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Exegese do Antigo Testamento

REITOR
Arody Cordeiro Herdy

Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa (PROPEP)


Emílio Antônio Francischetti

Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD)


Virginia Genelhu de Abreu Francischetti

Pró-Reitoria de Administração Acadêmica (PROAC)


Carlos de Oliveira Varella

Pró-Reitoria de Pós-Graduação Lato Sensu e Extensão (PROPEX)


Nara Pires

Núcleo de Educação a Distância (NEAD)


Márcia Loch
Exegese do Antigo Testamento
Conteudista: Antonio Lucio Avellar Santos
UNIVERSIDADE UNIGRANRIO

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Direção geral: Márcia Loch

Desenvolvimento do material: Antonio Lucio Avellar Santos

Produção: Fábrica de Soluções Unigranrio

CATALOGAÇÃO NA FONTE
NÚCLEO DE COORDENAÇÃO DE BIBLIOTECAS – UNIGRANRIO

S237e Santos, Antonio Lucio Avelar.

Exegese do Antigo Testamento / Antonio Lucio Avellar


Santos. – Duque de Caxias, RJ: UNIGRANRIO, 2019.
191 p.: il. ; 23 cm

Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-9549-062-8

1. Bíblia - Hermenêutica. 2. Biblia.AT – Hermenêutica.


I. Título..

CDD – 220.601
Sumário
Hermenêutica e Exegese
Objetivos ...................................................................... 09
Introdução .................................................................... 11
1.1 A Reserva de Sentido num Texto ............................ 13
1.2 Exegese Acadêmica e Exegese Pastoral.............. 16
1.3 Uma Exegese para Hoje .................................... 20
Síntese.............................................................................. 25
Referências Bibliográficas ........................................... 27

Métodos Exegéticos
Objetivos ...................................................................... 31
Introdução .................................................................... 33
1. Método Gramático-histórico.............................. 35
1.1 Método Histórico-crítico ................................... 39
1.2 Narratologia ....................................................... 44
Síntese.............................................................................. 49
Referências Bibliográficas ........................................... 51

Delimitando um Texto (Perícope)


Objetivos ...................................................................... 55
Introdução .................................................................... 57
3.1 Novo Início ........................................................ 59
3.2 Indicações de Término ...................................... 64
3.3 Elementos ao Longo do Texto ................................. 67
3.3.1 Exemplo Prático ................................................. 71
Síntese...............................................................................73
Referências Bibliográficas ............................................ 75

Semiótica: Sincronia e Diacronia


Objetivos .......................................................................79
Introdução .....................................................................81
4.1 O que é um Método? .......................................... 83
4.2 Diacronia ............................................................ 87
4.3 Sincronia............................................................. 93
Síntese.............................................................................. 101
Referências Bibliográficas ............................................103

A Exegese Semiodiscursiva (Passos Exegéticos


Semiodiscursivos)
Objetivos .......................................................................107
Introdução .....................................................................109
1.1 O Espaço-Tempo da Ação ..................................111
1.1.1 O Método: Fase Preliminar ................................112
1.1.2 As Perguntas ........................................................ 115
1.2 Teologia da Ação: Interdiscurso .......................... 119
Síntese.............................................................................. 125
Referências Bibliográficas ............................................127

Teologia da Ação: Término


Objetivos .......................................................................131
Introdução .....................................................................133
1. Teologia da ação: teologia textual ....................... 135
1.1 Estrutura Concêntrica ou de Cebola ...................135
2. Estilo e Argumentação .......................................138
2.1 Argumentação ....................................................139
2.2 Estilo...................................................................141
Síntese.............................................................................. 147
Referências ....................................................................149
O Sociocultural
Objetivos ....................................................................... 153
Introdução ..................................................................... 155
1. Narratividade ...................................................... 157
2. Interdiscursividade ................................................ 162
Síntese............................................................................... 169
Referências .................................................................... 171
O Psicossocial e o Missional
Objetivos ....................................................................... 175
1. O Psicossocial e o Missional................................ 177
1.1 O Psicossocial da ação ......................................... 177
1.2 O Missional da Ação ........................................... 183
Referências .................................................................... 189
Hermenêutica e Exegese
Objetivos
Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de:

1. Interpretar narrativas, textos históricos e tradições em


seu contexto, valendo-se da hermenêutica e dominando
os instrumentos analíticos – isso consiste em observar,
na criatividade religiosa, a reserva de sentido a partir das
tradições orais e textuais, considerando a análise pastoral
das narrativas também para os dias atuais.

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Introdução
A partir da leitura das narrativas bíblicas, abordaremos os
sentidos que podem ser extraídos delas, sentidos estes que busquem
responder às perguntas que são feitas em nossas comunidades religiosas.
Teremos o intuito, portanto, de fazer análises exegéticas interpretativas
a fim de trazer luz aos problemas existenciais de todos nós enquanto
sujeitos sociais religiosos.

Procuraremos, também, diferenciar a exegese de cunho


acadêmico e a exegese prática pastoral, dando extrema atenção a esta
última, necessária para uma convivência salutar entre os irmãos nas
comunidades de fé.

Por fim, buscaremos uma alternativa exegética que possa agir


como tentativa de responder aos questionamentos do nosso tempo.
Para isso, utilizaremos o método semiodiscursivo, que busca analisar o
“mundo do texto”, considerando que o texto sagrado possui vida em si,
tomado como Palavra de Deus.

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1.1 A Reserva de Sentido num Texto

Antes de centrarmos nossos esforços a respeito das reservas


de sentido que um texto possui, convém falarmos sobre a dinâmica do
nosso método.

O que desejamos apresentar ao longo da unidade curricular é a


possibilidade de compreensão das narrativas sagradas a partir do mundo
do próprio texto, isto é, a partir do sentido da ação no texto.

No entanto, é preciso levarmos em conta que esses textos,


nossos objetos de estudo, foram produzidos em contextos de vida a
partir de um patrimônio cultural, que também se modifica através dos
tempos na história. Com isso queremos dizer que os textos sagrados
são frutos de reflexões de seus escritores, sobre as quais recai o peso
do contexto de vida desses pensadores que, a fim de comunicar suas
experiências, utilizam-se do material disponível, aquilo que chamamos
de patrimônio cultural.

A linguagem e outras características culturais vão dando forma


às suas leituras sobre a vida, servem como ferramentas a fim de traduzir
e comunicar as experiências com o sagrado. As análises dos textos
sagrados nos revelam justamente esse mundo em que os escritores
viviam, contextos de vida, de fé e esperança. São essas narrativas que
estruturam a fé de ontem e hoje.

Nesse sentido, os textos bíblicos são fonte inesgotável, pois nos


fornecem novos sentidos continuamente. Os textos não estão lacrados,
mas, sim, abertos a novas interpretações que possam vir a responder

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às perguntas que estão sendo feitas hoje. A isso chamamos “reserva de
sentido”, que podemos encontrar nas escrituras. “A tensão entre ser um
texto fixado em um horizonte cultural que já não é o nosso e ser uma
palavra viva que pode mover a história somente se resolve através de
uma leitura frutífera.” (Croatto, 1986, p. 7).

É essencial o uso da criatividade nas análises dos textos


sagrados, justamente para que possam dar margem a uma gama de
possibilidades interpretativas. Contudo, isso deve ser feito de forma
responsável, respeitando os preceitos de vida e esperança tanto
daqueles que pertencem à casa religiosa em comum como dos que
estão ao nosso redor.

Há uma grande aproximação entre hermenêutica e exegese.


Alguns autores modernos inclusive apontam para uma dependência da
exegese em relação aos métodos hermenêuticos. “Interpretar parece,
portanto, indicar [...] o modo de perceber, de entender algo apresentado
pelo mundo externo” (Abbagnano, 2007, p. 666). O problema que a
hermenêutica nos apresenta são as diversas formas de interpretação
possíveis para um mesmo objeto em questão, que, para nós, teólogos, é
o texto bíblico, nossa fonte de preocupação .

Observe a tirinha abaixo:

Fonte: Enem 2009.

Segundo Hagar, há somente dois tipos de pessoas no mundo,


e um desses tipos está errado, pois não se ajusta certamente com as suas
convicções de vida: esses são os não navegantes.

Acontece que o personagem observa o mundo a partir de sua


cultura ou contexto de vida. Sua tendência é silenciar todos os outros
que não são navegantes, rejeitando as convicções deles.

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O texto bíblico não pode ser compreendido de tal maneira,
como algo fechado a partir de determinado momento histórico.
Considerando que o texto sagrado veterotestamentário revela uma
sucessão de fatos históricos nos quais a fé do povo foi posta à prova,
em diversos momentos foi necessário revisitar a tradição e até mesmo
refazê-la, a fim de atender às urgências dos novos tempos.

É importante constantemente revisitarmos também nossa


tradição e perguntarmos se o odre velho sustenta respostas aos
nossos problemas presentes. Nesse sentido, é mais provável que
tenhamos que revolver a tradição e, a partir dela, suscitarmos novas
interpretações exegéticas.

É o que faz Paulo em sua carta Aos Coríntios, capítulo


10, versículos 1 ao 11, quando utiliza os modelos narrativos do
Antigo Testamento e os relê conforme realidade de seu tempo. Paulo
reinterpreta à luz do seu contexto as passagens veterotestamentárias,
dando a elas um novo sentido. Ele não se fechou, conformando-se com
a tradição antiga; ao contrário, o texto santo da Tanak, para nós Antigo
Testamento, estava e ainda permanece aberto a novas possibilidades.

Percebemos, com isso, que existe uma polissemia textual: todo


texto, inclusive o sagrado, é polissêmico, isto é, está sempre aberto a
novas releituras significativas.

Havendo chegado até este ponto, deve ficar firmemente


estabelecido que a exploração do sentido de um texto
não se reduz a um trabalho crítico, puramente literário e
acadêmico. Existe também uma práxis, do crítico ou do seu
contexto sócio-histórico, que indica o parâmetro da leitura.
Não se “sai” do texto (ex-egese, do grego ago, “conduzir/
guiar”), trazendo um sentido puro nele recolhido, como um
mergulhador traz um coral à superfície do mar ou como se
tira um objeto de um cofre. Antes, a partir de um horizonte
vivencial novo que repercute significativamente na produção
de sentido que é a leitura, “entra-se” no texto (eis-egese) com
perguntas que nem sempre são as de seu autor. Já estudamos
por que toda leitura é “releitura” do sentido de um texto
(Croatto, 1986, p. 59).

Exegese do Antigo Testamento | 15


Procura-se no texto um sentido, mas que depende do leitor e
do seu horizonte vivencial. A orientação da leitura, como nos indica o
texto, surge sempre de determinado contexto sócio-histórico.

A Bíblia, como texto sagrado utilizado por inúmeros povos,


deveria ser lida a partir de contextos específicos. Há uma chave de
leitura contextual, que não deve ser uma imposição ou arbitrariedade de
uma cultura sobre a outra.

Não se sai do texto, como nos afirma Croatto, trazendo de lá


um sentido puro e por isso dogmático; na verdade, todos entramos, ao
ler determinado texto, com nossos questionamentos advindos do nosso
lugar vivencial, das situações que enfrentamos na vida. É na leitura das
narrativas bíblicas que procuramos respostas a essas questões. Caso não
seja feito o exercício de releitura das narrativas bíblicas para o nosso
tempo, nossa vida no presente fica sem sentido.

A “palavra de Deus” é gerada no acontecimento salvífico,


interpretado e enriquecido através da palavra que o recolhe
e o transmite em forma (ou em diversas “formas”) de
mensagem. A correlação entre o “efeito histórico” (do
acontecimento) e o “efeito de sentido” (do texto) é muito
estreita e se prolonga na relação entre práxis e leitura
de uma tradição, texto ou, em nosso caso, da Bíblia
(Croatto, 1986, p. 59).

1.2 Exegese Acadêmica e Exegese Pastoral

De forma geral, exegese é uma minuciosa interpretação que


se faz por meio de ferramentas científicas, de maneira detalhada e
aprofundada. “Exegese é, pois, o trabalho de explicação e
interpretação de um ou mais textos bíblicos” (Wegner, 1998, p. 11).

Muitos são os alertas de que nossas instituições religiosas,


como organismo vivo, tendem, na figura de seu corpo de líderes,
a evitar que os seminaristas adentrem pelo campo da investigação
literária dos testamentos (exegese), pois pode ser que com o

16 | Exegese do Antigo Testamento


produto de tal pesquisa se obtenha resultados estranhos aos
objetivos traçados pela tradição histórica, conforme determinado
pelos inúmeros segmentos religiosos.

É certo, claro, que o produto de uma pesquisa exegética


que não seja salutar ao pesquisador e, principalmente, às
comunidades religiosas será integralmente rejeitado, não só por
parte das autoridades religiosas de determinada denominação,
mas sendo este um produto estéril, sem sentido para a sua
comunidade de fé, não terá longevidade como método analítico,
pois a comunidade religiosa está sedenta de respostas às suas
preocupações, como já foi sugerido.

Assim, nos são apresentadas duas vertentes exegéticas. Uma


primeira de concentração na área puramente acadêmica – exegese
acadêmica – e outra de aplicabilidade estrutural – exegese pastoral. A
primeira investigaria o texto de forma científica, sem objetivar uma
aplicação prática aos irmãos das comunidades de fé. Já a segunda,
junto aos estudos da Palavra de Deus, procuraria unir fé
e exegese objetivando sujeitos sociais religiosos que possibilitem a
transformação da realidade social.

O problema da pesquisa causou desconforto quanto ao


método histórico-crítico. A dissecação de determinada perícope era
processo ininterrupto que não chegaria a resultados conclusivos e
satisfatórios que pudessem, principalmente, ser aplicados à realidade
eclesial. “Quanto mais desce a exegese ao pormenor, tanto mais
incertos tornam-se seus resultados” (Yofre, 2000, p. 16).

E continua Yofre a explanar as dificuldades da análise científica:

Os exegetas estão agora geralmente de acordo em que


há certos documentos, ou pelo menos tradições, que
precederam ao atual Pentateuco. Mas, quando se busca
determinar mais precisamente em que coisa consistia,
por exemplo, a narrativa javista ou a eloísta do relato de
Moisés sobre o Sinai, são quase tantos os pareceres
quanto os autores.

Exegese do Antigo Testamento | 17


Não interessa às vidas nas comunidades de fé a possível
existência de dois relatos do dilúvio ao longo das análises das fontes que
compõem o Pentateuco. Esses resultados não correspondem às questões
existenciais dos sujeitos sociais religiosos. Uma exegese puramente
pastoral, pela via da fé, estaria centrada na maturidade dos sujeitos
sociais religiosos, isto é, os estudos da Palavra junto às pregações
desenvolveriam nas comunidades pessoas maduras espiritualmente. O
texto final (canônico) é produto de reflexões de homens e mulheres que
experimentaram Deus ao longo de suas vidas. “O problema concreto a
resolver seria o do crescimento e maturação da vida cristã no indivíduo
e na sociedade” (Yofre, 2000, p. 15).

A crítica da redação seria uma substituta ao método histórico-


crítico, que para muitos retalha os textos sagrados. Seu objeto de estudo
é o texto canônico, a forma final do texto, sustentando que houve um
longo processo redacional na construção para que atingissem esse
estágio final. Esses críticos são os anônimos compiladores que
reinterpretaram os textos ao longo da história.

Por exemplo, há consenso entre determinados pesquisadores


de que o Pentateuco recebeu sua forma final nos tempos de Esdras e
Neemias, ou seja, pós-exílio babilônio, num momento de reconstrução
da identidade do povo que retornou à terra prometida.

A metodologia exegética da crítica da redação não caminha


para trás, no sentido de buscar encontrar fontes ou documentos
preexistentes ao cânon que temos em mãos. Isto é trabalho da
metodologia exegética histórico-crítica. “Para a exegese pastoral, porém,
conta somente ‘o texto atual, aquele que [o exegeta pastoral] tem a
missão de explicar para comunicar sua mensagem’’ (Yofre, 2000, p. 17).

As formas finais, porém, devem ser utilizadas com cautela,


pois os livros canônicos são conjuntos literários de diversas épocas. A
forma final de Neemias, por exemplo, não deve ser entendida como
uma teologia superior à do Dêutero-Isaías. Estas formas receberam
acréscimos ou complementos a partir das mais diversas situações
históricas de Israel.

18 | Exegese do Antigo Testamento


Também vale para nós a ideia de que o texto canônico nunca
está completo, finalizado. Nós, hoje, devemos compilá-lo nas pregações
e estudos que fazemos. Os escritores do texto sagrado nos deixaram
grande modelo pedagógico a ser seguido: reinterpretar os textos para a
nossa realidade.

Mesmo optando pela via da pesquisa pastoral em detrimento


da via acadêmica histórico-crítica, devemos tomar o cuidado de não
cairmos num fundamentalismo e interpretarmos os textos forçando-
os a sustentar nossos argumentos. A exegese, assim, deve apontar para
as experiências de fé nas comunidades. O texto se torna inesgotável,
as inspirações dos anônimos escritores bíblicos nos apontam um
dinamismo de relação entre o sagrado e os homens.

A Exegese é a disciplina que nos leva às realidades humanas


que, uma vez conhecidas, se abrem a outras realidades,
perceptíveis, mas mediante exegese desenvolvida na
experiência de fé pessoal e comunitária, expressas depois
sistematicamente na teologia (Yofre, 2000, p. 21).

A experiência humana frente ao sagrado é anterior à ciência


exegética. Sendo assim, esta última nos ajuda a entrever nos textos
sagrados as experiências de fé, de alguns sujeitos sociais religiosos
amadurecidos espiritualmente em Israel. A Exegese, então, nos auxilia
a compreender e reinterpretar para os nossos dias as experiências de
fé do povo de Israel, aqueles homens e mulheres que exercitaram fé
e esperança em Iahweh, em situações de vida em que praticamente a
morte já estava à vista, muitas vezes revertendo este cenário.

Essas experiências nos motivam a buscar nossa própria


maturidade espiritual. Ao interpretarmos os textos sagrados por meio
da exegese pastoral, junto à metodologia semiodiscursiva, podemos
compreender melhor o mundo do texto, produzido a partir do mundo
da vida do povo de Israel.

A reinserção na história significa, por um lado, suscitar


a consciência de que a Bíblia não é um livro caído do
céu – como dizem as outras religiões a respeito “do livro”
–, mas o testemunho, inspirado e posto por escrito, da
história de um povo e de uma comunidade crente com
Deus (Yofre, 2000, p. 23).

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Importante
Há diversas passagens bíblicas em que as narrativas estão tão
bem-estruturadas que em poucos versos podemos contemplar
uma passagem que possui início, meio e fim. Uma história bem-
amarrada literariamente.

Biografia

Algirdas Julien Greimas (Rússia, 1917 – Paris, 1992) foi


fundador da teoria semiótica da Escola de Paris. Sua teoria
também é conhecida como semiótica greimasiana. Podemos
grosso modo resumir sua teoria da seguinte maneira:
O personagem principal possui um propósito, e em sua jornada
há o seu ajudante, mas também o seu oponente. Existe a
presença do chamado destinador, isto é, aquele que impulsiona
ou incentiva o personagem principal ou herói rumo ao seu
objetivo e, por fim, o receptor, aquele que recebe o objeto de
valor conquistado pelo herói.

1.3 Uma Exegese para Hoje

Após considerarmos alguns aspectos relacionados à


hermenêutica do sentido e à exegese, à exegese acadêmica e à exegese
pastoral, chegou o momento de apresentarmos o método semiodiscursivo.

Tal abordagem está vinculada à semiótica de Greimas e ao


método discursivo, formando a estrutura de nossa exegese, que está
voltada para as questões modernas de interpretação dos textos bíblicos.

O método semiodiscursivo apenas procura ser uma orientação:


o método em si não constitui uma verdade interpretativa, apenas uma
possibilidade, uma ferramenta disponível para o exegeta.

Este, sim, deverá utilizar criatividade, habilidade e empenho,


segundo a ética do Reino de Deus, nas interpretações que fará dos
textos sagrados, buscando fazer com que o texto comunique sua vontade

20 | Exegese do Antigo Testamento


aos seus leitores e não o inverso, isto é, permitindo que os intérpretes
manipulem as narrativas.

Em nossas interpretações utilizando este método, não podemos


deixar de lado as questões voltadas ao contexto, à historicidade daquele
povo. Já consideramos, anteriormente, que a análise do mundo do texto
nos aproxima das realidades dos homens e mulheres de Israel.

Em relação ao contexto apresentado nos textos sagrados, devemos


ir além sempre que possível, pois, por serem textos muito antigos, eles nos
trazem a necessidade de pesquisar os movimentos culturais daquele tempo,
seu mediador cultural naquele mundo da vida (sitz in leben).

Mesmo se o objetivo da leitura for devocional, não


podemos abrir mão de interpretar o texto a partir de suas
características literárias e linguísticas, nem podemos deixar
de ler o texto à luz do próprio contexto. Uma leitura
devocional não terá as mesmas características de uma leitura
acadêmica, mas os princípios básicos, derivados da natureza
sociocultural da Bíblia, não podem deixar de ser aplicados
(Zabatiero, 2007, p. 20).

Um conhecimento mínimo da história do povo de Israel,


como viviam, seus problemas constantes ao longo da história, suas
habilidades, panorama das montanhas etc., é fundamental para a
tarefa exegética, pois esses elementos se refletem nas narrativas vétero
e neotestamentárias. Quando os escritores das narrativas bíblicas
comunicam determinada mensagem, o fazem com as características
literárias e linguísticas abastecidas pelo seu arcabouço cultural.

É importante reforçar: a Revelação ou Palavra vinda de


Deus age sobre homens e mulheres, e estes procuram, num segundo
momento, reagir, comunicar tal Revelação em palavras humanas, tendo
de utilizar o material linguístico que lhe é dado por sua própria cultura.

O que procuramos com essa metodologia é o sentido da


ação no texto a partir dele mesmo. A tarefa das comunidades de fé é
interpretar os textos sagrados para trazer sentido às suas necessidades.

Exegese do Antigo Testamento | 21


O método semiodiscursivo acaba por integrar outras exegeses,
como aquelas que têm o intuito de saber:

• o autor (a) dos textos e suas intenções;


• a intenção da obra (livro);
• qual a intenção dos leitores a partir dessas obras.

Todos esses fatores possuem sua importância para a exegese,


mas nenhum deles é fundamental. O fundamento aqui é o próprio
texto, que comunica, expressa determinado conteúdo.

Quando se trata de textos sagrados ou narrativas sagradas, o


sentido da ação está em Deus.

Lemos a Bíblia para responder à ação de Deus através da


nossa ação, como membros do povo de Deus, visando ao
crescimento espiritual, à edificação da igreja, à realização
da missão, à transformação das pessoas, grupos sociais e da
própria sociedade (Zabatiero, 2007, p. 23).

A ação de Deus sobre o seu povo faz com que ele amadureça
espiritualmente, renova-os constantemente trazendo esperança. Toda
ação de Deus é destinada a algum tipo de transformação.

Ultimamente temos visto que somente há uma preocupação


com a vida espiritual individual ou coletiva restrita àqueles que estejam
em meio às próprias comunidades religiosas. No entanto, os textos
sagrados nos apontam para uma tensão, pois foram elaborados no
mundo da vida, em seus respectivos contextos, e todo lugar vivencial é
repleto de tensões que acabam se refletindo na mensagem dos escritores
das obras bíblicas.

Os textos sagrados não foram produzidos de maneira abstrata,


longe da sensibilidade da vida. São obras que refletem a pessoa do
escritor, do seu povo, da relação com Deus em meio à sociedade em que
vivem. Nesse sentido, a transformação do sujeito em sua espiritualidade
não é somente buscada de forma pessoal, mas como potência para uma
transformação mais ampla.

22 | Exegese do Antigo Testamento


As tensões pessoais e sociais fazem parte do mundo dos
autores e também dos leitores. Portanto, a ação de Deus em nós
deve ser refletida na transformação social da realidade, pois ela nos
chama à responsabilidade de modificarmos a estrutura dominante
segundo a proposta do Reino de Deus na Terra: uma espiritualidade
amadurecida, que deseja combater o mal existente nas estruturas de
poder que não fazem justiça, um combate feito com o testemunho e
ação solidária dos fiéis como sal da terra e luz do mundo.

A metodologia proposta nos ajudará a ler e ouvir o texto.


Esta tarefa inicial já é um grande desafio, pois hoje somos tentados
ou influenciados a buscar um pacote de respostas diante das nossas
dificuldades de vida.

É mais fácil recorrer a um grande manual em nossas


bibliotecas em que já foram definidas as ações dos sujeitos sociais
religiosos na sociedade. Manuais que foram úteis e sobreviveram por
determinado período de tempo, mas que não mais atendem e nem
respondem aos problemas vividos no mundo de hoje.

Nosso ser deve estar subordinado àquilo que nos comunica


a Palavra de Deus, deixar-se levar pelas orientações Daquele que é
O Caminho. São acima de tudo os exemplos deixados por Jesus de
Nazaré da Galileia que reafirmam o papel de nossa missão neste
mundo.

A exegese proposta aqui intenciona o uso da criatividade de


cada um dos irmãos, entretanto, agindo de maneira responsável e
ética com base nas ações de Jesus de Nazaré. Para que isso ocorra e
gere amadurecimento espiritual, é necessária a leitura constante das
narrativas bíblicas.

Porém, existem aquelas leituras que são desprovidas de


nossa compreensão e também preconceitos adquiridos ao longo dos
tempos, muito mais próximos de atuações puramente humanas e
longe do comportamento de Jesus de Nazaré. Muitos de nós,
infelizmente, nos condicionamos a certo tipo de interpretação bem
distante dos ensinamentos do Filho de Deus.

Exegese do Antigo Testamento | 23


Quando tratamos de uma exegese semiodiscursiva aplicada aos
relatos veterotestamentários, observamos a loucura dos homens, mas
também a tentativa de alguns de realizarem a vontade do seu Deus.
Isso indica um amadurecimento espiritual por parte daqueles que se
deixaram levar pelo sentido da ação de Deus em suas vidas.

É o que procuraremos desenvolver nessa unidade curricular:


saber ouvir a voz de Deus, bússola para nossa vida, ao lermos o texto
bíblico, deixando-o comunicar sua vontade e gerando, assim, um
amadurecimento espiritual que se reflita em ações de amor que possam
transformar nossa realidade social.

24 | Exegese do Antigo Testamento


Síntese
Nesta unidade de aprendizagem explicamos as diferenças
e semelhanças entre os tipos de análise exegética e hermenêutica,
partindo, principalmente, da polissemia encontrada nos textos bíblicos.

Pontuamos o método semiodiscursivo que integra outras exegeses:

• o autor (a) dos textos e suas intenções;


• a intenção da obra (livro);
• qual a intenção dos leitores a partir dessas obras.

Compreendemos o significado da exegese e seu valor diante


das narrativas sagradas. Consideramos a Exegese Acadêmica e a Exegese
Pastoral, dentro de suas perspectivas para a compreensão e utilização
dos textos bíblicos.

EXEGESE

Interpretação que se faz através de ferramentas científicas, de maneira


detalhada e aprofundada.

EXEGESE PASTORAL: Método que, em


EXEGESE ACADÊMICA: investiga seus resultados,busca propor ações
o texto de forma científica, sem práticas dos fiéis na transformação
objetivar uma aplicação prática aos da realidade social, partindo, portanto,
irmãos das comunidades de fé. da comunidade eclesiástica e se
estendendo à comunidade secular.

