por seus
proprietários em 1940; já Cf. IBGE, Estatísticas do Século XX, 2016, p. 124-125, em 1980, essa
porcentagem era de 64%; e de 72% em 1991; e, Cf. IBGE. Pesquisa nacional por amostra de domicílios:
síntese de indicadores 2015,2016, p. 65-76, em 2015, essa porcentagem cresce um pouco mais para cerca
de 74%.
169
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 30-31; e, cf. BONDUKI, Origens da habitação
social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria, 2004, p. 249.
68
quais se tolera que sejam ocupadas informalmente, vão delimitando uma certa forma de
produzir a cidade.
Até mesmo a omissão do Estado, e a seletividade na aplicação do Planejamento
Urbano e das regras do Direito Urbanístico, acabam direcionando para um certo tipo de
cidade. Há tolerância com a ocupação de áreas ilícitas, na medida em que elas são
consideradas, antes de tudo, inadequadas ao mercado. Assim, percebe-se que a postura do
Estado, independentemente de haver uma intenção deliberada e explícita, é determinante
porque orquestra e cria um contexto de atuação e de produção da cidade pelos outros agentes.
Nesse sentido se percebe como é indispensável, para compreender o comportamento
dos agentes que produziram a cidade, averiguar qual foi a postura do Estado.
Do ponto de vista histórico, pode-se dizer, foram diferentes as posturas do Estado
brasileiro na produção das moradias. Inicialmente, é importante voltar a mencionar a edição
da Lei de Terras, cercando a terra de garantias de propriedade, e limitando o acesso a ela.
Essa etapa, que se inicia no período imperial, é o que prepara para o fim da escravidão,
efetuando também a segregação das pessoas negras, pela ausência de auxílios ou
compensações para recompor uma sociedade170, conforme o que exigiria uma justiça de
transição adequada para superar tão severo trauma.
O advento da República, inspirada por ideais liberais, tinha certa resistência à ideia
de intervenção estatal. Contudo, em razão dos problemas sanitários, começam a ocorrer
pressões por intervenções higienistas, sob a bandeira da proteção da saúde pública o estado
legitima seu fortalecimento e o intervencionismo.
É desse modo que as habitações populares começam a receber atenção estatal, não
na forma de uma política pública, mas sob um viés repressivo, submetendo a escrutínio os
cortiços e habitações informais detectava-se sua insalubridade, com o propósito mal ocultado
de sanear a proximidade e a contaminação de áreas mais nobres.
Nabil Bonduki ressalta a atenção estatal repressora:
O poder público, entretanto, não foi um espectador passivo das condições de moradia dos pobres.
Tanto assim que criou uma polícia para vigiá-los, examiná-los e inspecioná-los, e uma legislação para
servir-lhes de padrão; porém pouco fez para melhorar suas moradias.171
Tratou-se de uma intervenção que se fundamentava no estigma e no preconceito
170
Cf. Menezes, Crítica do direito à moradia e das políticas habitacionais, 2017, p. 92-93.
171
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 43.
69
moral que existia contra os cortiços, mas também que fortalecia tais impressões, reforçando
tais localidades como antros da doença e da depravação moral, decadência para o corpo e
para o espírito.172
São estigmas ideológicos que vão marcar fundo as localidades informais, e se projetar
para o futuro, inspirando e justificando a segregação e a deficiência na prestação de serviços
públicos. Trata-se de uma produção do espaço urbano que, já no início do Século XX, tem
no Estado apenas um reforçador dos preconceitos presentes na sociedade, sem a elaboração
de políticas públicas preocupadas com a população em geral173.
Somente no período Vargas haverá um direcionamento de força - ao menos no nível
discursivo -, para garantir as moradias populares. Embora se aventem as diferentes intenções
que estariam conectadas com a medida de congelamento de aluguéis ocorrida na década de
40, tratou-se de uma ação estatal direta com o objetivo declarado de promover a moradia.
É certo que, ao observar as consequências dessa ação governamental, se percebe que
ela não permitiu uma universalização do acesso à moradia, mas prestigiou alguns moradores
antigos de certas regiões, e permitiu um amplo campo de penumbra e de ilegalidades que
não conseguiam ser acompanhadas e coibidas pelo Estado, seja em razão de cortiços, em
que os ajustes se faziam de forma oculta ao Direito ou ainda pela criatividade dos locatários,
e pela pressão que faziam para efetivar os despejos de seus antigos inquilinos, que detinham
direitos para manter baixos os aluguéis.
Nos anos seguintes, é interessante mencionar a produção direta de unidades
habitacionais (UHs) por certos entes estatais, os conjuntos habitacionais dos Institutos de
Aposentadoria e Pensão (IAPs), com a ressalva de que tais construções eram em número
ínfimo diante das necessidades de moradia, bem como pela estreiteza dos tipos de
beneficiários, isto é, os integrantes do respectivo instituto. Esse contexto de desenvolvimento
industrial faz com que especialistas analisassem o tema, contudo o viés assistencialista e os
preconceitos morais não foram abandonados.174
E é nas décadas de 40 e 50 que surgem conjuntos habitacionais voltados
172
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 53; e, Cf. Bonduki, Origens da habitação social
no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria, 2004, p. 86.
173
A utilização do Estado pelas elites nessa época não só mostra a parcialidade da utilização da violência e dos
orçamentos, mas evidencia uma dificuldade democrática brasileira, em que boa parte da população era
objeto de intervenção da vontade estatal, mas não participantes e influenciadores dessa vontade. O dinheiro
público era utilizado contra eles.
174
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 74-75.
70
175
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 133.
176
É de se destacar o conjunto habitacional do Pedregulho, projetado pelo Arquiteto e Urbanista Affonso Reidy,
que continha até mesmo alguns equipamentos públicos integrados ao conjunto, como creches e postos de
saúde, com uma transição entre o público e o privado. Os espaços comuns trazem uma lógica comunitária
e de integração supostamente positiva, pois estimularia o fortalecimento e a convivência, em certa oposição
à ideia subjacente na universalização da casa própria firmada em aposentadorias. Esse projeto se mostrou
extremamente interessante, do ponto de vista construtivo, e pelas ideias inovadoras que trouxe, cf.
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 133.
71
idealização dos conjuntos habitacionais pelos IAP’s. Essa concepção se inseria em uma ideia
de modernidade que atendia ao discurso conservador e moralista, mas também buscava uma
integração, em um ambiente “controlado”:
“o discurso conservador e moralista, de crítica ao espaço público não controlado (cujo melhor exemplo
é o bar e as rodas de malandragem), se associa a uma proposta moderna (os pilotis), que aparecia
como solução de lazer e sociabilidade sadia, num ambiente controlado ao qual só os “trabalhadores”
teriam acesso”177
Entretanto, tais construções, embora merecedoras de nota e de elogios, foram
pontuais dentro do quadro de produção habitacional do período, e não estão isentas de
críticas, pois, muitas vezes concentravam os investimentos em classes médias e média-alta,
dos trabalhadores desses institutos, de modo que não interferia de forma significativa na vida
daqueles que mais necessitavam de atendimento.
E, exatamente em razão da seletividade da aplicação dos recursos, tornou-se possível
que o apadrinhamento político e o clientelismo dirigissem essas moradias àqueles mais
próximos do poder de decisão, e àqueles com mais recursos financeiros e políticos. Os
funcionários no topo da pirâmide acabavam abocanhando tais recursos e unidades
habitacionais.178
Nabil Bonduki observa que esse modelo traçou mais uma linha divisória entre
aqueles que receberiam uma política habitacional e os outros: “Traçou-se, com isso, uma
linha divisória entre os cidadãos com direitos sociais, entre os quais os trabalhadores
assalariados, e os subcidadãos, que não tinham lugar na nova ordem social”.179
Tais institutos, por serem setoriais, isto é, corresponder a apenas uma categoria,
dispunham de recursos, estrutura e capacidade de investimento, de modo que os maiores e
com acesso aos maiores recursos resistiam a uma unificação, conforme pretendida por
Vargas.
Na década de 1940, houve tentativa de implementar a Fundação da Casa Popular, a
qual teria produzido um ínfimo número de habitações. Havia muitas forças contrárias, entre
as quais, os próprios institutos que resistiam à unificação, de modo que os números de
unidades produzidos por essa fundação foram pouco expressivos diante da necessidade
177
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 151.
178
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 108.
179
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 109.
72
brasileira. Nabil Bonduki associa esse fracasso às forças contrárias e à desorganização dos
beneficiários da política pública.180
Em seguida, com o golpe civil-militar de 1964, o governo concentrou poderes e
efetivamente unificou os institutos de pensão Instituto Nacional de Previdência Social
(INPS), em 1966. As carteiras prediais foram transferidas ao Banco Nacional de Habitação,
(BNH), criado em 1964.
A ditadura tinha um viés antipopulista e conservador, mas absorveu a bandeira da
moradia sob essa lente, incentivando a ‘casa própria’. Segundo Nabil Bonduki, “o tema da
política habitacional era uma bandeira de caráter nitidamente conservador, vinculada
sobretudo à Igreja Católica, que enfatizava a relação entre a família e a moradia como
fundamento da estruturação moral e cristã das classes populares”.181
E o BNH instituía uma forma de ação governamental que privilegiava o mercado
financeiro e a instituição de uma dívida como mediadores da moradia, através da casa
própria. Contudo, não instituía propriamente uma política pública habitacional, pois apenas
uma pequena parcela da população, que tinha uma renda formal e alguma poupança
conseguiam de fato adquirir os imóveis.
Essas dificuldades impunham aos trabalhadores das camadas mais pobres garantir
suas habitações por meio do autoempreendimento, e, pela ausência de uma determinação ou
planejamento claros, se definia um crescimento acelerado da cidade informal, e
aprofundamento do abismo social.
Somente no período democrático as questões urbanas começam a ganhar uma
atenção maior do Estado, sob a perspectiva da moradia como direito e da política pública.
Assim, a Constituição de 1988 prevê a ordem urbana, em 2001 se edita o Estatuto da
Cidade182 e, com o início do primeiro governo Lula, é criado o Ministério das Cidades.
É somente em 2009 que se inicia o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV),
que efetivamente teve uma amplitude de recursos maior do que os que antes se direcionaram
para as habitações, contudo mantendo uma lógica individualista de concessão do direito de
moradia, por meio da casa própria, e destinando boa parte de seus recursos e unidades
180
Os IAPs produziram cerca de 123.995 unidades durante a década de 40, enquanto a Fundação da Casa
Popular teria produzido apenas 18.132 unidade, Cf. BONDUKI, Origens da habitação social no Brasil:
arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria, 2004, p. 115.
181
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 120.
182
Lei N.º 10.257 de 2001.
73
habitacionais para setores sociais que não concentravam a maior parte do déficit
habitacional.
Retomadas as ações do Estado para a produção das cidades brasileiras, e para
implementação do direito de moradia, surge uma perplexidade, pois há até dificuldade em
elaborar uma crítica precisa sobre as políticas públicas, pois, não ocorreu a elaboração de
um plano específico de efetivação universal do direito à moradia. Assim, o congelamento de
aluguéis visava atacar o rentismo, direcionando o capital acumulado à indústria e permitir a
acumulação industrial no país; os financiamentos, do BNH e do Minha Casa Minha Vida,
permitiram, principalmente, que boa parte da classe média adquirisse suas moradias, mas,
prioritariamente, que aquecesse a economia para superar os danos da crise de 2008, como
um investimento contracíclico, sem preocupação ou previsão séria a respeito das
consequências urbanísticas do programa, permitindo que houvesse prejuízos ao
planejamento urbano e desperdiçando a chance de incentivar mudanças positivas na
produção das cidades e das condições habitacionais, dado o vultoso investimento destinado
à produção de moradias.
Interessante observar que a apropriação de apartamentos e moradias subsidiadas,
escoando os investimentos públicos para os que não exatamente se poderiam considerar os
mais necessitados também é percebida em outras políticas habitacionais pelo mundo,
inclusive em projetos socialistas, conforme analisa e exemplifica Mike Davis, que traz
exemplos de Cuba, da União Soviética, Hong Kong e Argélia 183.
Mike Davis analisa e conclui que “a ‘usurpação’ pela classe média de moradias
públicas ou subsidiadas pelo Estado, como dizem os especialistas em habitação, tornou-se
um fenômeno quase universal.”184
As intervenções que se legitimaram discursivamente na proteção da moradia, foram
pretexto para a consecução de outros objetivos, de modo que não houve ainda a formulação
e execução de uma ampla política pública com o propósito de garantir moradias dignas a
toda a população, como uma forma de universalização desse Direito, com a destinação de
recursos orçamentários suficientes, e elaboração de medidas de consequências menos
ambíguas.
Dessa forma, a atuação do Estado na produção das cidades brasileiras formou
183
Cf. Davis, Planeta Favela, 2006, p. 69-74.
184
Davis, Planeta Favela, 2006, p. 73.
74
185
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 209.
186
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 227.
187
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 234.
75
188
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 235.
189
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 237.
190
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 254.
191
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 261-262.
192
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 261.
76
193
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 205.
194
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 30-32.
195
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 33.
77
Esse trabalho extra do trabalhador, ou sobretrabalho, permite que sejam pagos salários menores.
Afinal, o salário-mínimo, que deveria ser composto de um valor que permitisse ao trabalhador arcar
com os custos de sua moradia, teria essa despesa do trabalhador satisfeita pelos seus próprios esforços,
no tempo de descanso, de modo que há menos pressão nos salários, já que diminuem os custos de
sobrevivência da pessoa. Trata-se de uma perspectiva de vida em que o indivíduo se torna responsável
pela garantia de seus direitos e necessidades.198
Diante disso, essa modalidade de moradia efetivada por meio da autoconstrução se
tornou bastante conveniente para o Poder Público, que não precisa dispender esforços e nem
comprometer seu orçamento imediato199 para fomentá-la, já que dependia de sacrifícios do
próprio trabalhador.
A casa construída pelo trabalhador gera uma sensação de ascensão social sem que
seja necessário redistribuir renda. E assim se estruturavam os loteamentos periféricos, cuja
expansão foi sustentada pelo desejo da casa própria e pela autoconstrução 200
196
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 283.
197
O valor de uso e de troca das mercadorias remete à distinção elaborada por Karl Marx que percebeu nas
mercadorias um caráter duplo, isto é, um que corresponde à sua natureza e remete à sua utilidade e outra
que abstrai dessas características, generalizando um valor de troca, que permite sua comercialização no
mercado e seu pareamento com outras mercadorias de naturezas distintas. (Cf. Marx, O capital: crítica da
economia política: livro I: o processo de produção do capital, 2017, ps. 114-115).
198
Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 32.
199
O orçamento acaba comprometido a longo prazo, considerando os gravames urbanísticos, e o esgarçamento
da rede de serviços públicos necessária para atender localidades cada vez mais longínquas.
200
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 281-283.
78
Por essa razão a periferia está sempre mudando, com sua localização triangulando entre as variáveis
de pobreza, ilegalidade, ocupação rápida e precária e urbanização. É um lugar para os pobres que,
embora de início destituído, melhora com a autoconstrução e a mobilização política.203
201
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 290.
202
Nesse sentido, observar análise de Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da
modernidade no Brasil, 2013, p. 206-211. Também sobre as exclusões que travam relações com os
excluídos, a percepção da teoria dos sistemas, que opera com alguns sistemas que a todos incluem, como
o econômico (ainda que com diferentes graus), observando que as exclusões podem dar origem à
organização dos excluídos com novas fricções e reivindicações que partem dessa exclusão (Cf.
Campilongo, Interpretação do direito e movimentos sociais, 2012, p. 50-52).
203
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 217.
79
os investimentos na cidade oficial e na criação de uma infra-estrutura para a expansão industrial, assim
como as altas taxas de acumulação da economia paulista, só foram possíveis graças ao abandono da
periferia e à redução do custo de reprodução da força de trabalho, obtida por meio de expedientes
como o congelamento dos aluguéis e a produção doméstica da moradia.206
Nas décadas seguintes, o modelo da ‘autoconstrução’ vai se incorporando nos
padrões culturais paulistanos, tornando-se não somente aceito, como admirado e desejado.
No entanto, a precariedade da mão de obra, a falta de técnicas construtivas adequadas
fazia e o emprego de materiais de baixa qualidade permitiam que as construções fossem
precárias e com elevados riscos de desabamento.207 Esse modelo de loteamento periférico
aliado à autoconstrução começa a mudar o perfil das habitações. Se, em 1940 apenas 43%
das moradias eram habitadas por seus proprietários, em 1980 esse número sobe para 64%.208
A casa própria e o autoempreendimento se cruzam na produção do sonho do
trabalhador, o qual é conquistado com o sacrifício de tempo e dinheiro. Ele significa uma
grande conquista. Esse padrão representava uma melhora da vida, mas de uma perspectiva
204
Tais observações podem ser percebidas também por Holston, Cidadania insurgente: disjunções da
democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 212-217.
205
Também aponta a importância do transporte público para a expansão das cidades, pois a conexão das
periferias com as cidades era precisamente esse serviço público que possibilitava aos trabalhadores
continuarem com seus trabalhos, mesmo ocupando essas periferias. Prevaleceu assim os transportes por
meio de ônibus, viabilizando a ocupação das franjas da cidade e, ao mesmo tempo, impedindo o acesso
dos trabalhadores para lazer ou outros usos à cidade. (Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da
democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 225).
206
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 296.
207
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 305.
208
Cf. IBGE, Censo demográfico 1940, 1950, p. 161 e Cf. IBGE, Estatísticas do Século XX, 2016, p. 124-125.
80
Por volta dos anos 40 os problemas relativos à questão urbana no Brasil começam a
ser percebidos em razão do aumento da urbanização sem o correspondente crescimento das
alternativas habitacionais, o que gerou aumento das moradias em favelas e assentamentos
informais; as reivindicações relacionadas ao urbano e às cidades remontam à década de
1960, época em que eram debatidas pelos arquitetos, urbanistas e profissionais vinculados à
questão urbana.211
O golpe cívico-militar ocorrido em 1964 colocou fim a esse ciclo de luta pela reforma
urbana,212 associada às reformas de base que estavam sendo propostas, com o intuito de
vencer problemas estruturais do Brasil. Entre outras razões, o golpe serviu para obstar
transformações estruturais que visavam o combate à desigualdade social.
O período ficou marcado pela supressão da democracia. Mas é também nesse período
que algumas forças progressistas começam a ser gestadas. Merecem destaque as
Comunidades Eclesiais de Base, nos anos 1970. Essas forças conseguiram se reunir e trazer
209
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 309-312.
210
Cf. Tieghi, Brasileiro valoriza mais casa própria do que filhos, religião e estabilidade, Folha de São Paulo,
2022.
211
Cf. Bonduki, Dos movimentos sociais e da luta pela reforma urbana na Constituinte ao Estatuto da Cidade
(1981-2001), 2018. p. 92.
212
Cf. Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 27.
