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DIREITO

CONSTITUCIONAL
Aula 16
Direito à igualdade

Professor
Luís Henrique Linhares Zouein

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Introdução: fundamentos e peculiaridades.

Seguindo a mesma estrutura de sempre, começarei pelos fundamentos


constitucionais do direito à igualdade. O direito à igualdade está no art. 5º, caput da
Constituição e esse é o principal fundamento normativo do direito à igualdade na nossa
ordem jurídica como um todo, mas também se extrai com alguma tranquilidade do art. 3º
da Constituição, quando traz os objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil, dentre eles, por exemplo, construir uma sociedade livre, justa e solidária.
A igualdade com enfoque racial se extrai da Constituição quando, por
exemplo, no art. 5º, inciso XLII, ela traz um mandado expresso de criminalização com
relação ao racismo. Desse dispositivo e de outros se extrai a igualdade racial.
Já a questão de gênero, a igualdade de gênero, tem um inciso muito específico
no art. 5º, que dispõe:
Art. 5º.
I - Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos
termos desta Constituição.

É possível encontrar outros dispositivos ao longo da Constituição que também


consagram a igualdade de gênero.
Mas o direito à igualdade não está apenas na Constituição. Está em diversos
tratados internacionais de direito humanos de que o Brasil é signatário. O tratado que
mais de perto nos vincula é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. O direito
à igualdade é extraído tanto do art. 1.1, quanto do art. 24. Então, em questões discursivas,
em geral, que exijam algo envolvendo o direito à igualdade, a menção a um fundamento
convencional é sempre de bom tom.
Além disso, no âmbito interamericano, nós temos um tratado especificamente
sobre a igualdade racial, que é a Convenção Interamericana contra o Racismo, a
Discriminação Racial e Formas Correlatas contra a Intolerância. Esse tratado foi muito
recentemente internalizado na ordem jurídica brasileira pelo rito qualificado do art. 5º,
§3º. Ou seja, ele não é um tratado materialmente constitucional, mas, inclusive, tem status
formal de emenda à Constituição.

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Se nós temos no sistema interamericano um tratado específico com relação à
igualdade racial, temos também um tratado quanto à igualdade de gênero, que é a
Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a Mulher,
também conhecida como a Convenção de Belém do Pará, que foi internalizada pelo rito
ordinário, por isso tem status hierárquico supralegal: acima das leis, mas abaixo da
Constituição. Trouxemos aqui todo um arcabouço normativo para que vocês façam a
remissão no Código de vocês. Tem que ler os diplomas ou dispositivos que eu aqui
mencionei e eles devem ser apresentados em questões discursivas, ou mencionados en
passant em provas orais.
Mas a gente está falando do direito à igualdade, que tem peculiaridades
importantíssimas para o nosso estudo e para a prova dos senhores. A primeira dificuldade
de se abordar o direito à igualdade é a ausência de conteúdo pré-determinado. O conceito
de igualdade e, por consequência, o direito à igualdade, é preponderantemente
comparativo ou, como diria Ingo Sarlet, trata-se de um juízo relacional. Não há como se
identificar a promoção ou a violação do direito à igualdade sem que duas situações sejam
comparadas. Essa é a primeira dificuldade do direito à igualdade. Mas não apenas. Trata-
se de um conceito em constante transformação e ressignificação, a depender do momento
histórico, social e jurídico.

1. Fases do desenvolvimento do direito à igualdade:

Por isso, num esforço de trazer o desenvolvimento do direito à igualdade, para


fins exclusivamente didáticos e não científicos, trago agora as fases de desenvolvimento
do direito à igualdade, reconhecendo que se trata de um instrumento reducionista da
complexidade histórica e de viés euro-centrado. Mas, ainda assim, importante para esse
momento da aula.

1ª fase: Antigo Regime.


No que eu chamo de primeira fase do direito à igualdade, ela se dá num
momento do Antigo Regime, na Idade Média europeia. É pré revolução francesa, e já
vimos isso na aula de constitucionalismo, que a sociedade francesa era dividida em 3
estados ou estamentos. O primeiro e o segundo estado, compostos pela nobreza e pelo

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alto clero. Já o terceiro estado era composto pelo restante da população: burgueses, servos
e outras classes ou categorias sociais.
O terceiro estado representava entre 95% e 97% da população francesa, mas,
mesmo assim, tinha menos direitos e mais deveres, única e exclusivamente em
decorrência de uma questão hereditária. Pessoas nasciam com mais ou menos direitos,
mais ou menos deveres, única e exclusivamente em decorrência da herança ou do grupo
social que integrassem. Esta desigualdade, inclusive perante a lei, foi um dos
fundamentos que deflagrou as revoluções liberais burguesas, sobretudo no final do século
XVIII. Nesse contexto, dentre as principais revoluções, temos as revoluções inglesa,
estadunidense e francesa.

2ª fase: Revoluções liberais-burguesas.


Um dos principais objetivos das revoluções liberais-burguesas era,
justamente, extirpar os privilégios de origem estamental, que eram inerentes a essas
sociedades do antigo regime, sobretudo na Europa. O discurso liberal-burguês defendia a
igualdade – uma igualdade meramente formal, aqui tida como tratamento idêntico. A
crença na generalidade e na abstração das normas jurídicas defendia que todos deveriam
ser tratados de forma absolutamente igual perante a lei.
Essa segunda fase do direito à igualdade é, sem dúvida, algum avanço, porque
rompe com os odiosos privilégios estamentais inerentes ao antigo regime, mas merece
críticas importantes (mesmo em provas de concursos públicos um pouco mais
conservadoras). Ora, quando estamos diante de profundas desigualdades sociais, no chão
da vida, o tratamento idêntico a pessoas em situações absolutamente distintas, em especial
aquelas em profunda situação de vulnerabilidade perpetua, quiçá potencializa, as
desigualdades já existentes.
Logo, a igualdade tida como tratamento idêntico nessa segunda fase merece
uma crítica importante. Mas, uma segunda crítica que pode ser feita é que o discurso
revolucionário liberal burguês defendia a igualdade perante a lei, mas convivia com
desigualdade perante a lei das mulheres, que tinham menos direitos que os homens e,
durante muito tempo, conviveu com a escravidão. Durante décadas e mais décadas os
EUA, já independentes, pós a sua revolução, conviveram com a escravidão, sobretudo no
sul. Ou ainda a França, que enquanto falava em seu território em liberdade, igualdade e

