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GLADIUS ALEXANDRE POSTINICOFF CAGLIA

“Direito à Moradia, Políticas Urbanas e Democracia:


a cidade, a cidadania e os direitos”

Dissertação de Mestrado

Orientador: Professor Associado Eduardo Carlos Bianca Bittar

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


FACULDADE DE DIREITO
São Paulo – SP
2023
GLADIUS ALEXANDRE POSTINICOFF CAGLIA

“Direito à Moradia, Políticas Urbanas e Democracia:


a cidade, a cidadania e os direitos”

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação, na área de Filosofia e Teoria Geral do
Direito do DFD da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre, sob a orientação
do Professor Associado Eduardo C. B. Bittar

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


FACULDADE DE DIREITO
São Paulo – SP
2023
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

CAGLIA, GLADIUS ALEXANDRE POSTINICOFF


Direito à Moradia, Políticas Urbanas e Democracia: a cidade, a
cidadania e os direitos. / GLADIUS ALEXANDRE POSTINICOFF
CAGLIA; orientador Eduardo Carlos Bianca Bittar - São Paulo, 2023.
194 f.

Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação, na área de


Filosofia e Teoria Geral do Direito do Departamento de Filosofia do
Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

1. Direito à cidade. 2. Moradia. 3. Movimentos Sociais. 4.


Democracia. 5. Jürgen Habermas.
Folha de Avaliação

Banca Examinadora:

Professor Associado Eduardo Carlos Bianca Bittar


Universidade de São Paulo

Professor(a)
Universidade de São Paulo

Professor(a)
Universidade de São Paulo

Professor(a)
Instituição:

Professor(a)
Instituição

Professor(a)
Instituição

São Paulo, __ de __ de 2023.


Resumo
CAGLIA, Gladius Alexandre Postinicoff. Direito à moradia, políticas urbanas e
democracia: a cidade, a cidadania e os direitos. Dissertação de Mestrado, São Paulo:
Universidade de São Paulo, 2023.

Este trabalho busca, através de uma revisão bibliográfica interdisciplinar observar os


atravessamentos e fricções entre diferentes sistemas sociais, bem como reconhecendo a
importância e a expressão democrática possível de participação popular. Com isso, parte-se
do estudo de categorias jurídicas com o intuito de trazer uma visão crítica dos direitos
fundamentais e do direito à moradia, investigando a efetividade de sua interpenetração e de
“porta de entrada” para outros direitos fundamentais.
É possível, assim, estabelecer uma base dogmática que encarna as expectativas populares de
respeito e de cidadania. Então passa-se a acrescentar camadas de análise, densificando a
problematização, colocando tais construtos normativos em atrito com dados empíricos, para
que as análises ganhem contexto social, geográfico, histórico e econômico, possibilitando
aumentar a complexidade das estruturas jurídicas escolhidas. Somam-se aos argumentos
jurídicos os empíricos e históricos demonstrando a centralidade da moradia e as
potencialidades utópicas de um conceito de direito à moradia.
Por fim, com apoio em referenciais teóricos da teoria dos sistemas e da teoria do agir
comunicativo, se intenta aprofundar a complexidade da análise, verificando interpretações e
irritações sistêmicas, trazendo à indagação movimentos sociais e suas capacidades de se
colocar diante das opressões e da sobre-exploração capitalista, seja reivindicando direitos ou
ainda com o intuito de estabelecer resistências simbólicas, resguardando aspectos e símbolos
essenciais ao espaço vivido, resguardando-o dos achaques e invasões econômicos.

Palavras-chave: Direito à cidade. Moradia. Habitação. Movimentos sociais. Democracia.


Cidadania. Insurgências. Luta. Direitos fundamentais. Dignidade. Ocupações. Jürgen
Habermas. Mundo da vida. Mundo Vivido. Espaço vivido. Agir comunicativo.
Abstract
CAGLIA, Gladius Alexandre Postinicoff. Direito à moradia, políticas urbanas e
democracia: a cidade, a cidadania e os direitos. Dissertação de Mestrado, São Paulo:
Universidade de São Paulo, 2023.

This work aims, through an interdisciplinary literature review, to observe the intersections
and frictions between different social systems, as well as recognizing the importance and the
possible democratic expression of popular participation. In doing so, it starts from the study
of legal categories to bring a critical view of fundamental rights and the right to housing,
investigating the effectiveness of their interpenetration and their "gateway" to other
fundamental rights.
It is possible, therefore, to establish a dogmatic basis that embodies popular expectations of
respect and citizenship. Then, layers of analysis are added, densifying the problematization,
putting such normative constructs in friction with empirical data, so that the analyses gain
social, geographical, historical, and economic context, allowing for an increase in the
complexity of the chosen legal structures. Legal arguments are supplemented with empirical
and historical evidence, demonstrating the centrality of housing and the utopian potential of
a concept of the right to housing.
Finally, with the support of theoretical frameworks from systems theory and the theory of
communicative action, the intention is to deepen the complexity of the analysis, examining
systemic interpretations and irritations, bringing social movements into question and their
ability to confront capitalist oppressions and overexploitation, whether by claiming rights or
by seeking to establish symbolic resistances, safeguarding essential aspects and symbols of
the lived space, protecting it from economic encroachments and invasions.

Keywords: Right to the city. Housing. Social movements. Democracy. Citizenship.


Insurgencies. Struggle. Fundamental rights. Dignity. Occupations. Jürgen Habermas.
Lifeworld. Lived world. Lived space. Communicative action.
Sumário
Introdução ................................................................................................................................... 7
1 Direito à moradia, direito à cidade e dignidade da pessoa humana .............................. 11
1.1 Dignidade da pessoa humana, territórios urbanos e direitos fundamentais .......... 11
1.1.1 Dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico brasileiro ................. 11
1.1.2 Retomada de alguns conceitos de dignidade ................................................... 11
1.1.3 A dignidade humana como norma jurídica ...................................................... 17
1.1.4 A dignidade da pessoa humana observada no espaço urbano ........................ 19
1.1.5 A dignidade e os direitos fundamentais ........................................................... 24
1.2 Direitos fundamentais, direitos sociais e direito à moradia.................................... 25
1.2.1 Conceito de direito fundamental ...................................................................... 25
1.2.2 Perspectiva histórica dos direitos fundamentais .............................................. 27
1.2.3 Classificação dos direitos fundamentais conforme suas funções ................... 29
1.2.4 Direitos sociais .................................................................................................. 31
1.2.5 O direito à moradia na Constituição................................................................. 38
1.2.6 Interposição legislativa concretizando o direito à moradia ............................ 39
1.2.6.1 Normas internacionais sobre a moradia ................................................... 40
1.2.6.2 Direito à moradia nas normas infraconstitucionais ................................. 43
1.2.6.3 Relação entre a propriedade e a moradia ................................................. 46
1.3 Do Direito à moradia ao direito à cidade: intersecções do espaço urbano ............ 48
1.3.1 A moradia não é uma ilha ................................................................................. 48
1.3.2 A moradia nas cidades brasileiras: um conceito de cidade contextualizado . 49
1.4 Direito à cidade ......................................................................................................... 52
1.4.1 Uma perspectiva capitalista .............................................................................. 52
1.4.2 Uma perspectiva anticapitalista ........................................................................ 53
2 Direito à moradia, desigualdades urbanas e eficácia dos direitos fundamentais ......... 56
2.1 Produção do espaço nas cidades brasileiras: o planejamento da exclusão ............ 56
2.1.1 Centralidade da moradia ................................................................................... 56
2.1.2 A gênese da fratura real: o cativeiro da terra ................................................... 58
2.1.3 Formação das cidades brasileiras e as habitações populares .......................... 63
2.1.4 Evolução das habitações no Brasil: a produção do espaço urbano sob um
paradigma de exclusão e segregação .............................................................................. 67
2.1.5 Era Vargas: Ataque ao rentismo e incentivo à autoconstrução ....................... 74
2.1.6 Constituição Cidadã: O Movimento Nacional pela Reforma Urbana............ 80
2.1.7 Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) ............................................... 83
2.2 Marcos da desigualdade urbana: déficit habitacional e dignidade da pessoa
humana.................................................................................................................................. 86
2.2.1 Déficit Habitacional e a População em situação de rua .................................. 86
2.2.2 Abuso da propriedade: especulação e fraudes ................................................. 89
2.2.3 A cidade e os outros: fratura ............................................................................. 93
2.2.4 A forma favela como paradigma da moradia................................................... 98
2.3 Eficácia do direito à moradia: desafios político-jurídicos e implicações
econômicas ......................................................................................................................... 106
3 Políticas urbanas, democracia e participação social .................................................... 110
3.1 Democracia: ambiguidades e possibilidades de emancipação ............................. 112
3.1.1 Concepção procedimental e discursiva de Democracia ................................ 113
3.1.2 Contradição e ambiguidade na democracia ................................................... 116
3.1.3 Pluralidade e legitimidade: a expansão da democracia ................................. 124
3.2 Cidadania e Democracia no Brasil: impactos teóricos da fratura social ............. 126
3.2.1 Algumas noções de cidadania......................................................................... 127
3.2.2 Cidade e cidadania .......................................................................................... 130
3.2.3 Fraturas e contradições da democracia brasileira .......................................... 133
3.2.4 O sentido da moradia, da propriedade e seus aspectos simbólicos .............. 138
3.2.5 O paradoxo da propriedade: conservadorismo e emancipação .................... 145
3.2.6 Cidade, cidadania e moradia: entre ser, pertencer e habitar ......................... 148
3.3 Retomada democrática do espaço vivido: mobilização social e a cidadania
insurgente............................................................................................................................ 151
3.3.1 Os elementos do espaço vivido: libertando o mundo da vida ...................... 152
3.3.2 Autoconstrução e reconexão com o território................................................ 158
3.3.3 Existências na cidade: recuperação dos valores de uso dos imóveis ........... 159
3.3.4 Democracia, políticas urbanas, e movimentos sociais: a voz das cidades... 163
3.4 Participação Popular: as trajetórias das lutas do direito à cidade ........................ 166
3.4.1 Combustão: expressões populares recentes ................................................... 167
3.4.2 Fermentação: a organização das lutas por moradia ....................................... 170
4 Conclusão ....................................................................................................................... 179
5 Referências ..................................................................................................................... 185
7

Introdução
A população brasileira se expandiu1 durante o Século XX, mesmo período em que
ocorreram diversas alterações nos modelos políticos de administração pública e até mesmo
se transformaram em urbanas as moradias, de modo que até o final do Século, a urbanidade
da vida no Brasil começa a concatenar elementos essenciais da sociabilidade, dos direitos e
da preocupação com a cidadania, revelando uma a importância desse fenômeno.
Na segunda metade do século XX, a população que reside em áreas urbanas supera
a que vive em áreas rurais, e assim, até o final do século XX o Brasil passa a ter a maior
parte de sua população vivendo nas cidades2, cuja densidade impõe uma convivência mais
intensa entre as pessoas, gerando diferentes possibilidades, mas também conflitos e
contradições, evidenciando-se as desigualdades sócio-econômicas e as diferentes formas
como as pessoas participam da comunidade.
E será no bojo desse crescimento urbano que diversos movimentos sociais
reivindicatórios têm a moradia como espaço de lutas, utilizando-se da expressão “a moradia
é a porta de entrada dos direitos”, tornando clara, a interdependência entre os direitos
humanos, bem como a expectativa de melhorias e a progressão contínuas das reivindicações
populares.
Tal provocação motivou indagações sobre a necessidade de embates e de
reivindicações, e observando que a Constituição Cidadã prevê a moradia como um direito
social, de modo gerou expectativas de construção de políticas públicas e que o Direito estaria
a se ocupar desse tipo de mazela social.
De outro lado, a questão da moradia se apresenta ao observar as desigualdades que
se mostram visíveis nas paisagens, nas precariedades residenciais, bem como se evidencia,
a cada ano, nas tragédias anualmente imprevistas, e cujas vítimas têm uma localização
geográfica específica, bem como um recorte bastante claro de raça e de classe social.
Além desses aspectos, a história recente vai mostrando como vão surgindo
movimentos reivindicatórios (occupy, primavera árabe, protestos da praça Tahir, jornadas de
junho), vocalizando o desejo de mais cidade e mais direitos.
A latência e a sobreposição desses fenômenos sugerem dúvidas sobre a eficácia
constitucional dos direitos fundamentais, notadamente o de uma moradia adequada. Ao

1
Cf. IBGE, Projeção da População do Brasil por Sexo e Idade para o Período 1980-2050 - Revisão 2008.
2
Cf. Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 211.
8

aprofundar a questão, se indaga como ocorre o enfrentamento do Direito dessa questão


habitacional, bem como da movimentação do direito administrativo e da criação de políticas
públicas. De outro lado, percebe-se que o tema atravessa as variadas faixas de renda sociais,
afinal, todas as pessoas que habitam as cidades têm sua qualidade e possibilidade de vida a
vinculadas ao desenvolvimento do urbano.
Parte-se do pressuposto da centralidade e da importância da moradia, enquanto
direito básico para elaborar questões a respeito de previsão normativa, da eficácia desse
direito e dos desafios enfrentados pelos brasileiros na sua efetivação, buscando dados
empíricos para embasar tensionar as previsões de eficácia normativa.
Concomitantemente tais questões urbanas são atravessadas pelas questões sociais,
históricas, geográficas que contextualizam e demonstram que a cidade de hoje foi construída
em uma localidade em que forças sociais já existiam e produziam seus espaços, e se dirige a
um futuro.
Assim, não se está pensando o problema das cidades, e da moradia nelas de forma
estanque, abstrata ou ideal, mas dentro da percepção de que elas são dinâmicas e que são
atravessadas por um fluxo das forças que movem e as criam, percebendo a capacidade de
participação e influência do Direito, bem como da atuação das pessoas nesses processos.
Diante da realidade de diferentes disciplinas sobrepostas ao problema da moradia,
percebe-se nesse direito um paralelo com a ideia de cidadania, do direito de ter direitos, do
ser citadino. E tais ideais de participação exige sua estruturação em uma teoria democrática,
observando, primeiro, que a Constituição Cidadã instituiu um País democrático, e desse
valor, o “democrático”, se parte como pressuposto, para que se possa compreender as
maneiras de participação popular e a exigência de um tratamento às pessoas, com igual
respeito e consideração.
Assim, partindo-se do valor democracia como pressuposto e compreendendo a
moradia na centralidade da cidadania e da reivindicação por direitos, para submetê-los à
crítica, problematizações, e tensões, com o intuito de reafirmar ou não tais premissas,
possibilitando trabalhar com tais questões, e com fundamento nesses direitos checar a
eficácia do direito à moradia.
Intuitivamente, a ideia de formular questões sobre a eficácia do direito à moradia, ou
de outros direitos fundamentais, já parece possibilitar que se anteveja uma resposta negativa,
contudo tal questionamento evidencia a problemática relacionada com os níveis de eficácia
e, principalmente, tem a pretensão de trazer à análise eventuais inconsistências e deficiências
das políticas públicas, bem como indagar quais são as determinações dessa ineficácia, que,
9

desponta nas paisagens urbanas.


Desse modo, o trabalho de pesquisa se estrutura em três partes, fazendo uma
investigação bibliográfica, com o cruzamento dos conceitos e avaliando as interconexões
possíveis diante das múltiplas camadas das problemáticas relativas à moradia, buscando
perceber os fatores, ambiguidades que trazem dinamicidade e complexidade à questão da
moradia e de sua reivindicação democrática.
Na primeira parte intuito é resgatar as obras doutrinárias relativas ao direito de
moradia, sua previsão constitucional, bem como delimitar uma sistematicamente, seu caráter
de norma jurídica e a capacidade de produzir efeitos jurídicos dentro do Direito. A
delimitação do conteúdo do direito à moradia não depende de simples leitura constitucional.
Assumir a relevância e centralidade desse direito exige, ainda, que se investigue sobre sua
relação com a dignidade da pessoa humana.
Assim, se percorre a relação entre a dignidade da pessoa humana, os direitos
fundamentais e o direito à moradia, indagando-se sobre a existência de relação entre elas,
bem como haverá o intuito de verificar a existência de um conteúdo claro para esse direito e
sua exigibilidade jurídica, política ou social.
No segundo capítulo, haverá análise de dados empíricos já coletados, e a pesquisa
se direcionará a conhecimentos oriundos de outras disciplinas, com o intuito de conhecer as
múltiplas camadas e fatores que envolvem e atravessam a hipótese de eficácia do direito à
moradia, e das políticas públicas que a tiveram por objeto.
Uma outra pretensão é contextualizar geográfica e historicamente a moradia no
Brasil, com a ideia de investigar o os elementos históricos que ecoaram e resultaram na atual
organização espacial, indagando se tal histórico ainda projeta consequências e tendências no
presente, verificando a relação do Direito com tais disciplinas, e, principalmente, verificando
como a Constituição Cidadã trouxe inovações e inversões nessas tendências históricas
brasileiras.
Tais dados permitem que se observe o contraste entre o dever-ser jurídico e a
realidade, mas, principalmente, a série histórica dos indicadores, analisando se a
normatividade tem mostrado alguma eficácia em transformar e estabelecer os parâmetros da
moradia como um direito.
Por fim, o terceiro capítulo tem a pretensão de indagar sobre caminhos para
incrementar e buscar a efetividade e melhorias com relação à moradia das pessoas, tendo na
expansão da cidadania e no fortalecimento da cidadania os vetores para esse intento.
É neste ponto que se investigará autores que tratam da democracia e das
10

possibilidades de consenso, problematizando a capacidade e a possibilidade de alcançar


transformações sociais por meio do diálogo. Também se buscará evidenciar elementos
simbólicos e existenciais envolvendo as moradias, o existir e as relações das pessoas com o
mundo, e como se movimentam e o que motiva a ação das pessoas.
De outro lado, se buscará responder se a expansão da democracia e o fortalecimento
da cidadania comportam vetores para trabalhar e efetivar a questão da moradia. De posse de
tais elementos teóricos, haverá a tentativa de encontrar movimentos sociais e exemplos
empíricos para análise e tensionamento das categorias abstratas, verificando se desses
fenômenos podem ser compreendidos e analisados com base nos modelos teóricos
utilizados.
Em síntese, a pretensão desta obra é concatenar diferentes pontos de vista tentando
buscar um sentido e uma correlação entre as diferentes disciplinas, tendo na cidade o ponto
focal desse entrelaçamento, com o intuito de compreender o fenômeno da moradia, do
urbanismo e da recepção e da movimentação do Direito através dos valores fundamentais da
sociedade brasileira, a dignidade da pessoa humana, a democracia e os valores de cidadania
na luta e na conquista de um dos direitos fundamentais mais básicos, a moradia.
11

1 Direito à moradia, direito à cidade e dignidade da pessoa humana

1.1 Dignidade da pessoa humana, territórios urbanos e direitos fundamentais

1.1.1 Dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico brasileiro

No século XX houve uma enorme expansão da população urbana, no Brasil e no


mundo. E, ao final desse século, em 1988, é promulgada a Constituição Cidadã, por uma
Assembleia Constituinte estabelecida por meio de Emenda à Constituição de 1969, com o
intuito de inaugurar uma nova ordem jurídica, superando o período ditatorial, que se iniciou
com o golpe civil-militar de 19643.
Ela recebeu o qualificativo de cidadã por trazer uma centralidade à pessoa, instituindo
o seu respeito como valor primordial. Com isso, ela estabelece como um dos fundamentos
da República, no inciso III do art. 1º, a dignidade da pessoa humana, invertendo a relação de
hierarquia, até então presente nas Constituições brasileiras, entre o Estado e os direitos
fundamentais. Com estas modificações, a existência digna também é estabelecida como uma
das finalidades da ordem econômica brasileira, em seu artigo 170, caput.
Embora a ideia de dignidade da pessoa humana desperte certas reflexões nas pessoas,
a análise de sua eficácia jurídica depende de uma adequada e precisa conceituação,
impedindo que seja considerada uma fórmula vazia - completamente dependente de
interposição de outras leis que definirão seu conteúdo - ou mesmo que seja invocada de
forma a justificar qualquer interpretação, permitindo a manipulação do discurso de forma a
fundamentar qualquer decisão sobre o direito.
Desse modo, é necessário aprofundar a compreensão sobre o que significa a palavra
dignidade, bem como quais são as implicações de tê-la prevista como fundamento da
República Federativa do Brasil.

1.1.2 Retomada de alguns conceitos de dignidade

A dignidade é um conceito que sofreu mutações no decorrer do tempo, conforme a


sociedade que o tomava como preceito ou mesmo a depender do filósofo que o
problematizava.
Na antiguidade clássica, a dignidade representava uma distinção pessoal, isto é,

3
Cf. Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 199.
12

relacionava-se com a posição social do indivíduo na vida comunitária, e o reconhecimento


pelos demais4. Mas, a partir de Cícero, passa a transcender o status social, e traz um sentido
moral, isto é, vincula a dignidade a uma pretensão de consideração e respeito, com
fundamento no fato simplesmente de haver outro ser humano a ser considerado.5
A dignidade humana já foi conceituada pela religião, pela filosofia e pela ciência. As
religiões monoteístas trazem uma ideia de um deus único e transcendente, o qual faz com
que as criaturas humanas ocupem um local privilegiado na criação. Já sob uma perspectiva
filosófica, a dignidade decorre da própria racionalidade do ser humano, ao passo que, do
ponto de vista científico, se percebe a dignidade humana da própria biologia dos seres vivos,
e do ser humano, como um ápice da evolução.6
Embora essa noção do ser humano como ápice valorativo possa ser questionada, em
razão da arrogância humana dentro do sistema biológico e da importância das outras vidas,
a visão que centraliza o ser humano como valor fundamental ainda tem relevância por trazer
tentar superar divisões e estratificações dentro da espécie humana, sob o princípio da
igualdade e sem hierarquias.
Crenças ocidentais como o cristianismo também contribuíram para a transformação
do conceito, supondo que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, de modo a
reconhecer naquele ser um valor intrínseco.7
Ingo Sarlet, em obra que investiga as origens e o conteúdo da Dignidade da Pessoa
humana8 cita diversos conceitos de dignidade, apresentando a noção trazida por Samuel
Pufendorf surge uma definição secular e racional de dignidade. Ele sustenta que a dignidade
é a liberdade de atuar conforme a razão. Liberdade moral, é o elemento distintivo dos seres
humanos.
Por sua vez, Kant traz a ideia de dignidade como autonomia ética. Traz sua
conceituação de dignidade como autonomia do indivíduo, e a consideração deste como fim
em si mesmo, lembrando, ainda o conceito desse autor, que afirma que as coisas têm preço,
mas a pessoa humana teria dignidade.9
A noção kantiana de dignidade, que a enxerga como o valor intrínseco das pessoas,

4
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 33.
5
Cf. Cícero, Dos deveres, 1999 p. 137.
6
Cf. Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, 2013.
7
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 35.
8
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 38.
9
Cf. Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, 2013.
13

é adequada para a fundamentação dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, porém
pouco ajuda na definição de seu conteúdo jurídico.10
Dentro dessa perspectiva pode-se perceber que a dignidade se apresenta tanto como
um valor transcendental, apriorístico, mas também como atributo material que pode ser
conquistado pelos indivíduos, em uma visão que se torna mais adequada à formulação como
norma jurídica, tendo em vista o seu caráter deôntico.
Assim, enquanto a percepção da dignidade como um valor intrínseco é reconhecida
- e não fundada - pelo Direito, de modo que outros valores e princípios podem ser decorrentes
dessa acepção de que os seres humanos possuem dignidade. Esse é o pensamento de André
de Carvalho Ramos:

Tanto nos diplomas internacionais quanto nacionais, a dignidade humana é inscrita como princípio
geral ou fundamental, mas não como um direito autônomo. De fato, a dignidade humana é uma
categoria jurídica que, por estar na origem de todos os direitos humanos, confere-lhes conteúdo ético.
Ainda, a dignidade humana dá unidade axiológica a um sistema jurídico, fornecendo um substrato
material para que os direitos possam florescer.11
A percepção de que as pessoas têm dignidade, de que há um fundamento imaterial
para a pretensão de igual respeito e consideração, derivada da concepção de que há valor
intrínseco nas pessoas, gera a possibilidade de indagar sobre a possibilidade de sua
conformação jurídica, pois se trata de uma constatação da realidade, de um reconhecimento.
Esse aspecto valorativo, do que se erroneamente depreenderia uma natureza não normativa,
permite, para além de servir como fundamento transcendental do ordenamento jurídico,
como parâmetro ético e material de crítica ao ordenamento jurídico, como princípio jurídico.
Isso determina que o ordenamento jurídico respeite alguns preceitos que decorrem
desse princípio geral, como o respeito à autonomia, e ao igual tratamento entre as pessoas,
como também o respeito à vida. A própria finalidade e razão de existência do ordenamento
jurídico, para Fabio Konder Comparato, é a proteção da dignidade da pessoa humana. 12
A diversidade de conceitos sobre a dignidade da pessoa humana não pode ser
invocada como forma de relativizar sua importância, ao apontar para a dificuldade de fixação
de um conteúdo específico para o princípio. Essas divergências de pensamento não devem
fazer com que a questão seja subtraída do debate, na verdade deve-se concluir exatamente o
oposto: o prolongado debate permitiu uma evolução do conceito, além de tensionar seus

10
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 41.
11
Ramos, Curso de Direitos Humanos, 2016, p. 77.
12
Cf. Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, 2013.
14

limites e possível aplicação, o que na verdade resultou no enriquecimento de seu sentido, de


seu uso, e, portanto, de sua delimitação.
A dignidade da pessoa humana, uma vez observada sob o ângulo do fundamento de
direitos, é importante para o reconhecimento dos direitos fundamentais, previsão dos direitos
humanos e valor de referência do ordenamento jurídico, que estabelece o respeito à
dignidade da pessoa humana como sua finalidade. No entanto, é na possibilidade de
conquista da dignidade que se observam as potencialidades transformadoras do
aprofundamento do conceito, pois, além de reconhecer o valor intrínseco das pessoas, a isso
deve corresponder um movimento da comunidade. A existência de prolongado debate a
respeito do conceito também deixa em evidência como se trata de questão pulsante até os
dias de hoje. Com isso, a construção histórica do conceito evidencia que não se trata de
simples fórmula vazia, ainda que os limites que contornam seu conteúdo estejam sob
disputas e não sejam tão precisos.
Aceitar que o ser humano tem intrínseco merecimento, incondicionado, a uma
mesma consideração e respeito, e levar essa conclusão a sério traz consequências, que
atravessam o ordenamento e alcançam outros princípios e direitos fundamentais, como a
vida, a igualdade e expectativa de justiça social. Assim, a dignidade pode ser vista como
valor a ser conquistado pelas pessoas, como um direito à cidadania e à eticidade.
As diferentes concepções de dignidade podem gerar impressão de que existe
confusão ou contradição, uma vez que os diferentes conceitos se apresentam cada vez mais
sofisticados, de formas diversas. E a diversidade das formas de apreensão na verdade
evidencia que há polissemia presente nesse conceito, a qual depende de uma precisa
delimitação para que sua aplicação jurídica não ocorra de forma fluida, arbitrária e casuística,
preenchendo-se seu conteúdo de acordo com a conveniência do momento.
A ideia ontológica da dignidade da pessoa humana parece se contrapor à concepção
normativa, já que não se identifica diretamente com nenhum princípio específico, mas se
apresenta como um valor essencial do ser humano. Mas, de outro lado, a violação de normas
que remetem à dignidade da pessoa humana, ajuda a perceber a existência desse conteúdo
no ordenamento jurídico, já que o desrespeito à dignidade é que torna mais evidente os
comandos normativos que a deveriam sustentar.13
Assim, embora a visão ontológica da dignidade se preste principalmente como fator

13
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 51.
15

de legitimação do ordenamento jurídico e dos direitos fundamentais, tem seu sentido


complementado pelas normas jurídicas que efetivam as garantias mínimas para que a
existência seja digna. Serve como fundamento de existência delas, mas com elas também
guarda conexão, pois se percebe sua importância e imprescindibilidade nas ocasiões em que
ocorre a violação desses direitos.
A ideia ontológica de dignidade da pessoa humana também tem a capacidade de
influir politicamente, na legitimação de normas e de sistemas políticos.14
Esses diferentes conceitos, que evidenciam não somente sua evolução em razão do
tempo histórico e das diferentes sociedades em que foram cunhados, demonstra que a ideia
de dignidade é conformada de acordo com fatores sociais, históricos e culturais, e, além
disso, pode ser analisada por diferentes ângulos:

Na dignidade há um sentido cultural, sendo fruto do trabalho de diversas gerações e da humanidade


em seu todo, razão pela qual as dimensões natural e cultural da dignidade da pessoa se complementam
e interagem mutuamente, refutando-se a tese de que a dimensão ontológica da dignidade possa ser
equiparada a uma dimensão por assim dizer biológica.15
A noção de dignidade é construída culturalmente pelas comunidades, conforme
analisa Ingo Wolfgang Sarlet, de modo que não há uma fórmula a priori que possa ser alçada
à categoria de verdadeiro conteúdo desse conceito. É a partir do concreto que ela se
demonstra, como limite estatal e como dever de atuação.16
A dignidade não se reduz a tais conceituações, pois há aspectos transcendentes que
acabam escapando de uma ou de outra definição utilizada. É flagrante sua relação com a
vida humana, embora não se limite a ela, e ao respeito da autonomia. Aponta-se, contudo,
que mesmo a perda da autonomia ou autodeterminação, de forma concreta pelo indivíduo,
não lhe retira a proteção e o respeito advindos da dignidade, ou a existência desse valor em
sua existência.
As diferentes formas em que as sociedades se organizam permite a percepção de que
também aderem a diferentes acepções a respeito da dignidade, em variadas áreas, a exemplo
do que ocorre com a questão da pena de morte.17 Tal fato revela que a dignidade da pessoa
humana possui um aspecto cultural e um desenvolvimento histórico e geográfico.
Em observação às diferentes dimensões contidas na dignidade, em especial seu lastro

14
Cf. Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, 2013.
15
Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 55.
16
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 56.
17
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 66.
16

biológico (que não compreende sua totalidade) e de respeito ao indivíduo e da


intersubjetividade, afirma Ingo Wolfgang Sarlet:

O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física
e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas,
onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos
e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não
haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, e esta (a pessoa) por sua vez, poderá não passar de
mero objeto de arbítrio e injustiças.18
Com isso se percebe como os elementos para a sobrevivência adequada dos corpos
formam um elemento condicional da dignidade, contudo não suficiente. A vida em sociedade
impõe também o respeito da autonomia e a dignidade referenciada nas relações humana pelo
reconhecimento.
Por isso, adota-se o conceito de dignidade da pessoa humana, desenvolvido por Ingo
Wolfgang Sarlet:

Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida
em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que
assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano como venham
a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover
sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com
os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.19
Assim, tanto os conceitos teórico-filosóficos, quanto a definição acima apontada,
permitem perceber um caráter ontológico, uma dimensão histórico-cultural e as funções de
limitação, ou negativa do Estado e ativa ou prestacional, que implicam as ações para
conquista da dignidade. Somando-se a esta visão, André de Carvalho Ramos também
conceitua a dignidade da pessoa humana como conceito polissêmico, composto por diversas
dimensões:

Assim, a dignidade humana consiste na qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano, que o
protege contra todo tratamento degradante e discriminação odiosa, bem como assegura condições
materiais mínimas de sobrevivência. Consiste em atributo que todo indivíduo possui, inerente à sua
condição humana, não importando qualquer outra condição referente à nacionalidade, opção política,
orientação sexual, credo etc. 20
Por sua vez, Luís Roberto Barroso aponta para o fato da importância da dignidade da
pessoa humana, na medida em que se tornou um consenso, após a segunda guerra mundial.
É desta forma que procura apontar para a sua natureza de princípio constitucional,
ressalvando a necessidade de delimitação de seu conteúdo. Assim, propõe um conteúdo

18
Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 69.
19
Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 70.
20
Ramos, Curso de Direitos Humanos, 2016, p. 77.
17

mínimo para o referido conceito, que poderia gerar um consenso laico e neutro
politicamente. “Portanto, os três elementos que integram o conteúdo mínimo da dignidade,
na sistematização aqui proposta, são: valor intrínseco da pessoa humana, autonomia
individual e valor comunitário”.21
Ele ainda explica: “A autonomia, no plano filosófico, o elemento ético da dignidade,
ligado à razão e ao exercício da vontade em conformidade com determinadas normas”.22 A
autonomia impõe que a autodeterminação dos indivíduos seja respeitada,
independentemente de influências externas. Estabelece que é deste elemento que se extrai o
mínimo existencial, que seriam as bases materiais da autonomia do indivíduo.
Interessante observar que a análise de tais noções de dignidade da pessoa humana
influindo na produção e se revestindo de uma forma jurídica, permitindo sua aplicação, tem
um diálogo com a noção trazida por Jurgen Habermas de como o direito incorpora a eticidade
e pressupostos através do discurso, por meio da valorização e não hierarquização pressuposta
nos participantes de um discurso, o qual estrutura a forma como o sistema jurídico se
operacionaliza23.

1.1.3 A dignidade humana como norma jurídica

Uma vez constatada a polissemia inerente ao conceito de dignidade da pessoa


humana, e, tendo-se presente a noção extraída da doutrina, retorna-se à previsão
constitucional da dignidade, verificando que são múltiplas as funções que desempenha na
ordem jurídica, seja como fundamento, ou mesmo como princípio valorativo de criação e de
interpretação do direito.
O fato de a Constituição lastrear a noção de República, e colocar a dignidade como
finalidade do sistema econômico demonstra, inicialmente, o caráter central e fundante que o
conceito assume, ou, que se pretende que ele assuma, para a ordem jurídica nacional. E, com
isso, há implicações normativas, tendo em consideração que o constitucionalismo

21
Cf. Barroso, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Os Conceitos Fundamentais e a Construção
do Novo Modelo, 2015, p. 286.
22
Cf. Barroso, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Os Conceitos Fundamentais e a Construção
do Novo Modelo, 2015, p. 287. Grifos no original.
23
A questão da dignidade da pessoa humana parece estar pressuposta na origem discursiva dos direitos
fundamentais e pelo princípio da democracia (Cf. Habermas, Facticidade e validade. Contribuições para
uma teoria discursiva do direito e da democracia, 2020, p. 170), tendo em vista que alguns desses elementos
se relacionam diretamente com o outros autores apontam como elementos que decorrem da constatação da
existência desse princípio e de sua transdisciplinaridade.
18

contemporâneo (pós-constitucionalismo) impõe a força normativa da Constituição, isto é,


seus enunciados não são somente simbólicos, retóricos, políticos ou declaratórios. São,
efetivamente, fonte do direito.24
No caso, por sua baixa densidade normativa, em contraste com sua carga valorativa,
a dignidade da pessoa humana funciona no sistema como princípio Constitucional geral, que,
na sua aplicação deve ser maximizado. Contudo, a compreensão da dignidade da pessoa
humana tem traçado em seu sentido nuclear uma base material mínima, que representa o
mínimo existencial. Trata-se de uma noção que atravessa outros princípios jurídicos de forma
transversa, garantindo-lhes um mínimo de efetividade geral, conglobando essa noção
mínima e material de dignidade.
Com isso se verifica que mesmo sem poder descrever um conteúdo normativo
específico, o reconhecimento de um valor intrínseco, idêntico em todos os seres humanos,
imensurável, tem consequências jurídicas, em especial diante do sistema de direitos
fundamentais estabelecidos pela Constituição.
O princípio da dignidade da pessoa humana, embora se relacione com o ordenamento
jurídico, exigindo dos direitos fundamentais uma eficácia mínima, para que não se viole a
dignidade da pessoa.
Assim, embora os princípios em geral possam ser efetivados conforme uma
determinada gradação, o preceito da dignidade da pessoa humana impõe um patamar mínimo
de efetividade e de coexistência entre os direitos fundamentais.
Esse mínimo é desenvolvido a partir dessa ideia de que a dignidade para se efetivar
depende de um substrato material mínimo, que garanta à vida as condições de existência e
ampla e farta; além de evitar que o Estado ativamente viole preceitos fundamentais; bem
como que exista garantias de participação democrática, direcionando aquela comunidade
jurídica a uma conformação de autonomia jurídica.
A dignidade da pessoa humana confere sentido e legitimidade à ordem constitucional,
sendo um princípio dela estruturante25, e garante um conteúdo valorativo inegável,
permitindo uma orientação ética das normas jurídicas.

24
Cf. Barroso, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Os Conceitos Fundamentais e a Construção
do Novo Modelo, 2015, p. 296.
25
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 95.
19

1.1.4 A dignidade da pessoa humana observada no espaço urbano

A manifestação e a concretização dos princípios constitucionais se manifestam na


realidade, e pode ser percebida através de dados objetivos que a apreendam, permitindo
avaliar suas condições reais de materialização, de efetivação.
A discussão a respeito dos conteúdos da dignidade da pessoa humana e as teorizações
sobre sua força normativa não podem ser realizadas de maneira desconectada do que está
ocorrendo e sendo valorado pelo mundo objetivo, tornando imprescindível fazer as análises
contextualizando tais conceitos e suas possibilidades de materialização em uma comunidade
concreta de indivíduos que se organiza e operacionaliza tal conceito.
Dessa forma, é indispensável ao estudo de conceitos e princípios jurídicos, a forma
como os locais e comunidades os recebem e traduzem sua existência jurídica. Isso permite
uma avaliação e um retorno às normas para verificar como está se relacionando com a
realidade que ela busca regulamentar.
Os conceitos jurídicos se mostram como atemporais, como postos em existência de
forma transcendental. E, embora se possa fazer um resgate de suas origens e situá-los
historicamente, muitas vezes tal histórico é percorrido como uma mera sucessão de fatos,
sem que se avaliem os fatores e outros elementos que influíram para que tal conceito fosse
cunhado dessa determinada forma.
Tal miopia sobre os fatores que originaram o fenômeno jurídico também percorre
outros elementos do presente. A realidade brasileira, as cidades, os centros de poder também
sofrem com esse equívoco oriundo de compreender elementos contingentes da sociedade
como objetos naturais e necessários do mundo, sem qualquer problematização.
Desse equívoco surge a presunção de que a ocupação humana das cidades, e na forma
de cidades, a maneira como os espaços se distribuíram – e não que forma criados dessa
maneira – seriam dados naturais da realidade, ignorando as dialéticas e o próprio caráter
contingente dessas ocupações, da ação humana nas cidades e da criação e interferência para
que a realidade se construísse de uma determinada forma.
É necessário problematizar os elementos do presente, como a cidade, os espaços que
os grupos ocupam, bem como os conceitos jurídicos que operacionaliza, permitindo que seja
revelada a agência dos atores sociais que concorreram para que as coisas se materializassem
de uma determinada forma, evidenciando, assim, o caráter contingente desses fenômenos.
O geógrafo Marcelo Lopes de Souza ressalta como o espaço geográfico não pode ser
20

bem entendido sem que sejam avaliadas as relações sociais que nele influem. 26
O espaço em que ocorrem os acontecimentos, em que se estruturam as cidades, e no
qual se desenvolvem as sociedades não é um elemento posto pela natureza, tão somente,
imune a intervenções e alheio às questões humanas.
Ao contrário, ainda que tenha uma base natural, é na sua interação com as populações
e agentes humanos que fazem com que seja produzido por tal conjunto social, que nele insere
seus interesses.
Assim, é possível identificar que os espaços urbanos no Brasil são produzidos pelo
Estado, pelo mercado e pelas pessoas agindo com influência dos interesses de acumulação
capitalista27, mas também por pessoas buscando reproduzir as condições de sua reprodução.
Essa percepção torna possível identificar as forças que tensionam a realidade, a
atuação do estado e dos atores sociais, e, também, as contribuições do Direito para que o
espaço seja e continue sendo produzido de uma determinada forma.
O desvelar desses contextos demonstra que o ambiente é socialmente construído, e
mesmo os espaços naturais recebem um significado da comunidade humana que com eles se
relaciona, o que faz que, mesmo formados pela natureza, sejam abrangidos por uma
determinada comunidade de maneira social e artificial.
E a Constituição de 1988, embora inovadora na previsão de um sistema de direitos
fundamentais, e na instituição da dignidade e em uma posição normativa central, com ampla
valorização da democracia,28 ainda deve ser contextualizada historicamente, bem como
avaliar o território pelo qual se espalhará sua influência, verificando sua capacidade de
regular a realidade, uma vez que sua promulgação e eficácia jurídica não resultam, de forma
automática, em efetividade social.
O professor Deàk Csaba aponta que a o Brasil tem problemas de desenvolvimento
que se relacionam com uma acumulação capitalista entravada, isto é, concentrada na
manutenção de uma sociedade de elite, fazendo com que os elementos da vida social
excludentes e com riquezas concentradas sejam reproduzidas.29 Sérgio Buarque de Holanda
também enfrenta a questão dessa sociedade de elite, a qual, desde o período colonial

26
Cf. Souza, Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial, 2013, p. 25-27.
27
Cf. Souza, Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial, 2013, p. 39.
28
Cf. Souza Neto; Sarmento, Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho., 2012, Cap. 4.5,
n.p.
29
Cf. Deák, Acumulação entravada no Brasil e a crise dos anos 80, 1991.
21

brasileiro, usa da segregação de pessoas, instaurada inicialmente com as lavouras,30 tendo


em vista seu caráter clientelista, que pessoaliza as relações públicas ou profissionais,
contaminando as relações econômicas e públicas pelos afetos31 e caprichos privados.
Sérgio Buarque de Holanda nota que enquanto no período colonial a agricultura era
uma das principais atividades, ao mesmo tempo, havia uma desvalorização social do trabalho
na lavoura, que era executado pelos negros e indígenas escravizados, fator que interferiu na
possibilidade de cooperação de outras atividades produtoras.32
Para Deák Csaba, a sociedade brasileira é estruturada como uma sociedade de elite,
que instituiu uma hierarquia forte, bem como estabelece entraves ao capitalismo. Tal
formação da sociedade seria central para compreender os problemas brasileiros, pois
decorreriam da própria formação do Estado e das instituições brasileiras, bem como o
direcionamento dessas instituições dado pelas elites que governam o país.33
A participação democrática das pessoas nos rumos e direções do governo mostra a
respeito de suas aspirações em relação. E a desigualdade, a miséria e o analfabetismo são
condições que - quando não impossibilitam -, deterioram a força e a efetividade dessa
participação democrática.
No período do Brasil-Colônia, e, em seguida, no período do Brasil-Império, se
percebe que a participação democrática é pontual e rarefeita, de modo que há pouca
participação popular nos eventos e episódios históricos, especialmente aqueles que fundaram
novas ordens jurídico-constitucionais, como a Proclamação da Independência ou a
instauração da República.
Nas palavras de José Murilo de Carvalho:

Chegou-se ao fim do período colonial com a grande maioria da população excluída dos direitos civis
e políticos e sem a existência de um sentido de nacionalidade. No máximo, havia alguns centros
urbanos dotados de uma população politicamente mais aguerrida e algum sentimento de identidade
regional.34
Grande parcela da população estava, até o fim da primeira república, excluída da
participação política e dos procedimentos democráticos. A formação da população brasileira
ocorre de forma desigual, com a presença de enormes contingentes de mão de obra
escravizada, e impedida de exercer direitos básicos ou a cidadania.

30
Cf. Holanda, Raízes do Brasil, 1995, p. 56-57.
31
Cf. Holanda, Raízes do Brasil, 1995, p. 147-149.
32
Cf. Holanda, Raízes do Brasil, 1995, p. 56-57.
33
Cf. Deák, Acumulação entravada no Brasil e a crise dos anos 80, 1991.
34
Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 25.
22

Sobre as consequências da adoção de um sistema escravocrata, Lilia Moritz


Schwarcz conclui que: “Um sistema como esse só poderia originar uma sociedade violenta
e consolidar uma desigualdade estrutural no país”.35
Isso ocorre de forma até concomitante com a abolição da escravização, contudo,
como ela se deu sem que houvesse um esforço de integrar tais pessoas à comunidade, como
explica José Murilo de Carvalho: “A abolição incorporou os ex-escravos aos direitos civis.
Mesmo assim, a incorporação foi mais formal do que real. A passagem de um regime político
para outro em 1889 trouxe pouca mudança”.36
A abolição da escravização não trouxe grandes alterações nas condições de vida dos
ex-escravos, pois à alteração formal não vieram medidas para integrar essas pessoas na
economia e na sociedade, e não garantiu que detivessem trabalho assalariado suficiente para
garantir a subsistência e acesso a uma melhoria de sua qualidade de vida. Segundo Celso
Furtado, a abolição poderia ocasionar uma redistribuição de renda e uma reorganização da
produção, contudo observa que: “Abolido o trabalho escravo, praticamente em nenhuma
parte houve modificações de real significação na forma de organização da produção e mesmo
na distribuição da renda”.37
Lilia Moritz Schwarcz afirma que essa desigualdade se manteve após a emancipação,
de forma que ainda houve surgimento de teorias para justificar biologicamente de forma
determinista a desigualdade oriunda dos séculos de escravidão.
Ela ainda assevera que a permanência dessas severas desigualdades e as
discriminações com pressupostos biológicos tinham “(...) o poder de perpetuar as estruturas
de dominação do passado, colocando em seu lugar novas formas de racialização, as quais
buscavam justificar biologicamente diferenças que eram históricas e sociais”.38
É com a urbanização que esse cenário começa a se alterar, pois junto à
industrialização das cidades, também se infiltram algumas ideias de organização política dos
operários. Embora exista exploração, a situação operária urbana, em oposição à rigidez das
estruturas escravistas e rurais, permite uma maior transição social.
Como diz Carvalho:

Se os principais obstáculos à cidadania, sobretudo civil, eram a escravidão e a grande propriedade


rural, o surgimento de uma classe operária urbana deveria significar a possibilidade da formação de

35
Schwarcz, Sobre o Autoritarismo Brasileiro, 2019, p. 29.
36
Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 17.
37
Furtado, Formação Econômica do Brasil, 2007, p. 204.
38
Schwarcz, Sobre o Autoritarismo Brasileiro, 2019, p. 31.
23

cidadãos mais ativos. A urbanização evoluiu lentamente no período, concentrando-se em algumas


capitais de estados.39
O século XX representou para o Brasil uma revolução urbana, pois, no decorrer desse
século, as cidades começam a ganhar relevância na medida em que a população ultrapassa o
número de habitantes que vivem em zonas rurais. No período Vargas, os pobres das cidades
começam a ganhar relevância, gerando-se algum grau de desenvolvimento nas expressões
de cultura política.40
Sem que houvesse uma superação dos problemas do campo e das consequências da
escravidão, a urbanização permitiu que a marginalização e a desigualdade se
reconfigurassem, bem como a exploração do trabalho. A urbanização da segunda metade do
século XX foi forte, e, ao mesmo tempo que favoreceu a participação política, também se
deu por meio de agregação de populações marginalizadas.41
O espaço urbano não é um elemento inerte do cenário jurídico e político, mas palco
ou campo em que ocorrem as disputas, de modo que acaba por promover uma maior
intensidade de relações sociais, o que resultou num Brasil com maior participação política e
troca de ideias, acesso a bens diversos e a alguma mobilidade social.
A forma como as pessoas passam a ocupar as cidades, e habitá-las, tem relação direta
com a forma como se construíram esses espaços, e de como foram autorizadas a distribuição
e as construções das moradias, ou seja, de como esse espaço social das cidades foi produzido
por seus atores, quais sejam, os indivíduos, o Estado e as forças econômicas.
E é nessa efetiva base material que se coloca a possibilidade de efetivação da
dignidade humana, já que as diferentes localidades de uma cidade podem permitir um acesso
diferenciado aos direitos, aos bens e riquezas oriundos das conexões mais intensas que
ocorrem com a convivência humana.
Embora tenha ocorrido uma grave mudança na organização das pessoas com
consequências jurídicas, sociais e políticas, não se esgotou e nem foram eliminadas as
influências e as desigualdades decorrentes da raiz escravocrata do Brasil. De qualquer modo,
a análise sobre urbanização fornece elementos para avaliar a hipótese de que se trata de
questão fundamental à compreensão da dignidade, em suas diversas dimensões.
A análise teórica empreendida por Eduardo Carlos Bianca Bittar aponta para a

39
Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 57.
40
Cf. Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 126.
41
Cf. Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 194.
24

conexão dos conhecimentos jurídicos com a realidade brasileira enquanto aspecto central
para a ambientação das categorias jurídicas à realidade histórica brasileira, em especial
considerando que os conceitos jurídicos, ainda que dotados de independência e
reconhecimento universais, devem ser situados para serem utilizados.42
Segundo Eduardo Carlos Bianca Bittar, o desenvolvimento histórico brasileiro
permite explicar as causas e problemas que atravessam as tentativas de garantia dos direitos,
sendo as verdadeiras raízes do atraso brasileiro, que ainda gera efeitos no Direito Brasileiro,
apontando que “fica evidente que, os próprios déficits de cidadania, tão presentes, até os dias
de hoje, guardam suas raízes históricas no período colonial”.43
E os espaços urbanos e rurais, e a forma como vêm sendo ocupados, bem como as
populações que não podem usufruir de todas as condições da terra, culminando nas enormes
desigualdades e nos enormes déficits de cidadania do país, mostram as condições sociais,
históricas e culturais em que surge a Constituição de 1988, a qual, mesmo prevendo diversos
direitos fundamentais para as pessoas, enfrenta desafios imensos de efetivação.
O contexto material em que é fundada a ordem jurídica brasileira é marcado por
profundas contradições e por abissais desigualdades, cujas necessidades e desejo de
superação transbordaram para o texto constitucional, como uma possível resposta aos atrasos
e abusos cometidos até então, contudo, a incapacidade de instaurar a modernidade de forma
completa na realidade brasileira demonstra a incompletude desse processo. E é a correção e
seriedade desse diagnóstico que permitirão alguma forma de aprofundamento das instâncias
democráticas, e a busca pela efetividade dos direitos previstos constitucionalmente.44

1.1.5 A dignidade e os direitos fundamentais

A dignidade da pessoa humana anuncia e pressupõe a existência dos direitos


fundamentais, os quais também são alocados em posição destacada na Constituição Cidadã,
que simbolicamente os deixa em proeminência, na abertura do texto constitucional com os
valores mais relevantes.
O sistema dos direitos fundamentais é incorporado na Constituição como reação ao
período anterior da ditadura civil-militar (1964-1985), prevendo direitos que teriam a
capacidade de encerrar as contradições e desigualdades do Brasil, erradicando sua miséria e

42
Cf. Bittar, Introdução ao Estudo do Direito: humanismo, democracia e justiça, 2019, p. 217-218.
43
Bittar, Introdução ao Estudo do Direito: humanismo, democracia e justiça, 2019, p. 226.
44
Cf. Bittar, Introdução ao Estudo do Direito: humanismo, democracia e justiça, 2019, p. 239-240.
25

superando as hierarquias de cidadania, caso fossem concretizados.


Nesse âmbito, a dignidade da pessoa humana vem apresentada como fundamento da
República (art. 1º., inc. III CF 88). E, tendo essa posição de absoluta primazia, pode exercer
a função de elemento de identificação de direitos fundamentais implícitos, partindo do
conceito materialmente aberto de direito fundamental, isto é, de que os direitos fundamentais
não estão previstos no texto constitucional de forma exaustiva, mas também se remetem ao
princípio da dignidade da pessoa humana.
Essa função de identificação material dos direitos fundamentais evidencia a conexão
entre a dignidade da pessoa humana e tais direitos, de modo que é possível reconduzir
praticamente a totalidade deles a uma parcela do conteúdo dignidade da pessoa humana.45
Além disso, há necessidades de ordem material essenciais para que a vida seja vivida
com dignidade, de modo que o seu atendimento mínimo apenas pode se dar por meio dos
direitos fundamentais prestacionais.46
Por isso, Ingo Wolfgang Sarlet lembra como o mínimo existencial é essencial para
que se possa existir uma conexão entre a dignidade da pessoa humana e justiça social, de
modo a realizar-se no plano prático a proteção da dignidade da pessoa humana.47

1.2 Direitos fundamentais, direitos sociais e direito à moradia

1.2.1 Conceito de direito fundamental

Uma vez estabelecida a noção de dignidade da pessoa humana, percebe-se que uma
de suas dimensões, que diz respeito ao mínimo material para a vida com dignidade, é objeto
de diversos direitos fundamentais.
Desse modo, antes de observar especificamente o direito à moradia, é necessário
compreender como se pode estabelecer e conceituar o gênero que comporta esse direito, que
forma um sistema de direitos fundamentais, e observar as implicações sociais e jurídicas da
existência e de estabelecer tal sistema de direitos.
Há debates a respeito do que significa ou abrange a expressão ‘direitos
fundamentais’, confrontando tal categoria com expressões como ‘direitos humanos’, porém,

45
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 113-
114.
46
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 136.
47
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 138.
26

por serem definições arbitrárias, não se entrará em tal debate, e apenas se apresentará o
conceito as ser utilizado brevemente, evitando equívocos. Assim, pode-se conceituar tal
expressão como, emprestando-se a formulação de André de Carvalho Ramos:

Finalmente, chegamos a duas expressões de uso corrente no século XXI: direitos humanos e direitos
fundamentais. Inicialmente, a doutrina tende a reconhecer que os “direitos humanos” servem para
definir os direitos estabelecidos pelo Direito Internacional em tratados e demais normas internacionais
sobre a matéria, enquanto a expressão “direitos fundamentais” delimitaria aqueles direitos
reconhecidos e positivados pelo Direito Constitucional de um Estado específico.48
Partindo dessa concepção - de direito humano positivado constitucionalmente - o
conceito de ‘direitos fundamentais’, ainda guarda correlação com a dignidade da pessoa
humana. Essa concepção remete à leitura da Constituição de 1988 que estruturar texto
conforme uma certa classificação dos direitos nela previstos.
A Constituição prevê, em situação topográfica privilegiada, em seu “Título II - Dos
Direitos e Garantias Fundamentais”, cinco capítulos que tratam: dos direitos e deveres
individuais e coletivos; dos direitos sociais; da nacionalidade; dos direitos políticos e dos
partidos políticos.
Há menção à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais em outros
pontos da Constituição, que serão oportunamente comentados. Retornando à classificação
efetuada pela Constituição, observa-se que o texto constitucional não utilizou a divisão dos
direitos fundamentais em dimensões, ou gerações, mas uma própria. A escolha de uma
determinada classificação é tributária da finalidade com que se separam os elementos dessa
classificação, inexistindo uma classificação essencial ou correta.
É interessante notar, contudo, que tais direitos também não correspondem a uma
simples abstração, mas são: “acima de tudo, fruto de reivindicações concretas, geradas por
situações de injustiça e/ou de agressão a bens fundamentais e elementares do ser humano”.49
O conceito de direitos fundamentais depende da positivação de um determinado
direito na Constituição, característica chamada por Ingo Wolfgang Sarlet de
fundamentalidade formal, que representa a situação daquele direito em específico constar
como direito previsto na norma que representa o ápice do ordenamento jurídico, com
especial proteção relativa à reforma e aplicados diretamente.
Depende, ainda, da verificação da fundamentalidade material, “isto é, da

48
Ramos, Curso de Direitos Humanos, 2016, p. 52.
49
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 52-53.
27

circunstância de conterem, ou não, decisões fundamentais sobre a estrutura do Estado e da


sociedade, de modo especial, porém, no que diz com a posição nestes ocupada pela pessoa
humana”.50
Esse elemento material da fundamentalidade se mostra necessário, tendo-se em
consideração que há uma abertura material para direitos fundamentais não previstos
constitucionalmente, conforme se observa do § 2º do art. 5º da Constituição Federal.
Influenciado pelo trabalho de Robert Alexy, Ingo Wolfgang Sarlet, a parte dessas
reflexões e apresenta o seguinte conceito de direitos fundamentais:

Direitos fundamentais são, portanto, todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do
ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância
(fundamentalidade em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da
esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por
seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo,
ou não, assento na Constituição formal (aqui considerada a abertura material do Catálogo).51
Tal conceito mostra-se suficiente, na medida em que traz os direitos previstos pela
Constituição, abrangendo também aqueles não previstos expressamente, conforme o sistema
estabelecido constitucionalmente para os direitos fundamentais.