81
pressões para a Assembleia Constituinte, fazendo com que diversas reivindicações sociais
fossem contempladas pelo novo texto constitucional, que viria a surgir anos depois.
Após esse período, foi necessário um esforço de reconstrução do Estado, o que
ocorreu com a efetiva participação popular. Essa participação pode ser exemplificada pela
eleição de Luiza Erundina para a Prefeitura de São Paulo, o que remonta à reorganização das
forças progressistas, a partir dos anos 70. Assim, mesmo com uma conjuntura adversa,
tratou-se de um governo que apresentou avanços, mesmo contando com a oposição da mídia
e a resistência de forças conservadoras.213 Ermínia Maricato salienta esse episódio como
positivo, e como um indicativo de que é possível efetivar transformações urbanas, ainda que
nem todas as utopias sejam implementadas.214
E, foi emblemática a atuação da Igreja Católica nos anos 1980, de estímulo aos
movimentos de moradia, resultante da publicação de texto para a ação pastoral da Igreja,
após a reunião da 20ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), em 1982, em Itaici. Nesse texto, que se chamava Solo Urbano e Ação Pastoral se
defendia a função social da propriedade, o fim da especulação imobiliária e da política de
remoção de favelas.215
É dentro desse contexto de debates urbanos que ocorre a transição gradual que
culminou com o processo de redemocratização do país e com a promulgação da Constituição
de 1988216, que contou com a participação de especialistas e de diversos setores organizados
da sociedade, chegando a instaurar, pela primeira vez, dispositivos relativos à reforma
urbana.
Os avanços urbanísticos, como a definição da função social da propriedade, que era
apenas mencionada em Constituições anteriores, a usucapião especial urbana e a perspectiva
de trazer a ideia de solo criado, isto é, separar o direito de construir do direito de propriedade,
vinculando a construção ao planejamento municipal, ao IPTU progressivo para imóveis que
não cumprem a função social contidos na Constituição de 1988, no capítulo relativo à
política urbana, foram inseridos conforme emenda de iniciativa popular, coordenada pelo
213
Cf. Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 31-33, as forças conservadoras utilizaram-
se do aparato judicial para intimidar o governo de Luiza Erundina, inclusive com o indiciamento de
Ermínia Maricato e de Nabil Bonduki como se fossem loteadores clandestinos, por terem ousado
determinar que as áreas informais também recebessem a prestação de serviços públicos.
214
Cf. Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 33.
215
Cf. Bonduki, Dos movimentos sociais e da luta pela reforma urbana na Constituinte ao Estatuto da Cidade
(1981-2001), 2018. p. 91.
216
Cf. Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 200.
82
Movimento Nacional pela Reforma Urbana, que reunia movimentos sociais, a sociedade
civil organizada e diversos pesquisadores da questão urbana.217
É válido mencionar que embora a Assembleia Constituinte tenha mantido um viés
conservador, tendo em consideração a transição gradual, ela se manteve aberta à participação
popular. A emenda de reforma urbana precisaria de 30 mil assinaturas, e obteve cerca de 131
mil assinaturas.218
Todavia, embora o peso da participação popular tenha concedido força a essa
proposta, tornando inviável sua rejeição pela Assembleia, houve forças conservadoras que
se opuseram a seus termos, desidratando o potencial de inserção das mudanças na
Constituição. Essa movimentação conservadora criou diversos entraves à implementação
das mudanças planejadas, como por exemplo submeter a eficácia dos instrumentos
urbanísticos à edição de uma Lei Federal - a qual veio a ser promulgada uma década depois,
em 2001, o Estatuto da Cidade - bem como lançou para a arena política local a capacidade
de escolher implementar as medidas e, por fim, criou complexas exigências para a instalação
de alguns dos instrumentos como o IPTU progressivo, dificultando e impedindo sua
implementação.
Nabil Bonduki reforça que:
(...) os instrumentos urbanísticos criados pelo Estatuto da cidade são de difícil aplicação. Talvez fruto
dos acordos necessários para sua aprovação, a própria legislação criou caminhos tortuosos para a
implementação de instrumentos como os que visam penalizar imóveis que não cumprem a função
social. (...)A tática de protelar máximo a aplicação dos instrumentos de reforma urbana, adotada pelos
setores conservadores, foi bem-sucedida, mas não é intransponível, inclusive porque a modernização
da legislação urbanística também interessa ao setor imobiliário produzido.219
Uma nova fase se instaura com a eleição do presidente Lula, o qual efetua a criação
do Ministério das Cidades, antiga reivindicação dos movimentos sociais progressistas.
E, embora tenha tido quadros trazidos dos movimentos sociais e vinculados aos
problemas da moradia, ele tinha um orçamento limitado e inferior ao de outras áreas, em
especial pelo contingenciamento das despesas, que representava uma forma de centralizar
os gastos públicos e garantir superávits. Assim, mesmo com essa criação e da existência de
217
Cf. Bonduki, Dos movimentos sociais e da luta pela reforma urbana na Constituinte ao Estatuto da Cidade
(1981-2001), 2018. p. 98-99.
218
Cf. Bonduki, Dos movimentos sociais e da luta pela reforma urbana na Constituinte ao Estatuto da Cidade
(1981-2001), 2018. p. 102.
219
Bonduki, Dos movimentos sociais e da luta pela reforma urbana na Constituinte ao Estatuto da Cidade
(1981-2001), 2018. p. 136-137.
83
outros avanços sociais no governo Lula, houve retrocesso na questão urbana. 220
Assim, se percebe que houve avanços a serem reconhecidos, mas também que tais
avanços conseguiram ser limitados e, por meio da alteração das escalas de discussão,
geograficamente impedidos de terem uma abrangência nacional, impedindo sua efetividade
em pequenos e médios municípios.
Esses acontecimentos parecem confirmar a percepção de Milton Santos que mesmo
a previsão normativa não é capaz de esgotar a discussão e a necessidade de reivindicação e
de organização política, pois “A luta pela cidadania não se esgota na confecção de uma lei
ou da Constituição porque a lei é apenas uma concreção, um momento finito de um debate
filosófico sempre inacabado.”221
Contudo, o geógrafo percebe que diversas constituições trouxeram pactos territoriais
diversos para o Brasil, e que a Constituição cidadão perdeu a oportunidade de trazer um
pacto territorial condizente com sua proteção da cidadania, criticando a falta de um projeto
sistemático de reforma urbana e de reforma agrária, falta esta que fará com que se
aprofundem as mazelas sociais222.
O saldo é ambíguo, mas demonstra a importância da participação democrática para
que os avanços e alterações ocorram, e, por outro lado, se observa como ainda é longo o
caminho para implementar os ideais de reforma urbana que visem principalmente uma maior
igualdade e a garantia do direito fundamental de habitação.
220
Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 34-39.
221
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 105.
222
Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 133.
84
223
Cf. Menezes, Crítica do direito à moradia e das políticas habitacionais, 2017, p. 97-98.
224
Cf. Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 65-66.
225
Originalmente foram fixadas 3 faixas, que após foram acrescidas da faixa 1,5, sendo que a faixa 1,
representava famílias com renda familiar até R$1.800,00; a faixa 1,5, com renda até R$2.600,00; a faixa
2, as famílias com renda familiar até R$4.000,00 e a faixa 3, aquelas com renda até R$9.000,00.
85
necessitando de uma moradia, pois não compunham o déficit, a adquirir a ‘casa própria’. E,
embora essa realidade provavelmente seja avaliada como positiva pelos beneficiários, denota
que os recursos públicos não foram destinados aos que mais dele necessitavam, e não
estavam sendo utilizadas para sanar o déficit habitacional e as mazelas urbanas.
Esse modelo recebeu diversas críticas dos pesquisadores da realidade urbana. Rafael
Lessa V. de Sá Menezes, bastante cético às capacidades do sistema capitalista de superar os
problemas habitacionais, aponta como os recursos públicos utilizados para subsidiar as
moradias e para as construções são absorvidos pelo mercado imobiliário,226 seja
incorporando diretamente os subsídios nos preços, ou ainda por meio de um aumento global
de preços, que acabaria excluindo, novamente, uma parcela da população desse mercado,
com a oferta de mais recursos. A crítica por ele elaborada aponta para o fato de que o
programa governamental desperdiçou a oportunidade de interferir de forma positiva no meio
ambiente urbano.
Ao contrário, como não houve estabelecimento de diretrizes, além da definição dos
destinatários, não se impôs um padrão construtivo adequado, e nem uma localização
interessante. Isso permitiu que as habitações financiadas pelo programa governamental, em
especial as destinadas à faixa 1, se localizassem nos limites do perímetro urbano do
Município, ou nas franjas da cidade, como escreve Ermínia Maricato, que enxerga, após o
programa, uma piora da situação das cidades.227
Diante da ausência de critérios para o estabelecimento do local do empreendimento
houve uma predileção ou exclusividade da utilização das terras periféricas (desabastecidas
de serviços públicos, e desconectadas da cidade e das inter-relações que tornam atrativa e
valorizada determinada localidade), as quais permitiriam que o incorporador auferisse um
maior lucro. Isso ocorreu porque a construção de um edifício, em regra, terá custos similares,
ao passo que o insumo cujo preço mais varia e que mais possibilitaria a maximização desse
lucro é precisamente o preço da terra. Assim, são as terras periféricas que permitem, em um
mesmo projeto, uma margem de lucro maior.
E essa maior lucratividade está relacionada até mesmo com a especulação
imobiliária, pois a criação desses conjuntos, com a coerção contra a administração para que
estenda até aquela localidade os serviços públicos, ao mesmo tempo em que piora o
226
Cf. Menezes, Crítica do direito à moradia e das políticas habitacionais, 2017, p. 107-108.
227
Cf. Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p.75-76.
86
228
É possível perceber, com a ausência de enfrentamento direto dos elementos que compõe o déficit
habitacional que diversos beneficiários do programa não estavam contabilizando esse débito, embora
possam ter sua situação melhorada pelo programa, alterando uma moradia locada por uma de sua
propriedade.
87
229
Considerando aspectos construtivos, por exemplo a rusticidade, sem paredes de alvenaria ou madeira
aparelhada; e habitações improvisadas, isto é, locais e imóveis que não têm fins residenciais, como imóveis
comerciais, espaços vazios embaixo de pontes e viadutos, carros abandonados, e outras formas alternativas
de moradia.
230
Famílias que vivem em um único cômodo (como em um cortiço) ou que dividem um mesmo domicílio,
acompanhando outras famílias, mas com interesse de mudarem-se.
231
Nas famílias urbanas com renda de até três salários-mínimos e que comprometam mais de 30% de sua renda
com o aluguel.
232
Número médio de moradores superior a três pessoas por dormitório.
233
Tabela elaborada em consulta. Cf. Fundação João Pinheiro, Déficit Habitacional no Brasil, 2006, 2009,
2011, 2012, 2013, 2015, 2016, 2018, 2021.
88
No período das duas últimas décadas (2000-2020), é possível considerar que o índice
de déficit apurado, embora tenha registrado quedas e elevações, se manteve em torno de 6
milhões de residências inadequadas.
Em análise sobre a eficácia do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) foi
produzido um relatório que ainda menciona e calcula a existência de elementos qualitativos
para averiguar a existência de déficit habitacional (averiguado até 2015 pela Fundação João
Pinheiro). Assim, consideram-se os problemas relacionados à ausência de infraestrutura
pública (prestação de serviços públicos); de regularização fundiária (ausência de segurança
da posse) e outros problemas construtivos na residência, como ausência de banheiro ou
adensamento em imóvel próprio.234 Trata-se de questões ou problemas que não seriam objeto
de enfrentamento direto pelo Programa Minha Casa Minha Vida, embora de importante
questão para a análise do acesso à cidade e à cidadania, a produção de casas do programa
habitacional deveria incidir diretamente naqueles números quantitativos.
No entanto, é importante ressaltar que este relatório concluiu que o déficit
habitacional continuou expressivo235, mesmo após a implantação de um dos mais volumosos
e expressivos programas habitacionais - o Programa Minha Casa Minha Vida, iniciado em
2009, tendo-se produzido mais de 4 milhões de unidades habitacionais.
Uma das causas desse fenômeno se mostra na complexidade de composição desse
déficit, que engloba diversos problemas, e que traria um número ainda mais amplo se fossem
consideradas as inadequações qualitativas, isto é, falta de segurança da posse, de prestação
de serviços públicos e outros problemas habitacionais.
Segundo o pesquisador Rafael Lessa V. de Menezes:
Certo é que, dado o desenho geral do programa, em especial o fato de se apoiar em propriedade
privada, crédito e subsídio estatal para promoção do acesso ao mercado imobiliário, tendencialmente
será mantida a exclusão habitacional, independentemente do número de imóveis construídos. 236
Sob críticas de Rafael Lessa Vieira de Sá Menezes, o Programa Minha Casa Minha
Vida teria tido por efeito apenas a transferência de recursos para as empresas construtoras,
cujo benefício teria sido a absorção dos subsídios concedidos às pessoas. Assim, aponta
234
Cf. Brasil, Ministério da Economia, Secretaria Especial de Fazenda, Secretaria de Avaliação, planejamento,
Energia e Loteria, Relatório de Avaliação: Programa Minha Casa Minha Vida, 2020, p. 21-23.
235
Cf. Brasil, Ministério da Economia, Secretaria Especial de Fazenda, Secretaria de Avaliação, planejamento,
Energia e Loteria, Relatório de Avaliação: Programa Minha Casa Minha Vida, 2020, p. 50 e 73.
236
Menezes, Crítica do direito à moradia e das políticas habitacionais, 2017, p. 130.
89
237
Cf. Menezes, Crítica do direito à moradia e das políticas habitacionais, 2017, p. 105-107.
238
Cf. Menezes, Crítica do direito à moradia e das políticas habitacionais, 2017, p. 207-208.
239
Cf. IPEA, Estimativa da população em situação de rua no Brasil (2012-2022), 2023.
240
Art. 1228, do Código Civil.
90
241
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 25.
242
A função social da propriedade está contida na Constituição Federal de 1967, no capítulo da ordem
econômica, porém apenas na Constituição de 1988 o instituto vem mais bem delimitado, além de ser
previsto como direito fundamental.
91
cidade e a seus recursos, serviços, sociabilidade, que efetivamente trazem valor para a
propriedade -, evidenciam seu caráter de produção também social. Dessa forma, dada a
imbricação entre a propriedade da terra e a sociedade do seu entorno, a previsão de que a
propriedade deverá respeitar sua ‘função social’ significa, em primeiro lugar, reconhecer essa
característica das terras, e, em segundo lugar, evitar que ela tenha uma relação parasitária
com a sociedade, numa apropriação dos esforços coletivos, evitando que exista abuso desse
direito de propriedade.
Aqui, quer-se designar, através da expressão “apropriação parasitária” da cidade a
atividade que decorre da especulação imobiliária, a qual se representa a apropriação de uma
renda socialmente produzida243. O especulador retém244 parcelas da terra, sem realizar nelas
realizar investimentos significativos – negando sua função social –, aguardando sua
valorização que apenas ocorrerá em razão dos esforços e investimentos de terceiros ou de
melhorias e do crescimento da cidade promovida pelo Estado.
A especulação imobiliária pode ser acusada de motivar a aparentemente irracional
situação de existirem vazios urbanos em bairros bem localizados, estruturados e guarnecidos
de serviços públicos, ao mesmo tempo em que a cidade se espraia para as periferias,
crescendo desordenadamente de forma horizontal. Essa forma de produção da cidade
tensiona os serviços públicos, forçando que suas redes se espalhem pelo território, o que
possibilita também a apropriação dos recursos públicos, que, são aproveitados de forma
ineficiente pelo território, que exige sempre a ampliação da rede, ao passo que há localidades
que permitiriam o adensamento populacional e a utilização dos serviços públicos já
implementados.
Na realidade, é impróprio dizer que o crescimento é ‘desordenado’, pois ele se
submete a uma lógica privatista e que prioriza a extração da renda da terra às custas da
243
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 21-22, a especulação imobiliária é um termo
genérico, que pode representar diferentes práticas de apropriação de trabalho e valores dispendidos
socialmente. Assim, a mera retenção de uma terra tem uma perspectiva de valorização, contudo, essa
valorização não é um fato natural, mas depende da realização de investimentos no entorno desse imóvel,
de forma que o que efetivamente faz valorizar o imóvel são os valores e trabalhos dispendidos pelos setores
públicos e privados ao redor da terra retida.
244
Há diversas técnicas que os grandes proprietários utilizam para a especulação, seja (i) a mera retenção de
um imóvel, aguardando o desenvolvimento da cidade em seu entorno; (ii) a elaboração de um loteamento,
mas com a comercialização progressiva dos lotes e com a reserva dos melhores lotes para venda ou locação
após a implementação do loteamento; (iii) a realização de loteamentos em localidades distantes, mais
distantes do que outras terras especulativas em uma distância intermediária, forçando a cidade para que
cresça naquela direção e, com isso, valorize – sem qualquer investimento direto do loteador – as terras
intermediárias.7
92
produção social da cidade, ou seja, trata-se de uma ação imbuída de racionalidade cognitivo-
instrumental, cujo propósito é maximizar a extração da renda da terra, e não providenciar
uma ordenação territorial justa e democrática.245
Nessa mesma linha argumenta James Holston246, para quem a desordenação e o caos
são resultado da atuação conjunta de empreendedores de loteamentos e de seus ocupantes,
aliada às técnicas especulativas, promovem um assentamento fragmentado e caótico.
Haveria camadas caóticas e ilegais de desenvolvimento em um mesmo bairro.
A dificuldade de os trabalhadores suprirem sua moradia com os valores dos salários
faz com que um dos agentes essenciais dessa relação seja o mercado financeiro, que
possibilita que os trabalhadores efetuem a aquisição de suas moradias, e permite que os
incorporadores tenham capital para produzir as habitações.
Desse modo, surgem alternativas para o trabalhador, com o comprometimento de
uma parcela de seu salário, de adquirir sua moradia, com os simbolismos e benefícios que
isso traz, que não dependerá da produção de moradias para locação.
Essas peculiaridades do mercado que envolve a terra, e a dificuldade da maior parte
da população em adquirir algo essencial para sua sobrevivência, observando que não há
alternativas adequadas que supram essa necessidade por meio de políticas públicas, fazem
com que os agentes financeiros ganhem maior relevância na aquisição das moradias,
possibilitando a aquisição dos imóveis sem que os adquirentes detenham todo o dinheiro
correspondente a seu valor. Eles também participam das etapas de produção das moradias,
por meio dos financiamentos das construções e incorporações.
Trata-se de um fenômeno de escala global, e demonstra a atratividade do mercado
imobiliário para absorver excedentes de capital como um investimento certo e que não se
deteriora, ainda que passe por desvalorizações pontuais, a tendência e expectativa geral é de
perpétuo crescimento247.
245
Trata-se de uma ação racional, mas com intuito não comunicativo, mas estratégico, ou seja, para atingir
determinadas finalidades. Sua racionalidade se mede em termos de sucesso ou insucesso dessa ação. (Cf.