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fraternidade, colonizava o Haiti ou depois reprimia de forma absolutamente sangrenta a
Revolução Haitiana, que culminou com a sua independência.
Ainda assim, reforço que essa segunda fase do direito à igualdade, a igualdade
formal tida como tratamento idêntico, já foi um avanço.
Para alguns autores, no Brasil, nós sequer atingimos essa etapa. Nós sequer
somos iguais perante a lei, ou ao menos na aplicação concreta dessa lei. O hoje ministro
Barroso, junto com a professora da UERJ, Aline Osorio, tem um argumento
interessantíssimo com o título “Você sabe com quem está falando?”. Não precisa ler para
concursos públicos. Mas eles, em síntese, defendem que no Brasil nós sequer atingimos
a igualdade formal.
Em tempos de pandemia, nós tivemos um desembargador na orla santista
chamando um guarda municipal de analfabeto, no momento em que foi abordado para
que colocasse uma máscara, no auge da pandemia. Aquele desembargador certamente se
acha acima da lei, para tratar o guarda municipal daquela forma, ao interpretar que a
legislação sanitária então vigente a ele não se aplicava. E os casos se reproduzem em
diferentes contextos Brasil afora.
E é justamente nesse contexto que Marcelo Neves, que nós já mencionamos
em mais de uma oportunidade quando falamos sobre transconstitucionalismo, quando
falamos sobre constitucionalização simbólica, traz os seus conceitos de subintegrados e
sobreintegrados.
No Brasil, nós teríamos essas duas categorias de cidadãos ou não cidadãos.
De um lado, nós temos os subintegrados. São indivíduos que, dificilmente, conseguem
fruir ou fazer valer os seus direitos mais básicos, porque estão em situação de extrema
vulnerabilidade. Mas, de outro lado, quando violam os seus deveres, sobretudo quando
violam a lei penal, são por ela especialmente selecionados. Portanto, alvos do sistema, do
aparato de criminalização secundária.
De outro lado, nós temos os sobreintegrados. São indivíduos que,
definitivamente, estão acima da lei. Conseguem fruir de todos os seus direitos
fundamentais em plenitude, mas dificilmente são cobrados quando violam os seus
deveres, ainda mais no âmbito da aplicação da lei penal. E, de fato, nos Brasil nós temos
subintegrados e sobreintegrados; pessoas que estão abaixo da lei e pessoas que estão
acima da lei.

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Na aula sobre constitucionalismo, nós já fizemos uma crítica importante ao
constitucionalismo liberal – crítica que eu já trouxe aqui, mas eu quero reproduzir na
passagem dos professores Daniel Sarmento e Cláudio Pereira Souza Neto:
“Se um indivíduo estivesse disposto a vender a sua força de
trabalho, submetendo-se a uma jornada diária de 16 horas por um
salário que mal permitisse a aquisição de alimentos, e outro se
dispusesse a comprá-la nesses termos, não caberia ao Estado se
imiscuir no negócio privado. O constitucionalismo liberal-
burguês afirmava o valor da igualdade, mas essa era vista a
partir de uma perspectiva formal. Ele combateu os privilégios
estamentais do Antigo Regime e a concepção organicista de
sociedade, que tornava os direitos e os deveres de cada um
dependentes da respectiva posição na estrutura social. Porém,
ignorava a opressão que se manifestava no âmbito das
relações sociais e econômicas, que permitiam ao mais forte
explorar o mais fraco. O constitucionalismo liberal-burguês
não incorporava, dentre as suas funções, a promoção da
igualdade material entre as pessoas.”1

3ª fase: o advento do Estado social.


Essas críticas que eu acabei de trazer levaram à terceira fase do direito à
igualdade, que se deu, sobretudo, com o advento do constitucionalismo social e do
consequente estado social. O conceito de igualdade, aqui, passa a ser ressignificado. Isso
porque o proletariado do século XIX é tão ou mais explorado que o servo, em momentos
anteriores, na Idade Média, por exemplo, na Europa. Se percebeu que o tratamento
idêntico perante a lei perpetuava, quiçá agravava, as desigualdades no chão da vida.
Nesse momento, portanto, no início do século XX, surgem novas
modalidades de direitos, os direitos sociais, econômicos e culturais, que exigem também
um fazer por parte do Estado e não apenas uma abstenção.

1
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e
métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 80

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O Estado, inclusive, pode tratar os seus cidadãos de forma diferenciada em
nome da justiça social. Desenvolve-se aqui, portanto, o conceito de igualdade material,
real ou substancial, que fica conhecido por aquela frase, ora atribuída a Aristóteles, ora
atribuída a Ruy Barbosa: igualdade é tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de
maneira desigual, na medida da desigualdade.
Temos, aqui, mais um avanço na promoção da justiça, da dignidade e da
autonomia dos indivíduos. Mas, esses conceitos de igualdade formal e igualdade material,
não são, necessariamente, excludentes. André de Carvalho Ramos, por exemplo,
reconhece que, em verdade, a igualdade formal e a igualdade material convivem e são
complementares, ambas concretizadas, em boa parte, nos principais diplomas normativos
em âmbito interno e inconvencional.

4ª fase: igualdade com pluralidade.


Mas eu defendo que estamos vivendo uma quarta fase do direito à igualdade,
ou ao menos uma tentativa de promoção de uma quarta etapa, que eu chamo de igualdade
com pluralidade. Esse momento da igualdade é muito bem identificado por aquela célebre
passagem do sociólogo português Boaventua de Souza Santos, quando fala que temos o
direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza. E temos direito a ser
diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma
igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou
reduza as desigualdades.

Igualdade como reconhecimento:


Ainda não vi cair em concursos públicos, mas dentro dessa lógica que eu
acabei de trazer dessa quarta fase, há um conceito de igualdade que pode ser exigido em
provas. Então, vamos de aposta: é o conceito de igualdade como reconhecimento, que já
foi mencionado em mais de uma oportunidade em votos do Ministro Barroso. Para o
ministro Barroso, para além da igualdade formal e da igualdade material, temos a
igualdade como reconhecimento. Não foi ele que inventou esse conceito, ele é
desenvolvido por uma socióloga estadunidense, Nancy Fraser.
Eu trouxe um trecho de um voto do ministro Barroso, em que ele traz essa
passagem:

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“6. No mundo contemporâneo, a igualdade se expressa
particularmente em três dimensões: a igualdade formal, que
funciona como proteção contra a existência de privilégios e
tratamentos discriminatórios; a igualdade material, que
corresponde às demandas por redistribuição de poder, riqueza e
bem estar social; e a igualdade como reconhecimento,
significando o respeito devido às minorias, sua identidade e
suas diferenças, sejam raciais, religiosas, sexuais ou
quaisquer outras. 7. No caso da igualdade como
reconhecimento, a injustiça a ser combatida não tem natureza
legal ou econômica, mas cultural ou simbólica. Ela decorre de
modelos sociais que excluem o diferente, rejeitam os “outros”,
produzindo a dominação cultural, o não reconhecimento ou
mesmo o desprezo. Determinados grupos são marginalizados em
razão da sua identidade, suas origens, religião, aparência física ou
opção sexual como os negros, judeus, povos indígenas, ciganos,
deficientes, mulheres, homossexuais e transgêneros. 8. O remédio
contra a discriminação e o preconceito envolve uma
transformação cultural capaz de criar um mundo aberto à
diferença (“a difference-friendly world”), onde a assimilação aos
padrões culturais dominantes ou majoritários não seja o preço a
ser pago pelo mútuo respeito. Estas são palavras de Nancy Fraser,
uma das principais teóricas desse tema. A luta pelo
reconhecimento não pretende dar a todos o mesmo status por
meio da eliminação dos fatores de distinção, mas pela superação
dos estereótipos e pela valorização da diferença. Nas palavras
felizes de Boaventura Sousa Santos: “As pessoas têm o direito de
ser iguais quando a diferença as inferioriza, e o direito a ser
diferentes quando a igualdade as descaracteriza”.”2

2
Trecho das “anotações para o voto oral do Ministro Luís Roberto Barroso” no Recurso Extraordinário n.
845.779.

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Percebam que a igualdade como reconhecimento busca combater
desigualdades não efetivamente jurídicas, não necessariamente econômicas, mas
sobretudo simbólicas e culturais. E busca a promoção daqueles que fogem do padrão
hegemônico, para que também sejam reconhecidos, sobretudo em sua dignidade,
autonomia e o direito de ser diferente.