Exegese do Antigo Testamento | 25


Referências Bibliográficas
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Paulo: Paulus, 2004. 2206p.

Bíblia do Peregrino. 3 ed. São Paulo: Paulus, 2011. 3056p.

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Judaicas. 1 reimpressão revisada. São Paulo: Editora Sêfer, 2007. 877p.

Bíblia Sagrada. Contendo o Antigo e o Novo Testamento. Traduzido


em português por João Ferreira de Almeida. Edição revista e corrigida.
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Bíblia Hebraica Stuttgartensia. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do


Brasil, 1997. 1574p.

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução da 1 ed.


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ARAGUES, J. Alegre et. al.VV. AA. Personagens do Antigo


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CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa:


uma introdução à fenomenologia da religião. Tradução de Carlos Maria
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Exegese do Antigo Testamento | 27


. Hermenêutica bíblica: para uma teoria da leitura como
produção de significado. Tradução de Haroldo Reimer. São Paulo:
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GUNNEWEG, Antonius H.. Hermenêutica do Antigo Testamento.


Tradução de Ilson Kayser. São Leopoldo: Sinodal, 2003. 251p.

PIXLEY, Jorge. A história de Israel a partir dos pobres. 9 ed.


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Companhia Melhoramentos, 1991. 128p.

ROCHA, Alessandro. Teologia sistemática no horizonte pós-


moderno: um novo lugar para a linguagem teológica. São Paulo:
Editora Vida, 2007. 191p.

RÚBIO, Afonso Garcia. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz


da fé e da reflexão cristãs. São Paulo: Paulus, 2001. 695p.

SCHWANTES, Milton. Breve história de Israel. 3 ed. ampliada. São


Leopoldo: Oikos, 2008. 94p.

. Sofrimento e esperança no exílio: história e teologia do povo


de Deus no século VI a.C. 3 ed. São Leopoldo: Oikos, 2009. 142p.

SETERS, John Van. Em busca da história: historiografia no mundo


antigo e as origens da história bíblica. Tradução de Simone Maria de
Lopes Mello. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
400p.

SHREINER, Josef. Palavra e mensagem do Antigo Testamento.


Tradução de Benôni Lemos. 2 ed. São Paulo: Teológica, 2004. 560p.

SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. 3 ed.


São Paulo: Paulinas, 2009. 526p.

WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de


metodologia. 3 ed. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus,
1998. 408p.

28 | Exegese do Antigo Testamento


YOFRE, Horacio Simian (org.). Metodologia do Antigo
Testamento. Tradução de João Rezende Costa. São Paulo: Edições
Loyola, 2000. 199p.

ZABATIERO, Júlio. Manual de Exegese. São Paulo: Hagnos,


2007. 159p.

Exegese do Antigo Testamento | 29


Métodos Exegéticos
Objetivos
Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de:

1. Conhecer algumas abordagens exegéticas comuns à


teologia cristã;
2. Optar por tais métodos ou parte deles em suas reflexões
exegéticas;
3. Observar quais desses modelos se adequará melhor às suas
compreensões de prática teológica junto às suas igrejas.

Exegese do Antigo Testamento | 31


Introdução
A metodologia exegética proposta é a semiodiscursiva, isto é,
aquela que se ocupa do sentido da ação encontrado nos textos sagrados.

Procuraremos apresentar, aqui, alguns métodos exegéticos


mais utilizados pela teologia cristã ao longo da modernidade. Podemos
considerar que esta proposta é viável, já que nossa via de estudos
exegéticos tem preferência pelo método a ser construído de forma
prática pelos discentes (semiodiscursivo). Pode ser que os discentes não
cheguem a utilizar a metodologia proposta – uma apreciação de outras
possibilidades exegéticas, na verdade, amplia o conhecimento do aluno.
Nossa proposta não consiste em apresentar uma metodologia unívoca,
fechada em si, como a mais indicada. Por isso, há uma abertura a
outras possibilidades, de certa forma.

A escolha pelo método semiodiscursivo se deve à sua


praticidade e à sua facilidade de compreensão, conforme veremos à
frente nas outras unidades de aprendizagem.

Exegese do Antigo Testamento | 33


1. Método Gramático-histórico
O método exegético Gramático-histórico ou Histórico
Gramatical é o que mais se ajusta ao discurso conservador de boa parte
das igrejas evangélicas cristãs. Tal método compreende as narrativas
bíblicas como históricas.

Diferente de outras propostas mais ousadas, este método desafia


as conclusões científicas modernas a respeito das narrativas bíblicas, além
de condenar grande parte das análises a respeito do texto sagrado dos
cristãos nas quais se ponham em dúvida os relatos fantásticos das ações
de Deus ao longo dos testamentos.

Em muitos casos, o uso deste método chega a superar a


historicidade das narrativas, principalmente as contidas do Antigo
Testamento. A base de suas análises utiliza como auxílio a metodologia
hermenêutica alegórica, aquela que, em sua tipologia cristológica,
entende que o Homem de Nazaré está presente ao longo de todo o
Antigo Testamento, ainda que representado de forma simbólica. O
método Gramático-histórico, embora considere compreender a cultura
de Israel, não costuma acenar positivamente para as construções culturais
e religiosas de seu povo, enquanto os considera judeus adoradores de
inúmeras divindades e, por fim, do todo poderoso Iahweh.

O professor Gunneweg critica tal compreensão negativa quando


o assunto diz respeito aos modelos de fé judaicos centrados nas atitudes
humanas do povo de Israel com a finalidade de conhecerem melhor e
cada vez mais o seu Deus Iahweh ao longo de sua história. Gunneweg
(2003, p. 9), em sua obra Hermenêutica do Antigo Testamento, afirma:

Exegese do Antigo Testamento | 35


Essa forma de ver o problema, que concatena ambos os
testamentos, esforçando-se, não obstante, por considerar o
Antigo antigo e o Novo, se denomina de enfoque tipológico.
No entanto, não se corre o risco de total arbitrariedade
quando, a posteriori, os cristãos interpretam tipologicamente
eventos, pessoas e instituições do antigo Israel que de modo
algum quiseram ser meras sombras prenunciadoras e tipos
que apontam para além de si mesmos? [os grifos são nossos.]

O que o professor Gunneweg salienta é que os personagens


do Antigo Testamento, o povo de Israel com seus hábitos e costumes
culturais e, por isso também religiosos, deveriam ser compreendidos a
partir de si mesmos e, não como mera sombra, fantoches nas mãos de
Deus a serviço de um plano maior a ser cumprido no Novo Testamento.

Temos mais um pequeno exemplo a respeito do método


Gramático-histórico, agora em relação às formas de análise ou últimas
pesquisas sobre a História de Israel. Estamos falando dos argumentos
científicos quanto ao texto sagrado centrados na História de Israel.
Grupos de pesquisa de posturas maximalistas e minimalistas defendem
suas posições veementemente.

[...] a postura maximalista, que defende que tudo nas


fontes que não pode ser provado como falso deve ser aceito
como histórico, e a postura minimalista, que defende que
tudo que não é corroborado por evidências contemporâneas
aos eventos a serem reconstruídos deve ser descartado.
(Silva, 2009, p. 73).

Esses pesquisadores se reuniram por volta de meados da


década de 1990 para tratar das novas pesquisas sobre a reconstrução
da História de Israel. Vale afirmar que não há como reconstruir a
História de Israel sem o auxílio do documento bíblico, e nisso se
constituía o problema.

Ao fim da série de seminários nesta década, ficaram acertados,


não de maneira unânime, mas com muitas críticas e resistências,
quatro pontos propostos para as possíveis pesquisas voltadas para
a reconstrução da História de Israel, acenando para um diálogo
entre as partes conflitantes. Dentre eles, apenas faremos menção às
possibilidades de diálogo encontradas nos pontos 2 e 4.

2 – Ignorar o texto bíblico como um todo e escrever uma


história fundamentada apenas nos dados arqueológicos e
outras evidências primárias: esta é a postura verdadeiramente
“minimalista”, mas o problema é que, sem o texto bíblico,
muitas interpretações dos dados tornam-se extremamente
difíceis, e, por isso, ninguém no seminário assumiu tal
atitude. 4 – aceitar a narrativa bíblica sempre, exceto quando
ela se mostra como absolutamente falseada: esta é a postura
“maximalista”, e – nem é preciso dizer – ninguém no
seminário a defendeu. (Silva, 2009, p. 76).

Podemos ver que não houve consenso entre a maioria, mas


reforçamos que os pontos acima indicam a possibilidade de avanços que
agradariam tanto a maximalistas como a minimalistas. Apesar disso, a
situação ficou num impasse.

Como observamos, o diálogo entre fé e ciência não é fácil


de se sustentar, pois, ao que parece, ninguém deseja ceder. E apenas
atingimos uma parcela mínima da situação que nem mesmo é sobre
as narrativas bíblicas diretamente, mas sobre a História de Israel, que,
como ficou claro, não pode ser pensada sem o auxílio das narrativas
veterotestamentárias.

Não temos a intenção de dar preferência por um método em


detrimento de outro, mas apenas tentar trazer à reflexão as orientações
desses métodos, suas possíveis virtudes e falhas ou em poucas palavras,
avanços e limites. Quem utiliza determinado método é quem deve
sustentá-lo, ou seja, o teólogo.

Sempre reforçamos que utilizar um método requer, acima


de tudo, por parte dos pesquisadores, responsabilidades cristãs. Os
métodos são como receitas de bolo, isto é, são construídos para serem
seguidos, passo a passo, mas são produtos de homens e por isso nem
sempre suas intenções se adequam aos desígnios do Reino de Deus ou à
ética de Jesus de Nazaré.

Exegese do Antigo Testamento | 37


Acima de tudo deve haver o filtro da ética messiânica
encontrada em Jesus de Nazaré como norteadora para os resultados
encontrados. Deve ficar claro se o produto será utilizado apenas em prol
da ciência na academia (exegese acadêmica) ou se terá outra finalidade,
como para transformação de vidas, gerando, por conseguinte, a
modificação da realidade social (exegese pastoral).

No Brasil temos um representante, defensor e utilizador do


método exegético Gramático-histórico de análise das narrativas bíblicas,
além de um grande crítico do método Histórico-crítico. Trata-se do
conhecido professor Augustus Nicodemos Lopes.

Talvez a obra que melhor expresse a apologia ao método


Gramático-histórico, utilizado por Lopes, e a condenação a outras
formas de interpretação e exegese da Bíblia seja a sua “A Bíblia e seus
intérpretes: uma breve história da interpretação”.

Lopes defende que o racionalismo científico utilizado como


aporte nas análises do textos bíblicos casou graves problemas ao fazer a
distinção entre Palavra de Deus e Escritura. Tais acusações são feitas a
partir do método Histórico-crítico.

Segundo o professor, há no Brasil diversas obras de cunho


Histórico-crítico que fazem menção ao método Gramático-histórico
de maneira pejorativa, identificando-o como pietista, retrógrado ou
fundamentalista. Para Lopes, o método Histórico-crítico nega ou
rejeita a autoridade e a infalibilidade das Escrituras. Quanto a método
Gramático-histórico:

Ele leva em consideração o caráter divino e humano das


Escrituras, sua inspiração e infalibilidade, a historicidade dos
relatos bíblicos e a intencionalidade dos textos em comuni-
car sentido de maneira proposicional. É importante notar
aqui que o método gramático-histórico deu atenção ao
caráter histórico das Escrituras. Entendeu perfeitamente o seu
condicionamento histórico, linguístico, cultural e temporal
e as examinou como tal. Contudo, fez tudo isto a partir do
pressuposto fundamental da sua inspiração e infalibilidade,

38 | Exegese do Antigo Testamento


o que impediu que os exegetas reformados elucidassem
os textos admitindo erros, falhas, imprecisões, inverdades,
mentiras piedosas, mitos e pseudonímia nas páginas sagradas
(Lopes, 2005, p. 118).

Lopes afirma que a morte do método Histórico-crítico está


próxima e, em meio a toda essa discussão, determina que a melhor
opção ainda são os critérios do método Gramático-histórico, pois são
fundamentados nos princípios da Reforma Protestante de sola scriptura
(somente as Escrituras), isto é, na afirmação de que a Bíblia se
sustenta por ela mesma, não necessitando fazer separação entre Palavra
de Deus e palavra dos homens. Não há necessidade de se buscar o
verdadeiro cânon dentro do cânon, que, segundo ele, é a proposta
do método Histórico-crítico. A ciência aplicada por este método nas
Escrituras consiste em separar o que seria normativo (as verdadeiras
Palavras de Deus) do que seria formal (a Escritura em palavras
humanas), buscando racionalizar, pela liberdade de pensamento dos
homens desde o Iluminismo (antropocentrismo), aquilo que foi
originado em Deus e inspirado aos homens.

Em conclusão, precisamos de um método que seja teológico.


E no nosso caso essa teologia só poderia ser a reformada.
O que isto significa? Um método de interpretação
historicamente associado ao método gramático-histórico
de interpretação, adotado, usado e defendido pelos
reformadores, que tenha como pressuposto a inspiração,
a veracidade das Escrituras e a unidade do cânon formal e
que procure estar sensível aos estudos modernos de ciências
correlatas que podem trazer algum auxílio à interpretação
do texto bíblico (Lopes, 2005, p. 137).

1.1 Método Histórico-crítico

Este método exegético pode ser compreendido por meio das


análises do professor Lopes, que, fazendo algumas ressalvas, condena
a sua utilização.

Exegese do Antigo Testamento | 39


Ele foi desenvolvido na Alemanha a partir do século XVII, e
sua centralidade analítica visa a pesquisa histórico-crítica, buscando nas
narrativas bíblicas o seu teor histórico de forma científica, racionalizada.

O método Histórico-crítico não utiliza em sua fundamentação


o princípio de sola scriptura, ou seja, se distancia da exegese Gramático-
histórica que vê as escrituras interpretadas por si mesmas e fazendo,
com a inspiração verbal, com que Bíblia e Palavra de Deus sejam a
mesma coisa.

Os primeiros passos dessa pesquisa Histórico-crítica foram


influenciados por Richard Simon (1638-1712), que para muitos
foi o pai da história moderna. Nesse método, bem complexo por
sinal, há a utilização de uma série de ferramentas de caráter técnico,
metodológico e crítico, que são reforçadas com a ajuda de muitos
pressupostos hermenêuticos.

Seu objetivo consiste em recompor a “fala” original do autor


do texto, ou seja, descobrir o autor da narrativa e, com isso, a influência
do contexto de vida em suas produções textuais, entendendo esse autor
como sujeito racional e autônomo.

É uma verdadeira “revolução copérnica” que leva a uma


sempre maior autonomia do pensamento humano capaz
de desenvolver cada vez mais a ciência e levar a novas
descobertas. Criou-se assim a base para o desenvolvimento
das modernas ciências naturais e da pesquisa histórica. Essa
autonomia do pensamento humano vai ter consequências na
exegese bíblica e dará origem ao método histórico-crítico
(FILHO (Org.), 2008, p. 431).

Johann S. Semler (1725-1791) é considerado o pai do


método Histórico-crítico, aquele que melhor definiu os primeiros
traços dessa análise, considerando que Palavra de Deus e Escritura não
eram idênticas e que o cânon, embora sagrado para muitos, deveria
ser investigado criticamente. Assim, as narrativas bíblicas deveriam ser
analisadas como documentos históricos, isto é, sob a tutela da ciência
histórica moderna.

40 | Exegese do Antigo Testamento


Por que é chamado de Método Histórico-crítico?

É um método histórico, porque trabalha com fontes históricas


muito antigas, vistas dentro de uma perspectiva de evolução
histórica e que devem ser analisadas dentro das condições
históricas de sua época de origem. O método é crítico,
porque nessa análise histórica a intenção é ir ao fundo
das questões e emitir juízos críticos sobre essas fontes,
questionando-se o condicionamento da interpretação por
pressupostos dogmáticos ou filosóficos. Por sua vez, a partir
do Iluminismo, verdadeiro é somente aquilo que pode ser
deduzido racionalmente (FILHO (Org.), 2008, p. 432).

Segundo este tipo de análise, os objetos de estudo, quando


realizados a partir dos conceitos da historiografia moderna, não sofrem
juízos definitivos. Por isso as narrativas bíblicas devem estar sujeitas ao
procedimento científico, assim como qualquer outra análise de fatos
supostamente históricos.

Sendo assim, as narrativas sagradas são comparadas a inúmeros


outros fatos que a ciência histórica classificou como verdadeiros. Para
o método Histórico Crítico, os eventos bíblicos estão sujeitos aos
procedimentos e resultados da mesma forma que outras narrativas que
se pretendem históricas na diversidade de culturas antigas.

Um exemplo disso seria a passagem do povo de Iahweh no


Egito. Não se tomariam apenas as narrativas bíblicas que aventassem
eventos históricos, mas, sim, seriam analisados os inúmeros
documentos, esculturas e estelas egípcios e depois, a partir da veracidade
dos fatos encontrados usando o método Histórico-crítico, comparados
com as narrativas bíblicas. Os nomes de Pitom e Ramsés (Cf. Ex 1.11),
duas cidades-armazéns egípcias citadas no texto bíblico e que apontam
para o Faraó Ramsés II (1290-1224), segundo esse método não seriam
provas absolutas de que esse povo esteve naquela terra. É preciso
verificar tal informação com textos extrabíblicos.

Nesse sentido, devemos reforçar que as análises do método


Histórico-crítico são puramente racionais a partir dos ideais

Exegese do Antigo Testamento | 41


divulgados pelo Iluminismo. “Logo, os textos bíblicos devem
ser analisados como documentos históricos e em sua inserção
histórica.” (FILHO (Org.), 2008, p. 431).

O ponto positivo do método Histórico-crítico em relação


às narrativas bíblicas está na consideração de que não deseja fazer
uma crítica negativa dos eventos ocorridos, mas procura saber aquilo
que é produção humana, a partir da experiência de fé, que pode ser
determinado como realmente histórico.

Por meio do método Histórico-crítico procura-se, então,


compreender o agir de Deus nas expressões de fé dos homens,
considerando a produção humana dessas experiências com Deus dentro
da linha histórica, isto é, centrando-se mais naquilo que os homens
podem construir a partir de suas relações com o sagrado do que uma
revelação advinda como inspiração divina – caso em que o agir e a
busca humana por Deus são desconsiderados, contribuindo assim para o
sentido da predestinação (Método Gramático-histórico).

Até esse momento pode parecer sem problemas a busca


humana por conhecer melhor o sagrado. Afinal, não é o que muitos
procuram? Amadurecer conhecendo a Deus mais e mais?

No entanto, fazer análises científicas nos textos tão caros


a judeus, cristãos e muçulmanos não é tão simples assim. Por isso,
não são poucos aqueles que têm repulsa pela utilização do método
Histórico-crítico. Segundo os seus críticos, ele obscurece a revelação
divina aos homens, dando a entender que os homens não necessitam da
abertura divina para se encontrarem com Deus, que a via de encontro
pode partir do homem.

Nenhum método é perfeito, já aventamos que os mesmos são


produto dos homens e, por isso, possuem alguns limites e não somente
virtudes. Nenhum deles é infalível.

Os limites do método Histórico-crítico não podem ser


tomados conforme as análises dos exegetas que são contra sua utilização
nas narrativas bíblicas. Por exemplo, a análise crítica das Escrituras

42 | Exegese do Antigo Testamento


como documento histórico é o fundamento do método, sua existência
como análise científica. Esses limites devem ser encontrados em
outras áreas. Estar preso ao passado e analisar as Escrituras como um
documento histórico qualquer, além de não trazer as questões para os
nossos dias, desconsidera o interpelar de Deus para nós hoje, isto é,
nossas responsabilidades diante desse mundo como testemunhas de fé.

Desde o evento do Pentecostes (Cf. At 2), observamos uma


igreja que nasce tomada pelo direcionamento do Espírito Santo.
Este que é o próprio Deus que passa a habitar na vida das pessoas,
direcionando-as em suas decisões de vida, conforme predito por Jesus
de Nazaré de que não deixaria o seu povo órfão após o seu retorno para
habitar a glória com o Pai.

Se me amais, observareis meus mandamentos, e rogarei ao Pai


e ele vos dará outro Paráclito, para que convosco permaneça
para sempre, o Espírito da Verdade, que o mundo não pode
acolher, porque não o vê nem o conhece. Vós o conheceis,
porque permanece convosco. Não vos deixarei órfãos. Eu virei
a vós. (Jo. 14, 15-18. BÍBLIA DE JERUSALÉM).

A última frase do verso 18, “Eu virei a vós”, já não trata, no


Evangelho de João, da volta do Senhor, mas sim da permanência Dele
conosco continuamente através da habitação desse Espírito (Paráclito;
Santo; Verdade) em nossas vidas. Tal compreensão é fundamental a
exegese e a hermenêutica bíblica, se aproximando das perspectivas
pastorais. A atuação desse Espírito em nossas vidas é fundamental e
nos assessora junto às técnicas metodológicas a melhor compreensão
das Escrituras.

Que esse método levanta questionamentos e até pode


causar, em determinados momentos, dúvidas de fé, não
é possível negar. Porém, não é esta a sua finalidade. Ao
analisar criticamente e verificar as verdades expressas nos
textos, essa interpretação quer estar a serviço da Verdade
que interpela o leitor e traz ainda hoje a Palavra de Deus.
(FILHO (Org.), 2008, p. 433).

Exegese do Antigo Testamento | 43


A utilização dos métodos exegéticos e dos recursos
hermenêuticos só pode ser realizada por teólogos maduros,
comprometidos com as responsabilidades que nos são trazidas nas
reflexões da Palavra de Deus, naquelas interpelações do próprio Deus
por meio de Sua Palavra que nos fazem refletir, mas que também
exigem de nós, sem dúvida, ações pautadas na ética do próprio Deus
que escorre por Suas Escrituras.

Portanto, espera-se dos teólogos plena maturidade e não


críticas infantilizadas quando confrontados em sua fé pelos métodos
científicos que surgem constantemente.

Pensando nas questões apresentadas pela Fenomenologia da


Religião, nenhuma fé deveria estar ameaçada pelos posicionamentos
científicos, já que uma fé verdadeiramente vivida, sentida, em nada pode ser
abalada pela ciência. Como diria o escritor alemão Goethe, “o sentir é tudo”.

1.2 Narratologia

Podemos entender o método conhecido como Narratologia


como uma prática muito antiga entre os homens, que é a alegria e a
necessidade de se contar histórias.

A narratologia, então, faz parte do eixo da comunicação. Ela


questiona a forma com que os autores comunicam sua mensagem
aos seus leitores. O eixo da comunicação, portanto, é estruturado da
seguinte maneira:

• Autor (destinador).
• Mensagem.
• Leitor (destinatário).

Estes três elementos compõem o eixo, fundamental à


narratologia. Sem eles, não é possível comunicação alguma.

A metodologia Histórico-crítica se fundamenta no autor,


procurando saber quais foram as tradições que ele colecionou em

44 | Exegese do Antigo Testamento


seu contexto cultural e como fez a transmissão e sua interpretação. O
“mundo” do autor por detrás do texto é o que direciona essa metodologia.

A narratologia se interessa pelo “mundo” do leitor em


primeiro lugar. Quais os efeitos que as narrativas lhe causam e,
a partir das experiências dele, procura orientar-se também na
contribuição trazida pelos leitores quanto ao decifrar do sentido.
Observamos, então, que a narratologia se interessa pelo processo de
comunicação entre autor e leitor.

O narrador é aquele que conta a história, a “voz” que vem a


guiar o leitor em meio à narrativa. Segundo esse preceito determinado
pela narratologia, no caso dos autores dos textos bíblicos, eles acabam
por se esconder atrás de suas criações, porém continua presente nas
estratégias que utiliza no processo criativo do seu texto.

Quando fazemos a leitura de um texto qualquer ou, em


nosso caso, as narrativas bíblicas, segundo a narratologia, se inicia um
contrato implícito entre o narrador e narratário.

Há uma confiabilidade por parte do narratário nos dados


fornecidos pelo narrador, porém, caso não se conforme com as
informações compartilhadas, ou seja, se a narrativa não lhe agradar,
rompe-se o contrato com a desistência da leitura, fechando o livro.

O narrador não precisa fornecer ao narratário as suas fontes,


tão necessárias à construção de sua história, exatamente porque existe
esta relação de confiabilidade entre as partes.

Resumindo, o narrador não só está em condições de


saber tudo, como também não tem de explicar a origem
de seu saber. Por outro lado, o leitor confia no narrador.
Reconhece-o como confiável. É sempre assim na narrativa
bíblica: o leitor adere à narrativa do narrador, ao seu
sistema de valores. E, quando o narrador dos livros dos
Reis faz a triagem entre os reis que agradam a Deus e
aqueles cujas ações não agradam a Deus, o leitor aceita.
Dito isso, a confiabilidade do narrador não é um dogma

Exegese do Antigo Testamento | 45


narrativo; narrativas podem precisamente jogar com a não
confiabilidade de um narrador (é o caso do romance policial,
em que o narrador esconde do leitor indícios importantes.).
(Marguerat; Bourquin, 2009, p. 22-23).

É necessário que façamos uma diferenciação entre autor


real e leitor real, e para isso devemos dividir essa compreensão em
dois movimentos.

A narratologia faz a primeira distinção entre autor real e leitor


real considerando que “o autor real é, então, a personalidade ou o grupo
redator do texto. O leitor real é o indivíduo ou a coletividade para quem
o texto foi inicialmente destinado” (Marguerat, Bourquin, 2009, p. 23).

Partindo desta proposição, tomemos como exemplo o


Evangelho de Mateus. É consenso comum de que Mateus (autor
real / redator do texto) destinou o seu texto inicialmente para uma
comunidade particular, os judeus (leitores reais). Durante boa parte
do seu texto, Mateus deseja incutir na mentalidade dos judeus o fato
de que Jesus de Nazaré é o verdadeiro Messias. Inclusive percebemos
nitidamente, ao longo do Evangelho de Mateus, as alusões que o autor
faz às tradições judaicas, relendo-as sob a ótica do Messias de Nazaré.

Voltando às questões sobre autores e leitores reais, a


narratologia os considera personalidades históricas, mas que estão fora
do texto, ou melhor, estão longe do alcance daqueles que abrem o livro.

Segundo o método narratológico, os autores podem construir


em suas narrativas um contexto que não seja exatamente o seu. Isto
é, podem construir uma realidade hipotética, desejada, mas que não
coincide com a sua.

Por isso, segundo a narratologia, confundir autor com o


narrador é um erro, são figuras distintas no processo, ou seja, o
sujeito até pode ser autor e narrador dos textos se assim desejar, mas
enquanto narrador pode vir a não revelar o seu contexto, mas uma
realidade artificial que desejaria um dia se concretizar, nesse momento
ainda de forma utópica.

46 | Exegese do Antigo Testamento


Ele pode assumir um papel de narrador que não corresponde
ao que ele pensa na realidade. A ficção narrativa o autoriza
precisamente a desenvolver um mundo imaginário que não
coincide com o seu. Em resumo, confundir o autor e a obra é
prova de ingenuidade semelhante à de tomar Mickey por um
personagem histórico [...]. (Marguerat; Bourquin, 2009, p. 24).