Habermas, Agir comunicativo e razão destranscendentalizada, 2002, p. 81).
246
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 233-
234.
247
Embora não seja o propósito do trabalho trazer um aprofundamento desta questão, a crise de 2008 tem seu
epicentro exatamente na especulação imobiliária e na falta de cautelas necessárias na realização de
hipotecas que se sustentavam apenas na expectativa de valorização perpétua dos imóveis, ocasionando
uma severa perda financeira e, principalmente, uma enorme crise de despejos.
93
A produção das cidades brasileiras cresceu mantendo uma diferenciação entre uma
cidade formal (cidade oficial) e uma cidade informal (cidade inoficial), de modo que a
segregação habitacional que hoje se pode constatar, até mesmo nas paisagens da cidade, tem
longevas raízes.
Essa segregação profunda, nas cidades, remonta ao início do século XX, com o
crescimento demográfico e a transferência de imensas massas de população desalojadas do
campo, reproduzindo as condições e problemas oriundos do longo período da escravidão, da
falta de reforma agrária, mantidos e perenizados pela ausência de políticas de integração
após o fim da escravidão.
Para Milton Santos, é “A capacidade de utilizar o território não apenas divide como
separa os homens, ainda que eles apareçam como se estivessem juntos.248”.
Isso porque mesmo que duas pessoas tenham todas as condições pessoais
semelhantes, de estudo, físicas, a própria localização espacial dela implica desigualdades, já
que moradores de diferentes localidades empreendem esforços maiores para acesso aos
equipamentos públicos, e têm recompensas diferentes, pois as oportunidades também estão
desigualmente distribuídas.
Assim, “pode-se inferir a existência de uma correlação entre a localização das
pessoas e o seu nível social e de renda.”249, e é em função das classes sociais que o espaço é
ocupado.
Esse é o contexto que permite e promove a geração de favelas e de outros
assentamentos informais. A cidade, o urbano, exerce uma força atrativa,250 principalmente
pelos sonhos de empregabilidade e de prosperidade, ao mesmo tempo em que nega acesso
aos recursos da cidade, especialmente, locais adequados para a habitação, deixando para que
os próprios trabalhadores busquem alternativas habitacionais.
As alternativas habitacionais evidenciam a luta e a criatividade das pessoas. Nas
palavras de Arlete Moysés Rodrigues: “As ocupações demonstram mais uma vez que a busca
do onde e do como morar implica a luta pela sobrevivência, pela cidadania, uma capacidade
de resistência, que desmistifica o mito da apatia dos trabalhadores”.251
248
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 80.
249
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 110.
250
Cf. Lefebvre, A revolução urbana, 2002, p. 111.
251
Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 46.
94
E essa segregação social repercute em diversas dimensões das vidas das pessoas,
operando uma fratura da sociedade, em que diversos indicadores sociais se distribuem de
forma bastante desigual em determinadas regiões da sociedade.
Isso alcança até mesmo a segurança relacionada com a integridade física das pessoas,
ou seja, é possível perceber que há uma fratura que divide localidades seguras e pacíficas,
de outras inseguras e violentas, nas quais os indivíduos estão sujeitos às mais diversas
violações. Em estudo psicanalítico sobre a violência em São Paulo, Paulo César Endo anota
a existência de uma correlação entre a desigualdade e a violência, e como tais características
se plasmam territorialmente. A violência se acentua nas áreas que são mais desiguais.252 É
nesse ponto que vale a pena citar sua percepção de que, nas cidades, certos habitantes são
reconhecidos como outros, os quais, pelas exigências de um manifesto narcisismo, devem
ser eliminados. Há formação de grupos que se pretendem homogêneos, contraposta aos que
são diferentes.253
Nestes termos, a desigualdade acaba por legitimar simbolicamente a violência, uma
forma de distanciar o indivíduo dos miseráveis, dos outros. Instaura-se uma dicotomia entre
o cidadão e o não-cidadão. Nas mesmas décadas em que se expandiu a democracia, também
a exclusão ganhou extensão, aliás, de forma interligada. E a violência é um dos fatores que
delimitam as localidades da cidade que são informais, que serão não-cidade ou não-
lugares.254 Os estigmas se fortalecem, e surgem as figuras do bandido, do marginal, figuras
intimamente associadas com as localidades de ocupação informal, ainda que a realidade
demonstre que a maioria dos habitantes seja de trabalhadores.
Assim, a violência ganha uma significação ambígua na sociedade fraturada. É a
materialização da segregação e da fratura. Conforme Paulo Cesar Endo:
A violência condenável, quando aplicada ao cidadão, é tolerada, permitida e mesmo desejada, pois é
ela que demonstra, inequivocamente, que entre o corpo que bate e o corpo que apanha há uma
diferença intransponível em favor do primeiro, que o ato violento reiteradamente confirma. 255
A divisão social alcança até mesmo as garantias e a segurança que se espera ter da
integridade física. É indispensável salientar que essa desigualdade tem um matiz racial,
observando que, no Brasil, quando se fala da população pobre, também se está,
implicitamente, referindo-se à população negra. Paulo Cesar Endo sintetiza como “ser negro
252
Cf. Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 21-25.
253
Cf. Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 24.
254
Cf. Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 27.
255
Cf. Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 28-29.
95
é ser tocável”.256 Neste sentido, a hierarquia que se inscreve nas cidades fraturadas também
é racial.
Essa vulnerabilidade opera de uma forma dúplice, pois aqueles que mais são
vulneráveis a ela, acabam sendo marcados como um outro, sendo desumanizados. Tudo isso
forma um caldo favorável às violências institucionais, praticadas pelo Estado policial, o que
redunda no impedimento ao aprofundamento de uma subjetividade democrática.257
As prisões representam o símbolo máximo do outro, do estranho, se tornando o lugar
que armazena a pobreza e a indignidade. Isso repercute em toda a sociedade, que tolera e
estimula a violência contra outras parcelas da população:
A população excitada e aterrorizada pede o massacre ou é conivente com ele (...) São estes conceitos
que nos permitem dizer com quem queremos partilhar a cidade e com quem não; quem são seus
cidadãos, ‘gente de bem’, ‘gente fina’, ‘homens bons’ e quais são os não-cidadãos, das prisões, favelas,
subúrbios, cortiços, guetos, pontes e praças públicas.258
Assim, é no corpo que se revela a disputa pela cidadania. Pois a iminência da
violência veta o trânsito na cidade, impedindo que ela seja ocupada, seja pelos cidadãos ou
não-cidadãos.259
Essa forma de estigmatizar partes da sociedade como outros, se manifesta de forma
violenta sobre os corpos dessas pessoas, tocáveis. Na cidade a segregação se inscreve,
delimitando as zonas violentas, sem direitos, daquelas outras que representam a cidade com
direitos, criando-se a cidade oficial e a clandestina.260
E assim, segundo Paulo Cesar Endo, “A cidade, recortada em função da
discriminação e da segregação entre os espaços elitizados e os espaços deteriorados,
clandestinos e ilegais, define linhas de corte que recaem, invariavelmente, sobre o corpo do
cidadão”.261 Dessa forma, do acesso negado à cidade, e nos traçados e divisórias que atentam
até mesmo contra a segurança do corpo, é que se segrega da cidadania uma grande parcela
de pessoas.
A violência sentida no próprio corpo afeta até mesmo a compreensão que a pessoa
tem de si, e que a própria sociedade tem da violência urbana, encarando-a como inevitável,
ou ainda, desejável. A violência que toca o corpo também diminui sua importância, anulando
256
Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 30
257
Cf. Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 41.
258
Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 45.
259
Cf. Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 47.
260
Cf. Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 45.
261
Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 53.
96
262
Cf. Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 72-73.
263
Cf. Ramos; Lazarini; Andreotti, A gestão dos cuidados tem gênero, raça e classe: as zonas de sacrifício da
Covid-19 nas cidades brasileiras, 2021, p. 32-33.
264
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 59.
97
lado, também, torna-se possível criar uma posse insegura, de modo que o território, mesmo
ocupado de maneira informal, presta-se à especulação imobiliária, uma vez que a
informalidade poderá justificar uma futura remoção. Esse fenômeno é chamado de
transitoriedade permanente por Raquel Rolnik:
podemos afirmar que tem em comum o fato de constituir zonas de indeterminação entre legal/ilegal,
planejado/não planejado, formal/informal, dentro/fora do mercado, presença/ausência do Estado. tais
em determinações são os mecanismos por meio dos quais se constrói a situação de permanente
transitoriedade, a existência de um vasto território de reserva capaz de ser capturado ‘no momento
certo’265
Assim, o Direito trata tais localidades de maneira ambígua, prestando seletivamente
certos serviços públicos, mas omitindo-se em relação a outros. E é com base nessa
ambiguidade que se constrói um estigma territorial, fundamental para justificar e legitimar
expulsões e despejos, assim como a construção da hegemonia da propriedade privada
individual, sobre qualquer outra forma de posse.266
Essas duas cidades coexistem. A cidade formal, limpa, higienizada, que figura até
mesmo no imaginário coletivo nos cartões postais de cidades como São Paulo, Buenos Aires,
ou mesmo Paris, tais locais evocam à mente das pessoas paisagens estereotipadas e
desconectadas da sua totalidade, como se representativa da total experiência de vida dessas
localidades. A cidade real é maior, muito mais ampla e diversa, e tem problemas. Essas duas
cidades se sobrepõem, e têm zonas de exclusão e de intersecção.
No caso brasileiro, a distância entre elas é brutal. Mas as medidas especulativas e de
apropriação do direito à cidade, isto é, de utilização dos recursos públicos como forma de
aumentar a fratura, investindo os recursos nas áreas já regulares e já valorizadas, ocorre uma
privatização também da cidade. Segundo Paulo Cesar Endo, “Quanto mais a cidade é
privatizada, menos cidade ela se torna”,267 o que demonstra que esse movimento de
apropriação da cidade e dos comuns que ela forma, acaba destruindo a diversidade e o que
caracterizou, num primeiro momento, o surgimento do seu próprio valor.
Os comuns são os bens simbólicos e culturais pertencentes às cidades, aos bairros,
que emergem da própria vida e ocupação dos locais pelos moradores, como por exemplo,
um aspecto bucólico de um bairro, ou a presença de artistas com constantes intervenções
urbanas em outros. Tais comuns muitas vezes são apropriados por construtoras e empresas
265
Rolnik, Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças, 2015, p. 174.
266
Cf. Rolnik, Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças, 2015, p. 194.
267
Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 32
98
Os dados a respeito da situação da moradia das parcelas mais pobres e com maior
desamparo na sociedade tornam visíveis as conexões entre a realidade do presente e a forma
como o Brasil produziu seus espaços urbanos, sugerindo, se não uma causalidade – de difícil
268
Cf. Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 192-193.
269
Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 200.
99
constatação metodológica – uma clara influência dessas posturas tomadas no passado e que
persistem formatando instrumentos de segregação e de dominação.
A habitação precária não é exclusiva do território brasileiro, e não representa uma
idiossincrasia histórico-cultural desta região. Ao contrário, tem elementos que permitem a
percepção de um fenômeno global.
Adiante se retomarão os elementos internos, históricos e culturais que estimularam e
criaram uma sociedade habituada à segregação, seccionando a sociedade e impondo
territorialmente diferenças que remetem à ideia de dignidade como distinção, fazendo com
que os direitos básicos fossem os sinais distintivos do pertencimento a uma elite.
E, sem esquecer dessas questões, percebe-se que o Brasil também se insere em um
ambiente de influências internacionais, as quais atravessam os acontecimentos brasileiros,
influenciando algumas posturas tomadas em solo nacional, representando até mesmo
tendências globais.
A urbanização ocorrida no séc. XX no Brasil também se deu em diversos outros
países do mundo. Foi em meados desse século que o Brasil passou a ter a maior parte de sua
população ocupando áreas urbanas, superando a população rural270.
Esse fenômeno se insere em uma tendência global. No trabalho de Mike Davis, há
um apanhado de diversas cidades pelo mundo, demonstrando sua rápida urbanização durante
o séc. XX, citando que pela primeira vez a população urbana ultrapassará a rural, citando
exemplos de megacidades que tiveram explosões populacionais, como Cidade do México,
Seul, Nova York, Mumbai, Jacarta, Istambul, Pequim e Rio de Janeiro, entre outras, e
indicando que enquanto em 1950 havia 86 cidades com mais de 1 milhão de habitantes, em
2015 seriam mais de 550271.
Para esse autor, esse crescimento representa, na realidade, o crescimento das
favelas272, pois o crescimento populacional sem o correspondente crescimento teria imposto
a precariedade a grandes parcelas das populações.
Assim, ele observa o crescimento urbano e o crescimento das favelas como um
mesmo fenômeno, de tendências globais. Nas suas palavras:
As forças globais que ‘empurram’, (...) por toda parte, a consolidação de minifúndios em grandes
propriedades e a competição do agronegócio de escala industrial – parecem manter a urbanização
270
Cf. IBGE, Projeção da População do Brasil por Sexo e Idade para o Período 1980-2050 - Revisão 2008.
271
Cf. Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 13-15.
272
Mike Davis utiliza o termo Slum para designar as moradias precárias pelo mundo, as quais, no brasil,
recebem genericamente a denominação de favela.
100
273
Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 26-27.
274
Cf. Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 33.
275
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 28-29.
276
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 84.
277
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 143.
101
área habitacional, tendo em vista que vislumbra esses processos como uma despossessão dos
trabalhadores, precarizando a moradia e a propriedade dos pobres, intensificando sua
exploração e, de outro lado, permitindo que se extraia rendas daquelas terras retiradas dos
trabalhadores278.
Para David Harvey, o capital tem relação com a forte urbanização e com a
precarização das moradias, pois, enquanto o capital acumulado utiliza-se das terras para
empreender e investir o excesso, de outro a existência de setores sociais carentes permite sua
espoliação, pois:
elas constituem, pelo menos nas economias capitalistas avançadas, um vasto terreno de acumulação
por desapropriação, por meio da qual o dinheiro é sugado para a circulação do capital fictício a fim de
sustentar as imensas fortunas por dentro do sistema financeiro.279
Assim, pode-se perceber que a existência das moradias precárias é resultado da
exploração, com o pagamento de salários insuficientes, mas também do controle do mercado
imobiliário e dos processos de urbanização pelo capital, que impede o acesso igualitário e
digno das pessoas ao direito habitacional, possibilitando e retroalimentando essa espécie de
exploração.
A pesquisadora Raquel Rolnik, ao relatar sua experiência como Relatora Especial
para o Direito à Moradia Adequada da ONU, em 2013, descreve, a partir de um ponto de
vista privilegiado pelas visitas que promoveu em diversos países, os reflexos da crise
financeira-hipotecária de 2008, verificando a precariedade habitacional nos locais
analisados, dentre os quais Inglaterra e os Estados Unidos da América280.
Raquel Rolnik desvela as conexões entre o sistema financeiro e a habitação, bem
como a forma como ele trouxe como consequências a crise de 2008, e a precarização da vida
de pessoas por todo o mundo, anotando, ainda, na precariedade das habitações, um
instrumento de controle e opressão das classes trabalhadoras, bem como de manter terras
disponíveis, a despeito de já serem habitadas a décadas, por meio do que conceitua como
transitoriedade permanente281.
Para Raquel Rolnik, esse estado em que se ocupam as terras pelas classes
278
Cf. Harvey, O Direito à Cidade, 2012, p. 83.
279
Harvey, Cidades rebeldes: Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 112.
280
Cf. Rolnik, Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças, 2015, p. 12.
281
A possibilitação da ocupação de terras para moradia de forma precária impede que seus ocupantes desfrutem
plenamente de uma segurança da posse, o que permite que sejam despejadas de acordo com os interesses
financeiros, deixando as terras ocupadas reservadas para que algum capital as utilize em outro momento.
(Cf. Rolnik, Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças, 2015, p. 179).
102
Por certo, o apartheid levou esse sistema ao seu extremo mais antiutópico. Criada sobre uma base de
racismo colonial, a legislação sul-africana do pós-guerra não somente criminalizou a migração urbana
como também promoveu, violentamente, o desenraizamento das históricas comunidades de cor dos
bairros pobres do centro da cidade. 283
É possível associar as atuações e a exploração colonial com o subdesenvolvimento e
a ausência de infraestrutura. Uma das outras forças que criam as condições para a
precarização das habitações pode ser identificada com a ideologia neoliberal, já que tal linha
de formação do Estado desidratou as políticas públicas de bem-estar social dos países
centrais do capitalismo e, de outro lado, impôs severa austeridade aos países periféricos,
promovendo no Brasil a desconstrução de políticas públicas que sequer tiveram a chance de
se implementar de forma efetiva.
Deàk Csaba percebe esse fenômeno sob a ótica da periodização do capitalismo,
observando que seja a crise promovida pelo neoliberalismo, e até mesmo as boas práticas
sugeridas pelas políticas de bem-estar social não se aplicariam ao caso brasileiro, que
manteria um capitalismo entravado e subjugado a um Estado cooptado pelas elites agrárias
que mantém o poder colonial284.
Deàk Csaba, utilizando-se de uma das formas de analisar as etapas do capitalismo,
282
Cf. Rolnik, Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças, 2015, p. 157.
283
Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 60-61.
284
Cf. Deák, Acumulação entravada no Brasil e a crise dos anos 80, 1991.
103
285
Cf. Deák, Acumulação entravada no Brasil e a crise dos anos 80, 1991.
286
Cf. Deák, Acumulação entravada no Brasil e a crise dos anos 80, 1991.
104
Com a literal “grande muralha” da imposição de uma fronteira de alta tecnologia que bloqueia a
287
Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 81.
288
Cf. Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 88.
289
Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 183.
105
migração em grande escala para os países ricos, somente a favela continua a ser solução totalmente
permitida para o problema do armazenamento da humanidade excedente deste século. 290
Todavia, observar as alternativas de sobrevivência, e as insurreições que surgem nas
localidades mais precárias não representa uma romantização das condições precárias ou de
uma simples possibilidade de criar narrativas de superação pessoal.
Na verdade, são fruto e sintoma das contradições existentes em combinação com a
agência e autonomia das pessoas em suas vidas. É a possibilidade de rachaduras nessa
estrutura descrita que desponta a partir da observação desses atos de resistência e de contorno
das mazelas a que estão submetidos.
Nesse sentido, Ermínia Maricato elabora um posfácio à versão brasileira da obra de
Mike Davis, salientando que a visão de Davis é extensa, mas peca por deixar de aprofundar
as experiências regionais e locais, pois o afastamento necessário para perceber as tendências
globais que relata o impedem de observar as especificidades.