2. Conceitos e classificações:
Há outros conceitos ou classificações do direito à igualdade que podem cair
na sua prova.

Eficácia horizontal do direito à igualdade:


A igualdade, como todo e qualquer direito fundamental, tem uma eficácia
vertical, portanto, oponível perante o Estado, mas também uma eficácia horizontal,
decorrente da sua aplicabilidade nas relações entre particulares, no bojo da sociedade
civil.
O Supremo Tribunal Federal tem precedente sobre o assunto, como o célebre
caso Air France, companhia aérea que, no Brasil, tinha regulamento que garantia mais
direitos aos seus trabalhadores franceses, em território brasileiro, do que aos demais
trabalhadores, inclusive os brasileiros. Essa questão chegou ao STF, que entendeu que
atos normativos internos da Air France violavam o direito à igualdade, porque o critério
era discriminatório, a nacionalidade, e o direito à igualdade tem uma eficácia horizontal.

Igualdade perante a lei vs. igualdade na lei:


Outros conceitos importantes são os conceitos de igualdade perante a lei e
igualdade na lei. Em que se distinguem os conceitos de igualdade perante a lei e igualdade
na lei? Essa distinção já foi mencionada pelo Ministro Celso de Mello e está em todos os
livros (Ingo Sarlet, André de Carvalho Ramos, Marcelo Novelino, Bernardo Gonçalves,
Flávia Bahia, Guilherme Peña). Por isso, pode aparecer, realmente, na sua prova.
A igualdade na lei é um princípio destinado, sobretudo, ao legislador que, no
momento de edição das leis, portanto, da criação do direito, deve observar o princípio da
igualdade. Já a igualdade perante a lei é um princípio dirigido aos aplicadores do direito,

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em especial a administração pública e o poder judiciário, que devem aplicar a lei posta,
promovendo o direito à igualdade, por exemplo, não realizando discriminações odiosas.

Discriminação indireta e teoria do impacto desproporcional:


Outro conceito que pode cair na sua prova é o conceito da discriminação
indireta e a decorrente teoria do impacto desproporcional. A discriminação direta é aquela
ostensiva, que busca negar o acesso a bens, a direitos, a serviços, de acordo com critérios
injustificados. É a discriminação propriamente dita, que é intuitiva.
Já a discriminação indireta é mais sutil. Ela pode ser não intencional, mas essa
prática inocente pode, de forma negativa e desproporcional, impactar um grupo, por
exemplo, um grupo em situação de vulnerabilidade. Na nossa aula sobre direito à vida,
concordei com o Ministro Barroso e eu Luís Henrique, defendi a inconstitucionalidade
ou, ao menos, o desacerto do ponto de vista da política criminal, da criminalização do
aborto, ao menos até os 3 meses de gestação. Ora, se nosso critério jurídico para a morte
é a morte encefálica, aproximadamente até as 12 semanas de gestação não há um
desenvolvimento suficiente do sistema nervoso central. Em não havendo
desenvolvimento suficiente do cérebro, não haveria vida do ponto de vista jurídico a ser
protegida ou, ao menos, devem prevalecer os direitos sexuais e reprodutivos das
mulheres. Mais além disso, defendi, junto do Ministro Barroso, que a criminalização do
aborto, no Brasil, embora seja genérica e abstrata, e aplicável a todas as mulheres que
abortem, impacta de maneira desproporcional mulheres pretas, pobre e periféricas.
Defendo, portanto, que a criminalização do aborto nos moldes atuais gera a discriminação
indireta em desfavor dessas mulheres em situação de vulnerabilidade e, por consequência,
o impacto desproporcional.

3. Igualdade como não submissão e o pensamento de Roberto Saba:

Há um conceito interessantíssimo que é o da igualdade como não submissão,


desenvolvido por um autor Argentino chamado Roberto Saba. Esse conceito é
interessante, pode cair na sua prova, caiu na minha prova da DPERJ. Em um célebre
artigo, com o título “Desigualdade Estrutural”, ele reconhece que os conceitos de
igualdade formal e igualdade material já foram suficientemente desenvolvidos pela

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doutrina. Ele não vai chegar a dizer que esses conceitos são errados ou insuficientes,
embora fiqueiclaro que ele considera que assim o seja.

Superação da dicotomia entre igualdade formal e igualdade material:


Mas o que ele quer é ir além dessa dicotomia entre igualdade formal e
igualdade material. E ele desenvolve, ao longo do seu texto, dois conceitos de igualdade:
igualdade como não discriminação e igualdade como não submissão. A igualdade como
não discriminação é um conceito de igualdade individualista e liberal. Na prática, um
aprimoramento do conceito de igualdade formal. A igualdade formal, quando surge,
naquela segunda fase na classificação que eu trouxe, era sinônimo de tratamento idêntico.

Igualdade como não discriminação:


A igualdade como não discriminação, apesar de um conceito também liberal
e individualista, tolera tratamentos diferenciados. Tratamento idêntico aqui não se
confunde com tratamento igual. Isso porque, à luz da igualdade como não discriminação,
são aceitas distinções, inclusive perante a lei, desde que essas distinções sejam racionais,
razoáveis, não arbitrárias e instrumentais. Para que haja uma diferenciação perante a
lei, deve estar muito bem demonstrada uma relação entre meios e fins. Determinada
diferenciação perante a lei deve atender os propósitos da legislação.
Com isso, surgem as categorias suspeitas ou suspeitosas, conceito
desenvolvido por Roberto Saba. As categorias suspeitas ou suspeitosas são aqueles em
que haveria, à luz da igualdade como não discriminação, uma presunção de
inconstitucionalidade. Tratar indivíduos de forma diferente perante a lei, em decorrência
da cor da pele, do gênero e da religião, da orientação sexual, da nacionalidade, são
critérios de diferenciação presumidamente inconstitucionais, havendo um elevado ônus
argumentativo daquele que pretende conferir tratamento diferenciado, com base nesses
critérios.
Percebam que a igualdade como não discriminação nada mais é que uma
manifestação da dimensão negativa do direito à igualdade, no sentido de que, sobretudo
o Estado, não deve tratar seus cidadãos de forma discriminatória.
Querem ver como essa igualdade como não discriminação pode ser aplicada?
Não foi mencionada pelos ministros, mas na ADI 5543, decidida em 08 de maio de 2020,

