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Ofícios e arte de curar

Ao analisarmos o exercício das práticas médicas, durante as três primeiras décadas do século
XIX, deparamo-nos com uma situação bem diferente. Junto com licenças para médicos,
cirurgiões e boticários, havia para sangradores, parteiras e curandeiros. Nos lemos o artigo
Terapeutas populares e instituições médicas na primeira metade do século XIX, da Tânia
salgado, do livro, Artes e ofícios de curar no Brasil, nele ela fala que todos que quisessem
exercer alguma atividade terapêutica teriam liberdade para isso, caso conseguissem uma
autorização concedida pela Fisicatura mor, que era o órgão do governo responsável pela
regulamentação e fiscalização das práticas de cura.

No Brasil, desde o século XV, eram estabelecidos regulamentos para os ofícios relacionados à
medicina, válidos em todo o império português. Esses regulamentos foram modificados ao longo
do tempo e, em 1808, com a transferência da Corte para o Brasil, foi criada a Fisicatura mor,
sediada no Rio de Janeiro, que existiu até 1828. A maioria dos documentos relacionados ao
processo de solicitação de licença para exercer essas profissões está arquivada no Arquivo
Nacional do Rio de Janeiro. Os diversos ofícios reconhecidos pelo governo possuíam suas
atividades específicas e estavam hierarquicamente organizados dentro da Fisicatura mor. Os
médicos, cirurgiões e boticários eram os mais prestigiados, podendo prescrever remédios, tratar
doenças externas e manipular e vender medicamentos, respectivamente. Os sangradores, que
podiam sangrar e aplicar sanguessugas e ventosas, as parteiras, que ajudavam as mulheres a
dar à luz, e os curandeiros, que podiam cuidar de doenças "leves" e aplicar remédios feitos com
plantas medicinais nativas, desempenhavam atividades menos consideradas.

“Os curandeiros, no entanto,


restringiam-se a curar com ervas do país as moléstias mais comuns que acometiam os povos
do lugar, isso se não houvesse pessoa mais "qualificada" para socorrê-los (médicos ou
cirurgiões aprovados em medicina).”(PIMENTA, Tania Salgado. Artes de curar: um estudo a
partir dos documentos da Fisicatura-mor no Brasil do começo do seculo XIX. 1997. 153f.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e
Ciencias Humanas, Campinas, SP.)

Também havia licenciados que podiam tratar apenas de doenças específicas, como embriaguez
e morféia.

A instituição reconhecia apenas as práticas terapêuticas que se enquadravam nas categorias


estabelecidas, mas os terapeutas frequentemente ultrapassavam esses limites. Parteiras
prescreviam remédios e curandeiros tratavam pacientes sem sucesso pelos médicos. As
denominações de sangrador, parteira e curandeiro não abrangiam a diversidade das práticas.
Para incluir todos esses profissionais, o termo "terapeutas populares" era utilizado,
considerando principalmente a posição social subalterna das mulheres, escravos, libertos e
africanos. A distribuição de licenças dependia das diferenças sociais e econômicas, e os títulos
concedidos refletiam o prestígio das pessoas.

O número de licenças concedidas aos terapeutas populares foi significativamente baixo, o que
contrasta com relatos de viajantes, periódicos e correspondências entre autoridades, que
mencionam a presença disseminada desses terapeutas em todo o Brasil. Geralmente,
curandeiros, sangradores e parteiras oficializavam suas atividades apenas quando sabiam da
proximidade da fiscalização ou em busca de destaque entre os concorrentes, especialmente nos
centros urbanos.

Com a extinção da Fisicatura, as relações entre terapeutas populares e instituições médicas


foram modificadas. Depois de 1828, quem não tinha carta era considerado ilegal, sendo a
categoria curandeiro sequer citada. Com a transformação das academias médicas em
faculdades, na década de 1830, o título de sangrador não mais seria concedido. As Câmaras
começaram a rejeitar as cartas da Fisicatura e as faculdades de medicina passaram a expedir
títulos de farmacêutico, parteira e doutor em medicina. A frequência de reclamações dos
médicos científicos junto às autoridades do governo contra as práticas de curas revela como
sangradores e curandeiros continuavam a exercer seus ofícios. Assim, a preferência pelos
procedimentos populares causando prejuízo aos médicos científicos cresceu no século XIX,
sendo uma das explicações as relações entre terapeuta e doente, assim como o compartilhar
das convicções de doença e cura.