Assim, a importante pesquisadora salienta as experiências de luta e de resistência
brasileiros e de outros países analisados, que não foram justamente considerados e
ponderados na análise de Mike Davis.291
E David Harvey também traz observações que se alinham a essas críticas elaboradas
por Ermínia Maricato, pois o geógrafo percebe a efervescência que ocorre nas cidades, com
focos diversos de insurgência, citando as lutas e reivindicações pelo direito à cidade que
percorreram o mundo nos anos 10, como em 2013 no Brasil, nos protestos da praça Tahrir e
nos movimentos “occupy292”, como ocorridos em Nova York293 e outros locais do mundo.
Para Harvey, verifica-se que, mesmo diante das poderosas forças que cercam e
dominam os territórios, deles extraindo rendas, as resistências urbanas e oposições se
apresentam e constantemente questionam a exploração capitalista, sugerindo que há espaços
de esperança e de contestação desse capital especulativo294.
Ele identifica, ainda, contradições e retoma o conceito de comuns urbanos, que
retratam os bens culturais e coletivos que a vida na cidade acaba desenvolvendo, como a
qualidade artística e revolucionário de determinada praça ou bairro, que concentra pessoas e
290
Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 200.
291
Cf. Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 219-224.
292
Houve uma série de protestos iniciada em Nova York no ano de 2011, em que a tática consistia na ocupação
de local público próximos a Wall Street, famosa rua da cidade que simboliza o capital financeiro. Tais
táticas foram replicadas em diversas localidades do mundo.
293
Cf. Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 211.
294
Cf. Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 215-216.
106
o comum não deve ser entendido como um tipo específico de coisa, de ativo ou mesmo de processo
social, mas como uma relação social instável e maleável entre determinado grupo social autodefinido
e os aspectos já existentes ou ainda por criar do meio social e/ou físico, considerada crucial para sua
vida e subsistência.295
E, a partir desses comuns, bem como das insurgências fomentadas e sediadas nas
cidades, percebe-se que as tenebrosas forças retratadas por Mike Davis não têm (ou ainda
não tiveram, ao menos) o poder de aniquilar a resistência, gerando oposições e aberturas
para a contestação dessas próprias forças. Ou seja, espaços296 para resistência, reivindicação
política e insurgência.
Dessa forma, é possível verificar que a habitação precária é um problema
generalizado e que encontra causas locais, regionais, nacionais e globais, devido às diversas
forças que atuam para determiná-lo. Ainda assim, há diversos pensadores que, sem
minimizar ou omitirem-se sobre os desafios e problemáticas da habitação precária, sinalizam
alguma esperança diante da atuação política e da reivindicação de diversos grupos sociais,
para melhoria e verdadeira efetivação da moradia adequada.
295
Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 145.
296
Cf. Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 195-198.
107
ou direcionamento.
Assim, uma tensão se evidencia no campo do direito, e parece sugerir que a
efetivação dos direitos básicos depende da organização política e de uma reivindicação direta
dos seus beneficiários, jurídica e política, mas além da sua judicialização.297
A análise das políticas públicas tomadas pelo Estado brasileiro, além das ações
pontuais de construções de pequenos volumes de unidades habitacionais, percebe-se que há
consequências sistêmicas dessa intervenção estatal, ora expandindo e tornando atrativo o
mercado imobiliário, e, em outros momentos, afastando investimentos privados desse
campo. Assim, seja por meio do controle de aluguéis, pela seletividade e permissividade na
aplicação do planejamento e das normas urbanísticas, pela expansão massiva de projetos
habitacionais como o Minha Casa Minha Vida, ou por revitalizações de áreas e abertura de
vias e avenidas.
E, ao se colocar como foco da análise da política pública a moradia do trabalhador,
se percebe que este elemento é vital e influência de forma bastante direta a necessidade de
pagamentos de determinados salários para essas pessoas, já que, diminuídos os custos de
sobrevivência, se não houver escassez de mão de obra que justifique a manutenção de um
salário mais alto, tais valores podem ser absorvidos como lucro pelo empregador.
As condições de investimento e prosperidade do mercado imobiliário também se
afetam diretamente por algumas medidas governamentais, absorvendo subsídios. Isso sem
observar que a necessidade dos trabalhadores abre campos de exploração lucrativa, como
por exemplo, com o investimento em cortiços, venda de loteamentos clandestinos, isto é, em
todo um mercado informal de moradias.
A propriedade habitacional é uma mercadoria diferenciada, peculiar, que tem seu
preço associado à localização, e, portanto, vinculada às produções de habitações vizinhas, à
produção da cidade e não somente relacionada ao trabalho nela realizado.298 Segundo Arlete
Moysés Rodrigues, a renda advinda da localização do imóvel pode ser chamada de renda
297
Jürgen Habermas alerta para a necessidade de enfrentar a tensão entre norma e realidade, e de um método
que possibilite a compreensão aberta: “A tensão entre abordagens normativistas, que sempre correm o risco
de perder o contato com a realidade social, e abordagens objetivistas, que se tornam cegas perante todos
os aspectos normativos, pode ser compreendida como advertência para não nos fixarmos em uma
perspectiva disciplinar, mas nos mantermos abertos para diferentes pontos de vista metodológicos
(participante versus observador), para diferentes finalidades teóricas (explicação de compreensão de
sentido e análise conceitual versus descrição e explicação empírica), diferentes perspectivas de papéis
(juiz, político, legislador, cliente e cidadão) e atitudes pragmáticas de pesquisa (hermenêutico, crítico,
analítico etc.).” (Habermas, Facticidade e Validade, 2020, p. 39.).
298
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 18.
108
299
Cf. Menezes, Crítica do direito à moradia e das políticas habitacionais, 2017, p. 94.
300
Em pesquisa realizada pelo Datafolha e pela empresa Quinto Andar, em outubro de 2021, se perceberam
alguns dados relevantes, apontando que 70% (62% completamente quitados) dos brasileiros moram em
imóveis próprios e, o mais interessante, que 87% dos brasileiros entrevistados concordou com a frase “Um
dos meus sonhos é ter uma casa própria”, sendo que a prioridade desse sonho, em uma escala de 0 a 10,
retornou uma média de 9,7, a maior nota dessa questão da análise, o que demonstra a força desse desejo, e
a estrutura das moradias pelo modelo da casa individual no país se manteve. Cf. Tieghi, Brasileiro valoriza
mais casa própria do que filhos, religião e estabilidade, Folha de São Paulo, 2022.
109
301
Tem-se como exemplo desse atavismo o tardar para que os empregados domésticos conquistassem direitos
trabalhistas, o que só ocorre com a Emenda constitucional N.º 72 no ano de 2013, ou mesmo a persistência
de cômodos “de empregada” em apartamentos de classes média e alta, e mesmo a implementação de
“arquitetura hostil” (como colocação de pedras embaixo de pontes, com intuito “antimendigos”).
112
habitação, isto é, como condição e causa da efetivação dos direitos, ou como meio e mais
uma das ferramentas de luta. Tais possibilidades impõem dúvidas a respeito da causalidade
oriunda da democracia ou mesmo dos direitos fundamentais, ou ao menos de sua recíproca
implicação, sugerindo a hipótese de que seria necessário um adequado enquadramento do
papel e das capacidades da democracia na efetivação dos direitos, ou ainda, que é um
fenômeno que apenas surge plenamente nas sociedades que já garantiram suas condições
materiais básicas, com a implementação concreta dos direitos fundamentais.
Assim, a problemática da democracia será brevemente enfrentada na medida em que
atravessa as lutas pela moradia, bem como representa o grau de permeabilidade do Estado
brasileiro às reivindicações de pessoas com a necessidade de garantir sua moradia e a
melhoria de suas condições de vida.
Desse modo, fica perceptível que a democracia prática vem atravessando a luta e as
reivindicações sociais por moradia, bem como as lutas para aprofundamento da cidadania
brasileira. Isso implicará que a análise se centrará no fenômeno democrático brasileiro, bem
como as formas que suas contradições se mostraram e se uniram às peculiaridades do
desenvolvimento nacional, e como tais conceitos se implicam mutuamente, de cidadania,
democracia, direitos fundamentais e a organização social na luta pelo direito.
302
Cf. Habermas, Facticidade e validade. Contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democracia,
2020, p. 408.
114
“uma vez que a ‘atividade comunicacional’ é constitutiva da sociedade, as bases do direito só podem
ser encontradas no pensamento, dito ‘pós-metafísico’, da intersubjetividade. (...) uma norma jurídica
deve buscar sua validade (Gelstung) no acordo, ou ‘consenso’, que resulta numa comunidade, de uma
‘discussão prática’ entre seus diversos membros.”303
Evidencia-se, desse modo, a importância do consenso e dos processos que levam ao
consenso, tanto para a fundamentação do Direito, como para a fundamentação da
Democracia.
A teoria de Habermas também traz soluções para críticas comumente realizadas
contra a dificuldade democrática de encontrar uma síntese entre a democracia e o bem
comum, sem justificar, com isso, uma teoria que justifique formalmente o elitismo
democrático304.
Segundo Leonardo Avritzer:
303
Cf. Goyard-Fabre, O que é democracia?, 2003. p. 319.
304
O elitismo democrático emerge das dificuldades percebidas ao se contrapor a necessidade de construir uma
estrutura burocrática, tendo em vista a complexidade das funções estatais, e que tal estrutura e
complexidade não dependerá da consulta direta a cada movimento necessário, de modo que a compreensão
da democracia acaba ficando limitada ao entendimento das regras que concernem à escolha dessa elite que
comandará tais estruturas burocráticas ou que representará o povo e seu bem comum (Cf. Avritzer, A
moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática, 1996, p. 120-121).
305
Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática, 1996, p. 21.
115
Jürgen Habermas, com os conceitos tratados por ele, pois a definição da democracia como
uma prática discursiva, o que traz implicações éticas oriundas da ética do discurso, impõe
uma certa moralidade ética também à participação e à construção dos consensos
democráticos. Assim, o bem comum torna-se um pouco menos abstrato, já que sua definição
se torna tributária da participação efetiva e ampla, conforme as diretrizes discursivas.
Essa capacidade de incluir a participação popular nas decisões, mesmo uma vez
constituída uma burocracia estatal, demonstra a importância do conceito habermasiano de
democracia para o presente trabalho, tendo em consideração que a perspectiva da eficácia
do direito à moradia a partir da atuação e participação política de agentes subalternizados
encontra nessa teoria um ponto de conexão e de fundamentação. De outro lado, trata-se de
uma perspectiva que une o Direito, a Política e a Democracia, tornando-os conceitos que se
implicam reciprocamente, permeados pelos sistemas discursivos e as consequências da
adoção de uma ética discursiva.
Assim, chega-se a um conceito amplo e inclusivo de sociedade autônoma, ou, nas
palavras de Jürgen Habermas, “Com o conceito procedimental de democracia, no entanto,
essa ideia assume a forma de uma comunidade jurídica que organiza a si mesma.”306
O professor Eduardo C. B. Bittar também ressalta a importância do princípio
democrático, como elemento que atravessa o pensamento habermasiano:
306
Habermas, Facticidade e validade. Contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democracia,
2020, p. 418.
307
Bittar, Democracia, Justiça e Emancipação Social: Reflexões jusfilosóficas a partir dos pensamentos de
Jürgen Habermas, 2013, p. 383.
116
fenômenos e reivindicações urbanas, permitindo uma leitura dessa atuação pessoal, e dessa
busca constante por inclusão e pelos próprios, e legítimos, interesses.
Essa linha de entendimento mostra uma forma de compreender de maneira complexa
e inter-relacionada os encontros e as trocas entre os sistemas político, jurídico e social,
formado pelos movimentos sociais reivindicatórios, trazendo na própria definição
democrática a importância de incorporar os interesses historicamente suprimidos das
populações subalternizadas do Brasil.
Assim, embora se utilize de um conceito procedimental de democracia, seu
enriquecimento pela teoria do discurso exige a satisfação de condições objetivas, de inclusão
social, o que é sintetizado pelo jurista Eduardo C. B. Bittar:
“Em verdade, o princípio democrático se realiza pela realidade dos processos de efetiva inclusão no
discurso, e, por isso, de efetiva consolidação do processo de integração e participação políticas; e isso
porque a democracia deve ser capaz de derivar e de realizar a soberania popular. Nesta medida, no
interior da teoria do discurso, o caráter procedimental da democracia aparece como uma garantia a
favor das condições de exercício da palavra e de autodefinição, pelos atores envolvidos, das próprias
definições que assumem, considerando as consequências para todos.”308
Assim, de posse de uma ideia de democracia que perpassa e qualifica os debates
jurídico e político, possibilitando, ainda, introduzir como princípio democrático condições
substanciais de averiguar a participação efetiva nos debates e nas formações das decisões e
vontades, e, principalmente, dentro de uma construção de consensos e de discursos que se
opera no âmbito intersubjetivo.
De outro lado, a construção intersubjetiva dos consensos permite trazer para o centro
do debate o mundo da vida, com os padrões, imagens e símbolos indispensáveis à
compreensão e à participação popular, abrindo tais categorias, do Direito, da Democracia e
da Política, às influências indeterminadas do território, possibilitando uma reintrodução da
complexidade da vida na análise309.
308
Bittar, Democracia, Justiça e Emancipação Social: Reflexões jusfilosóficas a partir dos pensamentos de
Jürgen Habermas, 2013, p. 402.
309
Jürgen Habermas salienta a importância da teoria do discurso na construção do princípio democrático, e
como o entendimento realizado dessa maneira traz elementos e influencia na produção e reprodução do
mundo da vida. Nas palavras do filósofo: “os atores não estão simplesmente entregues a seu mundo da
vida. Pois este só pode se reproduzir, por seu turno, pela ação comunicativa, e isso significa: mediante
processos de entendimento que dependem de tomadas de posição sim/não frente a pretensões de validade
criticáveis.” (Habermas, Facticidade e validade. Contribuições para uma teoria discursiva do direito e da
democracia, 2020, p. 416).
117
310
Assim como o Brasil, diversos países da América Latina e até mesmo da Europa, como Portugal, com
Salazar e Espanha, com Franco, enfrentaram períodos autoritários de supressão da democracia. Todavia, a
análise se focará nas peculiaridades brasileiras.
118
311
Conforme se abordará adiante, apenas em 1988 os analfabetos foram recepcionados para votar, e nessa data
representavam cerca de um quarto da população brasileira.
312
Apenas em 1933 teria sido criada a justiça eleitoral e instituído o voto secreto, como medida de coibir
fraudes, representando ganhos para a democracia, contudo, tais avanços foram realizados sob a tutela de
Getúlio Vargas, em um movimento que suprimia a democracia, trazendo ambiguidade e complexidade para
tais momentos.
313
A questão e a importância da fraude trás prenúncios a respeito da importância do respeito às regras do jogo
para a legitimação de uma democracia, revelando sua imprescindibilidade.
314
Cf. Constant, A Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos, 2015, p. 78.
119
315
Constant, A Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos, 2015, p. 92.
316
Interessante notar que as ideias liberais iluministas deixam de considerar as capacidades econômicas
monstruosas que existem atualmente, deixando de ponderar sobre a necessidade de absorver as
externalidades e impactos sociais de determinadas ações, ou ainda de reequilibrar diferenças de acesso
prático aos poderes democráticos.
120
317
Cf. Goyard-Fabre, O que é democracia?, 2003. ps. 229-230.
318
Cf. Goyard-Fabre, O que é democracia?, 2003. p. 295-297.
121
membros da comunidade.
Simone Goyard-Fabre,319 ao apresentar a visão do filósofo alemão Jürgen Habermas
para a democracia. Irá fazê-lo de forma crítica, pois a seu ver o consenso e a conciliação que
seriam oriundas de uma razão comunicacional seriam ilusórios. Com isso, questiona a
possibilidade de identificar o consenso com a democracia.
A dificuldade ou impossibilidade de consenso trariam a marca e a contradição atávica
da democracia, pois pressupondo a discussão de interesses quiçá divergentes, incorpora a
pluralidade discordante de visões, a qual, por princípio, remeteria a democracia a certa
instabilidade.
Desse modo, Simone Goyard-Fabre vê na democracia uma força e uma fraqueza320,
pois sua pluralidade, que incorpora universalmente os setores sociais, também a fragiliza,
devendo se opor à tirania estatal, devendo esta garantir um equilíbrio entre ordem e
liberdade, verificando, por exemplo, como mesmo diante de um princípio majoritário para
solução dos dissensos, haveria pressuposto o direito à oposição e à proteção das minorias,
de que estas possam participar do debate sem aniquilação. Assim, a democracia garantiria a
liberdade de forma controlada, da coletividade e não a plena liberdade dos indivíduos. 321
A decisão majoritária pressupõe uma minoria que será vencida e deverá ser
respeitada, afinal, não se tem a pretensão de uma decisão unânime.
Assim, ao perceber a fraqueza e a potência da democracia na pluralidade intrínseca
a seu exercício, percebe-se que tal pluralidade é um de seus aspectos centrais e definidores,
sendo essencial que esse procedimento viabilize e proporcione uma forma de harmonização
dos interesses e, consequentemente, das pessoas e grupos de pessoas que os colocaram e os
exigiram.
Outro autor que enxerga ambiguidade é Leonardo Avritzer. Isso porque, ao analisar
a forma como a democracia se expandiu no século XX, irá apontar que isto ocorreu de forma
contraditória, tendo em vista que mesmo havendo tal expansão, com fortes apelos à
democracia, ela manteve uma forma elitista, a qual se estrutura a partir da dissociação entre
democracia e bem comum, bem como apontando que a mera participação não seria
racional322.
319
Cf. Goyard-Fabre, O que é democracia?, 2003. p. 336.
320
Cf. Goyard-Fabre, O que é democracia?, 2003. p. 342.
321
Cf. Goyard-Fabre, O que é democracia?, 2003. p. 308-311.
322
Cf. Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática, 1996, p.
20.
122
323
O realismo político é um pressuposto metodológico decorrente do aumento da complexidade do Estado e
de seu aparato, exigindo funcionários especializados. Essa complexidade instaura separações entre a
população e as formas de administração do Estado, tornando incompatível uma participação diária e
generalizada. (Cf. Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria
democrática, 1996, p. 103-104.
324
A ausência de domínio técnico de alguns temas poderia ser confundida até mesmo com a incompatibilidade
entre elas e as massas, que seriam irracionais. Entretanto, Leonardo Avritzer aponta que a suposta
racionalidade trazida por tais formas elitistas seriam mera maximização ou soma de interesses individuais.
(Cf. Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática, 1996, p.
110).
325
Leonardo Avritzer também traz problemáticas do pensamento elitista, pois haveria pressuposição da
racionalidade dessas elites (e irracionalidade das massas), e que tal visão ocultaria que tal racionalidade
veicularia não uma vontade geral, mas os interesses dessa parcela da sociedade, e, além disso, a
racionalidade individual identificada com bens materiais consideraria apenas bens materiais, deixando de
considerar os bens simbólicos. (Cf. Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana
e teoria democrática, 1996, p. 113).
326
Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática, 1996, p. 21.
123
participação.
