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NA VIDA COTIDIANA*
Édison Gastaldo
publicitários “hiper-ritualizam” as relações de gê- melhor seja escolhida. Então, como diz Goffman,
nero. A idéia de “ritual” em Goffman refere-se a com sua tradicional ironia, o médico dos anúncios
um comportamento expressivo, a gestos ou ações publicitários tem muito mais “cara de médico” do
significativos. Por exemplo, meninos carregam seus que os médicos de verdade, embora se trate de um
cadernos ou livros debaixo do braço; meninas, em ator fazendo o papel de médico – seu avental é
frente ao peito, com ambos os braços. Nada os mais branco, seu estetoscópio, mais brilhante, seu
impede ou os obriga a agirem assim, mas ter uma diploma é repleto de medalhinhas. A hiper-rituali-
conduta que não se enquadra no que é considerado zação do discurso publicitário apresenta o mundo
adequado a seu gênero pode gerar, por exemplo, cotidiano em estado de graça.
dúvida sobre a masculinidade dos meninos ou a Analisando mais de quinhentas fotografias de
feminilidade das meninas. Trata-se de condutas homens e mulheres em interação nos anúncios publi-
“ritualizadas”, portadoras de um sentido que não citários, Goffman encontra regularidades surpreen-
está, evidentemente, nas condutas em si, mas nos dentes: quando alguém ensina alguma coisa à outra
códigos culturais que nelas imprimem significado. pessoa, é o homem que ensina a mulher, mesmo
Goffman chama estas – e outras – condutas de que seja um garoto de seis anos “ensinando” a pro-
“rituais da interação”, maneiras codificadas de com- fessora a utilizar um novo produto. Quando alguém
portamento expressivo, como saudações, pedidos é mais alto, é o homem que ocupa a posição superior.
de desculpa, ou mesmo ofensas deliberadas. Com A única exceção é quando o viés de classe se interpõe,
relação aos papéis de gênero, Goffman usa uma de modo que a mulher de classe alta aparece num
noção fundamental, denominada gender display, ou plano superior, com seus serviçais – garçons, jardi-
“display de gênero”. O termo display é oriundo da neiros etc., – curvando-se perante a “patroa”, o que
etologia, ramo da biologia que estuda o compor- evidencia hierarquias sociais ritualizadas e, porque não
tamento dos animais. Um display é a maneira pela assumidas nem colocadas em discussão, apresenta-
qual um animal evidencia a outros o seu alinhamento das como parte da “natureza”, como obviedades.
a uma determinada situação. Por exemplo, se uma Uma categoria de ritualização de gênero que
pessoa entrar em um pátio guardado por um cão, permanece intacta até hoje, mesmo passados trinta
é possível que ele se coloque na sua frente, erice os anos de ação intensa do movimento feminista, é o
pêlos, baixe as orelhas, rosne e mostre os dentes, chamado “toque feminino”, manifestado na posi-
mostrando que atacará o intruso caso ele dê mais ção das mãos das mulheres. Nos anúncios, homens
um passo. Se a pessoa for sensata, vai recuar lenta- empunham objetos, utilizando-os em sua função
mente. Assim, o cão evita os riscos de efetivamente prática: pegam a caneta e escrevem, pegam o volante
se envolver em uma luta que poderá causar danos do carro e dirigem, pegam uma maçã e comem.
a ele. Display é, portanto, uma forma de comunica- As mulheres, não. Elas se limitam a “tocar” os ob-
ção animal. Os “displays de gênero”, no caso dos jetos – ou partes de seu corpo – com as pontas
seres humanos, funcionam como marcadores rituais dos dedos, como se os acariciassem, mas não atuam
de pertencimento a grupos de gênero, e em geral sobre o mundo com esses objetos. Tal represen-
são assumidos tacitamente (apesar de serem cultu- tação da feminilidade sustenta uma relação de po-
ralmente codificados e aprendidos quando da so- der naturalizada, em que a mulher ocupa um lugar
cialização das crianças). “naturalmente” subordinado, ela se torna “natural-
As imagens publicitárias são “hiper-ritualiza- mente” um ornamento, trata-se da “essência” da
das” porque, se na vida cotidiana, os comporta- feminilidade. Esse discurso, que supostamente está
mentos expressivos ocorrem espontaneamente, na veiculado para vender produtos, “vende” também
publicidade eles são “ensaiados”, produzidos, re- relações de poder, que se apresentam como obvie-
petidos, até que exprimam com a máxima eficiên- dades, como evidências, mas que fundamentam,
cia comunicacional o sentido desejado. Isso ocorre reiteram e sustentam uma desigualdade fundamen-
pela própria natureza do discurso publicitário, que tal. Assim, além das relações de gênero nos anúncios,
não tem tempo nem dinheiro (e na mídia, tempo é constata-se também outra relação de poder, qual
dinheiro) para perder com ambigüidades – os signi- seja, o poder da publicidade para com a sociedade
ficados precisam ser captados num relance. Assim, à qual ela se destina, o vínculo forte entre os meios
são produzidas centenas de fotografias para que a de comunicação de massa e o campo social.