1.2.2 Perspectiva histórica dos direitos fundamentais

É costumeiro classificar direitos fundamentais a partir de suas gerações, que


traduzem bem os momentos históricos em que foram efetivados, subsequentemente trazendo
as críticas à terminologia de ‘gerações’, que passaria a ideia de direitos estanques e de
diferentes naturezas, porém as críticas se fundam na interpenetração e indivisibilidade dos
direitos fundamentais, que, mesmo se remetendo a períodos históricos distintos, têm na
verdade dimensões, já que os das primeiras gerações implicam os das subsequentes.
A divisão dos direitos fundamentais em dimensões é considerada mais apropriada
para evidenciar seu caráter histórico, pois as dimensões, de modo aproximado,
correspondem à ordem histórica em que passaram a ser reivindicados e garantidos
constitucionalmente. Assim, com as influências iluministas e liberais nos séculos XVIII e
XIX, são positivados e garantidos os direitos de primeira dimensão, com as reivindicações
sociais e os pactos de bem-estar social do século XX, são discutidos e previstos os direitos

50
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 76.
51
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 78.
28

de segunda e terceira dimensão.


A perspectiva dimensional apresenta a principal vantagem de evidenciar que não há
sucessão derrogatória de direitos fundamentais, o que decorreria de uma simples análise
histórica, mas denota a compreensão de que esses podem e devem ser reconhecidos como
interconectados entre si.
Os direitos de primeira dimensão correspondem aos direitos de matriz liberal, isto é,
geralmente opostos aos abusos do Estado, como a liberdade, o devido processo legal, a
propriedade e a livre determinação. São os direitos civis e políticos. O titular é o indivíduo.52
Os de segunda dimensão correspondem aos direitos sociais, culturais e econômicos,
sendo comumente relacionados ao valor de igualdade. Nestes direitos fica mais evidente a
necessidade de atuação estatal.53 “Não se cuida mais, portanto, de liberdade do e perante o
Estado, e sim de liberdade por intermédio do Estado”.54
Já os direitos de terceira dimensão seriam aqueles que “(...) não se destinam
especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um
determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano (...)”.55 São os direitos
difusos como o direito ao meio ambiente.
Já há menções a outras dimensões de direitos humanos, porém em outras dimensões
não há consenso dos autores, de modo que Paulo Bonavides, por exemplo, elencaria a
democracia como direito de quarta dimensão.56 Além disso, há autores - a exemplo de
Antonio Carlos Wolkmer e Eduardo C. B. Bittar -, que já defendem a formação de uma
quinta dimensão, em face dos desafios atuais, concernentes ao desenvolvimento tecnológico,
da era digital, e a necessidade de proteção da dignidade humana em ambientes digitais.
Interessante observar que Ingo Wolfgang Sarlet identifica os direitos fundamentais
enquanto direitos imbricados com a democracia e com a dignidade da pessoa humana:

(...) além da íntima vinculação entre as noções de Estado de Direito, Constituição e direitos
fundamentais, estes, sob o aspecto de concretizações do princípio da dignidade da pessoa humana,
bem como dos valores da igualdade, liberdade e justiça, constituem condição de existência e medida
da legitimidade de um autêntico Estado Democrático e Social de Direito(...).57

52
Cf. Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 2010, p 563.
53
Cf. Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 2010, p. 564.
54
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 47.
55
Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 2010, p. 569.
56
Cf. Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 2010, p. 572.
57
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 62-63.
29

De todo modo, tendo em consideração a efetividade desses direitos, a classificação


que melhor atende a essa análise diz respeito à função desses direitos, isto é, como eles são
aplicados pelos operadores do direito, e como são os efeitos que geram.

1.2.3 Classificação dos direitos fundamentais conforme suas funções

A aplicação dos direitos fundamentais pelos operadores do direito permite remete à


efetividade de tais direitos, bem como o esforço estatal necessário para a sua efetivação.
A interpretação dos direitos fundamentais revela uma face objetiva e outra subjetiva
desses direitos. Objetivamente, a previsão de determinado direito como fundamental
significa que a ordem jurídica escolheu tal elemento como valor essencial dessa sociedade -
não sem que esse valor não fosse antes, ou uma reivindicação, ou ainda, fruto de uma longa
luta da sociedade em torno de seu sentido e de seu reconhecimento -, e esse valor influencia
a interpretação do próprio ordenamento jurídico e a atuação de todos os poderes do Estado.
Essa influência pode ser vista, por exemplo, na chamada eficácia irradiante dos
direitos fundamentais guarda respeito com esse aspecto, pois influencia a produção de outras
normas, agindo como filtro para a constitucionalidade e da atuação estatal, fundamentando
a elaboração de políticas públicas.
Trata-se de função que não significa simplesmente o oposto de um direito subjetivo.
Há efeitos normativos próprios que surgem no ordenamento jurídico, enquanto reflexo da
simples previsão de determinado valor como direito fundamental. Neste ponto, Ingo
Wolfgang Sarlet assinala que:

(...) às normas que preveem direitos subjetivos é outorgada função autônoma, que transcende esta
perspectiva subjetiva, e que, além disso, desemboca no reconhecimento de conteúdos normativos e,
portanto, de funções distintas aos direitos fundamentais.58
A perspectiva objetiva complementa o caráter subjetivo do direito fundamental, que
se reflete na existência de um direito subjetivo correspondente, uma posição exigível
juridicamente. Não se trata de características antagônicas, mas complementares. Têm relação
com as funções que serão exercidas na interpretação e aplicação desses direitos.
A possibilidade de multifuncionalidade dos direitos fundamentais é tratada por Ingo
Wolfgang Sarlet, que resgata a classificação dos status de Georg Jellinek. Tais classificações
utilizam como parâmetro a ação estatal correspondente, ou o direito subjetivo

58
Cf. Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 150.
30

correspondente à previsão de determinado direito fundamental, ressaltando que eles


assumem essas diferentes funções, embora uma delas seja predominante.
Assim, nesta toada, é possível tomar os direitos fundamentais pelo correspondente
efeito jurídico que essa previsão estimula ou pode produzir. O direito a uma determinada
prestação estatal, segundo classificação de Ingo Wolfgang Sarlet, se subdivide em duas, uma
primeira, com um sentido amplo, a saber, de proteção e de participação na organização e
procedimento, e, por sua vez, uma segunda, com um sentido mais estrito, a saber, de
fornecimento de bens materiais sociais especificamente.59
Os direitos de defesa se mostram como aqueles que, de forma predominante,
resguardam o indivíduo contra intromissões, protegendo sua posição jurídica. É o caso dos
direitos de liberdade e de propriedade, por exemplo, para os quais, a efetividade se traduz
principalmente em proteção. E ainda que qualificados como “de defesa” eles geram sob uma
perspectiva mais ampla de atuação estatal o direito a uma prestação, que deverá garantir essa
posição jurídica, ou que evite ou desfaça uma intervenção ilegítima naquele direito.
Ao se analisar o direito à igualdade, se nota sua aplicação, na função de defesa, gera
o direito à não discriminação. De outro lado, tal direito também pode ser exercitado como
fundamento para exigir uma prestação estatal, ocasião em que se exigiria uma prestação
estatal, seja uma prestação jurisdicional para efetivar ou afastar uma discriminação, ou ainda
para exigir uma medida afirmativa, isto é, uma atuação estatal com o intuito de minorar as
desigualdades sociais.
Assim, ainda que algumas classificações estabeleçam determinado direito como
individual ou social, sua previsão acarreta diferentes posturas do Estado, evidenciando que
as diferentes funções dos direitos fundamentais, seja a abstenção estatal, para a defesa da
pessoa, ou mesmo a prática de uma ação ou prestação que garanta a efetividade substancial
daquele direito.
A perspectiva de multifuncionalidade dos direitos fundamentais evidencia que os
direitos previstos nos diferentes capítulos do título I da Constituição da República de 1988,
ou ainda das diferentes dimensões, não guardam diferenças relativas à sua efetividade,
podendo ser reduzidos a essas duas formas de atuação estatal, isto é, uma omissão que o
respeita ou uma ação que o implementa.

59
Cf. Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 174.
31

José Felipe Ledur adota uma classificação também com base nas funções,
ligeiramente diversa daquela utilizada por Ingo Wolfgang Sarlet, estabelecendo como uma
função jurídico-objetiva a proteção de determinado direito contra intervenções de terceiros,60
enquanto Ingo Wolfgang Sarlet coloca essa função como inserida na categoria prestação
estatal em sentido amplo.61
Superando essas diferentes visões, é esclarecedora a acepção de José Felipe Ledur a
respeito da necessidade de realização de política pública:

Se antes os direitos fundamentais estavam mais centrados na função jurídico-subjetiva, voltada contra
o poder estatal, agora a ela se somam as funções objetivas, destinadas a proteger os direitos
fundamentais de restrições ilegítimas oriundas do poder privado.62
Independentemente dessas previsões, é importante ressaltar a necessidade de
concretização, ou de maior densidade para que os direitos fundamentais possam ser
operacionalizados.

1.2.4 Direitos sociais

A previsão dos direitos sociais nas Constituições relaciona-se com a reivindicação de


direitos trabalhistas do início do século XX. Estes direitos têm a sua primeira expressão na
Constituição mexicana de 1917. Em seguida, a Constituição de Weimar, de 1919, também
foi pioneira na previsão desses direitos.
Tais referências inauguram a ideia de Estado Social de Direito, a qual concebe o
Estado de Direito não somente como aquele que respeita os cidadãos e não interfere em sua
vida privada, mas que efetivamente age para garantir condições sociais para a comunidade.
Neste ponto, Ingo Wolfgang Sarlet, destaca a dimensão utópica dos direitos sociais:

“Se adotamos o entendimento de que as utopias representam (não só, mas também e especialmente,
“horizontes de sentido”, nesse sentido, efetivamente, firmamos convicção no concernente a uma
dimensão utópica de todos os direitos fundamentais”.63
A efetividade dos direitos sociais não se circunscreve à mera prestação material, pois,
atentos à sua operação multifuncional, é possível observar que há nessa categoria de direitos
tanto aqueles em que predomina a função de defesa, como o direito social de greve ou outros

60
Cf. Ledur, Direitos Fundamentais Sociais: Efetivação no âmbito da Democracia Participativa, 2009, p. 36-
37.
61
Cf. Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 197.
62
Ledur, Direitos Fundamentais Sociais: Efetivação no âmbito da Democracia Participativa, 2009, p. 45.
63
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 382.
32

em que predomina o funcionamento prestacional, como ocorre com o direito à saúde, o qual
necessita de prestações estruturadas e organizadas para a sua plena efetivação.
Essa multifuncionalidade também demonstra como a luta pela efetividade desses
direitos deve ser múltipla e complexa.
Eles não têm essa nomenclatura por serem titularizados pela sociedade, de modo
difuso ou abstrato, mas por guardar relação com valores de justiça social, podendo até
mesmo originar posições jurídicas subjetivas individuais, como ocorre com o direito à
educação infantil ou à saúde.
Os direitos sociais pertencem a uma categoria distinta dos direitos coletivos, embora
possa existir direitos que pertencem a esses dois conjuntos. Os direitos coletivos são os
direitos que são titularizados por uma coletividade, ao passo que os sociais são aqueles
classificados assim pela constituição, costumeiramente associados aos de segunda dimensão.
Dessa forma “há direitos sociais que encontram expressão individual e outros que se
expressam coletivamente”.64 Isso evidencia como a categoria ‘social’ dos direitos
fundamentais tem relação direta com as condições materiais necessárias para a vida digna,
ou para o exercício pleno da liberdade e da igualdade, estabelecidas como direitos
fundamentais individuais, mas que, sem o necessário contexto fático, restam esvaziados.
Assim, os direitos sociais estão, muitas vezes, na condição para a aquisição ou para o
exercício de um direito fundamental de primeira dimensão, o que aponta para a interconexão
e para a complementaridade entre estes direitos.
Neste tocante, José Felipe Ledur ainda explica que:

O que se busca, tanto com os direitos sociais gerais e específicos quanto com os coletivos, é garantir
um patamar social que se eleve acima do mínimo existencial, isto é, um conjunto de situações ou
condições individuais e sociais que ao mesmo tempo proporcionem a autonomia do indivíduo e
assegurem o bem comum, ou seja, a comum dignidade da pessoa em sociedade livre, justa e
solidária.65
Uma outra visão sobre os direitos sociais, de José Eduardo Faria:

Os direitos sociais não configuram um direito de igualdade, baseado em regras de julgamento que
implicam um tratamento uniforme; são, isto sim, um direito das preferências e das desigualdades, ou
seja, um direito discriminatório com propósitos compensatórios; um direito descontínuo, pragmático
e por vezes até mesmo contraditório, quase sempre dependente da sorte de determinados casos

64
Ledur, Direitos Fundamentais Sociais: Efetivação no âmbito da Democracia Participativa, 2009, p. 86.
65
Ledur, Direitos Fundamentais Sociais: Efetivação no âmbito da Democracia Participativa, 2009, p. 87.
33

concretos.66

Muitos dos direitos sociais têm na prestação estatal a principal forma de efetivação,
ainda que possam servir como direito de defesa quando se invoca a vedação do retrocesso.
E, por depender de uma ação do Estado, dependem de uma densidade normativa e de uma
conceituação precisa para que possam ter garantida sua justiciabilidade.
Interessante notar que essa prestação pode vir em diferentes formas, como por
exemplo diretamente pelo fornecimento de bens materiais correspondente à satisfação
daquele direito material; ou mesmo a criação de instituições e bens públicos acessíveis para
o cidadão, como por exemplo a criação de um conselho participativo. Ademais, a prestação
pode também corresponder à participação nos bens comunitários, como equipamentos
públicos.67
A concretização desses direitos é condição lógica para que o direito social realmente
tenha uma substância apta a ser exigida judicialmente na forma de um direito subjetivo, e
delimita também quais formas de prestação serão exigíveis ou realizadas pelo Estado. Essa
delimitação implica uma limitação à potencialidade plena do conceito do direito
fundamental, pois estabelecer os elementos que o compõem também implica a exclusão de
todos os outros.
Uma leitura apressada – e equivocada – dos direitos sociais poderia confundi-los com
‘normas programáticas’, tendo em vista que muitos deles têm a finalidade comum com
outras normas programáticas como a redução da miséria e da pobreza, tendo em
consideração que alguns direitos sociais, como é o caso da alimentação ou da moradia,
caminham na concretização destas normas programáticas.
Já para Ingo Wolfgang Sarlet, embora importante, a concretização serve à
operacionalização do direito fundamental, já que a eficácia dependeria mais de condições
materiais do Estado do que propriamente de regulamentação:

A necessidade de interposição legislativa dos direitos sociais prestacionais de cunho programático


justifica-se apenas (se é que tal argumento pode assumir feição absoluta) pela circunstância – já
referida – de que se cuida de um problema de natureza competencial, porquanto a realização destes
direitos depende da disponibilidade dos meios, bem como – em muitos casos – da progressiva

66
Faria, O Judiciário e os Direitos Humanos e Sociais: notas para uma avaliação da justiça Brasileira, 2002,
p. 105.
67
Cf. Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 292.
34

implementação e execução de políticas públicas na esfera socioeconômica. 68


Relativamente aos direitos sociais, há debates sobre a sua limitação em função da
teoria da reserva do possível, que preconiza que destes direitos apenas são efetivamente
direitos subjetivos aqueles respaldados pela capacidade material do Estado em prestá-los.
No entanto, essa concepção teórica admite a limitação tendo em vista a proteção ao
mínimo existencial, proteção decorrente do reconhecimento da dignidade da pessoa humana
e das condições materiais mínimas necessárias para uma vida digna, observando que o
conceito de vida digna é mais amplo que a sobrevivência. Além disso, a própria democracia
pressupõe a existência de um nível mínimo de independência e de segurança para cada
pessoa.69
É por meio dos direitos sociais que estão previstas as prestações para garantir as
necessidades materiais básicas, implicadas na noção de mínimo existencial enquanto
garantia da vida digna.70
É também com base no mínimo existencial, isto é, nas prestações básicas para saúde,
habitação, segurança social, trabalho e à educação que Jorge Reis Novais constrói um
conceito básico, até independente do direito positivo, de direitos sociais básicos, tendo como
aspectos comuns o acesso a bens de natureza econômica, social e cultural, os quais não
poderiam ser acessados sem recursos ou prestação estatal.71
E esse mínimo existencial, por ser superior a um mínimo de prestações que garanta
a sobrevivência, deve ser construído de forma correlacionada com o progresso,
desenvolvimento e condições materiais de uma determinada sociedade. Nessa mesma linha
de raciocínio, explica José Felipe Ledur que: “A relação dos direitos sociais com o
desenvolvimento econômico de um país implica que o nível de riqueza alcançado pela
respectiva Sociedade seja parâmetro para a definição do que é devido em termos de
prestações sociais”.72
Assim, em sociedades prósperas é possível defender que os parâmetros mínimos

68
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 301.
69
“A right to minimal social and economic guarantees can be justified, not only on the ground that people in
desperate conditions will not have good lives but also on the ground that democracy requires a certain
independence and security for everyone” (Sunstein, Designing democracy: What constitutions do, 2001,
p. 235).
70
Cf. Sarlet, Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2019, p. 136.
71
Cf. Novais, Direitos Sociais: Teoria jurídica dos direitos sociais enquanto direitos fundamentais, 2017, p.
50-51.
72
Ledur, Direitos Fundamentais Sociais: efetivação no âmbito da Democracia Participativa, 2009, p. 98.
35

existenciais sejam mais elevados, e, além disso, que a concretização seja dada de forma mais
sofisticada e abrangente.
As classificações dos direitos fundamentais são úteis para compreender a
operacionalização do direito e qual é o nível de interposição legislativa necessária para sua
eficácia, e não como argumento para afastar a justiciabilidade ou aplicação e exigibilidade
dos direitos sociais, já que, por serem direitos fundamentais, têm aplicabilidade imediata,
como preceitua o comando do art. 5º, § 1º, da Constituição da República: “As normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
A previsão de aplicação imediata para os direitos fundamentais alcança também os
direitos sociais, já que se constitui numa espécie dessa categoria. Mesmo sem nenhuma
concretização, a previsão de que os direitos têm aplicação imediata exige o esforço do
intérprete, que deve retirar o sentido possível dessa norma, e, em especial, verificar o nível
mínimo para que seja mantida a dignidade da pessoa humana, resguardando-se com isso o
mínimo existencial.
Independe de concretização, a operacionalização da função de defesa dos direitos
sociais, com a qual o Estado deve abster-se de medidas que interfiram danosamente na
consecução desses direitos, ou que pratique condutas que violem esses preceitos. Ainda há
os efeitos objetivos, que independem de concretização, efetivando a irradiação desses
valores na interpretação do ordenamento jurídico.
Entretanto, isso não afasta a utilidade e a necessidade de concretização, que permita
estabelecer os padrões que permitam efetivar o direito social envolvido, até mesmo
permitindo sua justiciabilidade.
E isso porque esta categoria de direitos guarda relação direta com a realidade social
da comunidade, de modo que podem encontrar na concretização o método para estabelecer
os parâmetros para efetivar o direito, verificando qual será o mínimo a ser garantido para
manter a dignidade, e, tendo em vista o grau de prosperidade e desenvolvimento econômico,
para fixação de padrões mais elevados de efetivação e garantia desse direito.
Há diversas definições do conceito de eficácia, efetividade e aplicação. Neste tocante,
pode-se ter presente o que a este respeito afirma Eros Grau, pois distingue a efetividade da
norma jurídica da eficácia. Assim, seguindo-se o Autor, a eficácia se subdividiria em eficácia
jurídica e social, evidenciando que, mesmo sem produzir efeitos sociais, às vezes a
possibilidade de provocá-los gera consequências jurídicas, ao menos, guardando à ideia de
efetividade semelhança com a eficácia social, que é propriamente a produção de
36

consequências na sociedade.73
Segundo Eduardo Carlos Bianca Bittar, a eficácia de uma norma é um de seus
atributos e, segundo suas palavras: “É o traço da norma que mais a aproxima da realidade
social, funcionando como verdadeiro termômetro das regras jurídicas”.74
Esses contornos da eficácia fazem com que ela sirva para avaliar como estão sendo
produzidas as normas jurídicas, e verificar se está concretizando a pretensão que existia
quando de sua edição. A norma não existe em si mesma, mas sempre é sempre relativa a
fatos sociais.75
A ineficácia de algumas normas pode decorrer de diferentes causas, e tal condição é
até esperada dentro de um ordenamento jurídico, tendo-se presente o que a este respeito
afirma Eduardo Carlos Bianca Bittar. Porém, adverte-se para o fato de que uma persistente
situação crônica de ineficácia pode fragilizar a própria legitimidade do ordenamento
jurídico, produzindo crises.76 Nesse sentido, afirma: “A eficácia não é fundamento de
validade, mas sim condição externa de validade para o sistema.”77.
Outros autores, como Ingo Wolfgang Sarlet, apontam que há conexão entre eficácia
e aplicabilidade, mas que não é necessário que as normas dotadas de aplicabilidade também
sejam eficazes, pois a aplicabilidade se perfaz com a mera potência de produção de efeitos78.
Embora seja importante a delimitação precisa desses conceitos, para a investigação
proposta, o elemento de destaque dessas definições é o elemento de conexão da norma
jurídica com fatos, representando a capacidade de interferir e ocasionar condutas ou
prestações jurídicas. No caso dos direitos sociais, em que a norma não encerra uma conduta,
mas um bem da vida, sua eficácia – além da normativa – se distribui como uma progressão,
isto é, se realiza em graus.
Desse modo, o conceito de eficácia a ser utilizado, para esse tipo de direito
fundamental, não se consubstancia com a possibilidade de aplicação por alguns órgãos do
Poder Judiciário ou com a produção de efeitos jurídicos, mas deve ser medida conforme sua
intervenção nos indicadores sociais relacionados e na realização plena – ou incremento dela

73
Cf. GRAU, A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 2012, p. 305.
74
Bittar, O Direito na Pós-Modernidade, 2014, p. 161.
75
Cf. Bittar, O Direito na Pós-Modernidade, 2014, p. 162.
76
Cf. Bittar, O Direito na Pós-Modernidade, 2014, p. 164-165.
77
Bittar, O Direito na Pós-Modernidade, 2014, p. 156.
78
Cf. Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 246.
37

– da potencialidade inscrita no direito fundamental.


Para Eduardo Carlos Bianca Bittar, “a qualificação de uma norma jurídica como
eficaz ou ineficaz sempre comporta graus”,79 sendo possível, portanto, aferir a situação de
eficácia de um direito, e ainda incrementar seu nível de eficácia.
Nesse sentido, a concretização se mostra essencial e conectada com a eficácia do
direito fundamental social. Ao mesmo tempo em que se permite a atuação do Estado para
efetivar o direito - por meio do exercício da função administrativa ou jurisdicional -, cria os
parâmetros que vão permitir avaliar e exigir essa mesma movimentação. A concretização
viabiliza a aplicação e, ao mesmo tempo, estabelece o padrão de eficácia.
Problematizando a questão, Ingo Wolfgang Sarlet aponta como:

(...) eventual abertura e indeterminação do enunciado normativo não constituem, por si só, argumento
suficiente para sustentar a dependência dos direitos sociais prestacionais de interposição legislativa,
já que mesmo na esfera dos direitos de defesa e até das normas organizacionais tal circunstância não
impede, de regra, sua imediata aplicabilidade e eficácia (...)80
Acrescenta, que “(...) assume especial relevo a íntima vinculação – destacada
especialmente pela doutrina estrangeira – de vários desses direitos com o direito à vida e
com o princípio da dignidade humana (...)” 81.
E, de forma apriorística à concretização, é possível defender a garantia do mínimo
existencial como uma forma de efetividade que resguarde a dignidade da pessoa humana.
A questão da eficácia do direito à moradia, e de outros direitos fundamentais, mostra-
se central para a legitimação do ordenamento jurídico brasileiro, por se tratar efetivamente
de direitos indispensáveis e interconectados, já que uns são necessários para que os outros
sejam minimamente garantidos.
E, para que seja possível compreender as nuances relacionadas à efetivação dos
direitos fundamentais é indispensável localizar a experiência constitucional inovadora no
tempo e no espaço brasileiros, isto é, verificar as condições econômicas, sociais, culturais e
políticas que permitem ou entravam a eficácia desses direitos.
E é nesse sentido que Eduardo Carlos Bianca Bittar aponta para a necessidade de
“considerar a historicidade da construção da cidadania”,82 e, ao fazê-lo, nota sintomas de

79
Bittar, O Direito na Pós-Modernidade, 2014, p. 162.
80
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 346.
81
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 346.
82
Cf. Bittar, O Direito na Pós-Modernidade, 2014, p. 172.
38

crise, revelados pelos indicadores sociais de pessoas sem a garantia de direitos fundamentais,
que demonstram que o próprio ordenamento jurídico brasileiro pode ser considerado como
padecendo de ineficácia crônica, fazendo derreter sua legitimidade, de modo que o próprio
modelo de Estado escolhido entra em crise.83

1.2.5 O direito à moradia na Constituição

Uma vez dotados de conceitos para tratar a dignidade da pessoa humana, os direitos
fundamentais e os direitos sociais, é possível observar o enunciado normativo constitucional
que estabelece a moradia como um direito, cuja natureza é interseccionada por tais conceitos.
Assim, pode-se proceder à leitura do direito à moradia, inserido no artigo 6º da
Constituição da República de 1988, no capítulo dos direitos sociais, sendo possível entendê-
lo como direito social e como direito fundamental, essencial em uma acepção material da
dignidade da pessoa humana seja garantida, compondo o mínimo existencial.
É necessário observar que a Constituição, que é reconhecidamente citada pelos
constitucionalistas como analítica 84, no que tange a esse importante direito fundamental
mostra-se sintética85, já que apenas o enuncia como direito fundamental, e traz algumas
outras previsões que o atravessam, como por exemplo ao trazer um capítulo sobre a política
urbana.
Além disso, é importante mencionar que o direito à moradia não constava do texto
original da Constituição, promulgado em 198886. O direito à moradia somente foi
expressamente87 incluído após a promulgação da Emenda Constitucional N.º 26 de 2000,
resultado de pressões de movimentos sociais.
Todavia, a ausência de menção expressa à moradia não significou que o tema foi
completamente ignorado pelo texto constitucional. Ao contrário, houve fortes inovações
normativas, que incorporaram temas bastante caros à política habitacional, isto é, o capítulo

83
Cf. Bittar, O Direito na Pós-Modernidade, 2014, p. 196-197.
84
Classificação das constituições que considera a constituição extensa e demasiado detalhada.
85
Contraparte da constituição analítica, a sintética traz apenas os tópicos mais importantes, deixando o
detalhamento às leis infraconstitucionais.
86
Os aspectos históricos e a luta política que envolveram a inclusão desses capítulos por meio da atuação do
Movimento Nacional Pela Reforma Urbana bem como o contexto em que a moradia foi expressamente
prevista serão aprofundados no capítulo 2.1.6, desta dissertação.
87
É possível abrir o debate de que o direito à moradia, a despeito de somente ter sido incluído em 2000, desde
a promulgação da Constituição poder ser considerado como um direito fundamental implícito, tendo em
vista a já citada centralidade e interdependência desse direito, cuja efetividade é condição para o exercício
de diversos outros expressamente citados, contudo, tal discussão foge ao escopo inicialmente proposto.
39

da política urbana, que abrangia os artigos 182 e 183, com conteúdo inovador em relação às
constituições brasileiras anteriores, o qual foi resultado da influência e da atuação política
do Movimento pela Reforma Urbana, cuja influência será expandida mais adiante.

1.2.6 Interposição legislativa concretizando o direito à moradia

O direito à moradia, embora não conte com densidade de concretização normativa


no texto constitucional, já que é simplesmente enunciado por ele, pode ser delimitado e ter
concretude em razão da análise do ordenamento jurídico em que se insere, já que em sua
interpenetração com os outros direitos fundamentais, bem como tratados internacionais e
legislação infraconstitucional contribuem para sua materialização.
E, a análise de sua eficácia ou efetividade, para esta dissertação, ultrapassa a eficácia
jurídica, ou a aplicação pelos juízes, mas tem por alvo a produção de efeitos concretos e
alterações sociais mensuráveis.
Assim, o sentido de eficácia que será utilizado é aquele apurado pela maximização
da garantia do bem jurídico protegido, pelas suas consequências sociais, de algum modo
perceptíveis empiricamente, afastando-se do sentido meramente jurídico, que se perfaz com
a operacionalização judicial desses conceitos, gerando algum efeito pontual e restrito a
determinado processo.
Segundo Eduardo Carlos Bianca Bittar, a eficácia de uma norma pode ser analisada
diante de alguns defeitos ou facetas, como por exemplo pela falta de adesão dos seus
destinatários, pela ausência de condições técnicas, pela omissão das autoridades ou ainda
porque a norma prevê algo impossível.88 Assim, antes de avaliar as questões externas à
norma, é necessário verificar se ela contém os elementos normativos necessários para que
produza efeitos.
A discussão da eficácia mira principalmente a possibilidade de produção direta de
efeitos, a partir unicamente do texto constitucional. Contudo, a interposição legislativa e a
densificação dos direitos sociais já ocorreu para vários deles, como é o caso da saúde, da
educação e do direito à moradia.
A importância da concretização, a incapacidade de definição geral de uma prestação
para suprir um direito fundamental se apresenta diante da vagueza com que os direitos sociais
são enunciados:

88
Cf. Bittar, O Direito na Pós-Modernidade, 2014, p. 164.
40

Ressalte-se, nesse contexto, que o objeto dos direitos sociais a prestações (em última análise, o
conteúdo da prestação) dificilmente poderá ser estabelecido e definido de forma geral e abstrata,
necessitando de análise calcada nas circunstâncias específicas de cada direito fundamental que se
enquadre no grupo ora em exame. 89
De acordo com Ingo Wolfgang Sarlet:

Considerando o silêncio da nossa Constituição no que diz com a definição mínima de um conteúdo
para o direito à moradia, assumem lugar de destaque as disposições contidas nos diversos tratados e
documentos internacionais firmados pelo Brasil e já incorporados ao direito interno.90
O grau de efetividade dependerá de diferentes técnicas de positivação, aceitando que
essa concretização ocorra também por meio da verificação do mínimo existencial ou, ainda,
depois do esforço de definir o conteúdo do direito de moradia, no mínimo indispensável a
uma existência digna. Há que se observar que essa definição passa pelos padrões de moradia
da sociedade em que se insere esse direito, bem como dos recursos de que dispõe essa
sociedade, tendo em vista que a efetividade está diretamente relacionada com prestações e
condições materiais de existência.
Assim, a verificação da efetividade do direito à moradia guarda relação com a
verificação do mínimo existencial e da presença das condições materiais para sua efetivação,
bem como com o nível material da sociedade em que se está previsto tal direito. 91
O ordenamento jurídico brasileiro, antes de adentrar na ordem jurídica internacional,
já contava com previsões relativas ao direito à moradia, ainda que sem essa inequívoca
literalidade e densidade normativa, como existente nos tratados internacionais de direitos
humanos.

1.2.6.1 Normas internacionais sobre a moradia

De início, a questão da moradia se insere na previsão dos direitos econômicos, sociais


e culturais, tal como decorre da previsão expressão na Declaração Universal dos Direitos
Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU):

Artigo 25: 1. Todos têm direito a um padrão de vida adequado para a manutenção da vida, da saúde e
do bem-estar seu e de sua família, o que inclui a alimentação, o vestuário, a habitação e os cuidados
médicos e assistenciais indispensáveis, e o direito à segurança diante dos riscos de desemprego,

89
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 292.
90
Sarlet, O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: Algumas Anotações a Respeito de seu Contexto,
Conteúdo e Possível Eficácia, 2003, p. 18.
91
Cf. Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional, 2018, p. 257.
41

doença, invalidez, viuvez, senilidade e outras circunstâncias for a de seu controle. 92


Há também previsão de direitos relativos à moradia no Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos, já internalizado no direito interno:

ARTIGO 11.1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível
de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia
adequadas, assim como a uma melhoria contínua suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão
medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a
importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.
A leitura desses documentos, embora evidencie a importância do direito à moradia,
não acrescenta novos conteúdos que delimitem de forma mais específica a sua configuração.
Todavia, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, introduzido pelo
Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
de 1966 - introduzido no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto N.º 591 de
1992 -, emitiu interpretação sobre o tema, aprofundando e concretizando os limites desse
direito em âmbito internacional, estabelecendo hipótese para sua aplicação direta, mas
também os elementos presentes na moradia, para que ela possa ser adequada para preencher
e efetivar esse direito.
Essa interpretação aprofunda o conteúdo do direito à moradia, delimitando sua
composição e estrutura, elementos que permitem averiguar a eficácia desse direito. Assim,
o Comentário-Geral N.º 4 do Comitê interpreta o artigo 11.1. do Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Desta forma, mais que apenas teto ou uma construção, para que a moradia seja
considerada adequada, deve-se atender a algumas condições, como a segurança legal da
posse, referente à proteção jurídica da moradia, que garante estabilidade diante de despejos,
e ameaças; a disponibilidade de serviços e infraestrutura e a bens, como abastecimento por
água, energia elétrica, aquecimento, saneamento, armazenamento de alimentos, eliminação
de resíduos, drenagem e atendimento por serviços de emergência; ter custo acessível, isto é,
que os custos com a moradia não comprometam outras necessidades básicas; habitabilidade,
a construção deve ter condições térmicas adequadas, proteção contra chuva, vento e vetores
de doenças; acessibilidade; localização que garanta acesso a opções de emprego, transporte,
serviços de saúde e educacionais, e adequação cultural, a qual expressa um elemento

“Article 25. 1. Everyone has the right to a standard of living adequate for the health and well-being of himself and
92

of his family, including food, clothing, housing and medical care and necessary social services, and the right to
security in the event of unemployment, sickness, disability, widowhood, old age or other lack of livelihood in
circumstances beyond his control” (UN, Universal Declaration of Human Rights, 1948).
42

simbólico da habitação, que envolve os afetos dos moradores e expressa identidade e a


diversidade cultural em que se insere a moradia.93
A interpretação do Comitê permite observar diversas faces que fazem o conceito de
moradia transcender a ideia de que um teto serviria para efetivar o direito, apontando
diversos ângulos e funções de efetividade do direito à moradia. A segurança da posse
evidencia, uma eficácia jurídica, e a função defensiva do direito à moradia. A habitabilidade
é uma característica material, da construção em si. A localização e o acesso a bens e serviços
representa a interconexão existente entre o direito à moradia e outros direitos fundamentais,
de forma que a moradia somente é adequada quando permite o acesso a esses outros direitos,
e, também, evidencia o contexto social da moradia, em conjunto com seus custos.
Com isso, se vislumbra que formam o conceito de moradia não somente elementos
jurídicos, mas também, econômicos, sociais, culturais e, finalmente, simbólicos. A moradia,
além de todos esses elementos objetivos, tem um que os transcende, pois coordena os
significados de viver em comunidade, em uma localidade e de pertencer a uma determinada
cultura. Este é um aspecto político, e até mesmo identitário, e comunitário da moradia.
Apesar de ter uma complexidade de âmbitos que o compõe, toda essa potencialidade
do direito à moradia evidencia seu caráter utópico – que não deve ser compreendido como
sinônimo de irreal –, o que lhe exige uma melhoria contínua das condições de implementação
desse direito.
A verificação da efetividade desse direito pode partir de cada um desses elementos,
isto é, verificar se há moradia para as pessoas, e como o Estado está lidando com a população
em situação de rua; a ocupação de áreas impróprias para a existência humana ou de riscos e
a identificação dos moradores com sua comunidade, e a participação política, tornando
possível avaliar a existência de identidade com o local.
Embora todos esses elementos se coordenem para a formação do mínimo existencial
relativo à moradia, a realidade brasileira é bastante complexa e diversa na questão da
moradia.
A fundação João Pinheiro calcula anualmente o déficit habitacional brasileiro,
utilizando alguns critérios para apontar uma moradia como inadequada. Assim, por exemplo,
aqueles imóveis em que o custo de aluguel supera um terço da renda da pessoa se mostra

93
Cf. Un Committee on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR), General Comment No. 4: The Right
to Adequate Housing (Art. 11 (1) of the Covenant), 1991.
43

inadequada, pois o pagamento da habitação acaba por retirar do habitante a capacidade de


suprir outras de suas necessidades. Um segundo elemento diz respeito à ocupação excessiva
das habitações, ou seja, famílias diversas ocupando um mesmo imóvel, ou ainda mais de três
pessoas por cômodo da residência. Por fim, o déficit também compreende as moradias que
estão inadequadas pela localização, ou ainda, por deficiências estruturais.
Segundo tais critérios, a Fundação João Pinheiro calculou, para o ano de 2019, a
existência de um déficit habitacional, isto é, de um número de moradias inadequadas,
conforme os critérios citados, de 5.876.699 de residências.94
Além desses expressivos números de pessoas com uma moradia inadequada, há a
situação de pessoas que têm a sua dignidade violada de forma mais frontal e direta, sem
qualquer tipo de moradia, em situação de rua. O IPEA estimou95, em 2022 que o Brasil tem
281.472 pessoas em situação de rua.96
Dessa forma, é possível perceber que a questão do direito de moradia pode ser
observada sob diferentes recortes, seja de sua insuficiente proteção, ou ainda de sua completa
violação, demonstrando ser verdadeira a ideia de que dos graus de sua efetivação, mas
também reclamando diferentes ações estatais para sua garantia mínima.
Por fim, deve-se dizer que as normas infraconstitucionais ainda preveem outras
garantias e formas de proteção da moradia e da habitação.

1.2.6.2 Direito à moradia nas normas infraconstitucionais

No ordenamento jurídico brasileiro, há normas jurídicas que enfrentam de forma


tangencial o direito à moradia. Estas normas pressupõem a sua importância, bem como
evidenciam a função negativa desse direito.
A este respeito, merece menção, por exemplo, a previsão de proteção ao bem de
família, que pode ser legal97 ou voluntária,98 e pode tornar um imóvel da pessoa
impenhorável, ressalvadas algumas exceções que autorizam a penhora.
A proteção abrangida por este instituto jurídico, em especial, a da modalidade legal

94
Cf. Fundação João Pinheiro, Déficit Habitacional no Brasil 2016-2019, 2021.
95
Cf. IPEA, Estimativa da população em situação de rua no Brasil (2012-2022), 2023.
96
Importante anotar que no ano em que o trabalho começou a ser escrito (2021) a estimativa mais recente trazia
o número de 221.869 pessoas em situação de rua, tendo ocorrido um triste e substancial aumento nestes
últimos dois anos.
97
Cf. Lei Nº 8.009, de 29 de março de 1990.
98
Cf. Artigo 1.711 do Código Civil Brasileiro.
44

ou obrigatória, transpassa do resguardo da família, sendo que seu propósito é a defesa de um


direito fundamental, qual seja, o direito à moradia.
Isso conforme aponta Carlos Roberto Gonçalves: “(...) não faz sentido proteger quem
vive em grupo e abandonar o indivíduo que sofre o mais doloroso dos sentimentos: a
solidão”.99
Outro aspecto que traz a importância do direito de moradia é a regulamentação da
locação urbana,100 elaborada para equalizar os interesses entre o proprietário e aquele que
deseja efetivar seu direito de moradia, estabelecendo segurança e hipóteses em que o
locatário pode continuar no imóvel, se não houver um motivo justo para que o proprietário
o requeira. Observe-se que tal norma permite o despejo do locatário, prevendo um
procedimento procedimental célere, contudo, essa equalização de interesses tem o condão
de estimular as pessoas a se tornarem locadoras de seus imóveis, aumentando a
disponibilidade de imóveis no mercado, pois, a existência de desequilíbrio nesse ajuste
poderia ter o efeito contrário, e desestimular a locação, piorando a situação da oferta de
moradias e, de outro lado, não transfere para o indivíduo o ônus de garantir a moradia das
pessoas que necessitam.
Neste particular, vale ressaltar a importância do Estatuto da Cidade, enquanto norma
jurídica que regulamenta a política urbana, prevista nos artigos 182 e 183 da Constituição
Federal de 1988. O Estatuto prevê o direito a cidades sustentáveis, que compreende diversos
aspectos da moradia e, também merece menção sua previsão de que a gestão da cidade
deverá ser feita por seus moradores, de maneira democrática. Trouxe, ainda, hipótese de
usucapião especial, para garantir a moradia das pessoas, espelhando a Constituição e
permitindo que ela se dê de forma individual ou coletiva.
Assim, o Estatuto cria diversos instrumentos para que o Poder Público possa
interferir no planejamento urbano e ordenar a ocupação e o crescimento das cidades,
viabilizando condições concretas para o bem-estar. E estabelece entre as diretrizes:

Art. 2º (...)

I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao
saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao
lazer, para as presentes e futuras gerações;

II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos

99
Gonçalves, Direito Civil Brasileiro: Volume VI: Direito de Família, 2005, p. 519.
100
Cf. Lei N.º 8.245, de 18 de outubro de 1991.
45

vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas


e projetos de desenvolvimento urbano; (...)101
Tais enunciados normativos evidenciam aspectos sociais e organizacionais das
cidades que atravessam a questão do direito de moradia, permitindo que ele se qualifique.
Abrange os elementos sociais e comunitários, neles intervindo para melhorar a qualidade de
vida das pessoas.
Há, decerto, outras normas e diretrizes que complementam esta tarefa. E, ainda no
âmbito municipal, códigos de obras e normas de zoneamento, que tentam garantir condições
ambientais de habitabilidade dessas moradias.
Há normas relativas à assistência social102 que incidem sobre o auxílio a pessoas que
não têm qualquer moradia, apontando a obrigação do Sistema Único de Assistência Social
para enfrentamento dessas situações emergenciais.
Há, também, normas que trazem por objeto a regularização fundiária103 e o Sistema
Nacional de Habitação de Interesse Social,104 norteadoras de políticas públicas que têm um
enfoque maior em uma das figuras da moradia adequada, isto é, a segurança da posse. A
regularização fundiária ainda conta com alguma legislação esparsa e com o instrumento do
direito de laje,105 elaborado para auxiliar na regularização de ocupações em ‘favelas’ e locais
em que as moradias são estruturadas de forma sobreposta, e tem por finalidade trazer uma
titulação jurídica segura à moradia.
Por fim, é indispensável mencionar o Programa Minha Casa Minha Vida,106 o qual
representou um aporte de recursos e centralização de esforços estatais na construção de
moradias para pessoas de baixa renda, centralizando a atuação estatal no subsídio para que
as pessoas adquirissem uma “casa própria”.
Desse modo, se verifica que a complexidade de composição do significado de uma
moradia adequada tem sua regulamentação de forma difusa, conforme os diferentes
elementos que compõem esse conceito, e diante de questões sociais de diversas origens e de
resolução ou enfrentamento variado, de modo que a verificação da efetividade desse direito
fundamental passa pela análise pormenorizada desses elementos.

101
Cf. Cf. Lei N.º 10.257 de 10 de julho de 2001 – “Estatuto da Cidade”.
102
Cf. Lei Orgânica da Assistência Social e Decreto N.º 7.053 de 23 de dezembro de 2009.
103
Cf. Lei N.º 6.766, de 19 de dezembro de 1979, lei N.º 11.481 de 31 de maio de 2007 e lei N.º 13.465 de 11
de julho de 2017.
104
Cf. Lei N.º 11.124 de 16 de junho de 2005.
105
Cf. Art. 1.225, XIII, do Código Civil Brasileiro.
106
Lei N.º 11.977 de 07 de julho de 2009.
46

O recorte proposto se debruça sobre os elementos democráticos e comunitários do


direito à moradia, sendo efetivado e, ao mesmo tempo, veículo da autonomia democrática,
da participação e da emancipação dos seus titulares, isto é, uma recondução do critério
democrático do direito à moradia no incremento da efetividade de outros direitos
fundamentais.
Essas previsões normativas delineiam o perfil constitucional do direito à moradia no
ordenamento jurídico brasileiro, e as medidas tomadas pelo Estado, com a finalidade de
efetivá-lo, ou ainda tomando-o como questão que merecesse atenção e uma política pública
específica.

1.2.6.3 Relação entre a propriedade e a moradia

No senso comum sobre o tema, há um entendimento geral que equipara a ‘moradia’


à ‘casa própria’, de forma que se identifica o direito à moradia à sua aquisição pelas pessoas.
Desta forma, no Brasil, as políticas públicas de habitação popular se restringiram
precipuamente a auxiliar os indivíduos a adquirir uma casa, ou mesmo, subsidiar sua compra
a preços simbólicos. Isso se evidencia, por exemplo, no Programa Minha Casa Minha Vida,
em que o próprio nome já evoca a importância da moradia, mas também a associação direta
dela com a propriedade.
Não se identificam plenamente, pois a ‘moradia’ prescinde da ‘propriedade’ para se
efetivar, pois uma ‘casa locada’ poderia garantir um melhor acesso à cidade e aos serviços
públicos do que uma ‘casa’ que seja de propriedade do indivíduo, mas que esteja
completamente desabastecida do necessário para a vida.
Milton Santos salienta que “A casa própria não é a necessidade, esta é a de morar
decentemente. A casa própria insere o indivíduo no circuito do consumo e da mercadoria,
fetichizando no ato de compra e de venda o que é necessidade social essencial.”107, apoiando
sua crítica precisamente na distinção entre a necessidade de moradia da pessoa, direito
fundamental e a possibilidade de ter a propriedade de sua própria moradia.
É importante neste momento traçar a distinção entre a ideia de moradia e de
propriedade, exatamente para que se possa problematizar as políticas públicas centradas na
propriedade dos imóveis. Todavia, há um reflexo da propriedade do imóvel que, embora seja
dispensável para a efetivação da moradia, a qualifica com a segurança da posse e, conquanto

107
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 154.
47

não seja indispensável para essa segurança, tem sido especialmente importante no Brasil,
dado que uma das mazelas sofridas pelas populações desprovidas de moradias adequadas é
exatamente a insegurança, isto é, os riscos de despejos forçados. 108
Essa diferenciação se mostra indispensável para que as políticas públicas com foco
na habitação possam ser encaradas de forma crítica, primeiro porque a concessão de
propriedades de imóveis de forma generalizada tem elevado custo financeiro, e, não esgota
a solução do problema.
Com a diferenciação, torna-se viável a reivindicação de políticas públicas diversas,
focadas na resolução direta dos problemas, ainda que sem a concessão da propriedade à
pessoa necessitada. Nesses termos, é possível focar uma crítica ao Programa Minha Casa
Minha Vida, por ser reduzido à construção de habitações, sem que seus recursos também
fossem voltados à solução de outros problemas, com ações diversificadas.
Assim, mesmo que exista relação entre os conceitos, e que a ‘propriedade’ possa ser
veículo da garantia de moradia, na verdade, a previsão da moradia como direito fundamental
serve como um elemento que a limita, dado que a propriedade deverá atender à sua função
social, que compreende a utilização dela como moradia.
A noção de ‘função social da propriedade’, por exemplo, se aperfeiçoa com a
residência da pessoa na propriedade. O imóvel que está sendo locado ou habitado pelo seu
proprietário, em regra, cumpre sua função social.
A moradia num imóvel também qualifica a ‘posse’, tornando-a apta para alcançar a
usucapião especial urbana109 ou ainda a redução do tempo da usucapião extraordinária110 e
ordinária.111
A garantia da ‘propriedade’ e sua inserção, com sua ‘função social’, entre os
princípios do capítulo sobre a Ordem Econômica, no interior do texto da Constituição
Federal de 1988, denotam que há um esforço de coordenação entre a economia estabelecida
no País, para que essa possibilite a promoção dos direitos fundamentais, o que se faz por
meio da proteção da propriedade, mas condicionada à sua função social. Nas palavras de

108
A questão será abordada mais adiante, ao problematizar, de outro lado, as potencialidades que a garantia da
propriedade também pode gerar a partir da concessão de algum direito aos moradores bem como à sua
segurança.
109
Art. 183 da Constituição da República Federativa do Brasil, ressalvando que a posse decorrente da locação
não habilita o morador a requerer a usucapião.
110
Art. 1.242, Parágrafo Único do Código Civil.
111
Art. 1.238, Parágrafo Único do Código Civil.
48

Eros Grau:

A função é um poder que não se exercita exclusivamente no interesse de seu titular, mas também no
de terceiros [...] não é a coisa objeto da propriedade que tem a função, mas sim o titular da propriedade.
[...] Daí uma alteração na própria estrutura da propriedade. [...] a introdução do conceito de função
social no sistema que reconhece e garante a propriedade implica a superação da contraposição entre
público e privado. [...] Trata-se, então, de um direito subjetivo com uma função necessariamente
social.112.
Assim, fica clara a relação entre a propriedade e a moradia, mas a sua não-identidade
e a não-dependência da moradia da existência da propriedade do habitante. Até mesmo se
pode discutir a fundamentalidade material do direito à propriedade, reduzida à sua
importância econômica, e pela ausência de relação direta com a dignidade da pessoa humana,
como Ingo Wolfgang Sarlet sugere ser possível problematizar.113

1.3 Do Direito à moradia ao direito à cidade: intersecções do espaço urbano

1.3.1 A moradia não é uma ilha

A delimitação do conteúdo jurídico do direito social à moradia é complexa e supera


a simples noção de que a mera garantia de um abrigo supriria as necessidades que concernem
o que significa moradia para as normas jurídicas nacionais e internacionais.
Na verdade, as questões que envolvem a moradia, tendo em vista suas complexidades
e elementos circundantes da residência, dada sua localização, o acesso aos serviços públicos
e sociais, bem como aspectos culturais e simbólicos denotam o caráter principiológico desse
direito, de forma a irradiar efeitos objetivos e, especialmente, direcionar a realização de
políticas públicas.
A moradia, nesse sentido, que transcende apenas o teto ou abrigo, representa um
pedaço de terra urbanizada. Essa é a lição de Ermínia Maricato: “A moradia é uma
mercadoria especial. Ela demanda terra, ou melhor, terra urbanizada, financiamento à
produção e financiamento para a venda”114.
Com isso, se percebe como a moradia se conecta também à macroeconomia, e como
o urbanismo e a moradia se implicam mutuamente, pois a moradia adequada dependerá de
uma localização que permita a ela participar da cidade, e esta, por sua vez, é impactada, ou

112
Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 2012, p. 242-243.
113
Cf. Sarlet, O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: Algumas Anotações a Respeito de seu
Contexto, Conteúdo e Possível Eficácia, 2003, p. 18.
114
Maricato, Brasil, cidades: Alternativas para a crise urbana, 2013, p. 118.
49

melhor, produzida, estruturada e definida pelas aglomerações e acúmulos de moradias.


Ermínia Maricato ainda detalha o que é necessário para que a terra seja urbana:

Terra urbana significa terra servida por infraestrutura e serviços (rede de água, rede de esgotos, rede
de drenagem, transporte, coleta de lixo, iluminação pública, além dos equipamentos de educação,
saúde etc.). Ou seja, a produção da moradia exige um pedaço de cidade e não de terra nua. Há
necessidade de investimentos sobre a terra para que ela ofereça condições viáveis de moradia em
situação de grande aglomeração.115
E, com essa noção, percebe-se que é indissociável o planejamento da cidade da
produção das suas moradias. Na verdade, a própria construção e delimitações de área onde
se situam as moradias já é um ato de produção também da cidade, e seu crescimento é
planejado ou não-planejado, conforme as necessidades habitacionais são supridas de forma
organizada ou relegadas a um segundo plano.
Dessa forma, quando se aponta que existe um direito à moradia, ele traz em si o
direito de acesso à cidade e o direito à participação na cidade.
E assim o direito à moradia mostra sua centralidade na garantia de condições
materiais mínimas para a existência digna, e para exercício de outros direitos fundamentais,
apenas em seu cruzamento com a exigência de respeito à dignidade da pessoa humana e de
atendimento ao mínimo existencial, trazidos como importantes direitos e conquistas no
traçado da Constituição de 1988.
Essa multiplicidade de concepções referentes à moradia adequada implica um retorno
à materialidade do contexto em que se dá a moradia. Isso porque a avaliação de que a
moradia é adequada, conforme os parâmetros normativos116 estabelecidos pelo Comitê de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, depende da avaliação concreta de adequação em
suas diferentes dimensões.
Essa análise fica na dependência de um olhar sobre a moradia que não pode ser
individualizado, isto é, tomado simplesmente pela unidade habitação, mas realizada em face
da principal estrutura que conglomera as habitações: a cidade.