Com isso, a teoria do elitismo democrático é ao perceber a tensão entre uma maior
participação e os ruídos gerados na comunicação e a consequente dificuldade de atingir o
consenso, atribuindo a esses entraves uma aparente falta de racionalidade do aumento de
participação, rechaçando e ignorando a tensão oriunda da divergência, tentando suprimir e
usar uma técnica decisória que a suprime.
Assim, na visão habermasiana, na complexidade e nas tensões é que estaria uma
chave para superar e coordenar as ações, com a ideia de racionalidade comunicativa327, bem
como com a compreensão do político como um sistema que se comunica com o mundo da
vida, incorporando na teoria democrática uma forma discursiva que contemplaria a
complexidade social.
A utilização dos conceitos habermasianos para compreender a democracia apontam
para o campo do discurso e da linguagem, enquanto meios para que as discussões e
consensos possam se realizar. Tal medida possibilita incorporar ao procedimento
democrático, notadamente formal, que estabelece um jogo de regras democráticas, sem um
conteúdo específico, possa exigir regras que a perpetuação do diálogo e de esferas públicas
pressupõe.
Percebe-se que o compromisso democrático evidencia, primeiro, uma dificuldade, de
efetivamente acatar e sustentar raciocínios, visões de mundo, entendimentos e interesses
potencialmente contraditórios. Mas, tal dificuldade somente se apresenta tendo em vista a
ousadia e a ambição desse sistema, de efetivamente construir uma sociedade coesa e
participativa, sem silenciamentos ou aniquilação, real ou simbólica, de grupos.
O cumprimento da ambição democrática não permite que a dificuldade da
pluralidade e da busca pelo consenso sejam omitidas ou relegados ao esquecimento. Deve
haver enfrentamento e aceitação dessa problemática.
Tal necessidade se evidencia com uma análise mais detida sobre a complexidade de
composição da sociedade brasileira, que contém diferentes etnias, grupos, culturas, funções
profissionais e visões de mundo que devem ser incorporadas e ouvidas.
327
Para Leonardo Avritzer, enquanto a burocracia estatal seria organizada pela racionalidade sistêmica, que
possibilita uma coordenação impessoal da ação, a racionalidade comunicativa permite a instauração da
esfera pública, em que os valores democráticos se formam e se reproduzem, tornando possível
compatibilizar alguma complexidade em algumas instâncias, desde que a esfera pública inclua a
participação e os diversos interesses. (Cf. Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria
habermasiana e teoria democrática, 1996, p. 121).
124
328
Goyard-Fabre, O que é democracia?, 2003, p. 282.
329
Goyard-Fabre, O que é democracia?, 2003, p. 284.
330
Jürgen Habermas enxerga diversos tipos de racionalidade, de modo que na modernidade, contrapõe,
principalmente a razão cognitivo-instrumental e a comunicativa. Em suas palavras: “Quando partimos do
uso não comunicativo do saber proposicional em ações orientadas por um fim, tomamos uma decisão
prévia em favor do conceito de racionalidade cognitivo-instrumental, que, por meio do empirismo, marcou
fortemente a autocompreensão da modernidade. Ele traz consigo conotações de uma autoafirmação
exitosa, que se vê possibilitada pela adaptação inteligente às condições de um meio contingente e pela
disposição informada dessas mesmas condições.” (Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 1:
Racionalidade da ação e racionalização social, 2016, p. 35.).
125
331
Cf. Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 1: Racionalidade da ação e racionalização social, 2016, p. 33.
332
Habermas retoma o conceito de racionalidade, partindo dos elementos aos quais tal qualificativo poderia
ser atribuído (ações, estratagemas, enunciados), construindo aos poucos seu conceito ao mesmo tempo em
que vai aparando possíveis contestações a determinada forma de ver a racionalidade. Contudo, tendo em
vista o escopo do trabalho, não se inserirá todo o percurso do autor, problematizando ou criticando-o, mas
tão somente resgatando suas categorias para poder refletir sobre suas implicações na esfera da moradia,
das reivindicações populares.
333
Para Habermas os enunciados exteriorizam um determinado conteúdo que terá uma pretensão de validade,
e segundo ele essa forma traz implicações, pois “(...) o modo de ser de uma exteriorização geralmente
significa algo mais específico: ele expressa também a perspectiva objetiva ou espacial e temporal assumida
pelo falante quando este se refere a uma pretensão de validade.” (Cf. Habermas, Teoria do Agir
comunicativo, 1: Racionalidade da ação e racionalização social, 2016, p. 81).
334
A partir do reconhecimento de que as pretensões de validade podem ser diversas, é preciso reconhecer que
haverá condições também diversas para sua satisfação. E, “Uma pretensão de validade equivale à
afirmação de que as condições de validade de uma exteriorização tenham sido cumpridas” (Habermas,
Teoria do Agir comunicativo, 1: Racionalidade da ação e racionalização social, 2016, p. 83).
335
É a pretensão de que o que se exteriorizou seja compreendido pela outra parte.
336
A pretensão à “verdade de um enunciado significa que um estado de coisas que se afirmou existe como algo
no mundo objetivo; e a correção válida para uma ação em face de um contexto normativo subsistente
significa que a relação interpessoal construída como parte legítima do mundo social merece
reconhecimento” (Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 1: Racionalidade da ação e racionalização
social, 2016, p. 105).
337
A correção normativa compreende uma pretensão que não relaciona uma exteriorização a um crivo de
verdade ou de êxito, mas de conformidade a determinada norma ou acordo valorativo. (Cf. Habermas,
Teoria do Agir comunicativo, 1: Racionalidade da ação e racionalização social, 2016, p. 107).
126
e a veracidade338, de modo que o consenso339 exige que todas elas sejam efetivamente
validadas e aceitas pelo interlocutor.
A importância do reconhecimento da forma como a racionalidade estrutura tais
pretensões de validade se mostra porque elas permeariam qualquer tipo de prática discursiva,
e, em alguns níveis, estão presentes de forma pressuposta no discurso que tem alguma
pretensão.
Assim, a ética do discurso torna-se indissociável das práticas discursivas voltadas ao
consenso e à coordenação da ação, desde que ausentes uma proposta perlocucionárias, isto
é, que a expressão de algo efetivamente tenha o propósito de estabelecer essa pretensão de
validade sobre esse objeto.
E é essa racionalidade comunicativa, que permeará o Direito e a Democracia,
enquanto práticas estruturadas a partir do discurso, e, embora estruturadas de maneira
formal, com regras formais de validade, como se utilizam do discurso, transportam para
dentro de seus sistemas esse efeito ético intrínseco ao discurso com propósito comunicativo.
Assim, tais sistemas possibilitam a construção de consenso e da coordenação da ação,
elementos que ao receber a diversidade de pessoas alocadas em diferentes partes dos
territórios sendo incorporados nos centros de discussão democrática, ainda que após lutas e
reivindicações, se retroalimentam em uma abertura à participação democrática dos grupos
sociais historicamente excluídos.
Essas questões se cruzam e se potencializam no mundo vivido, e a compreensão do
mundo da vida merece um aprofundamento em razão da capacidade de apreensão que tal
categoria traz relativamente aos elementos que influem a questão habitacional, que, à parte
dos sistemas econômico, financeiro, jurídico, ou outros envolvidos, representa elemento
central e existencial para que uma pessoa se desenvolva de forma plena, cultural e
simbolicamente.
338
Já a veracidade diz respeito à enunciação de um determinado estado interno, ao passo que a pretensão de
veracidade veicula que determinado enunciado corresponde efetivamente a esse estado subjetivo. (Cf.
Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 1: Racionalidade da ação e racionalização social, 2016, p. 109).
339
Cf. Dutra, Razão e consenso em Habermas: a teoria discursiva da verdade, da moral, do direito e da
biotecnologia, 2005, p. 53.
127
A democracia sugere que haverá uma comunidade de pessoas diversas, pois envolve
e estimula a convivência da pluralidade de ideias. E o conceito de cidadania guarda estritas
relações com a democracia, tendo em vista que é entendida como a qualidade daquelas
pessoas que estão em uma comunidade e que terão o poder de influir nas decisões, votar e
participar do processo democrático de produção da vontade política.
Ademais, o próprio radical do vocábulo ‘cidadania’ sugere conexão entre habitar a
cidade e exercê-la. E isso é importante de ser ressaltado.
Contudo, a relação entre essas ideias vai além da existência desse radical comum,
afinal, a vida nas cidades, os encontros que a cidade promove faz com que se tome ciência
das necessidades que passa a poder ser vocalizadas, e geram reivindicações que se
organizam.
Sua noção começa a ser formada nas cidades-estados gregas, em que também começa
a surgir uma ideia de democracia, ainda que muito restrita. 340
A ideia da cidadania percorre um longo caminho, mas tem em sua origem a conexão
com a moradia nas cidades. Cidadão(ã), originalmente, é a qualidade daquele(a) que pertence
à cidade.
O conceito se desenvolve de forma bastante ampla com as reivindicações geradas
pelas revoluções burguesas, concepções que se limitam aos proprietários, conforme se
estabiliza o domínio dessa classe social. E dentro desse contexto, surgem visões críticas
marxistas que apontam para a insuficiência da garantia de direitos individuais e
proprietários.341
E em Hanna Arendt também se vê a ideia de que a cidadania está intimamente
conectada com a aquisição de direitos:
O homem do século XX se tomou tão emancipado da natureza como o homem do século XVIII se
emancipou da história. A história e a natureza tornaram-se, ambas, alheias a nós, no sentido de que a
essência do homem já não pode ser compreendida em termos de uma nem de outra. Por outro lado, a
humanidade, que para o século XVIII, na terminologia kantiana, não passava de uma ideia reguladora,
tomou-se hoje de fato inelutável. Esta nova situação, na qual a "humanidade" assumiu de fato um
papel antes atribuído à natureza ou à história, significaria nesse contexto que o direito de ter direitos,
ou o direito de cada indivíduo de pertencer à humanidade, deveria ser garantido pela própria
humanidade.342
340
Cf. Manzini-Covre, O que é cidadania, 2002, p. 18-19.
341
Cf. Manzini-Covre, O que é cidadania, 2002, p. 37-38.
342
Arendt, Origens do totalitarismo, 1989, p. 332.
128
343
Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 19.
344
Cf. Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 9.
345
Cf. Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 17-18.
346
É possível perceber, por exemplo, que até os anos 1950, mais de 50% da população era analfabeta e, nos
anos 1980, à época da promulgação da Constituição cerca de 20% a 25% ainda eram analfabetos,
resultando na supressão de votos de parcela considerável da população por um defeito de educação cujas
consequências são atreladas ao indivíduo que não teve acesso a uma educação (cf. Braga; Mazzeu, O
analfabetismo no brasil: lições da história; 2017.).
129
acesso concreto deles a alguns serviços públicos como a educação, acabava por restringir na
prática o exercício de alguns direitos.
Importante perceber que a própria deficiência educacional que resultou em uma
persistentemente alta taxa de analfabetismo representa, por si só, o ataque a uma das
dimensões existenciais da cidadania, tendo em vista que o próprio acesso ao mundo da leitura
e da comunidade, sendo parcial a sua participação na própria cultura de seu povo.
A supressão da participação política de parcelas da população foi instrumento de
diversos Estados pelo mundo para garantir, mesmo sob a égide de um governo democrático
e com a retórica da inclusão, a segregação de parcelas indesejadas da população.
O pesquisador James Holston anota como essa sistemática se deu, citando exemplos
do caso da França e dos EUA, em que haveria uma distribuição diferenciada de direitos,
segundo diversas estratégias, contrapondo ao caso brasileiro, em que haveria uma cidadania
“universalmente includente e via de regra desigualitária” 347. Ou seja, segundo o autor o
Brasil incluía facilmente todos como cidadãos, porém mantinha na sociedade diferentes
distribuição de direitos.
Nos exemplos citados pelo autor, na França e no EUA não havia inclusão como
cidadãos, mas também havia direitos desiguais. Contudo, na França 348, por exemplo, havia
barreiras à incorporação de parcelas da população como cidadãos, citando o caso de judeus,
ou mesmo estabelecendo critérios práticos que impediam o exercício da participação
política, como critérios de riqueza, gênero e capacidade.
Já os EUA 349 usavam critérios raciais para impedir o acesso a grupos como os
indígenas, os escravizados e os negros livres.
Já no Brasil, houve uma aparente integração de todas as pessoas, independentemente
de raça ou credo na sociedade como cidadãos, contudo isso não resultava em acesso igual a
direitos, diferenciação essa que se solidificará e será reproduzida socialmente, bem como
trará consequências simbólicas, sendo introjetada nas falas e no ideário nacional.
O impacto das restrições práticas à cidadania política, trazendo uma dupla exclusão,
é descrita por James Hoslton:
Assim, a exclusão de massa por meio do analfabetismo de massa também reflete o fracasso do ensino
público como forma de construir um corpo de cidadãos bem informado. Até mesmo indica um motivo
para negligenciar essa forma fundamental de se chegar a uma maior igualdade entre os cidadãos, algo
347
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 64.
348
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 72.
349
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 83.
130
350
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 146.
351
Cf. Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 110.
131
É impossível imaginar uma cidadania concreta que prescinda do componente territorial. Vimos, já,
que o valor do indivíduo depende do lugar em que está e que, desse modo, a igualdade dos cidadãos
supõe, para todos, uma acessibilidade semelhante aos bens e serviços, sem os quais a vida não será
352
Cf. Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 9.
132
353
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 196.
354
Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 59.
355
Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 59.
356
Cf. Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática, 1996, p.
35.
133
traz ao menos a forma democrática ao Estado brasileiro, percebe-se que tem certa limitação
a participação das pessoas na produção e legitimação do governo, pelo voto.
Nesse aspecto, Leonardo Avritzer aponta que a democracia não se limita aos meios
tradicionais, se reproduzindo por meio deles - a exemplo dos partidos políticos, das eleições
periódicas, do exercício do direito ao voto -, mas também por meios mais amplos de
participação política - a exemplo das atividades de entidades, sindicatos, associações e
reprodução da solidariedade social. Assim, a democracia, para Leonardo Avritzer “é
estruturalmente dependente das redes de comunicação existentes na esfera pública”,357
apontando como os debates e a participação da sociedade também são importantes para a
produção do poder.
A participação ativa das pessoas na democracia instaura uma série de potencialidades
e de debates, mas também, de certa forma, produz uma dificuldade de internalizar, dentro da
burocracia estatal, a efetivação da vontade de cidadãos(ãs) mobilizados pela efetividade de
seus direitos.
Desse modo, a questão de habitar uma cidade pressupõe a existência de relações
sociais e comunitárias que evocam a ideia de cidadania e de participação política. E as
reivindicações pelo direito à cidade trazem implícita a ânsia pela participação e pela garantia
de participação e de garantia desses direitos, que também surge nos anseios da população
por garantias de propriedade e de regularização fundiária, por meio da casa própria.
E, diante da percepção da conexão entre tais conceitos, se mostra necessário
aprofundar a compreensão deles, e verificar o incremento da eficácia dos direitos
fundamentais e sua relação com as reivindicações democráticas e lutas políticas, bem como
transformações advindas das conexões estabelecidas pelos debates públicos e pela atuação
política.
357
Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática, 1996, p. 21.
134
358
Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 24.
359
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 151.
360
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 140.
135
361
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 25.
362
A relação entre esses embates que opõe a ideia de ocupação e compra da moradia, e as consequências para
a identidade podem ser vistas em Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da
modernidade no Brasil, 2013, p. 238-239.
136
363
O mundo da vida é conceito habermasiano, que será mais aprofundado adiante, porém diz respeito ao pano
de fundo pressuposto em uma comunicação consensual, de modo que a tecnização ou colonização do
mundo da vida ocorre a partir da expansão de um dos meios de um dos subsistemas, como o dinheiro, por
exemplo, que acaba substituindo e suprimindo a comunicação, influenciando ações coordenadas de forma
não-comunicativa (Cf. Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão funcionalista,
2016, p. 509.).
364
Percebe-se a crítica de Harvey, sintetizada na seguinte citação: “A urbanização nada mais é do que a
incessante produção de um comum urbano (ou sua forma espectral de espaços e bens públicos) e sua eterna
apropriação e destruição por interesses privados” (Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à
revolução urbana, 2014, p. 156).
137
personalidade, sem a qual o homem não se reconhece como distinto, a partir da igualdade entre
todos.365
Com isso, o geógrafo percebe, a possibilidade de modulação da cidadania,
subordinando-a ao mercado faz com que surja uma cidadania mutilada366, pois não há uma
garantia estatal para que haja igualdade entre as pessoas, de forma que haveria categorias
distintas, como os trabalhadores rurais e os urbanos, bem como diante da falta de proteção
das pessoas diante dos poderes econômicos.
Assim, ao retomar a ideia das dicotomias e do “outro” já abordada, pode-se perceber
que, tais divisões trazem consequências para a aplicação do processo democrático, já que
haverá oposição ou divergência de interesses entre os as partes em que se dividiu a sociedade.
Para James Holston, essas sociedades em que há maior desigualdade colocam os
cidadãos em combate e oposição, criando um emaranhado. Nas suas palavras:
O resultado é um emaranhado entre a democracia e seus opositores em que novos tipos de cidadãos
surgem para expandir a cidadania democrática, ao mesmo tempo que novas formas de violência e
exclusão a corroem. 367
A manutenção de diferenças práticas entre os cidadãos, ao mesmo tempo em que
formal e retoricamente se garante uma igualdade, acaba por criar uma disjunção no conceito
de cidadania, de forma que o pesquisador qualifica dois tipos de cidadania que seriam
oriundos desse processo: a cidadania entrincheirada e a insurgente.
De modo bastante sintético, é possível associar o entrincheiramento com a
manutenção do Estado de coisas, com um conservadorismo das divisões sociais como estão
postas, ao passo que a cidadania insurgente representaria exatamente a reivindicação prática
das promessas retóricas por aqueles brasileiros que são considerados legalmente cidadãos,
mas não têm acessos aos direitos e privilégios das elites.
O entrincheiramento e a insurgência se opõem em táticas e interesses, já que as
reivindicações por direitos iguais podem afetar certos privilégios que persistem na sociedade
brasileira.
Nas palavras de Holston, cidadania entrincheirada é:
(...) uma cidadania que administra as diferenças sociais legalizando-as de maneiras que legitimam e
reproduzem a desigualdade. A cidadania brasileira se caracteriza, além disso, pela sobrevivência de
seu regime de privilégios legalizados e desigualdades legitimadas.368
365
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 49.
366
Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 37-39.
367
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 14.
368
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 15.
138
369
Nó da terra é o nome dado pela professora Ermínia Maricato ao problema da terra no brasil, que forma um
emaranhado ou uma trama que envolve as diversas desigualdades sociais, remetendo historicamente à
origem da desigualdade, centralizando nela a origem e o principal entrave à resolução dos problemas de
desigualdade social. (Cf. Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 183. e Cf. Maricato,
Brasil, cidades: Alternativas para a crise urbana, 2013, p. 94).