Sabemos poucos a respeito dos curadores no império, nesse sentido eu trouxe um trabalho a
respeito de um curador, o Pai Manoel, Em 1856, durante a epidemia de cólera que atingiu o
engenho Guararapes, em Recife, um curandeiro africano chamado Pai Manoel ganhou prestígio
entre a população. Enquanto os médicos enfrentavam dificuldades para conter a epidemia, Pai
Manoel era considerado capaz de curar a doença. Sua reputação cresceu à medida que as
pessoas se desiludiam com os médicos. Os jornais começaram a noticiar suas curas e, em 26 de
fevereiro daquele ano, o Diário de Pernambuco publicou a receita de seu suposto remédio
milagroso.
“Juntam-se raiz de pimenta-malagueta, folhas de lacre, pimenta da Costa, cebolas do reino e
raiz de limão. Faz uma garrafada com esses ingredientes, tritura e coa tudo. Mistura com
uma tigela de mel de furo, água de dois cocos secos da Bahia e uma xícara de vinagre.
Descobre e despe o doente e abre as janelas e portas. Comer carne-assada com pirão,
aplicar o remédio e tomar banho frio (Diário..., 26 fev. 1956).”

A fama de Pai Manoel se espalhou entre as camadas pobres e também entre as famílias
abastadas, que o buscavam de carruagem para ajudar seus parentes doentes. As autoridades
permitiram suas atividades, possivelmente para evitar conflitos durante a crise da epidemia. Ele
recebeu permissão para aplicar seu remédio no Hospital da Marinha do Recife, ocupando uma
sala com três camas para seus pacientes. Essa situação constrangedora para a classe médica foi
justificada pela desesperança que se espalhava entre aqueles que estavam encarregados de
tratar as vítimas da epidemia.

A presença do curandeiro foi possivelmente estratégica por parte das autoridades para encorajar
os doentes a procurarem o hospital, mesmo com suas precárias condições, e para renovar a
esperança da população durante o momento mais trágico da epidemia. Durante aqueles três
meses, não havia remédio ou dieta confiável para evitar as mortes causadas pela cólera, e todas
as tentativas foram infrutíferas. Além disso, não se pode descartar a possibilidade de alguns
médicos e autoridades acreditarem no poder de cura de Pai Manoel e contarem com seus
serviços em um momento em que havia poucos médicos disponíveis em Recife.

No entanto, o episódio teve repercussões negativas nas províncias vizinhas e na Corte imperial,
especialmente na Academia Imperial de Medicina, pois colocou a classe médica em descrédito
perante a população. Esse fato foi apontado como o principal motivo da renúncia coletiva dos
membros da Comissão de Higiene Pública, sendo substituídos por uma Comissão Interina.
Apesar das críticas, Pai Manoel permaneceu no hospital até a morte do último de seus pacientes.
Isso intensificou as discussões sobre sua presença no Hospital da Marinha, e o doutor Joaquim
Aquino, ex-presidente da Comissão de Higiene Pública, responsabilizou o doutor Cosme de Sá
Pereira, seu substituto, pelo ocorrido. O doutor Pereira, em sua defesa, afirmou que a prática
problemática já existia quando Aquino era responsável pela saúde pública.

Enquanto os médicos discutiam, as autoridades proibiram Pai Manoel de utilizar seu remédio. No
entanto, ele se recusou a acatar as determinações da polícia, e a Comissão de Higiene Pública
solicitou sua prisão. Apesar disso, Pai Manoel continuou a curar as pessoas, percorrendo a
cidade a pé ou de carro, acompanhado por ordenanças e até mesmo delegados de polícia.
Quando a Comissão se reuniu e pediu ações contra Pai Manoel, seus seguidores reagiram,
fazendo manifestações nas ruas e ameaçando saquear as farmácias e agredir os médicos.
Um sacerdote pregou a favor de Pai Manoel no púlpito da igreja da Santa Cruz, acusando os
médicos de permitir que a cólera matasse negros e mulatos. Essa acusação aumentou ainda
mais a revolta da população, que já suspeitava que as autoridades e os médicos usavam a
epidemia de cólera como um meio de "branquear" a população. Essa desconfiança pode ter sido
alimentada pelos altos índices de mortalidade entre os negros e mulatos.

O episódio de Pai Manoel revela que a interpretação da epidemia de cólera variava entre a
população, refletindo diferentes formas de medo do contágio. Entre as elites, havia o temor de
contaminação por um agente letal, suspeitando que os focos da doença estavam nos quarteirões
pobres e mocambos da cidade. Os escravos domésticos e de ganho eram vistos como os
principais transmissores da doença para as casas ricas. Essa percepção levou médicos e elites
locais a considerarem os pobres como uma séria ameaça de contágio, pois suas habitações
eram vistas como centros de propagação de epidemias e fontes de vícios.
Por outro lado, os pobres interpretaram a alta mortalidade entre negros escravos e livres como
uma estratégia dos brancos para eliminar as pessoas de cor. Para muitos deles, a cólera era vista
como resultado do envenenamento de alimentos e bebidas, planejado pelos médicos e
autoridades governamentais. Essa crença de que a mortalidade colérica era causada por
envenenamento foi interpretada como uma indicação de que os pobres viam a profissão médica
como um instrumento de manipulação a serviço das autoridades e elites.

