Domínio Leitura
Ficha 3 · Apreciação crítica
Lê o artigo de apreciação crítica sobre o livro de Gonçalo Tavares, Uma Viagem à Índia.
Anti-Camões
Uma antiepopeia brilhante mas programática. PEDRO MEXIA
UMA VIAGEM À ÍNDIA | Gonçalo M. Tavares | Caminho
Ambição nunca faltou a Gonçalo M. Ta-
vares, nem confiança nas suas capacidades,
e por isso ninguém estranha esta ideia ou-
sada: um romance em verso que parodia Os
5 Lusíadas.
Convém no entanto desfazer equívocos
sobre o uso do verso e da paródia1.
Embora o texto esteja dividido em cantos
(dez), estrofes e versos, não existe rima nem
10 qualquer esquema formal estrito. E a escrita
não é especificamente “poética”, exceto nal-
gumas passagens. Percebe-se a intenção de
recorrer ao verso para glosar o género épico,
mas não é um estratagema indispensável.
15 Quanto ao elemento paródico, ninguém
imagine que se trata de um pastiche2 ou de
terrorismo cultural. Tavares quer sobretudo
retomar a noção de epopeia, vista agora de
forma irremediavelmente distópica3. De Os
20 Lusíadas pouco mais existe neste texto do
que a ideia vaga de uma “viagem à Índia” e
umas quantas citações.
Se as primeiras páginas do texto soam
quase épicas, com a evocação das grandezas
25 do mundo, logo somos informados de que
não haverá aventuras, prodígios ou mila-
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gres. Uma Viagem à Índia não tem a abun-
dância narrativa camoniana nem o tom
exaltado, nem as alusões religiosas ou mito-
30 lógicas; mais importante, só por ironia é que
se chama ao protagonista deste romance um
“herói”, porque Tavares recusa toda e qual-
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quer empatia4.
Ficha 3 1
Que “epopeia” é
35 então Uma Viagem à
Índia? O protagonista
[Bloom] viu a sua
vida despedaçada por
causa de um duplo
40 homicídio (um que
sofreu, outro que pra-
ticou) e decide viajar
para longe, em busca
de sabedoria e esquecimento.
45 É uma fuga com carácter pedagógico:
“encontrar a sabedoria enquanto foge; fugir
enquanto aprende”. Escolhe como destino a
Índia, civilização antiga e distante. Mas vai
para a Índia lentamente e em força, convicto
50 mas demorado, passeando-se primeiro por
várias capitais europeias. […]
Antes de encontrar o caminho aéreo para
a Índia, Bloom vai perceber, em diversas ci-
dades, que a Humanidade é igual em toda a
55 parte. O pessimismo antropológico5, de
Gonçalo Tavares é intenso, e não dá tréguas,
e por isso Bloom vê-se repetidamente amea-
çado, traído e roubado, ninguém parece ser
de confiança, e o dinheiro é o único valor
60 uni­­versal. […]
Os “perigos” que Bloom enfrenta não
constituem os clássicos perigos de uma epo-
peia, são apenas catástrofes patéticas6.
Quando finalmente chega à Índia, Bloom
encontra de novo a deceção, a barbárie, o
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desconcerto do mundo.
2 Ficha 3 Domínio Leitura

Regressa a casa, melancólico. E em vez progresso ético. E que a natureza vença sem­

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de aprender com o sofrimento, cai de novo
no tédio.
70 […] O motor de uma antiepopeia há de
ser de algum modo semelhante ao da epo-
peia, ou seja, aquilo a que chamamos a
“ação”. Um romance não tem que “contar
uma história”, mas uma variação sobre a
75 epopeia dificilmente dispensa a narrativa.
[…] Uma Viagem à Índia ocupa suposta-
mente meses e usa uma linguagem seca. Em
450 páginas, há, em vez de ação, conversas,
divagações, aforismos7, quase sempre esti-
80 mulantes, mas sem vislumbre de tensão nar-
rativa. E isso até numa antiepopeia faz falta.
Conhecemos o estilo sentencioso de
Gonçalo Tavares: deduções, paradoxos, tau-
tologias8, uma espécie de pensamento em
85 constante expansão perifrástica9. […]
Uma Viagem à Índia lamenta que o pro-
gresso material não seja acompanhado de
pre a cultura.
90 Trata-se, como sempre em Tavares, de
um texto inteligente, brilhante mesmo, mas
totalmente dominado pelo “espírito abstrato
e o devaneio”. […] A experiência humana é
tida como inútil, porque nunca nos ensina
95 nada que não soubéssemos já, e nesse sen-
tido Gonçalo Tavares não é um super-Ca-
mões mas o anti-Camões. […]
Tavares acredita numa escrita ficcional
ensaística e feita de “forças”, mais materialis-
100 tas do que psicológicas, e a observação dessas
forças, em contexto de negrume existencial, é
notável em Jerusalém (2004) e nos outros ro-
mances; em Uma Viagem à Índia, a ambição
é grande, o talento também, mas Tavares re-
105 cusa qualquer ideia de aventura, sabe à par-
tida o que vai encontrar, e isso desaconselha
uma viagem. Nesse sentido, Tavares é tam-
bém o seu próprio velho do Restelo.

MEXIA, Pedro, 2010. “Anti-Camões”. Ípsilon (Público), 22 de outubro de 2010 (p. 42)

1. imitação de um texto literário, de uma personagem ou de um tema, com propósitos irónicos ou cómicos; 2. [do francês] imitação ou
decalque de uma obra literária ou artística, frequentemente com objetivos satíricos ou humorísticos; 3. que se caracteriza pela repre-
sentação ou descrição de uma sociedade futura marcada por condições de vida alienantes ou extremas, que tem como objetivo criticar
tendências da sociedade atual; 4. identificação; 5. relativo ao homem; 6. irrelevantes; 7. preceitos morais, máximas; 8. repetições de
ideias, usando palavras diferentes; 9. relativo à perífrase: exprimir por muitas palavras o que podia ser dito em menos.

1. Um
 texto de apreciação crítica deve incluir a descrição sucinta do objeto em análise e o
comentário crítico sobre o mesmo.
1.1. Verifica se tal estrutura se concretiza no excerto em análise, recorrendo a passa-
gens textuais para comprovar a tua resposta.

2. Identifica momentos em que o autor faz apreciações pessoais sobre o livro em análise.
2.1. 
Refere a(s) classe(s) de palavras predominante(s) nessas passagens e justifica a sua
utilização, atendendo à natureza e ao objetivo do texto.

3. Sintetiza a opinião de Pedro Mexia relativamente ao livro sobre o qual escreve.

4. Atendendo
 às referências ao texto camoniano ao longo da apreciação, estabelece uma re-
lação entre a obra de Gonçalo Tavares e a epopeia, destacando os aspetos em que as duas
se aproximam e/ou se afastam.

5. Tendo em conta a leitura que fizeste do texto, justifica o seu título.

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