370
O valor de uso e de troca das mercadorias remete à distinção elaborada por Karl Marx que percebeu nas
mercadorias um caráter duplo, isto é, um que corresponde à sua natureza e remete à sua utilidade e outra
que abstrai dessas características, generalizando um valor de troca, que permite sua comercialização no
mercado e seu pareamento com outras mercadorias de naturezas distintas (Cf. Marx, O capital: crítica da
economia política: livro I: o processo de produção do capital, 2017, ps. 114-115).
139
371
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 106.
140
âmbito oficial da cidade, e, por mais precarizada, ou com um entorno esvaziado de cidade,
por estar inserida nas suas franjas, concede um estado diferenciado a seu detentor perante o
direito.
Essa percepção não advém da hermenêutica das normas civis e constitucionais, para
as quais a dignidade da pessoa humana é reconhecida para todos, e a moradia adequada um
direito fundamental; mas sim da construção histórica das cidades, e do imaginário das
pessoas, percebendo na propriedade o direito que efetivamente possibilita o reconhecimento
e a proteção do Estado, inclusive com o peso de sua violência.
Vista dessa forma, a propriedade, logicamente dispensável para a garantia da
moradia, torna-se condição para a segurança da posse (um dos componentes da moradia
adequada), tendo em vista a distinção de cidadania entre os brasileiros não-proprietários, e a
dificuldade em garantir-lhes direitos. Mais que isso, garantir tais direitos com estabilidade e
perspectiva de perpetuidade.
Assim, após séculos de despejos e de escassez ou supressão de políticas públicas,
com sucessivas ondas de austeridade, a criação de uma política habitacional não consegue
assegurar aos seus destinatários a mesma tranquilidade e segurança de posse advinda de sua
“casa própria”.
A importância dessa segurança é notada inclusive na literatura. A escritora Virgínia
Woolf, ao meditar sobre as razões pelas quais haveria poucas mulheres escritoras
contemporâneas ou do passado no ensaio um teto todo seu, chega à conclusão da centralidade
da moradia, bem como da segurança que a propriedade e a estabilidade desse patrimônio
poderiam permitir, primeiro, alguma tranquilidade e tempo, e de outro, a possibilidade de
exploração de dimensões artísticas do ser, excluindo-se de uma exploração:
372
Wolf, Um teto todo seu, 2022, p. 200.
141
Ocorre que a segurança desse espaço somente tem sido vista em larga escala sob o
manto da propriedade.
Outro aspecto que traz uma maior desejabilidade da propriedade é que a residência
também funciona como uma reserva de valor, uma poupança pertencente à pessoa,
justamente por ter um valor de troca mercantil, que além de possibilitar a moradia, ainda
traz segurança financeira. A casa própria garante segurança, além de habitacional, para outras
dimensões da vida, diante de outras necessidades urgentes.
Dessa forma, diante das eventualidades e riscos da vida, diante das inseguranças
diante do despejo ou urgências alimentares, a casa se mostra como um ponto de estabilidade
ao qual a família pode se ancorar e persistir, ainda que sob o custo da própria moradia, em
casos extremos, reforçando a casa própria como um sonho. Isso mostra como uma residência
de propriedade do morador na periferia, desabastecida de cidade, pode lhe parecer mais
desejável que um aluguel acessível em um local perfeitamente adequado.
O preço do aluguel não é estável, já que o Brasil experimentou hiperinflações, o
emprego também não, já que crises sucessivas fragilizam os direitos trabalhistas, e aos
proprietários são resguardadas ações e céleres despejos, com a previsão de amplos poderes
aos senhorios. A história econômica brasileira tem diversos episódios que demonstram e
reforçam a insegurança, instabilidade e temeridade oriunda da moradia de aluguel.
Assim, a locação ideal que garante a moradia adequada já é afetada pelas sombras
sociais e econômicas das crises vindouras, do desemprego e da mudança forçada para locais
menos adequados, mais apertados. Diante dessa ameaça, a propriedade surge como um ponto
de segurança e, portanto, de tranquilidade para o trabalhador.
E é como auxílio na aquisição da casa própria que o Programa Minha Casa Minha
Vida, que pode ser considerado o maior programa habitacional do País – não obstante ele
não seja imune a críticas, já que o programa tinha objetivo primordial de aquecer e estimular
a economia.
De um lado, a sedução da propriedade a torna desejável aos indivíduos, contudo a
elaboração de uma política pública que efetive, não a moradia, mas uma propriedade para
cada família encontra uma dificuldade operacional imensa, tornando-a lenta e ineficiente
como solução habitacional única e universal para a universalização da moradia.
Seria necessária a existência de diversas políticas públicas conjugadas, não somente
centradas na propriedade, mas com outras que possibilitem diretamente a moradia, sem a
garantia da propriedade, seja por locação ou cessão do uso, o que possibilitaria uma atuação
ágil e de maior expansão com vistas à universalização da moradia. De outro lado, poderia
142
haver políticas públicas que tenham por objetivo melhorar as condições de habitações
precárias, para que fossem alçadas à condição de moradias adequadas.
Ou seja, o enfrentamento do problema poderia receber múltiplas políticas públicas
coordenadas, conforme os graus necessários para incrementar e garantir a moradia
adequada, independentemente da lenta produção de novos imóveis.
Mas a política habitacional pela “casa própria” mantém sua primazia e, dessa forma,
se percebe que a propriedade cria um símbolo de ascensão social, de segurança, mas que de
certa forma também reforça o valor de troca dos imóveis, e se funda justamente na ideia de
que é o indivíduo quem deve cuidar da efetivação de seus direitos fundamentais por meio do
mercado, ou seja, de uma perspectiva individualista e não-reivindicatória dos direitos.
Nabil Bonduki, ao retomar o histórico das habitações dos trabalhadores, percebe que
esse fascínio pela “casa própria” se fortalece durante a era Vargas. A moradia é incluída no
discurso oficial, de forma que a propriedade da casa era o símbolo da valorização do
trabalhador e de seu sucesso, com o amparo governamental. 373
Na mesma época, deve-se recordar, que houve uma política de congelamento dos
aluguéis, o que trouxe como consequência um maior número de despejos e retomada dos
imóveis, inclusive com a utilização de subterfúgios ilegais. Essas consequências trouxeram
uma enorme fragilidade à posse dos locatários na década de 40, com os elevados despejos,
reforçando, também deste ponto de vista, a valorização da casa própria.
Esse sentimento de ascensão social da pessoa que tem sua casa própria é notado por
Nabil Bonduki: “Além de criar a ilusão do progresso econômico, contribuindo para a
estabilidade da ordem macropolítica, a habitação passou a ser considerada fundamento da
constituição moral da sociedade e do bom trabalhador, avesso a desejos e práticas
desviantes”.374
Essa propriedade passa a ter alta carga simbólica e conservadora. Passa, de um lado,
a mensagem de que o trabalho compensa e gera bons frutos, e ainda colocava o trabalhador
no status de proprietário, assim alcançando parcela de sua cidadania. E a associação entre
família e habitação reforçava os valores da família burguesa, cujos valores seriam inviáveis
373
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 83.
374
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 84.
143
375
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 84.
376
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 50.
377
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 163.
378
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 84.
379
Cf. Rodriguez, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 49.
144
reprodução social, com a construção por força própria (autoconstrução), por exemplo.
Pode-se dizer que o desejo pela “casa própria” na verdade oculta o simples desejo
por segurança na garantia dos direitos fundamentais mais básicos, mas projetados na
propriedade, que no Brasil pertence àqueles que sempre tiveram os direitos, passa a ser vista
como uma forma ascensão de classe, e como fuga da insegurança causada pela ausência de
universalização do mínimo existencial, como a síntese da proteção pelo direito.
E mesmo com os vultosos recursos direcionados para o Programa Minha Casa
Minha Vida, por suas próprias limitações, tendo em vista o tempo e o custo de produção de
novos imóveis, não pode ter um atendimento universal, levando à seleção dos beneficiários
em sua menor faixa, de zero a três salários-mínimos, por meio de sorteios e de pagamentos
simbólicos, distribuindo moradias seletivamente.
Essas medidas, embora benéficas para aqueles que receberam o imóvel, não são
capazes de sanar o déficit habitacional, o que acaba por reforçar o desejo pela propriedade
do imóvel, e até mesmo uma passividade diante dessa política pública que segue a conta-
gotas.
O lado nefasto dos sorteios é que um número imenso de pessoas toma contato com a
existência da política pública – gerando a impressão de que o Estado está atuando pela
implementação de direitos fundamentais – com a participação no processo de escolha,
cadastro, com a expectativas a isso inerentes, resultando, ao final, numa pequena
porcentagem de pessoas efetivamente contempladas pelos benefícios decorrentes da política
pública, embora um número bem maior tenha sido comunicada de sua existência e tendo
reforçada o aspecto inexorável de suas situações, pois nem mesmo após acessar os cadastros
política pública habitacional, houve uma melhora na situação de sua moradia.
E é dessa forma que o imaginário da propriedade como segurança da moradia
adequada, ofusca outras formas de política pública, de modo que o desejo da população se
relaciona com as políticas públicas existentes, de regularização fundiária e de construção de
habitações – ambas necessárias, mas insuficientes – de modo que se reforçam mutuamente,
pois tais políticas fortalecem a centralidade da propriedade, trazendo de forma subjacente a
primazia do valor de troca, do imóvel como mercadoria, e alimentam esse desejo nas
pessoas, que têm nesse desejo expectativas mais amplas, mas que acabam sendo limitadas
pela dimensão mercadológica da habitação e dos direitos fundamentais.
Contudo, há outro fenômeno que emerge das políticas habitacionais ou descasos
habitacionais centrados na ocupação por meio de lotes periféricos e programas centrados na
aquisição de propriedades. Emergem símbolos e uma luta que subverte o caráter subalterno
145
Assim, mesmo após observar as válidas críticas à centralização das políticas públicas
em garantia da propriedade, seja pelo Programa Minha Casa, Minha Vida, bem como pela
forma de expansão das cidades, com o espraiamento das cidades, e com o estímulo aos
loteamentos afastados, inclusive com leniência relativamente aos irregulares, é perceptível
um processo emancipatório que emerge dessa política pública reputada até mesmo
conservadora e promovedora do conservadorismo de tornar os trabalhadores em
proprietários.
Essa passagem também insere a pessoa no sistema de direitos, pois para muitos
proletários, o terreno adquirido com dificuldades, o apartamento do Programa Minha Casa,
Minha Vida, representa um momento em que tais pessoas são encaradas pelo sistema jurídico
como portadores de direitos, que podem reivindicá-lo e passar a ter acesso ao sistema
jurídico.
Como já se abordou, a cisão existente na sociedade brasileira, que atravessa a renda,
o patrimônio, tem matiz racial, se revela no território; é comunicada ao sistema jurídico, que
a incorpora como uma diferenciação entre acesso a direitos e à justiça, criando uma
separação absoluta que vai atravessando as diversas dimensões existenciais e sistêmicas da
sociedade.
Essa separação cria a elite, entrincheirada dos lados privilegiados dos diversos
sistemas, portadora dos direitos e protegida pela violência estatal. Elite historicamente
formada pelos proprietários de terras.
Em um país como o Brasil, em que o direito à propriedade foi juridicamente separado
da posse, limitando380 a aquisição da propriedade, percebe-se a relevância histórica desse
estado de proprietário. A artificialidade dessa restrição jurídica é sintetizada por James
Holston: “depois de três séculos de colonização, o Brasil era uma terra sem povo e um povo
sem terra”.381
Assim, a propriedade do lote da residência do trabalhador, embora não o aproxime
380
Conforme já se explorou no capítulo 2.1.2, em que se realiza análise sobre a Lei de Terras de 1850, e as
técnicas de exclusão de negros e indígenas do direito à propriedade.
381
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 168.
146
da elite, em uma análise material, traz o imaginário de pertencer à classe brasileira que tem
seus direitos respeitados. Muitos, pela primeira vez, terão contato com a previsão de direitos
a partir dos direitos trabalhistas, conquistados na Era Vargas. E, subsequentemente, com a
aquisição desses lotes periféricos e, muitas vezes, informais. Assim, ressalvado o caráter
regressivo desse tipo de política pública e até mesmo prejudicial ao desenvolvimento da
cidade, tem-se uma situação inédita: os despossuídos, os trabalhadores explorados têm uma
propriedade, e a expectativa de proteção estatal, o que se difunde em esperanças de atravessar
o abismo, sendo recebido como cidadão.
Embora seja verdadeiro que a casa na periferia nunca foi concedida aos brasileiros,
mas sempre adquirida com parcelas significativas do trabalho, dificuldades e utilização dos
tempos de folga para a realização das obras de autoconstrução, o que se pode identificar
como um sobretrabalho, ou sobre-exploração, tendo em vista que uma necessidade básica
do trabalhador não é comportada em seu salário, mas imposta a ele ao custo de seu descanso.
Todavia, tal trabalho que resulta em uma melhoria de vida gera um empoderamento
no indivíduo, que, ainda que sob um viés ideológico conservador e individualista, pois
seguindo as regras do mercado, pagou o preço de sua propriedade, legitimando-o como
reivindicante de direitos, dos serviços necessários ao entorno, como asfalto, ligação de água
e luz, e a regularização.
Assim, em uma sociedade em que a perspectiva individualista predomina, o fato de
trabalhadores serem tangenciados pelos direitos opera com capacidade de emancipação e de
enfrentamento político, que pode culminar em organização e lutas sociais. Não se trata de
um caminho necessário ou natural, mas possível.
A relação virtuosa com a propriedade é percebida por James Holston, verificando que
da propriedade surge uma legitimidade civil, ao passo que a negação da propriedade a
impediria382, vendo nessa relação a possibilidade de reconhecimento intersubjetivo do outro
como um igual. Em suas palavras:
Dessa forma, os que detêm propriedades reconhecem uns aos outros como pessoas que lutam através
do mesmo processo de autorrealização. Eles respeitam os direitos de propriedade dos outros porque
desejam o mesmo respeito em retorno. Como resultado desse reconhecimento e respeito mútuos,
consideram uns aos outros como iguais.383
Se a pessoa que adquire a propriedade teria uma tendência a se alinhar ao
382
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 161.
383
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 162.
147
384
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 217.
148
385
Melo Neto, Morte e vida severina, 2007, p. 108.
149
386
Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 64.
150
387
Cf. Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão funcionalista, 2016, p. 509.
151
388
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 233.
152
389
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 18.
390
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 56.
391
Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 81.
392
Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão funcionalista, 2016, p. 509.
153
dos elementos do mundo da vida, já que a coordenação das ações será mediada pelo dinheiro,
por exemplo. Isso, de forma desmedida, segundo o autor possibilitaria a tecnização do
mundo da vida.
Nas palavras de Habermas sobre como funciona tal conceito, a partir do
deslocamento do mundo da vida para os entornos do sistema, reduzindo a esfera
comunicativa:
A teoria do valor, ao adotar a ideia da troca entre equivalentes, mantém apenas um ponto de vista
formal de justiça distributiva, o qual permite julgar a subsunção da força do trabalho sob a forma da
mercadoria. A transformação da “força do trabalho concreta” em trabalho abstrato” faz com que o
conceito de alienação perca sua determinabilidade, pois agora ele já não se refere aos desvios em
relação ao modelo de uma prática exemplar, mas à instrumentalização de uma vida representada como
um fim em si mesmo394
Essa visão, embora antecipe a redução da esfera existencial, tomada pela
transformação da força de trabalho em mercadoria, teria sido formada ao analisar as
condições de vida da classe proletária, criticando, contudo, a limitação da análise de
Marx:
“Marx utiliza esse conceito para a crítica das condições de vida que surgiram em decorrência da
proletarização dos artesãos, dos camponeses e dos plebeus rurais durante a modernização capitalista.
Entretanto, ao analisar o desenraizamento repressivo de formas de vida tradicionais, ele não distingue
entre reificação e a diferenciação estrutural do mundo da vida – pois o conceito de alienação não
possui a necessária força discriminadora.”
A partir desse diagnóstico, Habermas propõe uma análise mais minuciosa, que
393
Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão funcionalista, 2016, p. 509.
394
Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão funcionalista, 2016, p. 614.
154
forneça soluções satisfatórias de análise do capitalismo tardio, com uma explicação que vá
além do economicismo.
Assim, parte-se da análise dos subsistemas “economia” e “Estado”, mediados pelo
dinheiro e pelo poder, os quais, por sua vez, podem ser mediados pelo direito, como um meio
mais complexo que os abrange.
Uma vez estabelecida uma percepção da sociedade calcada nessa identificação de
sistemas e do mundo da vida, Habermas elabora a tese de colonização do mundo da vida:
A tese da colonização interna afirma que os subsistemas “economia” e Estado se tornam cada vez
mais complexos em decorrência do crescimento capitalista, introduzindo-se cada vez mais
profundamente na reprodução simbólica do mundo da vida.
(...)
Quanto mais o lazer, a cultura, o turismo e a cura são atingidos pelas leis da economia apoiada na
mercadoria e pelas definições do consumo de massa, quanto mais as estruturas da família burguesa se
adaptam aos imperativos do sistema de empregos e quanto mais a escola assume concretamente a
função de distribuir chances de vida e oportunidades profissionais, tanto mais as tendências de
juridificação de esferas do mundo da vida, reguladas informalmente, impõe-se em amplas frentes.395
Nas palavras de Antônio Cavalcanti Maia, o mundo da vida tem aspecto central em
sua definição e compreensão da sociedade:
No mundo da vida, por meio do agir comunicativo, ocorrem processos de reprodução fundamentais à
subsistência da espécie humana. Nele, funcionam aqueles domínios sociais especializados na
transmissão de valores e do saber cultural, na integração social, bem como na socialização de novos
membros da sociedade. O mundo da vida reproduz-se na medida em que cumpre três funções que
transcendem a perspectiva dos atores sociais: a propagação de tradições orais, a integração dos
diversos grupos componentes do todo social mediante normas e valores e a socialização das gerações
vindouras.396
Dessa forma, a tecnização do mundo da vida, que ocorre com a expansão desmedida
dos meios de alguns subsistemas, o que faz com que o mundo da vida tenha sua compreensão
reduzida à ótica daquele subsistema. Há um achatamento da compreensão e das dimensões
complexas, múltiplas e existenciais que compõe o mundo da vida.
Com isso, as possibilidades de consenso e de diálogo também são interrompidas, já
que o mundo da vida é pressuposto397 do entendimento, e, estando ele retalhado e reduzido
em sua compreensão, de igual forma, a racionalidade e os meios daquele subsistema terão
395
Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão funcionalista, 2016, p. 661.
396
Maia, Jürgen Habermas: filósofo do direito, 2008, p. 165.
397
As pretensões de validade inseridas nos atos de fala, que podem ser de verdade, normativas ou de veracidade
relativamente a um estado interno do emissor, têm referência ou por pressuposto um determinado
componente do mundo da vida, isto é, o mundo objetivo, o subjetivo e o social, que formam uma moldura
à qual as falas farão referências, interpretações e definições. (Cf. Habermas, Teoria do Agir comunicativo,
2: Sobre a crítica da razão funcionalista, 2016, p. 221.)