A pesquisa de Diniz revela que a suspeita de envenenamento estava presente nas concepções
médicas da época e contribuía para a interpretação popular das causas da doença. A natureza
súbita e fulminante da cólera alimentava a desconfiança. No entanto, o argumento mais
significativo para a disseminação das suspeitas de envenenamento era o de que as elites
dominantes, com o apoio dos médicos, estavam aproveitando a desculpa de uma epidemia
mortal para substituir os trabalhadores negros por imigrantes europeus.
A falta de bases sólidas e a falta de uniformidade nos tratamentos adotados pelos médicos
contribuíam para a desconfiança da população em relação à medicina convencional. A reputação
duvidosa da medicina alopática era reforçada pela evidente incapacidade dos médicos em curar
a maioria das doenças. Isso levantava dúvidas sobre a eficácia da medicina e deixava a
impressão de que alguns médicos poderiam causar mais danos do que benefícios aos pacientes,
o que incentivava a busca por curandeiros.

Durante o surto de cólera em 1856, as autoridades médicas de Recife exerciam um controle


maior sobre a evolução da epidemia, incluindo visitas médicas domiciliares. Os médicos
inspecionavam as casas, identificavam condições insalubres e novos casos da doença. Foram
criados hospitais exclusivos para tratar os afetados pela cólera. O medo de ser isolado pode ter
levado muitos residentes de Recife a evitarem o controle exercido pelos médicos e buscarem
formas não convencionais de tratamento.
Isso resultou em insatisfação generalizada com os tratamentos oferecidos pela medicina
científica.
Além das possíveis motivações mencionadas anteriormente, é importante destacar que muitos
dos pacientes de Pai Manoel eram pessoas pobres e de cor. Isso levanta a questão de como
essas pessoas se identificaram com o curandeiro, que era um escravo negro, e isso certamente
influenciou a escolha de parte dos seus pacientes. Nesse contexto, Pai Manoel ganhou maior
credibilidade e expandiu sua clientela.

No Brasil do século XIX, as mudanças políticas e econômicas tiveram um impacto direto nas
relações entre governantes e médicos. Os conhecimentos médicos foram incorporados ao
cotidiano da sociedade, ajudando a legitimar o poder do Estado. Para isso, foi necessário
organizar a formação de profissionais qualificados no país e estabelecer leis que restringissem a
atuação de curandeiros. Essas medidas visavam consolidar a autoridade da medicina
convencional e reprimir práticas consideradas não oficiais.
A popularidade dos curandeiros ao longo do tempo, desde os tempos da colônia, pode ser
atribuída à percepção da população de que esses curadores eram mais eficazes, tanto no
tratamento de doenças leves como em casos mais graves, em comparação aos médicos
convencionais. Tânia Pimenta argumenta que os curandeiros eram procurados não apenas
por falta de médicos ou por questões financeiras, mas porque eram considerados mais
eficientes pela população.

Esses curandeiros, rotulados como charlatões pelos higienistas e pelo governo, Embora não
possuíssem os anos de estudo e o embasamento científico dos médicos convencionais, eles
desfrutavam de uma influência junto à população que os médicos levavam muito tempo para
conquistar. Isso levou os médicos a pressionarem as autoridades a tomarem medidas para
estabelecer a prática médica convencional. Para isso, foi criada a ampla categoria do
"charlatão", que englobava qualquer pessoa que praticasse uma forma de medicina diferente da
medicina científica.
A Câmara Municipal era responsável pela fiscalização e cumprimento das leis, mas enfrentava
dificuldades devido à falta de recursos. Suas atribuições incluíam a construção de cemitérios, a
limpeza das ruas e a conservação dos calçamentos, que exigiam fundos da Tesouraria Provincial.
Pressionada pelo Conselho de Salubridade, a Câmara elaborava regulamentos que não
conseguia implementar, seja por falta de verbas ou pela falta de funcionários suficientes para
fiscalizar o cumprimento das leis. Os poucos fiscais que atuavam muitas vezes não conseguiam
provar as infrações por falta de testemunhas dispostas a testemunhar.
As atividades de cura ilegais preocupavam os doutores, sobretudo por ameaçar sua
subsistência, visto que eram procuradas por diversos setores da população, abrindo larga
concorrência no campo de atuação na sociedade.