Na medida em que tais relações são conside- CARLIN, Andrew. (2004), “‘Enquadrando’ biblio-
radas óbvias – quando na realidade elas absoluta- grafias: reflexividade, relevância e a ‘imaginação
mente não são –, perpetua-se aí uma hegemonia. sociológica’”, in E. Gastaldo (org.), Erving Gof-
Não é à toa que esta suposta naturalidade se torna fman, desbravador do cotidiano, Porto Alegre,
uma fonte de constrangimento social, por exem- Tomo Editorial.
plo para um casal em que o homem é menor que a DURKHEIM, Émile. (2002), As regras do método
mulher, ou ganha menos do que ela etc.. Essa natu- sociológico. São Paulo, Martins Fontes.
ralização é, ela própria, uma relação de poder, que GASTALDO, E. (org.). (2004), Erving Goffman, des-
colaborará para a desmobilização do debate no bravador do cotidiano. Porto Alegre, Tomo Edi-
campo social, deixando de problematizar uma pro- torial.
funda desigualdade de gênero. GOFFMAN, Erving. (1959), The presentation of self
in everyday life. Garden City, NY, Doubleday.
_________. (1967), Interaction ritual. Garden City,
Para concluir
NY, Doubleday.
A perspectiva de Goffman nos permite en- _________. (1974), Manicômios, prisões e conventos. São
tender, em vez da relação entre burguesia e prole- Paulo, Perspectiva.
tariado, as interações entre patrões e empregados _________. (1975), A representação do eu na vida co-
em uma fábrica; em vez de uma luta de classes ex- tidiana. Petrópolis, Vozes.
plícita, a relação entre uma dona de casa e sua em- _________. (1975), Estigma: notas sobre a manipula-
pregada doméstica. Nesses silenciosos campos de ção da identidade deteriorada. Rio de Janeiro,
batalha, onde a luta de classes ocorre na nossa fren- Zahar.
te, nós temos no quadro teórico de Goffman uma _________. (1979), Gender advertisements. Nova
magnífica ferramenta para estudar as relações entre York, Harper and Row.
pessoas, que geralmente são bastante problemáti- RIBEIRO, Branca & GARCEZ, Pedro (org.).
cas, que raramente não envolvem uma relação de (1998), Sociolingüística interacional. Porto Alegre,
ascendência de poder ou de desigualdade. Creio Age.
que Goffman apresenta um sólido quadro de refe- RILEY, Matilda & NELSON, Edward (orgs.).
rência para pensarmos a ordem da interação em (1976), A observação sociológica. Rio de Janeiro,
contextos institucionais, escolares, de trabalho, na Zahar.
mídia, na família e mesmo na política. VELHO, Gilberto. (2004), “Becker, Goffman e a
Nesse sentido, é interessante refletirmos so- antropologia no Brasil”, in E. Gastaldo (org.),
bre a dimensão interacional da política, de que a lei Erving Goffman, desbravador do cotidiano, Porto
e o Estado são talvez a face mais visível. Quem Alegre, Tomo Editorial.
mora em Brasília certamente sabe muito bem o WINKIN, Yves. (1998), Os momentos e seus homens.
quanto as leis são criadas entre cafezinhos, elevado- Lisboa, Relógio D’Água.
res e bilhetinhos... Na Constituição está a letra fria
da lei, mas as palavras que as expressam são defini-
das com acordos fundados na ordem da interação,
entre pares, em conversas que acabarão resultando
na configuração mais explícita do poder. Com a
perspectiva de Goffman, temos uma ferramenta
teórica poderosa e ainda parcialmente inexplorada.
BIBLIOGRAFIA
Palavras-chave: Erving Goffman; Po- Keywords: Erving Goffman; Poder; Mots-clés: Erving Goffman ; Pouvoir ;
der; Cotidiano. Everyday. Quotidien.
Este artigo busca explorar parte da obra This paper aims at exploring part of the Cet article se propose d’explorer l’œuvre
do sociólogo canadense Erving Goffman, work of the Canadian sociologist Erving du sociologue canadien Erving Goffman
a propósito do tratamento dado por este Goffman, especially his dealing with the par rapport à l’abordage qu’il propose
autor acerca das relações de poder na vida relations of power in the daily life. This sur les relations de pouvoir dans la vie
cotidiana. Esse tema encontra-se difuso theme is diffusely found all around his quotidienne. Ce thème se trouve dispersé
ao longo de toda a obra de Goffman, e work, thus highlighting a political pers- tout au long de l’ensemble de l’œuvre de
evidencia uma perspectiva política da pective of the social interaction order. Goffman et met en évidence une pers-
ordem da interação social. Analiso parti- Two books are particularly analyzed: The pective politique de l’ordre de l’interacti-
cularmente os livros The presentation of presentation of self in everyday life (1959) vité sociale. J’analyse, particulièrement,
self in everyday life, de 1959, e Gender adver- and Gender advertisements (1979), where les livres The presentation of self in everyday
tisements, de 1979, abordando temas como themes such as “status definition,” “social life, de 1959, et Gender advertisements, de
“definição de situação”, “coerção social”, coercion,” “gender,” and “media” are 1979, en abordant des thèmes tels la “dé-
“gênero” e “mídia”. therefore approached. finition de situation”, la “contrainte so-
ciale”, le “genre” et les “médias”.