1.3.2 A moradia nas cidades brasileiras: um conceito de cidade contextualizado

O desafio de conectar geograficamente os conceitos fundamentais trazidos pela

115
Maricato, Brasil, cidades: Alternativas para a crise urbana, 2013, p. 119.
116
Cf. Un Committee on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR). General Comment No. 4: The Right
to Adequate Housing (Art. 11 (1) of the Covenant), 1991.
50

Constituição, em tensão117 com a realidade, evidencia as condições materiais em que é dada


a regulamentação, bem como as potencialidades de intervenção e de ação, com fundamento
nessa norma.
A maior parte da população brasileira vive nas cidades.118 E elas cresceram e se
expandiram a partir do fenômeno do êxodo dos campos para as cidades, e a compreensão de
como ele ocorreu, e de que forma se dá a ocupação e expansão das cidades é aspecto central
para a desvendar a realidade e a precariedade das habitações que compõem as cidades.
A própria definição do que é uma cidade – ou ainda, de quais são os fenômenos que
compreendem o urbano –, é uma tarefa que envolve grande complexidade. Embora tais
termos evoquem certas concepções de senso comum, que permitem uma certa
movimentação dos conceitos pelo Direito, a ausência de precisão na utilização dos termos é
responsável pela perda da capacidade de aderência dessa regulamentação ao espaço vivido.
A pesquisadora Sandra Lencioni se debruça sobre a dificuldade de conceituar a
cidade, e evidencia que a noção tem uma correlação grande com a materialidade que se busca
compreender nesse conceito. Assim, Sandra Lencioni destaca como são elementos presentes
na noção de diferentes cidades brasileiras a ideia de aglomeração, de sedentarismo, de
mercado e de administração pública.119
Por sua vez, o pesquisador Clóvis Ultramari desenvolve raciocínio semelhante,
comparando elementos comuns em diferentes definições de cidade. Mostra presentes
elementos como o demográfico, da população, o tamanho, a heterogeneidade da ocupação,
a proximidade das moradias e o mercado, mas a partir da complexidade, destaca o papel da
cidade como um conceito incompleto e multidisciplinar.120
É possível, com isso, perceber que não se pode construir um conceito final de cidade
sem ter claros os objetivos que definem isso, e não se pode concluir com apenas um saber a
delimitação desse objeto.
Assim, embora o Direito, ao criar uma regulamentação sobre a cidade, ao definir o

117
A teoria do Direito formulada por Jürgen Habermas tem relação direta com essa tensão que ele apreende no
Direito, verificando os ganhos oriundos da teoria da ação comunicativa, que tem a capacidade de fornecer
um contexto para uma teoria discursiva do direito, ao passo que o direito surge como categoria capaz de
mediar a reprodução da sociedade considerando ainda pretensões de validade transcendentes (Cf.
Habermas, Facticidade e Validade, 2020, p. 40-41).
118
85% da população brasileira vive em zonas urbanas, Cf. IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD), 2015.
119
Cf. Lencioni, Observações sobre o conceito de cidade e urbano, 2008, p. 117.
120
Cf. Ultramari, Conceito de cidade: Dificuldades e Razões para formulá-lo, 2019, p. 290.
51

que é uma área urbana para fins de zoneamento, ou mesmo para tributação do imposto sobre
a propriedade territorial urbana, o faz simplesmente porque precisa categorizar essas
diferenças com o intuito de fazer incidir diferentes regulamentações jurídicas. Assim, o
Código Tributário Nacional, por exemplo, considera urbana, e apta para incidência do
imposto urbano, o imóvel que contém certas melhorias, como calçamento, meio fio,
abastecimento por serviços de água e esgoto, iluminação pública e escola primária. 121
Percebe-se, na situação da verificação da adequação da moradia, a insuficiência dos
termos normativos trazidos pelo Código Tributário Nacional, embora eles tragam em si um
dos elementos trazidos pelos conceitos já citados, vinculando o fenômeno urbano à
existência de serviços públicos naquele imóvel.
O geógrafo Henri Lefebvre também aponta para a centralidade do conceito de
urbano, que vai ganhando proeminência em relação ao rural, ou, conforme comenta: “O
‘tecido urbano’ prolifera, estende-se, corrói os resíduos de vida agrária”.122
Essas constatações demonstram como mais importante do que descrever um conceito
mais preciso de cidade, é delimitar bem os fenômenos que se deseja abarcar pela análise.
E, tendo a ideia da moradia nas cidades brasileiras como fio condutor material da
ideia de cidade, e adotando-se os critérios de aglomeração de pessoas, de mercado e,
principalmente, de administração pública operando na localidade, chega-se à noção de
cidade apta a concentrar os fenômenos de prestação de serviços públicos, de ocupação e de
atuação do mercado nas habitações, destacando-se, ainda, os aspectos simbólicos da vida em
uma cidade, e da habitação de um determinado local, e os encontros que disso resultam.
As cidades, assim, também são construídas e crescem por meio das habitações que
nela se encontram, e, ao situar as pessoas na cidade, uma série de relações entre elas surge e
pode ser objeto de análise, indicando a possibilidade de apontar a existência de um Direito
à cidade.
Evidente que a o componente geográfico desse conceito implica também o aspecto
temporal, a história daquele espaço. Isto é, a verificação dos fenômenos, como dados na
realidade, ocorre de forma dinâmica e complexa, indissociáveis da historicidade.
Assim, a forma como as cidades e as moradias se desenvolveram para ocupar e
produzir as cidades que hoje existem, e como a regulamentação e as forças jurídicas

121
Cf. Art. 32 do Código Tributário Nacional.
122
Lefebvre, A revolução urbana, 2002, p. 17.
52

trabalharam para que isso fosse possível, não são fatores estáticos, mas são indispensáveis à
compreensão do fenômeno e das determinações que a regulamentação e o direito provocam.
É a apreensão dessa fluidez na produção das cidades, assim como o reconhecimento
de que, não obstante as forças políticas, jurídicas, econômicas e sociais envolvidas no seu
planejamento, o indivíduo, o morador, que se situa nesse meio, também tem sua atuação,
sendo-lhe devido o quinhão de influência e de autonomia para participar desse processo.
E, nessa tentativa de abarcar tal fluidez, vem se formando esse conceito de direito à
cidade, compondo a complexidade do objeto, e a pretensão de incluir a autonomia entre os
fatores que tensionam ou se entrelaçam para produzir a cidade.

1.4 Direito à cidade

1.4.1 Uma perspectiva capitalista

A ideia de incluir a autonomia e a participação cidadã no processo de construção das


cidades pode se desdobrar em várias perspectivas, vinculadas a determinado paradigma
democrático.
E, dentro de uma perspectiva procedimental de democracia, sobressai uma visão de
direito à cidade que se harmoniza com a estruturação capitalista da sociedade.
Tal visão pode ser percebida da leitura dos valores inscritos na reunião habitat III, da
ONU, em que se elaborou o documento da nova agenda urbana, o qual traz uma visão
diferenciada das cidades, harmonizando uma noção capitalista de desenvolvimento e de
crescimento econômico com o respeito à diversidade e das ocupações das cidades.123
O documento estrutura diversos valores, e estabelece as cidades dentro de uma
perspectiva atenta e conectada com diversos direitos humanos, fazendo referência à
harmonia com o meio ambiente, o florescimento da cultura e da diversidade e com o
desenvolvimento urbano sustentável, bem como menciona que tais assentamentos humanos
devem ser aptos a enfrentar os desafios da atualidade, como as diferentes vulnerabilidades,
a proteção contra desastres climáticos e o enfrentamento das questões de gênero, de
degradação ambiental e da pobreza e da desigualdade.
Assim, se percebe a perspectiva capitalista desses valores ao vincular a solução dos
problemas às garantias de desenvolvimento constante, de forma sustentável, embora alguns

123
Cf. UN – United Nations - Habitat III – Nova Agenda Urbana, 2016.
53

dos problemas urbanos digam respeito justamente às exigências de desenvolvimento e de


crescimento contínuo, que utilizam as cidades como forma de amortecer as crises de
acumulação capitalista, absorvendo os excedentes de capital124.
Antes de adentrar à crítica da imposição de um desenvolvimento persistente, é
importante salientar os avanços da declaração, que reconhece a centralidade da pessoa nas
cidades, ainda que resguardando os princípios econômicos, e, especialmente, considerando
a premissa de que seria possível um eterno crescimento.
Tal visão ainda é capaz de pensar nos valores relativos à harmonia e ao equilíbrio dos
valores com um controle, ou regulação, da economia, tendo em vista a declaração trazida
para a Nova Agenda Urbana, a ser buscada nas cidades pelas nações. Assim, o documento
ressalva a importância de haver políticas habitacionais que promovam a moradia adequada,
a efetivação de inclusão social, a erradicação da pobreza, a existência de acessibilidade e
espaços públicos seguros e acessíveis, inclusive observando as diferenças de gênero, e a
valorização do patrimônio cultural.
Como se percebe, o documento foca em diversos aspectos existenciais, decerto
ultrapassando uma visão simplesmente mercadológica das vidas nas cidades. O jurista
Nelson Saule Júnior define o direito à cidade, contido nessa Carta, como sendo o “usufruto
equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e
justiça social”.125 O direito à cidade materializaria e integraria, segundo ele, os direitos civis,
políticos, sociais e culturais.

1.4.2 Uma perspectiva anticapitalista

Contudo, há posturas que são críticas a esses discursos trazidos nessas reuniões,
vendo neles apenas uma incapacidade atávica do capitalismo de efetivamente centralizar as
cidades no indivíduo e garantir outros valores ao mesmo tempo em que, mesmo sem enunciar
claramente, estabelece os critérios mercadológicos e a primazia do crescimento e da
acumulação sejam efetivamente os valores elencados e estabelecidos como orientadores do
planejamento urbano.
E, de forma crítica à forma como as cidades vêm sendo planejada de acordo com
princípios econômicos, e com um planejamento voltado ao crescimento e à valorização, que

124
Cf. Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 92.
125
Saule Junior, A cidade como um bem comum, pilar emergente do direito à cidade, p. 148.
54

David Harvey, chama o direito à cidade de “significante vazio”, na medida em que depende
daquele que enuncia lhe conferir qualquer conteúdo.126
Contudo, ainda que faça essa crítica à possibilidade de atribuir diferentes sentidos à
ideia de direito à cidade, o geógrafo David Harvey destaca a importância desse conceito,
entendido dentro da visão contestatória trazida por Henri Lefebvre, e pelos movimentos
sociais de reivindicação urbana.
Segundo David Harvey, o direito à cidade deve ser entendido como um direito
humano a ser reivindicado por seu potencial revolucionário e anticapitalista.127 Esse direito
humano seria a capacidade de intervir e participar da transformação das cidades.
David Harvey o descreve: “O direito à cidade é, portanto, muito mais do que um
direito de acesso individual ou grupal aos recursos que a cidade incorpora: é um direito de
mudar e reinventar a cidade mais de acordo com nossos mais profundos desejos”.128
Observar a cidade como um objeto representa levar em consideração as relações
humanas que a produzem. Então, dentro dessa visão, David Harvey percebe como a
produção das cidades, sua criação e transformação, recebe a participação de muitos, embora
poucos decidam e controlem tais processos. Assim, o direito à cidade representa
efetivamente a capacidade e a potência de intervir nesses processos, fazendo e refazendo a
cidade e os próprios indivíduos. O direito à cidade, nas palavras de David Harvey, “(...) é
muito mais que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de
mudar a nós mesmos, mudando a cidade”.129
E os processos de criação, destruição e expansão das cidades representam um dos
elementos de sustentação do capitalismo, que precisa constantemente reinvestir os
excedentes de capital, superando as crises de sobreacumulação.130
E os processos de produção da cidade são dominados pelo capital e pela lógica da
mercadoria dentro do capitalismo, de forma que se deve entender o direito à cidade como
uma manifestação da capacidade das pessoas de deter e recuperar a capacidade de agir sobre
esses processos, o que subverte a lógica de tratar a cidade como uma mercadoria. E os
movimentos sociais que reivindicam tais direitos ganham, por isso, uma dimensão de
contestação do próprio capitalismo, pois sua atuação interfere nesse pilar de sua sustentação.

126
Cf. Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p.20.
127
Cf. Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 28.
128
Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 28.
129
Harvey, O direito à cidade, 2013.
130
Cf. Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 92.
55

Dessa forma, os movimentos políticos urbanos de reivindicação de direitos trazem


em seus discursos os valores veiculados pelas ideias de direito à cidade ou de renovação
urbana, evidenciando o potencial e a síntese política que tais termos trazem, ressalvando
como tais valores movimentam o imaginário político e reivindicatório muito mais do que a
operação dos sistemas jurídicos ou judiciários.
Os movimentos sociais que iniciaram os protestos contra aumentos na tarifa de
transporte público, e que se multiplicaram pelo Brasil em 2013, estavam imbuídos de
reivindicações conexas com esse conceito, já que a mobilidade urbana é aspecto central da
sociabilidade, do trabalho e da possibilidade de sobrevivência e existência do(a)s
trabalhadore(a)s. Embora os protestos tenham se iniciado por convocação de movimentos
organizados, em especial o Movimento Passe Livre (MPL), a participação nas ruas tomou
uma proporção maior, descentralizada e desorganizada, o que culminou com uma disputa
das reivindicações e das motivações que levaram cada pessoa à demonstração da
insatisfação. De qualquer modo, as questões urbanas estavam subjacentes à revolta, e a
mobilidade foi a causa que centralizou e iniciou todo esse episódio. 131
Tais movimentações, por reivindicarem direitos relativos à cidade, trariam essa
contestação ao capital como poder decisório dos processos urbanos, revelando o potencial
revolucionário desse conceito, e, por isso, merecem aprofundamento de análise, seja pelos
debates que evocam, seja pelas movimentações jurídicas e fáticas que provocaram e que têm
o potencial de ocasionar. É nos movimentos sociais, e, na forma como a cidade e seus
problemas estimulam tais insurgências, que reside o cerne do direito à cidade e do potencial
revolucionário trazido pela concepção desenvolvida por David Harvey.132
E a síntese do conteúdo proposto por David Harvey para o direito à cidade contempla
precisamente a ideia de participação nos processos de criação da cidade, e do processo
urbano, possibilitando às pessoas que alcancem e transcendam o acesso aos bens e recursos
da cidade, também interferindo nas decisões fundamentais dessa cidade.
Trata-se verdadeiramente de um direito de participação democrática, isto é, de
interferir nas decisões públicas importantes daquela comunidade; um direito de participar da
criação daquele espaço em que se vive, representando uma dimensão talvez essencial para
que um regime ou uma comunidade possa ser considerada democrática e autônoma.

131
Cf. Rolnik, As vozes das ruas: as revoltas de junho e suas interpretações, 2013.
132
Cf. Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 216.
56

2 Direito à moradia, desigualdades urbanas e eficácia dos direitos


fundamentais

2.1 Produção do espaço nas cidades brasileiras: o planejamento da exclusão

2.1.1 Centralidade da moradia

Superado o primeiro esforço para organizar e identificar os textos normativos que


definem a moradia necessária como direito, percebe-se que existe um fundamento amplo
para embasar ou exigir a atuação do Estado, primeiramente como dever moral diante da
necessidade efetivação da dignidade da pessoa humana por meio da garantia do mínimo
existencial, mas principalmente como decorrência da aplicação das normas jurídicas
vigentes.
As normas vigentes anunciam a existência de tensões no campo da efetividade, tendo
em vista que tão minuciosa descrição jurídica de uma moradia adequada sugere uma
sociedade que ainda não efetivou tal direito na realidade.
Para compreender a necessidade de conquistar o direito à moradia adequada, tanto
juridicamente, como de com a efetividade da norma jurídica, torna-se necessário observar as
atuações históricas dos agentes na produção do espaço no Brasil, no campo e nas cidades,
reverberando efeitos que ainda influenciam o direito aplicado, os despejos e até mesmo o
imaginário e a concepção simbólica do povo, das comunidades pobres e dos bairros
elitizados.
Assim, é necessário retomar o histórico de como a terra se torna uma propriedade e
como as cidades foram sendo ocupadas e inchadas, empilhando as pessoas em locais
inadequados para uma existência plena.
A leitura dos elementos normativos existentes não permite avançar nas indagações
sobre o grau de eficácia do direito à moradia, contudo, sua minuciosa descrição evidencia a
ânsia por mudanças sociais, bem como é indicativa de quais são os elementos sensíveis que
fragilizam sua garantia.
A compreensão desse fenômeno exige que o estudo se aprofunde os dados do
substrato fático e do contexto histórico, sociológico e cultural que envolveu a promulgação
das normas e a criação das cidades brasileiras, e qual espaço se permitiu ao povo que
ocupasse.
Uma investigação histórica permitirá iluminar as estruturas do presente e
compreender os embates e tensões que o produziram, bem como permitirá observar os atores
57

que determinavam a produção do espaço e quais são os atores que conseguem influenciar a
dinâmica e o processo das cidades. Afinal, as cidades não existiram sempre da mesma forma,
e é necessário reconhecer que têm dimensão histórica.
Assim, é necessário retomar contextualizar temporalmente a formação das cidades e
da produção das moradias que as compõe, observando como as terras se distribuíram e foram
ocupadas ao passar dos anos, culminando na situação atual. O espaço construído das cidades
não é um dado estático da realidade, mas sofre diversas determinações e alterações
decorrentes de políticas públicas, de planejamento e das forças envolvidas com a produção
da cidade.
A retomada dos conceitos jurídicos combinada com a análise fática da moradia revela
a centralidade dessa necessidade humana, apontando seu potencial de convergir a
reivindicação da autonomia, o aprofundamento da democracia e a satisfação das
necessidades básicas da pessoa e unindo os diversos direitos e, principalmente, serviços
públicos disponíveis ao cidadão.
Essa centralidade se percebe porque a moradia desvela o fluxo de forças produtivas
e econômicas atuantes na sociedade e das conexões jurídicas que atravessam esse direito
fundamental,
A centralidade da moradia exige que algo seja enunciado, quase de forma tautológica:
As pessoas precisam ter um local para morar. Essa necessidade se impõe, independentemente
da existência de contingências que obstaculizam a satisfação, como ausência de locais
adequados, de moradias bem construídas, ou de políticas públicas habitacionais, ou mesmo
de salários que arquem com seu custo.
Embora seja inegável que as cidades são variadas, e, consequentemente, plurais seus
problemas, pois têm diferentes históricos de formação e peculiaridades; ainda assim, há
elementos que são comuns e que as influenciam, em maior ou menor grau. São os elementos
vinculados às questões e tendências macroeconômicas, ou ainda determinações e atuações
políticas de âmbito nacional.
Assim, antes de apontar as dificuldades envolvendo o planejamento urbano, o grau
de déficit habitacional, e a existência de diversas necessidades e reivindicações nas cidades,
é importante observar como se deu a formação das cidades e a construção das moradias
brasileiras. E, juntamente com isso, é importante observar também como se processaram,
nas nascentes cidades, o descontrole e a ausência de cidadania.
58

2.1.2 A gênese da fratura133 real: o cativeiro da terra

O Brasil teve sua economia dependente da escravidão durante quase 400 anos, nela
estruturando relações sociais, culturais e familiares. E, no decorrer do século XIX houve a
publicação de diversas leis que, sob a retórica de abolir de forma gradual a escravidão, na
verdade cumpriam o papel de retardar a abolição plena, como forma de atender às pressões
internas e externas que exigiam o fim da mercancia e do tratamento de pessoas como
mercadorias.
Enquanto eram publicadas normas que antecipavam a abolição, de forma gradual,
outras estavam sendo pensadas e instituídas para preparar o sistema jurídico fundiário,
garantindo que, após a escravidão, houvesse ainda mão de obra para as fazendas.134
Um marco da legislação fundiária da época é a Lei de Terras, publicada em 1850,
que regulamentava a propriedade privada da terra. Ela permitiria que os exploradores de mão
de obra escravizada passassem a ser efetivamente proprietários das terras que antes eram
meramente objeto de posse e não de propriedade. Até 1822 as terras eram distribuídas por
sesmarias (graça do rei de Portugal), e, entre 1822 e 1850, simplesmente ocupadas, sem uma
categoria jurídica para justificar essa situação.135
Nas palavras de James Holston, podemos compreender o emaranhado legal que foi
arquitetado:

Essa transformação conceitual não foi completada até a Constituição imperial de 1824 garantir a
propriedade fundiária privada e a Lei de Terras de 1850 consolidar suas fundações de mercado ao
estabelecer que doravante as terras públicas só poderiam ser adquiridas pela compra. 136
Diante dessa circunstância jurídica, em que as terras poderiam ser ocupadas e
lavradas, a ideia de libertação das pessoas escravizadas gerou um receio de que houvesse um
esvaziamento de mão de obra, de modo que essa norma tinha o propósito de escassear as
amplas terras disponíveis no Brasil de maneira artificial, garantindo que apenas por meio de
compra elas estivessem disponíveis, forçando as pessoas recém libertas, bem como futuros
imigrantes, a se submeter ao trabalho empregado, sem outros meios de acesso direto à terra.
Importante relembrar que a cidadania, na época, era vinculada à possibilidade de

133
A opção pela expressão “fratura” para designar o grau de desigualdade social brasileiro é justificada pelo
fato de a palavra guardar em si uma noção de violência e de trauma, evocando essas características, bem
como a profundidade e a dificuldade de reatar. Assim, o termo parece remeter bem à origem traumática e
violenta das desigualdades, cuja raiz pode ser traçada na escravidão e na formação brasileira.
134
Cf. Schwarcz, Sobre o Autoritarismo Brasileiro, 2019, p. 30.
135
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 17.
136
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 169.
59

autonomia, ou, retirando os eufemismos da expressão, restrita aos proprietários de terras e


das elites da época. Dessa maneira, a medida de restringir o acesso à terra, também tinha a
possibilidade de criar uma cidadania diferenciada, ainda que todos fossem cidadãos livres,
por meio de diferentes graus de acesso aos direitos 137.
O cativeiro que antes se exercia diretamente sobre as pessoas, passa para a restrição
do acesso à terra. Com isso, ocorre um despojamento daqueles trabalhadores dos meios
necessários para sua subsistência. As pessoas escravizadas podem deixar de ser cativas, mas
para isso, a terra permanecerá cativa, não deixando escolhas ao trabalhador, exceto vender
sua força de trabalho àquele que detém as terras.
Nas palavras de James Holston, percorria a ideia da necessidade de vincular os
trabalhadores às fazendas, após o fim da escravidão:

Comum a todos era a proposta de ligar os novos trabalhadores às fazendas de forma que não fossem
criados nem um mercado de trabalho livre nem um mercado de terras acessível aos trabalhadores,
pois, sem esses mercados, os imigrantes livres não teriam escolha a não ser trabalhar nas fazendas. 138
Assim o ordenamento jurídico promove uma limitação artificial à aquisição das
terras, garantido que os trabalhadores apenas pudessem adquirir as propriedades após terem
trabalhado (ou explorados) por um bom número de anos, com políticas ativas para bloquear
o acesso à terra.
Assim, a regulamentação da terra passou também pelo propósito de restringir a
propriedade da terra, tanto para os negros, como para os imigrantes, os quais substituiriam
nos trabalhos, sob a forma assalariada. Ela consolidava as propriedades para os fazendeiros
que já as tinham, solidificando na propriedade os latifúndios.
Havia a explícita proibição de aquisição das terras por estrangeiros que imigravam
para trabalhar nas lavouras e, após, nas primeiras indústrias. Essa medida se mostrava
necessária para restringir, de maneira artificial o acesso às terras, retirando do assalariado
qualquer opção para sua subsistência alternativa ao trabalho.139
A escravidão e a forma como foi extinta, de forma gradual, sem reparações ou outras
formas de inserção social farão com que a segregação social brasileira receba matizes
principalmente raciais.140 A população negra, antes escravizada, terá obstado seu acesso à

137
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 172.
138
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 179.
139
Cf. Deák, Em busca das categorias da produção do espaço, 2011, p. 144.
140
Cf. André, O ser negro: um estudo sobre a construção de subjetividades em afro-descendentes, 2007, p.
131-132.
60

formalidade, à terra e, posteriormente, à cidade e à cidadania plena. O fim da escravidão não


propiciou uma assimilação do negro à sociedade, e nem à terra, pois não houve a
preocupação em se criarem as condições de adaptação da população escrava às condições de
vida no capitalismo.
Assim, o principal efeito da Lei de Terras foi a imposição de obstáculos impedindo
o livre uso da terra, impedindo a formação de pequenas propriedades em larga escala,
estruturando a partir da terra os conflitos sociais.141
E é importante ressaltar que esses cercamentos da propriedade no Brasil tinham como
principais as pessoas negras, impedindo sua participação plena.
Essa separação reverbera efeitos persistentes, tanto que Paulo César Endo, ao avaliar
a violência da cidade de São Paulo, percebe como a violência segue essa estigmatização
geográfica e racial contra a população negra, apontando como o critério racial torna o corpo
vulnerável às violências. Enuncia, ainda:

O uso social do termo ‘pardo’ para definir a cor das pessoas afirma, ao mesmo tempo, um certo ‘status
social’ daquele que, não sendo preto, nem branco, estaria previamente excluído dos benefícios que a
brancura oferece. Mas estaria, também, livre das violências prévias que recaem sobre os pretos, em
função de sua cor, que, ‘por definição’, autoriza os maiores desmandos e intrusões.142
Em estudo específico, Maria da Consolação André também menciona a
estigmatização que recaiu sobre a população negra, demonstrando-se como conexas a
estigmatização e a exclusão social.143 Associam-se às medidas de despossessão estigmas
ideológicos que inferiorizavam o olhar sobre os negros.
A terra permitirá o acúmulo de riquezas, já que se trata de uma ‘mercadoria’144 que
não se deteriora e, de forma direta, não pode ser reproduzida pelo trabalho. 145 O valor da
terra não deriva do trabalho, portanto, mas de sua localização,146 o que significa que seu
preço incorpora os bens da natureza do entorno e os trabalhos de produção da cidade,
produzidos pelas pessoas e pelo Estado.
Um outro aspecto que o entravamento formal da aquisição das propriedades ocorre

141
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 188.
142
Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 30.
143
Cf. André, O ser negro: um estudo sobre a construção de subjetividades em afro-descendentes, 2007, p.
136-138.
144
A terra não é uma mercadoria em um sentido estrito, pois, embora possa ser individualmente consumida e
comercializada, tem sua produção efetivada de forma coletiva, apenas, de modo que não se adequaria desse
modo à forma-mercadoria, embora tal forma seja utilizada para sua exploração. Cf. Deák, Em busca das
categorias da produção do espaço, 2011, p. 46.
145
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 16-17.
146
Cf. Deák, Em busca das categorias da produção do espaço, 2011, p. 45.
61

com o fomento à ilegalidade, às fraudes e ao caos. Pois as dificuldades burocráticas e formais


se transmutavam em um poder às elites locais, dotadas de poderes de fato, permitindo que
se apropriassem e lucrassem com o caos regulatório, tornando impossível a definição clara
e segura de quais seriam as terras públicas.147
Nas palavras de James Holston:

Para envolver a terra numa teia de transações legítimas, um grileiro ou proprietário poderia pagar
impostos sobre sua posse, vender um pedaço dela, doar parte para uma organização religiosa, fazer
um levantamento da propriedade, usá-la como garantia para um empréstimo, deixar de herança ou
concedê-la como dote.148
As terras vão compondo uma trama caótica entre a regulação e os poderes locais 149,
trama esta que vai cobrir e impactar a vida do trabalhador, fragilizando a sua moradia e até
mesmo seus salários.
A moradia tem uma vinculação direta com o pagamento dos salários, pois será
provida e garantida com uma parcela dos pagamentos realizados ao trabalhador, sendo um
gasto obrigatório para aqueles que não têm uma propriedade ou moradia vinculada ao
próprio trabalho. Observando que a moradia não é um bem divisível e que concentra um
valor muito superior ao salário do trabalhador, os gastos com a moradia exigirão o
pagamento de parcela considerável do salário em aluguéis e cortiços.
Assim, dificilmente o trabalhador poderia adquirir um bem de grande valor, sendo
restrito aos aluguéis, já que os salários são incongruentes com o custo da moradia. Afinal,
não há como mendigar a moradia, ou solicitar os restos de uma casa.150
Será no início do século XX, apenas, que as cidades irão começar a atrair pessoas do
campo, ocasionando seu crescimento. E, dadas as dificuldades para aquisição das casas, sua
produção não era realizada pelos trabalhadores, mas por aqueles que tinham a intenção de
extrair renda dessas terras através dos aluguéis. Com isso, generalizam-se os cortiços. Assim,
as habitações utilizadas pelas classes populares se tornam, em geral, moradias locadas, e,
não raro, moradias precárias em cortiços.
Arlete Moysés Rodrigues é quem relembra que as mansões são contemporâneas às

147
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 191-
195.
148
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 195.
149
Há registros de que havia um aumento da violência, com a contratação de pistoleiros e jagunços, bem como
uma corrida de grileiros que tinham o intuito de aumentar os seus estoques de terras, inclusive com invasão
e usurpação de terras alheias pelos coronéis. (Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia
e da modernidade no Brasil, 2013, p. 201-203).
150
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 14.
62

favelas, indicando que não há uma evolução e uma homogeneidade temporal relacionadas
às habitações.151 Essa coexistência é que revela a fratura existente na sociedade brasileira,
entre as classes que têm direitos e as que não têm, e tal fratura se revela no direito, e na
paisagem urbana. Ela é um testemunho da imensa diferença econômico-social, que
acompanha o Brasil desde larga data, na produção das cidades e na ocupação dos espaços
urbanos.
Então, percebe-se que o crescimento das cidades brasileiras, no início do século XX,
ocorre em um contexto de sociedade que acabava de decretar o fim da escravidão, mas tendo
o cuidado de manter as pessoas que eram escravizadas em uma situação marginalizada, sem
estender até elas os direitos civis plenos. Assim, esse período pós-emancipação ocorre sem
nenhum esforço para integrar as pessoas à sociedade.152
Neste período, houve dificuldade de acesso a meios de subsistência, ou até mesmo,
de trabalho, pois, de um lado se vedava o acesso à terra, e, por outro, se obstou o trabalho
assalariado às pessoas antes escravizadas, com a preferência dos latifundiários e industriais
pela mão de obra branca, cuja imigração foi fomentada para suprir essas necessidades e para
‘embranquecer’ a população.153
A exclusão social, inaugurada pela escravidão, continua a marcar a sociedade mesmo
após seu fim, mesmo com o crescimento populacional, dada a ausência de políticas de
integração. De outro lado, essa segregação se acentuava, mesmo em relação aos imigrantes,
já que as alternativas de reprodução social por subsistência estavam bloqueadas,
especialmente pelas restrições do acesso à terra, tornando o trabalho assalariado a única
possibilidade de adquirir os elementos básicos de sobrevivência.
Esse é o contexto histórico em que, no início do crescimento das cidades, sua
população se expande, e milhares migram para elas em busca de trabalho e melhores
condições de vida.
Além disso, nessa época se cristalizam as dificuldades e ambiguidades regulatórias,
com dificuldades burocráticas com escapes aos poderes de fato, aptos a contornarem com a

151
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 12.
152
Cf. Schwarcz, Sobre o Autoritarismo Brasileiro, 2019, p. 30.
153
Cf. Andre, O ser negro: um estudo sobre a construção de subjetividades em afro-descendentes, 2007, p.
113-114, aborda a questão do embranquecimento da população como uma política ativa realizada pelas
elites como forma de dirimir os “problemas raciais, apontando, ainda, como se construiu a harmonia racial
como um mito e como a miscigenação foi um processo que também continha sua violência, pois a
miscigenação que traria esse embranquecimento se deu por meio de três métodos, a violência sexual, os
relacionamentos interraciais e pela imigração.
63

força tais entraves, gerenciando um caos normativo, com poderes concentrados em


latifundiários.
A segregação social, com hierarquias rigidamente construídas, com matiz racial, e as
tramas legais e a proliferação de fraudes são heranças que contamina a lógica de ocupação e
distribuição do acesso à cidade.

2.1.3 Formação das cidades brasileiras e as habitações populares

As cidades brasileiras começam a crescer, a se expandir e a receber um número


desproporcional de habitantes, algumas décadas após o fim da escravidão. A exclusão social
é um dos traços que marca o processo de produção das condições de vida na cidade.
Os crescimentos desenfreados trazem consigo inúmeros problemas às cidades, já que
um maior número de pessoas implica numa maior dificuldade de distribuição de bens
urbanos, tais quais, a água, o lixo, o esgoto.
São Paulo, no período de 1886 até 1900, teve uma explosão habitacional,
impulsionada pela chegada de milhares de imigrantes estrangeiros, experimentando um
aumento de sua população em 28% ao ano, ou cerca de 20 mil pessoas por ano.154 Em termos
estatísticos, isso aponta para um enorme grau de dificuldade que a cidade atrairá para si, nas
décadas futuras.
E, entre as dificuldades decorrentes da repentina explosão demográfica, desponta
carência de moradias. A produção de habitações populares para esses novos trabalhadores
não acompanhou o influxo de migrantes, ocasionando um aumento da taxa de ocupação dos
imóveis, proporcionando as condições de aparição de formas outras de habitação, que teve
como resultado a multiplicação dos cortiços na cidade.
Nabil Bonduki relata a dificuldade de obter dados sobre as habitações populares
dessa época, salientando que os documentos mais profícuos para resgatar informações eram
relatórios e análises realizadas por inspeções sanitárias, preocupados com as condições
higiênicas e com o controle de epidemias. Já é possível perceber os contornos da segregação
espacial desses problemas, que afligiam de forma diversa os diferentes estratos sociais. 155
A segregação começa a ser produzida por meio da diversificação de funções dos

154
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 18.
155
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 20.
64

bairros, que eram divididos em ‘operários’ e ‘finos’, a partir de 1880.156 Esse olhar para as
classes mais pobres, a partir de um viés ‘higienista’, ou seja, com preocupações relativas à
saúde pública, é o início de uma visão elitista e preconceituosa que se projeta sobre áreas
inteiras da cidade.
O enorme influxo de pessoas faz com que surgissem moradias precárias e apressadas,
o que fez com que os cortiços se multiplicassem. Os cortiços são uma forma de auferir renda
da terra, enquanto ela valoriza; neles, há uma coabitação forçada (pelas condições materiais)
de vários núcleos familiares, com condições estruturais precárias, banheiros e cozinhas
compartilhados, e alta ocupação. Nunca é demais afirmar que as condições sanitárias e
estruturais eram péssimas.157
A visão higienista vem de influência europeia, e recebe esse nome porque tem o
intuito de trazer “limpeza”, “higiene” e saúde para o contexto territorial, possibilitando o
combate às doenças e à corrupção e deterioração, estigmas que eram associados às
habitações populares como algo revelador do caráter impróprio de seus moradores, e não
simplesmente como denúncia das dificuldades e pobreza.
Como contraparte à preocupação com higiene e associação desses estigmas às classes
populares, torna-se possível defender a segregação e a exclusão sociais de pessoas pobres e
negras utilizando-se de uma retórica de saúde pública.
O pensamento higienista tem atuado no planejamento urbano tem como um de seus
expoentes o Barão de Haussmann, que na paris do séc. XIX promoveu extensas reformas
urbanas com a justificativa de melhorar as condições sanitárias e de higiene da cidade, mas
que tiveram como resultado a remoção dos pobres das áreas centrais de Paris158.
Para Mike Davis, “Como na Paris da década de 1860 sob o reinado fanático do Barão
de Haussmann a reconstrução urbana ainda luta para maximizar ao mesmo tempo lucro
particular e o controle social final.”159, ou seja, assim como as intervenções urbanas que
transformaram Paris na cidade luz serviram de influência e modelo para as intervenções
urbanas nos países periféricos.
Tal ideário veio a ser implementado em São Paulo a partir de 1938, com a
implantação do plano de avenidas do então prefeito Prestes Maia, que “Propunha transformar

156
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 21.
157
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 46-48.
158
Cf. Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 105.
159
Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 105-106.
65

o modelo de crescimento de condensado a disperso ao irradiar uma série de grandes avenidas


do centro em direção às zonas afastadas da cidade. Essa irradiação exigia demolições em
massa e a reforma do centro da cidade.”160.
As retóricas que invocavam salubridade, revitalização, e outros adjetivos positivos,
mal escondiam o propósito de segregar, utilizando tais adjetivos como eufemismos da prática
de retirar os pobres de determinada localidade, permitindo a extração de renda daquelas
terras.
Perceba-se que o que tornou possível essa prática, facilitando a palatabilidade dessa
retórica são os estigmas da deterioração, da sujeira, da doença e da degeneração moral,
tornando indissociáveis esses atributos dos moradores, permitindo, que a remoção dos
moradores seja vista como medida de saúde pública.
Assim, se produziu uma persistente associação entre as doenças, as epidemias, a
degeneração moral e os cortiços, ao passo que a higienização dependia de unidades
habitacionais individuais, alinhadas com a moral burguesa.161 E, ainda hoje, tais estimas
persistem, associando as áreas mais pobres com certa decadência 162 social e moral.
Essa relação moral do território com o indivíduo transborda para o corpo dele, que
se associa ao estigma daquela localidade. E isso se reflete na seletividade dos ramos do
direito, com diferentes ofertas de serviços públicos, de regularidade das áreas, e até mesmo
penal, especialmente com a utilização de crimes como vadiagem, embriaguez e desordem,
delitos criados com destinatários negros e pobres em perspectiva.163 Aí estão estigmas que
se originam nos cortiços, mas são associados às ocupações informais e, de um modo geral,
aos bairros que concentram as populações vulneráveis e com menos acesso aos serviços
públicos.
Essas questões de melhoria das condições higiênicas, aliadas ao preconceito social e
racial existente contra os moradores, motivaram demandas de ações estatais cada vez mais
autoritárias, ampliando poderes de intervenção para solucionar (ou afastar) esse problema.
E essa intervenção se inicia com a justificativa do exercício de um combate de epidemias,

160
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 224.
161
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 54-55
162
Também percebe e aponta a imoralidade permeando os cortiços, justificando os estigmas, James Holston,
que cita estudo do Idort, o qual aponta a necessidade de uma residência de 7 cômodos para uma família,
permitindo a separação sexual de funções e de habitações, o que permitiria a formação do caráter e da
saúde. (Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013,
p. 222-223).
163
Cf. Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 62.
66

incluindo-se as tarefas de uma polícia sanitária que atuava de forma autoritária. Conforme
descreve Nabil Bonduki:

Portanto, das medidas contra as duas epidemias de 1893 surgiram três frentes de combate – legislação
urbanística, planos de saneamento básico e estratégia de controle sanitário -, que são a origem da
intervenção estatal no controle da produção do espaço urbano e da habitação. 164
E logo são os cortiços e habitações coletivas que serão alvo de intervenções do
Estado, com remoções sem possibilidade de retorno, tendo em vista que a especulação
imobiliária e as próprias intervenções valorizavam aquelas áreas, aumentando os valores dos
aluguéis165. Se, de um lado, os cortiços se mostravam necessários, pois garantiam que
houvesse moradia a um custo acessível, o que mantinha a força de trabalho com salários
rebaixados, de outro lado, gerava condições sanitárias de habitação que eram dignas de
repulsa de parcelas da sociedade.166
Embora nunca tenham desaparecido completamente, seu número se reduziu nas
décadas seguintes, sendo que outras formas de habitação foram promovidas e incentivadas
pelo Estado, mas também pelos seus habitantes. Assim, o modelo ideal de habitação, até
incentivado pelo Estado, era a vila operária, sabendo-se que estas eram produzidas pelas
empresas para os seus próprios funcionários, ou seja, produzidos pela iniciativa privada.
A situação precária dos cortiços levou o Estado a incentivar a construção de vilas
operárias no início do século XX, o que reduzia a pressão sobre os salários que as indústrias
pagariam, além de garantir certo controle sobre a mão de obra, uma vez que o operário, ao
perder o emprego, também seria despojado de sua moradia.167
Contudo, ainda que se construíssem vilas operárias, com enormes vantagens
sanitárias (além da pureza moral que se mostra possível com a habitação unifamiliar, ideal
para conformar a família aos moldes da moral burguesa), os preços da moradia ainda
compeliam os trabalhadores a ocuparem os cortiços, de modo que, durante o período da
República Velha, a maior parte das moradias ainda eram locações nessas habitações

164
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 33.
165
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 224-
225.
166
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 39.
167
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 54-55.
67

coletivas.168
Posteriormente, durante a era Vargas, ocorrerá uma transição desse modelo de
habitação para a classe trabalhadora. Da casa locada e dos cortiços, passa-se ao modelo da
casa enquanto propriedade do próprio trabalhador, normalmente produzida por meio da
autoconstrução.
A partir de então, a ‘casa autoconstruída’ irá se generalizar como modelo, tornando-
se a principal forma de provimento da moradia das classes trabalhadoras. A autoconstrução
é estimulada, ocorre uma ampla oferta de terrenos situados na periferia das cidades, seja por
meio de financiamentos ou de parcelamentos; ela é viabilizada por meio dos esforços do
próprio trabalhador, na medida em que este irá se utilizar de suas horas de descanso para a
produção de sua casa.169

2.1.4 Evolução das habitações no Brasil: a produção do espaço urbano sob um paradigma
de exclusão e segregação

A produção das moradias que compõe a cidade é realizada por diversos agentes
sociais, as pessoas, os agentes financeiros, incorporadores e o próprio Estado.
A participação desses atores e o volume de moradias que produziram não coloca o
Estado em um papel secundário, ainda que ele não as tenha produzido diretamente, pois a
atividade estatal que regulamenta, faz investimentos, planeja algumas medidas e políticas
públicas, e até mesmo a política monetária, que interfere nos financiamentos vai direcionar
e interferir nas decisões dos agentes privados, orientando a forma como atuam, e na
localidade em que são autorizados ou que são estimulados a produzir as moradias.
Assim, por exemplo, o mercado financeiro é amplamente regulamentado, de modo
que a definição de taxas de juros e regras mais estritas para a realização de financiamentos
tem impacto direto na produção de habitações, ou ainda a forma como se efetiva e garante
as locações e os despejos, perpassando, assim, o rentismo e a produção de moradias para
locação.
De outro lado, a delimitação de áreas para o mercado imobiliário e outras ilícitas, as

168
Cf. IBGE, Censo demográfico 1940, 1950, p. 161, apenas 43% das moradias eram habitadas por seus
proprietários em 1940; já Cf. IBGE, Estatísticas do Século XX, 2016, p. 124-125, em 1980, essa
porcentagem era de 64%; e de 72% em 1991; e, Cf. IBGE. Pesquisa nacional por amostra de domicílios:
síntese de indicadores 2015,2016, p. 65-76, em 2015, essa porcentagem cresce um pouco mais para cerca
de 74%.
169
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 30-31; e, cf. BONDUKI, Origens da habitação
social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria, 2004, p. 249.
68

quais se tolera que sejam ocupadas informalmente, vão delimitando uma certa forma de
produzir a cidade.
Até mesmo a omissão do Estado, e a seletividade na aplicação do Planejamento
Urbano e das regras do Direito Urbanístico, acabam direcionando para um certo tipo de
cidade. Há tolerância com a ocupação de áreas ilícitas, na medida em que elas são
consideradas, antes de tudo, inadequadas ao mercado. Assim, percebe-se que a postura do
Estado, independentemente de haver uma intenção deliberada e explícita, é determinante
porque orquestra e cria um contexto de atuação e de produção da cidade pelos outros agentes.
Nesse sentido se percebe como é indispensável, para compreender o comportamento
dos agentes que produziram a cidade, averiguar qual foi a postura do Estado.
Do ponto de vista histórico, pode-se dizer, foram diferentes as posturas do Estado
brasileiro na produção das moradias. Inicialmente, é importante voltar a mencionar a edição
da Lei de Terras, cercando a terra de garantias de propriedade, e limitando o acesso a ela.
Essa etapa, que se inicia no período imperial, é o que prepara para o fim da escravidão,
efetuando também a segregação das pessoas negras, pela ausência de auxílios ou
compensações para recompor uma sociedade170, conforme o que exigiria uma justiça de
transição adequada para superar tão severo trauma.
O advento da República, inspirada por ideais liberais, tinha certa resistência à ideia
de intervenção estatal. Contudo, em razão dos problemas sanitários, começam a ocorrer
pressões por intervenções higienistas, sob a bandeira da proteção da saúde pública o estado
legitima seu fortalecimento e o intervencionismo.
É desse modo que as habitações populares começam a receber atenção estatal, não
na forma de uma política pública, mas sob um viés repressivo, submetendo a escrutínio os
cortiços e habitações informais detectava-se sua insalubridade, com o propósito mal ocultado
de sanear a proximidade e a contaminação de áreas mais nobres.
Nabil Bonduki ressalta a atenção estatal repressora:

O poder público, entretanto, não foi um espectador passivo das condições de moradia dos pobres.
Tanto assim que criou uma polícia para vigiá-los, examiná-los e inspecioná-los, e uma legislação para
servir-lhes de padrão; porém pouco fez para melhorar suas moradias.171
Tratou-se de uma intervenção que se fundamentava no estigma e no preconceito

170
Cf. Menezes, Crítica do direito à moradia e das políticas habitacionais, 2017, p. 92-93.
171
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 43.
69

moral que existia contra os cortiços, mas também que fortalecia tais impressões, reforçando
tais localidades como antros da doença e da depravação moral, decadência para o corpo e
para o espírito.172
São estigmas ideológicos que vão marcar fundo as localidades informais, e se projetar
para o futuro, inspirando e justificando a segregação e a deficiência na prestação de serviços
públicos. Trata-se de uma produção do espaço urbano que, já no início do Século XX, tem
no Estado apenas um reforçador dos preconceitos presentes na sociedade, sem a elaboração
de políticas públicas preocupadas com a população em geral173.
Somente no período Vargas haverá um direcionamento de força - ao menos no nível
discursivo -, para garantir as moradias populares. Embora se aventem as diferentes intenções
que estariam conectadas com a medida de congelamento de aluguéis ocorrida na década de
40, tratou-se de uma ação estatal direta com o objetivo declarado de promover a moradia.
É certo que, ao observar as consequências dessa ação governamental, se percebe que
ela não permitiu uma universalização do acesso à moradia, mas prestigiou alguns moradores
antigos de certas regiões, e permitiu um amplo campo de penumbra e de ilegalidades que
não conseguiam ser acompanhadas e coibidas pelo Estado, seja em razão de cortiços, em
que os ajustes se faziam de forma oculta ao Direito ou ainda pela criatividade dos locatários,
e pela pressão que faziam para efetivar os despejos de seus antigos inquilinos, que detinham
direitos para manter baixos os aluguéis.
Nos anos seguintes, é interessante mencionar a produção direta de unidades
habitacionais (UHs) por certos entes estatais, os conjuntos habitacionais dos Institutos de
Aposentadoria e Pensão (IAPs), com a ressalva de que tais construções eram em número
ínfimo diante das necessidades de moradia, bem como pela estreiteza dos tipos de
beneficiários, isto é, os integrantes do respectivo instituto. Esse contexto de desenvolvimento
industrial faz com que especialistas analisassem o tema, contudo o viés assistencialista e os
preconceitos morais não foram abandonados.174
E é nas décadas de 40 e 50 que surgem conjuntos habitacionais voltados

172
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 53; e, Cf. Bonduki, Origens da habitação social
no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria, 2004, p. 86.
173
A utilização do Estado pelas elites nessa época não só mostra a parcialidade da utilização da violência e dos
orçamentos, mas evidencia uma dificuldade democrática brasileira, em que boa parte da população era
objeto de intervenção da vontade estatal, mas não participantes e influenciadores dessa vontade. O dinheiro
público era utilizado contra eles.
174
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 74-75.
70

principalmente para a classe média, ligados a determinadas categorias profissionais mais


organizadas, representaram boas condições construtivas e habitacionais, se alinhando à
arquitetura moderna, que previa espaços de convivência comunitária.
Os institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP’s) eram organizados a partir das
contribuições das categorias profissionais. Isso significa que as principais categorias
profissionais, como os bancários e industriários conseguiam formar vultosos fundos, os quais
eram geridos com certa independência por tais institutos.
Os institutos tinham o dever de gerir tais fundos, garantindo que os recursos fossem
mantidos e gerassem rendimentos, de forma a efetivar o pagamento das aposentadorias dos
trabalhadores a eles vinculados.
E o investimento em habitação mostrou-se atrativo, pois além de ser lucrativo,
permitia que os próprios trabalhadores vinculados ao instituto tivessem acesso a uma
moradia de sua propriedade.
Ou seja, embora a produção habitacional não fosse um dos objetivos dos institutos,
esse tipo de investimento torna-se interessante, já que, de um lado preservava o fundo e, de
outro, ainda atendia necessidades habitacionais dos trabalhadores que participavam dele.
E houve diversas construções de conjuntos habitacionais, os quais, embora de
qualidade variada, demonstravam que havia capacidade para enfrentar o problema de
habitação.175
Assim, há certos méritos a serem levantados pelos conjuntos produzidos, como por
exemplo a qualidade arquitetônica ou mesmo a inovação das técnicas e tendências, que
promoviam uma integração à cidade, e um uso comunitário de equipamentos 176, o que trazia
um contraponto à lógica que dominava o crescimento das cidades de produção de moradias
principalmente nas periferias, que se fazia sem técnicas adequadas e, principalmente, pela
falta de acesso à cidade e aos serviços públicos e direitos a ela associados.
Interessante notar que Nabil Bonduki também apresenta um aspecto simbólico na

175
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 133.
176
É de se destacar o conjunto habitacional do Pedregulho, projetado pelo Arquiteto e Urbanista Affonso Reidy,
que continha até mesmo alguns equipamentos públicos integrados ao conjunto, como creches e postos de
saúde, com uma transição entre o público e o privado. Os espaços comuns trazem uma lógica comunitária
e de integração supostamente positiva, pois estimularia o fortalecimento e a convivência, em certa oposição
à ideia subjacente na universalização da casa própria firmada em aposentadorias. Esse projeto se mostrou
extremamente interessante, do ponto de vista construtivo, e pelas ideias inovadoras que trouxe, cf.
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 133.
71

idealização dos conjuntos habitacionais pelos IAP’s. Essa concepção se inseria em uma ideia
de modernidade que atendia ao discurso conservador e moralista, mas também buscava uma
integração, em um ambiente “controlado”:

“o discurso conservador e moralista, de crítica ao espaço público não controlado (cujo melhor exemplo
é o bar e as rodas de malandragem), se associa a uma proposta moderna (os pilotis), que aparecia
como solução de lazer e sociabilidade sadia, num ambiente controlado ao qual só os “trabalhadores”
teriam acesso”177
Entretanto, tais construções, embora merecedoras de nota e de elogios, foram
pontuais dentro do quadro de produção habitacional do período, e não estão isentas de
críticas, pois, muitas vezes concentravam os investimentos em classes médias e média-alta,
dos trabalhadores desses institutos, de modo que não interferia de forma significativa na vida
daqueles que mais necessitavam de atendimento.
E, exatamente em razão da seletividade da aplicação dos recursos, tornou-se possível
que o apadrinhamento político e o clientelismo dirigissem essas moradias àqueles mais
próximos do poder de decisão, e àqueles com mais recursos financeiros e políticos. Os
funcionários no topo da pirâmide acabavam abocanhando tais recursos e unidades
habitacionais.178
Nabil Bonduki observa que esse modelo traçou mais uma linha divisória entre
aqueles que receberiam uma política habitacional e os outros: “Traçou-se, com isso, uma
linha divisória entre os cidadãos com direitos sociais, entre os quais os trabalhadores
assalariados, e os subcidadãos, que não tinham lugar na nova ordem social”.179
Tais institutos, por serem setoriais, isto é, corresponder a apenas uma categoria,
dispunham de recursos, estrutura e capacidade de investimento, de modo que os maiores e
com acesso aos maiores recursos resistiam a uma unificação, conforme pretendida por
Vargas.
Na década de 1940, houve tentativa de implementar a Fundação da Casa Popular, a
qual teria produzido um ínfimo número de habitações. Havia muitas forças contrárias, entre
as quais, os próprios institutos que resistiam à unificação, de modo que os números de
unidades produzidos por essa fundação foram pouco expressivos diante da necessidade

177
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 151.
178
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 108.
179
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 109.
72

brasileira. Nabil Bonduki associa esse fracasso às forças contrárias e à desorganização dos
beneficiários da política pública.180
Em seguida, com o golpe civil-militar de 1964, o governo concentrou poderes e
efetivamente unificou os institutos de pensão Instituto Nacional de Previdência Social
(INPS), em 1966. As carteiras prediais foram transferidas ao Banco Nacional de Habitação,
(BNH), criado em 1964.
A ditadura tinha um viés antipopulista e conservador, mas absorveu a bandeira da
moradia sob essa lente, incentivando a ‘casa própria’. Segundo Nabil Bonduki, “o tema da
política habitacional era uma bandeira de caráter nitidamente conservador, vinculada
sobretudo à Igreja Católica, que enfatizava a relação entre a família e a moradia como
fundamento da estruturação moral e cristã das classes populares”.181
E o BNH instituía uma forma de ação governamental que privilegiava o mercado
financeiro e a instituição de uma dívida como mediadores da moradia, através da casa
própria. Contudo, não instituía propriamente uma política pública habitacional, pois apenas
uma pequena parcela da população, que tinha uma renda formal e alguma poupança
conseguiam de fato adquirir os imóveis.
Essas dificuldades impunham aos trabalhadores das camadas mais pobres garantir
suas habitações por meio do autoempreendimento, e, pela ausência de uma determinação ou
planejamento claros, se definia um crescimento acelerado da cidade informal, e
aprofundamento do abismo social.
Somente no período democrático as questões urbanas começam a ganhar uma
atenção maior do Estado, sob a perspectiva da moradia como direito e da política pública.
Assim, a Constituição de 1988 prevê a ordem urbana, em 2001 se edita o Estatuto da
Cidade182 e, com o início do primeiro governo Lula, é criado o Ministério das Cidades.
É somente em 2009 que se inicia o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV),
que efetivamente teve uma amplitude de recursos maior do que os que antes se direcionaram
para as habitações, contudo mantendo uma lógica individualista de concessão do direito de
moradia, por meio da casa própria, e destinando boa parte de seus recursos e unidades

180
Os IAPs produziram cerca de 123.995 unidades durante a década de 40, enquanto a Fundação da Casa
Popular teria produzido apenas 18.132 unidade, Cf. BONDUKI, Origens da habitação social no Brasil:
arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria, 2004, p. 115.
181
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 120.
182
Lei N.º 10.257 de 2001.
73

habitacionais para setores sociais que não concentravam a maior parte do déficit
habitacional.
Retomadas as ações do Estado para a produção das cidades brasileiras, e para
implementação do direito de moradia, surge uma perplexidade, pois há até dificuldade em
elaborar uma crítica precisa sobre as políticas públicas, pois, não ocorreu a elaboração de
um plano específico de efetivação universal do direito à moradia. Assim, o congelamento de
aluguéis visava atacar o rentismo, direcionando o capital acumulado à indústria e permitir a
acumulação industrial no país; os financiamentos, do BNH e do Minha Casa Minha Vida,
permitiram, principalmente, que boa parte da classe média adquirisse suas moradias, mas,
prioritariamente, que aquecesse a economia para superar os danos da crise de 2008, como
um investimento contracíclico, sem preocupação ou previsão séria a respeito das
consequências urbanísticas do programa, permitindo que houvesse prejuízos ao
planejamento urbano e desperdiçando a chance de incentivar mudanças positivas na
produção das cidades e das condições habitacionais, dado o vultoso investimento destinado
à produção de moradias.
Interessante observar que a apropriação de apartamentos e moradias subsidiadas,
escoando os investimentos públicos para os que não exatamente se poderiam considerar os
mais necessitados também é percebida em outras políticas habitacionais pelo mundo,
inclusive em projetos socialistas, conforme analisa e exemplifica Mike Davis, que traz
exemplos de Cuba, da União Soviética, Hong Kong e Argélia 183.
Mike Davis analisa e conclui que “a ‘usurpação’ pela classe média de moradias
públicas ou subsidiadas pelo Estado, como dizem os especialistas em habitação, tornou-se
um fenômeno quase universal.”184
As intervenções que se legitimaram discursivamente na proteção da moradia, foram
pretexto para a consecução de outros objetivos, de modo que não houve ainda a formulação
e execução de uma ampla política pública com o propósito de garantir moradias dignas a
toda a população, como uma forma de universalização desse Direito, com a destinação de
recursos orçamentários suficientes, e elaboração de medidas de consequências menos
ambíguas.
Dessa forma, a atuação do Estado na produção das cidades brasileiras formou

183
Cf. Davis, Planeta Favela, 2006, p. 69-74.
184
Davis, Planeta Favela, 2006, p. 73.
74

fraturas e expandiu os abismos sociais, reforçando investimentos em áreas nobres e


prestigiando os setores que não estavam com as mais urgentes necessidades habitacionais.
Esse tem sido, mesmo nos governos mais progressistas, alinhamento das ações
governamentais.