155
398
Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão funcionalista, 2016, p. 228.
399
Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 18.
400
Cf. Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão funcionalista, 2016, p. 248.
156
A cultura, forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o universo, é uma herança, mas também
um reaprendizado das relações profundas entre o homem e o seu meio, um resultado obtido por
intermédio do próprio processo de viver. (...) a cultura é o que nos dá a consciência de pertencer a um
grupo.402
Essa constatação gera uma outra, de que as mudanças e migrações têm a capacidade
de desorganizar esse espaço de vivência com tamanha significação simbólica. Essa
desarticulação geraria um terreno favorável à alienação e à individualidade.
Essa perspectiva simbólica também aparece em Habermas, que enxerga como forma
de manifestação da narrativa, que “constitui uma forma especializada de fala constatativa,
que serve à descrição de eventos socioculturais e objetos”.403 É possível, portanto, notar que
a narrativa, que cria uma conexão simbólica 404 entre o indivíduo, o espaço e a comunidade,
criando uma história perfaz esse cotidiano, possibilitando a história de sua vida, o
pertencimento a grupos sociais.
Com isso, é possível perceber que, ao relembrar a forma como a população e as
periferias das cidades explodiram, sem um devido cuidado de construir um entorno e com
que a cidade alcançasse adequadamente esses novos bairros, ou ainda verificando que a
precariedade em que se vive, percebe-se que, além das violações dos direitos, tem-se
rupturas simbólicas, as quais incrementam a alienação.
Ao se forçar uma desterritorialização também ocorre uma desculturização, que
401
Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 80.
402
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 81.
403
Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão funcionalista, 2016, p. 249.
404
O mundo da vida permite a reprodução das estruturas simbólicas, possibilitando a construção de um saber
– cultura –, criam a solidariedade social – sociedade –, e dão significado às representações de si, formando
os atores sociais – pessoa. (Cf. Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão
funcionalista, 2016, p. 252).
157
encarna uma espécie de violência. Assim, ao haver migrações ocorre o abandono de certa
cultura.
Contudo, esse estado não se mantém, pois uma nova cultura se apresenta.
Para Milton Santos, o processo é dinâmico, e o mesmo elemento que traz a
desorganização, também potencializa o nascimento de outras consciências, e de outra
cultura. A alienação poderia ser substituída pela integração do ser. As trocas possibilitadas
pelo novo entorno, embora desconectem, possibilitam outras trocas:
Quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja
memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa alienação. Mas o homem, um ser dotado
de sensibilidade, busca reaprender o que nunca lhe foi ensinado, e vai pouco a pouco substituindo a
sua ignorância do entorno pelo conhecimento, ainda que fragmentário. O entorno vivido é lugar de
uma troca, matriz de um processo intelectual.405
Assim, ainda que as migrações para as cidades, em busca de condições de vida, que
forçam uma ruptura cultural, e um fechamento, também estabelecem a possibilidade de
tensão diante da necessidade de recorrer ao direito à cidade.
Ocorre a possibilidade de mudança e de transformação, já que “Sua relação com o
novo morador se manifesta dialeticamente como territorialidade nova e cultura nova, que
interferem reciprocamente, mudando-se paralelamente territorialidade e cultura, e mudando
o homem”.406
É na cidade, que possibilita uma vida com mais intersecções e pluralidades culturais,
que uma miríade de indivíduos traz suas culturas fragmentadas pelo deslocamento,
possibilitando a construção de um novo mosaico por essas trocas. Assim, existe um cerne
que pode produzir a autonomia e a emancipação.
Milton Santos percebe que nas cidades e nas grandes aglomerações há incentivo para
a proliferação da integração por meio do consumo alienante e da cultura de massas, contudo
é através desses encontros que se poderia aumentar a consciência, com um outro tipo de
cultura, concluindo que “É por isso que as cidades abrigam ao mesmo tempo uma cultura de
massas e uma cultura popular, que colaboram e se atritam, interferem e se excluem, somam-
se e se subtraem, num jogo dialético sem fim”.407
O geógrafo ainda tece críticas à integração social pelo consumo, apontando que essa
característica, assim como o clientelismo, o populismo, impedem a autêntica representação,
405
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 81.
406
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 83.
407
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 86.
158
A autoconstrução nas periferias foi uma saída permitida para garantir a moradia do
trabalhador, mas foi praticamente imposta, dada a ausência de alternativas para satisfazer a
necessidade habitacional. Todavia, a sua realização, embora exigisse demasiados esforços,
trouxe, além da melhoria de vida, potenciais de reconexão da pessoa com o território,
participando da produção do espaço, esvaziado de um aspecto meramente mercantil.
A autoconstrução foi essencial à produção e expansão das cidades brasileiras. E já se
apresentou as críticas a esse modelo imposto aos trabalhadores, com viés ideológico
individualista, pois coloca no indivíduo a responsabilidade e a culpa pela efetivação ou não
de seu direito, no que se percebe uma exploração acumulada à do trabalho e a negação de
espaços de vida para a família, o lazer e a contemplação.
Entretanto, James Holston percebe nessa função agência e protagonismo nos
indivíduos, os quais, mesmo despojados de seu tempo de lazer passam a trabalhar e produzir
o espaço em que vivem, gerando, portanto, resultados paradoxais.
Nas palavras do autor, “A autoconstrução é o atributo-chave desse padrão, pois
renova os outros na sua realização e os articula ao impulsionar a expansão periférica. Mas
também gera resultados paradoxais, na medida em que tanto perpetua como transforma a
segregação urbana”.410
Isso vai fazendo emergir uma outra consequência da autoconstrução. A capacidade
de o trabalhador também ser um agente de produção da cidade, com suas próprias mãos, às
vezes em mutirões em conjunto com outros vizinhos em situação similar. Uma força de
expansão da cidade e de desequilíbrio da dinâmica entre centro e periferia, a partir das forças,
408
Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 95-96.
409
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 103.
410
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 230.
159
escolhas e trabalho do indivíduo até então subalterno das forças que atuavam na cidade.
A arquitetura das periferias exibiria essa complexidade social, como evidencia a
renda e o acesso a materiais de seus ocupantes, revelando preferências e suas identidades 411.
O entorno da autoconstrução recebe uma participação muito forte dos moradores, e mostra
um potencial emancipatório, pois coloca o agente em contato direto com o seu mundo,
anunciando uma desalienação, já que restará clara a conexão do trabalho e do resultado desse
trabalho.
Isso permite uma abertura que demonstra a conexão entre o trabalho e o entorno,
possibilitando ao trabalhador um contato com seu mundo412, possibilitando que veja além de
sistemas parciais que limitam sua percepção e as relações de conexão entre os sistemas.
Percebe-se uma atuação direta do indivíduo, transformando e recriando o mundo da vida,
transmutando seu estado de excluído em cidadão.
411
A arquitetura das periferias e a sua relação com os ocupantes, e como forma de afirmação dos seus moradores
são temas abordados por James Holston. (Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e
da modernidade no Brasil, 2013, p. 233).
412
O contato com o mundo, com a complexidade tem um potencial emancipador, de estimular a educação do
ser humano. Nas palavras de Paulo Freire: “A educação como prática da liberdade, ao contrário naquela
que é prática da dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo,
assim também na negação do mundo como uma realidade ausente dos homens” (Freire, Pedagogia do
Oprimido, 1987, p.40).
160
conformação social.
A reprodução da vida nas cidades, isto é, as necessidades ligadas à sobrevivência, os
direitos mais básicos à alimentação, saúde, educação e moradia, tem sua satisfação
hierarquizada nas sociedades brasileiras, tendo em consideração a desigualdade e as
carências que atingem a população, conforme diferentes graus e hierarquias.
A produção e a distribuição das cidades no Brasil seguem a distribuição de recursos
da população, concedendo centralidade e melhor acesso aos serviços públicos àqueles que
têm moradias mais bem localizadas. Com isso, a desigualdade acaba se inscrevendo também
nos territórios urbanos e nas habitações.
Assim, o direito de moradia, e tantos outros relacionados à reprodução da vida social,
deixa de ser algo universal na sociedade brasileira, submetendo-se à distribuição das
riquezas, tornando-se um bem que somente poderá ser alcançado pelo indivíduo, por meio
de seu salário, submetido ao sistema econômico.
Embora a própria Constituição Federal de 1988 tenha previsto diversos direitos
sociais, não se pode esquecer de afirmar que estabeleceu que o salário-mínimo deveria
garantir as necessidades básicas do trabalhador, e, conquanto tenha instituído diversos
princípios a ordenar a ordem econômica, subordinou a subsistência ao trabalho.
Alguns problemas surgem diante dessa estruturação social, como por exemplo a
incapacidade de fazer com que o salário-mínimo consiga garantir efetivamente todos os
gastos elencados como necessários, dentre os quais se destaca a habitação, pelo seu vulto,
centralidade e essencialidade.
Com a insuficiência do salário para a garantia de direitos básicos, torna-se
imprescindível que tais direitos fundamentais fossem satisfeitos ou garantidos por outras
vias, ou mesmo pela prestação estatal direta, na esteira da garantia do mínimo existencial.
Ao analisar a questão das moradias se percebe que muitas vezes ela é solucionada
pelas camadas mais pobres de forma paralela ao mercado formal imobiliário, isto é, por meio
de ocupações de áreas de risco ou irregular e pelas autoconstruções.
Com isso, percebe-se que, por meio do mercado formal e do salário, grandes parcelas
da população ficam excluídas, e por meio de esforços próprios e das ocupações, as moradias
dificilmente atingirão os padrões mínimos de qualidade e de localização necessários para
que sejam minimamente adequadas para garantir plenamente o direito à moradia.
Com essa tensão, se percebe como a exploração da moradia como mercadoria,
embora consiga distribuir moradias adequadas para uma parcela da população, o faz com a
exclusão de outra grande parcela. E, ao fazer isso, a utiliza como parâmetro de valorização
161
daqueles outros imóveis formais. Isto é, se fabrica a escassez de moradia, fazendo com que
a própria garantia do direito esteja sob risco e se torne uma pressão sobre o(a) trabalhador(a),
que não poderá garantir sua subsistência e direitos básicos caso não se submeta à lógica de
mercado e às suas regras.
Na verdade, a criação dessa escassez de moradia passou pela atividade estatal, de
separar os trabalhadores de seus meios próprios de reprodução social com dignidade, nas
palavras de Rafael Lessa Vieira de Sá Menezes: “o ordenamento jurídico, visto como um
todo, tem cuidado de manter o despojamento do trabalhador”.413
Esse despojamento se dá, ora pelas proteções da propriedade, mesmo diante da
possibilidade de o direito de moradia ser vulnerado, mas também, historicamente, ocorreu
desde a publicação da Lei de Terras, em 1850, em que se limitava o acesso dos trabalhadores
e dos imigrantes à propriedade da terra, forçando-os a trabalhar em terras alheias.
Essa visão da propriedade e dos imóveis prestigia seus valores de troca, inserindo-os
em uma lógica de mercado e de acumulação.
E é essa perspectiva que é validada e reforçada pelo ordenamento jurídico, não
obstante declare a imprescindibilidade dos direitos sociais, pois a proteção da propriedade
ainda prevalece sobre a moradia dentro da cultura jurídica e das decisões dos Tribunais.
E a habitação representa justamente o valor de uso de um imóvel, isto é, o valor
retirado da utilidade daquele bem. Prestigiar o valor de troca vulnera a ideia de uma função
social da propriedade, pois faz prevalecer o lucro diante da garantia de efetivação ou de
defesa de um direito fundamental.
As formas ao mercado alternativas de garantia da moradia, e o próprio viver nas
cidades tem a capacidade de restaurar o valor de uso do imóvel, pelas atividades cotidianas
das pessoas, pela retomada dos potenciais de desalienação, e pelas lutas dos movimentos
sociais. Práticas de forte conexão simbólica do indivíduo com seu entorno, seja fabricando-
o com seus esforços, ou criando um espaço de comunicação em que se une aos pares,
vinculando-se ao território.
Cita-se que Milton Santos percebe que a superação da moradia como mera
mercadoria encontra um potencial de incremento da cidadania. Nas suas palavras:
413
Menezes, Crítica do direito à moradia e das políticas habitacionais, 2017, p. 58.
162
(...) o comum não deve ser entendido como um tipo específico de coisa, de ativo ou mesmo de processo
social, mas como uma relação social instável e maleável entre determinado grupo social autodefinido
e os aspectos já existentes ou ainda por criar do meio social e/ou físico, considerada crucial para sua
vida e subsistência.416
Comuns são aqueles bens que não estão sujeitados à propriedade, são comunais, mas
muitas vezes são objetos de cercamentos pelo capital, que pretende extrair deles renda de
monopólio. Assim, muitas vezes o cotidiano de uma localidade pode criar uma atmosfera
interessante e estimulante, a qual pode ser destruída pela prática predatória de agentes
imobiliários, financistas ou consumidores de classes altas. 417
Esses comuns urbanos também podem ser apropriados por meio das valorizações dos
imóveis, aumento dos aluguéis ou exploração turística. Mas, a apropriação desse comum
urbano pelo mercado pode destruir suas qualidades, e, com isso, fazer desaparecer esse
caráter coletivo, de forma que o comum produzido por toda uma comunidade urbana acaba
414
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 161.
415
Cf. Harvey, Cidades rebeldes: Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 142.
416
Harvey, Cidades rebeldes: do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 145.
417
Cf. Harvey, Cidades rebeldes: do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 153.
163
por ser apropriado por poucos agentes. Segundo David Harvey, “A urbanização capitalista
tende perpetuamente a destruir a cidade como um comum social, político e habitável”.418
E, tais cercamentos, reforçam, segundo Leonardo Avritzer, a ideia do indivíduo e do
egoísmo da busca de seu interesse individual, que é um protótipo que surge justamente a
partir de uma sociedade controlada pelo princípio de mercado, o que se fortalece com a
desorganização de formas coletivas de vida e com a diminuição do controle que o indivíduo
tem sobre sua própria vida cotidiana.419
Milton Santos também traça críticas semelhantes à privatização dos bens públicos,
de direitos como saúde e educação, subordinando-os ao mercado e ao consumo, gerando
apropriação das múltiplas dimensões humanas por uma visão que as simplifica sob a lente
da economia, gerando desculturização420.
Em sentido diverso, a construção de sua própria habitação, o reivindicar o direito à
cidade, com a distribuição entre todos os cidadãos da capacidade de interferir nas decisões
relativas aos processos de urbanização tem a capacidade de interferir na tensão que ocorre
entre o valor de uso e de troca dos imóveis, revelando um potencial de redistribuição e de
trazer e valorizar aspectos existenciais do sujeito, e não somente sua capacidade de ser útil
ou de produzir valor para a economia e para as trocas, chamando sua atenção ao mundo da
vida, revitalizando-o, fazendo com que se perceba que a experiência e os meios do sistema
econômico não conseguem universalizar as comunicações da vida.
Nesse sentido, Ailton Krenak, faz uma crítica à acumulação capitalista desmedida,
que desconsidera a conexão das pessoas com a natureza, ou melhor dizendo, que
erroneamente enxerga os humanos como separados da natureza. Ademais, reforça como os
aspectos da existência e dos seres que não podem ser apreendidos pelas lógicas de mercado:
“A vida é esse atravessamento do organismo vivo do planeta numa dimensão imaterial. (...)
A vida que a gente banalizou, que as pessoas nem sabem o que é e pensam que é só uma
palavra. (...) Vida é transcendência”.421
418
Harvey, Cidades rebeldes: do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 156.
419
Cf. Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática, 1996, p.
87.
420
Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 125.
421
Krenak, A vida não é útil, 2020, p. 28-29.
164
atuação das pessoas, e a coordenação de suas ações, revela como a valorização e o olhar
sobre o espaço vivido mostram um grande potencial de desenvolvimento democrático.
E isso justamente porque o mesmo local onde se efetivou uma segregação severa dos
cidadãos, empurrando enormes contingentes populacionais para as periferias, sem cidade,
sem entorno, também é o espaço em que essas pessoas viverão suas vidas, construirão um
entorno e enriquecerão material e simbolicamente o espaço, com o passar do tempo, e com
o aperfeiçoamento de suas reivindicações.
Assim, o trabalho e a vida cotidiana transformam e impõem dinamicidade a esse
espaço, fabricando um entorno novo, ao associar o tempo.
Essa nova vida não fica restrita aos limites e traçados periféricos. Ela grita por mais
cidade, pela satisfação das carências, por direitos.
Um dos potenciais que se percebe nas cidades é a proliferação de diferentes
movimentos sociais e reivindicações coletivas, organizados ou não.
A vida nas cidades, a percepção de suas carências e necessidades, mas também as
trocas que promove, estimula esses contatos e enriquece os ambientes com diversas
possibilidades.
Tais medidas sinalizam que aquele indivíduo, reduzido à sua força de trabalho sugada
economicamente, tendo sua moradia também restrita a uma mercadoria, pode se entender
pertencente a uma comunidade. Através de um âmbito comunicativo com o seu entorno,
social e material, promove-se uma reconexão desse indivíduo, que se percebe social, e se
percebe como habitante citadino, legitimamente empoderado com direitos.
Essas práticas abrem o mundo da vida à confecção dos significados e símbolos,
resgatando a multiplicidade e polivalência da vida, do viver e da reprodução das condições
da vida, através do cotidiano vivido, expandindo as interpretações dos fenômenos, para além
dos critérios econômicos. E, principalmente, além desses princípios econômicos, produz-se
uma ação social que transforma o entorno, na verdade até mesmo cria um mundo e nele
inscreve a história, a cultura e os valores daqueles cidadãos.
Não se trata de uma retórica otimista. Tais sinalizações ou percepções não solapam
ou apagam as dificuldades oriundas da escassez, da ausência de moradia adequada e da
percepção de que a vida periférica recebe menos investimentos estatais, é menos valorada,
no que se notam indicadores sociais mais frágeis.
Contudo, tal escassez não se mostra árida e infértil. Trata-se de apontar que há
contradições nesse processo, e dessa escassez e das carências, há produção de conexões
intersubjetivas que permitem a ação conjunta para além do meio dinheiro, além do
165
422
Campilongo, Interpretação do direito e movimentos sociais, 2012, p. 19.
423
Campilongo, Interpretação do direito e movimentos sociais, 2012, p. 42.
166
424
Cf. Campilongo, Interpretação do direito e movimentos sociais, 2012, p. 52.
425
Campilongo, Interpretação do direito e movimentos sociais, 2012, p. 52.
167
426
Cf. Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 111.
427
Os pensamentos sobre a influência da imobilidade como fator de agravamento das divisões sociais podem
ser encontrados na obra de Milton Santos. (Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 114-116).
168
428
Cf. Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 111.