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o STF declarou inconstitucional atos normativos da ANVISA e do Ministério da Saúde
que, na prática, vedavam que homens homossexuais doassem sangue. O critério era
basicamente o seguinte: homens que mantiveram relações sexuais com outros homens
nos últimos 12 meses não poderiam doar sangue. Qual era o critério na prática?
Homossexualismo ou, mais especificamente, prática sexual de homem com homem.
Esses atos normativos foram declarados inconstitucionais pelo STF, por quê? Eu não sou
médico, biólogo ou cientista, mas eu já ouvi falar que, de fato, o sexo anal, por exemplo,
potencializa as chances de propagação de determinadas DSTs, em decorrência da
característica do ânus. Se é verdade ou não, eu não sei. Mas o homem homossexual pode
ser casado, monogâmico e só realizar suas relações sexuais com camisinha. Que risco ele
oferece? A inconstitucionalidade decorria, sobretudo, do critério. O critério orientação
sexual, mais especificamente, a homossexualidade, era um critério injustificado, porque
não aumenta ou reduz riscos. O que traz o risco é o comportamento sexual eventualmente
praticado pelo indivíduo. Se, por exemplo, ele pratica sexo desprotegido. Porque o critério
utilizado era suspeito, orientação sexual, a questão chegou ao STF, que reforçou ou
reafirmou a presunção de inconstitucionalidade do critério adotado. Percebam, aqui, uma
aplicação da igualdade como não discriminação.
Temos um grande problema. A igualdade como não discriminação, como eu
falei acima, é um conceito liberal e individualista. Ele está extremamente associado a uma
relação entre meios e fins. No exemplo da doação de sangue de homossexuais, demonstrei
aqui que o critério adotado não tinha uma relação entre meios e fins, porque era
discriminatório e não protegia efetivamente aqueles que recebiam sangue.
Vamos olhar outra relação entre meios e fins. Qual é o objetivo do vestibular?
Selecionar os melhores alunos que concluíram o ensino médio. Qual o objetivo de um
concurso público? Selecionar os melhores candidatos e uma seleção de forma que garanta
a impessoalidade. São essas as funções declaradas do vestibular e dos concursos públicos.
Considerando isso, como justificar as ações afirmativas, como a política de
cotas étnico-raciais, com base na igualdade como não discriminação? Não é possível,
porque esbarra nessa relação entre meios e fins. A não ser que a gente tente ressignificar
a função do vestibular ou do concurso público. Mas isso fica muito mais difícil, exige
muito mais esforço argumentativo. A verdade é que a igualdade como não discriminação
desconsidera fatores históricos e sociológicos que, eventualmente, podem ensejar um

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tratamento diferenciado para além de uma mera relação entre meios e fins e funções
declaradas de alguns institutos jurídicos. A cegueira com relação a diferenças estruturais,
sociológicas e históricas entre indivíduos ou grupos pode perpetuar, quiçá agravar. E aí,
Roberto Saba traz um importante exemplo dos processos seletivos para integrar
orquestras nos EUA e a utilização de uma cortina.
Lá na década de 1960, 1970, nos Estados Unidos, já numa tentativa de
promover a igualdade racial e de gênero naquele país, se percebeu que as orquestras, em
geral, eram compostas por homens brancos. Numa tentativa de dar mais pluralidade às
orquestras nos EUA, os processos seletivos passam a se dar da seguinte forma: o
indivíduo que vai tocar estará por trás de uma cortina, de tal forma que o avaliador não
sabe se aquele músico que toca é homem, mulher, preto ou branco, rico ou pobre. Se
avaliará apenas a sua qualidade musical, de tal forma que nessa cegueira, por detrás da
cortina, a meritocracia reinará. Isso foi feito por muitos anos nos EUA e se identificou
que as orquestras continuaram sendo compostas por homens brancos. A gente tem duas
opções: ou a gente reconhece que homens brancos são seres superiores, ao menos do
ponto de vista musical, às mulheres e aos homens negros, ou, como diria o filósofo: “algo
de errado não está certo”. E, de fato, não estava. Isso porque essa cegueira que
desconsidera desigualdades estruturais e estruturantes não reconhece, por exemplo, que
as mulheres são impactadas pela dupla jornada e, por isso, mulheres músicas, em regra,
tinham menos tempo de treinamento que os músicos homens, porque além de treinar,
tinham que cuidar da casa, do marido e dos filhos. Ou, que os negros, geralmente,
integram a base da pirâmide e os instrumentos com que eles treinavam ou mesmo tocavam
no processo seletivo eram instrumentos de menor qualidade. No final das contas, essas
desigualdades sociais profundas envolvendo raça e gênero, continuavam impactando o
processo seletivo. Ou seja, a cegueira em nada contribuiu para a redução das
desigualdades.

Igualdade como não submissão:


Por isso, Roberto Sabá desenvolve um outro conceito, que é o da igualdade
como não submissão. Aqui, a igualdade não é sinônimo de tratamento idêntico;
definitivamente não é. Mas sim, o oposto de submissão, de subjugamento, de
desigualdades históricas e estruturais. A igualdade como não submissão analisa, de forma

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estrutural, os indivíduos e as relações sociais nas quais eles estão inseridos. Por
consequência, ao estudar o indivíduo, acrescenta a ele dados sociológicos e históricos.
Isso não se confunde com a visão holística, em que existiram entes coletivos superiores
que os entes individuais. Mas a importância de reconhecer que o indivíduo somente “é”
porque está inserido num todo, num contexto histórico determinado.
Aqui também existem categorias suspeitas ou suspeitosas. Elas são
exatamente as mesmas: o gênero, a raça, orientação sexual, religião, nacionalidade. Mas
se na igualdade como não discriminação, um conceito individualista e liberal, haveria
uma presunção de inconstitucionalidade ao tratar de forma diferenciada com base nesses
critérios, na igualdade como não submissão, a inconstitucionalidade está na omissão, está
em tratar de forma igual indivíduos, mesmo que tenham com base esse critério, situações
absolutamente distintas. Tratar homens e mulheres de forma igual, em sociedades
marcadas pelo patriarcado e pela misoginia, perpetua a desigualdade de gênero, exigindo,
assim, tratamentos diferenciados compensatórios, para que se busque a igualdade real,
substancial, de fato. A igualdade, como eu chamo, no chão da vida.
Temos aqui, portanto, na igualdade como não submissão, uma dimensão
positiva do direito à igualdade, que exige um fazer, um tratar de forma diferenciada, com
a finalidade compensatória. Assim como a igualdade formal e a igualdade material podem
conviver e são eventualmente complementares, a igualdade como não discriminação e a
igualdade como não submissão também. A igualdade como não discriminação veda
discriminações odiosas, irracionais, irrazoáveis. A igualdade como não submissão tenta
romper com a relação de hierarquia entre indivíduos na nossa sociedade. Tenta romper
com as barreiras do racismo estrutural e do patriarcado, entre tantas outras formas de
dominação.

4. Teoria Crítica da Raça:

Vamos começar pelo enfoque racial. Eu quero começar com a teoria crítica
da raça, tendo como ponto de partida, o pensamento de Thula Pires. Primeiro, porque foi
minha professora na PUC do Rio e também porque foi examinadora do último concurso
da DPERJ, muito mencionada Brasil afora. Então, se temos que adotar um referencial,
que seja ela.

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Quero começar por essa passagem, do texto de Thula Pires, que temo como
título “Teoria Crítica da Raça como referencial teórico necessário para pensar a relação entre
Direito e racismo no Brasil”.
O psicanalista Contardo Calligaris empreende a seguinte
reflexão: "De onde surge, em tantos brasileiros brancos bem
intencionados, a convicção de viver em uma democracia racial?
Qual é a origem desse mito? A resposta não é difícil, diz ele, o
mito da democracia racial é fundado em uma sensação
unilateral e branca de conforto nas relações inter-raciais. Esse
conforto não é uma invenção, ele existe de fato, ele é efeito de
uma posição dominante incontestada. Quando eu digo
incontestada, diz Calligaris, no que concerne à sociedade
brasileira, quero dizer que não é só uma posição dominante de
fato - mais riqueza, mais poder -, é mais do que isso, é uma
posição dominante de fato, mas que vale como uma posição de
direito, ou seja, como efeito não da riqueza, mas de uma espécie
de hierarquia de castas. A desigualdade no Brasil é a expressão
material de uma organização hierárquica, ou seja, é a
continuação da escravatura. Corrigir a desigualdade que é
herdeira direta, ou melhor, continuação da escravatura, diz
Calligaris, não significa corrigir os restos da escravatura, significa
também começar, finalmente, a aboli-la". Neste contexto,
Calligaris conclui que: "Sonhar com a continuação da pretensa
democracia racial brasileira é aqui a expressão da nostalgia de
uma estrutura social que assegura, a tal ponto, o conforto de uma
posição branca dominante, que o branco e só ele pode se dar ao
luxo de afirmar que a raça não importa".3

Essa passagem me fez lembrar, sobretudo naquele período em que muito se


falava que “vidas negras importam”, e alguns respondiam: “todas vidas importam”. É

3
Caroline Lyrio Silva e Thula Pires - Teoria Crítica da Raça como referencial teórico necessário para pensar
a relação entre Direito e racismo no Brasil.