2.1.5 Era Vargas: Ataque ao rentismo e incentivo à autoconstrução

Com o fim da República Velha e a ascensão de Vargas ao poder, as questões do


trabalhador ganham uma centralidade no discurso do governo, e a moradia, que absorvia (e
absorve) parcela considerável dos salários, recebe atenção centralizada.
Até esse momento, os setores rentistas da sociedade tiveram condições de garantir
seus interesses, mas, nos anos 30, ocorre uma alteração na correlação de forças e setores
sociais que apoiavam a intervenção estatal na produção habitacional.
As forças rentistas eram importantes agentes de produção de moradias, pois o faziam
com o intuito de extrair altos rendimentos. Contudo, em 1942, foi regulamentado o mercado
de aluguéis, tendo ocorrido o congelamento dos preços de locação, o que desestimulou essa
produção e inaugurou uma severa crise de moradia. 185
Nabil Bonduki chama a atenção para o fato de que haveria múltiplas consequências
e intenções nesse congelamento dos aluguéis, os quais ultrapassavam a retórica de simples
proteção dos locatários. Aponta que essas medidas se alinhavam ao desenvolvimentismo da
era Vargas, de modo que tornava o mercado imobiliário menos atrativo ao capital, tornando
mais provável que fluísse para o setor industrial, que se visava desenvolver. Os recursos não
se direcionariam para um setor não-produtivo.186
Além disso, barateava a mão de obra, uma vez que a moradia, um dos elementos que
mais comprometia o salário estaria congelado, possibilitava-se aos empregadores a redução
das pressões sobre os salários.187
De outro lado, as medidas penalizavam e se realizavam às custas dos rentistas, que
arcavam com essas medidas para estimular o desenvolvimento e a acumulação industrial.
Segundo Nabil Bonduki, “A redução do custo de reprodução da força de trabalho urbana foi

185
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 209.
186
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 227.
187
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 234.
75

um dos pilares das elevadas taxas de acumulação que caracterizou o período”.188


Essa lei foi um fator que agravou a crise de moradias, embora alguns locatários
fossem beneficiados, os que detinham os imóveis há mais tempo, a lei tornou mais constante
a pressão pelos despejos, o que possibilitaria o reajuste do aluguel.
Há relatos de que os despejos eram promovidos com a utilização de violência ou
pressões ilícitas por parte dos locadores. Essas medidas também fomentaram o mercado
informal de locações, nos cortiços e periferias, já que essas camadas de moradias se situavam
fora dos controles formais. Contudo, ainda que fosse burlada, a lei que congelava os aluguéis
de forma oficial pressionava as discussões sobre reajuste salarial.189
Assim, este período se vê marcado por uma insegurança na posse dos imóveis, dado
que a maioria dos imóveis eram locados, e que os locadores buscavam aumentar sua renda.
Os despejos cresceram muito no período, tornando indesejada e insegura a moradia locada.
As ameaças de despejo serviam como ameaça para um aumento ilegal, e até uso da violência
contra o imóvel, como seu destelhamento, ou ainda a cobrança de luvas.190
Nesse contexto é que ganham força formas alternativas de prover a moradia, sendo,
por exemplo, na década de 40 que surge a primeira grande favela em São Paulo. Enquanto
no Rio de Janeiro, elas surgiram no início do século XX, em São Paulo são o resultado da
crise habitacional ocorrida na década de 40. Elas já foram a face mais visível da crise
habitacional, sendo alvo de forte estigma.191
Ao lado dessas formas alternativas de suprir a moradia, como assentamentos
informais em favelas, os cortiços continuam existindo, mas começa a despontar o
‘autoempreendimento’, fomentado também pelo crescente ‘sonho da casa própria’. Segundo
Nabil Bonduki, “Ser inquilino, antes condição natural de todo trabalhador, tornou-se uma
situação incômoda e sem futuro”.192
O aluguel, que dentro de uma política pública equilibrada poderia franquear o acesso
do trabalhador a bairros cujas propriedades estão além do alcance de seus recursos de

188
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 235.
189
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 237.
190
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 254.
191
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 261-262.
192
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 261.
76

aquisição, torna-se fonte de frustração e de ansiedades, já que mesmo resguardado por um


instituto jurídico, a inconsistência dos valores pagos, dos salários e até mesmo a iminência
dos despejos, torna essa modalidade estressante e sujeita a riscos extraordinários para a sua
tranquilidade. Fomenta-se, assim, um maior desejo pela casa própria, ainda que distante.
Com isso, aumenta expressivamente o número de autoconstruções das cidades,
generalizando a autoconstrução em lotes cada vez mais periféricos, espraiando a expansão
da cidade horizontalmente, já que frente aos riscos do aluguel, essa se torna a principal opção
do trabalhador.
Com o crescimento das cidades, são as suas periferias o espaço destinado aos
trabalhadores mais pobres193.
A autoconstrução foi a principal forma de que dispôs a classe trabalhadora brasileira
para suprir sua moradia. Com sacrifícios o trabalhador tem acesso a um lote, e a produção
da habitação é realizada por suas próprias forças, muitas vezes diretamente trabalhando
também nessa obra, ou com auxílio de vizinhos e de conhecidos.
A autoconstrução se caracteriza pelo custo menor, pela utilização de técnicas
construtivas piores ou pela ausência de projetos arquitetônicos, podendo gerar alguns
problemas estruturais ou de habitabilidade. Contudo, permitia o acesso à moradia, de sua
propriedade, e com expectativa de segurança na posse, embora tal expectativa muitas vezes
se frustrasse diante das irregularidades fundiárias do lote adquirido.
A autoconstrução se revela como uma sobre-exploração do trabalhador, pois utiliza
de seu tempo livre, e, com ajuda ou sozinho, trabalha diretamente na produção da moradia,
o que possibilita que os salários continuem baixos, porque, a despeito de discursivamente o
salário mínimo ter a finalidade de suprir todas as necessidades do trabalhador e, entre elas,
a moradia, os trabalhadores que utilizam seus esforços privados têm mais horas de trabalho
retiradas de si, possibilitando aos empregadores o pagamento de uma parcela a menor
salarial, já que o salário não custeará um dos elementos indispensáveis à reprodução da força
de trabalho.194
Também existe um fator ideológico que incentiva a autoconstrução, pois revela o
mérito do trabalhador, revestido de uma aura de sucesso, já que com seus esforços conseguiu
tornar-se proprietário e melhorar as suas condições de vida.195

193
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 205.
194
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 30-32.
195
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 33.
77

Esse componente ideológico da autoconstrução é destacado por Nabil Bonduki, que


observa como isso se introjetou no modo de vida paulistano:

O auto-empreendimento na periferia, configurando o território da aventura individual, da propriedade


privada, da moralidade cristã e do conservadorismo político – no espaço da casa em construção, do
lote bagunçado, da quadra clandestina, da rua semi-oficializada, do ponto de ônibus sempre cheio, do
tempo infinito até o trabalho -, formou a base do que chamo do modo de vida paulistano, tornando-se
uma referência cultural estruturadora do cotidiano dos habitantes da cidade.196
Em um primeiro momento, trata-se de casas em que prevalece apenas o uso do
imóvel, já que fora do mercado formal, e a produção é feita para a moradia do trabalhador.
Outros tipos de produção habitacional, incorporações, têm o propósito de imediatamente
colocar unidades habitacionais no mercado, o que extrai da terra seu valor de troca197.
Assim, será com muitas dificuldades que o trabalhador irá adquirir um terreno na
periferia e, com a utilização de seu tempo de descanso, irá progressivamente construir a sua
moradia. E, assim, irá tornar-se proprietário, ou seja, “digno” de usufruir de um pedaço da
cidade. Arlete Moysés Rodrigues critica essa exploração adicional do trabalhador:

Esse trabalho extra do trabalhador, ou sobretrabalho, permite que sejam pagos salários menores.
Afinal, o salário-mínimo, que deveria ser composto de um valor que permitisse ao trabalhador arcar
com os custos de sua moradia, teria essa despesa do trabalhador satisfeita pelos seus próprios esforços,
no tempo de descanso, de modo que há menos pressão nos salários, já que diminuem os custos de
sobrevivência da pessoa. Trata-se de uma perspectiva de vida em que o indivíduo se torna responsável
pela garantia de seus direitos e necessidades.198
Diante disso, essa modalidade de moradia efetivada por meio da autoconstrução se
tornou bastante conveniente para o Poder Público, que não precisa dispender esforços e nem
comprometer seu orçamento imediato199 para fomentá-la, já que dependia de sacrifícios do
próprio trabalhador.
A casa construída pelo trabalhador gera uma sensação de ascensão social sem que
seja necessário redistribuir renda. E assim se estruturavam os loteamentos periféricos, cuja
expansão foi sustentada pelo desejo da casa própria e pela autoconstrução 200

196
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 283.
197
O valor de uso e de troca das mercadorias remete à distinção elaborada por Karl Marx que percebeu nas
mercadorias um caráter duplo, isto é, um que corresponde à sua natureza e remete à sua utilidade e outra
que abstrai dessas características, generalizando um valor de troca, que permite sua comercialização no
mercado e seu pareamento com outras mercadorias de naturezas distintas. (Cf. Marx, O capital: crítica da
economia política: livro I: o processo de produção do capital, 2017, ps. 114-115).
198
Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 32.
199
O orçamento acaba comprometido a longo prazo, considerando os gravames urbanísticos, e o esgarçamento
da rede de serviços públicos necessária para atender localidades cada vez mais longínquas.
200
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 281-283.
78

Diante disso, a administração pública omite-se de elaborar políticas públicas mais


robustas de garantia do direito à moradia, o que se mostrou decisivo para a consolidação de
modelo de produção das moradias e da cidade.
Os loteamentos para os trabalhadores eram realizados em áreas periféricas, pouco
valorizadas pelo mercado imobiliário, de forma que a omissão estatal permitia a ocupação
de parcelas de terra desarticuladas da estrutura viária, segregadas da cidade oficial, e permitia
até mesmo a ocupação de terras sem registro formal ou de terceiros.
E tais loteamentos informais dificultavam o acesso de seus moradores aos serviços
públicos, cuja prestação era negada sob a justificativa da informalidade desses espaços,
agravando a exclusão e a segregação espacial, tornando o próprio acesso a serviços básicos
objeto de uma disputa.201
Vai se construindo a dicotomia entre centro e periferia, encarnando na periferia as
exclusões que vão se acumulando. Anote-se que a periferia não significa uma exclusão202 do
capitalismo, ou dos subsistemas econômico, jurídico, ou outros, mas representa uma
diferenciação entre o acesso à cidade, aos direitos, uma vez que existe comunicação e
implicação mútua.
Essa ocupação das periferias gera um fenômeno com as gerações sucessivas de
moradores, pois a realização e a reivindicação de melhorias em determinada periferia a
aproximava, real e simbolicamente do centro, elevando seus preços, forçando os migrantes
e trabalhadores das próximas gerações a se instalarem em periferias ainda mais distantes,
espraiando a cidade com a criação constante de novas periferias, a cada onda, e
transformando aquelas periferias e bairros mais antigos, lentamente incorporando-os na
cidade formal.
Nas palavras de James Holston:

Por essa razão a periferia está sempre mudando, com sua localização triangulando entre as variáveis
de pobreza, ilegalidade, ocupação rápida e precária e urbanização. É um lugar para os pobres que,
embora de início destituído, melhora com a autoconstrução e a mobilização política.203

201
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 290.
202
Nesse sentido, observar análise de Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da
modernidade no Brasil, 2013, p. 206-211. Também sobre as exclusões que travam relações com os
excluídos, a percepção da teoria dos sistemas, que opera com alguns sistemas que a todos incluem, como
o econômico (ainda que com diferentes graus), observando que as exclusões podem dar origem à
organização dos excluídos com novas fricções e reivindicações que partem dessa exclusão (Cf.
Campilongo, Interpretação do direito e movimentos sociais, 2012, p. 50-52).
203
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 217.
79

E os enormes afluxos de migrantes que irão fazer explodir as populações urbanas


serão direcionadas principalmente rumo às periferias, por meio do mercado informal, em um
padrão centrífugo de ocupação204, sendo a forma da urbanização e o espaço reservado aos
pobres.
Assim se agravava o problema da segregação, e da destinação diferenciada de
recursos públicos. Essa situação passa a delimitar no espaço do território urbano, de forma
bastante concreta, uma grande diversificação de aplicação dos recursos públicos,
culminando em diferenças geográficas de prestação de serviços públicos. Isso revela como
os serviços públicos se associam com a localização do imóvel, e como ganha peso o
transporte público205, possibilitando a interconexão e o acesso à cidade.
Segundo Nabil Bonduki:

os investimentos na cidade oficial e na criação de uma infra-estrutura para a expansão industrial, assim
como as altas taxas de acumulação da economia paulista, só foram possíveis graças ao abandono da
periferia e à redução do custo de reprodução da força de trabalho, obtida por meio de expedientes
como o congelamento dos aluguéis e a produção doméstica da moradia.206
Nas décadas seguintes, o modelo da ‘autoconstrução’ vai se incorporando nos
padrões culturais paulistanos, tornando-se não somente aceito, como admirado e desejado.
No entanto, a precariedade da mão de obra, a falta de técnicas construtivas adequadas
fazia e o emprego de materiais de baixa qualidade permitiam que as construções fossem
precárias e com elevados riscos de desabamento.207 Esse modelo de loteamento periférico
aliado à autoconstrução começa a mudar o perfil das habitações. Se, em 1940 apenas 43%
das moradias eram habitadas por seus proprietários, em 1980 esse número sobe para 64%.208
A casa própria e o autoempreendimento se cruzam na produção do sonho do
trabalhador, o qual é conquistado com o sacrifício de tempo e dinheiro. Ele significa uma
grande conquista. Esse padrão representava uma melhora da vida, mas de uma perspectiva

204
Tais observações podem ser percebidas também por Holston, Cidadania insurgente: disjunções da
democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 212-217.
205
Também aponta a importância do transporte público para a expansão das cidades, pois a conexão das
periferias com as cidades era precisamente esse serviço público que possibilitava aos trabalhadores
continuarem com seus trabalhos, mesmo ocupando essas periferias. Prevaleceu assim os transportes por
meio de ônibus, viabilizando a ocupação das franjas da cidade e, ao mesmo tempo, impedindo o acesso
dos trabalhadores para lazer ou outros usos à cidade. (Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da
democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 225).
206
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 296.
207
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 305.
208
Cf. IBGE, Censo demográfico 1940, 1950, p. 161 e Cf. IBGE, Estatísticas do Século XX, 2016, p. 124-125.
80

conservadora e individualista. As condições das periferias, com ausência de esporte, lazer,


cultura, com transportes lentos e medo da violência, levam as famílias ao isolamento e
representam a morada como principal cenário de sociabilidade.209
Essas características influenciaram o crescimento e a produção das cidades
brasileiras, muito embora a afirmação se faça principalmente pela observação do caso de
São Paulo, trata-se de situação que se reproduziu pelo país, nas outras metrópoles nas
décadas seguintes.
E, hoje, 70%210 das moradias brasileiras são da propriedade de seus moradores. Além
disso, esse caldo ideológico, esse sonho e essa lógica de segregar nas periferias os
trabalhadores contaminou as ações governamentais futuras, deixando como regra a omissão
e a ausência de universalização dos serviços públicos, e da falta de acesso aos direitos
fundamentais, geograficamente delimitando-os, por meio de uma cidade formal (a cidade
oficial) e a cidade informal (a cidade inoficial ou não-oficial).

2.1.6 Constituição Cidadã: O Movimento Nacional pela Reforma Urbana

Por volta dos anos 40 os problemas relativos à questão urbana no Brasil começam a
ser percebidos em razão do aumento da urbanização sem o correspondente crescimento das
alternativas habitacionais, o que gerou aumento das moradias em favelas e assentamentos
informais; as reivindicações relacionadas ao urbano e às cidades remontam à década de
1960, época em que eram debatidas pelos arquitetos, urbanistas e profissionais vinculados à
questão urbana.211
O golpe cívico-militar ocorrido em 1964 colocou fim a esse ciclo de luta pela reforma
urbana,212 associada às reformas de base que estavam sendo propostas, com o intuito de
vencer problemas estruturais do Brasil. Entre outras razões, o golpe serviu para obstar
transformações estruturais que visavam o combate à desigualdade social.
O período ficou marcado pela supressão da democracia. Mas é também nesse período
que algumas forças progressistas começam a ser gestadas. Merecem destaque as
Comunidades Eclesiais de Base, nos anos 1970. Essas forças conseguiram se reunir e trazer

209
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 309-312.
210
Cf. Tieghi, Brasileiro valoriza mais casa própria do que filhos, religião e estabilidade, Folha de São Paulo,
2022.
211
Cf. Bonduki, Dos movimentos sociais e da luta pela reforma urbana na Constituinte ao Estatuto da Cidade
(1981-2001), 2018. p. 92.
212
Cf. Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 27.
81

pressões para a Assembleia Constituinte, fazendo com que diversas reivindicações sociais
fossem contempladas pelo novo texto constitucional, que viria a surgir anos depois.
Após esse período, foi necessário um esforço de reconstrução do Estado, o que
ocorreu com a efetiva participação popular. Essa participação pode ser exemplificada pela
eleição de Luiza Erundina para a Prefeitura de São Paulo, o que remonta à reorganização das
forças progressistas, a partir dos anos 70. Assim, mesmo com uma conjuntura adversa,
tratou-se de um governo que apresentou avanços, mesmo contando com a oposição da mídia
e a resistência de forças conservadoras.213 Ermínia Maricato salienta esse episódio como
positivo, e como um indicativo de que é possível efetivar transformações urbanas, ainda que
nem todas as utopias sejam implementadas.214
E, foi emblemática a atuação da Igreja Católica nos anos 1980, de estímulo aos
movimentos de moradia, resultante da publicação de texto para a ação pastoral da Igreja,
após a reunião da 20ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), em 1982, em Itaici. Nesse texto, que se chamava Solo Urbano e Ação Pastoral se
defendia a função social da propriedade, o fim da especulação imobiliária e da política de
remoção de favelas.215
É dentro desse contexto de debates urbanos que ocorre a transição gradual que
culminou com o processo de redemocratização do país e com a promulgação da Constituição
de 1988216, que contou com a participação de especialistas e de diversos setores organizados
da sociedade, chegando a instaurar, pela primeira vez, dispositivos relativos à reforma
urbana.
Os avanços urbanísticos, como a definição da função social da propriedade, que era
apenas mencionada em Constituições anteriores, a usucapião especial urbana e a perspectiva
de trazer a ideia de solo criado, isto é, separar o direito de construir do direito de propriedade,
vinculando a construção ao planejamento municipal, ao IPTU progressivo para imóveis que
não cumprem a função social contidos na Constituição de 1988, no capítulo relativo à
política urbana, foram inseridos conforme emenda de iniciativa popular, coordenada pelo

213
Cf. Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 31-33, as forças conservadoras utilizaram-
se do aparato judicial para intimidar o governo de Luiza Erundina, inclusive com o indiciamento de
Ermínia Maricato e de Nabil Bonduki como se fossem loteadores clandestinos, por terem ousado
determinar que as áreas informais também recebessem a prestação de serviços públicos.
214
Cf. Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 33.
215
Cf. Bonduki, Dos movimentos sociais e da luta pela reforma urbana na Constituinte ao Estatuto da Cidade
(1981-2001), 2018. p. 91.
216
Cf. Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 200.
82

Movimento Nacional pela Reforma Urbana, que reunia movimentos sociais, a sociedade
civil organizada e diversos pesquisadores da questão urbana.217
É válido mencionar que embora a Assembleia Constituinte tenha mantido um viés
conservador, tendo em consideração a transição gradual, ela se manteve aberta à participação
popular. A emenda de reforma urbana precisaria de 30 mil assinaturas, e obteve cerca de 131
mil assinaturas.218
Todavia, embora o peso da participação popular tenha concedido força a essa
proposta, tornando inviável sua rejeição pela Assembleia, houve forças conservadoras que
se opuseram a seus termos, desidratando o potencial de inserção das mudanças na
Constituição. Essa movimentação conservadora criou diversos entraves à implementação
das mudanças planejadas, como por exemplo submeter a eficácia dos instrumentos
urbanísticos à edição de uma Lei Federal - a qual veio a ser promulgada uma década depois,
em 2001, o Estatuto da Cidade - bem como lançou para a arena política local a capacidade
de escolher implementar as medidas e, por fim, criou complexas exigências para a instalação
de alguns dos instrumentos como o IPTU progressivo, dificultando e impedindo sua
implementação.
Nabil Bonduki reforça que:

(...) os instrumentos urbanísticos criados pelo Estatuto da cidade são de difícil aplicação. Talvez fruto
dos acordos necessários para sua aprovação, a própria legislação criou caminhos tortuosos para a
implementação de instrumentos como os que visam penalizar imóveis que não cumprem a função
social. (...)A tática de protelar máximo a aplicação dos instrumentos de reforma urbana, adotada pelos
setores conservadores, foi bem-sucedida, mas não é intransponível, inclusive porque a modernização
da legislação urbanística também interessa ao setor imobiliário produzido.219

Uma nova fase se instaura com a eleição do presidente Lula, o qual efetua a criação
do Ministério das Cidades, antiga reivindicação dos movimentos sociais progressistas.
E, embora tenha tido quadros trazidos dos movimentos sociais e vinculados aos
problemas da moradia, ele tinha um orçamento limitado e inferior ao de outras áreas, em
especial pelo contingenciamento das despesas, que representava uma forma de centralizar
os gastos públicos e garantir superávits. Assim, mesmo com essa criação e da existência de

217
Cf. Bonduki, Dos movimentos sociais e da luta pela reforma urbana na Constituinte ao Estatuto da Cidade
(1981-2001), 2018. p. 98-99.
218
Cf. Bonduki, Dos movimentos sociais e da luta pela reforma urbana na Constituinte ao Estatuto da Cidade
(1981-2001), 2018. p. 102.
219
Bonduki, Dos movimentos sociais e da luta pela reforma urbana na Constituinte ao Estatuto da Cidade
(1981-2001), 2018. p. 136-137.
83

outros avanços sociais no governo Lula, houve retrocesso na questão urbana. 220
Assim, se percebe que houve avanços a serem reconhecidos, mas também que tais
avanços conseguiram ser limitados e, por meio da alteração das escalas de discussão,
geograficamente impedidos de terem uma abrangência nacional, impedindo sua efetividade
em pequenos e médios municípios.
Esses acontecimentos parecem confirmar a percepção de Milton Santos que mesmo
a previsão normativa não é capaz de esgotar a discussão e a necessidade de reivindicação e
de organização política, pois “A luta pela cidadania não se esgota na confecção de uma lei
ou da Constituição porque a lei é apenas uma concreção, um momento finito de um debate
filosófico sempre inacabado.”221
Contudo, o geógrafo percebe que diversas constituições trouxeram pactos territoriais
diversos para o Brasil, e que a Constituição cidadão perdeu a oportunidade de trazer um
pacto territorial condizente com sua proteção da cidadania, criticando a falta de um projeto
sistemático de reforma urbana e de reforma agrária, falta esta que fará com que se
aprofundem as mazelas sociais222.
O saldo é ambíguo, mas demonstra a importância da participação democrática para
que os avanços e alterações ocorram, e, por outro lado, se observa como ainda é longo o
caminho para implementar os ideais de reforma urbana que visem principalmente uma maior
igualdade e a garantia do direito fundamental de habitação.

2.1.7 Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV)

No Brasil, durante o todo o século XX, registram-se poucas políticas públicas


planejadas e diretamente voltadas para satisfazer a demanda por moradia. Mesmo dentre
aquelas que foram desenvolvidas, raras são aquelas dotadas de pretensão de promover
alterações universais no sistema habitacional. As políticas de suporte ao financiamento das
habitações e as produções pontuais de conjuntos habitacionais foram fortalecidas, muitas
vezes financiados por governos estaduais e municipais, mas sem que isso representasse um
avanço significativo para o enorme universo populacional brasileiro.
Os financiamentos dos imóveis, realizados pelo BNH, criado em 1964, mantiveram
a lógica de responsabilizar o indivíduo pela efetivação de sua moradia, pela aquisição de sua

220
Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 34-39.
221
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 105.
222
Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 133.
84

propriedade, e não alcançaram especialmente as parcelas mais pobres da população, sem


acesso a tais produtos financeiros. O financiamento do imóvel tem como requisitos uma
poupança prévia do adquirente somada a uma renda constante, o que exclui grande parcela
da população brasileira e, consegue garantir a casa própria para algumas pessoas sem que
essa aquisição interfira e reduza os problemas sociais e de segregação brasileiros.
Mais recentemente, estas mesmas características estarão presentes também no
Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), criado pelo Governo Federal em 2009, sem
a participação do Ministério das Cidades, que, na mesma época, gestou o natimorto Plano
Nacional de Habitação.223 O objetivo primordial do PMCMV era aquecer o mercado da
construção, imobiliário, para que o Brasil resistisse aos impactos da crise internacional de
2008, como uma medida anticíclica.224
O PMCMV teve suas diretrizes efetuadas pelo governo federal, e foi
operacionalizado pela Caixa Econômica Federal (CEF), seu escopo era financiar e subsidiar
a construção de habitações para diferentes camadas da população, de modo que o programa
dividiu essas camadas da população em diferentes faixas de renda.225
Destas faixas de renda, pode-se perceber que a concentração do déficit habitacional
está na faixa 1. Embora existam casos em que pessoas de outras faixas também vivam em
habitações em situação precária, o que faz com que suas moradias sejam contabilizadas
como parte do déficit, esses números não são proporcionais com o volume de recursos
destinados às faixas do programa que tinham menores necessidades.
Ao observar que o PMCMV não teve seus recursos direcionados à resolução dos
problemas que caracterizam o déficit habitacional, e não teve proporcionalidade na
destinação dos recursos às faixas mais pobres, na mesma proporção de que necessitavam e
cujas moradias compunham o índice do déficit habitacional, se pode concluir que não foi
objetivo do projeto combater tais problemas, senão de forma indireta.
Esses dados evidenciam que os elementos que compõe o déficit habitacional não
foram aqueles determinantes para enfrentamento por essa política pública, que tinha a função
precípua de aquecer a economia, como um investimento anticíclico.
Com isso, o PMCMV auxiliou diversas famílias que não estavam efetivamente

223
Cf. Menezes, Crítica do direito à moradia e das políticas habitacionais, 2017, p. 97-98.
224
Cf. Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 65-66.
225
Originalmente foram fixadas 3 faixas, que após foram acrescidas da faixa 1,5, sendo que a faixa 1,
representava famílias com renda familiar até R$1.800,00; a faixa 1,5, com renda até R$2.600,00; a faixa
2, as famílias com renda familiar até R$4.000,00 e a faixa 3, aquelas com renda até R$9.000,00.
85

necessitando de uma moradia, pois não compunham o déficit, a adquirir a ‘casa própria’. E,
embora essa realidade provavelmente seja avaliada como positiva pelos beneficiários, denota
que os recursos públicos não foram destinados aos que mais dele necessitavam, e não
estavam sendo utilizadas para sanar o déficit habitacional e as mazelas urbanas.
Esse modelo recebeu diversas críticas dos pesquisadores da realidade urbana. Rafael
Lessa V. de Sá Menezes, bastante cético às capacidades do sistema capitalista de superar os
problemas habitacionais, aponta como os recursos públicos utilizados para subsidiar as
moradias e para as construções são absorvidos pelo mercado imobiliário,226 seja
incorporando diretamente os subsídios nos preços, ou ainda por meio de um aumento global
de preços, que acabaria excluindo, novamente, uma parcela da população desse mercado,
com a oferta de mais recursos. A crítica por ele elaborada aponta para o fato de que o
programa governamental desperdiçou a oportunidade de interferir de forma positiva no meio
ambiente urbano.
Ao contrário, como não houve estabelecimento de diretrizes, além da definição dos
destinatários, não se impôs um padrão construtivo adequado, e nem uma localização
interessante. Isso permitiu que as habitações financiadas pelo programa governamental, em
especial as destinadas à faixa 1, se localizassem nos limites do perímetro urbano do
Município, ou nas franjas da cidade, como escreve Ermínia Maricato, que enxerga, após o
programa, uma piora da situação das cidades.227
Diante da ausência de critérios para o estabelecimento do local do empreendimento
houve uma predileção ou exclusividade da utilização das terras periféricas (desabastecidas
de serviços públicos, e desconectadas da cidade e das inter-relações que tornam atrativa e
valorizada determinada localidade), as quais permitiriam que o incorporador auferisse um
maior lucro. Isso ocorreu porque a construção de um edifício, em regra, terá custos similares,
ao passo que o insumo cujo preço mais varia e que mais possibilitaria a maximização desse
lucro é precisamente o preço da terra. Assim, são as terras periféricas que permitem, em um
mesmo projeto, uma margem de lucro maior.
E essa maior lucratividade está relacionada até mesmo com a especulação
imobiliária, pois a criação desses conjuntos, com a coerção contra a administração para que
estenda até aquela localidade os serviços públicos, ao mesmo tempo em que piora o

226
Cf. Menezes, Crítica do direito à moradia e das políticas habitacionais, 2017, p. 107-108.
227
Cf. Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p.75-76.
86

problema de crescimento horizontal da cidade, associada com a ineficiência dos serviços


públicos e desperdício de redes que já se encontram instaladas, também faz valorizar as terras
mais próximas do centro, que ainda não foram utilizadas.
Assim, o programa governamental permitiu exercer uma forte pressão sobre as
municipalidades, levando-lhes a possibilidade de construção de habitações em localidades
ainda inadequadas à ocupação, pela distância dos centros urbanos e ausência dos serviços
básicos para a sobrevivência. Muitas dessas localidades se encontravam até mesmo sem
serviços privados básicos, como padarias e mercados.
O programa permitiu a construção de 5 milhões de unidades habitacionais entre 2009
e 2019, mas, em tal período, embora se perceba uma variação no déficit habitacional, não se
pode estabelecer uma conexão228 direta do PMCMV, o que reforça a conclusão de que,
embora o programa governamental tenha a aparência de ser um programa habitacional, em
verdade, os seus objetivos era outros, muito mais de caráter econômico-financeiro, cujos
beneficiários, embora de renda baixa, não eram todos de pessoas com o direito à moradia
sob risco de violação.
Isso fez com que, mesmo com a produção de mais unidades habitacionais, se
tensionasse a oferta de serviços públicos, espalhados em uma base geográfica maior, bem
como se tornasse mais complexa e dificultosa a gestão das cidades, agravando seus
problemas urbanos. Assim, mais uma vez, sob o uso retórico da moradia, a administração
pública deixou de exercer importante tarefa concernente à redução do déficit habitacional.

2.2 Marcos da desigualdade urbana: déficit habitacional e dignidade da pessoa


humana

2.2.1 Déficit Habitacional e a População em situação de rua

A Fundação João Pinheiro publica o documento oficial que registra o déficit


habitacional brasileiro anualmente, calculado a partir de elementos que denotam que a
habitação está sendo insuficiente ou precária. Essa avaliação pode ser realizada de forma
quantitativa ou qualitativa. Do ponto de vista quantitativo, o déficit considera os seguintes

228
É possível perceber, com a ausência de enfrentamento direto dos elementos que compõe o déficit
habitacional que diversos beneficiários do programa não estavam contabilizando esse débito, embora
possam ter sua situação melhorada pelo programa, alterando uma moradia locada por uma de sua
propriedade.
87

aspectos: (i) a precariedade229 da própria habitação; (ii) a existência de coabitação;230 (iii) o


gasto excessivo com aluguel;231 (iv) e, por fim, o adensamento excessivo em domicílios
alugados.232
Assim, se apresenta a série histórica do déficit habitacional quantitativo, isto é,
aquelas moradias inadequadas conforme os critérios publicados pela Fundação João
Pinheiro233:
Ano Déficit
habitacional total
2004 7.804.619
2005 7.902.699
2006 7.934.719
2007 5.989.064
2008 5.546.310
2009 5.998.909
2010 6.940.691
2011 5.581.968
2012 5.430.562
2013 5.846.040
2014 6.068.061
2015 6.355.743
2016 5.913.827
2017 6.087.970
2018 6.052.408
2019 6.084.466

229
Considerando aspectos construtivos, por exemplo a rusticidade, sem paredes de alvenaria ou madeira
aparelhada; e habitações improvisadas, isto é, locais e imóveis que não têm fins residenciais, como imóveis
comerciais, espaços vazios embaixo de pontes e viadutos, carros abandonados, e outras formas alternativas
de moradia.
230
Famílias que vivem em um único cômodo (como em um cortiço) ou que dividem um mesmo domicílio,
acompanhando outras famílias, mas com interesse de mudarem-se.
231
Nas famílias urbanas com renda de até três salários-mínimos e que comprometam mais de 30% de sua renda
com o aluguel.
232
Número médio de moradores superior a três pessoas por dormitório.
233
Tabela elaborada em consulta. Cf. Fundação João Pinheiro, Déficit Habitacional no Brasil, 2006, 2009,
2011, 2012, 2013, 2015, 2016, 2018, 2021.
88

No período das duas últimas décadas (2000-2020), é possível considerar que o índice
de déficit apurado, embora tenha registrado quedas e elevações, se manteve em torno de 6
milhões de residências inadequadas.
Em análise sobre a eficácia do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) foi
produzido um relatório que ainda menciona e calcula a existência de elementos qualitativos
para averiguar a existência de déficit habitacional (averiguado até 2015 pela Fundação João
Pinheiro). Assim, consideram-se os problemas relacionados à ausência de infraestrutura
pública (prestação de serviços públicos); de regularização fundiária (ausência de segurança
da posse) e outros problemas construtivos na residência, como ausência de banheiro ou
adensamento em imóvel próprio.234 Trata-se de questões ou problemas que não seriam objeto
de enfrentamento direto pelo Programa Minha Casa Minha Vida, embora de importante
questão para a análise do acesso à cidade e à cidadania, a produção de casas do programa
habitacional deveria incidir diretamente naqueles números quantitativos.
No entanto, é importante ressaltar que este relatório concluiu que o déficit
habitacional continuou expressivo235, mesmo após a implantação de um dos mais volumosos
e expressivos programas habitacionais - o Programa Minha Casa Minha Vida, iniciado em
2009, tendo-se produzido mais de 4 milhões de unidades habitacionais.
Uma das causas desse fenômeno se mostra na complexidade de composição desse
déficit, que engloba diversos problemas, e que traria um número ainda mais amplo se fossem
consideradas as inadequações qualitativas, isto é, falta de segurança da posse, de prestação
de serviços públicos e outros problemas habitacionais.
Segundo o pesquisador Rafael Lessa V. de Menezes:

Certo é que, dado o desenho geral do programa, em especial o fato de se apoiar em propriedade
privada, crédito e subsídio estatal para promoção do acesso ao mercado imobiliário, tendencialmente
será mantida a exclusão habitacional, independentemente do número de imóveis construídos. 236
Sob críticas de Rafael Lessa Vieira de Sá Menezes, o Programa Minha Casa Minha
Vida teria tido por efeito apenas a transferência de recursos para as empresas construtoras,
cujo benefício teria sido a absorção dos subsídios concedidos às pessoas. Assim, aponta

234
Cf. Brasil, Ministério da Economia, Secretaria Especial de Fazenda, Secretaria de Avaliação, planejamento,
Energia e Loteria, Relatório de Avaliação: Programa Minha Casa Minha Vida, 2020, p. 21-23.
235
Cf. Brasil, Ministério da Economia, Secretaria Especial de Fazenda, Secretaria de Avaliação, planejamento,
Energia e Loteria, Relatório de Avaliação: Programa Minha Casa Minha Vida, 2020, p. 50 e 73.
236
Menezes, Crítica do direito à moradia e das políticas habitacionais, 2017, p. 130.
89

como pouco efetiva a política habitacional, que ao invés de focar-se na resolução do


problema de moradia, focou no aquecimento do mercado.237

Assim, centralizar a política pública na aquisição de uma propriedade mostra um


certo tipo de inaptidão para enfrentar esse problema. Em especial, porque a habitação digna
prescinde da concessão da propriedade dessa moradia ao morador.
Uma variedade de programas habitacionais poderia interferir em diferentes
problemas, seja com aluguel social, financiamento de reformas em residências que podem
se tornar adequadas, em especial porque as políticas habitacionais centradas na propriedade
não alcançam ou auxiliam as pessoas que estão em situação mais urgente. 238 Isso, em atenção
à composição também múltipla dos elementos que tornam inadequada uma moradia.
Um dos aspectos mais dramáticos da ausência de moradia adequada se revela na
existência de uma expressiva parte da população em situação de rua. Talvez se trate da
situação mais dramática no que tange à violação de direitos fundamentais e da dignidade da
pessoa humana. É um caso específico de precariedade da habitação, mas que merece
destaque por ser o ápice da violação e da ineficácia do direito à moradia, bem como às
sujeições e violações a que se expõe os que compõe esse grupo.
No Brasil, as causas da existência de uma numerosa população em situação de rua
são complexas e variadas, apontando-se, normalmente: (i) a pobreza extrema; (ii) o
desemprego; (iii) as situações de violência familiar; (iv) e, os problemas relacionados à saúde
mental, uso de drogas e alcoolismo. Em 2022, chegou-se à estimativa de que o Brasil tinha
281.472 pessoas em situação de rua,239 número que apenas cresceu na última década, de
forma acentuada nestes últimos dois anos, evidenciando de forma bastante concreta e
gráfica, a deficiência de universalização do direito à moradia, mas também do próprio acesso
à cidadania.

2.2.2 Abuso da propriedade: especulação e fraudes

A definição jurídica da propriedade dota o instituto de características próprias do


Direito. Assim, embora o Código Civil Brasileiro diga que “O proprietário tem a faculdade
de (...)”,240 em verdade, está apontando propriamente para as qualidades e os poderes que

237
Cf. Menezes, Crítica do direito à moradia e das políticas habitacionais, 2017, p. 105-107.
238
Cf. Menezes, Crítica do direito à moradia e das políticas habitacionais, 2017, p. 207-208.
239
Cf. IPEA, Estimativa da população em situação de rua no Brasil (2012-2022), 2023.
240
Art. 1228, do Código Civil.
90

caracterizam e delimitam a condição de proprietário. Eis aí as consequências que fazem com


que a propriedade, em seu contorno jurídico, transcenda a sua base fática, pois o proprietário
não é algo que existe em si mesmo, mas que exerce alguns poderes sobre determinada coisa.
A propriedade é um instituto jurídico criado e conformado pelo Direito, que a reveste
de proteções e de garantias. Não se trata de ente do mundo natural. E, embora a posse possa
ser facilmente verificada para bens imóveis, nos terrenos o caráter artificial dos institutos se
torna mais perceptível, pois representam atribuições de determinado naco de terra para uma
pessoa. E é necessário problematizar, levantando a obscuridade que paira sobre tal instituto,
o qual é tido como direito natural e posto como uma obviedade imutável e decorrente da
natureza humana.
Com isso deve-se perceber que a garantia da propriedade depende da delimitação de
um território, e da capacidade de acionar o Estado para proteger seus direitos, exigindo deste
uma série de órgãos públicos e de atos de violência que garantam esse direito.
É com essa capacidade, atribuída pelo Direito, que a propriedade imóvel pode ser
transformada em mercadoria ou em bem, tornando-se apto para ser transacionado no
mercado imobiliário. A terra, observada no mercado, se comporta de maneira diversa de
outras mercadorias, já que se trata de bem eterno e que tem uma tendência à valorização
perpétua, ou ao menos tem essa tendência como uma expectativa dos proprietários. E, a rigor,
ela somente é produzida pelo Direito (enquanto bem passível de ser comercializado).
Diante disso, a terra se mostra como um excelente meio para imobilizar e investir o
capital, garantindo que tais valores não se deteriorem, mas, ao contrário, se valorizem.
Contudo, o aumento do valor dos imóveis ocorre de forma parasitaria, às custas dos
investimentos e gastos da sociedade, do Estado e de outros proprietários dos imóveis do
entorno, os quais, ao efetivar melhorias na cidade e no entorno daquela localidade, fazem
com que a propriedade se valorize. A terra parasita esses investimentos, valorizando-se sem
esforços do proprietário, sem que a propriedade cumpra sua função social.241
Embora apenas recentemente tenha sido instituída a noção de ‘função social da
propriedade’ no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente a partir da Constituição
Federal de 1988,242 as averiguações sobre a necessidade de terra urbanizada - com acesso à

241
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 25.
242
A função social da propriedade está contida na Constituição Federal de 1967, no capítulo da ordem
econômica, porém apenas na Constituição de 1988 o instituto vem mais bem delimitado, além de ser
previsto como direito fundamental.
91

cidade e a seus recursos, serviços, sociabilidade, que efetivamente trazem valor para a
propriedade -, evidenciam seu caráter de produção também social. Dessa forma, dada a
imbricação entre a propriedade da terra e a sociedade do seu entorno, a previsão de que a
propriedade deverá respeitar sua ‘função social’ significa, em primeiro lugar, reconhecer essa
característica das terras, e, em segundo lugar, evitar que ela tenha uma relação parasitária
com a sociedade, numa apropriação dos esforços coletivos, evitando que exista abuso desse
direito de propriedade.
Aqui, quer-se designar, através da expressão “apropriação parasitária” da cidade a
atividade que decorre da especulação imobiliária, a qual se representa a apropriação de uma
renda socialmente produzida243. O especulador retém244 parcelas da terra, sem realizar nelas
realizar investimentos significativos – negando sua função social –, aguardando sua
valorização que apenas ocorrerá em razão dos esforços e investimentos de terceiros ou de
melhorias e do crescimento da cidade promovida pelo Estado.
A especulação imobiliária pode ser acusada de motivar a aparentemente irracional
situação de existirem vazios urbanos em bairros bem localizados, estruturados e guarnecidos
de serviços públicos, ao mesmo tempo em que a cidade se espraia para as periferias,
crescendo desordenadamente de forma horizontal. Essa forma de produção da cidade
tensiona os serviços públicos, forçando que suas redes se espalhem pelo território, o que
possibilita também a apropriação dos recursos públicos, que, são aproveitados de forma
ineficiente pelo território, que exige sempre a ampliação da rede, ao passo que há localidades
que permitiriam o adensamento populacional e a utilização dos serviços públicos já
implementados.
Na realidade, é impróprio dizer que o crescimento é ‘desordenado’, pois ele se
submete a uma lógica privatista e que prioriza a extração da renda da terra às custas da

243
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 21-22, a especulação imobiliária é um termo
genérico, que pode representar diferentes práticas de apropriação de trabalho e valores dispendidos
socialmente. Assim, a mera retenção de uma terra tem uma perspectiva de valorização, contudo, essa
valorização não é um fato natural, mas depende da realização de investimentos no entorno desse imóvel,
de forma que o que efetivamente faz valorizar o imóvel são os valores e trabalhos dispendidos pelos setores
públicos e privados ao redor da terra retida.
244
Há diversas técnicas que os grandes proprietários utilizam para a especulação, seja (i) a mera retenção de
um imóvel, aguardando o desenvolvimento da cidade em seu entorno; (ii) a elaboração de um loteamento,
mas com a comercialização progressiva dos lotes e com a reserva dos melhores lotes para venda ou locação
após a implementação do loteamento; (iii) a realização de loteamentos em localidades distantes, mais
distantes do que outras terras especulativas em uma distância intermediária, forçando a cidade para que
cresça naquela direção e, com isso, valorize – sem qualquer investimento direto do loteador – as terras
intermediárias.7
92

produção social da cidade, ou seja, trata-se de uma ação imbuída de racionalidade cognitivo-
instrumental, cujo propósito é maximizar a extração da renda da terra, e não providenciar
uma ordenação territorial justa e democrática.245
Nessa mesma linha argumenta James Holston246, para quem a desordenação e o caos
são resultado da atuação conjunta de empreendedores de loteamentos e de seus ocupantes,
aliada às técnicas especulativas, promovem um assentamento fragmentado e caótico.
Haveria camadas caóticas e ilegais de desenvolvimento em um mesmo bairro.
A dificuldade de os trabalhadores suprirem sua moradia com os valores dos salários
faz com que um dos agentes essenciais dessa relação seja o mercado financeiro, que
possibilita que os trabalhadores efetuem a aquisição de suas moradias, e permite que os
incorporadores tenham capital para produzir as habitações.
Desse modo, surgem alternativas para o trabalhador, com o comprometimento de
uma parcela de seu salário, de adquirir sua moradia, com os simbolismos e benefícios que
isso traz, que não dependerá da produção de moradias para locação.
Essas peculiaridades do mercado que envolve a terra, e a dificuldade da maior parte
da população em adquirir algo essencial para sua sobrevivência, observando que não há
alternativas adequadas que supram essa necessidade por meio de políticas públicas, fazem
com que os agentes financeiros ganhem maior relevância na aquisição das moradias,
possibilitando a aquisição dos imóveis sem que os adquirentes detenham todo o dinheiro
correspondente a seu valor. Eles também participam das etapas de produção das moradias,
por meio dos financiamentos das construções e incorporações.
Trata-se de um fenômeno de escala global, e demonstra a atratividade do mercado
imobiliário para absorver excedentes de capital como um investimento certo e que não se
deteriora, ainda que passe por desvalorizações pontuais, a tendência e expectativa geral é de
perpétuo crescimento247.