Resumindo, o autor real é aquele que nos escapa, é uma


personalidade que vive fora do texto. Já o autor implícito é aquele
revelado pelo próprio texto que produziu.

Esse autor implícito possui escolhas, determinadas por ele,


ao produzir o seu texto, como estilo, gênero no qual comunica sua
mensagem, a disposição dos personagens etc. É este tipo de autor que
interessa diretamente aos narratólogos, porque, para a narratologia,
o autor é definido por seu modo de ser a partir do texto, pelas
características apresentadas pelo texto.

A partir da narrativa é possível reconstruir o autor implícito,


isto é, o leitor é quem dá vida a ele, por meio daquelas características
que estão no texto. Quanto ao narrador, ele é um princípio que
também faz parte da narrativa, juntamente com todos os outros
elementos. O autor implícito não é o narrador.

A noção de leitor implícito está baseada justamente no texto


produzido pelo autor implícito, já que este ao elaborar as características
do seu texto também procurar pensar no tipo de leitor que estará diante
de sua narrativa. No entanto, na relação entre autor implícito e leitor
implícito há uma pequena variação no que conhecemos como leitor real.

Vimos que não é possível se chegar ao autor real do texto,


ainda mais quando tratamos de narrativas bíblicas, todas com seu grau
de antiguidade. Mas temos acesso ao autor que o próprio texto nos
revela com suas preferências pessoais (autor implícito). Todo autor
direciona sua produção para um determinado público (leitores).

No exemplo do Evangelho de Mateus, temos um autor real


que destina o seu texto aos judeus (leitores reais). Porém, esse mesmo
texto direcionado primeiramente aos judeus é também destinado aos
leitores implícitos, que por exemplo, seríamos nós, hoje.

Exegese do Antigo Testamento | 47


O leitor real é a comunidade judaica (primeiros leitores
condicionados por sua cultura), no caso do Evangelho de Mateus,
mas também todo e qualquer leitor diante do seu Evangelho (leitor
implícito), que são aqueles que tiveram posteriormente acesso aos
seus escritos.

O autor implícito faz o planejamento da mensagem com as


características que utiliza de maneira particular e com isso pensa no tipo
de leitor que se destina o seu texto, mas trata-se apenas da imagem de
um potencial leitor formada por ele.

O leitor implícito é aquele que condiciona o texto, ou seja,


determina, controla a narrativa conforme sua interpretação. Então,
embora o autor implícito faça a elaboração do perfil de leitores a que
se destina sua obra, são os próprios leitores que determinam a sua
aplicabilidade, que acolhem ou não as determinações desse autor,
gerando novos sentidos a partir do texto.

48 | Exegese do Antigo Testamento


Síntese
Nesta unidade de aprendizagem procuramos apresentar
alguns métodos exegéticos, certamente os mais conhecidos e
utilizados dentro da teologia. Não seria possível aqui tratarmos de
forma profunda cada um deles. A bibliografia ao final da unidade
apresenta algumas obras, caso os alunos desejem mais informações
sobre esses métodos.

Tivemos, também, o intuito de possibilitar aos alunos uma


diversidade, na medida em que poderão, a partir dos métodos
apresentados, escolher os mais adequados às suas realidades
sociorreligiosa.

A partir da próxima unidade já estaremos dando os


primeiros passos de nossa exegese semiodiscursiva e, em nosso
primeiro momento estaremos aprendendo o que é uma perícope,
como selecioná-la nas narrativas veterotestamentárias, assim como
outros aspectos relacionados.

Bíblia Sagrada - Modelos Exegéticos

• Centrado nas verdades a parti da fé.


Método Gramático • Pautado no princípio de que a Bíblia
Histórico interpreta a si mesma (Sola Scriptura).
• Se aproxima da postura maximalista.

Exegese do Antigo Testamento | 49


• Busca através de diversas ferramentas
científicas o autor por detrás do texto.
Método Histórico
• Busca o que há de histórico no texto
Crítico
sagrado.
• Se aproxima da postura minimalista.

• Está interessada no mundo do leitor.


• Identifica um “contrato” entre autor
Narratologia implícito e leitor implícito.
• O leitor implícito utiliza constantemente a
reserva de sentido do texto.

50 | Exegese do Antigo Testamento


Referências Bibliográficas
Bíblia de Jerusalém. 3 impressão. Nova edição revista e ampliada. São
Paulo: Paulus, 2004. 2206p.

Bíblia do Peregrino. 3 ed. São Paulo: Paulus, 2011. 3056p.

Bíblia Hebraica. Baseada no Hebraico e à luz do Talmud e das Fontes


Judaicas. 1 reimpressão revisada. São Paulo: Editora Sêfer, 2007. 877p.

Bíblia Sagrada. Contendo o Antigo e o Novo Testamento. Traduzido


em português por João Ferreira de Almeida. Edição revista e corrigida.
85 impressão. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1995.

Bíblia Hebraica Stuttgartensia. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do


Brasil, 1997. 1574p.

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução da 1 ed.


brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi. 5 ed. São Paulo:
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BOURQUIN, Yvan; MARGUERAT, Daniel. Para ler as narrativas


bíblicas: iniciação à análise narrativa. Tradução de Margarida Oliva. São
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CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa:


uma introdução à fenomenologia da religião. Tradução de Carlos Maria
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Exegese do Antigo Testamento | 51


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GUNNEWEG, Antonius H.. Hermenêutica do Antigo Testamento.


Tradução de Ilson Kayser. São Leopoldo: Sinodal, 2003. 251p.

LOPES, Augustus Nicodemos. O dilema do método histórico-crítico


na interpretação bíblica. Fides Reformata On Line. São Paulo, v. X,
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. A Bíblia e seus intérpretes: uma breve história da


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MARGUERAT, Daniel; BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas


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VOLKMANN, Martin. Exegese histórico-crítica. In: .


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YOFRE, Horacio Simian (org.). Metodologia do Antigo


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ZABATIERO, Júlio. Manual de Exegese. São Paulo: Hagnos,


2007. 159p.

52 | Exegese do Antigo Testamento


Delimitando um Texto (Perícope)
Objetivos
Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de:

1. Identificar perícopes nas narrativas sagradas ao longo dos


livros do Antigo Testamento;
2. Interpretar narrativas, textos históricos e tradições também
a partir do seu contexto eclesiástico;
3. Compreender a exegese bíblica veterotestamentária à luz do
método semiodiscursivo;
4. Perceber o mundo do texto que procura traduzir a realidade
de dado momento histórico e cultural;
5. Realizar os passos exegéticos relativos à análise
metodológica semiodiscursiva;
6. Implementar a pesquisa exegética, a partir da perícope
escolhida, em sua realidade social eclesiástica;
7. Aprimorar conhecimento dos textos e narrativas fundantes
da Teologia de Israel.

Exegese do Antigo Testamento | 55


Introdução
Olá alunos e alunas, nesta unidade de aprendizagem estudaremos
a respeito dos aspectos relacionados à divisão de uma narrativa bíblica, aqui
selecionada segundo os livros do Antigo Testamento.

Dependendo da versão bíblica que os discentes possuem em


mãos, essa tarefa já está feita. Existem boas Bíblias de estudo que, em
certos casos, já dividem as narrativas para os seus leitores, facilitando o
trabalho exegético.

Independentemente de tais divisões realizadas por exegetas


vinculados a certas denominações e editoras bíblicas, aprenderemos a
encontrar e dividir os textos para nossa própria análise exegética.

O uso da criatividade responsável dos discentes também será


de grande ajuda para a divisão do texto, pois não é necessário ficar
preso às divisões encontradas nas Bíblias de estudo.

Aventamos continuamente que os resultados de suas pesquisas


exegéticas devem refletir na prática de vida em suas comunidades
de fé, mas também no entorno social do qual elas fazem parte. Essa
atitude é válida para todos os teólogos em formação, seja qual for o seu
segmento de fé.

Exegese do Antigo Testamento | 57


3.1 Novo Início

Delimitar um texto é o mesmo que estabelecer ou definir


os limites sobre ele. Já mencionamos o termo perícope como
determinada percepção sobre as narrativas sagradas, como e quando
elas se iniciam, seu desenvolvimento e fim; é como se pensássemos
num “arco narrativo”, que engloba e desenvolve a mensagem a ser
comunicada ao leitor.

Já sabemos, também, que as Bíblias de estudo já procuram


facilitar nossa tarefa de delimitação das narrativas ou textos sagrados;
contudo, nem sempre são felizes nas divisões apresentadas.

Todo material bíblico disponível no mercado editorial também


objetiva um nicho de mercado, destinando-se a certos grupos sociais,
como crianças, jovens, adolescentes, mulheres, noivas etc. E como essas
divisões podem ser por vezes tendenciosas à venda do produto, muitos
erros são cometidos.

Entre os possíveis equívocos está, justamente, a delimitação


(perícope) encontrada nesse material. Pode haver uma delimitação que
quebra o “arco narrativo”, ou seja, a continuidade do texto.

Mas o contrário também é verdade e ocorre com frequência,


isto é, a apresentação de um “arco narrativo” em que várias perícopes
estão unidas como se formassem apenas uma unidade literária.

Encontrar uma possível perícope verdadeira é algo que envolve


complexidade, mas pode ser realizado com um pequeno exercício

Exegese do Antigo Testamento | 59


comparativo entre algumas das mais diversas versões de Bíblias
encontradas no mercado editorial brasileiro.

Comparando determinado texto em algumas versões


(Jerusalém; TEB; Almeida etc.), veremos o quão difícil é
encontrarmos univocidade e consenso entre os especialistas que
manuseiam exegeticamente os textos sagrados quanto ao início, meio e
fim das perícopes.

Em meio à multiplicidade de divisões de um mesmo texto,


procuraremos, então, um método pelo qual se possam encontrar pistas,
fornecidas pelo próprio texto, que venham a nos indicar uma forma de
dividirmos melhor as narrativas bíblicas.

Ora, é verdade que os autores bíblicos não dividiram


explicitamente suas obras. No entanto, não nos abandonaram
“no mato sem cachorro”. Antes, deixaram alguns indícios, a
fim de evidenciar onde começa e onde termina determinada
perícope. Tais indícios divisores de texto não devem se limitar
apenas à língua original, mas devem igualmente, fazer parte
da tradução (Silva, 2009, p. 70).

Queremos dizer que todo processo de tradução, que é


interpretativo, deveria ser mais criterioso, considerando o conteúdo
narrativo do texto original, isto é, os escritos em hebraico e aramaico
das narrativas veterotestamentárias.

É verdade que nossas traduções bíblicas no mercado foram de


grande ajuda e são um marco na divulgação e melhor conhecimento da
Palavra de Deus a todos os que desejarem. No entanto, para os teólogos
que desejam continuamente melhorar o aprofundamento das narrativas
bíblicas, é importante não abrir mão de certos critérios, principalmente
quando estão de posse de versões que não atentam para a fidelidade em
relação ao texto original.

A procura por um texto fiel aos escritos hebraicos e aramaicos


é de suma importância ao método que estamos propondo para análises
das escrituras, o método semiodiscursivo, o qual desenvolve no próprio

60 | Exegese do Antigo Testamento


texto, em língua vernácula, a exegese prática que intencionamos
comunicar ao longo desta unidade.

Nesse sentido, indicamos a versão da Bíblia de Jerusalém como


uma boa tradução das narrativas dos originais hebraicos e aramaicos.
Não que essa versão esteja isenta de erros, já que é impossível uma
versão bíblica dos originais que seja perfeita.

Mas o trabalho minucioso dos exegetas dessa versão,


procurando a maior fidelidade na tradução ao longo de muitos anos, faz
com que ela esteja bem mais próxima daquilo que desejaram comunicar
os hagiógrafos em suas narrativas a respeito da relação daqueles
homens e mulheres com Iahweh. Contudo, o teólogo é livre para
utilizar a versão que melhor lhe aprouver, considerando a existências de
possibilidades de leituras para um melhor exercício exegético.

Veremos, a seguir, alguns indícios fornecidos pelas próprias


narrativas bíblicas que nos permitirão fazer uma boa divisão do texto,
isto é, independentemente das perícopes fornecidas pelas inúmeras
Bíblias de estudo, procuraremos construir nossa própria perícope.

Outro dado de suma importância a ser comentado é que,


em nossas versões bíblicas, é muito comum se dar título às perícopes
construídas pelos exegetas; isso, por muitas vezes, se mostra desastroso,
pois nem sempre se atenta ao tema que perfaz a suposta perícope, e os
títulos acabam não correspondendo ao cerne ou tema central do texto.

Na construção ou busca da unidade literária mais plausível, é


importante perceber o tema central da perícope e, a partir dele, intitulá-
-la de acordo com a centralidade comunicada no “arco narrativo”.

A fim de chamar a atenção de seus leitores, o autor dá pistas


do início de um tema qualquer; por meio de recursos de abertura, ele
nos direciona à sua intencionalidade.

Abaixo, observe a sequência de textos que exemplificam


as características; todos os exemplos utilizados se referem à versão
da Bíblia de Jerusalém. Já aventamos que a tradução dessa obra se

Exegese do Antigo Testamento | 61


aproxima fielmente do hebraico e do aramaico, mas ela também
costuma dividir de forma correta as perícopes, dando aos teólogos mais
facilidade em suas pesquisas.

Por isso, para uma melhor compreensão da divisão apresentada


abaixo, procure, também, versões em que tais separações não sejam
visíveis, pois a assimilação daquilo que estamos propondo será melhor.
Um exemplo disso acontece com a Bíblia Online, na qual não há
títulos nem divisões relativas às narrativas bíblicas, isto é, as perícopes
não estão dadas. Nesse sentido, essa versão moderna serve como
bom exercício para que os discentes possam buscar por si mesmos as
unidades literárias mais plausíveis para suas pesquisas.

• Indício de início de perícope que engloba tempo e espaço.

No retorno do ano, na época em que os reis costumam fazer


a guerra, Davi enviou Joab, e com ele seus servos e todo o
Israel, e eles massacraram os amonitas e sitiaram Rabá. Mas
Davi ficou em Jerusalém (2Sm 11,1. Bíblia de Jerusalém).

• Indício de início de perícope com a aparição de


determinado personagem ou ação / atividade de um
personagem que, até então, estava nulo na narrativa.

Veio um homem de Baal-Salisa e trouxe para o homem de


Deus pão das primícias, vinte pães de cevada e trigo novo em
seu alforje. Eliseu ordenou: “Oferece a esta gente para que
coma.” (2Rs 4,42. Bíblia de Jerusalém).

• Indício de início de perícope com a mudança de


argumento ou assunto, geralmente identificado pelos
termos: “Finalmente...”; “quanto a...”; “a propósito de...”,
dentre outras possibilidades.

Ora, antigamente era costume em Israel, em caso de resgate


ou de herança para validar o negócio, um tirar a sandália e
entregá-la ao outro; era esse o modo de testemunhar em
Israel (Rt 4,7. Bíblia de Jerusalém).

62 | Exegese do Antigo Testamento


• Indício de início de perícope com antecipação de um novo
tema que será tratado mais à frente pelo autor.

Convinha, por isso, que em tudo se tornasse semelhante


aos irmãos, para ser, em relação a Deus, sumo sacerdote
misericordioso e fiel, para expiar assim os pecados do povo.
Pois, tendo ele mesmo passado pela prova, é capaz de socorrer
os que são provados (Hb 2,17-18. Bíblia de Jerusalém).

Os versos acima antecipam o tema a respeito de Jesus Cristo


como sumo sacerdote em Hebreus 3,1-5,10.

• Indício de início de perícope com título, por muitas vezes


explícito, por parte do autor do texto que desejou dar ênfase
ao tema que se segue.

Oráculo a respeito do deserto do mar. Como os furacões que


percorrem o Negueb, assim esta calamidade vem do deserto,
de terra onde domina o terror. (Is 21,1. Bíblia de Jerusalém).

• Indício de início de perícope com vocativo. Na sentença


abaixo observamos o falante, no caso o profeta, dirigindo
sua palavra para grupos específicos do seu povo.

Ouvi isto, sacerdotes, atende, casa de Israel, escuta, casa do


rei, pois o direito é para todos vós. Fostes um laço para Masfa
e uma rede estendida sobre o Tabor, a cova de Sitim, que eles
cavaram. Mas sou eu quem castiga a todos (Is 5,1-2).

• Indício de início de perícope com introdução de discurso.

Ai de mim, minha mãe, porque tu me geraste homem de


disputa e homem de discórdia para toda terra! Não emprestei
e nem me emprestaram, mas todos me amaldiçoam. (Jr.
15,10. Biblia de Jerusalém).

• Indício de início de perícope com mudança de estilo.


Discurso para fábula no exemplo do capítulo 9 no livro dos
Juízes. Selecionamos aqui apenas alguns trechos:

Exegese do Antigo Testamento | 63


Senhores de Siquém, ouvi-me, para que Deus vos ouça!
Um dia as árvores se puseram a caminho para ungir um rei
que, reinasse sobre elas. Disseram à oliveira: “Reina sobre
nós!” A oliveira lhes respondeu: “Renunciaria eu ao meu
azeite, que tanto honra aos deuses como aos homens, a fim
de balançar-me por sobre as árvores?” (Jz 9,7b-9.
Biblia de Jerusalém).

3.2 Indicações de Término

• Indício de término da perícope a partir dos personagens,


que podem ser reduzidos ou multiplicados nas narrativas.
É possível analisar que essas modificações visam distrair a
atenção do leitor, indicando, assim, que o tema anterior já
não é mais fundamental ao que se segue.

A passagem abaixo acontece em meio à cura de um leproso


pelo Senhor. Após a realização do milagre por Jesus, o autor da
narrativa já não vê mais a necessidade de estendê-la.

A notícia a seu respeito, porém, difundia-se cada vez mais, e


acorriam numerosas multidões para ouvi-lo e serem curadas
de suas enfermidades. Ele, porém, permanecia retirado em
lugares desertos e orava (Lc 5,15-16. Bíblia de Jerusalém).

• Indício de término da perícope a partir do espaço. No


exemplo que se segue há um deslocamento.

O rei prosseguiu em direção a Guilgual, e Camaam foi


com ele assim como todo o povo de Judá. Fizeram passar
o rei e também a metade do povo de Israel. (2Sm 19,40.
Bíblia de Jerusalém).

• Indício de término da perícope a partir do tempo. No


exemplo a seguir temos a perícope intitulada “A riqueza de
Salomão”; ao final desta narrativa há uma clareza de que não
há mais nada a ser acrescentado pelo autor, e o indicativo de
tempo, no verso 25, reforça o término da perícope.

64 | Exegese do Antigo Testamento


Todo o mundo queria ser recebido por Salomão para ouvir a
sabedoria que Deus lhe tinha posto no coração, e cada um,
anualmente, trazia o seu presente: objetos de prata e objetos
de ouro, roupas, armas e aromas, cavalos e mula e assim a
cada ano (1Rs 10,24-25. Bíblia de Jerusalém).

• Indício de término da perícope a partir de certo personagem


que executa uma função específica na narrativa, veja o
conhecido exemplo de Davi a serviço do Rei Saul:

Davi chegou à presença de Saul e se pôs ao seu serviço. Saul


sentiu grande afeição por ele, e Davi se tornou seu escudeiro.
Saul mandou dizer a Jessé: “Que Davi fique a meu serviço,
porque conquistou a minha admiração”. Todas as vezes que
o espírito de Deus o acometia, Davi tomava a lira e tocava;
então Saul se acalmava, sentia-se melhor e o mau espírito o
deixava (1Sm 16, 21-23. Bíblia de Jerusalém).

• Indício de término de perícope a partir de ações ou funções


terminais.

No exemplo a seguir temos, no capítulo 49 no livro de


Gênesis, o patriarca Jacó distribuindo suas bênçãos aos seus filhos,
futuros representantes das tribos de Israel. Ao fim das bênçãos é
chegada sua morte.

Embora o capítulo tenha 33 versos, a perícope intitulada “Últimos


momentos e morte de Jacó” acontece dos versos de 29 a 33. Apenas
citaremos o verso final como representação do término da perícope:

Quando Jacó acabou de dar suas instruções a seus filhos,


recolheu os pés sobre o leito; ele expirou e foi reunido aos
seus (Gn 49,33. Bíblia de Jerusalém).

• Indício de término da perícope quando a narrativa


apresenta um diálogo em que o protagonista possui a
última fala, podendo ser apresentado na narrativa também
como um herói.

Exegese do Antigo Testamento | 65


Citaremos novamente o livro de Rute como exemplo desse
herói, Booz o resgatador, que após longa contenda com o personagem,
apenas chamado de Fulano, toma a fala e resolve todo o imbróglio.

Booz disse aos anciãos e a todo o povo: “Sois testemunhas


hoje de que comprei da mão de Noemi tudo o que pertencia
a Elimelec e tudo o que pertencia a Maalon e a Quelion;
ao mesmo tempo adquiro por mulher Rute, a moabita,
viúva de Maalon, para perpetuar o nome do falecido sobre
sua herança e para que o nome do falecido não desapareça
do meio de seus irmãos nem da porta de sua cidade. Disso
sois testemunhas hoje.” E todo o povo que se achava junto
à porta, bem como os anciãos, responderam: “Nós somos
testemunhas! Que Iahweh torne essa mulher que entra em
tua casa semelhante a Raquel e a Lia, que formaram a casa de
Israel (Rt 4, 9-11. Bíblia de Jerusalém).

• Indício de término de perícope quando o autor interrompe


o fluxo narrativo para fazer determinado comentário. No
caso da perícope abaixo, o comentário é explicativo, pois
informa ao leitor um dado importantíssimo do costume
mais antigo em Israel ao se deparar ou procurar, em
determinada região, um vidente.

Quando iam chegando a Suf, Saul disse ao servo que o


acompanhava: “Vamos voltar! Pior será para o meu pai que
deixe de preocupar-se com as jumentas e se aflija por nossa
causa.” Mas ele lhe respondeu: “Há um homem de Deus
na cidade próxima. É um homem honrado. Tudo o que ele
diz acontece com certeza. Vamos até lá: talvez nos aconselhe
sobre a viagem que empreendemos.” Saul disse ao jovem: “Se
formos, que levaremos ao homem de Deus? O pão já acabou
no alforje, e nada temos para levar ao homem de Deus. Que
temos mais? O jovem tomou a palavra e disse a Saul: “Ocorre
que tenho comigo um quarto de siclo de prata. Eu o darei ao
homem de Deus, e ele nos aconselhará sobre nossa viagem.”
Antigamente, em Israel, quando alguém ia consultar a Deus,
dizia: “Vamos ao vidente”, porque, em vez de “profeta”, como
hoje se diz, dizia-se “vidente”. Saul disse ao jovem: “Falaste

66 | Exegese do Antigo Testamento


bem. Vamos, então.” E chegaram à cidade onde se encontrava
o homem de Deus (1Sm 9, 5-10. Bíblia de Jerusalém).

• Indício de término da perícope em forma de sumário, que,


na verdade, nada mais é do que um resumo, atitude muito
comum dos autores dos evangelhos.

A pá está em sua mão; limpará a sua eira e recolherá o trigo


em seu celeiro; a palha porém, ele a queimará num fogo
inextinguível.” E, com muitas outras exortações, continuava a
anunciar ao povo a Boa-nova (Lc 3,17-18).

Muitos outros exemplos poderiam ser apresentados, porém


o que procuramos nesses dois subtemas foi apresentar uma série de
possibilidades em que os discentes poderão, por meio desses exemplos
e da sua criatividade nas análises das perícopes de suas preferências,
encontrar a melhor divisão que facilitará o trabalho exegético.

Para terminar, apresentaremos mais alguns pontos com


elementos que poderão ser identificados ao longo das narrativas.

3.3 Elementos ao Longo do Texto

Neste último subtema dessa unidade curricular iremos


apresentar alguns elementos que surgem nas três partes que compõem
uma perícope, isto é, acontecem no princípio, no meio ou no fim do
“arco narrativo”.

Fechando a unidade, também apresentaremos um exemplo


em que poderemos ver alguns dos exemplos citados nos subtemas. Tal
perícope também nos servirá de padrão para os outros temas que serão
abordados futuramente.

• Indício de perícope com elementos ao logo do texto,


mas com ênfase na ação. “Normalmente constituída por
princípio, meio e fim, a ação é o núcleo de qualquer
narrativa”. (Silva, 2009, p. 74).

Exegese do Antigo Testamento | 67


Então Josué despediu o povo, e os israelitas partiram cada
qual para sua herança. a fim de tomar posse da terra (Jz 2,6.
Bíblia de Jerusalém).

• Indício de perícope com elementos ao logo do texto, mas


com ênfase na semântica. Isto é, em alguns textos há uma
espécie de fundo no qual a narrativa se desenvolve.

Nessa belíssima perícope temos, junto ao chamado de Eliseu, a


sua despedida, o que confirma a dureza da vida que seguiria a partir de
então, pois não é qualquer coisa ser a “boca de Iahweh”, denunciando as
injustiças por parte dos poderosos de Israel.

Para isso, se confirma na narrativa o total desprendimento


de Eliseu ao assumir sua vocação junto a Elias, comemorando o
seu chamado com uma grande refeição, a última à mesa com seus
parentes, usando da madeira do arado, instrumento fundamental ao
seu antigo ofício, com ela cozinhando a carne de sua junta de bois.
Eliseu, ao ser chamado por Elias, irá se dedicar exclusivamente à sua
nova vocação, não retornará ao seu antigo ofício e, mais do que isso, o
renunciará para sempre.

Partindo dali, Elias encontrou Eliseu filho de Safat enquanto


trabalhava doze arapenes de terra, ele próprio no décimo
segundo. Elias passou perto dele e lançou sobre ele seu manto.
Eliseu abandonou seus bois, correu atrás de Elias e disse:
“Deixa-me abraçar meu pai e minha mãe, depois te seguirei.”
Elias respondeu: “Vai e volta; pois que te fiz eu?” Eliseu
afastou-se de Elias e, tomando a junta de bois, a imolou.
Serviu-se da lenha do arado para cozinhar a carne e deu-a
ao pessoal para comer. Depois levantou-se e seguiu Elias na
qualidade de servo (1Rs 19,19-21. Bíblia de Jerusalém).

• Indício de perícope com elementos ao longo do texto, mas


com o intercalar dos acontecimentos no arco narrativo. Isto
é, a perícope vai se construindo a partir de peças que vão se
ajustando ao longo do texto. Há interrupções ao longo da
sequência narrativa, mas que são retomadas mais a frente,

68 | Exegese do Antigo Testamento


a fim de que o “arco narrativo” seja concluído. É o caso da
narrativa entre Ana, Elcana e seu filho Samuel, com o tema
de Nascimento e consagração de Samuel.

Levantaram-se bem cedo e, depois de se terem prostrado


diante de Iahweh, voltaram à sua casa, em Ramá. Elcana
conheceu sua mulher, Ana, e Iahweh se lembrou dela. Ana
concebeu e, no devido tempo, deu à luz um filho a quem
chamou Samuel, porque, disse ela, “eu o pedi a Iahweh”.
Elcana, seu marido, subiu com toda sua casa para oferecer
a Iahweh o sacrifício anual e cumprir o seu voto. Ana,
porém, não subiu, porque ela disse a seu marido: “Não
antes que o menino seja desmamado! Então, eu o levarei,
e será apresentado perante Iahweh e lá ficará para sempre”.
respondeu-lhe Elcana, seu marido: “Faze o que melhor te
aprouver, e espera até que ele seja desmamado. Que somente
Iahweh realize a sua palavra”. Assim, ficou e criou o menino
até que o desmamou (1Sm 1,19-23. Bíblia de Jerusalém).