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evidente que todas as vidas importam. Mas, olharmos para os índices de letalidade
policial, para as vítimas de homicídio, em geral, negros morrem muito mais do que
brancos no Brasil, em mortes violentas. Aliás, quando olhamos os índices de feminicídio
no Brasil, o número de vítimas mulheres negras é infinitamente superior ao número de
mulheres brancas. É verdade que todas as vidas importam. Mas parece que, na prática,
vidas negras importam menos.

A raça como construção social:


Vamos fazer uma análise da teoria crítica da raça, à luz do pensamento de
Thula Pires. Primeira coisa importante a se destacar quando se fala em raça e em teoria
crítica da raça é que, para Thula Pires, e para boa parte dos pensadores brasileiros, e aí eu
cito também Silvio Almeida, a raça não é um conceito ideológico. Não existe raça do
ponto de vista da ciência séria. Até o século XV, XVI o conceito de raça era usado para
classificar plantas e animais, jamais foi utilizado para classificar seres humanos. Mas
passou a ser lá pelo século XVI. O que acontece a partir do século XVI? As grandes
navegações, o processo de colonização europeu e, sobretudo, a exploração da mão de
obra escrava indígena ou africana, em determinados territórios, como na América.
Portanto, a construção do conceito de raça e o consequente racismo é uma
construção social, histórica e sociológica, que se deu num momento muito específico, e
se perpetua até os dias atuais com constantes ressignificações, e que serviu como uma
tecnologia de poder do colonialismo europeu. Era necessário desumanizar determinados
indivíduos ou, ao menos, hierarquiza-los para se legitimar, no direito e na sociedade, a
escravidão, por exemplo. A raça, portanto, é uma construção social, e essa dimensão
sociológica da raça, que reconhece que critérios biológicos e científicos inexistem, já foi
adotada pelo Supremo Tribunal Federal em mais de uma oportunidade, no caso
Ellwanger, por exemplo, que trazia condutas antissemitas, portanto em desfavor do povo
judeu, mas também no momento de criminalizar a homotransfobia.
Mas Thula Pires desenvolve uma teoria crítica, mais especificamente uma
teoria crítica da raça. E ela traz uma proposta teórica e referencial alternativa à
hegemônica, reconhecendo que o direito é o instrumento de controle social e de
manutenção de hierarquias sociais. O direito que nós conhecemos é produzido numa
sociedade racista. E, por ser produzido numa sociedade com estrutura racista, é inevitável

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que esse direito seja racista. Mas também no momento de aplicação das normas, e não
apenas no momento da sua edição e da sua criação, temos manifestações racistas, porque
os aplicadores do direito estão inseridos num contexto, numa sociedade com estruturas
igualmente racistas. Basta ver a seletividade no âmbito da criminalização secundária.
Quantas pessoas são paradas em blitz ou abordadas em diligências policiais no meio da
rua com fundamento em “fundadas suspeitas”? Se a gente analisar, fica claro o recorte
racial nessa abordagem.

Abordagem interseccional:
Thula Pires reconhece que a questão racial é importantíssima, mas ela defende
uma abordagem interseccional das relações sociais. O que significa interseccionalidade?
Um conceito desenvolvido por uma socióloga estadunidense, Kimberle Crenshaw,
embora muitos digam que não tendo utilizada essa palavra, Lelia Gonzalez já se valia da
interseccionalidade na sua produção teórica, significa e reconhece que diversos fatores de
discriminação, diversos fatores que levam à exclusão podem se encontrar no mesmo caso
concreto, sobre o mesmo indivíduo. Eventualmente uma mulher, fator de vulnerabilidade,
será negra, pobre, trans, encarcerada, pessoa com deficiência. E é preciso considerar todos
esses fatores ao se analisar aquele indivíduo, aquele contexto ou as relações sociais de
subordinação e de hierarquização. Raça importa e importa muito, mas não é o único
elemento para se promover a igualdade. É preciso, sempre, fazer uma análise
interseccional.

Cegueira da cor:
Mas, do ponto de vista racial é preciso superar o que Thula Pires chama de
cegueira da cor. O discurso de que o direito, na sua construção e aplicação, é neutro,
objetivo, imparcial e a-histórico, em verdade, perpetua um direito racista. O primeiro
passo para combater o racismo é preciso reconhecer que as estruturas influenciam a
produção, bem como a aplicação do direito. Mas Thula Pires, assim como Silvio Almeida,
estão muito preocupados com o discurso liberal-burguês da meritocracia. E todos aqueles
que têm qualidade e trabalham muito atingem os seus objetivos e aqueles que fracassam,
fracassam por culpa única e exclusivamente deles mesmos. O discurso da meritocracia,
numa sociedade em que a cultura do poder público e a cúpula de poder na iniciativa

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privada é composta por homens brancos de meia idade, reforça no imaginário popular de
que mulheres são inferiores, de que negros são inferiores, de que pessoas com deficiência
são inferiores. O discurso da meritocracia esconde o processo seletivo e os critérios
discriminatórios que fazem com que negros e mulheres não cheguem à cúpula dos espaços
de poder, seja no setor público, seja no setor privado. A meritocracia no Brasil é uma
meritocracia injusta, e é preciso construir uma meritocracia justa. Para que haja
meritocracia justa se pressupõe igualdade de oportunidades.
É preciso, portanto, romper por completo o mito da democracia racial. Volta
e meia, o atual presidente e o vice-presidente da República, afirmam que não há racismo
no Brasil. Não são apenas eles. Boa parte da população tem uma falsa sensação de
tolerância e de igualdade. Talvez seja aquele “conforto branco” nas relações inter-raciais,
que só o branco pode se permitir.
Para se combater o racismo, é preciso, uma vez mais, que se reconheça que a
nossa sociedade é racista. E isso passa por ouvir a negritude. Thula Pires fala da
importância da voz da cor. Claro que a gente está aqui numa aula para concurso. É
possível que caia uma questão discursiva disserte sobre a teoria crítica da raça. Por isso
eu estou trazendo o arcabouço para que vocês possam dissertar sobre. Mas, o branco não
pode se apropriar das vozes dos negros, ainda que com as melhores intenções. Os negros
devem falar por si, trazendo a sua experiência da negritude.

5. Racismo estrutural no pensamento de Silvio Almeida:

Sobre o assunto, recentemente nós tivemos a prova oral da Defensoria do


Ceará. Direito antidiscriminatório é matéria autônoma na magistratura. Especificamente
no edital da DPECE, estava lá a distinção entre racismo individual, institucional e
estrutural. Isso se dá com base na obra de Silvio Almeida, que eu já mencionei em mais
de uma oportunidade. Em alguns editais de Banca FCC esse livro está vindo como
recomendação de leitura.