429
Cf. Maricato, É a questão urbana, estúpido!, 2013, p. 19-26.
430
Para observar uma análise sobre os aspectos simbólicos e semióticos que permearam os discursos e falas
relativamente a esse fenômeno, observar a pesquisa de Hellem da Silva Espíndola. (Cf. Espíndola, Quem
pode “dar um rolé” no shopping, 2017)
169
Chama a atenção a ânsia de inserção dos jovens, ao escolher locais socialmente tidos
como valorizados, embora tais escolhas também se induzam pela ausência de espaços
próprios de lazer próximos às localidades em que habitam. Também chama a atenção que
tais centros comerciais sejam identificados como espaços de lazer, de forma que este acaba
se confundindo com a ideia e com a possibilidade de consumo.
Assim, parece transparecer nesses encontros uma prevalência de uma ideologia que
associa o pertencer ao consumir, pois os jovens tinham o propósito ao menos de alcançar o
espalho em que tais vendas se realizassem, mesmo sem poder efetivamente consumir. De
outro lado, a histeria causada nos lojistas, frequentadores dos shoppings e até mesmo na
justiça, é extremamente profícua em demonstrar que a segregação de parte da população é
palpável. Mesmo com frágil respaldo jurídico, o Poder Judiciário concedeu liminares e
autorização para vetar o acesso a esses espaços àqueles que não deveriam frequentá-los.
Assim, também se evidencia que a cidadania e a garantia de direitos fundamentais
ficam em segundo plano, diante da necessidade de garantir as imposições de segregação
espacial historicamente construídas.
Esses jovens em movimento, que se organizam para buscar lazer e um consumo, ao
menos de exposição aos produtos dos shopping centers, representa bem a ideia da associação
difusa existente na sociedade entre o consumo e o viver, e o lazer, representando até mesmo
um aspecto de cidadania.
E, nessa ocasião, o consumo desses espaços lhes foi vetado pelo Poder Judiciário,
com decisões sem uma fundamentação juridicamente consistente, trazendo implícita a
barreira inscrita na cidade, de que aquelas pessoas não pertencem àquele centro de consumo,
justificando que fossem barrados.
Ressalta-se o aspecto simbólico desses jovens periféricos ocupando um espaço que
lhes é negado. Se tais práticas subvertem a segregação racial e espacial, apenas em alguns
momentos, com os corpos em locais em que cotidianamente não podem frequentar,
rapidamente há uma organização dos interesses e de forças dos comerciantes e do Estado
com o intuito de recolocar as barreiras, expulsando os jovens daquele espaço.
Esses múltiplos resultados simbólicos são citados pela pesquisadora Hellen da Silva
Espíndola, que aponta que as disputas do espaço também são semióticas, abarcando os
sentidos, reproduzindo em todos os territórios as lógicas da cidade segregada. Em suas
palavras, são “vetos geralmente impostos a uma parte da população que não está de acordo
com os ideais modernos da cidade. Trata-se de um grupo que deveria ser escondido e
170
431
Cf. Espíndola, Quem pode “dar um rolé” no shopping, 2017, p. 181.
432
É possível citar como exemplo a ação promovida pelo Shopping JK Iguatemi, que não teve contraditório, e
culminou com a proibição de evento organizado para ocorrer naquele estabelecimento. O processo foi
registrado com o N.º 1001597-90.2014.8.26.0100. A ação foi proposta contra o “Movimento Rolezaum”,
que não foi citado. A ação invoca o Estatuto da Criança e do Adolescente para defender que os jovens não
poderiam estar presentes no local desacompanhados. A decisão cita abusos de outros movimentos e proíbe
a realização de manifestações no Shopping. De posse dessa decisão, impede-se o ingresso de jovens
periféricos, sem que tenham sido partes do processo.
Pode-se citar também o caso do Condomínio Shopping Center, em que houve revogação da medida que
impedia que os jovens efetuassem o rolezinho naquele local, justificando exatamente no propósito pacífico
e nas liberdades públicas, das quais também são integrantes os jovens, conforme o processo com N.º
2077642-93.2015.8.26.0000.
171
décadas de expansão das cidades, crescendo ao passo e que em que se construíram os espaços
periféricos.
A realização de severas críticas, observando as precariedades existentes na injusta
distribuição e crescimento das cidades não impede, de outro lado, que os locais em que as
pessoas vivem, o espaço vivido seja produtivo culturalmente, comunicativamente. Até
mesmo pode-se perceber que as carências e necessidades se travestem em desejos e
movimentam a ação das pessoas.
Esse mundo vivido, do qual retiramos os elementos conceituais para trazer a ideia de
mundo da vida cotidiano, gerou a suposição de que haveria um incremento da cidadania,
uma maior participação democrática, sua expansão, e de maior efetividade dos direitos
fundamentais.
Diante desses elementos, observou-se exemplos de explosões reivindicatórias, que
pela própria espontaneidade e desorganização, também se mostraram passageiras e pontuais,
embora ricas em significados simbólicos e consequências, inclusive com a produção de
debates.
Assim, retoma-se algumas experiências narradas pelo pesquisador James Holston na
obra cidadania insurgente, para perceber como foram produtivos as periferias e seus
habitantes, bem como as consequências políticas que emergiram dessa ocupação, que se
inicia precária, mas se transforma.
James Holston analisa a implementação, transformação e movimentação política
envolvendo o loteamento Jardim das Camélias, como demonstrativo desse crescimento de
São Paulo, observando a evolução desse loteamento e de seus ocupantes nas últimas décadas.
A periferia, embora possa ser definida em contraste com o centro de poder, no Brasil,
se caracteriza por uma ambiguidade regulamentar. Isto é, o ordenamento jurídico que a
permeia é de baixa intensidade, havendo uma sobreposição com outros poderes, havendo
uma sobreposição de legalidades e de ilegalidades.
Tal circunstância é citada pela urbanista Raquel Rolnik, para a formação do conceito
de transitoriedade permanente433, que submete certos territórios a uma regulamentação
fraca, que tolera desvios e de forma insegura às vezes remove à força.
433
“zonas de indeterminação entre legal/ilegal, planejado/não planejado, formal/informal, dentro/fora do
mercado, presença/ausência do Estado. tais em determinações são os mecanismos por meio dos quais se
constrói a situação de permanente transitoriedade, a existência de um vasto território de reserva capaz
de ser capturado ‘no momento certo’” (Rolnik, Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia
na era das finanças, 2015, p. 174.)
172
Dessa forma, a legislação fundiária promove conflitos, não resoluções, porque estabelece os termos
pelos quais as transgressões serão seguramente legalizadas. Por isso é um instrumento de desordem
calculada por meio da qual práticas ilegais produzem as leis e soluções extralegais são introduzidas
clandestinamente no processo judicial.434
Primeiro haveria ocupações ilegais, e depois a legalização dessas localidades.
E o Jardim das Camélias confirma essas impressões e observações. A ocupação desse
loteamento se deu inicialmente por meio de manobras ilícitas. Cerca de 207 famílias foram
enganadas e adquiriram lotes, por volta de 1969, que foram vendidos de forma fraudulenta
pela empresa Adis Administração de Bens S.A. que vendeu os lotes sem ter registrada a
propriedade da terra, não tinha seu projeto de loteamento aprovado pelas autoridades
competentes.
Contudo, nesse ínterim outras pessoas passaram a reivindicar aquelas terras (que já
tinham sido vendidas e estavam sendo ocupadas pelas famílias), o espólio de Nadime Miguel
Ackel. Tal pessoa já tinha até mesmo um projeto de loteamento aprovado para a área, em
1924, tendo até mesmo já vendido alguns lotes.
As reivindicações435 e disputas pelo território remontam ao início do século XX e
final do século XIX, envolvendo até mesmo a indefinição das terras devolutas, possibilitando
que a União e o Estado de São Paulo também oferecesse pretensões para emaranhar a
disputa.
À parte dessas disputas, muitas pessoas adquiriram lotes, os quais, do ponto de vista
desses adquirentes, resultavam de uma transação legítima, que somente foi possível diante
da tolerância estatal diante das fraudes e da baixa densidade de presença dos direitos, da
cidade e da regulação produtiva nas periferias.
O resultado é que centenas de famílias, mesmo com o intuito de garantir formalmente
seu direito habitacional por meio do mercado, seja pelas condições financeiras que não lhes
permitiam a compra de lotes melhor localizados, ou ainda pela falta de conhecimentos
jurídicos específicos para certificar a legitimidade das vendas, agravando a precariedade da
434
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 274.
435
O relato detalhado dos acontecimentos pode ser observado em Holston, Cidadania insurgente: disjunções
da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 286-305, em que se analisam os argumentos que cada
uma das partes usa para reivindicar aquelas terras, bem como os impactos dessa disputa que atravessou
algumas décadas.
173
moradia periférica, pois além da distância das riquezas, encontros e conexões promovidos
pela cidade, acumulava a insegurança da posse, pois o resultado da disputa jurídica indicada
poderia significar o despejo para aquelas famílias.
Além disso, diante das disputas, a empresa Adis teria vendido ainda outras áreas,
sobrepondo os planos, efetuando com que mesmos lotes interferissem em outros, tornando
as ruas irregulares, impossibilitando a definição dos verdadeiros moradores, possibilitando
que um mesmo lote fosse vendido mais de uma vez.
Segundo Holston, “O plano de 1924 foi assim completamente desfigurado por
múltiplas camadas de incorporações contraditórias e um sempre crescente número de
terceiros com alegações de propriedade”.436
À época a maior parte dos moradores ainda estava pagando os lotes para uma das
empresas, ao passo que percebiam as reivindicações de outra empresa, causando dúvidas em
relação ao verdadeiro proprietário, e se tais pagamentos estariam sendo em vão.
A interrupção dos pagamentos gerava cobranças sob ameaça de despejo da Adis. De
outro lado,
Como resposta a essa insegurança, em 1972 os moradores do loteamento criam a
Associação de Amigos do Bairro, a partir da qual buscaram auxílio jurídico de advogados
vinculados à Universidade de São Paulo, à Igreja Católica e partidos políticos de esquerda.
Isso possibilitou a atuação de advogados, que desenvolviam estratégias jurídicas
diversas para evitar os despejos, obstando a legitimação desses desejos, mesmo usando
tecnicalidades ou da criatividade.
James Holston cita que havia diversos grupos que se utilizavam de advogados que se
recusavam a negociar com “grileiros” ou mesmo de tecnicalidades para atrasar ou impedir
os despejos. Aponta, contudo, que as práticas mais criativas, citando o advogado Antonio
Benedito Margarido, mostraram-se bem-sucedidas.
O plano utilizado por algumas ocupações consistia em fazer um contrato ou
regularização para que o habitante deixasse de ser invasor e passasse a ser comprador e,
depois, ingressar com uma ação (lembrando que a propriedade está em disputa), para que os
pagamentos sejam feitos em juízo.
Tal estratégia possibilitava com que as famílias estabilizassem a posse no local, ainda
436
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 274.
174
Como resultado dessas estratégias legais combinadas, a associação aprendeu como desarmar seus
inimigos por meio de confrontos legais e como elaborar um dossiê de documentos oficiais para provar
suas reivindicações. No final dos anos 1980, seus participantes ainda não tinham os títulos de seus
lotes, mas não estavam mais sob o risco de serem despejados.438
Com isso, se percebe que o jogo jurídico, que antes era dominado pelas elites, passa
a ser acessado por esses grupos sociais organizados, como uma das formas de viabilizar seu
direito de moradia. Assim, casos sem uma solução jurídica direta, podem ser adiados até que
uma outra solução, política, possa ser construída.
A resistência se dava em múltiplas frentes. Essa organização social, além de tensionar
e friccionar o subsistema jurídico, passava a provocar agentes políticos para resolver sua
situação.
Houve tentativas de negociação com o governador André Franco Montoro, por meio
de reuniões e fretamento de ônibus para as audiências.
As estratégias e a organização, contudo, não se desfizeram uma vez que a segurança
da posse foi alcançada. Com o aprendizado e com as relações postas em movimento, passada
a urgência dos despejos, outras reivindicações passam a ser feitas, por parques, serviços
públicos, creches e outros equipamentos.
Assim, uma resistência que originariamente era apenas física, com agressões a
oficiais de justiça, que nada resultava de positivo, já que depois havia violência estatal que
437
Tendo em vista que não é proposta aprofundar as questões éticas da manipulação de instrumentos jurídicos
para fins estratégicos, apenas salienta-se que o tema se abre a uma maior investigação, tendo em vista os
direitos fundamentais em jogo e a utilização de instrumentos jurídicos, judiciais e extrajudiciais com
finalidades ocultas. Assim, a avaliação da moralidade dessas condutas, poderia ser objeto de pesquisa e
investigações específicas, verificando os limites das estratégias de combate e de luta, que até mesmo
poderiam envolver violências e a manipulação do sistema jurídico. Diante dessa possibilidade de debate,
as estratégias utilizadas pelos movimentos serão trazidas simplesmente de forma descritiva, sem a
resolução dessa problemática sobre existência de eventuais limites éticos, já observando que o lado mais
vulnerável, caso perca a luta, teria sua dignidade material violada com o despejo.
438
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 291-292.
175
439
O detalhamento da trajetória de ocupação e de lutas dos moradores do loteamento do Lar Nacional são
analisados pelo pesquisador James Holston (Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia
e da modernidade no Brasil, 2013, p. 324-339).
176
indica que, incialmente, não sabia distinguir os tribunais e os termos jurídicos, ao passo que
após algum tempo de atuação, passou a conhecer a localização das varas, como reivindicar
direitos bem como alguns meandros internos do funcionamento da justiça.440
É relatado, ainda, que após alguns anos, tais centros tornam-se centrais para a
socialização do bairro, tornando-se epicentro das buscas por melhorias, da realização do
lazer e interação social.
Citam, ainda, que haveria uma “estratégia de guerrilha”441, que consistia em abordar
autoridades como prefeitos e governadores em eventos públicos, exigindo conversas e
audiências, até que a insistência fosse notada.
Isso demonstra como o movimento foi elaborando uma forma de atuação que
consistia em fabricar canais de comunicação onde antes não havia. Assim, não se trata de
espaços e audiências públicas de iniciativa do poder público, expandindo os caminhos
democráticos, criando poros na administração pública.
Parte das estratégias consistiam em iniciar o contato por meio de uma comunicação
oficial da associação, entregue por uma caravana de moradores, performando um ato de
entrega, à mais alta autoridade, representando não somente o contato e o conteúdo, mas o
vislumbre e o canal direto com um agente político antes inacessível.
É interessante observar quer essas experiências reivindicatórias, mesmo trazendo
uma expansão democrática e uma profusão de experiências, transformando o entorno e o
mundo vivido das pessoas, que ambicionam mais condições de reprodução desse mundo,
também é construído por meio de contradições, sendo permeado pelas divisões e
preconceitos sociais.
Pode-se citar que aqueles que compraram os lotes, mesmo enfrentando problemas
similares aos que ocuparam, enxergam-se como mais cidadãos que aqueles outros.
Nas palavras de James Holston:
ter direitos depende de ser direito, e ser direito é uma questão de alcançar certos status, em essência
os de ser bom trabalhador, provedor da família e pessoa honesta. Aqueles que têm direitos de cidadão
os merecem porque são moralmente bons e socialmente corretos nesses termos reconhecidos de
maneira pública.442
Isso demonstra a persistência e a multidimensionalidade das segregações sociais
brasileiras, que permeiam a vida, o território e o imaginário e, se reproduz até mesmo dentro
440
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 327.
441
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 329.
442
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 344.
177
443
Sobre MTST, com origem próxima ao do MST, teve sua origem e conflitos tratados pela pesquisadora
Cristhiane Falchetti (Cf. Falchetti, Ação coletiva e dinâmica urbana: o MTST e o conflito na produção da
cidade, 2019).
444
É possível verificar que algumas das ocupações mais notórias da cidade de São Paulo foram promovidas
pelo MSTC, como por exemplo a primeira realizada no edifício Prestes Maia, que até então estava sem um
uso adequado, em uma localização central e útil para os pobres urbanos, ou mesmo para qualquer habitante
citadino. Promove-se uma revitalização do prédio e dos espaços, com a vida de seus novos ocupantes. (Cf.
Gonçalves, Ocupar, Resistir, Construir, Morar, 2012.p. 350)
178
4 Conclusão
desigualdades.
O resultado é a instauração de uma fratura, em que a desigualdade vai atravessando
os subsistemas em que a pessoa está inserida, multiplicando-se as dimensões em que a
carência é percebida. Chegam-se até mesmo a contradições diante dessa cidadania
diferenciada e a gramática dos direitos fundamentais, ameaçando seriamente a atribuição ao
Estado brasileiro dos qualificativos “Social”, “Democrático” e “de Direito”, já que não
garante os direitos sociais, ainda não inclui democraticamente e, distribui seletivamente os
direitos e o acesso à justiça.
O direito à propriedade, central na exclusão, e utilizado historicamente para criar uma
sobre-exploração dos trabalhadores, impulsionados à compra de lotes periféricos (acessíveis
a seus salários) cria um paradoxo. Pois, embora as críticas a esse modelo, em decorrência da
deficiência de acesso à cidade, aos direitos e ao descanso e ao lazer que ele impõe ao
trabalhador, de outro incrementa o rol de direitos a que os trabalhadores, antes
desempossados, tem acesso.
Esse acesso abre uma brecha nessa distribuição de direitos e inclui, ainda que de
forma precária, em uma primeira espécie de cidadania: alguns direitos passam a ser
reconhecidos, e aquela pessoa passa a ser validada como cidadã, criando até mesmo uma
autoestima reivindicatória, habilitando-a para a participação em espaços públicos de debate.
Essa percepção é aprofundada com as dimensões cotidianas acarretadas pela vida
cotidiana. Mostra-se no espaço vivido uma subversão à exclusão, pois o trabalho local, e a
vida cotidiana têm o condão de transformar o entorno, mudando as dinâmicas centro-
periferia, expandindo os processos de criação do espaço urbano, fazendo emergirem comuns
urbanos, e enriquecendo as pessoas com um substrato simbólico além dos valores e
mediações do subsistema econômico.
Assim, ao retomar as críticas e percepções da filosofia de Jürgen Habermas sobre a
colonização do mundo da vida, percebe-se nesse olhar e nesse mundo da vida cotidiano,
precisamente a ambiguidade e a resistência desses elementos simbólicos a essa colonização.
Pois ainda que atravessados pelas necessidades econômicas e sem escapar à exploração, a
vida com as conexões impulsionadas pelas reivindicações e carências possibilita o acesso da
pessoa a outros referenciais valorativos e simbólicos, permitindo que os valores do mundo
da vida fluam com sentidos, sem serem completamente aprisionados pelo subsistema
econômico.
Se o trabalho tem a capacidade de esgotar o tempo do trabalhador, tornando-o
alienado, é no mundo da vida cotidiano, na intensificação desses outros aspectos que se pode
184
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