Na narrativa acima, há uma interrupção temporal que será


retomada para o fechamento do “arco narrativo”: uma informação
importante da narrativa quando se refere ao desmamar do menino, o que
nos indica que, na cultura de Israel, tal evento acontecesse tardiamente.

Embora Samuel ainda fosse muito pequeno, como nos relata


a sequência narrativa, Ana aguardou o tempo em que o menino já
não mais se alimentava do leite materno. O período do desmamar,
segundo o processo cultural mais antigo em Israel, não nos é
informado, mas sabemos que Samuel já não era mais um recém-
nascido quando foi ao encontro de Iahweh em Silo.

Tão logo o desmamou, ela o fez subir consigo, com um


novilho de três anos, uma medida de farinha e outra de
vinho, e o conduziu ao templo de Iahweh, em Silo. O
menino era ainda muito pequeno. Eles imolaram o novilho
e levaram o menino a Eli. Ela disse: “Perdão, meu senhor!
Tão certo como tu vives, eu sou aquela mulher que aqui
esteve contigo, orando a Iahweh. Eu orava por este menino,

Exegese do Antigo Testamento | 69


e Iahweh atendeu à minha súplica. Da minha parte eu o
dedico a Iahweh por todos os dias que viver, assim o dedico
a Iahweh.” E lá ele se prostou diante de Iahweh (1Sm 1,24-
28. Bíblia de Jerusalém).

• Indício de perícope com elementos ao longo do texto por


meio de inclusão, uma repetição de frase ou conceito que
funciona como uma moldura na narrativa.

Assim falou Iahweh: Por três crimes de Damasco, e por


quatro, não o revogarei. Porque esmagaram Galaad com
debulhadoras de ferro, eu enviarei fogo à casa de Hazael e
devorará os palácios de Ben-Adad; eu quebrarei o ferrolho
de Damasco, exterminarei o habitante de Biceat-Áven, e
de Bet-Éden, aquele que segura o cetro, o povo de Aram
será deportado para Quir, disse Iahweh (Am 1,3-5. Bíblia
de Jerusalém).

• Indício de perícope com elementos ao longo do texto em


forma de quiasmo. Um quiasmo é uma figura de estilo
caracterizada pela repetição de palavras invertendo sua
ordem. Vejamos o exemplo a seguir de quiasmo com
repetição e inversão de palavras:

Embota o coração deste povo, torna-lhe pesados os ouvidos,


tapa-lhe os olhos, para que não veja com os olhos, não ouça
com os ouvidos, seu coração não compreenda, não se converta
e não seja curado (Is 6,10. Bíblia de Jerusalém).

Algumas perícopes podem estar formadas a partir dessa figura


de estilo. O quiasmo pode ser, também, o elemento central de uma
perícope, porém o mais importante na narrativa é a mudança de rumo
ocorrida, uma reviravolta nos eventos contidos no texto. Veja o exemplo
abaixo na parábola de Jesus quando fala sobre “O amigo inoportuno”:

Disse-lhes ainda: “Quem dentre vós, se tiver um amigo


e for procurá-lo no meio da noite, dizendo: ‘Meu amigo,
empresta-me três pães, porque chegou de viagem um dos
meus amigos e nada tenho para lhe oferecer’, e ele responder

70 | Exegese do Antigo Testamento


de dentro: ‘Não me importunes: a porta já está fechada, e
meus filhos e eu estamos na cama; não posso me levantar
para dá-los a ti; digo-vos, mesmo que não se levante para
dá-los por ser amigo, levantar-se-á ao menos por causa da sua
insistência, e lhe dará tudo aquilo de que precisa (Lc 11,5-8.
Bíblia de Jerusalém).

3.3.1 Exemplo Prático

Faremos uso de uma perícope veterotestamentária,


reforçando alguns dos exemplos citados nos três subtemas unidade.
Esta perícope será o exemplo contínuo utilizado ao longo das
seguintes unidades curriculares.

A narrativa se encontra em 1Sm 10,17-27. Diferente dos


outros textos citados acima nessa unidade, colocaremos a numeração
dos versículos na citação, a fim de facilitar o comentário sobre a
perícope, que será feito posteriormente.

17Samuel convocou o povo a Iahweh em Masfa, 18e disse aos


israelitas: “Assim diz Iahweh, o Deus de Israel: Eu fiz Israel
subir do Egito e vos libertei da mão do Egito e de todos os
reinos que vos oprimiam. 19Vós hoje, no entanto, rejeitastes
o vosso Deus, aquele que vos salvara de todos os vossos males
e de todas as angústias que vos afligiam, e lhe dissestes:
“‘Constitui sobre nós um rei!’ Agora, pois, comparecei
diante de Iahweh por tribos e por clãs”. 20Samuel mandou
que se apresentassem todas as tribos de Israel e, tirada a
sorte, foi escolhida a de Benjamim. 21Mandou que a tribo
de Benjamim se aproximasse, dividida por clãs, e o clã de
Metri foi sorteado. Mandou então que se aproximasse o clã
de Metri, homem por homem. Depois Saul, filhos de Cis, foi
apontado no sorteio. Procuraram-no, mas não o encontraram.
22Consultaram então a Iahweh: “Algum outro veio para
cá?” E Iahweh respondeu: “Está ali, escondido no meio das
bagagens.” 23Correram a buscá-lo, e ele se apresentou no
meio do povo: dos ombros para cima sobressaía a todo o

Exegese do Antigo Testamento | 71


povo. 24Samuel disse a todo o povo: “Vedes agora a quem
Iahweh escolheu? Não há quem se lhe compare entre todo
o povo.” Então todo o povo gritou: “Viva o rei!” 25Samuel
expôs ao povo o direito da realeza e o escreveu no livro, que
depôs diante de Iahweh. Em seguida, despediu todo o povo,
cada um para sua casa. 26Saul também retornou com ele a
Gabaá, e foram com ele os valentes cujo coração Deus tocara.
27Os vadios, porém, disseram: “Como poderá esse salvar-
nos?”, e o desprezaram e não lhe levaram presentes, mas ele
guardou silêncio (1Sm 10,17-27. Bíblia de Jerusalém).

• Indício de início de perícope que engloba tempo e espaço:


Verso 17.

• Indício de início de perícope com introdução de discurso:


Verso 18b.

• Indício de término da perícope a partir de certo


personagem que executa uma função específica na
narrativa: Verso 24.

• Indício de início de perícope com a mudança de


argumento ou assunto: Verso 25.

• Indício de término de perícope quando o autor interrompe


o fluxo narrativo para fazer determinado comentário:
Verso 27.

• Indício de perícope com elementos ao longo do texto, mas


com o intercalar dos acontecimentos no “arco narrativo”:
Verso 25.

Esses são apenas alguns dos elementos encontrados em meio a


essa grande narrativa, que pode ser trabalhada como uma única e grande
perícope ou, segundo as possibilidades apresentadas, dividida em, ao
menos, mais uma perícope.

72 | Exegese do Antigo Testamento


Síntese
Nessa unidade de aprendizagem discorremos sobre o que é
uma perícope, quando se inicia, seu término e alguns elementos que a
perfazem também ao longo das narrativas.

Reforçamos que os indicativos apresentados nos subtemas,


assim como os exemplos dados na perícope de 1Sm 10,17-27, podem
apresentar inúmeras outras possibilidades de delimitações.

Temos a intenção de que o discente utilize as metodologias


apresentadas, mas que não estejam presos, exclusivamente, aos exemplos
dados, que possam fazer, também, uso de sua criatividade junto ao
método ao longo de suas análises.

Além disso, como tem sido aventado ao longo da unidade


curricular, nosso objetivo é que a criatividade de todos esteja em
plena articulação e serviço com a comunidade religiosa e social a que
todos estão diretamente inseridos como sujeitos religiosos sociais,
testemunhando o Reino de Deus.

Exegese do Antigo Testamento | 73


Referências Bibliográficas
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Paulo: Paulus, 2004. 2206p.

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em português por João Ferreira de Almeida. Edição revista e corrigida.
85 impressão. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1995.

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VOLKMANN, Martin. Exegese histórico-crítica. In: .


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metodologia. 3 ed. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus,
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Loyola, 2000. 199p.

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2007. 159p.

76 | Exegese do Antigo Testamento


Semiótica: Sincronia e Diacronia
Objetivos
Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de:

1. Interpretar narrativas, textos históricos e tradições, a partir


do seu contexto eclesiástico;
2. Compreender a diferença entre sincronia e diacronia;
3. Perceber o mundo do texto, que procura traduzir a
realidade de dado momento histórico e cultural;
4. Implementar a pesquisa exegética, a partir da perícope
escolhida, em sua realidade social eclesiástica;
5. Aprimorar o conhecimento dos textos e narrativas
fundantes da teologia de Israel.

Exegese do Antigo Testamento | 79


Introdução
A leitura do texto bíblico pode ser feita de duas formas. A
primeira maneira seria a leitura que certamente a maioria de nós, senão
todos, já fazemos: a leitura sincrônica, lendo o texto em sua forma
“final”, o cânon fechado disponível a todos nós hoje. Em inglês, o
termo conhecido para tal possibilidade é o canonical approach, uma
abordagem de leitura do texto sagrado de maneira contínua ou canônica.

A segunda forma de leitura ou análise do texto é conhecida


como diacrônica, ou seja, quando procuramos entender o processo de
formação da redação, através dos tempos, isto é, entender como o texto
final chegou até as nossas mãos.

As possibilidades apresentadas não precisam ser desprezadas.


O teólogo(a) poderá fazer uso de uma delas ou, se desejar, trabalhar
com as duas propostas que serão explicitadas nessa unidade.

Exegese do Antigo Testamento | 81


4.1 O que é um Método?

Antes de aprofundarmos os nossos estudos a respeito do


que é diacronia e sincronia, precisamos compreender o que é um
método, pois mencionaremos esse termo frequentemente nesta
unidade. De uma maneira mais singela, podemos compreender
todo o método como uma receita que deve ser seguida à risca, a
fim de que o produto ou objetivo final seja alcançado.

Um método pode ser compreendido, em um primeiro


momento, como qualquer pesquisa ou orientação da pesquisa; ou,
em outro momento, compreendido como uma técnica particular
de pesquisa.

Nesse primeiro momento, não temos a separação entre


investigação ou doutrina, o que já aparece de maneira bem mais
específica no segundo momento, que o método se aprimora. Portanto,
dentro da teologia já se inicia um processo de obtenção de resultados
válidos, como em qualquer outra área do saber, intencionando fazer-se
inquestionável, universal. Diante disso, Abbagnano (2007, p. 780) nos
diz que este segundo momento é “restrito e indica um procedimento
de investigação organizado, repetível e autocorrigível, que garanta a
obtenção de resultados válidos”.

Todo método, como produção humana, tende à


universalidade, contudo, hoje, na pós-modernidade, em
consequência da pluralidade de pensamentos, não há métodos
seguros ou que perdurem por muito tempo.

Exegese do Antigo Testamento | 83


Ao longo da história do pensamento filosófico, ficou claro
que, quando se trata do estudo do método, há inúmeras variações.
O desejo de um método universal, fixo e bem-delimitado em cada área
do conhecimento humano, é uma quimera; é como produzir um
método moral universal, desejando que todos os homens e mulheres o
seguissem sem nunca questionar.

Segundo Abbagnano (2007, p. 780), “no decorrer de sua


pesquisa, os cientistas modificam seus métodos, seus procedimentos,
seus critérios de racionalidade do mesmo modo como modificam seus
instrumentos de medição e suas teorias”.

As afirmações filosóficas acima corroboram com aquilo que


constantemente temos dito em nossa disciplina. Em outras palavras,
há uma grande variedade de métodos disponíveis nas áreas do
conhecimento humano; na teologia isso não seria diferente, embora
nenhuma delas seja infalível.

Sendo assim na teologia, a escolha do método a ser utilizado


pelos teólogos(as) nos direciona para algumas observações, tais como:

• Todo método em teologia deve ser direcionado, em


suas conclusões, à prática e à salvação de vidas de
forma integral;
• Dependência do método (oficial) nas análises do corpo
de teólogos(as) nas denominações, desde que atendam ao
primeiro item;
• Atitude ética por parte do pesquisador, isto é, nenhum
método é superior aos ensinos da Palavra de Deus;
• A diversidade metodológica só deve ser aceita se
corroborar com a centralidade do comportamento
do “Jesus histórico”, orientador de nossas vidas.
Os atos práticos desse Jesus de Nazaré, em meio à
sociedade do seu tempo, são reveladores para as formas
comportamentais de seus seguidores na atualidade.

Em teologia, especificamente em Exegese do antigo testamento,


já observamos, ainda que de forma não aprofundada, alguns métodos
disponíveis para uma análise e melhor compreensão da Palavra de Deus.

84 | Exegese do Antigo Testamento


Não há método que não vise a um determinado resultado.
Por detrás de toda metodologia exegética, há um amplo grupo
de teólogos(as) que almeja, a partir de suas análises, facilitar a
compreensão dos fiéis (pastoral) ou aprofundar seus conhecimentos nas
narrativas sagradas (academicismo).

Não podemos desconsiderar que há uma necessidade de


preservação desses grupos ou segmentos religiosos naquilo em
que acreditam.

Há um sentimento de zelo pela Palavra de Deus, a fim de que


ela seja fielmente lida e interpretada por seus fiéis – reforçamos que não
é tão simples assim.

Quando nos referimos ao termo zelo, podemos utilizar um


exemplo conhecido: o evangelho de João, produzido certamente mais
à frente do que Mateus, Marcos e Lucas, é uma produção tardia em
relação aos outros evangelhos. Neste evangelho, temos alguns termos e
expressões que nos chamam a atenção, que “saltam aos nossos olhos”.
Parece que o escritor deste evangelho possui uma forma peculiar e
particular de contar ou recontar algumas passagens, que também
fizeram menção a outros evangelistas.

Portanto, o evangelho de João sempre procura realçar sua


perícope com detalhes, alguns bem perceptíveis, apesar de que, para
alguns leitores, tais passagens sejam até mesmo escandalosas. Outras
passagens possuem uma sutileza, que também é particular (sui generis,
termo em latim).

Podemos citar, como exemplo, a passagem em João 2,


13-22. Temos, na versão da Bíblia de Jerusalém uma perícope, uma
unidade literária com início, meio e fim, intitulada como A purificação
do Templo.

O mesmo evento está em Mateus 21, 12-13; Marcos 11,15-


19 e Lucas 19,45-46. Em nenhuma das passagens sinalizadas há a
mesma extensão da perícope como vemos no evangelho de João, assim
como não encontramos, nas outras narrativas, a mesma ênfase dada

Exegese do Antigo Testamento | 85


por João a Jesus, em relação à forma como ele “zela” por sua casa, o
Templo de Jerusalém.

Estando próxima a Páscoa dos judeus, Jesus subiu a


Jerusalém. No templo, encontrou os vendedores de bois,
de ovelhas e de pombas e os cambistas sentados. Tendo
feito um chicote de cordas, expulsou todos do Templo,
com as ovelhas e com os bois; lançou ao chão o dinheiro
dos cambistas e derrubou as mesas e disse aos que vendiam
pombas: “Tirai tudo isto daqui; não façais da casa de meu
Pai uma casa de comércio.”. Recordaram-se seus discípulos
do que está escrito: o zelo por tua casa me devorará. Os
judeus interpelaram-no, então, dizendo: “Que sinal nos
mostra para agires assim?” Respondeu-lhes Jesus: “Destruí
este santuário, e em três dias eu o levantarei”. Disseram-lhe,
então, os judeus: “Quarenta e seis anos foram precisos para
se construir este santuário, e tu o levantarás em três dias?”.
Ele, porém, falava do santuário de seu corpo. Assim, quando
ele ressuscitou dos mortos seus discípulos se lembraram-se
de que dissera isso, creram na Escritura e na palavra dita por
Jesus (Jo 2, 13-22. Bíblia de Jerusalém).

Como aventado acima, não há uma ênfase na atitude de Jesus


em relação aos vendedores e cambistas, quando produz um chicote – e
certamente o utilizou – sobre aqueles que contaminavam a casa do seu
Pai nas outras narrativas dos evangelistas.

Isso nos mostra que até os autores bíblicos têm suas


preferências por um determinado público-alvo, completando ou
suprimindo alguns elementos das narrativas. Isso também é zelo
pela Palavra.

Voltando ao tema abordado, muitos escritores bíblicos


possuem suas formas de zelo e seus métodos próprios de
compreensão das abordagens sobre a Palavra de Deus. No entanto,
isso pode gerar uma análise tendenciosa, para o bem ou para o mal,
frutífera ou infrutífera, como na Explicação da parábola do semeador,
em Mateus 13, 18-23.

86 | Exegese do Antigo Testamento


Em outras palavras, no texto acima observamos as preferências
do autor da passagem que, em si mesmo, zela por seu método, levando-
se em conta as técnicas disponíveis em sua época.

Em relação às discussões atuais e, de maneira geral, a respeito


do método, Abbagnano (2007, p.780) nos diz que:

[...] cautelosamente, afirma-se que tais regras e


procedimentos não podem ser deduzidos uma vez por todas
de uma suposta estrutura (metatemporal) da racionalidade
humana, mas devem ser “inventados” a cada vez em relação a
cada situação e a cada objetivo.

Talvez novos métodos não sejam inventados, o que seria um


grande problema, pois, constantemente, novas situações surgem ao
longo da história humana. Um método não deve ser engessado ao longo
dos tempos; sendo assim, surge a necessidade de aprimorar tais métodos
a fim de que possibilitem o ajuste da sociedade em conformidade com a
verdade, que é Jesus de Nazaré, o Cristo ressurreto, vivo em sua Palavra.

4.2 Diacronia
Já vimos o que é um método em si e a importância de sempre
relê-lo com o passar do tempo.

Ninguém põe remendo de pano novo em roupa velha, porque


o remendo repuxa a roupa e o rasgão se torna maior. Nem
se põe vinho novo em odres velhos; caso contrário, estouram
os odres, o vinho se entorna e os odres ficam inutilizados.
Antes, o vinho novo se põe em odres novos; assim ambos se
conservam (Mt 9,16-17. Bíblia de Jerusalém).

Jesus Cristo é o legítimo representante dos interesses do


Pai. Em suas atitudes de vida, Ele trouxe – e ainda nos traz – novas
possibilidades de leitura de seus atos, conforme atestados nos
evangelhos. Ele é o vinho novo que releu a tradição judaica mais antiga
e trouxe nova luz, a partir da tradição para o seu tempo. É o exemplo
dado a nós ainda hoje.

Exegese do Antigo Testamento | 87


Em relação aos métodos semióticos, falaremos a respeito da
diacronia, que trata da evolução dos textos sagrados, com o passar dos
tempos históricos. Diacronia ou diacrônico são termos trazidos até nós
pela cultura grega, que significam evolução através do tempo.

Na leitura diacrônica, procuramos perceber os elementos que


estão em algumas perícopes, mas que, quando postas em paralelo, não
constam em outras.

O evangelho de João constitui um bom exemplo desse tipo


de análise diacrônica. Na maior parte das narrativas desse evangelho,
quando comparadas com Mateus, Marcos e Lucas, João sempre nos traz
novidades não contempladas nas outras narrativas.

É o caso em Jo 2,13-22, quando Jesus fez o seu chicote de


cordase, com ele, expulsou os vendedores do Templo de Jerusalém;
também na grande perícope da prisão de Jesus em Jo 18,1-10, quando
nos revela que foi Pedro quem decepou a orelha do servo do sumo
sacerdote, chamado Malco, fatos não revelados nos outros evangelhos.

Sendo João um evangelho mais tardio, ele contempla outras


narrativas que são fundamentais ao seu tempo. Podemos entender, sob
certa perspectiva, que seus escritos apresentam uma evolução quando
comparados aos outros evangelhos.

Para alguns teólogos, o evangelho de João não deveria contar


junto aos sinóticos (mesma visão), pois, ao fazermos um paralelo,
percebemos que suas narrativas são mais detalhadas.

É verdade que nos sinóticos há também as suas diferenças


e, até mesmo, algumas narrativas que não se encontram em todos
eles, como, por exemplo, o caso de Lucas 24, no qual a narrativa
dos Discípulos no Caminho de Emaús é particular da teologia lucana.
Contudo, as narrativas do evangelho de João vão além das poucas
diferenças encontradas entre os sinóticos.

Quando se pensa em diacronia, logo nos remetemos ao


Método Histórico-crítico. Então, conceituaremos, agora, os termos
histórico e crítico.

88 | Exegese do Antigo Testamento


A partir da compreensão de diacronia, o termo histórico diz e
reconhece que os textos bíblicos foram concebidos ao longo da história
de um povo, em nossas análises, do povo de Israel.

Embora tais textos tenham total relevância para os nossos dias,


precisamos compreender que, por serem históricos, eles fazem menção
a um tempo determinado, ou seja, as narrativas sagradas nos revelam
uma situação sociopolítica e econômica de determinada época. Como
esses textos históricos são compreendidos como produtos de várias
épocas, eles apresentam, continuamente, uma variabilidade de elementos
que acabam por condizer com seus momentos históricos.

Já o termo crítico, segundo a compreensão elaborada pelo


próprio método, estabelece distinções nas narrativas e, junto a elas,
procura julgar os diversos aspectos textuais relacionados à história.
São eles:

• A sucessão de mudanças desses textos junto ao processo


histórico;
• A busca pelo autor do texto;
• O tempo em que o texto foi composto;
• A relação com outros textos da mesma época;
• As histórias política, social e religiosa.

Enquanto metodologia preterida pelo segmento religioso


católico-romano, tais aspectos do Método Histórico-crítico acabaram por
confundir-se com certo espírito racionalista.

Nesse sentido, fomentados pela descoberta de textos do


Oriente próximo antigo, alguns teólogos mais afoitos e, novamente,
influenciados pelo espírito racionalista, ousaram decretar que a
inspiração e a inerrância eram conceitos superados.

O segmento católico-romano se pôs a repensar o seu método,


pois foi confundido com a tendência racionalista de alguns teólogos.
Nesse sentido, alguns abandonaram o conceito universal (o método
religioso oficial), sobre a inerrância e a inspiração dos escritores da
Palavra de Deus.

Exegese do Antigo Testamento | 89


Assim, diversos documentos foram elaborados, repensando a
tradição mais antiga. Tais documentos buscavam rever o posicionamento
em relação à inspiração e à inerrância da Palavra de Deus, fato que
ocupou o conhecido Concílio Vaticano II.

Sendo assim, segundo Yofre (2000, p.74-75):

Com base nessas observações, podem-se descrever os


métodos histórico-críticos como aqueles que, de um ponto
de vista histórico, buscam explicar todo texto a partir de
seus pressupostos e entender sua intenção original. De
um ponto de vista crítico, buscam entender os textos da
maneira mais diferenciada possível, seja no que diz respeito
à sua compreensão original, seja no que diz respeito às
interpretações sucessivas que o texto – ainda em seu processo
de crescimento – foi recebendo.

Como apontamos em outros momentos, todo método, sem


exceção, é produto da intelectualidade humana. Ou seja, o processo
de amadurecimento intelectual também é histórico, pois homens e
mulheres sempre procuram aprimorar os seus conhecimentos nas mais
diversas áreas do saber humano.

Tais aprofundamentos são necessários, pois os métodos


necessitam sempre de serem superados, de maneira ética,
vislumbrando, assim, a representação do Reino de Deus em seu filho
Jesus Cristo de Nazaré.

Como produção de mãos humanas, os métodos possuem


limites, ou seja, são falhos em alguns pontos. Vejamos, a seguir, alguns
limites do Método Histórico-crítico:

• Dificuldade em estabelecer relação entre a tipologia


(alegoria) utilizada pelos chamados pais da Igreja cristã,
como, por exemplo, quando Jesus é identificado em
diversos simbolismos nos textos veterotestamentários.
Podemos citar, como exemplo, o cordeiro em Êxodo 12, no
evento da Páscoa;

90 | Exegese do Antigo Testamento


• O Método Histórico-crítico também causou problemas
à tradição já fixada pela igreja no texto de Isaías 7-8; seu
rigor científico viu, nesse texto apenas questões políticas,
voltadas para o próprio povo, e relacionadas a um momento
particular na história de Israel. A tradição já fixada pela
igreja, ao contrário, sempre viu nesse texto o anúncio da
chegada do Salvador, reforçada pelo texto neotestamentário
em Mt 1, 23;

• A tradição da igreja sempre teve dificuldades em relacionar


os textos do Antigo Testamento com a tradição do Novo
Testamento. Em outro momento, já vimos a necessidade
de se pensar o Antigo Testamento como produto espiritual
e religioso do povo de Israel. Ou seja, é preciso que haja
um equilíbrio nas pesquisas para não fazer da história desse
povo apenas uma desculpa, uma antessala para a chegada de
Jesus de Nazaré;

• Dificuldade em relacionar a mensagem de salvação


encontrada nas narrativas sagradas. Tais narrativas
dependem apenas do exercício da fé, portanto, estão
relacionadas à teologia; ao mesmo tempo, elas independem
das questões históricas apresentadas pelo método. Como
exemplo, podemos citar a sustentação de duas narrativas
distintas em Gênesis 2 e 3, que seriam textos escritos em
épocas diferentes, isto é, ao longo da história de Israel.

• Dificuldade na abertura de interpretação do texto para os


contextos históricos atuais, o que superaria a distância entre
o mundo apresentado pelo texto e o mundo do leitor. Esse
leitor procura, nas narrativas sagradas, soluções práticas
para as suas crises ao longo da sua história de vida.

• Dificuldade em deixar que os métodos hermenêuticos


venham a contribuir nas interpretações das narrativas
sagradas. Nisso, tal dificuldade se assemelha a outros
métodos exegéticos, não sendo uma particularidade da
exegese histórico-crítica. Atualmente, a hermenêutica, em
alguns casos, supera os métodos exegéticos.

Exegese do Antigo Testamento | 91


A rejeição aos métodos hermenêuticos, por parte de muitos
teólogos(as) praticantes dos métodos exegéticos clássicos, talvez
se deva pela falta de abertura em relação ao que as hermenêuticas
podem possibilitar.

As hermenêuticas possíveis nos dias atuais foram a forma


com que alguns grupos sociais de menor expressão encontraram para
serem “ouvidos” ou percebidos socialmente.

A variedade hermenêutica como possibilidade plural de


reinterpretação da realidade acabou se tornando um contra discurso
nas mãos de alguns grupos sociais minoritários.

Tal procedimento acabou, de certa forma, escandalizando


os setores mais conservadores da sociedade, tanto no universo
religioso como na sociedade civil. A pluralidade de interpretações, em
determinados casos, chegou à própria Palavra de Deus.

Nisso não há novidade, pois o acesso à Palavra de Deus


possibilitou homens e mulheres, poderosos ou até mesmo nas camadas
mais populares, a levarem o texto conforme seus desejos. Alguns
praticaram e ainda exercitam uma hermenêutica, bem longe dos
padrões bíblicos de justiça e paz em Jesus de Nazaré.