1. Concepção individualista:
Para Silvio Almeida, três são as concepções de racismo. A primeira
concepção de racismo é a concepção individualista. Esta parte da perspectiva do

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indivíduo, em que o racismo e, portanto, a prática de discriminação tendo como critério
a raça – lembrando que raça é uma construção social – é um fenômeno ético ou
psicológico e a questão do racismo ou do racista é questão patológica ou de anormalidade,
que merece ser reprimida pelo direito (por exemplo, o direito penal). Mas Silvio Almeida
reconhece que essa concepção é muito frágil e limitada. Naquele livro Pequeno Manual
Antirracista, de Djamila Ribeiro, ela menciona uma pesquisa da década de 1990. Esse
estudo concluiu que, para mais ou menos 90% dos brasileiros, existe racismo no Brasil.
De outro lado, mais ou menos 90% dos brasileiros não se consideravam racistas. Algo
está errado. Essa conta não fecha.

2. Concepção institucional:
A responsabilização individual de práticas racistas é importante. Mas
indivíduos são racistas porque eles nascem e são criados numa sociedade racista. Surge,
portanto, a concepção institucional do racismo, o denominado racismo institucional, que
é um avanço. Nas palavras de Silvio de Almeida, o racismo não se resume a
comportamento individuais, mas é “tratado como o resultado do funcionamento das
instituições, que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente,
desvantagens e privilégios com base na raça.”.
Quando falamos em instituições, pensamos numa pessoa jurídica, numa
empresa. Instituição, para Silvio Almeida, são um somatório de normas, de padrões, e de
técnicas de controle de indivíduos, e as instituições, nessa concepção institucional, são o
resultado e a representação dos mais diversos conflitos e das lutas sociais. Determinados
grupos hegemônicos conseguem dominar as instituições, que são instrumentalizadas, ou
hegemonizadas, palavra que Silvio Almeida prefere utilizar, aqui, no nosso contexto, por
grupos raciais, no caso, os brancos que impõem seus interesses políticos e econômicos.
A concepção institucional de racismo está muito associada à dinâmica de poder: o poder
é um elemento central, bem como de dominação. A concepção institucional de racismo é
também um importante avanço. Por sinal, a maior parte dos livros usa racismo
institucional e racimos estrutural como sinônimos. Contudo, para Silvio de Almeida,
esses conceitos NÃO são sinônimos.

3. Concepção estrutural:

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As instituições são racistas também porque estão inseridas em sociedades
racistas, sociedades que têm racismo como base fundante. O racismo é, sobretudo,
estrutural e esse é o mais difícil de combater. Quero trazer para os senhores uma
passagem, ipsis litteris, de Silvio de Almeida sobre a concepção estrutural de racismo.
Para Silvio de Almeida.
“o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja,
do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas,
econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia
social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural.
Comportamentos individuais e processos institucionais são
derivados de uma sociedade cujo racismo é a regra e não a
exceção.” (p. 50). Neste contexto, continua Silvio Almeida, “O
racismo é um processo político. Político porque, como processo
sistêmico de discriminação que influencia a organização da
sociedade, depende de poder político; caso contrário seria
inviável a discriminação sistemática de grupos sociais inteiros.
Por isso, é absolutamente sem sentido a ideia de racismo reverso.
Há um grande equívoco nessa ideia porque membros de grupos
raciais minoritários podem até ser preconceituosos ou praticar
discriminação, mas não podem impor desvantagens sociais a
membros de outros grupos majoritários, seja direta, seja
indiretamente.” (p. 53). Ademais, “Por ser processo estrutural, o
racismo é também processo histórico. Desse modo, não se pode
compreender o racismo apenas como derivação automática dos
sistemas econômico e político. A especificidade da dinâmica
estrutural do racismo está ligada às peculiaridades de cada
formação social.” (p. 55).

O que ele quer dizer com essa parte final é que o racismo no Brasil não é o
mesmo que nos EUA, que não é o mesmo que na África do Sul. Se o racismo é diferente,
os mecanismos de combate a esse racismo estrutural devem ser, igualmente, diversos.

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Todo esse contexto pode ser exigido, em teoria, na sua prova de concurso
público. Mas é pressuposto para gente falar de ações afirmativas e políticas de cota étnico-
raciais. Esse, sim, é o tema mais quente para todos os concursos públicos.

6. Ações afirmativas e a política de cotas étnico-raciais:

A partir de agora falaremos das ações afirmativas, com enfoque étnico-


raciais.

Conceito:
Ações afirmativas, no conceito de André de Carvalho Ramos, consistem “em
um conjunto de diversas medidas, adotadas temporariamente e com foco determinado,
que visa compensar a existência de uma situação de discriminação que políticas
generalistas não conseguem eliminar, e objetivam a concretização do acesso a bens e
direitos diversos.” O conceito de Marcelo Novelino também é muito semelhante.
Para maior parte da doutrina, ação afirmativa é sinônimo de discriminação
positiva. Discriminação reversa já foi usada como sinônimo de ação afirmativa em prova
de banca CESPE. Não gostei dessa expressão, porque ela pode ser associada ao racismo
reverso, expressão esta que deve ser abolida.
As ações afirmativas, portanto essas medidas compensatórias para acelerar o
processo de redução das desigualdades sociais, envolvendo grupos extremamente
vulnerabilizados, foram desenvolvidas tanto nos EUA, sobretudo com a superação do
apartheid estadunidense e a política do separate but equal, mas também implementada,
há muito tempo, na Índia, numa tentativa de superação da lógica ou da estrutura social de
castas. Percebam, portanto, que a ação afirmativa nada tem de comunista. Um dos
principais países que a desenvolveu foi, justamente, os EUA.

Temporariedade:
E, de fato, essas medidas compensatórias das mais diversas têm a
temporariedade como característica marcante. Em regra, ações afirmativas, que não se
resumem às cotas, mas são o principal exemplo, tem a caraterística da temporariedade,
pois atingido o objetivo que se pretende buscar – redução das desigualdades raciais –

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essas medidas devem ser extintas, salvo algumas exceções. Medidas compensatórias
envolvendo indígenas e pessoas com deficiência tendem a ser permanentes, ou seja,
desprovidas da característica da temporariedade.

Argumentos favoráveis:
Não há mais hoje como afirmar que cota é racismo reverso. Evidentemente,
são medidas insuficientes para combater o racismo estrutural. Mas, se isso cair na sua
prova discursiva, vai ser para defender a legitimidade e a constitucionalidade, mesmo em
bancas mais conservadoras.
Imaginem que numa questão de concurso público vem o Caso Magazine
Luiza. A sociedade empresarial Magazine Luiza, em 2020/2021, realizou um processo
seletivo para treinee em que apenas seriam contratadas pessoas negras, pessoas pretas ou
pardas. Foi ajuizada uma ação civil pública, por um DPU isoladamente, falando que era
“marketing da lacração” e que aquilo seria racismo reverso. É claro que essas alegações
não podem sobreviver e não irão. Se cai o caso Magazine Luiz na sua prova, quais são os
argumentos para defender a legitimidade e a constitucionalidade de ações afirmativas
étnico-raciais? O primeiro fundamento é o da igualdade material. Essa expressão tem que
aparecer na sua prova. Igualdade não mais consiste em tratamento idêntico, o
ordenamento jurídico contemporâneo tolera tratamentos diferenciados e medidas
compensatórias em nome da justiça social. Igualdade material consiste em tratar os iguais
de maneira igual, os desiguais de maneira desigual, na medida da desigualdade.
Também não tem como deixar de falar, em uma questão discursiva, que a
jurisprudência do STF é pacífica pela constitucionalidade das ações afirmativas, bem
como das políticas de cotas, ainda que o critério seja exclusivamente étnico-racial. O STF
já reconheceu a constitucionalidade das cotas raciais em concursos públicos, no
informativo 868, das cotas de universidades públicas, no informativo 663. Mas não se
trata de uma construção exclusivamente principiológica ou jurisprudencial. O Estatuto da
Igualdade Racial, que é uma lei ordinária, no art. 4º, em diversos incisos, consagra as
ações afirmativas, inclusive exclusivamente étnico-raciais, tanto no setor público quanto
na iniciativa privada. Mas não apenas lei. Muito recentemente, internalizamos a
Convenção Interamericana contra o Racismo, com status formal de emenda à