245
Trata-se de uma ação racional, mas com intuito não comunicativo, mas estratégico, ou seja, para atingir
determinadas finalidades. Sua racionalidade se mede em termos de sucesso ou insucesso dessa ação. (Cf.
Habermas, Agir comunicativo e razão destranscendentalizada, 2002, p. 81).
246
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 233-
234.
247
Embora não seja o propósito do trabalho trazer um aprofundamento desta questão, a crise de 2008 tem seu
epicentro exatamente na especulação imobiliária e na falta de cautelas necessárias na realização de
hipotecas que se sustentavam apenas na expectativa de valorização perpétua dos imóveis, ocasionando
uma severa perda financeira e, principalmente, uma enorme crise de despejos.
93

2.2.3 A cidade e os outros: fratura

A produção das cidades brasileiras cresceu mantendo uma diferenciação entre uma
cidade formal (cidade oficial) e uma cidade informal (cidade inoficial), de modo que a
segregação habitacional que hoje se pode constatar, até mesmo nas paisagens da cidade, tem
longevas raízes.
Essa segregação profunda, nas cidades, remonta ao início do século XX, com o
crescimento demográfico e a transferência de imensas massas de população desalojadas do
campo, reproduzindo as condições e problemas oriundos do longo período da escravidão, da
falta de reforma agrária, mantidos e perenizados pela ausência de políticas de integração
após o fim da escravidão.
Para Milton Santos, é “A capacidade de utilizar o território não apenas divide como
separa os homens, ainda que eles apareçam como se estivessem juntos.248”.
Isso porque mesmo que duas pessoas tenham todas as condições pessoais
semelhantes, de estudo, físicas, a própria localização espacial dela implica desigualdades, já
que moradores de diferentes localidades empreendem esforços maiores para acesso aos
equipamentos públicos, e têm recompensas diferentes, pois as oportunidades também estão
desigualmente distribuídas.
Assim, “pode-se inferir a existência de uma correlação entre a localização das
pessoas e o seu nível social e de renda.”249, e é em função das classes sociais que o espaço é
ocupado.
Esse é o contexto que permite e promove a geração de favelas e de outros
assentamentos informais. A cidade, o urbano, exerce uma força atrativa,250 principalmente
pelos sonhos de empregabilidade e de prosperidade, ao mesmo tempo em que nega acesso
aos recursos da cidade, especialmente, locais adequados para a habitação, deixando para que
os próprios trabalhadores busquem alternativas habitacionais.
As alternativas habitacionais evidenciam a luta e a criatividade das pessoas. Nas
palavras de Arlete Moysés Rodrigues: “As ocupações demonstram mais uma vez que a busca
do onde e do como morar implica a luta pela sobrevivência, pela cidadania, uma capacidade
de resistência, que desmistifica o mito da apatia dos trabalhadores”.251

248
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 80.
249
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 110.
250
Cf. Lefebvre, A revolução urbana, 2002, p. 111.
251
Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 46.
94

E essa segregação social repercute em diversas dimensões das vidas das pessoas,
operando uma fratura da sociedade, em que diversos indicadores sociais se distribuem de
forma bastante desigual em determinadas regiões da sociedade.
Isso alcança até mesmo a segurança relacionada com a integridade física das pessoas,
ou seja, é possível perceber que há uma fratura que divide localidades seguras e pacíficas,
de outras inseguras e violentas, nas quais os indivíduos estão sujeitos às mais diversas
violações. Em estudo psicanalítico sobre a violência em São Paulo, Paulo César Endo anota
a existência de uma correlação entre a desigualdade e a violência, e como tais características
se plasmam territorialmente. A violência se acentua nas áreas que são mais desiguais.252 É
nesse ponto que vale a pena citar sua percepção de que, nas cidades, certos habitantes são
reconhecidos como outros, os quais, pelas exigências de um manifesto narcisismo, devem
ser eliminados. Há formação de grupos que se pretendem homogêneos, contraposta aos que
são diferentes.253
Nestes termos, a desigualdade acaba por legitimar simbolicamente a violência, uma
forma de distanciar o indivíduo dos miseráveis, dos outros. Instaura-se uma dicotomia entre
o cidadão e o não-cidadão. Nas mesmas décadas em que se expandiu a democracia, também
a exclusão ganhou extensão, aliás, de forma interligada. E a violência é um dos fatores que
delimitam as localidades da cidade que são informais, que serão não-cidade ou não-
lugares.254 Os estigmas se fortalecem, e surgem as figuras do bandido, do marginal, figuras
intimamente associadas com as localidades de ocupação informal, ainda que a realidade
demonstre que a maioria dos habitantes seja de trabalhadores.
Assim, a violência ganha uma significação ambígua na sociedade fraturada. É a
materialização da segregação e da fratura. Conforme Paulo Cesar Endo:

A violência condenável, quando aplicada ao cidadão, é tolerada, permitida e mesmo desejada, pois é
ela que demonstra, inequivocamente, que entre o corpo que bate e o corpo que apanha há uma
diferença intransponível em favor do primeiro, que o ato violento reiteradamente confirma. 255
A divisão social alcança até mesmo as garantias e a segurança que se espera ter da
integridade física. É indispensável salientar que essa desigualdade tem um matiz racial,
observando que, no Brasil, quando se fala da população pobre, também se está,
implicitamente, referindo-se à população negra. Paulo Cesar Endo sintetiza como “ser negro

252
Cf. Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 21-25.
253
Cf. Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 24.
254
Cf. Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 27.
255
Cf. Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 28-29.
95

é ser tocável”.256 Neste sentido, a hierarquia que se inscreve nas cidades fraturadas também
é racial.
Essa vulnerabilidade opera de uma forma dúplice, pois aqueles que mais são
vulneráveis a ela, acabam sendo marcados como um outro, sendo desumanizados. Tudo isso
forma um caldo favorável às violências institucionais, praticadas pelo Estado policial, o que
redunda no impedimento ao aprofundamento de uma subjetividade democrática.257
As prisões representam o símbolo máximo do outro, do estranho, se tornando o lugar
que armazena a pobreza e a indignidade. Isso repercute em toda a sociedade, que tolera e
estimula a violência contra outras parcelas da população:

A população excitada e aterrorizada pede o massacre ou é conivente com ele (...) São estes conceitos
que nos permitem dizer com quem queremos partilhar a cidade e com quem não; quem são seus
cidadãos, ‘gente de bem’, ‘gente fina’, ‘homens bons’ e quais são os não-cidadãos, das prisões, favelas,
subúrbios, cortiços, guetos, pontes e praças públicas.258
Assim, é no corpo que se revela a disputa pela cidadania. Pois a iminência da
violência veta o trânsito na cidade, impedindo que ela seja ocupada, seja pelos cidadãos ou
não-cidadãos.259
Essa forma de estigmatizar partes da sociedade como outros, se manifesta de forma
violenta sobre os corpos dessas pessoas, tocáveis. Na cidade a segregação se inscreve,
delimitando as zonas violentas, sem direitos, daquelas outras que representam a cidade com
direitos, criando-se a cidade oficial e a clandestina.260
E assim, segundo Paulo Cesar Endo, “A cidade, recortada em função da
discriminação e da segregação entre os espaços elitizados e os espaços deteriorados,
clandestinos e ilegais, define linhas de corte que recaem, invariavelmente, sobre o corpo do
cidadão”.261 Dessa forma, do acesso negado à cidade, e nos traçados e divisórias que atentam
até mesmo contra a segurança do corpo, é que se segrega da cidadania uma grande parcela
de pessoas.
A violência sentida no próprio corpo afeta até mesmo a compreensão que a pessoa
tem de si, e que a própria sociedade tem da violência urbana, encarando-a como inevitável,
ou ainda, desejável. A violência que toca o corpo também diminui sua importância, anulando

256
Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 30
257
Cf. Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 41.
258
Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 45.
259
Cf. Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 47.
260
Cf. Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 45.
261
Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 53.
96

a importância da sua opinião, sendo um instrumento de silenciamento das pessoas a ela


submetidas.262
Igualmente, quando o tema é a pandemia e as consequências da COVID-19, se
percebe que o corpo na cidade informal está mais vulnerável e sujeito a doenças. Conforme
levantamento realizado por diversas pesquisadoras, os dados demonstram que as regiões que
concentravam o maior número de mortes estavam em locais periféricos da cidade de São
Paulo, ao passo que o uso de transporte particular e regiões mais ricas têm mortalidade
menor.263 Com isso, percebe-se, como um evento da natureza afeta de forma diferenciada a
cidade, diante das condições de acesso a itens que garantem a qualidade de vida, o devido
distanciamento e até mesmo o acesso a melhores serviços de saúde. Assim, os marcadores
sociais que surgem dessa diferença mostram a distribuição desigual, geograficamente
considerada, evidenciando a existência dessa fratura entre a cidade formal e a cidade
informal.
Essa fratura social se estende por diversas dimensões da vida da pessoa, impedindo
que ela alcance uma cidadania plena. Tem-se uma sólida divisão social, impressa no
território, em que o ilegal, o território indevido transcende para outras dimensões da vida da
pessoa, de forma direta, pela ausência de serviços públicos, e simbólica, já que o simples
habitar nessas regiões maculam seu morador com os estigmas de criminalidade,
insalubridade, cunhados desde a época em que se buscava higienizar as cidades.
Milton Santos também observa esse gradiente de cidadania, chamando os graus
inferiores de cidadania mutilada. Segundo ele, como resultado dessa não-cidadania, as áreas
ocupadas por essas pessoas “consagra desigualdades e injustiças e termina por ser, em sua
maior parte, um espaço sem cidadãos.”264.
Esse espaço de cidadãos com cidadania mutilada, embora populosos, é tratado pelo
Estado como se não tivesse pessoas, como vazios, já que são precisamente os espaços em
que há carências de serviços públicos e de investimentos públicos.
Essa situação de irregularidade ainda serve, de certa forma, para manter os custos de
reprodução da força de trabalho em valores baixos, pois serão gastos menos recursos para a
garantia da moradia e prestação dos serviços públicos para servir estas pessoas. De outro

262
Cf. Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 72-73.
263
Cf. Ramos; Lazarini; Andreotti, A gestão dos cuidados tem gênero, raça e classe: as zonas de sacrifício da
Covid-19 nas cidades brasileiras, 2021, p. 32-33.
264
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 59.
97

lado, também, torna-se possível criar uma posse insegura, de modo que o território, mesmo
ocupado de maneira informal, presta-se à especulação imobiliária, uma vez que a
informalidade poderá justificar uma futura remoção. Esse fenômeno é chamado de
transitoriedade permanente por Raquel Rolnik:

podemos afirmar que tem em comum o fato de constituir zonas de indeterminação entre legal/ilegal,
planejado/não planejado, formal/informal, dentro/fora do mercado, presença/ausência do Estado. tais
em determinações são os mecanismos por meio dos quais se constrói a situação de permanente
transitoriedade, a existência de um vasto território de reserva capaz de ser capturado ‘no momento
certo’265
Assim, o Direito trata tais localidades de maneira ambígua, prestando seletivamente
certos serviços públicos, mas omitindo-se em relação a outros. E é com base nessa
ambiguidade que se constrói um estigma territorial, fundamental para justificar e legitimar
expulsões e despejos, assim como a construção da hegemonia da propriedade privada
individual, sobre qualquer outra forma de posse.266
Essas duas cidades coexistem. A cidade formal, limpa, higienizada, que figura até
mesmo no imaginário coletivo nos cartões postais de cidades como São Paulo, Buenos Aires,
ou mesmo Paris, tais locais evocam à mente das pessoas paisagens estereotipadas e
desconectadas da sua totalidade, como se representativa da total experiência de vida dessas
localidades. A cidade real é maior, muito mais ampla e diversa, e tem problemas. Essas duas
cidades se sobrepõem, e têm zonas de exclusão e de intersecção.
No caso brasileiro, a distância entre elas é brutal. Mas as medidas especulativas e de
apropriação do direito à cidade, isto é, de utilização dos recursos públicos como forma de
aumentar a fratura, investindo os recursos nas áreas já regulares e já valorizadas, ocorre uma
privatização também da cidade. Segundo Paulo Cesar Endo, “Quanto mais a cidade é
privatizada, menos cidade ela se torna”,267 o que demonstra que esse movimento de
apropriação da cidade e dos comuns que ela forma, acaba destruindo a diversidade e o que
caracterizou, num primeiro momento, o surgimento do seu próprio valor.
Os comuns são os bens simbólicos e culturais pertencentes às cidades, aos bairros,
que emergem da própria vida e ocupação dos locais pelos moradores, como por exemplo,
um aspecto bucólico de um bairro, ou a presença de artistas com constantes intervenções
urbanas em outros. Tais comuns muitas vezes são apropriados por construtoras e empresas

265
Rolnik, Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças, 2015, p. 174.
266
Cf. Rolnik, Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças, 2015, p. 194.
267
Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 32
98

de turismo, que encapsulam tais símbolos em propagandas e tentam revendê-las a turistas ou


novos moradores de loteamentos e torres que surgem nesses locais.
Esse processo de apropriação dos comuns urbanos é identificado por David Harvey,
que percebe na vitalidade e na diversidade dos encontros que a cidade permite uma riqueza
e uma atração, pois tais espaços criariam um capital simbólico coletivo, capaz de gerar
apropriação de rendas distintas de monopólio.268 Na avaliação crítica de David Harvey, os
comuns urbanos são apropriados por empreiteiros e pela indústria de turismo, o que, contudo,
pode “requerer a expulsão ou erradicação de todas as pessoas ou coisas que não sejam
adequadas à marca”,269 o que intensifica a fratura existente, agravando a segregação.
Ao final, a apropriação dos comuns afasta os moradores originais, e até mesmo
destrói os comuns, gentrificando aquelas localidades, afastando os moradores originais, pelo
aumento do custo de vida ou pela disponibilização excessiva e predatória de apartamentos
para locação de curta temporada, ausentes ofertas compatíveis para os moradores originais.
Assim, a exploração do território se alimenta da diversidade e da riqueza cultural das
cidades, mas seleciona e recorta espaços, tornando-os excludentes, fraturando a cidade, e
extinguindo exatamente essas características que tornaram atrativa a localidade, num
primeiro momento. É uma relação ambígua com o outro, que pode ser aceito apenas quando
a diversidade é apropriada pela forma-mercadoria, ao passo que tais diferenças, geralmente,
legitimam intervenções, repressões e a fratura da dignidade dessas pessoas. Trata-se de um
processo permanente de tensão e de apropriação.
Contudo, no Brasil, essas fraturas são ainda mais profundas, e remontam à
escravidão, mantendo a segregação social com matiz racial inscrita nas moradias, permitindo
que a cidade formal, limpa, rica e branca apenas seja acessada pelos moradores outros da
cidade informal, para prestação de serviços, sem que lhes seja autorizado utilizar-se dos
equipamentos de lazer e benesses dos bairros ricos.

2.2.4 A forma favela como paradigma da moradia

Os dados a respeito da situação da moradia das parcelas mais pobres e com maior
desamparo na sociedade tornam visíveis as conexões entre a realidade do presente e a forma
como o Brasil produziu seus espaços urbanos, sugerindo, se não uma causalidade – de difícil

268
Cf. Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 192-193.
269
Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 200.
99

constatação metodológica – uma clara influência dessas posturas tomadas no passado e que
persistem formatando instrumentos de segregação e de dominação.
A habitação precária não é exclusiva do território brasileiro, e não representa uma
idiossincrasia histórico-cultural desta região. Ao contrário, tem elementos que permitem a
percepção de um fenômeno global.
Adiante se retomarão os elementos internos, históricos e culturais que estimularam e
criaram uma sociedade habituada à segregação, seccionando a sociedade e impondo
territorialmente diferenças que remetem à ideia de dignidade como distinção, fazendo com
que os direitos básicos fossem os sinais distintivos do pertencimento a uma elite.
E, sem esquecer dessas questões, percebe-se que o Brasil também se insere em um
ambiente de influências internacionais, as quais atravessam os acontecimentos brasileiros,
influenciando algumas posturas tomadas em solo nacional, representando até mesmo
tendências globais.
A urbanização ocorrida no séc. XX no Brasil também se deu em diversos outros
países do mundo. Foi em meados desse século que o Brasil passou a ter a maior parte de sua
população ocupando áreas urbanas, superando a população rural270.
Esse fenômeno se insere em uma tendência global. No trabalho de Mike Davis, há
um apanhado de diversas cidades pelo mundo, demonstrando sua rápida urbanização durante
o séc. XX, citando que pela primeira vez a população urbana ultrapassará a rural, citando
exemplos de megacidades que tiveram explosões populacionais, como Cidade do México,
Seul, Nova York, Mumbai, Jacarta, Istambul, Pequim e Rio de Janeiro, entre outras, e
indicando que enquanto em 1950 havia 86 cidades com mais de 1 milhão de habitantes, em
2015 seriam mais de 550271.
Para esse autor, esse crescimento representa, na realidade, o crescimento das
favelas272, pois o crescimento populacional sem o correspondente crescimento teria imposto
a precariedade a grandes parcelas das populações.
Assim, ele observa o crescimento urbano e o crescimento das favelas como um
mesmo fenômeno, de tendências globais. Nas suas palavras:

As forças globais que ‘empurram’, (...) por toda parte, a consolidação de minifúndios em grandes
propriedades e a competição do agronegócio de escala industrial – parecem manter a urbanização

270
Cf. IBGE, Projeção da População do Brasil por Sexo e Idade para o Período 1980-2050 - Revisão 2008.
271
Cf. Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 13-15.
272
Mike Davis utiliza o termo Slum para designar as moradias precárias pelo mundo, as quais, no brasil,
recebem genericamente a denominação de favela.
100

mesmo quando a ‘atração’ da cidade é drasticamente enfraquecida pelo endividamento e pela


depressão econômica. (...)

Como resultado, o crescimento urbano rápido no contexto do ajuste estrutural, da desvalorização da


moeda e da redução do Estado foi a receita inevitável da produção em massa de favelas. 273
Outra observação trazida por Mike Davis diz respeito à estigmatização do território
e dos moradores das favelas, o que cria uma vinculação moral entre a moradia precária e seu
morador, em um reflexo inverso de uma meritocracia, pois as condições indignas de
habitação pareceriam refletir a indignidade de seus moradores, também moralmente
corrompidos274.
Importante notar que essa vinculação entre moralidade e moradia remonta ao menos
ao séc. XIX, e tem grande influência do pensamento higienista, pois é a época em que os
conhecimentos sobre a proliferação de doenças passam a ser sistematizados, e que resultam
em diretrizes de reformas e organização das cidades, influências que geram diversas frentes
de atuação estatal no Brasil no início do séc. XX275.
O professor Nabil Bonduki também denuncia a relação entre a habitação e o juízo
moral sobre a pessoa dos ocupantes dessa moradia, ao citar os efeitos simbólicos da
aquisição de uma propriedade (em oposição à moradia ainda mais precária em cortiços e
favelas):

Além de criar a ilusão do progresso econômico, contribuindo para a estabilidade da ordem


macropolítica, a habitação passou a ser considerada fundamento da constituição moral da sociedade e
do bom trabalhador, avesso a desejos e práticas desviantes.276
Além disso, a dinâmica das favelas e outras habitações precárias revela também as
relações de exploração do trabalho, tendo em vista que a pobreza se caracteriza precisamente
pela necessidade de que a pessoa trabalhadora dê conta de necessidades que ultrapassam sua
renda, ocasionando o deterioramento de seus direitos básicos, multiplicando tais moradias.
Para Milton Santos, “Morar na periferia é condenar-se duas vezes à pobreza” 277. O
pensador vê um tipo de pobreza territorial, já que haverá desigualdade no acesso aos serviços
públicos, uma mitigação da própria cidadania.
O geógrafo David Harvey aprofunda ainda a análise entre o capital e as carências da

273
Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 26-27.
274
Cf. Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 33.
275
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 28-29.
276
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 84.
277
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 143.
101

área habitacional, tendo em vista que vislumbra esses processos como uma despossessão dos
trabalhadores, precarizando a moradia e a propriedade dos pobres, intensificando sua
exploração e, de outro lado, permitindo que se extraia rendas daquelas terras retiradas dos
trabalhadores278.
Para David Harvey, o capital tem relação com a forte urbanização e com a
precarização das moradias, pois, enquanto o capital acumulado utiliza-se das terras para
empreender e investir o excesso, de outro a existência de setores sociais carentes permite sua
espoliação, pois:

elas constituem, pelo menos nas economias capitalistas avançadas, um vasto terreno de acumulação
por desapropriação, por meio da qual o dinheiro é sugado para a circulação do capital fictício a fim de
sustentar as imensas fortunas por dentro do sistema financeiro.279
Assim, pode-se perceber que a existência das moradias precárias é resultado da
exploração, com o pagamento de salários insuficientes, mas também do controle do mercado
imobiliário e dos processos de urbanização pelo capital, que impede o acesso igualitário e
digno das pessoas ao direito habitacional, possibilitando e retroalimentando essa espécie de
exploração.
A pesquisadora Raquel Rolnik, ao relatar sua experiência como Relatora Especial
para o Direito à Moradia Adequada da ONU, em 2013, descreve, a partir de um ponto de
vista privilegiado pelas visitas que promoveu em diversos países, os reflexos da crise
financeira-hipotecária de 2008, verificando a precariedade habitacional nos locais
analisados, dentre os quais Inglaterra e os Estados Unidos da América280.
Raquel Rolnik desvela as conexões entre o sistema financeiro e a habitação, bem
como a forma como ele trouxe como consequências a crise de 2008, e a precarização da vida
de pessoas por todo o mundo, anotando, ainda, na precariedade das habitações, um
instrumento de controle e opressão das classes trabalhadoras, bem como de manter terras
disponíveis, a despeito de já serem habitadas a décadas, por meio do que conceitua como
transitoriedade permanente281.
Para Raquel Rolnik, esse estado em que se ocupam as terras pelas classes

278
Cf. Harvey, O Direito à Cidade, 2012, p. 83.
279
Harvey, Cidades rebeldes: Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 112.
280
Cf. Rolnik, Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças, 2015, p. 12.
281
A possibilitação da ocupação de terras para moradia de forma precária impede que seus ocupantes desfrutem
plenamente de uma segurança da posse, o que permite que sejam despejadas de acordo com os interesses
financeiros, deixando as terras ocupadas reservadas para que algum capital as utilize em outro momento.
(Cf. Rolnik, Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças, 2015, p. 179).
102

trabalhadoras possibilita a sobreposição de diferentes formas de exploração do trabalhador,


pois:

produtos de consumo essenciais a sobrevivência – incluindo a casa –, ofertados de forma não


monetária ou um preço bastante baixo, permitem que esses salários sejam mantidos a valores até
mesmo inferiores ao mínimo vital. A autoconstrução da moradia representa, assim, a superexploração
da força de trabalho através do sobretrabalho e da espoliação urbana. 282
Essa dinâmica pode ainda ser observada mesmo em países centrais do capitalismo, o
que parece corroborar a tese de Mike Davis de que a urbanização e a favelização, não só
conceitos que caminham juntos, mas representam uma tendência global.
Assim, percebe-se que há elementos internacionais que influenciam e determinam
crises e fragilidades habitacionais nos países, pela financeirização, pela moeda, e intervenção
de organismos internacionais, mas também pela influência direta, que se percebe
historicamente, especialmente pelo colonialismo, diretamente responsável pelo surgimento
de favelas nas colônias, de modo que Mike Davis cita o exemplo das políticas inglesas
impostas à África do Sul, com trágicas consequências:

Por certo, o apartheid levou esse sistema ao seu extremo mais antiutópico. Criada sobre uma base de
racismo colonial, a legislação sul-africana do pós-guerra não somente criminalizou a migração urbana
como também promoveu, violentamente, o desenraizamento das históricas comunidades de cor dos
bairros pobres do centro da cidade. 283
É possível associar as atuações e a exploração colonial com o subdesenvolvimento e
a ausência de infraestrutura. Uma das outras forças que criam as condições para a
precarização das habitações pode ser identificada com a ideologia neoliberal, já que tal linha
de formação do Estado desidratou as políticas públicas de bem-estar social dos países
centrais do capitalismo e, de outro lado, impôs severa austeridade aos países periféricos,
promovendo no Brasil a desconstrução de políticas públicas que sequer tiveram a chance de
se implementar de forma efetiva.
Deàk Csaba percebe esse fenômeno sob a ótica da periodização do capitalismo,
observando que seja a crise promovida pelo neoliberalismo, e até mesmo as boas práticas
sugeridas pelas políticas de bem-estar social não se aplicariam ao caso brasileiro, que
manteria um capitalismo entravado e subjugado a um Estado cooptado pelas elites agrárias
que mantém o poder colonial284.
Deàk Csaba, utilizando-se de uma das formas de analisar as etapas do capitalismo,

282
Cf. Rolnik, Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças, 2015, p. 157.
283
Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 60-61.
284
Cf. Deák, Acumulação entravada no Brasil e a crise dos anos 80, 1991.
103

identifica nele um período extensivo, associado à revolução industrial, em que os


trabalhadores são submetidos a exaustivas jornadas, com ausência de normas trabalhistas 285.
É um período em que a forma mercadoria está se generalizando, com a expansão do
capitalismo e a busca por novos mercados. Uma segunda etapa seria o período intensivo, um
estágio em que praticamente não há formas de expandir mercados, o que impõe uma
intensificação da produção, um aumento da eficiência da produção, que como consequência
teria o surgimento de garantias trabalhistas e elementos de proteção e especialização dos
trabalhadores.
Por fim, nos anos 80, essa tendência é quebrada com o advento do neoliberalismo,
dissolvendo garantias sociais e promovendo uma maior exploração, em uma etapa também
conhecida como capitalismo tardio 286.
Contudo, mesmo observando que essas forças ideológicas e econômicas partam dos
países centrais e influenciem os países periféricos, seja por meio das relações diretas, ou por
meio de políticas de austeridade impostas como contrapartida de auxílios do FMI, por
exemplo, também se verifica que ocorrem ruídos nessa mensagem, de modo que sua
incorporação no Brasil se adequou ao formato da sociedade brasileira.
No Brasil essas influências externas se somaram às forças reacionárias e
segregacionistas que historicamente vêm construindo uma sociedade fraturada e com um
entravamento no desenvolvimento e nas políticas públicas. Assim, começa a ocorrer uma
fragilização do estado de bem-estar social antes mesmo que ele estivesse plenamente
implantado.
Tais estudos demonstram a complexidade de compreensão plena desses fenômenos,
já que múltiplos fatores podem ser invocados como explicação da situação e das
precariedades presentes, tendo em vista que os aspectos históricos e culturais se combinam
com pressões internacionais e tendências promovidas pelo capital financeiro.
A proliferação das favelas parece inescapável dentro desse contexto multifatorial de
forças que as determinam, uma tendência crescente no capitalismo tardio. E, ao final dos
anos 70, ocorrem uma certa aceitação de que as formas precárias de moradia não podem ser
simplesmente abolidas ou combatidas, fazendo com que, no discurso e na prática, formas
alternativas de enfrentamento ou de convivência com esse problema surgem.

285
Cf. Deák, Acumulação entravada no Brasil e a crise dos anos 80, 1991.
286
Cf. Deák, Acumulação entravada no Brasil e a crise dos anos 80, 1991.
104

Nesse sentido pode-se se citar a atuação de ONGs que trabalham em comunidades


pobres, o trabalho incentivado pelo Banco Mundial de urbanizar favelas, bem como o
incentivo à regularização urbana e às medidas de autoconstrução e de mutirões para que a
própria comunidade resolvesse seus problemas.
Mike Davis retrata essa evolução do tratamento global e do imaginário do problema
de maneira crítica, pois para ele “Elogiar a práxis dos pobres tornou-se uma cortina de
fumaça para revogar os compromissos históricos de reduzir a pobreza.” 287. Para o autor
aceitar e se conformar com a existência das favelas representa desistir do combate à
desigualdade, já que as medidas para melhorar as condições habitacionais teriam apenas a
capacidade de reforçar e legitimar essas divisões sociais.
O pesquisador também tece críticas à estratégia de intervir na situação meramente
fornecendo títulos de propriedade, trazendo uma regularização formal da favela, mas sem
alterações substanciais nas circunstâncias de vida, enxergando nessa estratégia uma
estratégia meramente neoliberal de mercantilizar aquelas terras, inserindo-as no mercado288.
Mike Davis, embora tenha realizado um brilhante trabalho de observação das
habitações precárias pelo mundo, bem como das ações e resultados que a moradia nessas
localidades ocasiona, abrangendo as forças e elites que lucram e extraem rendas dessa
miséria, tem uma visão bastante pessimista dos problemas que relata.
Embora essa visão não esteja destituída de embasamento em terríveis constatações
fáticas, percebe-se, igualmente, que sua análise encara com rigor demasiado as experiências
de autoconstrução, de organização dos moradores e até mesmo das urbanizações de favelas,
ou mesmo da concessão dos títulos de propriedade. Pois, embora não se questione a validade
de suas críticas, é possível perceber nas ações dos moradores a resistência frente à
exploração, e a abertura de vias de ação para melhoria das condições de vida das pessoas.
Para Mike Davis “(...) involução urbana parece uma boa descrição da evolução das
estruturas de emprego informal na maioria das cidades do Terceiro Mundo.”289, de modo que
esse trabalho informal teria regredido até mesmo àquele existente na era vitoriana.
O pessimismo do autor conclui que essa seria a derradeira crise do capitalismo, uma
favelização mundial:

Com a literal “grande muralha” da imposição de uma fronteira de alta tecnologia que bloqueia a

287
Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 81.
288
Cf. Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 88.
289
Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 183.
105

migração em grande escala para os países ricos, somente a favela continua a ser solução totalmente
permitida para o problema do armazenamento da humanidade excedente deste século. 290
Todavia, observar as alternativas de sobrevivência, e as insurreições que surgem nas
localidades mais precárias não representa uma romantização das condições precárias ou de
uma simples possibilidade de criar narrativas de superação pessoal.
Na verdade, são fruto e sintoma das contradições existentes em combinação com a
agência e autonomia das pessoas em suas vidas. É a possibilidade de rachaduras nessa
estrutura descrita que desponta a partir da observação desses atos de resistência e de contorno
das mazelas a que estão submetidos.
Nesse sentido, Ermínia Maricato elabora um posfácio à versão brasileira da obra de
Mike Davis, salientando que a visão de Davis é extensa, mas peca por deixar de aprofundar
as experiências regionais e locais, pois o afastamento necessário para perceber as tendências
globais que relata o impedem de observar as especificidades.
Assim, a importante pesquisadora salienta as experiências de luta e de resistência
brasileiros e de outros países analisados, que não foram justamente considerados e
ponderados na análise de Mike Davis.291
E David Harvey também traz observações que se alinham a essas críticas elaboradas
por Ermínia Maricato, pois o geógrafo percebe a efervescência que ocorre nas cidades, com
focos diversos de insurgência, citando as lutas e reivindicações pelo direito à cidade que
percorreram o mundo nos anos 10, como em 2013 no Brasil, nos protestos da praça Tahrir e
nos movimentos “occupy292”, como ocorridos em Nova York293 e outros locais do mundo.
Para Harvey, verifica-se que, mesmo diante das poderosas forças que cercam e
dominam os territórios, deles extraindo rendas, as resistências urbanas e oposições se
apresentam e constantemente questionam a exploração capitalista, sugerindo que há espaços
de esperança e de contestação desse capital especulativo294.
Ele identifica, ainda, contradições e retoma o conceito de comuns urbanos, que
retratam os bens culturais e coletivos que a vida na cidade acaba desenvolvendo, como a
qualidade artística e revolucionário de determinada praça ou bairro, que concentra pessoas e

290
Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 200.
291
Cf. Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 219-224.
292
Houve uma série de protestos iniciada em Nova York no ano de 2011, em que a tática consistia na ocupação
de local público próximos a Wall Street, famosa rua da cidade que simboliza o capital financeiro. Tais
táticas foram replicadas em diversas localidades do mundo.
293
Cf. Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 211.
294
Cf. Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 215-216.
106

possibilita encontros. Seriam espaços públicos que incentivariam o encontro.


Nas palavras de David Harvey:

o comum não deve ser entendido como um tipo específico de coisa, de ativo ou mesmo de processo
social, mas como uma relação social instável e maleável entre determinado grupo social autodefinido
e os aspectos já existentes ou ainda por criar do meio social e/ou físico, considerada crucial para sua
vida e subsistência.295
E, a partir desses comuns, bem como das insurgências fomentadas e sediadas nas
cidades, percebe-se que as tenebrosas forças retratadas por Mike Davis não têm (ou ainda
não tiveram, ao menos) o poder de aniquilar a resistência, gerando oposições e aberturas
para a contestação dessas próprias forças. Ou seja, espaços296 para resistência, reivindicação
política e insurgência.
Dessa forma, é possível verificar que a habitação precária é um problema
generalizado e que encontra causas locais, regionais, nacionais e globais, devido às diversas
forças que atuam para determiná-lo. Ainda assim, há diversos pensadores que, sem
minimizar ou omitirem-se sobre os desafios e problemáticas da habitação precária, sinalizam
alguma esperança diante da atuação política e da reivindicação de diversos grupos sociais,
para melhoria e verdadeira efetivação da moradia adequada.

2.3 Eficácia do direito à moradia: desafios político-jurídicos e implicações


econômicas

Após o aprofundamento sobre os dados a respeito da realidade habitacional


brasileira, é possível verificar a existência de uma crise humanitária, especialmente pelas
centenas de milhares de pessoas em situação de rua.
Além disso, neste ponto começa a se evidenciar uma postura contraditória do Direito,
pois, conforme os elementos iniciais do trabalho, há respaldo jurídico em normas e
regramentos nacionais e internacionais para exigir do Estado uma atuação proativa e
vigorosa para garantir a efetividade desse direito, ao menos em um nível compatível com a
dignidade da pessoa humana e com a construção teórica de que esta depende da efetiva
garantia de um mínimo existencial, exigível através de prestações materiais.
Todavia, a percepção das forças econômicas envolvidas na produção do espaço tal
como ele é, bem como a verificação das estruturas que atuaram e produziram o direito e o
espaço privado e público no Brasil nos últimos séculos parecem contrariar, esse propósito

295
Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 145.
296
Cf. Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 195-198.
107

ou direcionamento.
Assim, uma tensão se evidencia no campo do direito, e parece sugerir que a
efetivação dos direitos básicos depende da organização política e de uma reivindicação direta
dos seus beneficiários, jurídica e política, mas além da sua judicialização.297
A análise das políticas públicas tomadas pelo Estado brasileiro, além das ações
pontuais de construções de pequenos volumes de unidades habitacionais, percebe-se que há
consequências sistêmicas dessa intervenção estatal, ora expandindo e tornando atrativo o
mercado imobiliário, e, em outros momentos, afastando investimentos privados desse
campo. Assim, seja por meio do controle de aluguéis, pela seletividade e permissividade na
aplicação do planejamento e das normas urbanísticas, pela expansão massiva de projetos
habitacionais como o Minha Casa Minha Vida, ou por revitalizações de áreas e abertura de
vias e avenidas.
E, ao se colocar como foco da análise da política pública a moradia do trabalhador,
se percebe que este elemento é vital e influência de forma bastante direta a necessidade de
pagamentos de determinados salários para essas pessoas, já que, diminuídos os custos de
sobrevivência, se não houver escassez de mão de obra que justifique a manutenção de um
salário mais alto, tais valores podem ser absorvidos como lucro pelo empregador.
As condições de investimento e prosperidade do mercado imobiliário também se
afetam diretamente por algumas medidas governamentais, absorvendo subsídios. Isso sem
observar que a necessidade dos trabalhadores abre campos de exploração lucrativa, como
por exemplo, com o investimento em cortiços, venda de loteamentos clandestinos, isto é, em
todo um mercado informal de moradias.
A propriedade habitacional é uma mercadoria diferenciada, peculiar, que tem seu
preço associado à localização, e, portanto, vinculada às produções de habitações vizinhas, à
produção da cidade e não somente relacionada ao trabalho nela realizado.298 Segundo Arlete
Moysés Rodrigues, a renda advinda da localização do imóvel pode ser chamada de renda

297
Jürgen Habermas alerta para a necessidade de enfrentar a tensão entre norma e realidade, e de um método
que possibilite a compreensão aberta: “A tensão entre abordagens normativistas, que sempre correm o risco
de perder o contato com a realidade social, e abordagens objetivistas, que se tornam cegas perante todos
os aspectos normativos, pode ser compreendida como advertência para não nos fixarmos em uma
perspectiva disciplinar, mas nos mantermos abertos para diferentes pontos de vista metodológicos
(participante versus observador), para diferentes finalidades teóricas (explicação de compreensão de
sentido e análise conceitual versus descrição e explicação empírica), diferentes perspectivas de papéis
(juiz, político, legislador, cliente e cidadão) e atitudes pragmáticas de pesquisa (hermenêutico, crítico,
analítico etc.).” (Habermas, Facticidade e Validade, 2020, p. 39.).
298
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 18.
108

diferencial, sabendo-se que é oriunda da produção social da cidade, uma espécie de


apropriação do natural e das produções alheias, de terceiros e do Estado.
Por sua vez, Rafael Lessa V. de Sá Menezes, na busca por interpretar de forma crítica
as políticas habitacionais brasileiras, aponta que é inerente ao sistema capitalista a existência
de parcelas da população sobrevivendo de forma precária, com dificuldades para garantir a
propriedade. Argumenta ainda que é a propriedade privada que produz a exclusão,
produzindo condições para o capitalismo, como a despossessão da terra e dos meios de
reprodução da vida, da subsistência. Assim, tornar a terra cativa garante as condições para
que o trabalho possa ser livre sem alteração da sociedade, produzindo exclusão social e as
condições básicas para o desenvolvimento do capitalismo.299
O que se busca evidenciar é a miríade de interesses, econômicos, existenciais, muitas
vezes antagônicos, relacionados com as habitações, de forma que a atuação governamental
não poderia tender à universalização dessa moradia adequada sem que o atual equilíbrio
desse sistema fosse afetado.
Assim se nota que a dificuldade de implementação desse direito fundamental, decorre
também da própria atuação de parcelas da população envolvida. E, até mesmo os
beneficiários da política pública, pela existência de um “sonho da casa própria” 300,
acabariam preferindo intervenções seletivas e que confluíssem com a lógica proprietária, ao
invés de sanar sua necessidade de habitação de uma maneira comunitária.
Esse sonho e essa consecução individual e isolada do direito fundamental, faz com
que os próprios beneficiários do direito não lutem pela sua garantia de forma comum, sem a
mediação da propriedade, de modo que se alinham aos projetos que, mesmo mais limitados
e impossíveis de serem universalizados, se tornam mais sedutores, dificultando a criação de
uma política pública universal.
A partir dessas críticas e dos dados coletados, é possível posicionar a moradia como
um elemento central da análise, representante material que conjuga o espaço das
intersecções, jurídica, geográfica, e representa também o lar, o local por excelência do

299
Cf. Menezes, Crítica do direito à moradia e das políticas habitacionais, 2017, p. 94.
300
Em pesquisa realizada pelo Datafolha e pela empresa Quinto Andar, em outubro de 2021, se perceberam
alguns dados relevantes, apontando que 70% (62% completamente quitados) dos brasileiros moram em
imóveis próprios e, o mais interessante, que 87% dos brasileiros entrevistados concordou com a frase “Um
dos meus sonhos é ter uma casa própria”, sendo que a prioridade desse sonho, em uma escala de 0 a 10,
retornou uma média de 9,7, a maior nota dessa questão da análise, o que demonstra a força desse desejo, e
a estrutura das moradias pelo modelo da casa individual no país se manteve. Cf. Tieghi, Brasileiro valoriza
mais casa própria do que filhos, religião e estabilidade, Folha de São Paulo, 2022.
109

espaço vivido, que se abre ao entorno e à cidade, e, consequentemente, à sociedade e às


relações sociais.
Juridicamente, percebe-se que o direito à moradia pode representar um conceito
central da análise dos direitos fundamentais. Mesmo que não seja um direito originário,
certamente é um dos definidores da personalidade da Constituição de 1988, já que sua
interpenetração com os demais direitos se mostra evidente.
Embora a interpenetração seja uma característica atribuída a todos os direitos
fundamentais, a moradia é um desses direitos que melhor ilustra esse atributo, tendo em vista
que evidencia a sua alta necessidade para a vida, a saúde, a garantia da integridade física, a
participação política, e todos os outros. Vulnerada a moradia, a própria dignidade da pessoa
humana não pode se sustentar, ruindo a segurança de todos os outros.
Ocorre que essa percepção pode apresentar um caminho inverso. Isto é, observar a
conquista e a segurança da moradia como elemento virtuoso de inserção de um indivíduo na
cidadania, centralizando a conquista dos direitos exatamente na proteção e garantia deste
primeiro direito fundamental, trazendo alguma estabilidade que possibilita a construção dos
outros direitos, a reivindicação política e o pertencimento à cidade.
No âmbito das políticas públicas e do direito à cidade, será a moradia a definidora do
alcance e da satisfação desses direitos, isto é, qual será o entorno que poderia ser acessado,
bem como quais serviços públicos chegam ao entorno daquela morada e o abastecem. A
moradia centraliza o feixe de direitos, de serviços e é atravessada por eles.
Em uma visão sociológica, a moradia revelará a classe social como também o grupo
a que pertence a pessoa, e se tem seus direitos e sua dignidade respeitada. Nesse sentido, a
moradia pode representar o elemento em que as mudanças serão sentidas, efetivando um
movimento oposto, o local de retomada da garantia de direitos e da dignidade, e da
equalização do acesso à cidade.
A partir dessa compreensão, passa-se à verificação dos aspectos simbólicos do morar
e de estar em uma cidade, bem como das consequências políticas que residir e pertencer
podem acarretar, verificando-se a possibilidade de transformação a partir desse ponto de
intersecção de conceitos jurídicos, sociológicos e materiais, culminando com a ocupação de
um espaço pertencente à pessoa, e as decorrências simbólicas e políticas, bem como as
possibilidades que se abrem à democracia e à cidadania a partir de uma moradia com um
entorno, forçadamente ingressando na cidade a que se tem direito.
110

3 Políticas urbanas, democracia e participação social


A análise dos paradigmas de uma moradia adequada, bem como pelo ideal de direito
à cidade, permite a percepção de que o estado do conhecimento sobre as condições de
habitação, de salubridade e os impactos na vida cotidiana das pessoas são bastante
conhecidos pelos profissionais que enfrentam tais questões.
E, é perceptível que o sistema jurídico tem sido permeado por tais valores,
especialmente após a promulgação da Constituição Cidadã, que efetivamente representou
um marco legislativo e institucional na participação democrática, tendo sido porosa à
participação de diversos grupos de pressão, organizados democraticamente.
Isso permitiu que os valores e conhecimentos relacionados à moradia se integrassem
ao ordenamento jurídico, positivados em normas, especialmente principiológicas e Tratados
Internacionais, compreendendo-os como elementos indispensáveis aos valores mais caros
do Direito, e até mesmo condicionantes da possibilidade de uma democracia, uma vez que
se trata do substrato material mínimo que permite a participação das pessoas em igualdade
de condições.
Esses imperativos lógicos impulsionaram a positivação dos ideais de direito à
moradia e até mesmo do direito à cidade, dos valores insculpidos na Constituição e nos
tratados de direitos humanos firmados pelo Estado brasileiro.
No entanto, ao mesmo tempo em que tal imperativo lógico parece até mesmo
irrefutável em sua necessidade e seu status de condição para exercício de direitos políticos
básicos, o estudo sobre as condições em que o país se constituiu e historicamente produziu
os espaços, permitiu acesso à terra e regulamentou e organizou os cidadãos – inclusive com
resistência à incorporação de grupos nessa categoria, como os escravizados sequestrados no
continente africano e em aldeias indígenas – demonstra que não houve mudanças bruscas
dos estratos sociais, mantendo-se a histórica segregação.
Embora seja verdade que houve mudanças nas estruturas sociais, com a edição de
leis que gradualmente proibiram o tráfico de escravizados e que, depois, aboliram a
escravidão; com a realização de incentivo à imigração; e, após, com a criação do arcabouço
de leis trabalhistas, ou outras políticas públicas adotadas pelo Estado, até um dos programas
mais recentes adotados, o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV).
Tais evoluções nos ordenamentos e na relação entre o Estado brasileiro, bem como a
realização de políticas públicas para os mais diversos setores que formavam a população não
ocorreram de forma brusca ou com ruptura no tocante aos valores antecedentes – inclusive
111

é possível observar atavismos301 coloniais nas relações, preconceitos e arquiteturas dos


prédios contemporâneos.
As revoluções jurídicas, com sofisticadas previsões sobre direitos fundamentais, e
com uma construção bastante clara dos direitos indispensáveis a uma vida humana
complexa, em diversas dimensões cria uma tensão permanente com a desigualdade posta na
realidade brasileira, com situações materialmente indignas, e desníveis que se infiltram no
ordenamento jurídico, impondo um tratamento diferenciado até mesmo dentro dos sistemas
jurídicos que são cooptados pelas classes dominantes.
Na verdade, uma outra forma de enxergar o que está se chamando de cooptação do
sistema jurídico, é a análise que o considera como, gestado e planejado para utilização pelas
elites para impor diferenciação e negar a cidadania a uma parcela da população, de modo,
dizendo de outro modo, na verdade, tais influências e infiltrações ainda não conseguiram ser
expurgadas do sistema jurídico, e, especialmente, da influência nos operadores do direito,
ainda trazendo efeitos e reproduzindo desigualdades.
Assim, tratar desses temas torna impossível ignorar essa tensão, e a dificuldade com
que os valores positivados germinem efeitos transformadores, trazendo efetivamente uma
cidadania a todos os brasileiros. Assim, é necessário enfrentá-la, pois ela representa um dos
pontos de contato entre o direito posto e a sociedade materialmente existente.
É possível perceber que tais pontos de contato promovem influências e evoluções,
tanto no âmbito normativo, uma vez que a própria incorporação legislativa de certos direitos
só ocorre por meio de pressões e reivindicações sociais, como, de outro lado, o próprio
direito pode servir como instrumento dessas reivindicações, possibilitando que outros atores
sociais sejam constrangidos a dar efetividade a tais direitos.
Nestes termos, a função deste 3º. Capítulo desta Dissertação pretende focar sua
análise exatamente sobre os pontos de tensão, e quais os significados e consequências que
dessa relação se podem extrair, passando pelos movimentos sociais e pelas trajetórias de
conquista de direitos, com a positivação, ou com a conquista e resguardo das moradias.
Assim, mostra-se produtivo o aprofundamento da ideia de democracia, bem como o
desenvolvimento de seus contornos, pois estas ideias trazem tanto tem um aspecto descritivo

301
Tem-se como exemplo desse atavismo o tardar para que os empregados domésticos conquistassem direitos
trabalhistas, o que só ocorre com a Emenda constitucional N.º 72 no ano de 2013, ou mesmo a persistência
de cômodos “de empregada” em apartamentos de classes média e alta, e mesmo a implementação de
“arquitetura hostil” (como colocação de pedras embaixo de pontes, com intuito “antimendigos”).
112

para compreender as formas da participação popular e da autonomia das pessoas que


reivindicam seus próprios direitos, auxiliando na compreensão desses fenômenos, como
também contribuem com uma face prescritiva, possibilitando o estabelecimento de regras e
condições para que os debates e colisões entre os pontos de tensão possam ocorrer,
produzindo interferências e evoluções promovidas por esses espaços de diálogos abertos.
Assim, a análise verifica o enquadramento das estratégias populares e da
reivindicação dos direitos dentro da Teoria Democrática, e como de forma recíproca, o
aumento dos espaços e da valorização da democracia, também permite que os pontos de
tensão se tornem produtivos canais de comunicação e de interferência, seja no sistema
jurídico, ou nas políticas públicas e atuações dos movimentos sociais e dos agentes que
reivindicam a moradia.

3.1 Democracia: ambiguidades e possibilidades de emancipação

Democracia é um conceito bastante disputado nos debates públicos, e elaborado por


inúmeros pensadores com formas e conceituações até mesmo contraditórias, que focam
diversos de seus aspectos.
O debate sobre o tema também costuma estabelecer as dicotomias envolvidas, seja
entre os valores importantes para a democracia, como a igualdade e a liberdade, seja ainda a
tensão entre sua idealização e a aplicação desse modelo em diversos países do mundo.
De qualquer modo, a importância dessa forma de governo, bem como sua adoção nos
países do mundo, especialmente do mundo ocidental e daqueles periféricos sob influência
direta do Ocidente demonstra uma possível, ou ainda, traz a esperança de que haveria, uma
tendência à sua universalização.
De início, se percebe que o tema é movediço e complexo, de modo que não se tem a
intenção de atacar tais dilemas e contradições próprios ao conceito de democracia e esgotar
seu estudo teórico. Todavia, também não se pensa que possa simplesmente ser omitido, tendo
em vista que o exercício da democracia brasileira e seu aprofundamento têm conexão direta
com a análise da cidadania e da participação popular, sendo, ao mesmo tempo, termômetro
e ferramenta da busca por direitos.
Um Estado que respeita os direitos básicos tem mais condições que seus cidadãos
participem politicamente, especialmente porque suas necessidades básicas estão atendidas.
E, de outro lado, é a própria luta pela democracia e pelos direitos que permite o
aprofundamento da cidadania e da efetivação desses direitos.
Com isso, tem-se certa imprecisão sobre o papel da democracia no campo da
113

habitação, isto é, como condição e causa da efetivação dos direitos, ou como meio e mais
uma das ferramentas de luta. Tais possibilidades impõem dúvidas a respeito da causalidade
oriunda da democracia ou mesmo dos direitos fundamentais, ou ao menos de sua recíproca
implicação, sugerindo a hipótese de que seria necessário um adequado enquadramento do
papel e das capacidades da democracia na efetivação dos direitos, ou ainda, que é um
fenômeno que apenas surge plenamente nas sociedades que já garantiram suas condições
materiais básicas, com a implementação concreta dos direitos fundamentais.
Assim, a problemática da democracia será brevemente enfrentada na medida em que
atravessa as lutas pela moradia, bem como representa o grau de permeabilidade do Estado
brasileiro às reivindicações de pessoas com a necessidade de garantir sua moradia e a
melhoria de suas condições de vida.
Desse modo, fica perceptível que a democracia prática vem atravessando a luta e as
reivindicações sociais por moradia, bem como as lutas para aprofundamento da cidadania
brasileira. Isso implicará que a análise se centrará no fenômeno democrático brasileiro, bem
como as formas que suas contradições se mostraram e se uniram às peculiaridades do
desenvolvimento nacional, e como tais conceitos se implicam mutuamente, de cidadania,
democracia, direitos fundamentais e a organização social na luta pelo direito.

3.1.1 Concepção procedimental e discursiva de Democracia

A discussão envolvendo a democracia remonta à Antiguidade, recebendo, desde


então, afluxos e meditações, sendo objeto do estudo e da filosofia de importantes pensadores,
de um lado, e, de outro, permitindo algumas experiências nos locais em que é exercida de
forma efetiva.
Ressalvando a importância e a extensão desses debates, opta-se neste esforço por
centrar e utilizar a formulação teórica elaborada por Jürgen Habermas, que se harmoniza
com os pressupostos comunicativos utilizados para observar os fenômenos urbanos, e a ação
coordenada dos membros dos movimentos das lutas por moradia.
A noção democrática habermasiana é procedimental, pois focada nas determinações
e na forma como se produz a vontade política, permeando outros sistemas, dada a conexão
existente entre a Política e o Direito 302. Contudo, não se trata de uma formalidade

302
Cf. Habermas, Facticidade e validade. Contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democracia,
2020, p. 408.
114

valorativamente estéril, mas qualificada por condições substanciais de participação.


Assim, a noção de democracia de Jürgen Habermas, que é recebe influxos de sua
teoria da ação comunicativa, tem elementos discursivos em sua operacionalização, o que
atrai, consequentemente, implicações valorativas de uma ética argumentativa, conectando-a
ao Direito, de modo que há uma dependência recíproca de legitimidade entre tais sistemas
sociais.
A conexão existente entre o Direito e a Política, com sua recíproca implicação,
possibilitam a validação de ambos na intersubjetividade comunicativa, o que permite uma
legitimação de ambos de forma não-metafísica e não-transcendental, mas comunicacional.
Tal elemento permitiria fazer emergir a autonomia e a autodeterminação.
A ideia de Jürgen Habermas sobre a fundamentação comunicacional é sintetizada
pelas palavras da filósofa Simone Goyard-Fabre:

“uma vez que a ‘atividade comunicacional’ é constitutiva da sociedade, as bases do direito só podem
ser encontradas no pensamento, dito ‘pós-metafísico’, da intersubjetividade. (...) uma norma jurídica
deve buscar sua validade (Gelstung) no acordo, ou ‘consenso’, que resulta numa comunidade, de uma
‘discussão prática’ entre seus diversos membros.”303
Evidencia-se, desse modo, a importância do consenso e dos processos que levam ao
consenso, tanto para a fundamentação do Direito, como para a fundamentação da
Democracia.
A teoria de Habermas também traz soluções para críticas comumente realizadas
contra a dificuldade democrática de encontrar uma síntese entre a democracia e o bem
comum, sem justificar, com isso, uma teoria que justifique formalmente o elitismo
democrático304.
Segundo Leonardo Avritzer:

Na medida em que Habermas identifica o conceito de racionalidade comunicativa com as regras de


um processo de comunicação livre de constrangimentos, ele abre espaço para uma solução do
problema da relação entre ética e democracia distinta da solução proposta pelo elitismo democrático.
Uma solução de acordo com a qual o princípio ético envolvido na prática democrática estaria
relacionado à qualidade dos processos de comunicação ligados à democracia. 305
Essa fundamentação da democracia se dá com a utilização das distinções criadas por

303
Cf. Goyard-Fabre, O que é democracia?, 2003. p. 319.
304
O elitismo democrático emerge das dificuldades percebidas ao se contrapor a necessidade de construir uma
estrutura burocrática, tendo em vista a complexidade das funções estatais, e que tal estrutura e
complexidade não dependerá da consulta direta a cada movimento necessário, de modo que a compreensão
da democracia acaba ficando limitada ao entendimento das regras que concernem à escolha dessa elite que
comandará tais estruturas burocráticas ou que representará o povo e seu bem comum (Cf. Avritzer, A
moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática, 1996, p. 120-121).
305
Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática, 1996, p. 21.
115

Jürgen Habermas, com os conceitos tratados por ele, pois a definição da democracia como
uma prática discursiva, o que traz implicações éticas oriundas da ética do discurso, impõe
uma certa moralidade ética também à participação e à construção dos consensos
democráticos. Assim, o bem comum torna-se um pouco menos abstrato, já que sua definição
se torna tributária da participação efetiva e ampla, conforme as diretrizes discursivas.
Essa capacidade de incluir a participação popular nas decisões, mesmo uma vez
constituída uma burocracia estatal, demonstra a importância do conceito habermasiano de
democracia para o presente trabalho, tendo em consideração que a perspectiva da eficácia
do direito à moradia a partir da atuação e participação política de agentes subalternizados
encontra nessa teoria um ponto de conexão e de fundamentação. De outro lado, trata-se de
uma perspectiva que une o Direito, a Política e a Democracia, tornando-os conceitos que se
implicam reciprocamente, permeados pelos sistemas discursivos e as consequências da
adoção de uma ética discursiva.
Assim, chega-se a um conceito amplo e inclusivo de sociedade autônoma, ou, nas
palavras de Jürgen Habermas, “Com o conceito procedimental de democracia, no entanto,
essa ideia assume a forma de uma comunidade jurídica que organiza a si mesma.”306
O professor Eduardo C. B. Bittar também ressalta a importância do princípio
democrático, como elemento que atravessa o pensamento habermasiano:

A democracia (...) age especialmente como um pressuposto da própria ideia de intersubjetividade


comunicativa. A todo tempo, em seu modelo teórico, é evocado o princípio democrático como um
elemento tradutor da capacidade de significar uma forma política específica, profundamente
emaranhada com as fortes exigências de discurso e participação. 307
Essa leitura da democracia e a incorporação desse princípio democrático é o que torna
a obra de Jürgen Habermas essencial para estabelecer as categorias de observação e análise
dos exemplos de eficácia e de participação social, pois trata-se de arcabouço teórico que
permite enxergar nuances mais acurados da participação social, dos debates e das
construções das decisões, abrindo-se cognitivamente para a atuação das pessoas que
permeiam as instituições.
Assim, neste esforço para investigar caminhos de efetividade para o direito à
moradia, a democracia habermasiana mostra-se como uma chave de interpretação dos

306
Habermas, Facticidade e validade. Contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democracia,
2020, p. 418.
307
Bittar, Democracia, Justiça e Emancipação Social: Reflexões jusfilosóficas a partir dos pensamentos de
Jürgen Habermas, 2013, p. 383.
116

fenômenos e reivindicações urbanas, permitindo uma leitura dessa atuação pessoal, e dessa
busca constante por inclusão e pelos próprios, e legítimos, interesses.
Essa linha de entendimento mostra uma forma de compreender de maneira complexa
e inter-relacionada os encontros e as trocas entre os sistemas político, jurídico e social,
formado pelos movimentos sociais reivindicatórios, trazendo na própria definição
democrática a importância de incorporar os interesses historicamente suprimidos das
populações subalternizadas do Brasil.
Assim, embora se utilize de um conceito procedimental de democracia, seu
enriquecimento pela teoria do discurso exige a satisfação de condições objetivas, de inclusão
social, o que é sintetizado pelo jurista Eduardo C. B. Bittar:

“Em verdade, o princípio democrático se realiza pela realidade dos processos de efetiva inclusão no
discurso, e, por isso, de efetiva consolidação do processo de integração e participação políticas; e isso
porque a democracia deve ser capaz de derivar e de realizar a soberania popular. Nesta medida, no
interior da teoria do discurso, o caráter procedimental da democracia aparece como uma garantia a
favor das condições de exercício da palavra e de autodefinição, pelos atores envolvidos, das próprias
definições que assumem, considerando as consequências para todos.”308
Assim, de posse de uma ideia de democracia que perpassa e qualifica os debates
jurídico e político, possibilitando, ainda, introduzir como princípio democrático condições
substanciais de averiguar a participação efetiva nos debates e nas formações das decisões e
vontades, e, principalmente, dentro de uma construção de consensos e de discursos que se
opera no âmbito intersubjetivo.
De outro lado, a construção intersubjetiva dos consensos permite trazer para o centro
do debate o mundo da vida, com os padrões, imagens e símbolos indispensáveis à
compreensão e à participação popular, abrindo tais categorias, do Direito, da Democracia e
da Política, às influências indeterminadas do território, possibilitando uma reintrodução da
complexidade da vida na análise309.