A contribuição pode advir de uma hermenêutica bíblica


séria, em que se predispõe a interpretar a Palavra de Deus também
como possibilidade de resposta às crises existentes em nossos dias,
isto é, fazendo justiça à maneira operada por Jesus de Nazaré entre
nós na história.

Em relação às práticas exercidas pelo Método Histórico-


-crítico, elas não constituem o objeto de análise em nossa unidade
curricular. Talvez um caderno pedagógico não fosse suficiente para
tratar desse método, exaustivo em si e tão imenso.

A bibliografia, ao final de cada unidade, possui uma série


de obras que os ajudarão, se assim desejarem, ao aprofundamento do
tema. Porém, deixamos abaixo alguns temas do método em questão.

92 | Exegese do Antigo Testamento


• Crítica da constituição do texto.
• Crítica da redação e da composição.
• Crítica da transmissão do texto.
• Crítica da forma.
• Crítica do gênero literário.
• Crítica das tradições.

Cada um desses “passos” citados acima incluem inúmeros


subtemas que compõem a análise histórico-crítica nas perícopes.

4.3 Sincronia

A outra abordagem que faz parte da semiótica é aquela que


rotulamos de leitura/abordagem canônica (sincronia), do inglês, canonical
approach, bem distinta da leitura diacrônica apresentada acima.

Se a análise diacrônica se ajusta ao Método Histórico-crítico,


a sincronia se ajusta à narratologia. Nesse sentido, há uma grande
relação entre o mundo do texto e o leitor, de modo que é este quem
“finaliza” a narrativa.

Por exemplo, se temos, em uma determinada perícope, um


diálogo em que um dos personagens não pôde fazer a sua réplica
ou tréplica, não sabemos o que tal personagem respondeu, pois a
perícope terminou. Tal complementação seria feita pelo leitor ou pelo
grupo de leitores.

Nesse sentido, a figura do leitor é fundamental para a


narratologia, já que é ele quem preenche lacunas e interrogações. É
sempre bom fixar que há limites ou regras determinadas pelo próprio
método narratológico, que impede que tais preenchimentos por parte
do leitor sejam feitos de forma arbitrária.

Talvez o primeiro problema em relação a esse método seja a


sua abordagem na Bíblia Sagrada como literatura. Ao longo da história
literária, muitos intelectuais da área fizeram inúmeras comparações de
clássicos da literatura com as narrativas bíblicas.

Exegese do Antigo Testamento | 93


Há muitas obras literárias, clássicas ou não, em que as
narrativas nos deixam dúvidas quanto aos acontecimentos relativos a
cada personagem da trama. Ou seja, são eventos que acabam por ser
complementados pela originalidade do leitor.

Então, segundo a narratologia, os mesmos problemas ou


dúvidas podem ocorrer junto aos textos sagrados. Podemos citar, como
exemplo, o texto de 1Sm 28,3-25, no qual muitos leitores, cristãos ou
não, possuem dúvidas ao longo da grande perícope.

Aqui não temos uma narrativa em que há ausência de resposta


por parte de algum personagem, ou seja, algo que ficou no “ar”; temos
um problema bem maior: afinal, Saul viu ou entendeu que foi Samuel
quem lhe apareceu?

Faremos somente uso de alguns versos dessa narrativa, o que


atingirá o objetivo pretendido: compreendermos tal perícope da ótica
do narrador e a necessária intervenção do leitor, a fim de entender a
narrativa, segundo esse ponto central que escolhemos:

Então Saul jurou-lhe por Iahweh, dizendo: “Pela vida de


Iahweh, nenhum mal te acontecerá por causa disso.” Disse a
mulher: “A quem chamarei para ti?” Ele respondeu: “Chama
Samuel.”. Então a mulher viu a Samuel e, soltando um grito
medonho, disse a Saul: “Por que me enganaste? Tu és Saul!”
Disse-lhe o rei: “Não temas! Mas o que vês?” E a mulher
respondeu a Saul: “Vejo um deus que sobe da terra.” Saul
indagou: “Qual é a sua aparência?” A mulher respondeu:
“É um velho que está subindo; veste um manto.” Então
Saul viu que era Samuel e, inclinando-se com o rosto no
chão prostrou-se. Samuel disse a Saul: “Por que perturbas o
meu descanso evocando-me?” Saul respondeu: “É que estou
em grande angústia. Os filisteus guerreiam contra mim,
Deus se afastou de mim, não me responde mais, nem pelos
profetas e nem por sonhos. Então vim te chamar para que
me digas o que tenho de fazer.” Respondeu Samuel: “Por
que me consultas, se Iahweh se afastou de ti e se tornou teu
adversário? Iahweh fez por outro como te havia dito por meu

94 | Exegese do Antigo Testamento


intermédio: tirou das tuas mãos a realeza e a entregou a Davi,
porque não obedeceste a Iahweh e não executaste o ardor
de sua ira contra Amalec. Foi por isso que Iahweh te tratou
assim hoje (1Sm 28,10-18. Bíblia de Jerusalém).

Esta narrativa é tão conhecida e, ao mesmo tempo, de grande


complexidade para os leitores. Há nela uma única possibilidade de
compreensão? Foi realmente Samuel quem apareceu a Saul?

A necromancia (consulta aos mortos) sempre foi praticada


em Israel. Em 1Rs 21,6, a respeito do reinado de Manassés, esse
rei fez tudo o que era abominável a Iahweh, inclusive consultar aos
mortos. Já em Is 8,19, há uma ressalva do profeta por parte de Iahweh,
condenando a consulta aos mortos.

O narrador dessa passagem fornece aos seus leitores a


informação, de forma transparente, de que um espírito apareceu a
Saul e à necromante, que era Samuel: “Então Saul viu que era Samuel
e, inclinando-se com o rosto no chão prostrou-se” (1Sm 28,14b.
Bíblia de Jerusalém).

O verbo na passagem, transliterado do hebraico, isto é,


da esquerda para direita, é yāda‘. De acordo com a escrita das letras
quadráticas hebraicas e como se lê em hebraico, da direita para a
esquerda, este verbo possui a seguinte composição:

• A consoante yodh;
• A vogal longa qamets gadol;
• A consoante daleth;
• A vogal breve pathah;
• A consoante sem som ayin.

Este verbo, como consta na passagem, em seu verso 14b, deve


ser traduzido, a partir do infinitivo, como: conhecer, ver, reconhecer etc.

No entanto, na maior parte das traduções bíblicas disponíveis


no mercado, está traduzido a partir do infinitivo do verbo entender;
que foi flexionado no português, a partir do gerúndio, como
“Entendendo Saul”.

Exegese do Antigo Testamento | 95


É possível que boa parte dos tradutores tenha optado pelo
verbo entender, a fim de amenizar a dificuldade da narrativa, pois,
assim, a culpa recairia sobre Saul, que, em seu estado de perturbação
e angústia, teria então “entendido”. Isto é, a partir de sua própria
compreensão/julgamento/interpretação que era Samuel, ou seja, uma
ilusão de sua própria mente confusa naquele momento. Ora, há uma
grande diferença entre ver e entender!

Esse é apenas um pequeno exemplo das dificuldades que nos


põe tal narrativa, além da tentativa de alguns exegetas em buscar uma
tradução que amenizasse a real situação que o narrador da passagem
nos quis comunicar de forma clara e objetiva. Mas o que o leitor
poderia deduzir?

Eis algumas possibilidades que não seriam absurdas, pois


estão dentro das próprias regras da narratologia. Os próprios
discentes poderão encontrar inúmeras outras, afinal é preciso a
participação dos leitores:

• O narrador parece partilhar da crença na aparição de


espíritos, ainda que saiba que em Israel tal prática é
abominável;
• Intervenção divina;
• Intervenção demoníaca;
• Charlatanice por parte da necromante;
• Crença de Saul;
• Deus permite verdadeiramente a aparição de Samuel, para
repreender definitivamente a Saul;
• O narrador cria tal narrativa para reforçar, mais uma vez, a
decadência de Saul e a predileção de Iahweh por Davi.

Você certamente já pensou em algumas dessas possibilidades


acima, enquanto buscava desvendar essa situação. Sendo assim, qual
dessas possibilidades você escolheria? Ou então, pense em outras
possibilidades que não foram aventadas.

Observe bem que, segundo o apresentado pela própria


narrativa, nenhuma das respostas acima altera o significado do texto.

96 | Exegese do Antigo Testamento


Por fim, todas elas mostram o sofrimento, a angústia de Saul que, em
desespero, busca uma resposta por parte de Deus.

Independentemente de ter sido Samuel a vir do mundo


dos mortos, a subir da terra (termo que corrobora da compreensão
do pós-morte judaico antigo), Saul é repreendido, sendo dado a ele
o ultimato em relação à sua vida, conforme atesta a continuidade
da narrativa.

Qualquer uma das possibilidades que você optar não


modificará o restante da caminhada de Saul. Em todas as alternativas,
inclusive nas outras que você encontrar, Saul será derrotado e, por
fim, morto.

A narratologia aplicada ao texto nos mostra que as


alternativas fornecidas pelos leitores, não alteram o “arco narrativo”.
Determinar uma reviravolta no esquema apresentado pelo narrador,
apresentando Saul como um vitorioso ou saindo, por fim, do
encontro com a necromante recuperado de sua angústia; caso isso
acontecesse, seria um absurdo.

As alternativas que os leitores apresentam ao


complementar um texto, ou a fim de resolver um problema como o
apresentado, necessitam ser fiéis ao “arco narrativo” ou ao esquema
que se propôs o narrador.

Inclusive, muitas narrativas são criadas para que os leitores


possam compartilhar aqueles exemplos nos dias atuais. É uma forma
de viver as narrativas, representando, inclusive, algum personagem.

Seria o caso do discípulo que Jesus amava e que,


constantemente, aparece no evangelho de João? Nos faltam
argumentos concretos para saber de fato quem seria. Será que o
narrador desejou que cada um dos leitores desse evangelho
pensasse em si mesmo quando lia a respeito do discípulo amado?
Você já se pôs no lugar dele? Não é uma possibilidade belíssima e
de profunda espiritualidade?

Exegese do Antigo Testamento | 97


De acordo com Yofre (2000, p. 126-127):

A narrativa desenvolve-se no tempo, e o leitor de um


relato reconstrói tal experiência no tempo de sua leitura.
Reencontramos aqui, no plano da forma literária, uma
dimensão essencial da revelação bíblica: sua inserção na
história e no tempo. A história da salvação torna-se história
que o povo dos crentes transmite de geração em geração no
seio da igreja. [...] Mais que o conteúdo da experiência, o que
importa na narração bíblica é o tipo de resposta que envolve,
a nosso ver, um elemento que põe em jogo a liberdade de
escolha do leitor. A verdade que a Bíblia apresenta não é só
uma parte da verdade sobre a vida e o destino humano, mas
uma escolha que empenha a existência do seu leitor virtual.
[...] Com efeito, ela respeita ao máximo a liberdade de seu
leitor, diversamente de muitas leituras ideológicas.

No sentido da citação acima, muitos leitores são interpelados


constantemente pela Palavra de Deus, inclusive os cristãos, que têm
na Palavra de Deus a bússola para suas vidas. As narrativas são sinais,
respostas para os contínuos problemas de seus leitores, embora também
exijam de nossa parte um certo comportamento prático, sem dúvida.

Mesmo assim, fazemos escolhas quando lemos as passagens


bíblicas. Pode ser que:

• Alguns escolham somente as narrativas que mais lhe


agradam;
• Procurem uma interpretação própria que realizem à sua
vontade;
• Amenize o peso da responsabilidade que a Palavra de Deus
traz para todos nós.

Enfim, ao longo de nossas vidas fazemos muitas escolhas.


Se a leitura da Palavra de Deus for realizada de forma ética e correta,
deixando que o Espírito Santo fale a todos nós, então faremos as
escolhas corretas. Mas seria uma ilusão crer que todos os leitores da
Palavra de Deus se deixam levar de forma correta por aquilo o que
contém as Escrituras.

98 | Exegese do Antigo Testamento


Somos seres de decisão e resposta. Nesse sentido, a
Escritura a todo tempo nos cobra respostas e atitudes corretas e
concretas como testemunhas do Reino de Deus. Então, que façamos
as melhores escolhas!

Exegese do Antigo Testamento | 99


Síntese
Procuramos apresentar nessa unidade de aprendizagem alguns
aspectos relacionados à semiótica. Entretanto, visamos definir, em
um primeiro momento, o que seria um método, as suas vantagens e
limites de aplicação, visto que sofreu enormes variações ao longo da
história. Vale lembrar que as variações são realizadas sempre pelas mãos
humanas, por isso afirmamos que nenhum método é infalível.

Posteriormente, apresentamos alguns aspectos da possibilidade


da leitura diacrônica, a partir do texto bíblico como centro dessa análise.
Tal leitura também foi compreendida como uma metodologia histórico-
-crítica, que busca estudar a evolução dos textos e das perícopes, ao
longo dos tempos.

Por fim, apresentamos a metodologia sincrônica, que pode ser


compreendida por meio do método conhecido como narratologia, no
qual as narrativas procuram apresentar uma dependência da figura do
leitor, que busca sentido ou respostas para as coisas relacionadas à sua
vida ou à comunidade religiosa que faz uso da Palavra de Deus.

MÉTODO
Produto da racionalização humana → Sempre falíveis.

SEMIÓTICA
Estudo dos signos, sinais e linguagens culturais
como fenômenos produtores de significado →
Criatividade humana.

Exegese do Antigo Testamento | 101


DIACRONIA
Centraliza as suas pesquisas no processo da
formação do texto ao longo do tempo → A história
interfere na produção do texto.

SINCRONIA
Centraliza as suas pesquisas na contribuição do
leitor, para preencher as lacunas do texto → O leitor
contribui com a sua hermenêutica.

102 | Exegese do Antigo Testamento


Referências Bibliográficas
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2007, p. 1210.

Bíblia de Jerusalém. 3 impressão. Nova edição revista e ampliada.


São Paulo: Paulus, 2004, p. 2206.

Bíblia do Peregrino. 3 ed. São Paulo: Paulus, 2011, p. 3056.

Bíblia Hebraica. Baseada no Hebraico e à luz do Talmud e das


Fontes Judaicas. 1 reimpressão revisada. São Paulo: Editora Sêfer,
2007, p. 877.

Bíblia Hebraica Stuttgartensia. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica


do Brasil, 1997, p. 1574.

Bíblia Sagrada. Contendo o Antigo e o Novo Testamento.


Traduzido em português por João Ferreira de Almeida. Edição
revista e corrigida. 85 impressão. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica
Brasileira, 1995.

BOURQUIN, Yvan; MARGUERAT, Daniel. Para ler as narrativas


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CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa:


uma introdução à fenomenologia da religião. 2 ed. São Paulo:
Paulinas, 2004, p. 527.

Exegese do Antigo Testamento | 103


______. Hermenêutica bíblica: para uma teoria da leitura como
produção de significado. São Paulo: Paulinas, São Leopoldo:
Editora Sinodal, 1986, p. 76.

GUNNEWEG, Antonius H.. Hermenêutica do Antigo


Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2003, p. 251.

SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de exegese bíblica. 3


ed. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 526.

VOLKMANN, Martin. Exegese histórico-crítica. In:______. São


Paulo: ASTE, 2008, p. 431-433.

WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de


metodologia. 3 ed. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus,
1998, p. 408.

YOFRE, Horacio Simian (org.). Metodologia do Antigo


Testamento.São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 159.

ZABATIERO, Júlio. Manual de exegese. São Paulo: Hagnos,


2007, p. 159.

104 | Exegese do Antigo Testamento


A Exegese Semiodiscursiva
(Passos Exegéticos Semiodiscursivos)
Objetivos
Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de:

1. Iniciar seus conhecimentos no Método Semiodiscursivo;


2. Habituar-se continuamente à leitura da perícope escolhida/
definida;
3. Identificar o espaço-tempo da ação do texto;
4. Identificar o interdiscurso na perícope escolhida.

Exegese do Antigo Testamento | 107


Introdução
Olá pessoal, chegamos ao momento central de nossa unidade
curricular. Apresentaremos agora o Método Semiodiscursivo, ao qual já
fazíamos menção desde as primeiras unidades.

Nossa intenção aqui é mostrar a vocês um método utilitário,


mas que de forma alguma é simplório – segundo o nosso entender, ele
é mais prático –, seja na forma de compreendê-lo e trabalhá-lo, seja no
produto final de suas análises, que objetiva a prática também para fora
das estruturas academicistas.

Em um primeiro momento iremos compreender o significado


do espaço-tempo da ação do texto. Inúmeros textos ou perícopes nos
transmitem dados que, muitas vezes, desconsideramos numa leitura
desatenta (pois estamos sempre “cheios de nossas verdades”).

São esses elementos percebidos nas narrativas que nos


trarão informações fundamentais para o desenvolvimento do método
semiodiscursivo, por isso a necessidade de se fazer inúmeras vezes a
leitura da perícope definida.

Em outro momento, ainda nesta unidade, abordaremos a


questão da interdiscursividade do texto, isto é, perceber ao longo
de todo o cânon a repetição ou alusão dos mesmos temas através
dos testamentos.

Em alguns casos há inclusive a repetição de alguns temas no


próprio testamento, fato muito comum no Primeiro Testamento – o
que seria natural, já que aprendemos que ele foi um livro construído ao
longo da história, perpassando por muitas gerações em Israel.

Exegese do Antigo Testamento | 109


1.1 O Espaço-Tempo da Ação
Mostre-me um homem que não seja escravo de suas paixões.
– William Shakespeare

Já sabemos o que é um método, suas virtudes e seus limites:


nenhum deles foge a tais questões. Sendo assim, reforçamos que o
método semiodiscursivo é apenas mais uma possibilidade diante da
pluralidade de métodos para a exegese bíblica.

Não defendemos nenhum deles como um apologeta faria com


suas convicções teológicas. Métodos são produções puramente humanas,
contudo devemos dar certo crédito aos homens e mulheres religiosos,
que a todo tempo procuram desvendar as narrativas sagradas.

É verdade que sempre existirá gente mal-intencionada, isto


é, procurando sempre dominar e persuadir o outro por meio de suas
análises, fazendo constantes manipulações na Palavra de Deus. O filme
O Livro de Eli1 é um bom exemplo nesse sentido, daquilo que se deseja
quando de posse da Palavra de Deus.

1
No endereço abaixo os alunos poderão ter acesso às informações sobre
a obra cinematográfica citada. O elemento central do filme é justamente
O Livro, pois de posse dele, e sabendo usá-lo para o domínio do outro,
tudo poderá ser alcançado (dinheiro, poder, glória etc.). A situação é bem
próxima daquilo que já vivemos continuamente ao redor do mundo, não
apenas no Brasil, considerando aqueles que se utilizam da Palavra de Deus
para suas próprias paixões. Vale muito a pena assistir à obra diversas vezes
e compará-la com nossa realidade sociorreligiosa.
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-128955/

Exegese do Antigo Testamento | 111


No entanto, nossa função aqui é possibilitar a melhor análise
dos textos sagrados pelo método indicado, por isso procuramos
anteriormente apresentar uma gama de possibilidades de análises.

Os problemas NÃO se apresentam tanto nos métodos,


mas em homens e mulheres que, de posse deles, não procuram
transformar a realidade à maneira do Homem de Nazaré, impondo
suas próprias paixões.

1.1.1 O Método: Fase Preliminar

Vamos agora observar os passos fundamentais para o


desenvolvimento da metodologia proposta. Eles devem ser seguidos à
risca, para que o método seja eficaz.

• Ler o texto bíblico até ficar amplamente familiarizado


com ele.

Esta fase indica a importância do contato com o texto, se


possível deixando que ele “fale por si só”. Lembremos do termo epoché,
estudado em fenomenologia da religião. A importância da suspensão
do juízo, isto é, quando nos esvaziamos diante da narrativa deixando-a
nesse primeiro momento comunicar sua mensagem no tema que está
sendo abordado.

• Anotar suas primeiras impressões e dúvidas sobre o texto


(revisá-las a cada ciclo de leitura).

As dúvidas surgem constantemente, daí a importância de NÃO


deixar que o problema permaneça, ou que, após identificado, ele seja
omitido, sem tentar resolvê-lo.

Por isso sempre indicamos a necessidade de se fazer leituras


contínuas da perícope escolhida, pois as sucessivas leituras podem acabar
fazendo com que a questão seja resolvida.

• Ler o livro, ou seção do livro, ao qual o texto pertence,


notando as principais inter-relações (vocabulário,
pessoas, lugares, assuntos).

112 | Exegese do Antigo Testamento


A exegese exige uma maior atenção contextual. Não é possível
fazer uma exegese distante, por exemplo, de uma seção, seja ela,
profética, legalista, histórica etc. Todo texto está ambientado num
contexto histórico.

Por isso o conceito de perícope é fundamental, para que se


tente encontrar no texto uma ordem, um princípio, meio e fim da
narrativa, o que até mesmo facilita no momento da comunicação da
mensagem nas igrejas para os dias atuais.

A seção à qual o livro bíblico pertence também é de grande


importância, como, por exemplo, Pentateuco (Lei); Livros históricos;
Proféticos; Sabedoria, pois já nos remetem à compreensão de um
grande tema a ser desenvolvido.

Além disso, é necessário fazer a leitura de todo o livro. Lendo


todo o livro de Jó temos uma perfeita compreensão, ao longo das
narrativas, de que esse personagem bíblico foi pintado com outras
cores que não às suas. Um bom exemplo disso se apresenta em certas
ocasiões quando ele se mostra extremamente indignado com Deus
por sua condição de miserável. Jó foi justo, mas não aceitou de forma
tranquila o peso da mão de Deus sobre sua vida.

Diz assim o título do terceiro capítulo do seu livro: “Jó


amaldiçoa o dia do seu nascimento”. São 23 versos, e em todos eles, Jó
se mostra angustiado e revoltado por sua situação. “Pereça o dia que
me viu nascer, a noite que disse: ‘Um menino foi concebido!’ Esse dia,
que se torne trevas, que Deus do alto não se ocupe dele, que sobre ele
não brilhe a luz!” (Jo 3,3-4)

Em apenas dois versos, podemos ver a profundeza da


indignação de Jó, não com Deus, mas consigo mesmo. Duas
maldições ao mesmo tempo, paralelas: o dia do seu nascimento e a
noite de sua concepção.

Ou seja, nenhuma perícope escolhida no livro de Jó poderá


ser trabalhada distante do tema do seu livro. Nesse caso apresentado, é
o próprio livro de Jó que se torna uma seção.

Exegese do Antigo Testamento | 113


Da mesma forma procede Jeremias. Já sabemos que por
inúmeras vezes esse profeta esteve em disputa com o próprio Deus a
respeito do seu chamado.

Nunca me assentei em grupo de gente alegre para me


divertir. Por causa de tua mão, me assentei sozinho, pois tu
me encheste de cólera. Por que a minha dor é contínua, e
minha ferida é incurável e se recusa a ser tratada? Tu és para
mim como lago enganador, águas nas quais não se pode
confiar. (Jr 15, 17-18)

O grande livro do profeta Jeremias também se assemelha ao


que dissemos em relação a Jó. Não é possível trabalhar uma perícope
qualquer nesse livro sem considerá-lo como uma seção, compreender
a época, o espaço geográfico em que foi escrito o tema central de sua
obra, entre outras questões. É preciso fazer toda a leitura do livro a fim
de entendê-lo de forma mais apurada e, posteriormente debruçar sobre
a perícope, utilizando sobre ela o método exegético de sua preferência.

É na leitura atenta que podemos perceber algumas mudanças,


ou não, de vocabulário, pessoas, lugares e assuntos. É de suma
importância procurar identificar, fazer marcações e criar uma legenda
desses aspectos dentro da perícope. Por exemplo:

• Vocabulário → Como as palavras estão dispostas na


perícope. Quais os verbos e os tempos verbais utilizados;
substantivos, adjetivos etc.

• Pessoas → Quem são os personagens (atores) que compõem


a perícope ou narrativa, ou seja, quem são os sujeitos
que fazem parte da trama que o texto nos informa. Por
exemplo, Javé, sacerdotes, Jesus Cristo, povo, homens,
mulheres, reis, camponeses, funcionários da corte, levitas,
profetas, anciões, sábios, sujeitos explícitos e ocultos etc.

• Tempo e espaço → Definir, provisoriamente, a época em


que o texto foi escrito e conhecer o máximo que puder
sobre ela.

114 | Exegese do Antigo Testamento


Neste ponto do método, há necessidade de utilização de
materiais paralelos, que nos auxiliarão a uma pesquisa exegética
mais apurada do Antigo Testamento. Podemos citar como exemplos:
Manuais de Introdução ao Antigo Testamento, Atlas bíblico, livros
de teologia bíblica de ambos os testamentos, gramáticas de hebraico e
grego, livros sobre a História de Israel etc.

Já procuramos orientar aos teólogos as boas Bíblias de estudo


disponíveis no mercado, embora alertando sobre as virtudes e os limites
das traduções e das opções exegéticas, sempre trazendo os resultados
para suas denominações.

O objetivo fundamental é que, mesmo utilizando uma vasta


bibliografia disponível, o exegeta possa ter liberdade para criar e recriar
sobre sua perícope, embora jamais lhe atribuindo suas paixões, mas
direcionando sim, seus resultados para a ótica e a ética do Reino de
Deus representado por Jesus Cristo entre nós.

Para que todos esses primeiros passos sejam seguidos,


é necessário que cada um escolha ou delimite sua perícope a ser
trabalhada. Seja ela definida pelas boas Bíblias no mercado ou pela
criatividade dos próprios alunos, a partir das indicações já assinaladas de
como se identificar ou delimitar uma perícope.

Uma vez escolhida a perícope, vamos às partes das perguntas


que devem ser feitas ao texto.

1.1.2 As Perguntas

Segundo o Manual de Exegese do professor Júlio Zabatiero


(2007, p. 51), as perguntas que devem ser feitas e respondidas a partir
das perícopes:

1. Quem age, fazendo o quê, a quem, sendo caracterizado


como?
2. Onde e quando?
3. Como estão organizadas as ações e relações no tempo e
no espaço?

Exegese do Antigo Testamento | 115


Tentaremos exemplificar as respostas utilizando o texto
de 1Sm 10,17-27, intitulado “Saul é designado rei por sorteio”,
que utilizaremos como padrão para os passos exegéticos do método
semiodiscursivo.