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Constituição, e em seu art. 5º traz expressamente a legitimidade das ações afirmativas.
Aliás, traz como um dever, desde que essas ações afirmativas sejam temporárias.
Percebam, portanto, que a internalização da Convenção Interamericana contra
o Racismo com esse status, constitucionalizou, de maneira expressa, a política de cotas
raciais, não havendo mais como sustentar a sua inconstitucionalidade.
Mesmo em provas mais conservadoras, então menos progressistas, eu falaria
os argumentos que eu trouxe antes: igualdade material, posição do STF, Estatuto da
Igualdade Racial e Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

Caso Simone André Diniz:


Em provas mais críticas, racismo estrutural no pensamento de Silvio de
Almeida deve aparecer na sua resposta. Em provas de Defensoria Pública ou provas que
exigem o direito internacional dos DH, como MPF, eu também mencionaria o Caso
Simone André Diniz. O Brasil foi responsabilizado na Comissão Interamericana de
Direitos Humanos. Isso porque, na década de 1990, uma senhora de São Paulo publicou
na Folha, anunciando que queria contratar uma empregada doméstica, mas que essa
empregada doméstica deveria ser, obrigatoriamente, branca. Simone André Diniz, vítima,
negra, compareceu à entrevista de emprego e não foi contratada, única e exclusivamente
por ser negra. Foi à delegacia noticiar os fatos. Claro, o caso foi remetido ao Ministério
Público, que ao final, se manifestou pelo arquivamento, que foi homologado pelo poder
judiciário. Jamais se investigou, processou e, menos ainda, puniu aquele comportamento
racista daquela dondoca de São Paulo, que queria uma empregada branca.
O caso Simone André Diniz é um grande marco do racismo institucional do
nosso sistema interamericano de direitos humanos. Em síntese, é aquele praticado ou
tolerado pelas instituições. Mas por que o caso Magazine Luiza é legítimo e constitucional
quando se contratava apenas negros e o Caso Simone André Diniz é um absurdo do ponto
de vista moral e jurídico, quando se contratava apenas branco? Não há uma contradição?
Claro que não. Isso fica muito claro nas lições de André de Carvalho Ramos. Para ele, a
diferenciação para a inclusão é distinta da diferenciação para exclusão. Quando a
Magazine Luiza realizou o seu processo seletivo, ela identificou que embora a maior parte
dos seus funcionários fossem negros, quando se chegava à cúpula da sociedade
empresária, os negros eram uma ínfima minoria. Essa pirâmide estava desigual e

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perpetuava racismo estrutural. E, para acelerar a igualdade dentro da empresa, tentou
acelerar o processo de chegada de negros, também, à cúpula da sociedade empresária. O
tratamento diferenciado objetivava incluir negros em espaços que eles jamais ocupavam.

7. Feminismo:

Pra gente fechar essa aula, eu quero trazer algumas questões sobre igualdade
de gênero. Eu quero falar sobre as ondas do feminismo. Sobre o tema, tem um texto bem
interessante de uma Juíza do Trabalho, Laura Rodrigues Benda, de título O feminismo
como epstemologia da diferença. Quero ler essa passagem para vocês:
“Visto como pensamento da diferença, o feminismo aparece
como um grande revisor da história. As relações entre feminismo
e história são ricas, múltiplas e cheias de caminhos. O feminismo
tem mostrado como a história, seguindo alguns interesses, apagou
a mulher de suas páginas, fazendo com que ela aparecesse apenas
como um outro do homem. Imagens onde a mulher aparece
‘produtivamente’ são simplesmente esquecidas. Mas uma das
coisas que o feminismo nos mostra é que a história não é o
destino, assim como o corpo também não o é.”4

A examinadora Renata Tavares nos últimos 3 concursos da DPERJ tem um


artigo no seu mestrado na Argentina em que ela também desenvolve as ondas do
feminismo. Vejamos do que se trata.

1. Ondas do feminismo:
Aqueles que trabalham com as ondas do feminismo buscam traçar o
desenvolvimento histórico da luta das mulheres por mais direitos. Claro que, como toda
classificação, também é reducionista da complexidade, da dialeticidade histórica. E mais,
a perspectiva aqui é preponderantemente ocidental, quiçá, euro-centrada, por isso,
passível de críticas. Mas tem a sua importância.

4
BENDA, Laura Rodrigues. O feminismo como epistemologia da diferença. Disponível em:
http://www.justificando.com/2018/06/28/o-feminismo-como-epi stemologia-da-diferenca/.

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1ª onda do feminismo:
A primeira onda do feminismo se deu no final do século XIX e começo do
século XX em países como EUA, Canadá, parte da Europa, Inglaterra e Europa
continental. Naquele momento, as mulheres lutavam, sobretudo, por mais direitos civis e
políticos. No âmbito dos direitos civis, por exemplo, defendiam a igualdade perante a lei.
No âmbito dos direitos políticos defendiam o direito ao voto. Aliás, essas mulheres, esse
movimento do final do século XIX, início do século XX ficou conhecido como “As
sufragistas”, porque o direito ao voto era de suas principais reivindicações.
É importante lembrar que no Brasil, à luz do Código Civil de 1916 e até 1962,
as mulheres casadas eram tidas como relativamente incapazes, para praticar atos
existenciais e patrimoniais precisavam de autorização do seu marido. Uma história muito
recente do nosso país. No Brasil, as mulheres conquistaram o direito ao voto apenas em
1932. Apenas, mas antes de muito país europeu que acha que é mais civilizado que a
gente, por meio do Código Eleitoral de 1932. O direito foi constitucionalizado depois,
com a primeira Constituição de Vargas de 1934.
Uma crítica importante a esse movimento é que ele era composto
preponderantemente por mulheres brancas, de classe média ou de classe média-alta, por
isso desconsiderava boa parte das questões de gênero que impactavam, sobretudo, as
mulheres negras ou as mulheres pobres ou as mulheres negras e pobres, porque temos
interseccionalidade.