3.1.2 Contradição e ambiguidade na democracia

A verificação concreta de regimes democráticos criará certamente uma tensão com

308
Bittar, Democracia, Justiça e Emancipação Social: Reflexões jusfilosóficas a partir dos pensamentos de
Jürgen Habermas, 2013, p. 402.
309
Jürgen Habermas salienta a importância da teoria do discurso na construção do princípio democrático, e
como o entendimento realizado dessa maneira traz elementos e influencia na produção e reprodução do
mundo da vida. Nas palavras do filósofo: “os atores não estão simplesmente entregues a seu mundo da
vida. Pois este só pode se reproduzir, por seu turno, pela ação comunicativa, e isso significa: mediante
processos de entendimento que dependem de tomadas de posição sim/não frente a pretensões de validade
criticáveis.” (Habermas, Facticidade e validade. Contribuições para uma teoria discursiva do direito e da
democracia, 2020, p. 416).
117

os diversos conceitos de democracia, tendo em vista a “impureza” da realidade, as tradições


históricas e outros elementos culturais que não permitem que uma planejada forma de
governo simplesmente seja inserida em uma sociedade, como se ela pudesse simplesmente
a partir daquele momento iniciar um novo modelo, abandonando qualquer contradição ou
práticas antigas.
Contudo, é necessário aprofundar a compreensão do conceito democrático,
verificando que ele comporta tensões e disputas até mesmo de forma teorizada, antes mesmo
de observado na prática, dentro de um contexto sociocultural e histórico.
Ao perceber a existência de certos elementos essenciais à ideia democrática, nota-se,
igualmente, que não coexistem de forma harmônica, dado que trazem valores que não podem
ser considerados de modo absoluto, pois entram em contradição com outros elementos da
própria democracia.
Assim, a contradição precede a aplicação empírica, e existe na própria concepção da
democracia, e diante de seus principais valores, a liberdade e a igualdade, que, considerados
absolutamente, se contradizem.
Os valores de igualdade e de liberdade são comumente invocados nos textos
constitucionais dos diferentes países e vêm justificar uma inclusão maior de pessoas na
participação da vontade política.
Essa inclusão foi sendo realizada, especialmente no decorrer do século XX, época
em que essa forma democrática se espalha pelos países ocidentais, alcançando os países do
sistema periférico apenas no final310 do século.
Partindo-se da história brasileira, na qual até mesmo durante o período do Império
havia eleições, bem como com a Proclamação da República há eleições. Todavia, um olhar
mais atento às especificidades brasileiras pode observar falhas muito graves nesse processo
democrático que se instalou no país.
Primeiramente, durante o século XX, o Brasil passou por duas ditaduras, que
interromperam o voto direto para presidente, promoveram cassações de mandatos e
impediram que outros elementos essenciais à democracia, como a reunião de pessoas ou e a
manifestação livre do pensamento.
Além desses períodos de exclusão da democracia, durante boa parte do período,

310
Assim como o Brasil, diversos países da América Latina e até mesmo da Europa, como Portugal, com
Salazar e Espanha, com Franco, enfrentaram períodos autoritários de supressão da democracia. Todavia, a
análise se focará nas peculiaridades brasileiras.
118

houve supressão de votos, especialmente dos analfabetos311. Ademais, mesmo durante os


períodos democráticos, havia extensas fraudes ocorrendo nas eleições.
O historiador José Murilo de Carvalho revela como a participação política se dá de
forma crescente no Brasil, inclusive apontando para o incremento da participação de
profissionais liberais das capitais como catalisadores de movimentos e de expressões de
cidadania liberal, contudo ressalva que todo o período democrático foi permeado por
fraudes312 eleitorais.
Assim, ainda que se possa discutir, ao percorrer a história do Brasil, sobre a
quantidade de pessoas votantes, sobre a inclusão de mais pessoas, e a liberação de votos de
forma universal, percebe-se que a fraude subverte313 qualquer possibilidade de democracia,
retirando na prática a legitimidade de qualquer votação ou da maior ou menor inclusão de
pessoas.
Assim, a existência generalizada de fraudes, com a capacidade de influir no resultado
da disputa eleitoral é semelhante ao autoritarismo, pois também se utiliza do poder superior
para impor a escolha, esvaziando o cerne da ideia de igualdade que a Democracia invoca,
isto é, que as pessoas sejam capazes de influir na construção da vontade do Estado.
A fraude é uma questão fática que pode esvaziar o jogo democrático, contudo, ainda
no âmbito teórico e valorativo, há outras considerações a serem realizadas.
Inicialmente, é importante perceber que a democracia vem bastante influenciada por
pensadores iluministas, que resgatam essa forma de governo utilizada pelos antigos, sob o
signo da liberdade. E a compreensão dessa liberdade era diferente na antiguidade314, já que
nas regiões gregas, a liberdade representava precisamente a capacidade de participação da
vida pública, de poder deliberar os rumos do Estado. Com isso, no Iluminismo, a ideia de
liberdade se reveste da conquista de garantias diante do Estado, de proteção do indivíduo.
Com isso, a participação política, que é desejável, ficaria em segundo plano,
possibilitando a democracia representativa, e se estabelece a percepção de que o indivíduo

311
Conforme se abordará adiante, apenas em 1988 os analfabetos foram recepcionados para votar, e nessa data
representavam cerca de um quarto da população brasileira.
312
Apenas em 1933 teria sido criada a justiça eleitoral e instituído o voto secreto, como medida de coibir
fraudes, representando ganhos para a democracia, contudo, tais avanços foram realizados sob a tutela de
Getúlio Vargas, em um movimento que suprimia a democracia, trazendo ambiguidade e complexidade para
tais momentos.
313
A questão e a importância da fraude trás prenúncios a respeito da importância do respeito às regras do jogo
para a legitimação de uma democracia, revelando sua imprescindibilidade.
314
Cf. Constant, A Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos, 2015, p. 78.
119

deve ser respeitado.


Nas palavras de Benjamin Constant, que se debruçou sobre o tema da liberdade
política:

A independência individual é a primeira das necessidades modernas. Em consequência, jamais é


preciso exigir o seu sacrifício para estabelecer a liberdade política. Daí se segue que nenhuma das
instituições, numerosas e tão alardeadas, que, nas antigas repúblicas embaraçavam a liberdade
individual, é admissível nos tempos modernos.315
A preocupação desses pensamentos de inspirações liberais, embora não prescinda da
participação democrática, se contenta com uma acepção fraca desta participação, conectada
com a disponibilização da possibilidade de participação com regras determinadas, mas
focando sua preocupação no estabelecimento de limites fortes à atuação estatal, respeitando
a liberdade, notadamente a econômica, do indivíduo.
Dessa forma, essa visão que traça limites à atuação do Estado316 e resguarda de
maneira contundente a liberdade, ao fixar os parâmetros democráticos, deve fazer com a
menor interferência possível, focando, dessa forma, em criar regras e procedimentos
mínimos para garantir essa liberdade e a construção do Estado em respeito a tal
autodeterminação. Trata-se de ideia que remete a uma ideia procedimental de democracia,
que ainda será aprofundada.
É dessa forma que a ideia de liberdade começa a se delinear como uma garantia de
inobservância de questões fáticas, garantindo minimamente as regras de um jogo
democrático. Dentro desse esquema, a igualdade apenas pode vir de maneira formal e
limitada.
Para que se permita a expansão da atuação dos indivíduos, com a utilização plena de
sua liberdade econômica, e do peso que pode acarretar para as ponderações públicas. É
necessário que o valor de igualdade represente apenas a igualdade perante a lei.
É claro que as noções puras de liberdade e de igualdade, embora ainda defendidas
por alguns militantes, não encontram respaldo em um estado de bem-estar social, uma vez
que parte da satisfação material mínima dos cidadãos, da satisfação dos elementos
necessários à sua reprodução, tendo sido incorporado no ordenamento jurídico brasileiro
uma noção de igualdade material.

315
Constant, A Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos, 2015, p. 92.
316
Interessante notar que as ideias liberais iluministas deixam de considerar as capacidades econômicas
monstruosas que existem atualmente, deixando de ponderar sobre a necessidade de absorver as
externalidades e impactos sociais de determinadas ações, ou ainda de reequilibrar diferenças de acesso
prático aos poderes democráticos.
120

A situação concreta concernente às enormes desigualdades no Brasil não permite que


se defenda o liberalismo puro de forma séria, tendo em vista os abismos de oportunidades
entre as pessoas, impossibilitando uma verdadeira liberdade para a maior parte da população.
Entretanto, tais pensamentos revelam a tensão existente entre o valor igualdade e o valor
liberdade.
A igualdade, em contraposição, serviu como brado durante a revolução burguesa em
1789, na França, justificando as reivindicações antimonárquicas. Tal valor vem invocado nos
momentos em que é necessário alargar a participação política, ainda que, historicamente,
aqueles que a reivindiquem tenham uma acepção limitada e não universal dessa igualdade.
Assim, nessa mesma revolução burguesa, a versão da igualdade que prevaleceu foi a
que a instituía apenas perante a lei, ou seja, a superação dos privilégios da nobreza e da
participação nas decisões conforme o estado a que pertencia a parcela populacional.
Do outro lado do oceano, nos Estados Unidos e na sua guerra de independência,
também se invocava a liberdade, contudo marcando como exceções a participação de
indígenas, negros e de mulheres.
Contra esses percalços e contradições desses regimes democráticos, levanta-se um
socialismo democrático317, apontando que a igualdade depende de uma centralidade para a
classe trabalhadora, bem como que a democracia formal não poderia efetivar os interesses
dessa classe, sendo indispensável que exercesse uma ditadura do proletariado.
A percepção crítica, ainda que se discorde de suas conclusões, ajuda a iluminar a
questão, verificando-se que as democracias recebem uma influência e um grau de
participação diferenciado em razão do poder econômico envolvido.
Segundo Simone Goyard-Fabre318, tais valores dão suporte a duas visões distintas
sobre a democracia, uma libertarista, vinculada aos ideais liberais, colocando a propriedade
e a liberdade como os valores da natureza humana universais; e a uma outra comunitarista,
exigindo uma contextualização sempre presente, situando o indivíduo em uma sociedade, já
que o considerar isoladamente da comunidade é abstração que gera distorções na
compreensão e permitem o avanço desse individualismo exacerbado.
Esse debate se desvela a dificuldade de conciliar e harmonizar interesses diversos em
conflito, conforme um ou outro modelo traga consequentes liberdades e obrigações aos

317
Cf. Goyard-Fabre, O que é democracia?, 2003. ps. 229-230.
318
Cf. Goyard-Fabre, O que é democracia?, 2003. p. 295-297.
121

membros da comunidade.
Simone Goyard-Fabre,319 ao apresentar a visão do filósofo alemão Jürgen Habermas
para a democracia. Irá fazê-lo de forma crítica, pois a seu ver o consenso e a conciliação que
seriam oriundas de uma razão comunicacional seriam ilusórios. Com isso, questiona a
possibilidade de identificar o consenso com a democracia.
A dificuldade ou impossibilidade de consenso trariam a marca e a contradição atávica
da democracia, pois pressupondo a discussão de interesses quiçá divergentes, incorpora a
pluralidade discordante de visões, a qual, por princípio, remeteria a democracia a certa
instabilidade.
Desse modo, Simone Goyard-Fabre vê na democracia uma força e uma fraqueza320,
pois sua pluralidade, que incorpora universalmente os setores sociais, também a fragiliza,
devendo se opor à tirania estatal, devendo esta garantir um equilíbrio entre ordem e
liberdade, verificando, por exemplo, como mesmo diante de um princípio majoritário para
solução dos dissensos, haveria pressuposto o direito à oposição e à proteção das minorias,
de que estas possam participar do debate sem aniquilação. Assim, a democracia garantiria a
liberdade de forma controlada, da coletividade e não a plena liberdade dos indivíduos. 321
A decisão majoritária pressupõe uma minoria que será vencida e deverá ser
respeitada, afinal, não se tem a pretensão de uma decisão unânime.
Assim, ao perceber a fraqueza e a potência da democracia na pluralidade intrínseca
a seu exercício, percebe-se que tal pluralidade é um de seus aspectos centrais e definidores,
sendo essencial que esse procedimento viabilize e proporcione uma forma de harmonização
dos interesses e, consequentemente, das pessoas e grupos de pessoas que os colocaram e os
exigiram.
Outro autor que enxerga ambiguidade é Leonardo Avritzer. Isso porque, ao analisar
a forma como a democracia se expandiu no século XX, irá apontar que isto ocorreu de forma
contraditória, tendo em vista que mesmo havendo tal expansão, com fortes apelos à
democracia, ela manteve uma forma elitista, a qual se estrutura a partir da dissociação entre
democracia e bem comum, bem como apontando que a mera participação não seria
racional322.

319
Cf. Goyard-Fabre, O que é democracia?, 2003. p. 336.
320
Cf. Goyard-Fabre, O que é democracia?, 2003. p. 342.
321
Cf. Goyard-Fabre, O que é democracia?, 2003. p. 308-311.
322
Cf. Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática, 1996, p.
20.
122

A ideia do elitismo democrático323 se origina de uma suposta incompatibilidade entre


idealismo e a política real, o pragmático. Isso porque ao se dizer que a universalidade das
pessoas deve participar da vontade política, enquanto brado ou afirmação abstratos, se
mostra como uma afirmação até consensual.
Contudo, o peso do realismo se verifica ao perceber-se que o governo e o estado
contam com complexas burocracias, postas em movimento por uma miríade de leis e de
agentes públicos em funções altamente diferenciadas e específicas, com divisão de poderes
e de funções.
Tal complexidade acaba por justificar o afastamento de certas decisões e debates da
esfera pública, exatamente porque pertenceriam a determinado domínio técnico 324, de modo
a se perceber, na realidade, que nem todas as pessoas deveriam ter peso nessas decisões,
ocasionando a aceitação da exclusão delas.
Essa visão elitista 325 e contraditória seria desconstruída a partir da teorização trazida
por Jürgen Habermas, vinculando o sistema político às formas de reprodução política, de
modo que, segundo Leonardo Avritzer, “A relação entre administração, participação e
racionalidade (...) torna-se uma relação de complementariedade.”326.
Essas contradições e ambiguidades atribuídas à própria democracia são reproduzidas
a partir precisamente da pretensão democrática de alargar o campo de participação,
ampliando as vozes e debates sobre determinado tema, absorvendo e respeitando as
complexidades e diversidades já presentes na sociedade. Assim, a dificuldade decisória de
acatar a democracia, embora possa ser percebida efetivamente como intrínseca a ela é na
verdade reveladora dessa pretensão de legitimar e possibilitar a decisão, mas ampliando a

323
O realismo político é um pressuposto metodológico decorrente do aumento da complexidade do Estado e
de seu aparato, exigindo funcionários especializados. Essa complexidade instaura separações entre a
população e as formas de administração do Estado, tornando incompatível uma participação diária e
generalizada. (Cf. Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria
democrática, 1996, p. 103-104.
324
A ausência de domínio técnico de alguns temas poderia ser confundida até mesmo com a incompatibilidade
entre elas e as massas, que seriam irracionais. Entretanto, Leonardo Avritzer aponta que a suposta
racionalidade trazida por tais formas elitistas seriam mera maximização ou soma de interesses individuais.
(Cf. Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática, 1996, p.
110).
325
Leonardo Avritzer também traz problemáticas do pensamento elitista, pois haveria pressuposição da
racionalidade dessas elites (e irracionalidade das massas), e que tal visão ocultaria que tal racionalidade
veicularia não uma vontade geral, mas os interesses dessa parcela da sociedade, e, além disso, a
racionalidade individual identificada com bens materiais consideraria apenas bens materiais, deixando de
considerar os bens simbólicos. (Cf. Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana
e teoria democrática, 1996, p. 113).
326
Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática, 1996, p. 21.
123

participação.
Com isso, a teoria do elitismo democrático é ao perceber a tensão entre uma maior
participação e os ruídos gerados na comunicação e a consequente dificuldade de atingir o
consenso, atribuindo a esses entraves uma aparente falta de racionalidade do aumento de
participação, rechaçando e ignorando a tensão oriunda da divergência, tentando suprimir e
usar uma técnica decisória que a suprime.
Assim, na visão habermasiana, na complexidade e nas tensões é que estaria uma
chave para superar e coordenar as ações, com a ideia de racionalidade comunicativa327, bem
como com a compreensão do político como um sistema que se comunica com o mundo da
vida, incorporando na teoria democrática uma forma discursiva que contemplaria a
complexidade social.
A utilização dos conceitos habermasianos para compreender a democracia apontam
para o campo do discurso e da linguagem, enquanto meios para que as discussões e
consensos possam se realizar. Tal medida possibilita incorporar ao procedimento
democrático, notadamente formal, que estabelece um jogo de regras democráticas, sem um
conteúdo específico, possa exigir regras que a perpetuação do diálogo e de esferas públicas
pressupõe.
Percebe-se que o compromisso democrático evidencia, primeiro, uma dificuldade, de
efetivamente acatar e sustentar raciocínios, visões de mundo, entendimentos e interesses
potencialmente contraditórios. Mas, tal dificuldade somente se apresenta tendo em vista a
ousadia e a ambição desse sistema, de efetivamente construir uma sociedade coesa e
participativa, sem silenciamentos ou aniquilação, real ou simbólica, de grupos.
O cumprimento da ambição democrática não permite que a dificuldade da
pluralidade e da busca pelo consenso sejam omitidas ou relegados ao esquecimento. Deve
haver enfrentamento e aceitação dessa problemática.
Tal necessidade se evidencia com uma análise mais detida sobre a complexidade de
composição da sociedade brasileira, que contém diferentes etnias, grupos, culturas, funções
profissionais e visões de mundo que devem ser incorporadas e ouvidas.

327
Para Leonardo Avritzer, enquanto a burocracia estatal seria organizada pela racionalidade sistêmica, que
possibilita uma coordenação impessoal da ação, a racionalidade comunicativa permite a instauração da
esfera pública, em que os valores democráticos se formam e se reproduzem, tornando possível
compatibilizar alguma complexidade em algumas instâncias, desde que a esfera pública inclua a
participação e os diversos interesses. (Cf. Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria
habermasiana e teoria democrática, 1996, p. 121).
124

3.1.3 Pluralidade e legitimidade: a expansão da democracia

E é a partir da incorporação da pluralidade que a democracia pode se apresentar como


um processo que tem a capacidade de trazer legitimidade ao poder, de um ponto de vista
racional. Superada uma legitimação meramente metafísica, somente será possível associar
essa capacidade de legitimação a uma argumentação racional, que efetivamente construa e
fundamente a validade desse poder.
Além disso, a incorporação da pluralidade, muito mais do que aumentar o potencial
de legitimação, compreende a própria noção e o conceito da democracia, embora amplie as
dificuldades de alcançar o consenso.
Simone Goyard-Fabre aponta que nessa questão da legitimidade haveria uma das
explicações a respeito da existência de crises nas sociedades, “um mal estar concreto e
vivenciado, como demonstra a inflação contestatória cuja expressão mais corrente são as
manifestações de rua”328, invocando a análise de Jürgen Habermas para perceber que haveria
um deslocamento entre o que está regulado e aquilo que é percebido ou discuto pelas
opiniões públicas, conclui apontando que a melhor explicação para essas crises se encontra
no bloqueio das instituições, o que “indica que as estruturas normativas que as instituições
representam não são mais congruentes com as necessidades e os ideias da sociedade
civil.”329.
De outro lado, essa crise de um determinado sistema de representação aponta para a
tensão entre a democracia posta sob regras e determinadas frustrações de setores da
sociedade com a incorporação de seus interesses nessa vontade política.
Jürgen Habermas constrói sua teoria da ação comunicativa na base de uma
investigação minuciosa da racionalidade, empreendendo, inicialmente, uma crítica da
racionalidade instrumental330, contrapondo-a à racionalidade comunicativa, o que irá lhe
permitir a integração, a coordenação de ações e a com a harmonização dos conflitos.

328
Goyard-Fabre, O que é democracia?, 2003, p. 282.
329
Goyard-Fabre, O que é democracia?, 2003, p. 284.
330
Jürgen Habermas enxerga diversos tipos de racionalidade, de modo que na modernidade, contrapõe,
principalmente a razão cognitivo-instrumental e a comunicativa. Em suas palavras: “Quando partimos do
uso não comunicativo do saber proposicional em ações orientadas por um fim, tomamos uma decisão
prévia em favor do conceito de racionalidade cognitivo-instrumental, que, por meio do empirismo, marcou
fortemente a autocompreensão da modernidade. Ele traz consigo conotações de uma autoafirmação
exitosa, que se vê possibilitada pela adaptação inteligente às condições de um meio contingente e pela
disposição informada dessas mesmas condições.” (Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 1:
Racionalidade da ação e racionalização social, 2016, p. 35.).
125

O filósofo traça as raízes da compreensão da racionalidade, partindo da


problematização filosófica dessa ideia. Partindo do pressuposto que tal conceito relaciona-
se com um saber, encontra, inicialmente em uma ideia de verdade331, de confiança uma
primeira acepção.
A conexão entre saber e verdade logo remete a uma análise discursiva ou linguística
de determinados enunciados332 e a teoria da argumentação, transcendendo a noção de que a
racionalidade remeteria à conexão de um enunciado com algo verificável no mundo da vida.
Mas, a partir dessa transcendência, Jürgen Habermas remete a racionalidade à pretensão
existente na linguagem, e nas razões que se dão para justificar uma ação.
Dessa forma, percebe-se que os enunciados ou exteriorizações333 racionais têm
pretensões de validade334, os quais são modulados conforme a forma desse enunciado. Com
isso se percebe que a verdade de uma exteriorização é apenas uma entre as possíveis
pretensões de validade presentes em uma exteriorização.
As formas de exteriorização racionais pressupõem determinadas pretensões de
validade, algumas delas universais a qualquer tipo de exteriorização, como é o caso da
compreensibilidade (inteligibilidade)335.
Também são pretensões de validade a verdade336, a correção normativa (retitude)337,

331
Cf. Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 1: Racionalidade da ação e racionalização social, 2016, p. 33.
332
Habermas retoma o conceito de racionalidade, partindo dos elementos aos quais tal qualificativo poderia
ser atribuído (ações, estratagemas, enunciados), construindo aos poucos seu conceito ao mesmo tempo em
que vai aparando possíveis contestações a determinada forma de ver a racionalidade. Contudo, tendo em
vista o escopo do trabalho, não se inserirá todo o percurso do autor, problematizando ou criticando-o, mas
tão somente resgatando suas categorias para poder refletir sobre suas implicações na esfera da moradia,
das reivindicações populares.
333
Para Habermas os enunciados exteriorizam um determinado conteúdo que terá uma pretensão de validade,
e segundo ele essa forma traz implicações, pois “(...) o modo de ser de uma exteriorização geralmente
significa algo mais específico: ele expressa também a perspectiva objetiva ou espacial e temporal assumida
pelo falante quando este se refere a uma pretensão de validade.” (Cf. Habermas, Teoria do Agir
comunicativo, 1: Racionalidade da ação e racionalização social, 2016, p. 81).
334
A partir do reconhecimento de que as pretensões de validade podem ser diversas, é preciso reconhecer que
haverá condições também diversas para sua satisfação. E, “Uma pretensão de validade equivale à
afirmação de que as condições de validade de uma exteriorização tenham sido cumpridas” (Habermas,
Teoria do Agir comunicativo, 1: Racionalidade da ação e racionalização social, 2016, p. 83).
335
É a pretensão de que o que se exteriorizou seja compreendido pela outra parte.
336
A pretensão à “verdade de um enunciado significa que um estado de coisas que se afirmou existe como algo
no mundo objetivo; e a correção válida para uma ação em face de um contexto normativo subsistente
significa que a relação interpessoal construída como parte legítima do mundo social merece
reconhecimento” (Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 1: Racionalidade da ação e racionalização
social, 2016, p. 105).
337
A correção normativa compreende uma pretensão que não relaciona uma exteriorização a um crivo de
verdade ou de êxito, mas de conformidade a determinada norma ou acordo valorativo. (Cf. Habermas,
Teoria do Agir comunicativo, 1: Racionalidade da ação e racionalização social, 2016, p. 107).
126

e a veracidade338, de modo que o consenso339 exige que todas elas sejam efetivamente
validadas e aceitas pelo interlocutor.
A importância do reconhecimento da forma como a racionalidade estrutura tais
pretensões de validade se mostra porque elas permeariam qualquer tipo de prática discursiva,
e, em alguns níveis, estão presentes de forma pressuposta no discurso que tem alguma
pretensão.
Assim, a ética do discurso torna-se indissociável das práticas discursivas voltadas ao
consenso e à coordenação da ação, desde que ausentes uma proposta perlocucionárias, isto
é, que a expressão de algo efetivamente tenha o propósito de estabelecer essa pretensão de
validade sobre esse objeto.
E é essa racionalidade comunicativa, que permeará o Direito e a Democracia,
enquanto práticas estruturadas a partir do discurso, e, embora estruturadas de maneira
formal, com regras formais de validade, como se utilizam do discurso, transportam para
dentro de seus sistemas esse efeito ético intrínseco ao discurso com propósito comunicativo.
Assim, tais sistemas possibilitam a construção de consenso e da coordenação da ação,
elementos que ao receber a diversidade de pessoas alocadas em diferentes partes dos
territórios sendo incorporados nos centros de discussão democrática, ainda que após lutas e
reivindicações, se retroalimentam em uma abertura à participação democrática dos grupos
sociais historicamente excluídos.
Essas questões se cruzam e se potencializam no mundo vivido, e a compreensão do
mundo da vida merece um aprofundamento em razão da capacidade de apreensão que tal
categoria traz relativamente aos elementos que influem a questão habitacional, que, à parte
dos sistemas econômico, financeiro, jurídico, ou outros envolvidos, representa elemento
central e existencial para que uma pessoa se desenvolva de forma plena, cultural e
simbolicamente.

3.2 Cidadania e Democracia no Brasil: impactos teóricos da fratura social

338
Já a veracidade diz respeito à enunciação de um determinado estado interno, ao passo que a pretensão de
veracidade veicula que determinado enunciado corresponde efetivamente a esse estado subjetivo. (Cf.
Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 1: Racionalidade da ação e racionalização social, 2016, p. 109).
339
Cf. Dutra, Razão e consenso em Habermas: a teoria discursiva da verdade, da moral, do direito e da
biotecnologia, 2005, p. 53.
127

3.2.1 Algumas noções de cidadania

A democracia sugere que haverá uma comunidade de pessoas diversas, pois envolve
e estimula a convivência da pluralidade de ideias. E o conceito de cidadania guarda estritas
relações com a democracia, tendo em vista que é entendida como a qualidade daquelas
pessoas que estão em uma comunidade e que terão o poder de influir nas decisões, votar e
participar do processo democrático de produção da vontade política.
Ademais, o próprio radical do vocábulo ‘cidadania’ sugere conexão entre habitar a
cidade e exercê-la. E isso é importante de ser ressaltado.
Contudo, a relação entre essas ideias vai além da existência desse radical comum,
afinal, a vida nas cidades, os encontros que a cidade promove faz com que se tome ciência
das necessidades que passa a poder ser vocalizadas, e geram reivindicações que se
organizam.
Sua noção começa a ser formada nas cidades-estados gregas, em que também começa
a surgir uma ideia de democracia, ainda que muito restrita. 340
A ideia da cidadania percorre um longo caminho, mas tem em sua origem a conexão
com a moradia nas cidades. Cidadão(ã), originalmente, é a qualidade daquele(a) que pertence
à cidade.
O conceito se desenvolve de forma bastante ampla com as reivindicações geradas
pelas revoluções burguesas, concepções que se limitam aos proprietários, conforme se
estabiliza o domínio dessa classe social. E dentro desse contexto, surgem visões críticas
marxistas que apontam para a insuficiência da garantia de direitos individuais e
proprietários.341
E em Hanna Arendt também se vê a ideia de que a cidadania está intimamente
conectada com a aquisição de direitos:

O homem do século XX se tomou tão emancipado da natureza como o homem do século XVIII se
emancipou da história. A história e a natureza tornaram-se, ambas, alheias a nós, no sentido de que a
essência do homem já não pode ser compreendida em termos de uma nem de outra. Por outro lado, a
humanidade, que para o século XVIII, na terminologia kantiana, não passava de uma ideia reguladora,
tomou-se hoje de fato inelutável. Esta nova situação, na qual a "humanidade" assumiu de fato um
papel antes atribuído à natureza ou à história, significaria nesse contexto que o direito de ter direitos,
ou o direito de cada indivíduo de pertencer à humanidade, deveria ser garantido pela própria
humanidade.342

340
Cf. Manzini-Covre, O que é cidadania, 2002, p. 18-19.
341
Cf. Manzini-Covre, O que é cidadania, 2002, p. 37-38.
342
Arendt, Origens do totalitarismo, 1989, p. 332.
128

Essa concepção de cidadania como o “direito de ter direitos” decorre da percepção


de que o sistema organizacional tem a capacidade de negar uma proteção jurídica a certos
indivíduos, colocando-os em uma categoria separada da sociedade dos cidadãos.
A filósofa cria essa definição ao fazer a análise de sistemas autoritários, percebendo
que a manipulação das definições de cidadania e do acesso diferenciado aos direitos pode
legitimar juridicamente o genocídio e a violência contra parte da população.
Também é possível perceber que Milton Santos, ao problematizar a ideia de
cidadania, aponta sua tensão com o sistema capitalista, percebendo que levá-la a sério
permitiria que o cidadão fosse investido com a “força de se ver respeitado contra a força”.343
Por sua vez, o historiador José Murilo de Carvalho traça o caminho da cidadania no
Brasil, utilizando esse conceito, para percorrer a história brasileira e analisar seus
acontecimentos, destacando que ela se desdobra nos direitos civis, políticos e sociais, apenas
compondo o grupo de cidadãos plenos aqueles que possuíssem essas três categorias de
direitos.344
Assim, José Murilo de Carvalho passa a identificar as formas de participação política
da população brasileira, bem como os direitos civis e sociais que eram garantidos às pessoas.
De início é possível perceber que o passado projeta diversas sombras sobre o presente
democrático, uma vez que se ressalta a influência e o peso da escravização 345 de pessoas
durante séculos no país, e a estruturação da grande propriedade, que impacta não somente a
dependência do sistema econômico, como determinou o analfabetismo e ausência de
incorporação dessas pessoas após a abolição.
E, muito embora a história brasileira esteja permeada por um incremento bastante
lento e gradual da população na participação política do país, verifica-se que alguns
subterfúgios, como a renda ou a proibição do voto aos analfabetos representou uma
supressão da participação política de grande parte da população, notadamente com altos
índices de analfabetismo346.
Assim, ainda que conquistas aparentemente equiparassem cidadãos ricos e pobres, o

343
Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 19.
344
Cf. Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 9.
345
Cf. Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 17-18.
346
É possível perceber, por exemplo, que até os anos 1950, mais de 50% da população era analfabeta e, nos
anos 1980, à época da promulgação da Constituição cerca de 20% a 25% ainda eram analfabetos,
resultando na supressão de votos de parcela considerável da população por um defeito de educação cujas
consequências são atreladas ao indivíduo que não teve acesso a uma educação (cf. Braga; Mazzeu, O
analfabetismo no brasil: lições da história; 2017.).
129

acesso concreto deles a alguns serviços públicos como a educação, acabava por restringir na
prática o exercício de alguns direitos.
Importante perceber que a própria deficiência educacional que resultou em uma
persistentemente alta taxa de analfabetismo representa, por si só, o ataque a uma das
dimensões existenciais da cidadania, tendo em vista que o próprio acesso ao mundo da leitura
e da comunidade, sendo parcial a sua participação na própria cultura de seu povo.
A supressão da participação política de parcelas da população foi instrumento de
diversos Estados pelo mundo para garantir, mesmo sob a égide de um governo democrático
e com a retórica da inclusão, a segregação de parcelas indesejadas da população.
O pesquisador James Holston anota como essa sistemática se deu, citando exemplos
do caso da França e dos EUA, em que haveria uma distribuição diferenciada de direitos,
segundo diversas estratégias, contrapondo ao caso brasileiro, em que haveria uma cidadania
“universalmente includente e via de regra desigualitária” 347. Ou seja, segundo o autor o
Brasil incluía facilmente todos como cidadãos, porém mantinha na sociedade diferentes
distribuição de direitos.
Nos exemplos citados pelo autor, na França e no EUA não havia inclusão como
cidadãos, mas também havia direitos desiguais. Contudo, na França 348, por exemplo, havia
barreiras à incorporação de parcelas da população como cidadãos, citando o caso de judeus,
ou mesmo estabelecendo critérios práticos que impediam o exercício da participação
política, como critérios de riqueza, gênero e capacidade.
Já os EUA 349 usavam critérios raciais para impedir o acesso a grupos como os
indígenas, os escravizados e os negros livres.
Já no Brasil, houve uma aparente integração de todas as pessoas, independentemente
de raça ou credo na sociedade como cidadãos, contudo isso não resultava em acesso igual a
direitos, diferenciação essa que se solidificará e será reproduzida socialmente, bem como
trará consequências simbólicas, sendo introjetada nas falas e no ideário nacional.
O impacto das restrições práticas à cidadania política, trazendo uma dupla exclusão,
é descrita por James Hoslton:

Assim, a exclusão de massa por meio do analfabetismo de massa também reflete o fracasso do ensino
público como forma de construir um corpo de cidadãos bem informado. Até mesmo indica um motivo
para negligenciar essa forma fundamental de se chegar a uma maior igualdade entre os cidadãos, algo

347
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 64.
348
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 72.
349
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 83.
130

já aceito pelas elites governantes da Europa e da América do Norte. 350


Apenas após 1988, com a Constituição Cidadã, houve a retirada dessa restrição ao
voto dos analfabetos. Além disso, José Murilo de Carvalho observou 351 que em alguns
períodos da história do Brasil, notadamente na Era Vargas, houve uma dissociação da
cidadania política dos direitos civis e sociais.
O historiador relata avanços na previsão de serviços públicos e de direitos sociais,
destacando a proteção dos direitos trabalhistas, mas sem idêntico avanço na participação
política. Ocorria uma dissociação entre a previsão de direitos sociais para o povo, com uma
melhoria da sua qualidade de vida e a efetiva participação política, deixada para segundo
plano. Assim, ao mesmo tempo em que se previam melhorias para os direitos sociais, havia
uma repressão à cidadania política.
Dessa forma, é possível perceber a forte relação entre a cidadania, que pode ser
desdobrada nas dimensões política, civil e social, e a cidade, território em que gravitará a
prestação dos serviços públicos, bem como a dificuldade histórica brasileira, tendo em vista
as sombras que o passado projeta, determinando a paisagem e a distribuição dos territórios.

3.2.2 Cidade e cidadania

A cidadania parece proliferar e ser catalisada nas cidades, frutificando e crescendo a


partir dos encontros e da diversidade, do pluralismo.
A ideia de cidadania transcende sua noção política, pois partindo da participação
política, retomam-se as condições materiais para seu exercício, o que a conecta com uma
dimensão existencial e material, bem como com a ideia de dignidade da pessoa que pertence
à humanidade.
Nestes termos, o para que um Estado possa receber o qualificativo de democrático é
indispensável que as pessoas a ele submetidas tenham garantidos alguns direitos
fundamentais. O próprio acesso a esses direitos é o caractere definidor da cidadania.
E é na cidade que se percebe a confluência (ou supressão) dos direitos associados à
cidadania, sendo nesse território que a pessoa estabelece e vive sua vida, a sua cidadania e o
seu acesso à comunidade, à cultura e aos benefícios da vida em sociedade.
Assim, a construção histórica da cidadania, que em um primeiro momento
corresponde à qualificação para participação política estrita, vem se expandindo, para

350
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 146.
351
Cf. Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 110.
131

abarcar o próprio pertencimento à sociedade humana, que sendo qualificada de forma


recíproca e intersubjetiva, abarcando a participação e os seus pressupostos materiais.
A abertura e o pertencimento se tornam condições de um Estado de Direito, ao
mesmo tempo em que é a garantia dessa sociedade que confere a cidadania ao indivíduo.
É a participação cidadã, a valorização do indivíduo, com a garantia dos direitos
fundamentais essenciais que passam a integrar o conceito de cidadania, que incorpora tais
elementos, já que a agência política que ele permite exige esse sistema de proteção e de
garantias da pessoa.
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu a cidadania como um dos fundamentos
da República, em seu artigo 1º, ao lado da dignidade da pessoa humana. A cidadania é
associada com a ideia de nacionalidade e de participação política dos cidadãos, embora o
conceito se alinhe à ideia de Hannah Arendt, isto é, seja mais amplo e abrangente, do que a
simples e formal participação política.
A cidadania também remete à autonomia dos indivíduos, com um sentido mesmo
emancipatório, pois, substancialmente, depende de uma garantia de direitos fundamentais
essenciais para uma participação política consciente e que tenha a capacidade de interferir
nas decisões e rumos do Estado. Assim, dada a inter-relação dos direitos fundamentais, uma
base existencial é indissociável de uma participação política qualificada.
Trata-se de conceito que faz uma conexão entre a dignidade da pessoa humana,
respeitada no indivíduo, e a democracia. A cidadania é que qualifica a pessoa em uma
sociedade democrática com a sua dignidade respeitada e garantida.
O conceito de cidadania se desdobra, implicando a presença de direitos civis,
políticos e sociais, de forma que a parcial garantia de qualquer desses direitos, faz surgir uma
cidadania incompleta.352 E essa perspectiva demonstra a importância, de um lado, das
garantias fundamentais básicas e do mínimo existencial, de um lado, e centralidade da
participação política, tanto para o Estado brasileiro estruturado pela Constituição, mas
também para um desenvolvimento completo do indivíduo.
O geógrafo Milton Santos salienta a importância e a relação entre o território e a
cidadania:

É impossível imaginar uma cidadania concreta que prescinda do componente territorial. Vimos, já,
que o valor do indivíduo depende do lugar em que está e que, desse modo, a igualdade dos cidadãos
supõe, para todos, uma acessibilidade semelhante aos bens e serviços, sem os quais a vida não será

352
Cf. Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2016, p. 9.
132

vivida com aquele mínimo de dignidade que se impõe.353


Paulo Cesar Endo confirma essa interpenetração entre os cidadãos e os territórios que
habitam, pois “É na constante flutuação pelos territórios da cidade que os diferentes papéis
nos quais o sujeito se implica, ganham densidade, na necessária mutualidade inerente a
qualquer espaço coletivo”.354
Assim, tanto as pessoas descrevem suas relações na produção territorial, mas também
a forma segregada em que os espaços se formam e como se realizam, implicam diretamente
na pessoa desses indivíduos. Se influenciam mutuamente, pois “A cidade é o espelho do
sujeito”.355
Assim, parte das disposições que se mostram territorialmente se inscrevem no corpo,
assim, os quais, indesejados, são expulsos e segregados nas periferias.
Diante disso, se percebe que a política e a democracia são elementos que se impõem
nessa valorização da pessoa e nesse exercício da cidadania. A vida nas cidades, e os
movimentos de reivindicação, parecem pulsar essas necessidades, de tempos em tempos,
evidenciando a necessidade de amplificar e trazer validade às vozes dos moradores da
cidade, transcendendo as relações simplesmente pelo viés da mercadoria, ou do interesse
pessoal.
Leonardo Avritzer apresenta que a forma mercadoria é um elemento alienante, que
impede que o trabalhador conheça as etapas da sua produção, o que dificulta sua
compreensão da relação entre essa produção e a política.356
A importância da pessoa e de suas relações se transborda na reivindicação do direito
à cidade, de intervenção nos processos de criação e transformação das cidades, o que faz
com que essa participação fortaleça a autonomia das pessoas e de suas relações,
estabelecendo uma reciprocidade, que fortalece também os mecanismos utilizados para as
reivindicações e debates sobre a cidade, isto é, vitalizando a cidadania.
O exercício da cidadania e dos direitos a ela vinculados permite que as pessoas se
conectem e reivindiquem a cidade, bem como essa reivindicação também fortalece o senso
de democracia, cidadania e comunidade.
Assim, observar a democracia brasileira, instituída de forma representativa, o que

353
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 196.
354
Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 59.
355
Endo, A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, 2005, p. 59.
356
Cf. Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática, 1996, p.
35.
133

traz ao menos a forma democrática ao Estado brasileiro, percebe-se que tem certa limitação
a participação das pessoas na produção e legitimação do governo, pelo voto.
Nesse aspecto, Leonardo Avritzer aponta que a democracia não se limita aos meios
tradicionais, se reproduzindo por meio deles - a exemplo dos partidos políticos, das eleições
periódicas, do exercício do direito ao voto -, mas também por meios mais amplos de
participação política - a exemplo das atividades de entidades, sindicatos, associações e
reprodução da solidariedade social. Assim, a democracia, para Leonardo Avritzer “é
estruturalmente dependente das redes de comunicação existentes na esfera pública”,357
apontando como os debates e a participação da sociedade também são importantes para a
produção do poder.
A participação ativa das pessoas na democracia instaura uma série de potencialidades
e de debates, mas também, de certa forma, produz uma dificuldade de internalizar, dentro da
burocracia estatal, a efetivação da vontade de cidadãos(ãs) mobilizados pela efetividade de
seus direitos.
Desse modo, a questão de habitar uma cidade pressupõe a existência de relações
sociais e comunitárias que evocam a ideia de cidadania e de participação política. E as
reivindicações pelo direito à cidade trazem implícita a ânsia pela participação e pela garantia
de participação e de garantia desses direitos, que também surge nos anseios da população
por garantias de propriedade e de regularização fundiária, por meio da casa própria.
E, diante da percepção da conexão entre tais conceitos, se mostra necessário
aprofundar a compreensão deles, e verificar o incremento da eficácia dos direitos
fundamentais e sua relação com as reivindicações democráticas e lutas políticas, bem como
transformações advindas das conexões estabelecidas pelos debates públicos e pela atuação
política.

3.2.3 Fraturas e contradições da democracia brasileira

Embora já se tenha trazido alguns indicadores sociais e dados que evidenciam a


profunda desigualdade da sociedade brasileira, é necessário retomar a ideia de fratura social,
pois ela traz reflexos que ultrapassam a simples constatação de desigualdade, mas refletem
e interferem nos sistemas que operam nessa comunidade, interferindo em seus direitos, na
participação popular e, finalmente, na cidadania. É uma cisão que atravessa os subsistemas

357
Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática, 1996, p. 21.
134

sociais e revela a violência e o trauma envolvidos nessa diferenciação social.


A desigualdade social brasileira, que se vê inscrita e produzida no espaço urbano, se
inscreve territorialmente, e o território gera influência sobre os direitos que são garantidos a
seus moradores, que, por sua vez, implica o grau de acesso aos serviços públicos,
inscrevendo uma verdadeira fratura nas diversas dimensões sociais: nos direitos, na
cidadania, na produção do espaço urbano. Assim, é um dado que consegue transcender a
análise de determinado marcador social, tornando impossível saber qual desses elementos é
determinante ou determinado pelos outros na produção e manutenção da desigualdade.
É possível perceber que a moradia em uma determinada localidade precária é
determinada pela baixa renda da pessoa, e, para vários grupos, decorre de desigualdades
historicamente presentes, pela ausência de integração de camadas sociais. Por sua vez, tais
localidades, recebem menos recursos públicos e têm menos acesso aos bens e equipamentos
públicos, cobrando de seus moradores um desproporcional esforço para participação nos
benefícios da vida urbana.
Por sua vez, a moradia em uma localidade em que escasseiam serviços públicos de
transporte, saúde e educação, solidificam ainda mais essa desigualdade, revelando
implicações recíprocas entre as diversas formas em que a desigualdade se apresenta.
Milton Santos aponta para a existência de graus 358 de cidadania no terceiro mundo,
em problematização sobre o que representa ser cidadão e, ao olhar o Brasil e fazer o
questionamento da cidadania no País.
Além disso, Milton Santos reforça a importância da análise territorial, pois considera
que “O cidadão é o indivíduo num lugar. A República somente será realmente democrática
quando considerar todos os cidadãos como iguais, independentemente do lugar onde
estejam”.359
A localização e o tipo das habitações interferem na percepção de valor das pessoas,
bem como na alocação de estimas sociais àquela comunidade e seus moradores.
Nas palavras de Milton Santos, “As condições existentes nesta ou naquela região
determinam essa desigualdade no valor de cada pessoa, tais distorções contribuindo para que
o homem passe literalmente a valer em função do lugar onde vive”360.
Assim, se percebe que a própria ideia de cidadania não pode ser apreendida de forma

358
Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 24.
359
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 151.
360
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 140.
135

desconectada do território ocupado pelo indivíduo, e se mostra necessário analisar as


dimensões da cidadania relacionadas com os direitos e com o respeito estatal, e até mesmo
com a submissão à violência. Para o geógrafo, parte da ideologia que vem atacando e
eliminando do ideário popular a noção de cidadania é a visão neoliberal que transforma o
cidadão em mero consumidor de serviços públicos, conforme ensinamentos liberais. “Em
lugar do cidadão formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usuário.”361
Essa separação semântica imposta a partir da localidade, impondo diferenciações
territoriais com base na moradia pode ser percebida até mesmo nas dependências de um
bairro periférico, em que há lotes que foram adquiridos pelos trabalhadores e outros que
foram ocupados, de forma individual ou por meio de movimentos sociais.
Não é raro que, mesmo estando no mesmo bairro, com necessidades similares, exista
oposição ideológica que se oriunda da forma como foi adquirida e construída aquela
moradia, de modo que o comprador do lote busca demonstrar diferenciação contra aqueles
que ocuparam as terras sem terem passado pelo mercado habitacional, revelando uma
absorção do valor da casa como mercadoria, e não como direito, bem como do fato de ser
elemento que o distingue de outro trabalhador.
Assim, também no aspecto simbólico surge uma dicotomia, persistente na classe
trabalhadora, associando um deles, que constrói a casa de alvenaria, com o “trabalhador”, ao
passo que o morador da favela, das ocupações, seria o “marginal”, “vagabundo” ou
“bandido”. Renova-se e se reproduz o estigma das habitações populares, mesmo em bairros
periféricos.362
Assim, percebe-se que a indiferenciação das casas periféricas gera certo mal-estar
nos trabalhadores entrevistados por James Holston, os quais adquiriram através do mercado
seus lotes, evidenciando como tal categoria guarda relevância para a construção da
identidade e da autoestima dos moradores, que muitas vezes não enxergam nesse outro que
ocupou o seu lote, um igual, mas um outro, reproduzindo uma lógica que também os enxerga
e os coloca em uma situação de exclusão.
As percepções linguísticas de termos como morador, cidadão, usuário, consumidor,
invasor, ocupante, entre outras, não representam uma mera preocupação preciosista com os

361
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 25.
362
A relação entre esses embates que opõe a ideia de ocupação e compra da moradia, e as consequências para
a identidade podem ser vistas em Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da
modernidade no Brasil, 2013, p. 238-239.
136

usos da linguagem, de significados similares e que podem ser usadas indistintamente. Ao


contrário, desvelam e produzem um mundo partilhado de valores entre os que utilizam
determinados vocábulos em comum.
Trata-se de palavras que, de um lado, naturalizam e estabelecem a mercadoria como
elemento único de mediação social, afinal o que justifica e medeia a atuação estatal passa a
ser vista como uma relação mercantil. De outro, desloca o valor intrínseco do indivíduo-
cidadão para o indivíduo-consumidor.
Tal deslocamento de valor associa de modo sutil o respeito e os direitos civis à
produção e à posição de consumo dentro do mercado. Trata-se de sintomas que evidenciam
como o sistema econômico passa a influenciar e colonizar o mundo da vida363, estabelecendo
a supremacia dos valores econômicos.
Perceba-se que tal ideário também afeta a moradia, tendo em vista que a integração
do indivíduo com o território passará pela aquisição do bem de consumo supremo, a casa
própria. A terra e a moradia tornadas mercadoria, também são elementos da cidadania que
são transmutados em meros bens de consumo.
A partir da extrapolação dessa ideia, temos a contribuição de David Harvey, que
aponta para a apropriação pelo mercado de comuns urbanos364, isto é, dos elementos
simbólicos de determinado bairro, sua calma, boa vizinhança, riquezas e bens culturais,
criados exatamente pela vida de determinadas pessoas naquela localidade.
Dentro dessa perspectiva neoliberal, o indivíduo é apenas respeitado como
consumidor, uma das peças do mercado, e não mais por ser uma pessoa, partícipe daquela
comunidade.
Para Milton Santos, até mesmo a sensibilidade e as relações solidárias se desfazem
diante dessa inexorabilidade do consumo. Em suas palavras:

A glorificação do consumo acompanha-se da diminuição gradativa de outras sensibilidades, como a


noção de individualidade, que, aliás, constitui um dos alicerces da cidadania. Enquanto constrói e
alimenta um individualismo feroz e sem fronteiras, o consumo contribui ao aniquilamento da

363
O mundo da vida é conceito habermasiano, que será mais aprofundado adiante, porém diz respeito ao pano
de fundo pressuposto em uma comunicação consensual, de modo que a tecnização ou colonização do
mundo da vida ocorre a partir da expansão de um dos meios de um dos subsistemas, como o dinheiro, por
exemplo, que acaba substituindo e suprimindo a comunicação, influenciando ações coordenadas de forma
não-comunicativa (Cf. Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão funcionalista,
2016, p. 509.).
364
Percebe-se a crítica de Harvey, sintetizada na seguinte citação: “A urbanização nada mais é do que a
incessante produção de um comum urbano (ou sua forma espectral de espaços e bens públicos) e sua eterna
apropriação e destruição por interesses privados” (Harvey, Cidades rebeldes. Do Direito à cidade à
revolução urbana, 2014, p. 156).
137

personalidade, sem a qual o homem não se reconhece como distinto, a partir da igualdade entre
todos.365
Com isso, o geógrafo percebe, a possibilidade de modulação da cidadania,
subordinando-a ao mercado faz com que surja uma cidadania mutilada366, pois não há uma
garantia estatal para que haja igualdade entre as pessoas, de forma que haveria categorias
distintas, como os trabalhadores rurais e os urbanos, bem como diante da falta de proteção
das pessoas diante dos poderes econômicos.
Assim, ao retomar a ideia das dicotomias e do “outro” já abordada, pode-se perceber
que, tais divisões trazem consequências para a aplicação do processo democrático, já que
haverá oposição ou divergência de interesses entre os as partes em que se dividiu a sociedade.
Para James Holston, essas sociedades em que há maior desigualdade colocam os
cidadãos em combate e oposição, criando um emaranhado. Nas suas palavras:

O resultado é um emaranhado entre a democracia e seus opositores em que novos tipos de cidadãos
surgem para expandir a cidadania democrática, ao mesmo tempo que novas formas de violência e
exclusão a corroem. 367
A manutenção de diferenças práticas entre os cidadãos, ao mesmo tempo em que
formal e retoricamente se garante uma igualdade, acaba por criar uma disjunção no conceito
de cidadania, de forma que o pesquisador qualifica dois tipos de cidadania que seriam
oriundos desse processo: a cidadania entrincheirada e a insurgente.
De modo bastante sintético, é possível associar o entrincheiramento com a
manutenção do Estado de coisas, com um conservadorismo das divisões sociais como estão
postas, ao passo que a cidadania insurgente representaria exatamente a reivindicação prática
das promessas retóricas por aqueles brasileiros que são considerados legalmente cidadãos,
mas não têm acessos aos direitos e privilégios das elites.
O entrincheiramento e a insurgência se opõem em táticas e interesses, já que as
reivindicações por direitos iguais podem afetar certos privilégios que persistem na sociedade
brasileira.
Nas palavras de Holston, cidadania entrincheirada é:

(...) uma cidadania que administra as diferenças sociais legalizando-as de maneiras que legitimam e
reproduzem a desigualdade. A cidadania brasileira se caracteriza, além disso, pela sobrevivência de
seu regime de privilégios legalizados e desigualdades legitimadas.368

365
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 49.
366
Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 37-39.
367
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 14.
368
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 15.
138

A concepção do pesquisador Holston permite avançar sobre a percepção de que há


uma fratura social. Essa a percepção de que são sólidas as estruturas que fundam a
desigualdade brasileira, historicamente consistentes, espraiadas pelo território e pelo ideário
dos habitantes, com elementos simbólicos que atravessam as classes e os próprios interesses
dos indivíduos que as veiculam.
O nó da terra 369, parece ficar mais e mais intrincado com o passar do tempo e com a
expansão e aumento da complexidade das cidades, que inscrevem na paisagem, em concreto
a realidade da desigualdade. A extensão e a profundidade do emaranhado colocam desafios
à movimentação da reflexão.
E é nesse ponto que a concepção de cidadanias trazida por Holston permite avançar
e abrir poros para que essas estruturas de desigualdade possam ser infiltradas por outras
ideias, pois, é exatamente no cerne dessa desigualdade, que a insurgência desponta,
novamente invocando as utopias do direito à cidade, possibilitando aos portadores de uma
cidadania subalterna, um levante e uma abertura de atuação.
Assim, esse nó não pode ser encarado de forma simplesmente estática e fatalista, mas
como a percepção que o emaranhado cria uma tensão, e os interesses subalternos e sua
reivindicação trazem um movimento, e ele é veiculado pela reivindicação de direitos.

3.2.4 O sentido da moradia, da propriedade e seus aspectos simbólicos

O ponto central do emaranhado e do nó formado pela terra é ocupado pela moradia.