Samuel convocou o povo a Iahweh em Masfa e disse aos


israelitas: “Assim diz Iahweh, o Deus de Israel: Eu fiz
Israel subir do Egito e vos libertei da mão do Egito e de
todos os reinos que vos oprimiam. Vós hoje, no entanto,
rejeitastes o vosso Deus, aquele que vos salvava de todos
os vossos males e de todas as angústias que vos afligiam,
e lhe dissestes: ‘Constitui sobre nós um rei!’ Agora, pois,
comparecei diante de Iahweh por tribos e clãs.” Samuel
mandou que se apresentassem todas as tribos de Israel e,
tirada a sorte, foi escolhida a de Benjamim. Mandou que
a tribo de Benjamim se aproximasse, dividida por clãs, e o
clã de Metri foi soteado. Mandou então que se aproximasse
o clã de Metri, homem por homem. Depois Saul, filho de
Cis, foi apontado no sorteio. Procuraram-no, mas não o
encontraram. Consultaram então a Iahweh: “Algum outro
veio para cá?” E Iahweh respondeu: “Está ali, escondido no
meio das bagagens.” Correram a buscá-lo, e ele se apresentou
no meio do povo: dos ombros para cima sobressaía a todo
o povo. Samuel disse a todo o povo: “Vedes agora a quem
Iahweh escolheu? Não há quem se lhe compare entre todo o
povo.” Então todo o povo gritou: “Viva o rei!” Samuel expôs
ao povo o direito da realeza e o escreveu no livro, que depôs
diante de Iahweh. Em seguida, despediu todo o povo, cada
um para sua casa. Saul também retornou com ele a Gabaá,
e foram com ele os valentes cujo coração Deus tocara. Os
vadios, porém, disseram: “Como poderá esse salvar-nos?”, e
o desprezaram e não lhe levaram presentes, mas ele guardou
silêncio. (1Sm 10,17-27.)

A pergunta de número 1 se refere às relações/ações dos


personagens uns com os outros no texto escolhido. Tais personagens
podem ser dos mais variados tipos, como procuramos tratar acima. São
os personagens que a própria narrativa ou perícope nos fornecem, ou
seja, aqueles que fazem parte da trama textual.

116 | Exegese do Antigo Testamento


Exemplos:

Samuel; povo; Iahweh; Saul; vadios etc.

A pergunta de número 2 se refere ao onde, isto é, qual a


localidade, o espaço geográfico que a perícope nos fornece em que está
se desenvolvendo a ação.

Exemplos:

Masfa2; Egito; Gabaá são os locais indicados na perícope, no entanto, os


eventos se desenvolvem diretamente em Masfa e Gabaá.

A pergunta de número 3 se refere a quando, isto é, como os


tempos verbais estão dispostos na perícope.

Exemplos:

“Samuel convocou o povo [...]”. (v.17). Pretérito perfeito (ações já


realizadas); “[...] e vos libertei da mão do Egito [...]”. (v.18). Pretérito perfeito
(ações já realizadas); “[...] Está ali, escondido no meio das bagagens.”. (v.22).
(Forma infinita do verbo em que reúne característica deste e do adjetivo).

Os exemplos citados acima (pergunta 3) podem ser


multiplicados. Todo verbo significa ação e é fundamental para
compreendermos a relação/ação entre os personagens na perícope.

Também se faz necessário analisar as ações e relações no


tempo e espaço. Nesse ponto é utilizada a percepção de cada um, no
entanto buscando compreender o arco narrativo dado no texto. Na
perícope de 1Sm 10,17-27 temos:

2
Segundo os exegetas da versão da Bíblia de Jerusalém, Masfa foi um tradicional
santuário em Israel. O significado do seu nome é vigia. Uma hipótese que talvez
se possa sustentar é a de que nessa localidade, ao norte do território de Israel,
existiu um posto excepcional de observação na elevação de Cebi-Samwil. Era um
local estratégico em função das muitas invasões possíveis que ocorriam naquele
tempo e ameaçavam o povo de Israel.

Exegese do Antigo Testamento | 117


Movimento:
• Samuel convoca todo o povo para uma assembleia.

Memória:
• Expõe as maravilhas realizadas por Iahweh ao seu povo.

Admoestação:
• Rejeição a Iahweh, pois o povo deseja um soberano
humano.

Convocação para o sorteio:


• Samuel chama todas as tribos de Israel para o sorteio. Em
meio a este sistema, por sinal na narrativa pouco explicado,
o escolhido é Saul, filho de Cis, do clã de Metri, da tribo
de Benjamim.

Há inúmeras outras relações de tempo e espaço na perícope,


porém os exemplos acima já nos são suficientes. Há perícopes
maiores e menores, portanto, cabe aos alunos decidirem sobre
aprofundar ou não cada resposta, geralmente a partir do que desejam
trabalhar nas perícopes.

Finalizando esse primeiro momento, elabore um resumo de


sua perícope e, junto a ele, exponha os dados descobertos nas perguntas
respondidas. Aqui são necessárias criatividade e percepção, sobretudo a
sensibilidade do teólogo que, ao fazer a síntese, já percebe a forma do
arco narrativo em sua perícope.

Resumo ou síntese de 1Sm 10,17-27.

Samuel convoca todo o povo que desejava um soberano humano.


Samuel expõe as maravilhas de Deus e rememora os atos de Iahweh no
passado, quando libertou o seu povo da terra da amargura, o Egito.

No entanto, o povo deseja um soberano humano, conforme


havia nos vizinhos de Israel. Anteriormente, no capítulo 8 do livro,
Samuel já havia exposto “O Direito da realeza”, que por sinal era muito
negativo, o que quer dizer que a coroação de um soberano em Israel iria
trazer sérias consequências ao povo.

118 | Exegese do Antigo Testamento


O povo resiste, Samuel convoca as tribos de Israel e, por
sorteio, prática comum à época, é escolhido Saul como o primeiro rei
de Israel. A narrativa nos informa que ninguém se comparava a ele em
estatura. Trata-se de um fato a ser considerado no texto, pois Saul seria
aquele que defenderia os interesses de algum grupo em Israel. O povo
exalta e louva ao novo rei, mas parece que nem todos concordam com a
coroação de Saul.

O texto faz menção aos vadios de Israel, em algumas versões


“filhos de Belial”. Mas quem são esses, afinal?

Uma rápida consulta ao verso 27 na Bíblia Hebraica


Stuttgartensia e, após tradução e pesquisa em alguns comentários,
observamos que uma tradução muito comum a Belial é: “aqueles que
não servem pra nada”; “inúteis”.

Em outras palavras, o texto nos informa que aqueles que


perguntaram se Saul poderia salvá-los são alguns inúteis em meio ao
povo de Israel. Então seriam esses inúteis os habirus? Um grupo de
miseráveis em meio ao povo? Acreditamos que sim.

1.2 Teologia da Ação: Interdiscurso

Há uma máxima muito conhecida por quase todos nós,


que nos diz que “um texto não pode ser interpretado fora do seu
contexto”. (Zabatiero, 2007, p. 65).

Partindo desta afirmação, podemos dizer que todo texto


deseja comunicar, revelar alguma coisa a todo leitor. Não apenas nos
textos sagrados, mas em textos de todo tipo, há uma persuasão do
autor sobre aqueles a quem se destina a obra.

Persuadir não significa enganar, mas sim, procurar


convencer o outro (leitor) de que deve acreditar em sua mensagem
(tema), e, no caso dos textos sagrados veterotestamentários, eles
apontam para um aprendizado.

Exegese do Antigo Testamento | 119


Sendo assim, há um contexto (argumento/assunto), mas que
pertence à determinada realidade. Todos os textos são produtos de
tensões dos seus idealizadores diante da realidade que os cercavam ou
cercam, por isso são carregados de sentido.

Quanto mais conhecimento técnico a respeito do texto


sagrado bíblico melhor. É ele que nos informa as tensões de certo
momento na história de Israel. Portanto, em muitos casos, esses
textos são na verdade contra-argumentos a uma realidade cheia de
tensões sociais.

É o caso que podemos observar na perícope de 1 Samuel,


quando os vadios, à época rotulados de inúteis, fazem uso da reflexão
para questionar se o primeiro rei de Israel poderia salvá-los de certa
situação relativa àquele momento histórico.

O texto possui seus próprios sentidos, construídos a


partir de discursos que formam a realidade social complexa de cada
período histórico. O contexto, então, é relatado em forma textual.
Estamos diante daquilo que o método semiodiscursivo chama de
interdiscursividade e intertextualidade. Esses dois elementos nos
ajudarão a compreender melhor o sentido de um texto em relação a
outros textos e discursos, assim como compreender melhor o contexto
em que eles foram desenvolvidos.

Uma relação intertextual e interdiscursiva acontece quando


a perícope pesquisada possui relações com outros textos bíblicos,
relação esta que pode estar dentro do próprio Primeiro Testamento
como também entre os testamentos.

Nesse caso é muito comum os evangelhos citarem


continuamente passagens do Primeiro Testamento, com o objetivo de
convencer os seus leitores, judeus e estrangeiros, que o Cristo de Deus
estava vivo ao longo do Primeiro Testamento.

Assim temos, nessa relação entre os testamentos ou mesmo


dentro de um único testamento, o que é chamado de alusão e citação.

120 | Exegese do Antigo Testamento


• Alusão é quando fazemos uma referência VAGA e
INDIRETA. Exemplo: Fez um gol à moda Pelé.

• Citação é quando fazemos uma referência DIRETA.


Exemplo: Pelé fez um gol por cobertura.

Buscaremos então localizar as marcas intertextuais e


interdiscursivas a partir de nossa perícope.

Existem versões da Bíblia, como a Bíblia de Jerusalém, em que


há indicações de outros livros bíblicos, geralmente na lateral dos textos.
Por exemplo, na perícope que utilizamos nessa unidade (1Sm 10,17-
27), há menção aos seguintes textos:

• Citação: “[...] Eu vos fiz subir do Egito e vos fiz sair da casa
da escravidão. Eu vos livrei da mão dos egípcios e da mão
de todos os que vos oprimiam.” (Jz 6,8-9.)

• Citação: “Eu sou Iahweh teu Deus que te fez sair da terra
do Egito, da casa da escravidão.” (Ex 20,2.)

• Citação: “O sacerdote Sadoc apanhou na Tenda o chifre de


óleo e ungiu Salomão; soaram a trombeta e todo o povo
gritou: “Viva o rei Salomão!” (1Rs 1,39.)

Há outras relações textuais de nossa perícope em forma de


citação, mas aqui, colocamos apenas alguns exemplos. Contudo, não há
nenhum exemplo de alusão nos textos postos em paralelo.

Certamente que fazendo esse exercício em outras perícopes


ao longo do Primeiro Testamento, os alunos poderão ter exemplos de
citação e alusão na mesma unidade literária.

De posse das citações e alusões, ou apenas algumas delas, que


é o nosso caso, vamos agora analisá-las.

• O texto de 1Sm 10,18 está em completo acordo com o


texto de Jz 6,8-9 e Ex 20,2, pois ambos argumentam a

Exegese do Antigo Testamento | 121


força, o poder e a misericórdia de Iahweh junto ao povo
sofrido, libertando-o da terra da aflição.

Segundo o texto, Samuel, último juiz, mas que também agia


como profeta junto ao povo, tenta persuadi-lo e convencê-lo de que a
escolha por um soberano humano, abrindo assim mão de uma relação
direta com Iahweh, pode ter sido uma má escolha.

Os relatos posteriores vão nos informar e oscilam


constantemente ao longo dos seus reinados, sejam eles do norte ou do
sul do território de Israel, embora os livros de Samuel e Reis relatem
uma maior inconstância daqueles que reinaram ao norte de Israel.

• O texto de 1Sm 11,18 também está em completo acordo


com o texto de 1Rs 1,39. No primeiro caso, portanto no
livro de Samuel, há grande euforia por parte do povo que
desejava desesperadamente o quê? Um rei. No segundo
caso é a coroação de Salomão, filho do grande rei Davi
naquela cultura, que causou grande euforia, pois o novo
rei carregava sobre si minimamente a expectativa de
reinar assim como o seu pai, ou seja, era certamente visto
como o novo Davi.

Para finalizar essa unidade, analisaremos agora as relações


intertextuais e interdiscursivas em 1Sm 10,17-27.

Podemos aprofundar um pouco mais nossa questão, pois não


devemos nos esquecer daqueles que não se identificaram com o novo
rei, o general de guerra Saul.

Os rotulados vadios, que formam então, naquele contexto


específico, a fatia da sociedade de Israel que não via em Saul a solução
para os seus problemas, certamente foram aqueles que se calaram,
enquanto a outra parte gritava “Viva o rei!”.

Considerando a seção determinada pela hipótese da fonte


Deuteronomista (D), cujos defensores alegam que os livros de 1+2
Samuel e 1+2 Reis, além de outros, surgiram a partir da corte de

122 | Exegese do Antigo Testamento


Jerusalém em determinado momento histórico de Israel, podemos
observar que em 1Rs 12 há um relato, uma outra indignação de
parte do povo, e a pesquisa nos aponta que esse grupo vem do norte
do território, liderado por Jeroboão. Por fim, ao longo do texto,
temos uma revolta desse povo do norte contra o novo rei Roboão,
que segundo a narrativa, disse que faria coisas piores do que seu pai
Salomão tinha feito a esses.

Indicamos a leitura desse capítulo de 1Rs 12 para melhor


compreensão daquele contexto, dos fatos apresentados pelo narrador.
Isso fortalece mais uma vez que os textos sagrados possuem tensões
relativas à determinada época, isto é, os textos nos revelam o porquê
de terem sido criados, sempre objetivando reflexão nos seus leitores
em todas as épocas.

Exegese do Antigo Testamento | 123


Síntese
Nesta unidade de aprendizagem procuramos apresentar
os primeiros passos do Método Exegético Semiodiscursivo. Nesse
primeiro momento, procuramos salientar as seguintes necessidades:

Ler a perícope exaustivamente até


familiarizar-se com ela.

Ler a seção ou todo o livro na qual se


concentra a perícope.

Atentar para os verbos, adjetivos, personagens, enfim,


todos os aspectos textuais de sua perícope, e se possível
selecionar aspectos para analisá-los separadamente.

Exegese do Antigo Testamento | 125


Procurar responder às perguntas-chave desse momento do
passo exegético.

Fazer uma síntese/resumo dos principais temas ou tema


central de sua perícope.

Analisar na perícope as possíveis alusões ou citações


relacionadas ao seu texto.

Utilizar seus saberes acadêmicos e também a bibliografia


disponível para o aprofundamento do(s) tema(as) de sua
unidade literária.

A criatividade ou hermenêutica dos alunos é fundamental


ao processo de pesquisa semiodiscursivo, mas desde que
não corrompa o arco narrativo em seu tema central ou os
subtemas que a ele estão relacionados.

126 | Exegese do Antigo Testamento


Referências Bibliográficas
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2007, p. 1210.

Bíblia de Jerusalém. 3 impressão. Nova edição revista e ampliada.


São Paulo: Paulus, 2004, p. 2206.

Bíblia do Peregrino. 3 ed. São Paulo: Paulus, 2011, p. 3056.

Bíblia Hebraica. Baseada no Hebraico e à luz do Talmud e das


Fontes Judaicas. 1 reimpressão revisada. São Paulo: Editora Sêfer,
2007, p. 877.

Bíblia Hebraica Stuttgartensia. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica


do Brasil, 1997, p. 1574.

Bíblia Sagrada. Contendo o Antigo e o Novo Testamento. Traduzido


em português por João Ferreira de Almeida. Edição revista e corrigida.
85 impressão. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1995.

BOURQUIN, Yvan; MARGUERAT, Daniel. Para ler as narrativas


bíblicas: iniciação à análise narrativa. São Paulo: Edições Loyola,
2009, p. 231.

CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa:


uma introdução à fenomenologia da religião. 2 ed. São Paulo:
Paulinas, 2004, p. 527.

Exegese do Antigo Testamento | 127


______. Hermenêutica bíblica: para uma teoria da leitura como
produção de significado. São Paulo: Paulinas, São Leopoldo: Editora
Sinodal, 1986, p. 76.

GUNNEWEG, Antonius H.. Hermenêutica do Antigo


Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2003, p. 251.

SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de exegese bíblica. 3


ed. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 526.

VOLKMANN, Martin. Exegese histórico-crítica. In:______. São


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WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de


metodologia. 3 ed. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus,
1998, p. 408.

YOFRE, Horacio Simian (org.). Metodologia do Antigo


Testamento.São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 159.

ZABATIERO, Júlio. Manual de exegese. São Paulo: Hagnos,


2007, p. 159.

128 | Exegese do Antigo Testamento


Teologia da Ação: Término
Objetivos
Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de:

1. Visualizar a beleza do texto (estilo).


2. Compreender que todo o texto deseja convencer (persuadir)
o leitor de algo.
3. Aplicar tais conhecimentos as perícopes
veterotestamentárias.

Exegese do Antigo Testamento | 131


Introdução
Estilo e argumentação são dois elementos textuais em que
os leitores identificam tanto a beleza ou estética do texto, como os
argumentos que são por ele trazidos. Todo texto quer convencer
o leitor de alguma coisa. Então, precisamos saber identificar os
elementos estilísticos e argumentativos dentro das narrativas.

Todo texto também é vida, e esses elementos nos ajudarão


a perceber melhor as intencionalidades nas narrativas sagradas, não
dos autores, mas um convencimento que está no próprio texto, e que
retrata o contexto ou mundo da vida de quem o escreveu.

Já percebemos que os textos nos indicam momentos de


tensões, isto é, nem sempre há uma concordância por parte dos
personagens que estão agindo na narrativa. Este é um elemento
importante, pois nos revela o mundo da vida que, no caso da narrativa
bíblica, nos mostram as alegrias e as tristezas daqueles homens e
mulheres em Israel.

As narrativas nunca são ficções da mente dos autores bíblicos,


elas trazem os elementos de uma longa história de vida de um povo,
ou seja, os autores construíram seus textos a partir dos elementos
linguísticos e culturais do seu próprio povo. Estamos sempre diante
de mundos.

Há um entrelaçamento: o mundo do texto, o mundo do(s)


escritor(es) e o mundo do leitor.

Exegese do Antigo Testamento | 133


1. Teologia da ação: teologia textual
Mais uma vez faremos uso de nossa perícope e, por meio
dela, faremos algumas análises a respeito de estilo e argumentação. É
importante lembrarmos que os dois se completam: o autor necessita
utilizar os recursos culturais, linguísticos, para, assim, construir melhor
o seu argumento; junto ao tema central de seu texto, ele necessita
dispor desses elementos e saber como alocá-los em sua narrativa, a fim
de que o seu argumento faça sentido àqueles que são destinados a lê-lo.

Em relação às perícopes, nossas unidades literárias com início,


meio e fim, sabemos que é possível traçar limites sobre ela, desde que o
faça com coerência.

Nesse sentido, entendemos que os textos estão sujeitos ao


exegeta. Isso também faz parte do argumento, da persuasão. Nosso
alerta é que, ainda que controláveis, os textos sagrados não podem ser
dissociados do seu contexto, dividindo-os segundo os nossos interesses
em convencer alguém de nossa mensagem, contudo, nunca de forma
arbitrária, deixando de lado o arco narrativo.

1.1 Estrutura Concêntrica ou de Cebola

Partindo do que foi dito acima, perguntamos: Você sabe o


que é estrutura concêntrica ou estrutura de cebola? É um certo tipo de
análise que se faz nos textos, nas perícopes que foram delimitadas por
nós, segundo aquilo que desejamos atingir a partir do texto.

Exegese do Antigo Testamento | 135


Utilizaremos o texto de 1Sm 10,17-27, que, como já
observamos, é uma unidade literária, inclusive já dividida nas boas
Bíblias de estudo disponíveis no mercado.

Ao fazermos uma estrutura concêntrica ou de cebola,


utilizamos nossa criatividade por meio da hermenêutica, procurando
interpretar os versos da perícope na qual estamos analisando, em
uma interpretação responsável, a fim de não fugir do tema da
unidade literária.
Com isso queremos dizer que as interpretações podem variar
de acordo com a intenção do(a) teólogo(a); não há mal nenhum nisso,
mas não sair do contexto da época quando reinterpretamos a mensagem
para hoje é fundamental.

Não podemos, de forma alguma, usar um artifício ad hoc, isto


é, o que literalmente pode ser compreendido como forçar um texto,
retirando do seu contexto, transformando-o, assim, num pretexto.

Quem nunca ouviu que interpretar um texto fora do seu


contexto transforma-o em pretexto? Isso significa que o texto se torna
uma desculpa para que se atinja desejos particulares, fugindo do tema e,
por consequência, do arco narrativo.

Em primeiro lugar, para o procedimento de uma estrutura de


cebola, é necessário estar familiarizado com a perícope e, para isso, lê-la
constantemente é fundamental. Aqui, se faz necessária a indicação dos
números dos versos para a análise da estrutura concêntrica. Vamos a ela:

17Samuel convocou o povo a Iahweh em Masfa, 18e disse


aos israelitas: “Assim diz Iahweh, o Deus de Israel: Eu fiz
Israel subir do Egito e vos libertei da mão do Egito e de
todos os reinos que vos oprimiam. 19Vós hoje, no entanto,
rejeitastes o vosso Deus, aquele que vos salvava de todos
os vossos males e de todas as angústias que vos afligiam,
e lhe dissestes: ‘Constitui sobre nós um rei!’ Agora, pois,
comparecei diante de Iahweh por tribos e clãs”. 20Samuel
mandou que se apresentassem todas as tribos de Israel e,
tirada a sorte, foi escolhida a de Benjamim. 21Mandou que a

136 | Exegese do Antigo Testamento


tribo de Benjamim se aproximasse, dividida por clãs, e o clã
de Metri foi soteado. Mandou então que se aproximasse o clã
de Metri, homem por homem. Depois Saul, filho de Cis, foi
apontado no sorteio. Procuraram-no, mas não o encontraram.
22Consultaram então a Iahweh: “Algum outro veio para
cá?” E Iahweh respondeu: “Está ali, escondido no meio das
bagagens.” 23Correram a buscá-lo, e ele se apresentou no
meio do povo: dos ombros para cima sobressaía a todo o
povo. 24Samuel disse a todo o povo: “Vedes agora a quem
Iahweh escolheu? Não há quem se lhe compare entre todo
o povo”. Então todo o povo gritou: “Viva o rei!”. 25Samuel
expôs ao povo o direito da realeza e o escreveu no livro, que
depôs diante de Iahweh. Em seguida, despediu todo o povo,
cada um para sua casa. 26Saul também retornou com ele a
Gabaá, e foram com ele os valentes cujo coração Deus tocara.
27Os vadios, porém, disseram: “Como poderá esse salvar-
nos?, e o desprezaram e não lhe levaram presentes, mas ele
guardou silêncio (1Sm 10,17-27. Bíblia de Jerusalém).

Cada verso da unidade literária deve ser interpretado, nesse


momento, procurando estabelecer a mensagem que está na perícope,
pois o próprio texto nos informa o seu sentido, sua persuasão.

É após a montagem da estrutura e, dando sentido –


interpretando o texto – que estaremos aptos a analisar o fruto de nossa
interpretação, objetivando a reserva de sentido dessa unidade literária
para os dias atuais.

Com a montagem da estrutura, fica clara sua tendência a ser


concêntrica (aquilo que tem o mesmo centro), isto é, a estrutura tem
uma tendência a se fechar; por isso é uma perfeita unidade literária com
início, meio e fim, com o arco narrativo bem-definido ou delimitado.

Vamos, finalmente, à estrutura:

A - v. 18: Samuel convoca o povo e, rememora os atos do


Iahweh libertador da opressão no Egito.
B - v. 19: Rejeição do povo a Iahweh [teocracia].

Exegese do Antigo Testamento | 137


Exigem sobre si um monarca.
C - v. 20-22: Joga-se a sorte entre as tribos.
Saul de Benjamin é o escolhido.
D - 23-24a: “Sobressaía a todo o povo”. Não pode
ser comparado a ninguém.
E - v. 24b: Então todo povo gritou: “VIVA O REI!”.
D’ - v. 25a: Samuel expõe o direito da realeza.
[Exclusivismo (cf. 1Sm 8.10-22)].
C’ - v. 25b-26: Cada tribo retorna à sua localidade.
Também Samuel e Saul.
B’ - v. 27a: Os vadios rejeitam a Saul: “Como poderá esse
salvar-nos?”.
A’ - v. 27b: Os vadios desprezam a Saul, não vêem nele um
libertador.

O que reproduzimos acima é o que chamamos de estrutura


concêntrica ou de cebola, que é apontada pelas letras junto aos versos
em negrito e seus correspondentes. A estrutura leva esse nome em razão
de sua curvatura, que lembra uma cebola ou a estrutura concêntrica.

A ideia é que cada letra tenha a sua correspondente ao longo


da narrativa, isto é, uma aproximação/relação das interpretações.
Exemplo: A e A’; B e B’; C e C’; D e D’, e que a letra E se refere ao
clímax, ponto culminante da narrativa, o seu elemento central.

Reforçamos que outras possibilidades de interpretações são


possíveis, mas esta é apenas aquela que vislumbramos como sendo a
melhor para alcançarmos nossos objetivos. Por isso, vamos fazer uma
pequena análise, mas levando em conta o estilo e a argumentação
perceptíveis nessa passagem, sem alterar o arco narrativo.

2. Estilo e Argumentação
Separando para análise os versos e seus respectivos termos
grifados, podemos compreender o contexto apresentado pelo texto, da
seguinte forma:

138 | Exegese do Antigo Testamento


2.1 Argumentação

A - v. 18: Samuel convoca o povo e, rememora os atos do


Iahweh libertador da opressão no Egito.

• Os livros de 1+2 Sm retratam sobre instituição da


monarquia em Israel. O verso acima deixa claro o
contra-discurso de Samuel em relação ao desejo do povo
em querer um soberano humano. Quando rememora os
feitos de Iahweh para todo aquele povo, tenta persuadi-los a
desistir, pois nenhum homem os libertou da opressão; foi o
próprio Deus, através de sinais e prodígios.

B - v. 19: Rejeição do povo a Iahweh [teocracia]. Exigem


sobre si um monarca.

• Com o desejo de ter um monarca como possuem as outras


nações, Israel põe em risco seu futuro. É o próprio Deus
que fala a Samuel no início do livro: “Atende a tudo o que
te diz o povo, porque não é a ti que eles rejeitam, mas é
a mim que eles rejeitam, porque não querem mais que
eu reine sobre eles [...]” (Cf. 1Sm 8,7). Vale lembrar da
importância da leitura de toda a seção.

C - v. 20-22: Joga-se a sorte entre as tribos. Saul de Benjamin


é o escolhido.

• O texto nos revela, ainda que não aprofundado, que a


prática do sorteio era comum e decisiva naqueles tempos,
embora devessemos compreender que, mesmo lançando às
sortes, é Iahweh que separa ou escolhe a Saul.

D - 23-24a: “Sobressaía a todo o povo”. Não pode ser


comparado a ninguém.

• Surge Saul em meio à narrativa, o texto faz questão de


relatar o seu porte físico, quando em outros momentos,
esse elemento não foi explorado. O próprio livro de

Exegese do Antigo Testamento | 139


Samuel, assim como a literatura técnica, nos informa que
os filisteus foram a grande ameaça a Israel, desejando
suas riquezas.

Já que os mesmos não fincavam residência ao longo do


território, eram como gafanhotos: se interessavam bem mais pelos objetos
valiosos do povo. Era necessário um general para defender os bens
materiais do povo, os interesses daqueles que possuíam algo valioso.

E - v. 24b: Então todo povo gritou: “VIVA O REI!”.

• Clímax ou elemento central da narrativa. É interessante


notar que o texto nos diz que todo o povo gritou “Viva o
rei!”, mas o que parece é que apenas parte dele, ou melhor,
os proprietários de bens viram em Saul a solução para o
problema filisteu. Como veremos mais abaixo.

D’ - v. 25a: Samuel expõe o direito da realeza. [Exclusivismo


(cf. 1Sm 8.10-22)].