A imprensa muitas vezes apoiava os médicos na luta contra o charlatanismo, publicando artigos
que criticavam a atuação desses curadores. Em um desses artigos, médicos pediam mais
vigilância por parte da Câmara Municipal para proibir a atuação dos curandeiros, argumentando
que eles não eram qualificados para praticar a medicina.
No entanto, a atitude da imprensa nem sempre era parcial. Ao mesmo tempo em que eram
publicados registros como esse nos jornais, também era comum encontrar notícias sobre a cura
de pacientes sob os cuidados desses "charlatões". Um exemplo disso foi o caso de Pai Manoel,
um curandeiro africano que suas peripécias foram amplamente divulgadas pelos jornais locais.

O jornal Diário de Pernambuco acompanhou a história do curandeiro escravo, relatando sua


origem, as curas que ele alegava ter realizado com seu remédio e os eventos em que ele esteve
envolvido. Por sua vez, o jornal Liberal Pernambucano, que era oposicionista, adotou uma
postura crítica em relação ao caso, considerando o governo provincial como retrógrado por
permitir os serviços de um curandeiro, mesmo tendo médicos qualificados disponíveis no Recife
para lidar com a doença.
A falta de resultados positivos despertou a desconfiança da população e mostrou que a medicina
ainda não tinha a capacidade de reivindicar a exclusividade em seu campo de atuação.
A história pitoresca de Pai Manoel oferece insights sobre a formação do campo da medicina em
Pernambuco no século XIX e as disputas entre médicos e aqueles com saberes tradicionais de
cura, mas sem autorização para exercê-los.
O autor Ariosvaldo Diniz argumenta que a crise epidêmica envolveu uma batalha entre diferentes
concepções de saúde e práticas terapêuticas, buscando legitimidade social e reconhecimento
hegemônico. Ele também vê o incidente da prisão do curandeiro como resultado do medo da
população em relação às supostas intenções da elite e dos médicos locais. Nessa perspectiva, o
confronto entre a medicina científica e o curandeirismo é observado a partir da emergência de
Pai Manoel, revelando os diferentes significados que as várias camadas da população atribuíram
à epidemia e refletindo diferentes formas de medo.

O autor conclui que a epidemia de cólera "politicizou o discurso médico", ao destacar que a
desigualdade em relação à morte coincidia com a desigualdade em relação à vida.
Ao analisar o episódio de Pai Manoel para compreender os fatores que levaram a população a
confiar nele para tratar os doentes durante a epidemia de cólera. Um desses fatores é a
identidade sociocultural compartilhada entre o curandeiro, negro e escravizado, e a população
pobre e preta.

O estudo também observa que, além da população pobre, havia pessoas brancas de alta
condição social entre os clientes de Pai Manoel. Isso pode ser atribuído à desconfiança na
eficácia da medicina convencional para combater a doença, assim como à percepção de que o
curandeiro havia curado algumas pessoas em sua comunidade.
A insatisfação popular em relação à medicina científica e o medo de distúrbios levaram os
médicos a permitir a atuação de Pai Manoel como estratégia para conter o desânimo dos
profissionais diante da epidemia.
Essa situação revela a fragilidade do conhecimento médico sobre a doença e a possibilidade de
circulação de saberes entre o curandeiro e os médicos, que buscavam outras práticas para
auxiliar no tratamento. A emergência do curandeiro foi impulsionada pela descrença da
população na medicina científica, a rejeição aos tratamentos utilizados e a incompetência
percebida dos médicos para controlar a epidemia. Além disso, os curandeiros geralmente
possuíam conhecimentos tradicionais sobre doenças e curas, bem como laços de identidade e
confiança com sua clientela.
Portanto, durante períodos de epidemia, curandeiros, como Pai Manoel, ganharam espaço e
continuaram a fazer parte das histórias de saúde e doença em diversas regiões do Brasil.

Fontes:

– documentos da Fisicatura-mor

– Os textos escritos pelos médicos (livros, periódicos, teses e relatórios) conservados


nessas instituições podem ser classificados, usando como critério a sua destinação, em

três grupos: para o governo imperial, para os profissionais da medicina e para os leitores
em geral. O primeiro grupo é formado por textos enviados às Câmaras Municipais, ao
governo provincial e ao governo central.
Pai manoel
– Diario de Pernambuco
– Comissão de Higiene Pública de Pernambuco. Relatório do estado sanitário da província
de Pernambuco durante o ano de 1856.

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