Ela é essencial para a reprodução da vida, e, em razão da sua escassez, se torna um item dos
principais objetos de desejo da maior parte das pessoas.
Dessa forma, a efetivação de uma garantia que deveria ser básica, torna-se um objeto
de distinção social e de hierarquização, o que se mostra como um obstáculo à primazia do
valor de uso sobre o valor de troca370 dos imóveis que serão habitados.
A garantia da moradia adequada por meio do aluguel tem um peso no orçamento das

369
Nó da terra é o nome dado pela professora Ermínia Maricato ao problema da terra no brasil, que forma um
emaranhado ou uma trama que envolve as diversas desigualdades sociais, remetendo historicamente à
origem da desigualdade, centralizando nela a origem e o principal entrave à resolução dos problemas de
desigualdade social. (Cf. Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 183. e Cf. Maricato,
Brasil, cidades: Alternativas para a crise urbana, 2013, p. 94).
370
O valor de uso e de troca das mercadorias remete à distinção elaborada por Karl Marx que percebeu nas
mercadorias um caráter duplo, isto é, um que corresponde à sua natureza e remete à sua utilidade e outra
que abstrai dessas características, generalizando um valor de troca, que permite sua comercialização no
mercado e seu pareamento com outras mercadorias de naturezas distintas (Cf. Marx, O capital: crítica da
economia política: livro I: o processo de produção do capital, 2017, ps. 114-115).
139

pessoas, e pode, a depender das condições de segurança econômica da pessoa, converter-se


em inadequada, caso ocorra uma situação de desemprego, ou uma redução dos ganhos de
trabalhadores informais.
De outro lado, a partir da garantia da moradia, de maneira ampla e adequada, se pode
chegar à garantia de outros direitos, à inserção do indivíduo na cidade, observando sua
presença não de forma atomizada, mas em permanente relação com seu entorno.
Assim, o foco na moradia – e, com isso, na sua garantia, nos serviços públicos, e,
também, no conjunto do seu entorno - tem uma capacidade e efeitos possivelmente virtuosos,
o que faz com que ela retorne ao ponto central da investigação.
E é necessário observar que, embora anteriormente tenha-se buscado distinguir, de
forma rigorosa a necessidade humana positivada juridicamente como direito à moradia, e o
direito de propriedade (da sua moradia), que é centralizado no imaginário e nas políticas
públicas mais extensas que envolveram o tema.
Assim, certamente não haverá disputas em relação à conclusão de que a propriedade
da casa não é imprescindível à moradia adequada, e às políticas públicas que visem essa
proteção como objeto.
Contudo, a existência da confusão e da necessidade de distinção, bem como a
existência de “sonhos” da casa própria, veiculando não a moradia, mas a estabilidade e a
propriedade. O imaginário que permeia a propriedade da casa em que a família pode morar
é reveladora do histórico que atravessa a classe trabalhadora brasileira, bem como evidencia
as políticas públicas e a atuação estatal.
A questão da propriedade é que em um país fraturado, em que poucos têm acesso ao
direito, aos direitos e à justiça, a propriedade foi o signo que identificava os detentores de
direitos.
Recorde-se, ainda, que nos anos 1945 e 1946, em que ocorreu despejos em massa em
razão do congelamento do preço dos aluguéis – medida que supostamente deveria beneficiar
os trabalhadores – o que possivelmente marcou as locações e essa modalidade de moradia
como insegura pela população –, já que até o final daquela década, cerca de 10% a 15% da
população foi despejada371.
Ter uma propriedade regularizada significa, imediatamente, estar inserido nesse

371
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 106.
140

âmbito oficial da cidade, e, por mais precarizada, ou com um entorno esvaziado de cidade,
por estar inserida nas suas franjas, concede um estado diferenciado a seu detentor perante o
direito.
Essa percepção não advém da hermenêutica das normas civis e constitucionais, para
as quais a dignidade da pessoa humana é reconhecida para todos, e a moradia adequada um
direito fundamental; mas sim da construção histórica das cidades, e do imaginário das
pessoas, percebendo na propriedade o direito que efetivamente possibilita o reconhecimento
e a proteção do Estado, inclusive com o peso de sua violência.
Vista dessa forma, a propriedade, logicamente dispensável para a garantia da
moradia, torna-se condição para a segurança da posse (um dos componentes da moradia
adequada), tendo em vista a distinção de cidadania entre os brasileiros não-proprietários, e a
dificuldade em garantir-lhes direitos. Mais que isso, garantir tais direitos com estabilidade e
perspectiva de perpetuidade.
Assim, após séculos de despejos e de escassez ou supressão de políticas públicas,
com sucessivas ondas de austeridade, a criação de uma política habitacional não consegue
assegurar aos seus destinatários a mesma tranquilidade e segurança de posse advinda de sua
“casa própria”.
A importância dessa segurança é notada inclusive na literatura. A escritora Virgínia
Woolf, ao meditar sobre as razões pelas quais haveria poucas mulheres escritoras
contemporâneas ou do passado no ensaio um teto todo seu, chega à conclusão da centralidade
da moradia, bem como da segurança que a propriedade e a estabilidade desse patrimônio
poderiam permitir, primeiro, alguma tranquilidade e tempo, e de outro, a possibilidade de
exploração de dimensões artísticas do ser, excluindo-se de uma exploração:

A liberdade intelectual depende de coisas materiais. A poesia depende da liberdade intelectual. E as


mulheres sempre foram pobres, não nos últimos duzentos anos, mas desde o começo dos tempos. As
mulheres possuem menos liberdade intelectual do que os filhos dos escravos atenienses. As mulheres,
portanto, não têm a menor chance de escrever poesia. Foi por isso que dei tanta ênfase no dinheiro e
em um quarto só seu.372
O espaço próprio seria indispensável ao alcance de outras liberdades, além da de ser
trabalhador, isto é, de alcançar aspectos artísticos e uma dimensão poética, além do existir.
A necessidade não é idêntica ao conceito jurídico de propriedade, mas à de poder se
assenhorar do espaço, e das condições mínimas de habitabilidade e de vida digna.

372
Wolf, Um teto todo seu, 2022, p. 200.
141

Ocorre que a segurança desse espaço somente tem sido vista em larga escala sob o
manto da propriedade.
Outro aspecto que traz uma maior desejabilidade da propriedade é que a residência
também funciona como uma reserva de valor, uma poupança pertencente à pessoa,
justamente por ter um valor de troca mercantil, que além de possibilitar a moradia, ainda
traz segurança financeira. A casa própria garante segurança, além de habitacional, para outras
dimensões da vida, diante de outras necessidades urgentes.
Dessa forma, diante das eventualidades e riscos da vida, diante das inseguranças
diante do despejo ou urgências alimentares, a casa se mostra como um ponto de estabilidade
ao qual a família pode se ancorar e persistir, ainda que sob o custo da própria moradia, em
casos extremos, reforçando a casa própria como um sonho. Isso mostra como uma residência
de propriedade do morador na periferia, desabastecida de cidade, pode lhe parecer mais
desejável que um aluguel acessível em um local perfeitamente adequado.
O preço do aluguel não é estável, já que o Brasil experimentou hiperinflações, o
emprego também não, já que crises sucessivas fragilizam os direitos trabalhistas, e aos
proprietários são resguardadas ações e céleres despejos, com a previsão de amplos poderes
aos senhorios. A história econômica brasileira tem diversos episódios que demonstram e
reforçam a insegurança, instabilidade e temeridade oriunda da moradia de aluguel.
Assim, a locação ideal que garante a moradia adequada já é afetada pelas sombras
sociais e econômicas das crises vindouras, do desemprego e da mudança forçada para locais
menos adequados, mais apertados. Diante dessa ameaça, a propriedade surge como um ponto
de segurança e, portanto, de tranquilidade para o trabalhador.
E é como auxílio na aquisição da casa própria que o Programa Minha Casa Minha
Vida, que pode ser considerado o maior programa habitacional do País – não obstante ele
não seja imune a críticas, já que o programa tinha objetivo primordial de aquecer e estimular
a economia.
De um lado, a sedução da propriedade a torna desejável aos indivíduos, contudo a
elaboração de uma política pública que efetive, não a moradia, mas uma propriedade para
cada família encontra uma dificuldade operacional imensa, tornando-a lenta e ineficiente
como solução habitacional única e universal para a universalização da moradia.
Seria necessária a existência de diversas políticas públicas conjugadas, não somente
centradas na propriedade, mas com outras que possibilitem diretamente a moradia, sem a
garantia da propriedade, seja por locação ou cessão do uso, o que possibilitaria uma atuação
ágil e de maior expansão com vistas à universalização da moradia. De outro lado, poderia
142

haver políticas públicas que tenham por objetivo melhorar as condições de habitações
precárias, para que fossem alçadas à condição de moradias adequadas.
Ou seja, o enfrentamento do problema poderia receber múltiplas políticas públicas
coordenadas, conforme os graus necessários para incrementar e garantir a moradia
adequada, independentemente da lenta produção de novos imóveis.
Mas a política habitacional pela “casa própria” mantém sua primazia e, dessa forma,
se percebe que a propriedade cria um símbolo de ascensão social, de segurança, mas que de
certa forma também reforça o valor de troca dos imóveis, e se funda justamente na ideia de
que é o indivíduo quem deve cuidar da efetivação de seus direitos fundamentais por meio do
mercado, ou seja, de uma perspectiva individualista e não-reivindicatória dos direitos.
Nabil Bonduki, ao retomar o histórico das habitações dos trabalhadores, percebe que
esse fascínio pela “casa própria” se fortalece durante a era Vargas. A moradia é incluída no
discurso oficial, de forma que a propriedade da casa era o símbolo da valorização do
trabalhador e de seu sucesso, com o amparo governamental. 373
Na mesma época, deve-se recordar, que houve uma política de congelamento dos
aluguéis, o que trouxe como consequência um maior número de despejos e retomada dos
imóveis, inclusive com a utilização de subterfúgios ilegais. Essas consequências trouxeram
uma enorme fragilidade à posse dos locatários na década de 40, com os elevados despejos,
reforçando, também deste ponto de vista, a valorização da casa própria.
Esse sentimento de ascensão social da pessoa que tem sua casa própria é notado por
Nabil Bonduki: “Além de criar a ilusão do progresso econômico, contribuindo para a
estabilidade da ordem macropolítica, a habitação passou a ser considerada fundamento da
constituição moral da sociedade e do bom trabalhador, avesso a desejos e práticas
desviantes”.374
Essa propriedade passa a ter alta carga simbólica e conservadora. Passa, de um lado,
a mensagem de que o trabalho compensa e gera bons frutos, e ainda colocava o trabalhador
no status de proprietário, assim alcançando parcela de sua cidadania. E a associação entre
família e habitação reforçava os valores da família burguesa, cujos valores seriam inviáveis

373
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 83.
374
Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa
própria, 2004, p. 84.
143

diante da convivência que ocorria em cortiços.375


O fomento da casa própria como medida de viés conservador é destacado pelo
Ministro Roberto Campos na justificativa de criação do Sistema Financeiro de Habitação,
em 1964, que associa a propriedade privada da casa como um estímulo à estabilidade e à
ordem, já que o proprietário não se colocaria em problemas e arruaças.376
Nas palavras de James Holston, o proprietário passa a “pensar de forma responsável
sobre as consequências de suas ações porque naturalmente desejam deixar suas propriedades
para os descendentes e não querem que um comportamento irresponsável comprometa a sua
perpetuação”.377
O lar da família, uma associação simbólica entre o espaço físico habitado, apenas é
possível em uma casa individual, e não em locais “corruptos”, isto é, carregados de estigmas
sociais.378
Com isso, o próprio acesso à segurança e a garantia dos elementos básicos de
reprodução social, como a alimentação, a moradia, o vestuário, a saúde, não são
reivindicados, ou objeto de políticas públicas, mas são adquiridos pelo acesso à propriedade
através do mercado. Assim, tais bens não são universalmente garantidos como direitos pelo
Estado, mas alcançados de maneira desigual e condicionada pelo próprio indivíduo, através
do mercado, o que reforça a ideia de meritocracia e, pior, que o mérito é que qualificaria e
justificaria o direito.
E a “casa própria” garante a segurança do teto, mesmo diante do desemprego ou
outros riscos, garantindo alguma estabilidade de que as condições básicas de vida serão
conservadas.379
Porém, com a ausência de universalização dos direitos fundamentais, com a escassez
dos recursos e a seletividade na sua fruição, fica impossível afastar a incerteza ligada à
ausência de uma moradia própria.
Percebe-se, assim, a ausência de políticas públicas suficientes, o indivíduo isolado
tenta se resguardar e garantir da forma como consegue sua sobrevivência, os aspectos de sua

375
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 84.
376
Cf. Rodrigues, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 50.
377
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 163.
378
Cf. Bonduki, Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
casa própria, 2004, p. 84.
379
Cf. Rodriguez, Moradia nas cidades brasileiras, 2021, p. 49.
144

reprodução social, com a construção por força própria (autoconstrução), por exemplo.
Pode-se dizer que o desejo pela “casa própria” na verdade oculta o simples desejo
por segurança na garantia dos direitos fundamentais mais básicos, mas projetados na
propriedade, que no Brasil pertence àqueles que sempre tiveram os direitos, passa a ser vista
como uma forma ascensão de classe, e como fuga da insegurança causada pela ausência de
universalização do mínimo existencial, como a síntese da proteção pelo direito.
E mesmo com os vultosos recursos direcionados para o Programa Minha Casa
Minha Vida, por suas próprias limitações, tendo em vista o tempo e o custo de produção de
novos imóveis, não pode ter um atendimento universal, levando à seleção dos beneficiários
em sua menor faixa, de zero a três salários-mínimos, por meio de sorteios e de pagamentos
simbólicos, distribuindo moradias seletivamente.
Essas medidas, embora benéficas para aqueles que receberam o imóvel, não são
capazes de sanar o déficit habitacional, o que acaba por reforçar o desejo pela propriedade
do imóvel, e até mesmo uma passividade diante dessa política pública que segue a conta-
gotas.
O lado nefasto dos sorteios é que um número imenso de pessoas toma contato com a
existência da política pública – gerando a impressão de que o Estado está atuando pela
implementação de direitos fundamentais – com a participação no processo de escolha,
cadastro, com a expectativas a isso inerentes, resultando, ao final, numa pequena
porcentagem de pessoas efetivamente contempladas pelos benefícios decorrentes da política
pública, embora um número bem maior tenha sido comunicada de sua existência e tendo
reforçada o aspecto inexorável de suas situações, pois nem mesmo após acessar os cadastros
política pública habitacional, houve uma melhora na situação de sua moradia.
E é dessa forma que o imaginário da propriedade como segurança da moradia
adequada, ofusca outras formas de política pública, de modo que o desejo da população se
relaciona com as políticas públicas existentes, de regularização fundiária e de construção de
habitações – ambas necessárias, mas insuficientes – de modo que se reforçam mutuamente,
pois tais políticas fortalecem a centralidade da propriedade, trazendo de forma subjacente a
primazia do valor de troca, do imóvel como mercadoria, e alimentam esse desejo nas
pessoas, que têm nesse desejo expectativas mais amplas, mas que acabam sendo limitadas
pela dimensão mercadológica da habitação e dos direitos fundamentais.
Contudo, há outro fenômeno que emerge das políticas habitacionais ou descasos
habitacionais centrados na ocupação por meio de lotes periféricos e programas centrados na
aquisição de propriedades. Emergem símbolos e uma luta que subverte o caráter subalterno
145

imposto aos moradores periféricos, trazendo contradições às expectativas de


conservadorismo oriundos da personalidade proprietária.

3.2.5 O paradoxo da propriedade: conservadorismo e emancipação

Assim, mesmo após observar as válidas críticas à centralização das políticas públicas
em garantia da propriedade, seja pelo Programa Minha Casa, Minha Vida, bem como pela
forma de expansão das cidades, com o espraiamento das cidades, e com o estímulo aos
loteamentos afastados, inclusive com leniência relativamente aos irregulares, é perceptível
um processo emancipatório que emerge dessa política pública reputada até mesmo
conservadora e promovedora do conservadorismo de tornar os trabalhadores em
proprietários.
Essa passagem também insere a pessoa no sistema de direitos, pois para muitos
proletários, o terreno adquirido com dificuldades, o apartamento do Programa Minha Casa,
Minha Vida, representa um momento em que tais pessoas são encaradas pelo sistema jurídico
como portadores de direitos, que podem reivindicá-lo e passar a ter acesso ao sistema
jurídico.
Como já se abordou, a cisão existente na sociedade brasileira, que atravessa a renda,
o patrimônio, tem matiz racial, se revela no território; é comunicada ao sistema jurídico, que
a incorpora como uma diferenciação entre acesso a direitos e à justiça, criando uma
separação absoluta que vai atravessando as diversas dimensões existenciais e sistêmicas da
sociedade.
Essa separação cria a elite, entrincheirada dos lados privilegiados dos diversos
sistemas, portadora dos direitos e protegida pela violência estatal. Elite historicamente
formada pelos proprietários de terras.
Em um país como o Brasil, em que o direito à propriedade foi juridicamente separado
da posse, limitando380 a aquisição da propriedade, percebe-se a relevância histórica desse
estado de proprietário. A artificialidade dessa restrição jurídica é sintetizada por James
Holston: “depois de três séculos de colonização, o Brasil era uma terra sem povo e um povo
sem terra”.381
Assim, a propriedade do lote da residência do trabalhador, embora não o aproxime

380
Conforme já se explorou no capítulo 2.1.2, em que se realiza análise sobre a Lei de Terras de 1850, e as
técnicas de exclusão de negros e indígenas do direito à propriedade.
381
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 168.
146

da elite, em uma análise material, traz o imaginário de pertencer à classe brasileira que tem
seus direitos respeitados. Muitos, pela primeira vez, terão contato com a previsão de direitos
a partir dos direitos trabalhistas, conquistados na Era Vargas. E, subsequentemente, com a
aquisição desses lotes periféricos e, muitas vezes, informais. Assim, ressalvado o caráter
regressivo desse tipo de política pública e até mesmo prejudicial ao desenvolvimento da
cidade, tem-se uma situação inédita: os despossuídos, os trabalhadores explorados têm uma
propriedade, e a expectativa de proteção estatal, o que se difunde em esperanças de atravessar
o abismo, sendo recebido como cidadão.
Embora seja verdadeiro que a casa na periferia nunca foi concedida aos brasileiros,
mas sempre adquirida com parcelas significativas do trabalho, dificuldades e utilização dos
tempos de folga para a realização das obras de autoconstrução, o que se pode identificar
como um sobretrabalho, ou sobre-exploração, tendo em vista que uma necessidade básica
do trabalhador não é comportada em seu salário, mas imposta a ele ao custo de seu descanso.
Todavia, tal trabalho que resulta em uma melhoria de vida gera um empoderamento
no indivíduo, que, ainda que sob um viés ideológico conservador e individualista, pois
seguindo as regras do mercado, pagou o preço de sua propriedade, legitimando-o como
reivindicante de direitos, dos serviços necessários ao entorno, como asfalto, ligação de água
e luz, e a regularização.
Assim, em uma sociedade em que a perspectiva individualista predomina, o fato de
trabalhadores serem tangenciados pelos direitos opera com capacidade de emancipação e de
enfrentamento político, que pode culminar em organização e lutas sociais. Não se trata de
um caminho necessário ou natural, mas possível.
A relação virtuosa com a propriedade é percebida por James Holston, verificando que
da propriedade surge uma legitimidade civil, ao passo que a negação da propriedade a
impediria382, vendo nessa relação a possibilidade de reconhecimento intersubjetivo do outro
como um igual. Em suas palavras:

Dessa forma, os que detêm propriedades reconhecem uns aos outros como pessoas que lutam através
do mesmo processo de autorrealização. Eles respeitam os direitos de propriedade dos outros porque
desejam o mesmo respeito em retorno. Como resultado desse reconhecimento e respeito mútuos,
consideram uns aos outros como iguais.383
Se a pessoa que adquire a propriedade teria uma tendência a se alinhar ao

382
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 161.
383
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 162.
147

conservadorismo, um reconhecimento pela propriedade e pelo consumo dessa mercadoria


terra, para garantir suas conquistas, associadas ao seu sucesso e personalidade, também é
verdade que essa alteração lhe insere em um outro contexto social, com uma autoestima
reivindicatória.
A autoconstrução e a busca por melhores condições de vida inserem a pessoa em um
cotidiano de matiz político insurgente. Segundo James Holston as periferias e a vida nelas,
com busca de melhorias têm sido “eficazes na mobilização das classes trabalhadoras
brasileiras na luta por seus direitos de cidadania e no desenvolvimento de novas identidades
culturais”.384
E, nesse campo de construções simbólicas, também se mostra de extrema
importância a reivindicação do direito à cidade, e dos movimentos contestatórios urbanos. A
perspectiva de que há outras dimensões na moradia, que ela transcende a ideia de valor de
troca, tem o potencial de resgatar o aspecto humano da habitação, de necessidade básica que,
em última instância, não deveria ter submetida ao mercado a garantia de uma habitação
digna.
Assim, são trazidos outros elementos valorativos, além do capital, para os diálogos
sobre o urbano, como por exemplo, o afeto de certas pessoas por determinadas praças, modos
de viver na cidade.
A reivindicação dos direitos básicos também reforça que, embora a sociedade
mantenha o mercado e possa tornar em mercadoria uma certa qualidade de habitações, o
mínimo existencial não pode depender das regras de mercado ou estar sujeitos a crises ou ao
desemprego para ser garantido, por se tratar de um patamar mínimo para garantir a dignidade
das pessoas.
Ademais, essas outras dimensões da moradia e da cidade evocam encontros entre as
pessoas, e uma saída além da segurança individual ou de algumas famílias.
A reivindicação de direitos e os movimentos de contestação urbana representam uma
expressão política que promove a interação e uma saída comunitária para a questão urbana,
prenunciando o valor da democracia e da coordenação da ação coletiva, possibilitada pela
ação comunicativa das pessoas.

384
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 217.
148

3.2.6 Cidade, cidadania e moradia: entre ser, pertencer e habitar

É perceptível, portanto, a polivalência de sentidos que emergem das cidades e de suas


periferias. Representam ambiguidades, exclusões, mas igualmente trazem o gérmen da
cidadania brasileira, ancorada na propriedade, resguardando um pequeno pedaço de
propriedade.
E tal pedaço catalisa transformações na vida dos indivíduos que se inserem, quase à
força, nas cidades, produzindo suas casas e seus bairros, enunciando uma solidariedade e
aproximando, com as reivindicações, a cidade e o centro de si.
A periferia é produzida e ocupada de uma maneira dinâmica, atraindo e alcançando
a cidade. Ela prenuncia e exige que o entorno citadino se apresente. É polivalente
simbolicamente, pois contaminada por estigmas, sabendo-se que também representa um
ponto de apoio e de contato e de transformação do mundo. É o pedaço de cidade disponível
em um primeiro momento aos trabalhadores, “É de bom tamanho, nem largo, nem fundo, é
a parte que te cabe deste latifúndio.”385.
Nas exclusões, nas carências, se percebe que há potenciais de luta para suprir as
necessidades. A casa que foi autoconstruída denuncia que os esforços não serão em vão, e
que o trabalho pode alterar o ambiente, e demonstra que aquele que tem a propriedade
também pode ter direitos.
E a vida, que se insere e se projeta, insiste em formar raízes, criar ambiências
culturais nessas localidades. Retoma-se a ideia do emaranhado de sentidos, de experiências
e de regramentos que interagem e cobrem as cidades, tendo na terra um nó de interesses, que
resulta em segregação e diferenças sociais gritantes.
Diante desse grande dilema, desse nó, que se apresenta, é possível retornar às
definições de direito à cidade, ao entorno da moradia, pois é através da análise do significado
do morar, das dimensões da vida que isso implica, que se pode identificar as formas como
as pessoas se portam diante das cisões postas na cidade, verificando os potenciais oriundos
do viver nas cidades, ainda que em condições periféricas.
E a existência de múltiplas acepções do direito à cidade não é uma dificuldade, mas
evidenciam a existência de traços comuns aos diversos conceitos: a ideia de igualdade de
acesso à cidade, ao entorno do local em que se mora.

385
Melo Neto, Morte e vida severina, 2007, p. 108.
149

É perceptível que, nesta retomada do conceito de direito à cidade, além do


empoderamento que a utopia dessa ideia pode trazer, há um início prático de seu exercício.
E, além de acessar igualmente a cidade, significa compreendê-la de forma dinâmica
e viva, o que implica que o acesso ao seu entorno não se dá como súdito, como mero
visitante, mas efetivamente como um morador, ativamente dirigindo e influenciando os
rumos e processos vivos dessa cidade.
Essa participação, que compõe o conceito de direito à cidade, evoca a análise dos
processos de produção do espaço urbano, de um lado, e a ampliação dos âmbitos em que a
democracia é exercida, de outro, para além da participação em eleições para eleger
representantes. Assim, é dentro do princípio democrático que o direito à cidade se
materializa.
E é precisamente no âmbito dessas ânsias do citadino que a cidadania real e fraturada
se interpõe, travando a participação e a inserção dos indivíduos nas decisões. Todavia, ainda
que de forma obstada e restrita, as habitações, ainda que precárias e sem todos os
qualificativos que a tornam adequada, insere-se efetivamente em um espaço urbano, ainda
que periférico.
Ainda que se tente negar a participação, inscrevendo em concreto essa exclusão, o
habitar na cidade, sem concessões dos agentes que efetivamente produzem a cidade, exige
ser vista e impõe sua presença, recordando que a cidade depende de seus trabalhadores.
Mike Davis descreve a força decorrente da ocupação de um local, mesmo após uma
desorganização ou remoção forçada, esse espaço em que será possível a vida, ainda que em
condições precárias, ao afirmar que os pobres foram “Empurrados para as cidades por forças
violentas irresistíveis, os pobres impuseram com avidez o seu “direito à cidade”, ainda que
isso significasse apenas uma choça em sua periferia”.386
Essa compreensão do direito à cidade em movimento, no direito aos processos de
produção da cidade, apenas terá efetividade na distribuição dos poderes de decisão social,
da capacidade de definir os rumos da sociedade entre seus membros, diluindo as distorções
causadas pelas concentrações de poder ocasionadas pelo poder político e econômico. Afinal,
a partilha do espaço urbano, e, portanto, das decisões sobre os rumos da cidade, deve ser
feita de forma equitativa por seus membros.
Ao se constatar o horizonte participativo exigido pelo direito à cidade em contraste

386
Davis, Planeta Favela: Boitempo, 2006, p. 64.
150

com as concretas fraturas existentes na cidade, se vislumbra um déficit democrático,


exigindo a participação, pois a situação fática está contrariando o princípio democrático, que
exige expansão e inclusão das pluralidades sociais.
Esses contextos sociais são permeados por valores simbólicos e estruturados por
sistemas que sequestram das pessoas a possibilidade de participação. É na cidade, na
exclusão das pessoas, e no planejamento do caos urbano é que se percebe um exemplo de
uma patologia teorizada pelo conceito colonização do mundo da vida387 por Jürgen
Habermas.
Isso porque a vida, a habitação, ao ser atravessado por âmbitos existenciais, não
deveria estar submetida ao subsistema econômico. Contudo, ao se dar a forma de mercadoria
às habitações, e ao entregar a criação do espaço urbano à mediação do dinheiro,
possibilitando que a racionalidade envolvida com sua expansão seja a maximização do lucro,
tem-se um planejamento ao qual não se pode considerar irracional, já que obteve sucesso em
seus intentos, mas sequestrou dos cidadãos seu poder e sua influência, desidratando a
democracia (ou deixando de construi-la adequadamente).
Note-se que a mediação do dinheiro ao mesmo tempo que permite a coordenação da
ação permeada por uma racionalidade instrumental, voltada à acumulação, substitui a
possibilidade de colocar a questão da produção da cidade em um debate aberto ao público.
É uma questão que deveria pertencer à esfera comunicativa, permitindo-se que uma
argumentação válida, com uma ampla participação definisse os rumos dessa cidade.
Tendo em vista as consequências e os efeitos da produção da cidade são sofridos por
toda a sociedade, em dimensões simbólicas, na cultura, na organização da sociedade e até
no sentimento de pertencimento do indivíduo, ou seja, guarda uma complexidade e interfere
diretamente nas estruturas e na produção do mundo da vida.
Com isso, se percebe que a hegemonia da mediação pelo dinheiro submete esses
campos aos interesses da acumulação do capital, retirando das pessoas parcela de sua cidade,
limitando seu espaço comunicativo, impondo-lhes construções e cidades caóticas e
indesejáveis, com os reflexos simbólicos da desigualdade e dessas estruturas que seguem
uma racionalidade que prescinde dos elementos comunicativos para ser produzida, que serve
a uma racionalidade meramente acumuladora do capital.
Entretanto, o efeito narrado não gera uma aniquilação das possibilidades de

387
Cf. Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão funcionalista, 2016, p. 509.
151

insurgência e de participação popular. As lutas pelo direito à moradia e à cidade veiculam a


complexidade, incorporando nas reivindicações a polissemia desse conceito, ecoando
reivindicações diversas, com a capacidade de incrementar e impactar na cidadania dos
atores.
Ao contrário, há elementos nas periferias que permitem o retorno ao mundo,
escapando da visão sistêmica como única forma de interpretação do mundo. A casa da
pessoa, seu entorno, evidencia suas preferências, as forças sociais que lá atuam, e mostram
os estilos de vida de seus moradores, suas personalidades e prosperidade econômica.
Nas palavras de James Holston: “Dessa forma, a arquitetura residencial nas periferias
torna visíveis as forças sociais e de mercado que organizam mais amplamente a sociedade
brasileira, assim como as idiossincráticas narrativas individuais que as estimulam”.388
A observação desse ponto de intersecção que é revelado nas moradias, que trazem
atrás de si a história de ocupação daquele bairro, os esforços de construção que incluíram a
casa e seu habitante em uma cidade, eventuais reivindicações e lutas por melhorias, que
resultam em uma habitação mais digna. É a complexidade da vida que se enuncia através
delas, com todas as suas dimensões e dificuldades.
Nessa complexidade se percebe que é o cotidiano, o espaço em que se inserem as
pessoas, o mundo vivido, permite múltiplas valorações e interpretações simbólicas até
paradoxais. Tais paradoxos evidenciam, apenas a ausência de um sentido único, unívoco
para essas habitações. A exploração, e mesmo a colonização do mundo da vida já descrita,
com a interferência dos interesses financeiros na produção de periferias precárias não
consegue aniquilar a complexidade e as possibilidades decorrentes da ação no mundo.
E essa reprodução de valores simbólicos, ainda que em condições adversas, tem um
potencial emancipador, transformador, comunicativamente rico, solidário e que se alinha à
expansão da participação democrática e ao aumento da participação cidadã dos excluídos de
ontem, em uma cidadania que se insurge, exigindo direito, exigindo a cidade.

3.3 Retomada democrática do espaço vivido: mobilização social e a cidadania


insurgente

388
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 233.
152

3.3.1 Os elementos do espaço vivido: libertando o mundo da vida

O olhar volta-se novamente ao território. São perceptíveis focos de insurgência que


fazem o olhar voltar para o espaço ocupado e vivido pelas pessoas, permitindo que elas sejam
efetivamente percebidas, e que seus processos reivindicatórios, e que a análise seja sensível
às melhorias e à percepção desse elemento concreto da vida.
Para Milton Santos a cultura e o território são elementos essenciais para definir o
cívico, a cidadania, e a redistribuição. Segundo o geógrafo, “deve-se falar de um modelo
cívico-territorial, a organização e a gestão do espaço sendo instrumentais a uma política
efetivamente redistributiva”.389
Ainda, nas palavras do importante geógrafo:

O cidadão é multidimensional. Cada dimensão se articula com as demais na procura de um sentido


para a vida. Isso é o que dele faz o indivíduo em busca do futuro, a partir de uma concepção de mundo,
aquela individualidade verdadeira (...) dotada de uma nova sensibilidade, rompida com a
‘sensibilidade mutilada’.390
Percebe-se como a análise centrada na pessoa e no espaço tem uma potencialidade
de afastar simplificações grosseiras, admitindo a complexidade das forças e elementos
constitutivos, materiais e valorativos que influem nas vidas das pessoas.
O viver em sociedade cria uma cultura, que nasceria também do aprendizado da
relação entre as pessoas e a vida em um determinado território 391.
A acepção meramente neoliberal, reduzindo as relações humanas a determinados
indicativos, ainda que como um referencial teórico possa ter alguma importância
metodológica, não pode suprimir do pensamento essa multiplicidade, que deve sempre
retornar à análise, sob pena de que algo se perca nesse processo.
Jürgen Habermas aponta para a existência de tensão entre os meios que possibilitam
uma integração social e coordenações de ações independentemente das estruturas
comunicativas. Esses meios, como é o caso do poder e do dinheiro, “não apenas simplificam
a comunicações, mas a substituem por uma generalização simbólica de prejuízos e
compensações, o contexto do mundo da vida em que os processos de entendimento sempre
estão inseridos é desvalorizado e submetido a interações controladas por meios”.392
Essa substituição permite que alguns subsistemas diferenciados deixem de depender

389
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 18.
390
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 56.
391
Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 81.
392
Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão funcionalista, 2016, p. 509.
153

dos elementos do mundo da vida, já que a coordenação das ações será mediada pelo dinheiro,
por exemplo. Isso, de forma desmedida, segundo o autor possibilitaria a tecnização do
mundo da vida.
Nas palavras de Habermas sobre como funciona tal conceito, a partir do
deslocamento do mundo da vida para os entornos do sistema, reduzindo a esfera
comunicativa:

Os subsistemas sociais diferenciados mediante tais meios podem se tornar independentes de um


mundo da vida forçado a se deslocar para o entorno do sistema. Por isso, na perspectiva do mundo da
vida, a transferência do agir para os meios se apresenta não somente como um alívio perante o risco e
o dispêndio de comunicação, mas também como um condicionamento de decisões num espaço
ampliado de contingência – e, nesse sentido, como uma tecnização do mundo da vida.393
A partir disso, torna-se perceptível como os meios que regulam e agem sobre alguns
subsistemas têm a capacidade de influenciar outras dimensões do ser, outros sistemas, de
modo que um determinado subsistema, notadamente o econômico, passa a mediar as
relações e interferir nos outros, de modo que a vida da pessoa se observa sob tal lente, bem
como interfere-se no sistema jurídico a partir do poder econômico.
Essa ideia de colonização do mundo da vida é desenvolvida a partir de uma crítica à
visão de Marx, o qual já tecia os delineamentos de uma teoria sobre reificação e de como o
mundo da vida, ou esferas existenciais do existir eram afetadas, suprimidas, e reduzidas pelo
capitalismo. Nesse sentido, Jürgen Habermas explica essa percepção:

A teoria do valor, ao adotar a ideia da troca entre equivalentes, mantém apenas um ponto de vista
formal de justiça distributiva, o qual permite julgar a subsunção da força do trabalho sob a forma da
mercadoria. A transformação da “força do trabalho concreta” em trabalho abstrato” faz com que o
conceito de alienação perca sua determinabilidade, pois agora ele já não se refere aos desvios em
relação ao modelo de uma prática exemplar, mas à instrumentalização de uma vida representada como
um fim em si mesmo394
Essa visão, embora antecipe a redução da esfera existencial, tomada pela
transformação da força de trabalho em mercadoria, teria sido formada ao analisar as
condições de vida da classe proletária, criticando, contudo, a limitação da análise de
Marx:

“Marx utiliza esse conceito para a crítica das condições de vida que surgiram em decorrência da
proletarização dos artesãos, dos camponeses e dos plebeus rurais durante a modernização capitalista.
Entretanto, ao analisar o desenraizamento repressivo de formas de vida tradicionais, ele não distingue
entre reificação e a diferenciação estrutural do mundo da vida – pois o conceito de alienação não
possui a necessária força discriminadora.”
A partir desse diagnóstico, Habermas propõe uma análise mais minuciosa, que

393
Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão funcionalista, 2016, p. 509.
394
Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão funcionalista, 2016, p. 614.
154

forneça soluções satisfatórias de análise do capitalismo tardio, com uma explicação que vá
além do economicismo.
Assim, parte-se da análise dos subsistemas “economia” e “Estado”, mediados pelo
dinheiro e pelo poder, os quais, por sua vez, podem ser mediados pelo direito, como um meio
mais complexo que os abrange.
Uma vez estabelecida uma percepção da sociedade calcada nessa identificação de
sistemas e do mundo da vida, Habermas elabora a tese de colonização do mundo da vida:

A tese da colonização interna afirma que os subsistemas “economia” e Estado se tornam cada vez
mais complexos em decorrência do crescimento capitalista, introduzindo-se cada vez mais
profundamente na reprodução simbólica do mundo da vida.

(...)

Quanto mais o lazer, a cultura, o turismo e a cura são atingidos pelas leis da economia apoiada na
mercadoria e pelas definições do consumo de massa, quanto mais as estruturas da família burguesa se
adaptam aos imperativos do sistema de empregos e quanto mais a escola assume concretamente a
função de distribuir chances de vida e oportunidades profissionais, tanto mais as tendências de
juridificação de esferas do mundo da vida, reguladas informalmente, impõe-se em amplas frentes.395
Nas palavras de Antônio Cavalcanti Maia, o mundo da vida tem aspecto central em
sua definição e compreensão da sociedade:

No mundo da vida, por meio do agir comunicativo, ocorrem processos de reprodução fundamentais à
subsistência da espécie humana. Nele, funcionam aqueles domínios sociais especializados na
transmissão de valores e do saber cultural, na integração social, bem como na socialização de novos
membros da sociedade. O mundo da vida reproduz-se na medida em que cumpre três funções que
transcendem a perspectiva dos atores sociais: a propagação de tradições orais, a integração dos
diversos grupos componentes do todo social mediante normas e valores e a socialização das gerações
vindouras.396
Dessa forma, a tecnização do mundo da vida, que ocorre com a expansão desmedida
dos meios de alguns subsistemas, o que faz com que o mundo da vida tenha sua compreensão
reduzida à ótica daquele subsistema. Há um achatamento da compreensão e das dimensões
complexas, múltiplas e existenciais que compõe o mundo da vida.
Com isso, as possibilidades de consenso e de diálogo também são interrompidas, já
que o mundo da vida é pressuposto397 do entendimento, e, estando ele retalhado e reduzido
em sua compreensão, de igual forma, a racionalidade e os meios daquele subsistema terão

395
Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão funcionalista, 2016, p. 661.
396
Maia, Jürgen Habermas: filósofo do direito, 2008, p. 165.
397
As pretensões de validade inseridas nos atos de fala, que podem ser de verdade, normativas ou de veracidade
relativamente a um estado interno do emissor, têm referência ou por pressuposto um determinado
componente do mundo da vida, isto é, o mundo objetivo, o subjetivo e o social, que formam uma moldura
à qual as falas farão referências, interpretações e definições. (Cf. Habermas, Teoria do Agir comunicativo,
2: Sobre a crítica da razão funcionalista, 2016, p. 221.)
155

uma acepção parcial e míope do que seria o mundo da vida.


A importância do mundo da vida surge porque é dentro de sua complexidade que se
torna possível existir um espaço de mediações, de cruzamentos implicados dos seres no
mundo.
O mundo da vida é conceitualizado da seguinte forma por Jürgen Habermas:
“poderemos representar racionalmente o mundo da vida como uma reserva de padrões de
interpretação, organizados linguisticamente e transmitidos culturalmente” 398
As referências ao mundo (ou aos três mundos, objetivo, subjetivo e social) estão
presentes como plano de sustentação da comunicação, fornecendo-lhe elementos
interpretativos.
E, de forma similar à crítica feita por Habermas à lógica da razão instrumental, que
estimula o individualismo, tomando um elemento contingente da sociabilidade como uma
característica atávica da natureza humana, Milton Santos aponta a necessidade de resgatar a
sensibilidade, resistir à sociedade de massa, possibilitando uma desalienação. A chave para
isso está no mundo vivido, pois “O cotidiano será, um dia ou outro, a escola da desalienação.
(...) o cotidiano é também o lugar da descoberta”.399
Embora não haja uma identidade entre os conceitos, de mundo da vida, desenvolvido
por Jürgen Habermas, e de mundo vivido, desenvolvido por Milton Santos, tendo em vista
que o mundo da vida é um pressuposto comunicacional do entendimento, um pano de fundo,
um repositório de padrões interpretativos, ao passo que o mundo vivido traz todos esses
referenciais teóricos, e mais. Assim, embora não se promova tão profunda sistematização
dessa ideia, o mundo vivido apresenta uma concretude e uma materialidade que evocam a
complexidade e o que estaria por pano de fundo do mundo da vida.
Entretanto, é possível fazer uma aproximação do conceito de mundo da vida
cotidiano (do qual as pessoas que agem comunicativamente lançam mão para localizar a si
mesmas e às suas manifestações em espaços sociais e épocas históricas )400, tendo em vista
que a compreensão e a separação entre o mundo da vida e os subsistemas, ambos
componentes da sociedade, permitem, ao realizar a aproximação com a ideia de mundo
vivido de Milton Santos, possibilita uma compreensão e uma capacidade de análise para os
fenômenos apreendidos e ocorridos no mundo vivido, sem deixar de elaborar a ressalva que

398
Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão funcionalista, 2016, p. 228.
399
Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 18.
400
Cf. Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão funcionalista, 2016, p. 248.
156

a ideia cunhada pelo geógrafo demonstra elementos incondicionados e complexos.


Assim é possível perceber que o espaço vivido guarda em si a intersecção dos
acontecimentos. É a vida, o sujeito em todas as suas dimensões e complexidades, inclusive
na comunicação com os outros, ocupando e vivendo em determinado espaço. É o
reconhecimento de que o espaço ocupado pelo indivíduo, que as intersecções sociais, já são
algo mais que essas partes que o compõe.
É nesse espaço que se abre a possibilidade da sensibilidade, das trocas, em que ocorre
a vida cotidiana. Assim, a cultura forma um par com a cidadania, tornando-as conectadas
com a territorialidade401.
Milton Santos aprofunda as relações entre o espaço e sua significação simbólica:

A cultura, forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o universo, é uma herança, mas também
um reaprendizado das relações profundas entre o homem e o seu meio, um resultado obtido por
intermédio do próprio processo de viver. (...) a cultura é o que nos dá a consciência de pertencer a um
grupo.402
Essa constatação gera uma outra, de que as mudanças e migrações têm a capacidade
de desorganizar esse espaço de vivência com tamanha significação simbólica. Essa
desarticulação geraria um terreno favorável à alienação e à individualidade.
Essa perspectiva simbólica também aparece em Habermas, que enxerga como forma
de manifestação da narrativa, que “constitui uma forma especializada de fala constatativa,
que serve à descrição de eventos socioculturais e objetos”.403 É possível, portanto, notar que
a narrativa, que cria uma conexão simbólica 404 entre o indivíduo, o espaço e a comunidade,
criando uma história perfaz esse cotidiano, possibilitando a história de sua vida, o
pertencimento a grupos sociais.
Com isso, é possível perceber que, ao relembrar a forma como a população e as
periferias das cidades explodiram, sem um devido cuidado de construir um entorno e com
que a cidade alcançasse adequadamente esses novos bairros, ou ainda verificando que a
precariedade em que se vive, percebe-se que, além das violações dos direitos, tem-se
rupturas simbólicas, as quais incrementam a alienação.
Ao se forçar uma desterritorialização também ocorre uma desculturização, que

401
Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 80.
402
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 81.
403
Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão funcionalista, 2016, p. 249.
404
O mundo da vida permite a reprodução das estruturas simbólicas, possibilitando a construção de um saber
– cultura –, criam a solidariedade social – sociedade –, e dão significado às representações de si, formando
os atores sociais – pessoa. (Cf. Habermas, Teoria do Agir comunicativo, 2: Sobre a crítica da razão
funcionalista, 2016, p. 252).
157

encarna uma espécie de violência. Assim, ao haver migrações ocorre o abandono de certa
cultura.
Contudo, esse estado não se mantém, pois uma nova cultura se apresenta.
Para Milton Santos, o processo é dinâmico, e o mesmo elemento que traz a
desorganização, também potencializa o nascimento de outras consciências, e de outra
cultura. A alienação poderia ser substituída pela integração do ser. As trocas possibilitadas
pelo novo entorno, embora desconectem, possibilitam outras trocas:

Quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja
memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa alienação. Mas o homem, um ser dotado
de sensibilidade, busca reaprender o que nunca lhe foi ensinado, e vai pouco a pouco substituindo a
sua ignorância do entorno pelo conhecimento, ainda que fragmentário. O entorno vivido é lugar de
uma troca, matriz de um processo intelectual.405
Assim, ainda que as migrações para as cidades, em busca de condições de vida, que
forçam uma ruptura cultural, e um fechamento, também estabelecem a possibilidade de
tensão diante da necessidade de recorrer ao direito à cidade.
Ocorre a possibilidade de mudança e de transformação, já que “Sua relação com o
novo morador se manifesta dialeticamente como territorialidade nova e cultura nova, que
interferem reciprocamente, mudando-se paralelamente territorialidade e cultura, e mudando
o homem”.406
É na cidade, que possibilita uma vida com mais intersecções e pluralidades culturais,
que uma miríade de indivíduos traz suas culturas fragmentadas pelo deslocamento,
possibilitando a construção de um novo mosaico por essas trocas. Assim, existe um cerne
que pode produzir a autonomia e a emancipação.
Milton Santos percebe que nas cidades e nas grandes aglomerações há incentivo para
a proliferação da integração por meio do consumo alienante e da cultura de massas, contudo
é através desses encontros que se poderia aumentar a consciência, com um outro tipo de
cultura, concluindo que “É por isso que as cidades abrigam ao mesmo tempo uma cultura de
massas e uma cultura popular, que colaboram e se atritam, interferem e se excluem, somam-
se e se subtraem, num jogo dialético sem fim”.407
O geógrafo ainda tece críticas à integração social pelo consumo, apontando que essa
característica, assim como o clientelismo, o populismo, impedem a autêntica representação,

405
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 81.
406
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 83.
407
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 86.
158

criando uma forma de não-cidadania.408


Nessa linha de pensamento, Milton Santos afirma que: “somente na Polis, em
comunidade com outros, o homem é capaz de cultivar todas as direções todos os seus dotes,
afirmando a sua liberdade, pois não há liberdade solitária”.409
Assim, o indivíduo apenas poderia se realizar no coletivo, na solidariedade, em que
suas potencialidades são maximizadas. Dentro de uma intersubjetividade comunicativa.

3.3.2 Autoconstrução e reconexão com o território

A autoconstrução nas periferias foi uma saída permitida para garantir a moradia do
trabalhador, mas foi praticamente imposta, dada a ausência de alternativas para satisfazer a
necessidade habitacional. Todavia, a sua realização, embora exigisse demasiados esforços,
trouxe, além da melhoria de vida, potenciais de reconexão da pessoa com o território,
participando da produção do espaço, esvaziado de um aspecto meramente mercantil.
A autoconstrução foi essencial à produção e expansão das cidades brasileiras. E já se
apresentou as críticas a esse modelo imposto aos trabalhadores, com viés ideológico
individualista, pois coloca no indivíduo a responsabilidade e a culpa pela efetivação ou não
de seu direito, no que se percebe uma exploração acumulada à do trabalho e a negação de
espaços de vida para a família, o lazer e a contemplação.
Entretanto, James Holston percebe nessa função agência e protagonismo nos
indivíduos, os quais, mesmo despojados de seu tempo de lazer passam a trabalhar e produzir
o espaço em que vivem, gerando, portanto, resultados paradoxais.
Nas palavras do autor, “A autoconstrução é o atributo-chave desse padrão, pois
renova os outros na sua realização e os articula ao impulsionar a expansão periférica. Mas
também gera resultados paradoxais, na medida em que tanto perpetua como transforma a
segregação urbana”.410
Isso vai fazendo emergir uma outra consequência da autoconstrução. A capacidade
de o trabalhador também ser um agente de produção da cidade, com suas próprias mãos, às
vezes em mutirões em conjunto com outros vizinhos em situação similar. Uma força de
expansão da cidade e de desequilíbrio da dinâmica entre centro e periferia, a partir das forças,

408
Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 95-96.
409
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 103.
410
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 230.
159

escolhas e trabalho do indivíduo até então subalterno das forças que atuavam na cidade.
A arquitetura das periferias exibiria essa complexidade social, como evidencia a
renda e o acesso a materiais de seus ocupantes, revelando preferências e suas identidades 411.
O entorno da autoconstrução recebe uma participação muito forte dos moradores, e mostra
um potencial emancipatório, pois coloca o agente em contato direto com o seu mundo,
anunciando uma desalienação, já que restará clara a conexão do trabalho e do resultado desse
trabalho.
Isso permite uma abertura que demonstra a conexão entre o trabalho e o entorno,
possibilitando ao trabalhador um contato com seu mundo412, possibilitando que veja além de
sistemas parciais que limitam sua percepção e as relações de conexão entre os sistemas.
Percebe-se uma atuação direta do indivíduo, transformando e recriando o mundo da vida,
transmutando seu estado de excluído em cidadão.