• No capítulo 8 do livro, Samuel já havia exposto, em detalhes,


as consequências de se escolher um soberano humano. Nesta
nova narrativa, ao que parece, o direito é repetido nesta
apresentação de Saul ao povo. Para que fiquem bem clara as
consequências de se ter um soberano humano.

C’ - v. 25b-26: Cada tribo retorna à sua localidade. Também


Samuel e Saul.

• Esse povo possuía os seus hábitos e costumes culturais


segundo as leis que imperavam na comunidade tribal. Ou
seja, segundo a divisão estipulada pelo próprio Deus das
terras, onde viviam num compartilhar contínuo de bens.
“O povo não comerá antes que ele chegue, porque é ele
que tem de abençoar o sacrifício; só depois os convidados
comem” (1Sm 9,13. Bíblia de Jerusalém).

B’ - v. 27a: Os vadios rejeitam a Saul: “Como poderá esse


salvar-nos?”.

140 | Exegese do Antigo Testamento


• Elemento que nos chama à reflexão e põe em cheque
a informação de que todo o povo consentiu com a
apresentação de Saul. O texto nos revela a tensão daquele
momento histórico. Os tais vadios, pobres (habirus) de
Israel, não veem em Saul a solução para os seus problemas.
Nos parece, realmente, que Saul apenas atenderá aos
interesses de certo grupo.

A’ - v. 27b: Os vadios desprezam a Saul, não vêem nele


um libertador.

• O presente, segundo o estudo antropológicos (como Marcel


Mauss), nas sociedades antigas e ainda hoje, representa um laço
de amizade de pertencimento: trocamos presentes hoje porque
eles fortalecem nossas relações uns com os outros; não pelo
interesse, pelo valor que eles possuem em si mesmos, valor de
mercadoria – o que é comum em tempos de valorização das
coisas e não das pessoas – mas o presentear o outro como laço
de fortalecimento entre as pessoas, seus interesses comuns etc.
O último verso da perícope retrata o desprezo dos pobres
(vadios; habirus) em relação à figura do rei, não lhe levando
presentes. Isto é, não há relação entre parte do povo com a
figura do futuro rei de Israel.

2.2 Estilo

O estilo, na verdade, é a marca dada ou a preferência do(s)


autor(es) das narrativas sagradas. Isso talvez seja mais perceptível entre
os sinóticos, nos quais podemos perceber essa tal mão que nos mostra a
tendência do(s) escritor(es). O mais destacado entre eles, são os relatos
da vida do homem de Nazaré, sendo o Evangelho de João.

Na perícope de 1Sm 10,17-27, são as relações intertextuais que nos


fornecem as preferências de cada escritor dos temas nas narrativas sagradas.

Nessas relações intertextuais, percebemos que a maior parte


delas é uma citação direta e algumas palavras se repetem. Ao longo

Exegese do Antigo Testamento | 141


dessas narrativas, percebe-se, também, o estilo e as preferências de cada
autor em relatar, nesses casos, a forma como Iahweh libertou o seu povo
da terra da opressão e, em outros casos, fazendo referência à coroação
de outros reis de Israel.

Observe a relação intertextual destacada entre 1Sm 10,18 com


Levítico 25,38.

“E disse aos israelitas: “Assim diz Iahweh, o Deus de Israel:


Eu fiz Israel subir do Egito e vos libertei da mão do Egito e de todos
os reinos que vos oprimiam” (1Sm 10,18. Bíblia de Jerusalém).

“Eu sou Iahweh vosso Deus, que vos tirei da terra do Egito
para vos dar a terra de Canaã para ser o vosso Deus” (Lv 25,38. Bíblia
de Jerusalém).

Observe a relação entre os termos:

• Iahweh, o Deus de Israel.


• Eu sou Iahweh o vosso Deus.
• Eu fiz Israel subir do Egito e vos libertei da mão
do Egito.
• que vos tirei da terra do Egito.

As relações acima são simples e objetivas, não há nelas


nenhum tipo de dificuldade para compreender a persuasão ou
convencimento que o texto deseja nos informar, isto é, Iahweh é o Deus
de Israel e foi ele que libertou o povo das mãos dos egípcios.

No entanto, as narrativas são semelhantes, mas não


são iguais. Cada autor procurou dar sua contribuição pessoal na
construção dos temas, e por isso os dois versos possuem estilos e
preferências pessoais distintas.

É por isso que no Novo Testamento se atribui a Lucas, o


evangelho que leva o seu próprio nome e também o livro de Atos
dos Apóstolos. Um retrata a História do nosso Senhor e o outro a
História da Igreja nascente.

142 | Exegese do Antigo Testamento


O estilo do escritor do Evangelho e do livro de Atos dos
Apóstolos foi um dos fatores que levaram os exegetas a acreditar
que fosse a mesma pessoa o autor desses dois livros bíblicos
neotestamentários.

Retornando a perícope de 1Sm 10,17-27, podemos citar


algumas observações do professor Júlio Zabatiero (2007, p. 78-79),
em seu Manual de Exegese Bíblica, o qual se fundamenta no Método
Sêmiodiscursivo, no que se refere a estilo e argumentação de um texto.

Ajuda-nos a entender a intencionalidade do texto, ou seja, de


que o texto quer nos convencer, nos persuadir.

Auxilia-nos a identificar os critérios de verdade e/ou


validade presentes no mundo-da-vida do texto e como são usados por
autores e leitores, contribuindo também com a análise da dimensão
sociocultural da ação.

Propicia-nos identificar o ator da enunciação, contribuindo


também para a análise da dimensão psicossocial da ação.

De alguma forma, já procuramos responder aos conceitos


propostos pelo professor Zabatiero, mas vamos desenvolvê-los, mais
uma vez, agora considerando diretamente às três assertivas acima.

1 – A intencionalidade fornecida pelo texto de nossa perícope


ou por seu autor, isto é, o texto quer nos convencer que em Israel, em
determinado momento temporal, por isso histórico, o povo, ou melhor,
que parte dele, não deseja mais a permanência da teocracia, do governo
de Deus sobre eles.

Em Israel, a monarquia sempre esteve relacionada à presença


viva de Iahweh e às suas determinações para o soberano humano. No
entanto, embora Saul, o primeiro rei, não tenha se dado conta desse fato,
seu sucessor Davi soube cumprir, guardadas suas devidas proporções.

Portanto, os reis de Israel não deveriam, em hipótese


alguma, agir longe das determinações de Iahweh. Por isso a chegada

Exegese do Antigo Testamento | 143


junto à monarquia do movimento profético, pois são os profetas que
continuamente vão repreender ou anunciar aos reis daquele povo a plena
vontade do Deus de Israel.

Os profetas são personagens que aparecem continuamente


após a instituição do reinado – aliás, já sabemos que tal voz profética
se inicia com o próprio Samuel, também conhecido em meio ao povo
como vidente.

Junto a esse ciclo monárquico nos relatos de 1+2 Sm e 1+2 Rs,


há grandes profetas de Israel, como Samuel, Natã, Elias, Eliseu,
Jeremias, Elias, fora os anônimos, que procuram servir fielmente o
Deus de Israel. Sem a figura profética, os reis nada foram ao longo do
seu reinado. Iahweh permitiu a instituição da monarquia, porém deixou
ungidos seus, os profetas, dentro e fora das cortes para controlar os
excessos desses reis.

2 – Nossa perícope apresenta uma grande tensão em meio ao


povo tribal de Israel, ao que parece, a monarquia fragmentou a união, a
relação entre as tribos e, realmente foi o que aconteceu: os profetas foram
os que denunciaram as injustiças aos poderosos soberanos no descuido
em relação aos pobres da terra. A monarquia trouxe certo individualismo
em meio ao povo. Boa parte dos reis de Israel se tornaram soberbos,
esquecendo-se de que deveriam servir e praticar a justiça em meio ao povo.

Afinal, a monarquia sempre foi sinônimo de vida boa no


mundo antigo. Ontem e hoje os monarcas possuem privilégios perante
a sociedade, vivem num mundo à parte, e em Israel não foi diferente,
embora essa não fosse a vontade de Iahweh.

3 – O discurso da perícope é bem transparente, o(s) autor(es)


dessa construção textual nos desvela(m) um mundo que talvez nos fosse
inimaginável, ou seja, uma ruptura daquela forma de sociedade em
função de problemas sociais, ainda que todos supostamente adorassem
o Iahweh libertador.

A aparente fala dos vadios, talvez imperceptível numa primeira


leitura a muitos de nós, é que traz à tona um problema ainda não
percebido pelos leitores naqueles tempos bíblicos.

144 | Exegese do Antigo Testamento


É possível que a instituição da monarquia tenha recrudescido
a pobreza em meio ao campesinato em Israel. A frase “poderá esse
salvar-nos?” pode ser compreendida como ausência de assistência ao
campesinato em Israel, afinal, o direto do rei, lido por Samuel diante de
todo o povo, certamente fixou o peso do tributo (imposto), que desde os
tempos bíblicos e, ainda hoje, dificulta sobremaneira a vida dos pobres.

Mais tarde, em seu reinado, Saul livra do anátema,


determinado por Iahweh, os tesouros, animais e o rei Agag, matando
todos os outros, mulheres, homens e crianças, o que nos persuade na
leitura do texto à compreensão de que o que desejava mesmo o rei eram
os tesouros e, principalmente, o gado (cf. 1Sm 15).

A chegada desse animal em Israel trouxe discórdia, pois o gado


necessita de pasto, e onde esses animais pastam não há possibilidade
de se plantar; logo, a subsistência do camponês está ameaçada,
modificando-se a cultura; nesse caso, como o sistema econômico de
Israel era estabelecido na agricultura, o gado, para muitos, foi sinônimo
de aumento da pobreza.

Exegese do Antigo Testamento | 145


Síntese
Nesta unidade procuramos tratar de dois aspectos relacionados
ao Método Sêmiodiscursivo: o estilo e a argumentação, utilizando a
perícope de 1Sm 10,17-27. Com eles podemos perceber as intenções ou
persuasões existentes nas narrativas sagradas.

Também observamos o estilo encontrado nas narrativas, isto


é, as preferências estilísticas de cada autor do texto. Por isso, embora os
temas estejam próximos, há peculiaridades textuais que nos mostram as
preferências de cada autor, ao fazerem uso do seu patrimônio cultural
nas construções textuais.

Por fim, procuramos analisar nossa perícope a partir das


argumentações ou persuasões que ela nos apresentou. Junto a tais
marcas argumentativas, utilizamos certo conhecimento técnico obtido
com a seção, com todo o livro de 1º Samuel, além de informações da
bíblia de estudo.

De uma maneira mais geral, também observamos as


informações obtidas quando lemos a respeito da fonte Deuteronomista
(D), da qual faz parte o complexo dos livros de 1+2 Samuel.

Exegese do Antigo Testamento | 147


Referências
VV. AA. Dicionário Hebraico-Português e Aramaico-Português. 14
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ZABATIERO, Júlio. Manual de exegese. São Paulo: Hagnos, 2007.

Exegese do Antigo Testamento | 151


O Sociocultural
Objetivos
Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de:

1. Observar nas narrativas sagradas como o texto revela as


ações dos personagens.
2. Compreender as ações socioculturais presentes nos
textos sagrados.
3. Compreender que as ações dos personagens são indicadas
pela narratividade.

Exegese do Antigo Testamento | 153


Introdução
Olá pessoal, chegamos a mais uma unidade de
aprendizagem, e nela iremos estudar a respeito das questões
socioculturais de nossa perícope, na qual já estamos trabalhando a
algum tempo, isto é, 1Sm 10,17-27.

Observaremos como em nossa unidade literária ou perícope


se desenvolve as ações de certos personagens, podemos pensar em
atores principais e coadjuvantes, de como o texto, sempre ele conforme
a metodologia Sêmio-Discursiva, apresenta as ações ou movimentos
desses personagens veterotestamentários.

Sempre é bom reforçar que estamos continuamente nos


referindo à uma realidade do texto, ou seja, nossas análises propostas
contemplam continuamente o Mundo do Texto.

As relações entre os textos (intertextualidade) e entre os


discursos (interdiscursividade) são fundamentais para a compreensão
dos aspectos socioculturais, divididos em: narratividade e
interdiscursividade ao longo de nossa unidade.

Exegese do Antigo Testamento | 155


1. Narratividade
A narratividade se ocupa com as transformações ocorridas
no texto, realizadas por um ou mais personagens, ou seja, em suas
transformações ocorridas em meio às narrativas. Contudo narratividade
e narrativa, são conceitos distintos. A primeira está em relação aos
personagens, já a segunda atua de maneira a contar a história, isto é,
segundo a estrutura.

É preciso retornar logo a nossa perícope base para


compreendermos como se desenvolve no texto as questões
socioculturais. É preciso um contato constante com o texto escolhido
para que a metodologia proposta seja frutífera. Vamos à nossa perícope.
Optamos novamente pelo texto dividido em versículos.

17Samuel convocou o povo a Iahweh em Masfa, 18e disse


aos israelitas: “Assim diz Iahweh, o Deus de Israel: Eu fiz
Israel subir do Egito e vos libertei da mão do Egito e de
todos os reinos que vos oprimiam. 19Vós hoje, no entanto,
rejeitastes o vosso Deus, aquele que vos salvava de todos
os vossos males e de todas as angústias que vos afligiam,
e lhe dissestes: ‘Constitui sobre nós um rei!’ Agora, pois,
comparecei diante de Iahweh por tribos e clãs”. 20Samuel
mandou que se apresentassem todas as tribos de Israel e,
tirada a sorte, foi escolhida a de Benjamim. 21Mandou que
a tribo de Benjamim se aproximasse, dividida por clãs, e o
clã de Metri foi sorteado. Mandou então que se
aproximasse o clã de Metri, homem por homem. Depois
Saul, filho de Cis, foi apontado no sorteio. Procuraram-no,

Exegese do Antigo Testamento | 157


mas não o encontraram. 22Consultaram então a Iahweh:
“Algum outro veio para cá?” E Iahweh respondeu: “Está ali,
escondido no meio das bagagens.” 23Correram a buscá-lo,
e ele se apresentou no meio do povo: dos ombros para
cima sobressaía a todo o povo. 24Samuel disse a todo o
povo: “Vedes agora a quem Iahweh escolheu? Não há
quem se lhe compare entre todo o povo”. Então todo o povo
gritou: “Viva o rei!”. 25Samuel expôs ao povo o direito da
realeza e o escreveu no livro, que depôs diante de Iahweh.
Em seguida, despediu todo o povo, cada um para sua casa.
26Saul também retornou com ele a Gabaá, e foram com ele
os valentes cujo coração Deus tocara. 27Os vadios, porém,
disseram: “Como poderá esse salvar-nos?, e o
desprezaram e não lhe levaram presentes, mas ele
guardou silêncio. (1Sm 10,17-27. BÍBLIA DE
JERUSALÉM).

Grifamos alguns elementos dessa perícope a fim de


trabalharmos as questões socioculturais, dividida em narratividade e
interdiscurso. O professor Zabatiero nos informa a seguinte questão
em sua obra:

A dimensão sociocultural da ação inclui a atitude, a posição,


a maneira como o texto descreve, aceita, modifica ou critica
as diferentes dimensões da vida humana em coletividade.
(ZABATIERO, 2007, p. 103.).

Ora, segundo a informação do professor, temos todos esses


elementos informados em nossa perícope. O texto nos revela em ação:
atitudes, posições, acertos contratuais, isto é, de maneira positiva, mas
também a negação a tais acertos (contratos) de maneira contrária (negativa).

As narrativas Deuteronomistas são históricas e, já assinalamos


em outros momentos que o chão da vida é extremamente conflituoso.
Nossa perícope se encaixa perfeitamente nas questões relacionadas acima.

Nossa perícope certamente nos revela um ambiente social


problemático, mas o que desejamos primeiramente é, segundo o

158 | Exegese do Antigo Testamento


método, analisar aquilo que o texto nos fornece, por isso utilizamos a
expressão mundo do texto.

Certamente que os manuais de teologia, dentre outras


literaturas relacionadas, como os livros de arqueologia, nos ajudam a
nos aproximar daquela realidade, porém sempre com muita cautela, pois
já sabemos os males que certas tendências científicas podem nos causar.

Somos todos, sem exceção, filhos do Iluminismo, nossas


mentes pensam, influenciadas por esse movimento de maneira
mais racional. Geralmente não fazemos distinção do mundo bíblico
veterotestamentário com nosso mundo de hoje. Mas é necessário.

Devemos sempre estar atentos de que o comportamento


daqueles personagens observados no texto, não podem ser comparados
com nosso ethos de vida moderno e pós-moderno.

Por isso o tempo todo fazemos uso da expressão reserva de


sentido, sempre é necessário reler o texto se quisermos que o mesmo
tenha certo sentido em nossa realidade.

Sabemos também que as culturas são sempre dinâmicas,


elas continuamente se alteram, Israel também passou por tal processo
ao longo de sua história. Um pequeno exemplo: patriarcas/profetas;
tabernáculo/templo; seminômades /sedentários; juízes/reis, dentre
outras inúmeras modificações culturais que nos são apresentadas na
dinâmico do texto veterotestamentário.

Com isso o amadurecimento espiritual vai também se


desenvolvendo, Israel vai se corrigindo ao longo de sua história. o Primeiro
Testamento também é complexo porque não se estrutura num único
momento da história, é um texto que se desenvolve ao longo de séculos.

A dinâmica cultural vai sendo apresentada ao longo do


texto sagrado, pois não é possível em meio a contatos com egípcios,
filisteus, assírios, babilônios, persas etc., de maneira que aquele
povo continuasse com um ethos engessado na história. A história é
realizada por sujeitos sociais ativos.

Exegese do Antigo Testamento | 159


Observamos que em nossa perícope há elementos textuais que
nos fazem lembrar de nossas tensões sociais hoje, mas de forma alguma
podemos ser arbitrários nesse sentido. Lembrem-se da questão entre
texto, contexto e pretexto.

Feitas tais observações podemos prosseguir com o conceito


de narratividade, que é toda transformação gerada ou originada pelo
texto a respeito dos personagens. Geralmente tais movimentos são
perceptíveis pelos tempos verbais.

Todo verbo é uma ação. Nossa perícope quando lida por


inúmeras vezes, deixando-a falar conosco, acaba por ser dinamizada
como uma obra cinematográfica, pois os tempos verbais nela
indicam a todo tempo movimento e, inclusive podemos identificar os
protagonistas da narrativa e seus coadjuvantes.

Nesse sentido os protagonistas de nossa perícope, apresentados


segundo o mundo do texto, como aparente ou simulação da realidade são:

• Samuel.

Homem de valor segundo o testemunho das próprias tribos


de Iahweh. Caso não fosse assim, ninguém se apresentaria
após à sua convocação. Seu chamado é compreendido pelas
tribos como ordem direta de Deus.

Outra informação fundamental a respeito desse último juiz


é que, mesmo o povo desejando um soberano humano,
Samuel não os teme e expõe as desgraças que irão acontecer
pela opção da monarquia.

É Samuel que tem o poder de convocar e sabe como exercer


o seu papel na mediação entre Deus e o povo, em meio ao
sorteio quando Saul é apontado como primeiro rei de Israel.

• Iahweh.

O todo poderoso Deus de Israel que adverte ao povo por


sua escolha de buscar em meio aos homens um soberano, se

160 | Exegese do Antigo Testamento


esquecendo das maravilhas que Ele proporcionou, livrando-os
da terra da opressão e de seus inimigos. Mesmo assim,
Iahweh admite que um rei seja escolhido em meio às tribos.
Os coadjuvantes de nossa perícope, apresentados segundo
o mundo do texto, como aparente ou simulação da
realidade são:

• Povo dividido em tribos e clãs.

Anteriormente, conforme apresenta-se no capítulo 08 do


livro, é povo rebelde e ingrato diante diante das realizações de Iahweh.
O próprio Iahweh admite que foi rejeitado e juntamente com ele
Samuel. Segundo essa narrativa o próprio Iahweh relata que já haviam
abandonado-o, pois já estavam a seguir a outros deuses.

• Tribo de Benjamim e o clã de Metri

Dois sorteios são realizados por Samuel, no primeiro a tribo


escolhida é a de Benjamim, depois num novo sorteio o clã de Metri é
sorteado. O texto nos informa que as tribos eram divididas em vários
clãs. Todos os homens do clã de Metri foram apresentados.

• Saul da tribo de Benjamim e do clã de Metri.

Ao que nos parece, segundo o texto, é que houve mais um


sorteio em que se apontou a Saul, filho de Cis como o escolhido.
Por algum motivo, o qual o texto não nos revela, Saul está escondido
em meio às bagagens. Foi necessário consultar a Iahweh para que o
encontrassem. Assim foi levado nos “braços do povo.”. O texto faz
questão de nos dizer que sua estatura sobressaía a de todo o povo e de
que fora escolhido pelo próprio Iahweh.

• Vadios

Quando podíamos imaginar que tudo já estava acertado entre


as tribos e clãs, na aceitação total de Saul como primeiro rei de Israel,
o texto nos surpreende com um novo movimento dos personagens em
sua narratividade. Surgem os vadios, não sabemos de que tribo e nem a
qual clã pertencem, pois o texto silencia em relação a tais informações.

Exegese do Antigo Testamento | 161


No entanto, eles existem e causam desconforto. O contrato
está dessa maneira incompleto, rompido. Não sabemos que parte do
povo gritou, Viva o rei! E nem sabemos quem são esses vadios que
indagam se Saul poderá salvá-los. Há uma explícita tensão na narrativa.
Elementos positivos (aceitação), mas também negativos (rejeição)
compõem o mundo do texto.

Resumindo, podemos observar que no mundo do texto de


nossa perícope, alguns problemas são resolvidos, em Israel, em forma
de sorteio. Como salientamos acima, não há como compararmos o
“espírito” desse sorteio, até mesmo porque o texto não nos dá maiores
detalhes, com as práticas de sorteio de nossos tempos.

Que a voz do último juiz Samuel nos traz a compreensão de


que esse homem tinha certo poder sobre as tribos. Já assinalamos
noutro momento que ninguém fazia sua refeição em meio ao povo
sem a presença de Samuel para abençoar, quem sabe também
partilhar justamente?

A convocação nos remete a pensarmos numa assembleia em


que todo o povo deve comparecer. O texto também silencia se isso
significa somente os homens ou incluía mulheres e crianças.

Segundo o que já conhecemos nos textos veterotestamentários,


mulheres e crianças não são contados, vide o texto da libertação do
Egito. Então, se pudermos pegar isso como certo padrão narrativo em
Israel, os que compareceram ao sorteio seriam apenas homens.

Dissemos noutro momento, com o apoio da ciência


antropológica, que o presentear alguém no mundo antigo significava
manter fortes laços com essa pessoa. O que, no caso dos vadios,
simbolizou para Saul uma forte rejeição de sua pessoa como rei de Israel.

2. Interdiscursividade

Informamos que, segundo o Método Sêmio-Discursivo,


o mundo do texto está acima do chão da vida. Isto é, analisando as

162 | Exegese do Antigo Testamento


informações do texto temos um tipo de aproximação com a realidade
social de certo momento em Israel.

As narrativas nos aproximam daquele chão da vida, mas jamais


poderão no revelar uma verdade autêntica da realidade de uma época. Elas
são insuficientes. Abordamos problemas como: Por que Saul se escondeu?

Como era realizado o sorteio? Consultaram a Iahweh de que


forma? Os vadios são de qual tribo e clã? Mulheres e crianças estavam
presentes ou era assunto de homens?

E pode ser que inúmeras outras questões surjam ao longo da


percepção de cada um de vocês em relação às narrativas sagradas. No
entanto, com o auxílio de material teológico e de outras disciplinas,
podemos nesse sentido “ajudar”, dar uma “mão” ao texto desejando
conhecer um pouco mais do tempo e dos conflitos existentes que nele
são revelados a nós.

Ao longo dos passos exegéticos desse método já acenamos para


algumas questões que nos aproximam de realidade daquele tempo, chão
da vida, informado aproximadamente pela narrativa, até mesmo quando
lemos a seção, isto é, os livros de Samuel e Reis, novas situações vão
sendo reveladas, nisso temos um vislumbre das tensões ocasionadas pela
instituição da monarquia em Israel.

O pressuposto dessa determinação é a hipótese de que todo o


texto está ligado de alguma forma a circunstâncias culturais,
sociais, econômicas, políticas e religiosas. Não há textos de
tal modo neutros que não acusem suas “intenções” de modo
muito concreto. (YOFRE (coord.), 2000, p. 103).

O que chamamos continuamente de chão da vida, contexto,


situação sociocultural ou situação literária, pesquisado pela escola
crítica alemã como, Sitz im Leben ou Sitz in der Literatur, conforme
indicado respectivamente pelos termos grifados.

Mais uma vez informamos que tal análise se ajusta


perfeitamente às tensões que encontramos em nossa narrativa, contudo,

Exegese do Antigo Testamento | 163


essa não é uma característica particular (sui generis) da perícope
escolhida, uma leitura atenta nas variadas perícopes, fará com que tais
elementos surjam ao longo da narrativa.

Para reforçar definitivamente tais questões de elementos


socioculturais nas perícopes, fornecidas pelas Bíblias ou construídas por
nós, segue a reflexão abaixo:

O universo do texto é um conjunto das circunstâncias


do mundo extrabíblico (momento histórico-político,
situação econômica e social, tendências religiosas e
culturais) que ajudam a entender seu significado e
intenção. Por exemplo, a interpretação da vocação do
profeta Isaías (Is 6) deve levar em conta não só o
horizonte e o gênero literário (relatos de vocação) mas
também o momento histórico e cultural em que ocorre:
a morte do rei Ozias depois de longo reinado
distinguido pelo sucesso. O conhecimento do universo
do texto não se atinge somente a partir do texto sob
análise, mas também requer conhecimento da história
política, religiosa e institucional do Antigo (e do Novo)
Testamento(s). Esse conhecimento exige
familiaridade com os diversos textos da Bíblia e do
mundo antigo, e alcança-se mediante bibliografia
secundária (estudos monográficos sobre problemas
históricos, culturais, econômicos etc.). (YOFRE
(coord.), 2000, p. 103).

Nesse sentido, buscando o chão da vida, daquele povo de


Israel nas pistas dadas por nossa narrativa, podemos reforçar as
seguintes questões:

• as tensões parecem indicar um momento social em Israel


de insegurança;
• desejar um rei como em outras nações nos aproxima da
ideia de messias, isto é, um salvador humano. Já dissemos
que o texto nos apresenta as características físicas de Saul;
• um rei sendo apresentado com estatura acima de todo o

164 | Exegese do Antigo Testamento


povo, o quão exagerado isso possa parecer, quer nos dizer
alguma coisa;
• que Saul deveria atender a certa expectativa desse povo que
o apoiava, messias para uns e decepção para outros.
• salvação mediante os problemas causados pelos filisteus,
ameaça de morte ou perda da terra, que no mundo antigo
significa perder a identidade perante os outros povos.

A partir desses dados podemos mais uma vez compreender que


o povo, ainda que dividido naquele tempo, deseja para si um libertador
ou salvador. Cada grupo procura por alguém que vá atender aos seus
interesses. Israel com o movimento monárquico vai perdendo o seu
sentido de comunidade, a união tribal está seriamente ameaçada.