2ª onda do feminismo:
A partir da década de 1960 passa-se a desenvolver a segunda onda do
feminismo. Na década de 1960, o mundo está em ebulição. Até aquele célebre livro
“1968, o ano que não acabou”. O movimento hippie, guerra do Vietnã, ditaduras na
América Latina e movimentos de combate a essas ditaduras. E é dentro desse caos de
lutas, que se desenvolve um segundo momento, uma segunda onda do feminismo, que
tem dentre as principais pautas o combate a violência de gênero, inclusive, a violência
doméstico-familiar física contra a mulher, mas também os direitos sexuais e reprodutivos.
Essa segunda onda bebe na fonte do arcabouço teórico de Simone de Beauvoir,
que publicou a célebre obra, “O Segundo Sexo”, em 1949, que é sintetizado pela frase:

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“não se nasce mulher, torna-se”. Se a raça é uma construção social, o gênero também é
uma construção social. O sexo é um conceito essencialmente biológico, composto por
fatores cromossomáticos, e capacidade reprodutiva, que envolve genitália. Quando a
gente está falando de sexo, falamos de macho e fêmea.
O gênero é uma construção social que busca legitimar desigualdades a
pretexto de se basear na biologia. Porque meninos vestem azul e meninas vestem rosa,
porque meninos não podem chorar – nada mais são que questões culturais e não da
biologia. O gênero, portanto, mulher e homem, são construções sociais. Por isso, mulher
trans mulher é, porque associada à identidade de gênero dentro dessa lógica binária, plural
de homem e mulher, aquele indivíduo, aquela mulher, mulher trans, se autoidentifica e se
projeta para a sociedade como mulher e, portanto, mulher é.
Uma das principais características da segunda onda do feminismo é a
revolução sexual, muito em decorrência do desenvolvimento da primeira pílula que
contribuiu para a emancipação da mulher.

3ª onda do feminismo:
Já a terceira onda do feminismo passa a se desenvolver a partir das décadas
de 1980 e 1990. Há quem fale em quarta, quinta e até sexta onda. Assim como as gerações
de direito fundamentais, já passa a gerar uma bagunça. Mas há alguma tranquilidade ao
se falar nessa terceira onda do feminismo, que tem como grande marco o reconhecimento
das diversas identidades femininas. A discriminação sofrida pela mulher branca de classe
média-alta, de nível superior não é a mesma discriminação sofrida pela mulher negra, que
não é a mesma discriminação sofrida pela mulher trans. Podemos adicionar a esses fatores
questões de classe, a pobreza ou outros tantos, como por exemplo, o fato de ser pessoa
com deficiência. É nesse momento que se desenvolve de forma mais clara o feminismo,
especificamente, negro.
Também nesse momento se desenvolve a teoria queer, com as contribuições
teóricas da socióloga estadunidense Judith Butler, que tenta superar as mais diversas
lógicas binárias da nossa sociedade, inclusive, quando se fala em gênero e sexualidade.
A teoria queer, veremos ela numa aula sobre identidade de gênero e orientação sexual,
bebendo na fonte de Focoualt, faz uma análise dos processos de normalização,
considerando a sexualidade como um dispositivo de poder. É nesse momento que se fala,

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inclusive, em transfeminismo. Isso porque as mulheres trans, durante muito tempo
tiveram ou podem ainda ter, um pênis. E, para parte das feministas, por ter tido a condição
de homem em algum momento da sua trajetória, essas mulheres trans seriam mais
privilegiadas que aquelas que biologicamente são fêmeas.
A questão que se coloca é que a discriminação sofrida pelas mulheres trans
tem suas peculiaridades e, sem nenhuma base científica, eu diria que a discriminação
sofrida por mulheres trans é muito mais intensa do que aquela sofrida pelas mulheres em
decorrência, única e exclusivamente, do patriarcado. A heteronormatividade se soma ao
patriarcado aqui.

2. Feminismo interamericano:
Pra gente fechar essa aula, vamos falar sobre feminismo interamericano, para
falar de dois precedentes da Corte IDH envolvendo direitos da mulher.

Caso Campo Algodoeiro:


O primeiro é o caso Campo Algodoeiro (caso González e outras vs. México).
Foi a primeira vez que a Corte IDH falou em violência estrutural de gênero e, aqui, o
estrutural significa a difusão da violência de gênero. Isso se dá na cidade de Juarez, no
México, em que os índices de violência física contra a mulher e de feminicídio atingiram
índices alarmantes.
O caso concreto que chegou à Corte IDH envolve, especialmente, o
desaparecimento de 3 meninas (das 3, duas eram menores de 18 anos). Essas meninas
simplesmente desapareceram e depois de certo tempo as famílias procuraram a polícia
local. E há relatos no processo de que, ao procurar a polícia local, foram absolutamente
desrespeitadas, com comentários do tipo: não se preocupa não; a sua filha deve ter fugido
com o namoradinho, daqui a pouco ela volta. Claro, questões envolvendo a vida sexual
dessas meninas também foram mencionadas na oportunidade. Dias depois, as três foram
encontradas em Campos de Algodão, mortas, muitas delas amputadas e com claros sinais
de violência sexual. A violência não foi praticada pelo estado mexicano, mas sim por
particulares. Mas, ao não investigar, ao não processar e ao não punir com a perspectiva
de gênero, o Estado mexicano perpetua e estimula aquela situação de violência estrutural
de gênero.

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Foi a primeira oportunidade em que o Tribunal Internacional se valeu da
expressão feminicídio, um homicídio que se dá em decorrência do gênero da vítima. E
mais, na oportunidade, a Corte IDH reconheceu sua própria competência para analisar
violações à Convenção de Belém do Pará.

Caso Márcia Barbosa


O caso Campo Algodoeiro é um caso muito importante. Mas também é o caso
Márcia Barbosa (Barbosa de Souza e outros vs. Brasil), condenação mais recente do
Brasil na Corte IDH. O Brasil foi condenado no final de 2021, um caso que envolvia,
também, feminicídio.
O contexto é de uma jovem de 20 e poucos anos, que saía com um deputado
estadual na Paraíba. Em dado momento, e isso é produzido ao longo do processo, essa
menina se relaciona sexualmente com o deputado. Dado dia vai com ele para um motel e
horas depois aparece morta em um matagal. Após investigações, se concluiu que esse
deputado estadual foi o responsável pelo feminicídio dessa jovem. Por ser deputado, tem
diversas imunidades parlamentares e, à época (isso foi alterado posteriormente por
emenda à Constituição) para que um parlamentar fosse processado criminalmente havia
a necessidade de autorização da respectiva Casa – hoje não há mais necessidade de
autorização, mas a casa pode suspender um processo já instaurado. Qual a diferença? O
capital político envolvido é diferente. Uma coisa é não deixar o processo nem começar,
outra coisa é fazer cessar um processo já em andamento. E, por duas vezes, a Assembleia
Legislativa da Paraíba não permitiu que esse deputado, mesmo havendo provas cabais,
fosse processado pelo feminicídio de Márcia Barbosa. Somente quando perdeu seu
mandato, porque não mais eleito, foi possível processamento e o julgamento do indivíduo,
o ex-deputado estadual. Mas durante toda a investigação e durante todo o processo houve
uma ausência de perspectiva de gênero. Pelo contrário, a todo o momento foram utilizados
estereótipos de gênero na investigação e no processo. A defesa desse ex-deputado, no
curso do processo judicial, juntou dezenas, centenas de páginas de matéria de jornal, que
tratavam única e exclusivamente da vida sexual da vítima, como se vivesse uma vida de
libertinagem, como se ela fosse prostituta ou não fizesse alguma diferença no feminicídio
ali praticado.

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Em decorrência desse comportamento do Estado brasileiro, que envolveu
uma aplicação indevida da imunidade parlamentar, garantindo, assim, imunidade durante
muito tempo, bem como a ausência de uma perspectiva de gênero, e práticas que deveriam
ter sido coibidas pelo poder judiciário, pelo MP e, sobretudo, práticas adotadas pela
defesa do ex-deputado estadual, o Brasil foi responsabilizado no final de 2021 na Corte
IDH. Esse caso vai cair em concursos públicos que exijam direito internacional dos
direitos humanos.
Com isso, encerramos nossa aula sobre direito à igualdade.

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