3.3.3 Existências na cidade: recuperação dos valores de uso dos imóveis

A cidade pressupõe coexistência entre as pessoas. Assim, a sua conceituação é


atravessada por complexidades, pois o termo cidade pressupõe uma série de relações sociais
subjacentes.
Com isso, se percebe que a cidade é o palco dos encontros e das trocas que nela
ocorrem, bem como das ações das pessoas na produção do espaço, não se podendo deixar de
considerar também como este espaço as influencia.
Seja a partir das relações de produção e de mercado, que investem e utilizam a cidade
para extrair rendas e lucros, mas também de relações de moradia, de pertencimento, de
reivindicação ou de ocupação dos espaços comuns, com a utilização das praças, parques e
praias.
O viver nas cidades, com a generalização da forma urbana, a cada dia passa a ser
menos uma opção das pessoas, que nascem e reproduzem suas vidas nesse modo de

411
A arquitetura das periferias e a sua relação com os ocupantes, e como forma de afirmação dos seus moradores
são temas abordados por James Holston. (Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e
da modernidade no Brasil, 2013, p. 233).
412
O contato com o mundo, com a complexidade tem um potencial emancipador, de estimular a educação do
ser humano. Nas palavras de Paulo Freire: “A educação como prática da liberdade, ao contrário naquela
que é prática da dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo,
assim também na negação do mundo como uma realidade ausente dos homens” (Freire, Pedagogia do
Oprimido, 1987, p.40).
160

conformação social.
A reprodução da vida nas cidades, isto é, as necessidades ligadas à sobrevivência, os
direitos mais básicos à alimentação, saúde, educação e moradia, tem sua satisfação
hierarquizada nas sociedades brasileiras, tendo em consideração a desigualdade e as
carências que atingem a população, conforme diferentes graus e hierarquias.
A produção e a distribuição das cidades no Brasil seguem a distribuição de recursos
da população, concedendo centralidade e melhor acesso aos serviços públicos àqueles que
têm moradias mais bem localizadas. Com isso, a desigualdade acaba se inscrevendo também
nos territórios urbanos e nas habitações.
Assim, o direito de moradia, e tantos outros relacionados à reprodução da vida social,
deixa de ser algo universal na sociedade brasileira, submetendo-se à distribuição das
riquezas, tornando-se um bem que somente poderá ser alcançado pelo indivíduo, por meio
de seu salário, submetido ao sistema econômico.
Embora a própria Constituição Federal de 1988 tenha previsto diversos direitos
sociais, não se pode esquecer de afirmar que estabeleceu que o salário-mínimo deveria
garantir as necessidades básicas do trabalhador, e, conquanto tenha instituído diversos
princípios a ordenar a ordem econômica, subordinou a subsistência ao trabalho.
Alguns problemas surgem diante dessa estruturação social, como por exemplo a
incapacidade de fazer com que o salário-mínimo consiga garantir efetivamente todos os
gastos elencados como necessários, dentre os quais se destaca a habitação, pelo seu vulto,
centralidade e essencialidade.
Com a insuficiência do salário para a garantia de direitos básicos, torna-se
imprescindível que tais direitos fundamentais fossem satisfeitos ou garantidos por outras
vias, ou mesmo pela prestação estatal direta, na esteira da garantia do mínimo existencial.
Ao analisar a questão das moradias se percebe que muitas vezes ela é solucionada
pelas camadas mais pobres de forma paralela ao mercado formal imobiliário, isto é, por meio
de ocupações de áreas de risco ou irregular e pelas autoconstruções.
Com isso, percebe-se que, por meio do mercado formal e do salário, grandes parcelas
da população ficam excluídas, e por meio de esforços próprios e das ocupações, as moradias
dificilmente atingirão os padrões mínimos de qualidade e de localização necessários para
que sejam minimamente adequadas para garantir plenamente o direito à moradia.
Com essa tensão, se percebe como a exploração da moradia como mercadoria,
embora consiga distribuir moradias adequadas para uma parcela da população, o faz com a
exclusão de outra grande parcela. E, ao fazer isso, a utiliza como parâmetro de valorização
161

daqueles outros imóveis formais. Isto é, se fabrica a escassez de moradia, fazendo com que
a própria garantia do direito esteja sob risco e se torne uma pressão sobre o(a) trabalhador(a),
que não poderá garantir sua subsistência e direitos básicos caso não se submeta à lógica de
mercado e às suas regras.
Na verdade, a criação dessa escassez de moradia passou pela atividade estatal, de
separar os trabalhadores de seus meios próprios de reprodução social com dignidade, nas
palavras de Rafael Lessa Vieira de Sá Menezes: “o ordenamento jurídico, visto como um
todo, tem cuidado de manter o despojamento do trabalhador”.413
Esse despojamento se dá, ora pelas proteções da propriedade, mesmo diante da
possibilidade de o direito de moradia ser vulnerado, mas também, historicamente, ocorreu
desde a publicação da Lei de Terras, em 1850, em que se limitava o acesso dos trabalhadores
e dos imigrantes à propriedade da terra, forçando-os a trabalhar em terras alheias.
Essa visão da propriedade e dos imóveis prestigia seus valores de troca, inserindo-os
em uma lógica de mercado e de acumulação.
E é essa perspectiva que é validada e reforçada pelo ordenamento jurídico, não
obstante declare a imprescindibilidade dos direitos sociais, pois a proteção da propriedade
ainda prevalece sobre a moradia dentro da cultura jurídica e das decisões dos Tribunais.
E a habitação representa justamente o valor de uso de um imóvel, isto é, o valor
retirado da utilidade daquele bem. Prestigiar o valor de troca vulnera a ideia de uma função
social da propriedade, pois faz prevalecer o lucro diante da garantia de efetivação ou de
defesa de um direito fundamental.
As formas ao mercado alternativas de garantia da moradia, e o próprio viver nas
cidades tem a capacidade de restaurar o valor de uso do imóvel, pelas atividades cotidianas
das pessoas, pela retomada dos potenciais de desalienação, e pelas lutas dos movimentos
sociais. Práticas de forte conexão simbólica do indivíduo com seu entorno, seja fabricando-
o com seus esforços, ou criando um espaço de comunicação em que se une aos pares,
vinculando-se ao território.
Cita-se que Milton Santos percebe que a superação da moradia como mera
mercadoria encontra um potencial de incremento da cidadania. Nas suas palavras:

O morador-cidadão, e não o proprietário-consumidor, veria a cidade como um todo, pedindo que a


façam evoluir segundo um plano global, e uma lista correspondente de prioridades, em vez de se tornar
o egoísta local, defensor de interesses de bairro ou de rua, mais condizentes com o direito fetichista

413
Menezes, Crítica do direito à moradia e das políticas habitacionais, 2017, p. 58.
162

da propriedade que com a dignidade de viver.414


A construção da própria casa, a conexão com a localidade em que ela está inserida, a
produção desse espaço, tanto com a construção da residência, como pelo habitar, pelo viver,
conviver e usufruir daqueles espaços, inclusive os comunitários.
A essencialidade da moradia impõe que, mesmo transformada em mercadoria, tal
forma seja novamente atraída ao seu valor meramente de uso, já que é preenchido pela vida
e pelos elementos de sua reprodução, material e simbólica. E essa possibilidade de viver o
espaço, a comunidade, tendem a resgatar uma conexão com os vizinhos, e criar elementos
inovadores e benéficos naquele bairro, até mesmo aproximando-o da cidade formal
(democraticamente, por meio de lutas e da participação popular).
A sociabilidade das cidades e as conexões que surgem entre as pessoas têm a
capacidade de criar bens comuns,415 conforme conceito resgatado por David Harvey -
conceito, aliás, diferente da ideia de bem público de uso comum do povo, embora alguns
desses bens pertençam a ambas as categorias -, de modo que a ideia de bens comuns é mais
abrangente e fluída, incluindo, por exemplo, o próprio ar que se respira, nomeando de forma
mais precisa o fenômeno de revitalização do valor de uso e da criação de comuns.
Para David Harvey:

(...) o comum não deve ser entendido como um tipo específico de coisa, de ativo ou mesmo de processo
social, mas como uma relação social instável e maleável entre determinado grupo social autodefinido
e os aspectos já existentes ou ainda por criar do meio social e/ou físico, considerada crucial para sua
vida e subsistência.416
Comuns são aqueles bens que não estão sujeitados à propriedade, são comunais, mas
muitas vezes são objetos de cercamentos pelo capital, que pretende extrair deles renda de
monopólio. Assim, muitas vezes o cotidiano de uma localidade pode criar uma atmosfera
interessante e estimulante, a qual pode ser destruída pela prática predatória de agentes
imobiliários, financistas ou consumidores de classes altas. 417
Esses comuns urbanos também podem ser apropriados por meio das valorizações dos
imóveis, aumento dos aluguéis ou exploração turística. Mas, a apropriação desse comum
urbano pelo mercado pode destruir suas qualidades, e, com isso, fazer desaparecer esse
caráter coletivo, de forma que o comum produzido por toda uma comunidade urbana acaba

414
Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 161.
415
Cf. Harvey, Cidades rebeldes: Do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 142.
416
Harvey, Cidades rebeldes: do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 145.
417
Cf. Harvey, Cidades rebeldes: do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 153.
163

por ser apropriado por poucos agentes. Segundo David Harvey, “A urbanização capitalista
tende perpetuamente a destruir a cidade como um comum social, político e habitável”.418
E, tais cercamentos, reforçam, segundo Leonardo Avritzer, a ideia do indivíduo e do
egoísmo da busca de seu interesse individual, que é um protótipo que surge justamente a
partir de uma sociedade controlada pelo princípio de mercado, o que se fortalece com a
desorganização de formas coletivas de vida e com a diminuição do controle que o indivíduo
tem sobre sua própria vida cotidiana.419
Milton Santos também traça críticas semelhantes à privatização dos bens públicos,
de direitos como saúde e educação, subordinando-os ao mercado e ao consumo, gerando
apropriação das múltiplas dimensões humanas por uma visão que as simplifica sob a lente
da economia, gerando desculturização420.
Em sentido diverso, a construção de sua própria habitação, o reivindicar o direito à
cidade, com a distribuição entre todos os cidadãos da capacidade de interferir nas decisões
relativas aos processos de urbanização tem a capacidade de interferir na tensão que ocorre
entre o valor de uso e de troca dos imóveis, revelando um potencial de redistribuição e de
trazer e valorizar aspectos existenciais do sujeito, e não somente sua capacidade de ser útil
ou de produzir valor para a economia e para as trocas, chamando sua atenção ao mundo da
vida, revitalizando-o, fazendo com que se perceba que a experiência e os meios do sistema
econômico não conseguem universalizar as comunicações da vida.
Nesse sentido, Ailton Krenak, faz uma crítica à acumulação capitalista desmedida,
que desconsidera a conexão das pessoas com a natureza, ou melhor dizendo, que
erroneamente enxerga os humanos como separados da natureza. Ademais, reforça como os
aspectos da existência e dos seres que não podem ser apreendidos pelas lógicas de mercado:
“A vida é esse atravessamento do organismo vivo do planeta numa dimensão imaterial. (...)
A vida que a gente banalizou, que as pessoas nem sabem o que é e pensam que é só uma
palavra. (...) Vida é transcendência”.421

3.3.4 Democracia, políticas urbanas, e movimentos sociais: a voz das cidades

A contextualização dos princípios constitucionais, e o arcabouço filosófico sobre a

418
Harvey, Cidades rebeldes: do Direito à cidade à revolução urbana, 2014, p. 156.
419
Cf. Avritzer, A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática, 1996, p.
87.
420
Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 125.
421
Krenak, A vida não é útil, 2020, p. 28-29.
164

atuação das pessoas, e a coordenação de suas ações, revela como a valorização e o olhar
sobre o espaço vivido mostram um grande potencial de desenvolvimento democrático.
E isso justamente porque o mesmo local onde se efetivou uma segregação severa dos
cidadãos, empurrando enormes contingentes populacionais para as periferias, sem cidade,
sem entorno, também é o espaço em que essas pessoas viverão suas vidas, construirão um
entorno e enriquecerão material e simbolicamente o espaço, com o passar do tempo, e com
o aperfeiçoamento de suas reivindicações.
Assim, o trabalho e a vida cotidiana transformam e impõem dinamicidade a esse
espaço, fabricando um entorno novo, ao associar o tempo.
Essa nova vida não fica restrita aos limites e traçados periféricos. Ela grita por mais
cidade, pela satisfação das carências, por direitos.
Um dos potenciais que se percebe nas cidades é a proliferação de diferentes
movimentos sociais e reivindicações coletivas, organizados ou não.
A vida nas cidades, a percepção de suas carências e necessidades, mas também as
trocas que promove, estimula esses contatos e enriquece os ambientes com diversas
possibilidades.
Tais medidas sinalizam que aquele indivíduo, reduzido à sua força de trabalho sugada
economicamente, tendo sua moradia também restrita a uma mercadoria, pode se entender
pertencente a uma comunidade. Através de um âmbito comunicativo com o seu entorno,
social e material, promove-se uma reconexão desse indivíduo, que se percebe social, e se
percebe como habitante citadino, legitimamente empoderado com direitos.
Essas práticas abrem o mundo da vida à confecção dos significados e símbolos,
resgatando a multiplicidade e polivalência da vida, do viver e da reprodução das condições
da vida, através do cotidiano vivido, expandindo as interpretações dos fenômenos, para além
dos critérios econômicos. E, principalmente, além desses princípios econômicos, produz-se
uma ação social que transforma o entorno, na verdade até mesmo cria um mundo e nele
inscreve a história, a cultura e os valores daqueles cidadãos.
Não se trata de uma retórica otimista. Tais sinalizações ou percepções não solapam
ou apagam as dificuldades oriundas da escassez, da ausência de moradia adequada e da
percepção de que a vida periférica recebe menos investimentos estatais, é menos valorada,
no que se notam indicadores sociais mais frágeis.
Contudo, tal escassez não se mostra árida e infértil. Trata-se de apontar que há
contradições nesse processo, e dessa escassez e das carências, há produção de conexões
intersubjetivas que permitem a ação conjunta para além do meio dinheiro, além do
165

subsistema econômico da sociedade, permitindo que uma outra racionalidade se expresse:


uma comunicativa e democrática.
As pessoas em contato com uma cidade rica em diversidade, com diferentes
reivindicações e sonhos, podem passar a sonhar também. Com isso, as promessas da
democracia e da vida urbana, e até mesmo do mundo de consumo, muito embora tragam
uma frustração e uma dissonância com a realidade percebida e observada, germinam
reivindicações, e, algumas vezes, em lutas por direitos.
Há diversas teorias dentro do campo da Sociologia que tentam compreender tais
movimentos, e o jurista Celso Fernandes Campilongo identifica na teoria dos sistemas do
sociólogo alemão Niklas Luhmann, teoria que também repercute nas estruturas e na
elaboração da teoria do agir comunicativo de Jürgen Habermas, uma ferramenta para
identificar e avaliar as influências e relações dos movimentos sociais com o Direito. Assim,
nas palavras de Campilongo:

a abordagem de Luhmann vê os movimentos sociais como “sistemas autopoiéticos” que, do prisma


sociológico, não são nem interações nem organizações, mas formas de protesto construídas em torno
de temas que demarcam uma oposição entre os movimentos sociais e os sistemas que organizam e
promovem decisões na sociedade contemporânea (política, economia, direito etc.). O funcionamento
desses sistemas produz riscos. Seus critérios de seleção, inclusão e exclusão de temas conduzem a
resultados paradoxais e contingentes. Os movimentos sociais reagem a esses resultados: não são
anormais, nem patológicos, nem naturais. São elementos constitutivos da artificialidade da construção
social moderna.422
Tal conceituação, exclui parte desses fenômenos reivindicatórios, tratando apenas
desses movimentos mais organizados e que alcançam uma estabilidade autopoiética, isto é,
de autorreprodução fechada, ainda que com aberturas cognitivas, mas ela permite uma
aproximação teórica a eles, possibilitando verificar como se relacionam, sem se identificar,
com outros sistemas da sociedade.
Ainda conforme Campilongo, os “movimentos sociais são produto e reação da
sociedade moderna a si mesma. São porta-vozes de importantes registros de aspectos sociais
modernos inafastáveis: conflitos, desequilíbrios, desigualdades, distribuição assimétrica de
recursos, direitos, poderes e riscos”.423
Reconhece, uma certa ambiguidade, pois são exatamente os conflitos e aspectos
distópicos da sociedade que estimulam e produzem como reação a organização e a
resistência desses movimentos.

422
Campilongo, Interpretação do direito e movimentos sociais, 2012, p. 19.
423
Campilongo, Interpretação do direito e movimentos sociais, 2012, p. 42.
166

Aliás, destaca Campilongo, que os movimentos sociais agregam os excluídos dos


processos comunicativos dos sistemas, ou aqueles incluídos de maneira assimétrica (pois a
sociedade, mesmo incluindo todos, permite a participação assimétrica, a ausência de
possibilidade de reivindicação de direitos dentro do sistema jurídico ou pouco dinheiro para
influir no sistema econômico)424.
E, em sentido contrário ao trazido por Niklas Luhmann, Campilongo aponta que: “Os
movimentos sociais dos excluídos são portadores do protesto das pessoas. Marcam posição
comunicativa importante e, esta sim, característica da sociedade moderna”425, salientando a
importância e o aspecto comunicativo das reivindicações populares.
Esses movimentos surgiriam como uma forma de negar a sociedade e as estruturas
postas, pois dessa exclusão e desse “não” ao que se coloca, surgem as reivindicações e as
estratégias de luta dos movimentos sociais.
E os movimentos sociais podem trazer reivindicações diante das estruturas e
exclusões observadas na sociedade que são contrárias a interesses que têm uma forma
jurídica e são protegidos pelo direito, ou mesmo contra o próprio direito, por uma nova
conformação, mais justa.
E, no caso da moradia, os movimentos sociais reivindicatórios não trazem inovações
jurídicas, tão somente exigem o cumprimento da lei, as prestações essenciais fixadas na
instituição de um Estado Social e Democrático de Direito.
Trata-se de efetivamente conformar um alargamento dos âmbitos democráticos,
inserindo na participação das decisões políticas pessoas antes excluídas e subalternizadas.
Tendo essa perspectiva, parte-se para a verificação de dados e de exemplos da
realidade, permitindo uma análise que verifique a materialização dessas reivindicações e
organizações da sociedade, verificando a presença dos elementos de ampliação do escopo
democrático e de valorização dos aspectos simbólicos do mundo da vida, verificando a
presença de um agir comunicativo.

3.4 Participação Popular: as trajetórias das lutas do direito à cidade

Visto isto, agora se torna necessário observar o comportamento das reivindicações e


pulsações que se evidenciam nas cidades.

424
Cf. Campilongo, Interpretação do direito e movimentos sociais, 2012, p. 52.
425
Campilongo, Interpretação do direito e movimentos sociais, 2012, p. 52.
167

É da intersecção entre a cidadania, a dignidade e os elementos de produção da cidade


se combinam, e surgem alguns fenômenos visíveis, na forma de inconsistências jurídicas, e
crises reivindicatórias, percebem-se, também, contradições.
Segundo Ermínia Maricato, “A luta pelo direito à cidade volta às ruas: o que está em
disputa é a própria cidade, seus equipamentos sociais, suas oportunidades de emprego, de
lazer, de mobilidade”.426 E ela situa precisamente na crise urbana o epicentro do conflito
social brasileiro.

3.4.1 Combustão: expressões populares recentes

A mobilidade urbana está no epicentro de um fenômeno reivindicatório que se iniciou


em junho de 2013, evento que trouxe uma forte movimentação no cenário político brasileiro,
comportando uma análise bastante complexa.
Ao presente trabalho importa observar que se tratou de uma série de movimentos de
protestos convocada por um grupo político chamado MPL, movimento do passe livre, que se
reunia para reivindicar melhorias no transporte público, defendendo a mobilidade urbana
como um direito, de modo que não deveria ser mediado por tarifas.
Importante observar que as divisões territoriais podem ser mitigadas por meio da
mobilidade urbana, pois, muito embora a localização de uma determinada moradia tenha
reflexos múltiplos no acesso aos serviços públicos e à cidade, de outro lado a espacialidade
será terrivelmente eficaz em manter as desigualdades caso haja imobilidade. Dessa forma, a
existência de uma mobilidade ou permeabilidade urbana. Assim, ainda que determinados
serviços sejam territorialmente escassos, uma boa mobilidade427 poderia permitir um acesso
igualitário a ele.
Contudo, nesse ano, os tradicionais protestos por essa pauta, convocados em razão
de mais um aumento das tarifas, reverberaram com a insatisfação popular, e com as carências
de políticas públicas adequadas, resultando em passeatas e movimentações com número
histórico de participantes, representando uma retomada das ruas e das reivindicações.
Tais passeatas receberam a alcunha de jornadas de junho, se iniciou em razão de
inconformidade com o aumento das tarifas de transporte coletivo, isto é, contra uma
limitação ao direito de mobilidade nas cidades. A necessidade do direito à cidade foi o que

426
Cf. Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 111.
427
Os pensamentos sobre a influência da imobilidade como fator de agravamento das divisões sociais podem
ser encontrados na obra de Milton Santos. (Cf. Santos, O espaço do cidadão, 2020, p. 114-116).
168

permitiu que tal reivindicação reverberasse nas necessidades de grandes camadas da


população, fomentando sua revolta.
O crescimento, pode ser associado a um elevado estado de insatisfação geral, que
coincide com uma piora428 na qualidade de vida nas cidades nas últimas décadas.
Tais revoltas representara um marco temporal, após o qual houve a articulação de
diversos movimentos sociais de orientação política de direita e de extrema direita, levando
à ascensão dessa corrente políticas. De outro lado, diversos grupos de esquerda mais radical
também se desenvolveram, vindo a conquistar espaços institucionais.
As consequências políticas e sociais que decorreram dessa revolta são complexas, e
pode-se considerar que ainda estão em curso as transformações que, como em um abalo
sísmico, projetou suas ondas de influência, desmanchando as formas como as estruturas
políticas se organizavam.
Todavia, não é o escopo do presente esforço debruçar-se e enveredar por tais
labirintos, de modo que, sem esquecer a complexidade desse fenômeno, e sem esgotar sua
importância histórica, toma-se seu estopim e seus primeiros significados e razões como
exemplo da emergência e da revolta que se origina das carências, e da piora da vida nas
cidades – que alcança até mesmo setores sociais com rendas mais altas, que percebeu a
deterioração de seus modos de vida, ainda que não entrem nos índices de vulneráveis,
engrossaram as linhas das revoltas.
Assim, destaca-se desse movimento, primeiro, seu caráter urbano e de acesso à
cidade, o qual foi sintetizado pelo aumento da tarifa. Em segundo, a percepção concreta de
que da opressão, das carências e do descontentamento, emergem revoltas, e reivindicações.
A síntese vem com a provocação de Ermínia Maricato, no texto É a questão urbana,
estúpido429, em que destaca as graves desigualdades e problemas habitacionais brasileiros,
solapados, ocultados e fermentando revoltas.
Nos anos de 2013 e 2014, chamaram a atenção o fato de terem ocorrido diversos
“rolezinhos”430, que eram encontros de dezenas de jovens (geralmente negros e das
periferias) realizados em shoppings centers, que causou uma reação rápida dos comerciantes,
com apoio judicial para a proibição desses passeios.

428
Cf. Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 111.
429
Cf. Maricato, É a questão urbana, estúpido!, 2013, p. 19-26.
430
Para observar uma análise sobre os aspectos simbólicos e semióticos que permearam os discursos e falas
relativamente a esse fenômeno, observar a pesquisa de Hellem da Silva Espíndola. (Cf. Espíndola, Quem
pode “dar um rolé” no shopping, 2017)
169

Chama a atenção a ânsia de inserção dos jovens, ao escolher locais socialmente tidos
como valorizados, embora tais escolhas também se induzam pela ausência de espaços
próprios de lazer próximos às localidades em que habitam. Também chama a atenção que
tais centros comerciais sejam identificados como espaços de lazer, de forma que este acaba
se confundindo com a ideia e com a possibilidade de consumo.
Assim, parece transparecer nesses encontros uma prevalência de uma ideologia que
associa o pertencer ao consumir, pois os jovens tinham o propósito ao menos de alcançar o
espalho em que tais vendas se realizassem, mesmo sem poder efetivamente consumir. De
outro lado, a histeria causada nos lojistas, frequentadores dos shoppings e até mesmo na
justiça, é extremamente profícua em demonstrar que a segregação de parte da população é
palpável. Mesmo com frágil respaldo jurídico, o Poder Judiciário concedeu liminares e
autorização para vetar o acesso a esses espaços àqueles que não deveriam frequentá-los.
Assim, também se evidencia que a cidadania e a garantia de direitos fundamentais
ficam em segundo plano, diante da necessidade de garantir as imposições de segregação
espacial historicamente construídas.
Esses jovens em movimento, que se organizam para buscar lazer e um consumo, ao
menos de exposição aos produtos dos shopping centers, representa bem a ideia da associação
difusa existente na sociedade entre o consumo e o viver, e o lazer, representando até mesmo
um aspecto de cidadania.
E, nessa ocasião, o consumo desses espaços lhes foi vetado pelo Poder Judiciário,
com decisões sem uma fundamentação juridicamente consistente, trazendo implícita a
barreira inscrita na cidade, de que aquelas pessoas não pertencem àquele centro de consumo,
justificando que fossem barrados.
Ressalta-se o aspecto simbólico desses jovens periféricos ocupando um espaço que
lhes é negado. Se tais práticas subvertem a segregação racial e espacial, apenas em alguns
momentos, com os corpos em locais em que cotidianamente não podem frequentar,
rapidamente há uma organização dos interesses e de forças dos comerciantes e do Estado
com o intuito de recolocar as barreiras, expulsando os jovens daquele espaço.
Esses múltiplos resultados simbólicos são citados pela pesquisadora Hellen da Silva
Espíndola, que aponta que as disputas do espaço também são semióticas, abarcando os
sentidos, reproduzindo em todos os territórios as lógicas da cidade segregada. Em suas
palavras, são “vetos geralmente impostos a uma parte da população que não está de acordo
com os ideais modernos da cidade. Trata-se de um grupo que deveria ser escondido e
170

esquecido, mas que insiste em impor sua “desagradável” presença”.431


A importância de resgatar esse acontecimento não representa, novamente, esgotar
suas possibilidades e imbricações, mas reforçar o caráter central da moradia, já que será ela
que determinará o acesso a certos setores e equipamentos públicos, bem como indicará quais
locais não haverá locais de lazer disponíveis para que a população possa existir,
demonstrando, ainda, que a vida cotidiana, ainda que buscando o consumo, elemento
alienante e contrário à cidadania, faz emergir uma revolta, quase involuntária neste caso.
Isso porque a simples presença de pessoas com marcadores que tornam seus corpos
indesejados, outros, faz com que surja um mal-estar nos frequentadores dos shoppings
justificando uma reação da violência estatal432, tão ágil que sequer traz uma fundamentação
juridicamente consistente com a primazia dos direitos fundamentais, renovando a exclusão
social, mesmo quando é contestada pontualmente, somente de forma simbólica.
É certo que tal embate simbólico, que até sintetiza a segregação e a manutenção dela,
teve decisões contraditórias, transformando o judiciário em ambiente de embate em alguns
casos, com a concessão aos jovens do direito de realizar o rolezinho.
Muito embora seja perceptível a carência de espaços públicos de lazer e as
necessidades que fazem emergir uma revolta, percebe-se que é esse desejo que movimentou
os jovens, mas sem uma organização forte entre eles. Houve promoção do debate, revelando
os preconceitos sociais e a segregação das cidades latentes, bem como ativaram-se
instrumentos repressivos. Mas não houve reivindicações claras, com essa lógica, e tais
movimentos foram deixando de ocorrer.

3.4.2 Fermentação: a organização das lutas por moradia

De forma diversa, houve construções de lutas por moradia que perpassaram as

431
Cf. Espíndola, Quem pode “dar um rolé” no shopping, 2017, p. 181.
432
É possível citar como exemplo a ação promovida pelo Shopping JK Iguatemi, que não teve contraditório, e
culminou com a proibição de evento organizado para ocorrer naquele estabelecimento. O processo foi
registrado com o N.º 1001597-90.2014.8.26.0100. A ação foi proposta contra o “Movimento Rolezaum”,
que não foi citado. A ação invoca o Estatuto da Criança e do Adolescente para defender que os jovens não
poderiam estar presentes no local desacompanhados. A decisão cita abusos de outros movimentos e proíbe
a realização de manifestações no Shopping. De posse dessa decisão, impede-se o ingresso de jovens
periféricos, sem que tenham sido partes do processo.

Pode-se citar também o caso do Condomínio Shopping Center, em que houve revogação da medida que
impedia que os jovens efetuassem o rolezinho naquele local, justificando exatamente no propósito pacífico
e nas liberdades públicas, das quais também são integrantes os jovens, conforme o processo com N.º
2077642-93.2015.8.26.0000.
171

décadas de expansão das cidades, crescendo ao passo e que em que se construíram os espaços
periféricos.
A realização de severas críticas, observando as precariedades existentes na injusta
distribuição e crescimento das cidades não impede, de outro lado, que os locais em que as
pessoas vivem, o espaço vivido seja produtivo culturalmente, comunicativamente. Até
mesmo pode-se perceber que as carências e necessidades se travestem em desejos e
movimentam a ação das pessoas.
Esse mundo vivido, do qual retiramos os elementos conceituais para trazer a ideia de
mundo da vida cotidiano, gerou a suposição de que haveria um incremento da cidadania,
uma maior participação democrática, sua expansão, e de maior efetividade dos direitos
fundamentais.
Diante desses elementos, observou-se exemplos de explosões reivindicatórias, que
pela própria espontaneidade e desorganização, também se mostraram passageiras e pontuais,
embora ricas em significados simbólicos e consequências, inclusive com a produção de
debates.
Assim, retoma-se algumas experiências narradas pelo pesquisador James Holston na
obra cidadania insurgente, para perceber como foram produtivos as periferias e seus
habitantes, bem como as consequências políticas que emergiram dessa ocupação, que se
inicia precária, mas se transforma.
James Holston analisa a implementação, transformação e movimentação política
envolvendo o loteamento Jardim das Camélias, como demonstrativo desse crescimento de
São Paulo, observando a evolução desse loteamento e de seus ocupantes nas últimas décadas.
A periferia, embora possa ser definida em contraste com o centro de poder, no Brasil,
se caracteriza por uma ambiguidade regulamentar. Isto é, o ordenamento jurídico que a
permeia é de baixa intensidade, havendo uma sobreposição com outros poderes, havendo
uma sobreposição de legalidades e de ilegalidades.
Tal circunstância é citada pela urbanista Raquel Rolnik, para a formação do conceito
de transitoriedade permanente433, que submete certos territórios a uma regulamentação
fraca, que tolera desvios e de forma insegura às vezes remove à força.

433
“zonas de indeterminação entre legal/ilegal, planejado/não planejado, formal/informal, dentro/fora do
mercado, presença/ausência do Estado. tais em determinações são os mecanismos por meio dos quais se
constrói a situação de permanente transitoriedade, a existência de um vasto território de reserva capaz
de ser capturado ‘no momento certo’” (Rolnik, Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia
na era das finanças, 2015, p. 174.)
172

Para James Holston, as periferias assumem essa função, indicando as incertezas e a


indefinição legal que a permeia, até mesmo fomentando conflitos ao invés de regular ou
combatê-los, afirmando que a lei promove uma desordem calculada:

Dessa forma, a legislação fundiária promove conflitos, não resoluções, porque estabelece os termos
pelos quais as transgressões serão seguramente legalizadas. Por isso é um instrumento de desordem
calculada por meio da qual práticas ilegais produzem as leis e soluções extralegais são introduzidas
clandestinamente no processo judicial.434
Primeiro haveria ocupações ilegais, e depois a legalização dessas localidades.
E o Jardim das Camélias confirma essas impressões e observações. A ocupação desse
loteamento se deu inicialmente por meio de manobras ilícitas. Cerca de 207 famílias foram
enganadas e adquiriram lotes, por volta de 1969, que foram vendidos de forma fraudulenta
pela empresa Adis Administração de Bens S.A. que vendeu os lotes sem ter registrada a
propriedade da terra, não tinha seu projeto de loteamento aprovado pelas autoridades
competentes.
Contudo, nesse ínterim outras pessoas passaram a reivindicar aquelas terras (que já
tinham sido vendidas e estavam sendo ocupadas pelas famílias), o espólio de Nadime Miguel
Ackel. Tal pessoa já tinha até mesmo um projeto de loteamento aprovado para a área, em
1924, tendo até mesmo já vendido alguns lotes.
As reivindicações435 e disputas pelo território remontam ao início do século XX e
final do século XIX, envolvendo até mesmo a indefinição das terras devolutas, possibilitando
que a União e o Estado de São Paulo também oferecesse pretensões para emaranhar a
disputa.
À parte dessas disputas, muitas pessoas adquiriram lotes, os quais, do ponto de vista
desses adquirentes, resultavam de uma transação legítima, que somente foi possível diante
da tolerância estatal diante das fraudes e da baixa densidade de presença dos direitos, da
cidade e da regulação produtiva nas periferias.
O resultado é que centenas de famílias, mesmo com o intuito de garantir formalmente
seu direito habitacional por meio do mercado, seja pelas condições financeiras que não lhes
permitiam a compra de lotes melhor localizados, ou ainda pela falta de conhecimentos
jurídicos específicos para certificar a legitimidade das vendas, agravando a precariedade da

434
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 274.
435
O relato detalhado dos acontecimentos pode ser observado em Holston, Cidadania insurgente: disjunções
da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 286-305, em que se analisam os argumentos que cada
uma das partes usa para reivindicar aquelas terras, bem como os impactos dessa disputa que atravessou
algumas décadas.
173

moradia periférica, pois além da distância das riquezas, encontros e conexões promovidos
pela cidade, acumulava a insegurança da posse, pois o resultado da disputa jurídica indicada
poderia significar o despejo para aquelas famílias.
Além disso, diante das disputas, a empresa Adis teria vendido ainda outras áreas,
sobrepondo os planos, efetuando com que mesmos lotes interferissem em outros, tornando
as ruas irregulares, impossibilitando a definição dos verdadeiros moradores, possibilitando
que um mesmo lote fosse vendido mais de uma vez.
Segundo Holston, “O plano de 1924 foi assim completamente desfigurado por
múltiplas camadas de incorporações contraditórias e um sempre crescente número de
terceiros com alegações de propriedade”.436
À época a maior parte dos moradores ainda estava pagando os lotes para uma das
empresas, ao passo que percebiam as reivindicações de outra empresa, causando dúvidas em
relação ao verdadeiro proprietário, e se tais pagamentos estariam sendo em vão.
A interrupção dos pagamentos gerava cobranças sob ameaça de despejo da Adis. De
outro lado,
Como resposta a essa insegurança, em 1972 os moradores do loteamento criam a
Associação de Amigos do Bairro, a partir da qual buscaram auxílio jurídico de advogados
vinculados à Universidade de São Paulo, à Igreja Católica e partidos políticos de esquerda.
Isso possibilitou a atuação de advogados, que desenvolviam estratégias jurídicas
diversas para evitar os despejos, obstando a legitimação desses desejos, mesmo usando
tecnicalidades ou da criatividade.
James Holston cita que havia diversos grupos que se utilizavam de advogados que se
recusavam a negociar com “grileiros” ou mesmo de tecnicalidades para atrasar ou impedir
os despejos. Aponta, contudo, que as práticas mais criativas, citando o advogado Antonio
Benedito Margarido, mostraram-se bem-sucedidas.
O plano utilizado por algumas ocupações consistia em fazer um contrato ou
regularização para que o habitante deixasse de ser invasor e passasse a ser comprador e,
depois, ingressar com uma ação (lembrando que a propriedade está em disputa), para que os
pagamentos sejam feitos em juízo.
Tal estratégia possibilitava com que as famílias estabilizassem a posse no local, ainda

436
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 274.
174

que sob disputas jurídicas. Em um primeiro momento parece haver estímulo a um


comportamento contraditório, já que o acordo é realizado sem a expectativa de cumprimento
exatamente como acordado (já que pressupunha o intuito de dirigir-se à justiça), o que
poderia trazer desconforto437 a alguns profissionais.
Contudo, o valor do bem jurídico buscado, bem como a má-fé dos vendedores não
permitem que tais moradores deixem de usar as ferramentas disponíveis para resguardar seus
direitos.
Nas palavras de Holston:

Como resultado dessas estratégias legais combinadas, a associação aprendeu como desarmar seus
inimigos por meio de confrontos legais e como elaborar um dossiê de documentos oficiais para provar
suas reivindicações. No final dos anos 1980, seus participantes ainda não tinham os títulos de seus
lotes, mas não estavam mais sob o risco de serem despejados.438
Com isso, se percebe que o jogo jurídico, que antes era dominado pelas elites, passa
a ser acessado por esses grupos sociais organizados, como uma das formas de viabilizar seu
direito de moradia. Assim, casos sem uma solução jurídica direta, podem ser adiados até que
uma outra solução, política, possa ser construída.
A resistência se dava em múltiplas frentes. Essa organização social, além de tensionar
e friccionar o subsistema jurídico, passava a provocar agentes políticos para resolver sua
situação.
Houve tentativas de negociação com o governador André Franco Montoro, por meio
de reuniões e fretamento de ônibus para as audiências.
As estratégias e a organização, contudo, não se desfizeram uma vez que a segurança
da posse foi alcançada. Com o aprendizado e com as relações postas em movimento, passada
a urgência dos despejos, outras reivindicações passam a ser feitas, por parques, serviços
públicos, creches e outros equipamentos.
Assim, uma resistência que originariamente era apenas física, com agressões a
oficiais de justiça, que nada resultava de positivo, já que depois havia violência estatal que

437
Tendo em vista que não é proposta aprofundar as questões éticas da manipulação de instrumentos jurídicos
para fins estratégicos, apenas salienta-se que o tema se abre a uma maior investigação, tendo em vista os
direitos fundamentais em jogo e a utilização de instrumentos jurídicos, judiciais e extrajudiciais com
finalidades ocultas. Assim, a avaliação da moralidade dessas condutas, poderia ser objeto de pesquisa e
investigações específicas, verificando os limites das estratégias de combate e de luta, que até mesmo
poderiam envolver violências e a manipulação do sistema jurídico. Diante dessa possibilidade de debate,
as estratégias utilizadas pelos movimentos serão trazidas simplesmente de forma descritiva, sem a
resolução dessa problemática sobre existência de eventuais limites éticos, já observando que o lado mais
vulnerável, caso perca a luta, teria sua dignidade material violada com o despejo.
438
Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 291-292.
175

forçava a desocupação, por meio da compreensão dos meandros da operação do sistema


jurídico, bem como da irritação e da provocação do sistema político se mostram mais
frutíferas.
E, além das vitórias judiciais e da conquista da segurança da posse, no Jardim das
Camélias, há uma permanência dessas técnicas de atuação, seja com a provocação dos
políticos, com a realização de lobbys diretos, buscando interferir nas decisões, e chamar a
atenção dos agentes políticos para a questão daquele movimento social. O hábito de
participação política e de reivindicação permanece, com o movimento exigindo outros
direitos e melhorias.
Essa estratégia de fabricar espaços democráticos – observando que as conversas em
corredores, e o acesso de lobbys de pessoas subalternas não tinha previsão institucionalizada
nesses termos na democracia brasileira.
Pode-se observar o aprimoramento de estratégias, é possível citar o caso de uma outra
localidade analisada439 por James Holston, o loteamento Lar Nacional.
O Lar Nacional foi um loteamento que, como foi regra, foi construído nas franjas da
cidade por volta dos anos 1960, incorporado pela Lar Nacional Construtora e Administradora
Ltda., e utilizou-se de uma estratégia um pouco diferente, tendo em vista que vendia também
estruturas embrionárias das casas, não apenas terrenos.
Ocorre que os moradores, por volta dos anos 70, foram surpreendidos por oficiais de
justiça, fazendo-os saber que a terra em que habitavam estava sob disputa jurídica, chocando
os moradores que haviam adquirido seus lotes. Diante disso, fundou-se a Sociedade Amigos
do Parque Novolar.
Houve relatos de ações diretas de uma das partes reivindicantes do território, com
ameaças de despejos e pagamento de capangas para que fizessem patrulhas e agredissem os
líderes da resistência, realizando despejos ilegais.
Novamente há um exemplo de que diante da insegurança da posse, houve uma
interação comunicativa entre os habitantes no intuito de resguardar seus interesses comuns.
De tal organização, há expansão da participação democrática e da capacidade de influência
desses moradores.
James Holston destaca o relato de uma das líderes da associação de bairro, a qual

439
O detalhamento da trajetória de ocupação e de lutas dos moradores do loteamento do Lar Nacional são
analisados pelo pesquisador James Holston (Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia
e da modernidade no Brasil, 2013, p. 324-339).
176

indica que, incialmente, não sabia distinguir os tribunais e os termos jurídicos, ao passo que
após algum tempo de atuação, passou a conhecer a localização das varas, como reivindicar
direitos bem como alguns meandros internos do funcionamento da justiça.440
É relatado, ainda, que após alguns anos, tais centros tornam-se centrais para a
socialização do bairro, tornando-se epicentro das buscas por melhorias, da realização do
lazer e interação social.
Citam, ainda, que haveria uma “estratégia de guerrilha”441, que consistia em abordar
autoridades como prefeitos e governadores em eventos públicos, exigindo conversas e
audiências, até que a insistência fosse notada.
Isso demonstra como o movimento foi elaborando uma forma de atuação que
consistia em fabricar canais de comunicação onde antes não havia. Assim, não se trata de
espaços e audiências públicas de iniciativa do poder público, expandindo os caminhos
democráticos, criando poros na administração pública.
Parte das estratégias consistiam em iniciar o contato por meio de uma comunicação
oficial da associação, entregue por uma caravana de moradores, performando um ato de
entrega, à mais alta autoridade, representando não somente o contato e o conteúdo, mas o
vislumbre e o canal direto com um agente político antes inacessível.
É interessante observar quer essas experiências reivindicatórias, mesmo trazendo
uma expansão democrática e uma profusão de experiências, transformando o entorno e o
mundo vivido das pessoas, que ambicionam mais condições de reprodução desse mundo,
também é construído por meio de contradições, sendo permeado pelas divisões e
preconceitos sociais.
Pode-se citar que aqueles que compraram os lotes, mesmo enfrentando problemas
similares aos que ocuparam, enxergam-se como mais cidadãos que aqueles outros.
Nas palavras de James Holston:

ter direitos depende de ser direito, e ser direito é uma questão de alcançar certos status, em essência
os de ser bom trabalhador, provedor da família e pessoa honesta. Aqueles que têm direitos de cidadão
os merecem porque são moralmente bons e socialmente corretos nesses termos reconhecidos de
maneira pública.442
Isso demonstra a persistência e a multidimensionalidade das segregações sociais
brasileiras, que permeiam a vida, o território e o imaginário e, se reproduz até mesmo dentro

440
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 327.
441
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 329.
442
Cf. Holston, Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, 2013, p. 344.
177

de contextos subalternos conta outros indivíduos que acumulam ainda mais


vulnerabilidades.
Mostra-se no cerne da cidadania insurgente, após a conquista dos direitos e o acesso
à cidade uma reprodução daqueles padrões que anteriormente a excluíam. Contudo, a
existência dessas contradições não pode ser excluída dos fenômenos reais, ao contrário,
indica os traços que mostram em que localidade e contexto eles se desenvolveram.
É possível perceber nessas experiências que houve uma expansão da esfera pública
e da participação cidadã dos moradores das localidades analisadas, que se transmutam, da
segurança da posse, para reivindicações e atuações em diversas dimensões da vida cotidiana,
inspirando a participação nas artes e exigindo também espaços de cultura e lazer, como para
a prática de esportes.
Os movimentos reivindicatórios surgem com as expansões das cidades, em épocas
em que o contexto político brasileiro era adverso a manifestações, como durante a ditatura
cívico-militar, têm grande influência na constituinte e se expandem e criam interrelações
entre eles.
Deve-se recordar, ainda, de movimentos de reivindicação da moradia como o
Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) 443, do Movimento dos Sem Teto do Centro
(MSTC) 444, e outros similares, que assemelhando-se a movimentos como o de trabalhadores
dos campos, organiza trabalhadores e buscam ser um agente de transformações sociais.
Tais movimentos organizam trabalhadores e têm uma formação política de seus
integrantes, que reivindicam moradias adequadas em locais mais centralizados, compatíveis
com a vida de seus integrantes.
São movimentos que atuam pela ocupação direta de imóveis que não estão
cumprindo a função social da propriedade, isto é, ocupam o precioso espaço urbano
simplesmente para manterem-se fechados, desabitados, servindo à especulação imobiliária.
Representando um abuso de direito.
E, sob essa gramática jurídica, movimentam-se as reivindicações desses grupos,

443
Sobre MTST, com origem próxima ao do MST, teve sua origem e conflitos tratados pela pesquisadora
Cristhiane Falchetti (Cf. Falchetti, Ação coletiva e dinâmica urbana: o MTST e o conflito na produção da
cidade, 2019).
444
É possível verificar que algumas das ocupações mais notórias da cidade de São Paulo foram promovidas
pelo MSTC, como por exemplo a primeira realizada no edifício Prestes Maia, que até então estava sem um
uso adequado, em uma localização central e útil para os pobres urbanos, ou mesmo para qualquer habitante
citadino. Promove-se uma revitalização do prédio e dos espaços, com a vida de seus novos ocupantes. (Cf.
Gonçalves, Ocupar, Resistir, Construir, Morar, 2012.p. 350)
178

promovendo um tensionamento do subsistema jurídico, evidenciando suas contradições e


forçando que olhe para elas, possibilitando, com isso, a garantia desse direito fundamental
através da luta e da intervenção direta, fomentando, no caminho, a união e a comunicação,
e. mesmo com conquistas, alimenta a percepção de que as pessoas podem, e têm o direito de
participar dos processos de formação do espaço em que vivem.
Embora não se tenha a pretensão de esgotar e esmiuçar os casos citados, a visão que
se traz deles diz respeito à exemplificação e à ação dos conceitos tratados, de modo que se
demonstra que a vida cotidiana, que exige primeiro os elementos mínimos para sua
existência, passam a se relacionar e transformar suas reivindicações, adaptando-se às
mudanças e repressões enfrentadas, mostrando que desse espaço vivido, pode-se frutificar
relações e lutas que não podem ser contidas, em um único subsistema, buscando transbordar
e influenciar diversos outros, e garantir condições de vida cada vez mais dignas,
incorporando a ambiguidade e produzindo efetivamente a cidade, passando nesse ponto de
excluídos do direito à cidade a agentes transformadores do seu entorno.
Assim, evidenciam-se as conexões e, principalmente, a complexidade existente na
distribuição dos espaços e das moradias na cidade, bem como as exclusões e as forças que
emergem das contradições e das tentativas de massificar e tomar apenas no âmbito da
mercadoria os fenômenos populares.
E, mesmo sendo perceptíveis as influências dessa ideologia, surgem contradições que
possibilitam a expansão da democracia por meio do incremento das relações comunicativas
e da apropriação da linguagem dos direitos, mostrando-se como a organização política e o
direito se tornam instrumentos de combate e de transformação, colocando em movimento as
pessoas, rumo à sua autonomia.
179

4 Conclusão

A proposta inicial da Dissertação de Mestrado visava observar e analisar a efetividade


do direito à moradia, analisando-o sob o prisma do direito à cidade, com conexões entre
participação social e democracia, e as diversas dimensões do ser, do existir, problematizando
a cidade, e o cidadão.
Inicialmente, a abordagem da Dissertação procura problematizar o Direito vigente,
abordando as suas previsões normativas.
Neste movimento, houve uma primeira aproximação com o conceito de dignidade da
pessoa humana, também o conceito que praticamente inaugura a Constituição da República,
chegando-se à conclusão de que, a complexidade e a historicidade do conceito não trazem
sua inaplicabilidade.
Não obstante, constata-se a sua multidimensionalidade, como um aspecto histórico,
cultural, material e jurídico. Assim, observando os influxos dos estudos filosóficos sobre a
dignidade e, especialmente, sua dimensão material, é possível relacionar a dignidade a uma
segurança material mínima, o mínimo existencial, cujo reconhecimento deveria trazer
consequências jurídicas sérias e prioritárias.
A noção da dignidade da pessoa humana é o fundamento dos direitos fundamentais,
sabendo-se que estes atravessam o teor das normas constitucionais, ampliando a proteção
aos cidadãos brasileiros. A análise da dogmática jurídica constitucional, em conjunto com a
aplicação judicial dos direitos constitucionais, permitiu verificar que existe uma
aplicabilidade mais intensa dos direitos fundamentais que reforçam a individualidade e a
propriedade, ao passo que a garantia da dignidade da pessoa humana exigiria igual empenho
de recursos públicos na garantia dos direitos sociais, lembrando-se que estes visam proteger
a dignidade existencial dos seres humanos, dentre os quais, a moradia.
No interior da Constituição Cidadã, os elementos urbanos tiveram importantes
avanços, decorrentes de pressões de movimentos e grupos políticos e intelectuais que tinham
na moradia sua luta, devendo-se ressaltar a emergência de um Capítulo específico, que
passou a prever uma nova ordem urbanística, em que a propriedade se submete a uma função
social. E a moradia, de fundamental importância, somente foi inserida no texto constitucional
após emendas, mas pode ser encarada como um dos direitos fundamentais essenciais à
garantia material da dignidade da pessoa humana, sinalizando sua centralidade e
interdependência com os outros direitos fundamentais, mostrando-se como base para a
criação e a proteção para alcançar os outros direitos humanos.
180

Assim, a previsão da moradia como direito fundamental levou à indagação sobre a


ausência e a necessidade de interposição legislativa, bem como nos parâmetros normativos
para a exigibilidade de prestações para a garantia desse direito. Contudo, tais dúvidas logo
se dissipam, tendo em consideração o núcleo de essencialidade da sobrevivência humana,
bem como a sua possível utilização em uma função defensiva, isto é, impedindo despejos.
Contudo, a densidade normativa vem de forma definitiva por meio de normas
inseridas no ordenamento jurídico a partir de Tratados Internacionais de Direitos Humanos,
isto é, por interpretações legítimas do que seria uma moradia adequada por organismos
internacionais empoderados pelo Brasil, de forma legítima – ou seja, normativamente
vinculantes.
Desse modo, é possível delimitar que a proteção constitucional compreende não
meramente um teto, mas uma moradia adequada, que preenche diferentes graus de
adequação: a segurança da posse, a existência de um entorno que abranja serviços públicos
e equipamentos essenciais, habitabilidade, salubridade, acessibilidade e adequação cultural.
E, no limite da previsão jurídica, é possível resgatar o direito à cidade, que se coloca
como direito, mas na realidade mostra-se como um horizonte utópico, uma vez que atravessa
a moradia e a compõe, mas não se esgota, pois exige uma reformulação estrutural e completa
da sociedade para que se materializasse na realidade.
Embora tenha se percorrido o conceito originalmente cunhado pelo geógrafo Henry
Lefebvre, é evidente seu caráter inalcançável, com alguns elementos que insistem em
escapar a uma definição (ao menos estritamente jurídica). Desse conceito, evidencia-se que
a habitação está em uma localidade, e a uma distância de um centro.
E o direito à cidade se cunha, precisamente, na medida da possibilidade de morar, de
habitar de forma convenientemente localizada, com todos os serviços públicos e benesses
disponíveis aos cidadãos. De outro lado, tal preceito exige que os citadinos tenham uma
participação ativa na produção dos espaços da cidade, nos processos de criação e de
transformação urbanos.
Assim, escapa à definição o direito à cidade pois contempla a participação
democrática, a distribuição igualitária de recursos e a possibilidade de intervir nas
intervenções urbanas de modo a exigir que respeitem culturalmente as localidades em que
são inseridas, bem como sejam dirigidas pela população.
Ultrapassados os limites das definições jurídicas, a Dissertação de Mestrado também
procurou coletar dados e estudos sobre as condições sociais, históricas e geográficas dos
brasileiros, confirmando a intuição que originou a pesquisa, isto é, de que a moradia,
181

universal e adequada, não tem um horizonte de efetividade, diante de índices habitacionais


e de pessoas em situação de rua, elementos que apenas atestam as enormes desigualdades
socioeconômicas e demonstram a deterioração das condições de vida.
As reflexões sobre o direito à cidade e sobre a efetividade desse direito levam à
contextualização da questão no território.
E, lançando o olhar ao presente, percebem-se as ramificações das ações que se
iniciaram no passado, envolvendo, especialmente a escravidão.
De um lado, criou-se no Brasil um sistema de diferenciação social que tinha o intuito
de manter a segregação instaurada durante os anos coloniais, isto é, uma sociedade dividida
em duas: senhores e escravos. Relação que continua ecoando, na forma de hierarquias
sociais, de diferentes níveis de acesso ao direito e à cidadania, plasmada no território, o que
faz com que se acumulem as desigualdades em diferentes áreas.
Com isso, retomando-se a estrutura legal da propriedade brasileira, explicitamente
arquitetada para restringir o acesso à terra, tornando-a cativa das elites agrárias, e com a
exclusão social dos trabalhadores, desde o princípio das construções das cidades, percebe-
se que tal estrutura social jamais foi efetivamente rompida, apenas teve mais hierarquias
adicionadas, principalmente com o incentivo à imigração de trabalhadores brancos.
O histórico das habitações brasileiras também demonstra dois elementos importantes
a influenciar o imaginário e o desejo dos trabalhadores. A segregação dos cortiços, favelas e
habitações informais, associadas com diversos tipos de carências, e, principalmente,
condições sanitárias adequadas, associa um estigma simbólico à pobreza e a tais localidades
geográficas. O crime, a imoralidade, a doença e a depravação tornam-se características
palpáveis e circunscritas simbolicamente em um determinado território, colando-se a ele tais
estigmas.
Deixam tais atribuições de valor de ser julgamentos objetivos de determinada
conduta e passam a designar os espaços periféricos e seus habitantes, de modo difuso e
escalonado, atravessando até mesmo os moradores de localidades periféricas, que muitas
vezes vêm nos vizinhos de bairro esses outros estigmatizados.
Tais estigmas aliados à imensa insegurança da posse garantida aos trabalhadores pelo
Estado brasileiro por diversas omissões em realizar políticas públicas habitacionais
abrangentes, ou utilizando-se de outras mal direcionadas, como um congelamento de
aluguéis (sem a devida fiscalização e apoio aos inquilinos) ou programas de construção de
moradias que não beneficiou principalmente os mais pobres, reforçam o valor da propriedade
da casa para o brasileiro, alçando-a à posição de sonho bastante difundido e um dos mais
182

citados pelas pessoas.


De outro lado, percebe-se que as precariedades habitacionais persistem no Brasil com
o passar das décadas, bem como se mostra inflexível o crescimento da população em situação
de rua, em uma visível crise humanitária, representando uma consequência da falta de
políticas públicas universais e abrangentes de moradia, bem como as segregações raciais e
sociais que impõe nível elevado de despossuídos, que diante de algumas vicissitudes como
o desemprego, inflação, conflitos familiares ou transtornos mentais, logo se vêm sem
alternativas para efetivar seu direito de moradia.
As graves desigualdades sociais brasileiras são perceptíveis nas paisagens das
cidades brasileiras e inscrevem as pessoas nos territórios, também de forma desigual. Isso
traz implicações para os direitos a que as pessoas têm acesso. Observando-se o caminho
inverso, percebe-se na moradia um espaço para alcançar e viabilizar a inclusão das pessoas
e o acesso dela à cidadania.
Desse modo, percebe-se que a participação das pessoas na cidade é uma das
imposições de um regime efetivamente democrático. Isto é, sua caracterização dependerá da
expansão daqueles que podem participar da construção do que seria a vontade e a ação do
governo.
A expansão democrática não pode ser descolada de uma problemática ambiguidade,
pois a inclusão de grupos mais diversos implica a harmonização de interesses diversos, quiçá
opostos, o que apenas pode ser feito democraticamente com a expansão dos âmbitos de
diálogo e de possibilidade de alcançar um consenso, o qual dependerá da criação e do
respeito a determinadas regras para o debate público e para a tomada de decisões, garantindo
também a participação e a inserção das diferentes visões nesse debate.
E, caminhando ao lado da expansão democrática, percebe-se nos indivíduos a
problemática de ser considerado um cidadão no Brasil. Esse conceito abrange tanto a
inclusão democrática, como o respeito aos direitos constitucionalmente previstos, os quais
desde a fundação do País foram construídos de forma desigual e comportando níveis
diversos, tanto de influência política como de acesso a direitos básicos e a espaços adequados
para as vivências cotidianas.
A histórica segregação social alcança os ideais de cidadania e de democracia no
Brasil, impondo uma hedionda consequência jurídica, já que haverá setores de pessoas com
diferentes direitos, fator esse tolerado e absorvido pelo sistema jurídico, ainda que não
confessado expressamente pelas suas retóricas de justificação, ou previstos normativamente.
Inscrevem-se e são absorvidas de forma não-problematizada, ocultando e reproduzindo tais
183

desigualdades.
O resultado é a instauração de uma fratura, em que a desigualdade vai atravessando
os subsistemas em que a pessoa está inserida, multiplicando-se as dimensões em que a
carência é percebida. Chegam-se até mesmo a contradições diante dessa cidadania
diferenciada e a gramática dos direitos fundamentais, ameaçando seriamente a atribuição ao
Estado brasileiro dos qualificativos “Social”, “Democrático” e “de Direito”, já que não
garante os direitos sociais, ainda não inclui democraticamente e, distribui seletivamente os
direitos e o acesso à justiça.
O direito à propriedade, central na exclusão, e utilizado historicamente para criar uma
sobre-exploração dos trabalhadores, impulsionados à compra de lotes periféricos (acessíveis
a seus salários) cria um paradoxo. Pois, embora as críticas a esse modelo, em decorrência da
deficiência de acesso à cidade, aos direitos e ao descanso e ao lazer que ele impõe ao
trabalhador, de outro incrementa o rol de direitos a que os trabalhadores, antes
desempossados, tem acesso.
Esse acesso abre uma brecha nessa distribuição de direitos e inclui, ainda que de
forma precária, em uma primeira espécie de cidadania: alguns direitos passam a ser
reconhecidos, e aquela pessoa passa a ser validada como cidadã, criando até mesmo uma
autoestima reivindicatória, habilitando-a para a participação em espaços públicos de debate.
Essa percepção é aprofundada com as dimensões cotidianas acarretadas pela vida
cotidiana. Mostra-se no espaço vivido uma subversão à exclusão, pois o trabalho local, e a
vida cotidiana têm o condão de transformar o entorno, mudando as dinâmicas centro-
periferia, expandindo os processos de criação do espaço urbano, fazendo emergirem comuns
urbanos, e enriquecendo as pessoas com um substrato simbólico além dos valores e
mediações do subsistema econômico.
Assim, ao retomar as críticas e percepções da filosofia de Jürgen Habermas sobre a
colonização do mundo da vida, percebe-se nesse olhar e nesse mundo da vida cotidiano,
precisamente a ambiguidade e a resistência desses elementos simbólicos a essa colonização.
Pois ainda que atravessados pelas necessidades econômicas e sem escapar à exploração, a
vida com as conexões impulsionadas pelas reivindicações e carências possibilita o acesso da
pessoa a outros referenciais valorativos e simbólicos, permitindo que os valores do mundo
da vida fluam com sentidos, sem serem completamente aprisionados pelo subsistema
econômico.
Se o trabalho tem a capacidade de esgotar o tempo do trabalhador, tornando-o
alienado, é no mundo da vida cotidiano, na intensificação desses outros aspectos que se pode
184

perceber o potencial de desalienação contido no mundo vivido, as brechas e caminhos que


essa contradição abre nas opressões.
E, em complemento a tais percepções, foram resgatados alguns casos reais,
exemplificando essas relações simbólicas, jurídicas e econômicas, como por exemplo as
explosões reivindicatórias urbanas, alimentadas com os desejos oriundos das promessas
veiculadas exatamente por aqueles poderes que apenas exploraram economicamente as
cidades e os comuns urbanos.
Evidenciam-se, com isso, como os desejos e valores fomentados por uma sociedade
de consumo, ao serem apropriados subvertem os valores, pois a sociedade brasileira,
estratificadamente estruturada não suporta a igualdade e a generalização desses ideais, e tal
reação joga luz à contradição e estimula o debate e a reflexão.
Outros exemplos trazidos referem-se a bairros em que a compra de lotes, as
ocupações e a insegurança da posse geraram a conexão dos moradores e a abertura de novos
campos democráticos, ampliando e expandindo a democracia, a partir do movimento de
rejeitar a exclusão e as carências, observando que as Associações de Moradores de bairros
reivindicam direitos e, diante da luta para vencer as necessidades, surge uma movimentação
política que não para com uma determinada conquista, mas passa à próxima, em um intuito
de aprofundar as possibilidades e a qualidade de vida daquelas pessoas.
Assim, embora não se possa concluir pela existência de uma relação de causalidade,
ou mesmo de uma tendência, o que se evidencia neste ponto são as contradições simbólicas
presentes nas relações centro-periferia, algo que atravessa os moradores dessas áreas,
criando uma cisão entre o campo do acesso a direitos e a percepção de exclusão social, mas
também fomentando e alimentando revoltas. E mesmo as revoltas representam
ambiguidades e contradições, já que há movimentos entre as garantias conservadoras de
propriedade e reproduções das famílias e as reivindicações necessárias para esses ideais de
vida.
Ou seja, é possível mapear parte das contradições que emergem da comunicação de
subsistemas complexos inseridos a partir de valores que tendem à universalização, mas cuja
sociedade altamente estratificada não comporta, no que revoltas e aberturas democráticas
mostram-se como possibilidades que podem aflorar dessas brechas.
185

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