A literatura teológica no qual nos apoiamos (vide bibliografia),


vai apontar que é o gado graúdo que ameaça a unidade das tribos de
Iahweh. Mas um problema que está relacionado à partilha.

Gado necessita de grandes pastos, o que mata definitivamente a


fertilidade do solo. Nem todos poderiam adquirir cabeças de gado, pois
é dispendioso. Somente alguns em meio ao povo, ao que nos parece
poderiam ter alguma criação.

Nesse sentido, a maioria do povo está ameaçada, pois a tão


sonhada e conquistada terra prometida, que mana leite e mel, isto é,
extremamente fértil, vai se tornando terra da desgraça pela ganância
humana. Temos então uma tensão em meio às tribos de Iahweh que nos
remete à sobrevivência do povo.

Pode ser que nem todos desejassem um soberano humano, a


rejeição de Saul pode significar, para determinado grupo (os vadios?),
a quebra da partilha instituída por um sistema fundamentado no apoio
mútuo entre as tribos, conforme determinado pelo próprio Iahweh,
segundo as Leis mosaicas.

De qualquer maneira a proposta do texto de 1Sm 10,17-27 é


de cunho inteiramente crítico, o texto não deseja apoiar nenhum grupo
em particular, nesse sentido não nos parece um relato tendencioso. O

Exegese do Antigo Testamento | 165


texto deseja informar que há realmente em Israel uma tensão em meio
às tribos de Iahweh.

A partir das definições e observações a respeito daquilo que o


texto nos informa, na tentativa de aproximação daquele chão da vida,
podemos ousar um pouco e buscarmos uma reserva de sentido para os
nossos dias.

Vivemos tempos de muita tensão em nossa sociedade, chegamos


a dizer mesmo que ela está dividida. Os grupos sociais, em suas relações
polêmicas entre si, buscam constantemente pelo seu messias.

Desejam um libertador ou um líder que venha a promover


e sustentar as ideias do seu grupo. Sendo assim, o contrato nunca é
positivo em relação ao todo, pois as relações sociais são sempre tensas.

Nosso povo brasileiro espera por um messias humano, os


mais necessitados e também os mais abastados almejam por um
messias, contudo político, que vá atender suas necessidades ou que dê
continuidade à sua estrutura de poder dominante perante à sociedade.

Para nós o messias verdadeiro é Jesus de Nazaré, Nele é que


podemos observar o comportamento, no qual desejava a implementação
da justiça do Pai, Nele mesmo, como fiel representante do Seu Reino
aqui entre nós.

A pergunta hoje ainda persiste em meio aos pobres e


desesperados em nossa sociedade, quem poderá salvar-nos?

Será que alguém poderá lutar por eles (nós?) e, combater a


favor de nossa causa? As causas são muitas, espera-se por alguém que
trará paz, habitação, segurança, saúde, alimentos.

Como cristãos não podemos nos fechar em sentimentos


particulares desejando apenas que as nossas vontades, do nosso grupo,
sejam atendidas. E os outros como farão? Entregues à própria sorte?

O Reino de Deus deveria ser representado por cada um de


nós, porém como uma sociedade dita cristã, que a cada 10 anos o

166 | Exegese do Antigo Testamento


IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), nos informa o
crescimento vertiginoso de evangélicos a passos largos no Brasil, pode
estar indiferente a tais aspectos tão fundamentais, socioculturais, em
meio às próprias narrativas sagradas e, que se reproduzem atualmente?

Se colocarmos os católicos como representantes desse Jesus


Cristo junto a nós, a vergonha é ainda maior, pois há uma constatação,
a saber, de que a sociedade brasileira, de grande maioria assim cristã,
não é transformada pelo testemunho de Jesus Cristo em nós, para onde
estamos caminhando? Somos realmente testemunhas vivas Dele? A que

Deus adoramos?

Exegese do Antigo Testamento | 167


Síntese
Nesta unidade procuramos dar continuidade aos passos
exegéticos direcionados pela Metodologia Sêmio-Discursiva, aqui
tratamos da narratividade, que diferente da narrativa, procura
compreender as alterações dos comportamentos dos sujeitos conforme
informados pelo texto.

Vale lembrar que “o estudo da narração deveria iniciar-se com


o exame de sua construção gramatical e mais especialmente das formas
verbais. Os verbos são, com efeito, os “motores” da narração. (YOFRE
(coord.), 2000, p. 130).

Num segundo momento de nossa unidade literária,


procuramos observar melhor os aspectos interdiscursivos na perícope
escolhida para aplicarmos os passos determinados e, nesse sentido, nos
deparamos com a possibilidade de descoberta do mundo, chão da vida,
representado pelo texto de forma análoga à realidade de um tempo.

Salientamos a importância de aspectos relacionados à


pesquisa com auxílio de outras áreas do conhecimento humano,
além evidentemente da teologia bíblica veterotestamentária, a
história, antropologia, arqueologia etc., tais materiais nos auxiliam a
aproximação dos tempos bíblicos, Israel e seus vizinhos.

Por fim, chamamos à responsabilidade os rotulados cristãos


evangélicos brasileiros, fazendo certo paralelo das tensões encontradas
nas narrativas, nossos deveres e obrigações como representantes da
justiça divina na ética do Reino do Pai aqui em solo tupiniquim.

Exegese do Antigo Testamento | 169


Referências
VV. AA. Dicionário Hebraico-Português e Aramaico-Português. 14
ed. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 2002.

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ZABATIERO, Júlio. Manual de exegese. São Paulo: Hagnos, 2007.

Exegese do Antigo Testamento | 173


O Psicossocial e o Missional
Objetivos
Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de:

1. Compreender o que é o psicossocial da ação e o missional


da ação;
2. Identificar no mundo do texto as palavras que remetem a
esses termos;
3. Trabalhar esses conceitos dentro de suas perícopes;
4. Compreender que os personagens no texto também são
dotados de sentimentos ou paixões.

Exegese do Antigo Testamento | 175


1. O Psicossocial e o Missional
Nesta unidade de aprendizagem trabalharemos em nosso Método
Exegético Sêmio-Discursivo os aspectos psicossociais da ação e o missional
da ação. Esses dois pontos que serão apresentados foram retirados do
Manual de Exegese, do professor Júlio Zabatiero, conforme bibliografia.

Mais uma vez, ressaltamos a necessidade da compreensão de que


a metodologia sêmiodiscursiva se orienta pelos elementos apresentados
no texto, personagens, tempo, espaço etc. Ou seja, considerando tal
metodologia apresentada, as narrativas procuram nos orientar para certo
contexto ou mundo da vida.

Isso não quer dizer que tais narrativas representem fielmente


a realidade, pois já compreendemos que esse não é o objetivo do
método proposto, porque tudo o que ele objetiva é o mundo do texto,
das narrativas.

O texto, assim, aproxima-nos do contexto de vida daquele povo,


isso porque a palavra escrita se distancia, em seus relatos, dos eventos
ocorridos numa determinada cultura. Não é possível uma aproximação fiel
entre relatos textuais e eventos ocorridos. Como nos informa o personagem
de Antônio Biá, na produção cinematográfica brasileira Narradores de Javé
(2004), “uma coisa é o fato acontecido e outra coisa é o fato escrito”.

1.1 O Psicossocial da ação

Os sujeitos ou personagens que a compõem a narrativa


possuem sentimentos em meio a ações dentro das perícopes. Isto é, a
todo tempo os sujeitos textuais constroem relações uns com os outros,

Exegese do Antigo Testamento | 177


sejam as mesmas em forma de tensão ou de maneira contratual, isto é,
em concordância.

Pode parecer que os sentimentos ou paixões são motivados


como escolhas pessoais, que os sujeitos não sofrem influências
externas (mundo da vida) quanto às suas preferências, no entanto, as
coisas não são bem assim.

Mesmo no mundo do texto os personagens nos sãos


apresentados com suas paixões, mas esses sentimentos não são puros
de determinado personagem ou indivíduo; paixões ou sentimentos
são construídos também por motivações externas, ou melhor,
socioculturais.

Nós mesmos, a todo tempo, somos influenciados por fatores


externos da vida social. É verdade que hoje há uma infinidade de
grupos sociais que desejam ser escutados em suas exigências.

Nesse sentido, sejam em pequenos grupos ou grupos maiores


na divisão social, sempre somos influenciados por certo tipo de
pensamento político-econômico, religioso etc.

Pensar o psicossocial da ação é concentrar nossos esforços


nos personagens textuais em suas relações de paixões uns com os
outros, ou mesmo de maneira individual, porém, compreendendo
a ação externa do contexto, influenciando diretamente os sujeitos
textuais em suas escolhas.

Buscaremos em nossa perícope a chave, as ações ou questões


psicossociais relacionadas aos sujeitos textuais em suas paixões
conforme apresentadas pelo próprio texto.

17-Samuel convocou o povo a Iahweh em Masfa, 18-e


disse aos israelitas: “Assim diz Iahweh, o Deus de Israel:
Eu fiz Israel subir do Egito e vos libertei da mão do Egito
e de todos os reinos que vos oprimiam. 19 - Vós hoje, no
entanto, rejeitastes o vosso Deus, aquele que vos salvava
de todos os vossos males e de todas as angústias que vos

178 | Exegese do Antigo Testamento


afligiam, e lhe dissestes: ‘Constitui sobre nós um rei!’
Agora, pois, comparecerei diante de Iahweh por tribos e
clãs”.
20- Samuel mandou que se apresentassem todas as tribos
de Israel e, tirada a sorte, foi escolhida a de Benjamim.
21-Mandou que a tribo de Benjamim se aproximasse,
dividida por clãs, e o clã de Metri foi sorteado. Mandou
então que se aproximasse o clã de Metri, homem por
homem. Depois Saul, filho de Cis, foi apontado no sorteio.
Procuraram-no, mas não o encontraram. 22 -Consultaram
então a Iahweh: “Algum outro veio para cá?” E Iahweh
respondeu: “Está ali, escondido no meio das bagagens.”
23 -Correram a buscá-lo, e ele se apresentou no meio
do povo: dos ombros para cima sobressaía a todo o
povo. 24 -Samuel disse a todo o povo: “Vedes agora a
quem Iahweh escolheu? Não há quem se lhe compare
entre todo o povo”. Então todo o povo gritou: “Viva
o rei!”. 25- Samuel expôs ao povo o direito da realeza
e o escreveu no livro, que depôs diante de Iahweh. Em
seguida, despediu todo o povo, cada um para sua casa.
26- Saul também retornou com ele a Gabaá, e foram com
ele os valentes cujo coração Deus tocara.
27- Os vadios, porém, disseram: “Como poderá esse
salvarnos?, e o desprezaram e não lhe levaram presentes,
mas ele guardou silêncio. (1Sm 10,17-27. BÍBLIA DE
JERUSALÉM).

Para que o aspecto do psicossocial seja melhor


compreendido em nosso exercício, utilizaremos apenas certa parte da
perícope acima, contudo, a unidade literária em sua integralidade é
fundamental para uma melhor percepção dos personagens envolvidos
entre si, mas também relacionando-os às questões do contexto ou do
mundo da vida, conforme apresentados sempre no texto.

Vamos trabalhar o psicossocial da ação nas relações entre os


sujeitos na narrativa acima, segundo os versos que estão em negrito,
ou seja, do 24 ao 27.

Exegese do Antigo Testamento | 179


A narrativa nos revela as paixões, expectativas, sentimentos dos
personagens envolvidos com a trama, conforme nos foi apresentado pelo
mundo da narrativa ou mundo do texto. Temos as relações sentimentais
ou as paixões que relacionam os seguintes personagens:

• Samuel; Iahweh; povo; Saul; valentes tocados por Deus e,


por fim, os vadios descrentes nas atitudes do novo rei.

No mundo da vida, assim como no mundo do texto, as


personagens, ou algumas delas, são levadas a desejar alguns objetos
de valor, isto é, somos sujeitos sociais e, em nossas relações ou nas
relações das narrativas, há de forma transparente os desejos que tais
personagens almejam para suas vidas.

Numa narrativa recheada de tensões, como a apresentada


acima, temos alguns grupos que expõem claramente os seus
sentimentos ou suas paixões por determinados objetos, lá são os desejos
que tais grupos buscam a todo custo.

Na narrativa acima, selecionada dentro de nossa unidade


literária, as paixões estão situadas em conquistas ou melhorias de vida,
mas que cada grupo as imagina a partir de suas próprias compreensões
de influência dada por seus contextos próprios de vida, conforme
apresentados na narrativa.

A narrativa nos apresenta algumas tensões já observadas, já


que não é todo o povo que grita “Viva o rei!”, pois os vadios, que são
parte deste mesmo povo, não observam a vida segundo os mesmos
objetos de valor do grupo que desejou o rei.

Os interesses, como em qualquer mundo da vida, nas


narrativas e fora delas também, são distintos. Uns desejam um modelo
de vida mais simples, mais seguro, isto é, a narrativa revela que os
objetos de valor ou de desejo dos rotulados vadios são na verdade
paixões por uma continuidade de vida mais segura.

Os vadios, ao recusarem Saul como rei, veem que sua regra de


vida, seu mundo da vida está seriamente ameaçado, não só pelo novo
rei, mas pela instituição de um modelo, sistema social monárquico,

180 | Exegese do Antigo Testamento


que, como já sabemos ao longo da História de Israel, informada pelas
narrativas veterotestamentárias, não realizou por inteiro as paixões
desse grupo social.

Observamos em outros momentos que os vadios estão


diretamente relacionados com o rótulo pejorativo dado naquele tempo a
todos aqueles que não possuíam terra ou reconhecimento como povo a
partir de outras nações.

Os habirus ou hapirus, os pobres daquele tempo histórico


revelados pelas narrativas sagradas, são esses vadios do texto de 1Sm.
Para ficar mais claro, observe o pequeno texto a seguir:

Davi partiu dali e se refugiou na caverna de Odolam. Os


seus irmãos e toda sua família souberam disso e desceram
ali para estar com ele. Todos os que se achavam em
dificuldades, todos os endividados, todos os descontentes
se reuniram ao seu redor, e o fizeram seu chefe. Ele reuniu
assim cerca de quatrocentos homens (1Sm 22, 1-2. BÍBLIA
DE JERUSALÉM).

As palavras grifadas, aliás, nem seria preciso, pois a narrativa é


bem clara em relação ao grupo que se uniu em torno de Davi fazendo-o
seu chefe, nos apresentam as crises e angústias desse grupo.

Esses são os habirus que já se manifestavam na coroação de


Saul. Não que fossem as mesmas pessoas da narrativa de 1Sm (10,17-27),
mas a pobreza, a injustiça foram muito comuns em todo Antigo Oriente.

A versão da Bíblia de Jerusalém intitula a perícope acima


como “Davi, chefe de bando”. Foram assinaladas, no texto acima,
as características de habirus e vadios, sem esperança; endividados;
descontentes, isto é, aspectos comuns de ontem e de hoje.

O mais interessante da narrativa é que esses 400 homens,


sem contar mulheres e crianças, foram os que viram em Davi
um semelhante, pois o momento de Davi era crítico, perseguido
constantemente por Saul, como fugitivo buscando preservar sua própria

Exegese do Antigo Testamento | 181


vida. O segundo rei de Israel deveria estar num estado deplorável, assim
se assemelhando aos habirus.

Assim, a perícope, o mundo do texto, também nos revela


alguns aspectos bem reais de um tempo no Antigo Oriente, mais
especificamente em Israel. A pobreza foi uma realidade, o desejo dos
vadios/habirus era por um rei ou soberano humano que contemplasse
os seus objetos de valor ou suas paixões.

Da mesma forma, procederam aqueles que gritaram “Viva o


Rei!”, os tais possuíam interesses ou paixões bem diferentes dos vadios.
Já dissemos que a narratologia espera a participação do leitor, a fim de
completar as lacunas existentes nas perícopes. Não seria diferente com
as narrativas sagradas.

Os manuais técnicos nos ajudam a vislumbrar certo contexto


da História de Israel. Nesse sentido, salientamos a chegada do gado
graúdo em Israel, deixando a terra estéril (gado necessita de pasto),
promessa do próprio Iahweh ao povo, suas tribos, como sustento
contínuo por gerações.

Sendo assim, as paixões de certo grupo estavam concentradas


no acúmulo de riquezas direcionadas às cabeças de gado. Suas
expectativas estavam em torno da coroação de Saul.

Nesse sentido, podemos concluir, segundo a perícope


apresentada de 1Sm (10,17-27), os seguintes aspectos passionais
relacionados aos dois grupos acima:

• Tensões entre grupos nas narrativas sagradas;


• Nem todos possuem os mesmos objetos de valor;
• As paixões determinam a maneira de agir desses grupos;
• Os grupos depositam sua segurança em homens ou nas
relações entre si;
• Os valentes mencionados pelo texto e, que seguiram
Saul, podem fazer perfeitamente parte desse grupo que o
apoiou, evidente que com interesses (paixões) particulares,
objetivando sonhos de vida a ser realizados.

182 | Exegese do Antigo Testamento


Outros personagens e suas relações uns com os outros,
segundo suas paixões, foram deixados fora da análise, porém o que já
realizamos deixa de forma clara como no texto podemos observar tais
questões, que embora possam não apresentar uma realidade da vida de
forma fiel, ao menos nos aproxima do real mundo da vida daqueles
homens e mulheres de Israel.

Fica como dica para exercício a ser praticado, as relações


passionais entre:

• Samuel e Iahweh;
• Samuel e Saul;
• Saul e Iahweh;
• Saul e Samuel.

As dicas acima não são as únicas, há outras relações passionais


que podem ser encontradas em nossa perícope chave. Nota-se que nada
foi feito em relação às relações que partem do povo em direção a Iahweh.

Embora elas não sejam explícitas, mas sim implícitas, podem


ser observadas com criatividade e, levando em conta o arco narrativo, da
mesma maneira que se deve considerar toda a seção, ou seja, toda a obra
do livro, 1Sm + 2Sm.

Assim teremos uma base maior de trabalho, considerando


as relações de homens e mulheres (povo), reis, rainhas, príncipes e
princesas (toda a corte), em suas relações passionais com Iahweh, mas,
também, as palavras de Iahweh destinadas ao profetismo.

1.2 O Missional da Ação

Atente-se para a seguinte citação:

[...] o leitor, ao ler, atualiza o texto e o seu sentido de acordo


ou não com suas expectativas e previsões advindas de sua
competência linguística e cultural. Mas o texto também
procura e cria o seu leitor: ele o inventa o mais próximo

Exegese do Antigo Testamento | 183


possível da linguagem, na sua substância e nas suas formas,
suscitando a dúvida, a inquietude e a surpresa. Por meio da
diversidade dos modos de crença que a leitura propõe, eis que
se reencontram, invertidas, a experiência sensível da língua e
a experiência cultural do mundo (ZABATIERO, 2007 apud
BERTRAND, 2003, p. 149).

Ao lermos determinado texto, em nosso caso principalmente


as narrativas sagradas, fazemos uso da reserva de sentido dessas
narrativas. Em certos casos, até mesmo de maneira não tão consciente,
da utilização de tais reservas de sentido.

Mas há também uma outra questão: as narrativas sagradas


nos interpelam constantemente. Somos a todo tempo, ao ler os
textos sagrados, pressionados a dar respostas em relação às inúmeras
indagações que o mesmo faz a todos nós.

Por isso, é comum que nem todos aceitem as propostas


ou obrigações que as narrativas nos impõem.Alguns preferem a
saída mais fácil, isto é, pular as narrativas mais claras em relação às
nossas obrigações práticas perante a vida, principalmente quando tais
obrigações apontam para um esvaziamento do nosso ser em prol do
outro (cf. Fl 2,6-11).

Nesse último ponto de nossa análise, segundo a metodologia


exegéticohermenêutica sêmio-discursiva, atentamos para o aspecto da
missão, não de maneira técnica (manualística), mas como função e
obrigação de todo ser cristão.

Como relatado acima, todas as narrativas sagradas nos


interpelam, exigem de nós muitas atitudes práticas, que constantemente
se chocam com nossa forma de ver o mundo, a partir de nossa cultura e
contexto de vida.

No entanto, é necessário dialogar a todo tempo com nossas


convicções, verdades adquiridas ao longo de nossa existência e, o mundo
da vida bíblico, apresentado pelos textos sagrados. Para que até mesmo
nossas convicções sejam suspensas (epoché).

184 | Exegese do Antigo Testamento


Portanto, a reserva de sentido encontrada nos textos sagrados
deve apresentar atitudes práticas ao nosso cotidiano. É esse o aspecto
missional apresentado nesse último momento de nossas análises, isto
é, todos os passos dados até o momento devem corroborar para uma
reserva de sentido textual que seja prática.

Segundo Zabatiero (2007, p.146),

Em linguagem sêmio-discursiva, podemos dizer que nesse


ciclo agimos especialmente como coenunciadores do texto,
usando a imaginação criativa, reescrevendo o texto para nossa
realidade, nosso mundo-da-vida. E procuramos fazer isso de
forma integral, apropriando-nos dos sentidos do texto em
suas dimensões pragmáticas (do fazer), cognitiva (do saber) e
patêmica (do sentir).

Em termos teológicos: relemos o texto em perspectiva


missional, que inclui as dimensões da teologia e da espiritualidade. Essa
nossa coparticipação junto às narrativas é justamente o preenchimento
das lacunas nas narrativas, tanto aquelas que estão lá no texto, as quais
muitas vezes não encontramos o desfecho, como aquele preenchimento
para nosso contexto de vida, buscando respostas e alternativas pautadas
no arco narrativo nas perícopes da Palavra de Deus.

Segundo nossa perícope chave, destacaremos alguns ponto


fundamentais para o aspecto missional:

1. Um resumo de nossa perícope;


2. Paralelo entre a narrativa e nosso mundo da vida;
3. Apresentar o texto gerando sentido para o nosso mundo
da vida;
4. Promover ações práticas passionais relevantes para hoje,
contudo em conformidade com os atos apresentados pela
narrativa apreciada.

a) A narrativa de 1Sm (10,17-27), isto é, nossa perícope,


nos apresenta já num primeiro instante uma tensão, na relação
estremecida entre Samuel/Iahweh e o povo de Israel que insiste num
soberano humano.

Exegese do Antigo Testamento | 185


Samuel irá apresentar, diante da assembleia, todos os feitos
de Iahweh, a fim de que as tribos por lá reunidas compreendam sua
escolha por um soberano humano, abrindo assim mão de um governo
direto de Iahweh (teocracia), pela inconstância de um homem no
governo do povo.

Como que pressionado pelo povo não há mais nada a se fazer,


pois o coração deles já não se voltará para Iahweh. Resta a Samuel a
execução do sorteio, prática comum naqueles tempos.

O sorteio aponta para a tribo de Benjamim que se apresenta


em clãs, sendo que um desses clãs, o de Metri, foi sorteado. Após se
apresentarem todos os homens deste clã Saul é o escolhido.

Nos parece certo paralelo com a narrativa da escolha de Davi,


pois Saul estava escondido, nos leva a crer então que, após passar
homem por homem do clã de Metri, nenhum deles foi entendido como
capaz, ou contemplado no sorteio.

Consulta-se a Iahweh e, então Saul é encontrado, pois estava


escondido em meio às bagagens? Aqui, mais um indício da participação
necessária do leitor, pois, por que estava Saul escondido? Temeroso de
quê? Não desejava tal responsabilidade? Não se sentia preparado?

É apresentado em meio ao povo, de maneira que se destacava


em relação a qualquer um deles, isto é, em seu porte físico, um
verdadeiro guerreiro. Samuel afirma que este é o escolhido de Iahweh, e
reforça que ninguém em meio ao povo pode ser comparado a ele, isto é,
mais uma vez relacionado ao seu porte físico.

A narrativa nos apresenta que todo o povo se alegrou com tal


escolha, porém algo de inesperado irá acontecer mais à frente. Enquanto
isso, Samuel expõe ao povo todos os direitos da realeza e os escreve num
livro que põe diante de Iahweh. No santuário?

Samuel despede o povo, cada um retorna à sua tribo. Saul


vai com ele em direção à Gabaá mais os valentes a quem Deus tocara.
No entanto, surgem os vadios que questionam a escolha de Saul e,

186 | Exegese do Antigo Testamento


por isso, não lhe entregam presentes. Saul então guarda silêncio em
relação aos tais.

b) Tanto lá como cá, há inúmeros interesses em algumas


figuras humanas que podem vir a nos representar, portanto, as aflições
daquele povo também se comparam às nossas atualmente.

Hoje não temos mais o sorteio para a escolha de determinado


homem ou mulher para a representação de determinados grupos sociais.
Vivemos numa democracia que, embora o voto nos seja obrigatório, é
o meio que temos para exercer nosso direito de escolha direcionado a
homens e mulheres, a fim de nos representar nasquestões políticas.

Atualmente também há inúmeras tensões, pois muitos grupos


sociais questionam muitos políticos, embora eleitos pelo voto popular,
suas atitudes geralmente não correspondem aos anseios das massas.

c) Precisamos de representantes que possam agir em prol


de todos e não privilegiando certos setores de nossa sociedade. Numa
sociedade como a nossa, que em sua maioria se entende como cristã, a
luz de Cristo e do seu Reino deveria estar mais presente.

Se todo político é também um cidadão, deveria este fazer valer


os princípios éticos do Reino de Deus, caso seja cristão. Não podemos
nos conformar é com as atitudes que estão à margem da ética anunciada
pelo homem de Nazaré.

A atitude dos pobres de ontem e hoje deve estar voltada para


a prática da justiça, exigindo também que suas questões sejam ouvidas,
aliás, fato comum em todo o Primeiro Testamento quando as narrativas
estão relacionadas aos necessitados.

Isto é, os pobres sabem de alguma forma quando suas exigências


não estão sendo ouvidas. O que lhes falta é uma liderança que venha a dar
ouvidos às suas exigências, fazendo valer-lhe seus direitos.

O que menos necessitamos são de vozes que deem ouvidos


apenas a uma das partes. No caso paralelo à nossa narrativa, direitos

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somente contemplados aos que já possuem de tudo, pois são esses,
inclusive revelado por nossa própria história, que são os que mais
oprimem os fracos até hoje.

d) Nossas comunidades religiosas devem promover discussões a


respeito de política e sociedade, sem promover determinado político e seu
partido. Homens e mulheres são seres políticos, mas é preciso despertar
tal condição em algumas pessoas, principalmente no setor mais humilde
da população.

Esses mais humildes em nossa sociedade padecem com a


ausência de muitos bens materiais minimamente necessários às suas vidas.
É preciso então que nossas assembleias discutam sobre o que é cidadania,
coisa nem sempre possível de se contemplar nas narrativas sagradas.

Por lá a religião judaica se mistura ao conceito de direitos e


deveres do povo, o que entendemos hoje por cidadania. As narrativas
sagradas, nesse sentido, tem muito a nos ensinar. O temor a Deus deveria
ser entre nós, hoje, o princípio de toda a sabedoria, mas parece que
ultimamente a humanidade não anda tão assim no temor a Deus.

A narrativa nos mostra que devemos em nossas decisões


sempre optar em ouvir os desígnios de Deus antes de qualquer decisão
a ser tomada. Homens e mulheres tendem a ser levados pelo calor do
momento, o que ocasiona atitudes afoitas em situações que podem
prejudicá-los por toda uma vida.

188 | Exegese do Antigo Testamento


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190 | Exegese do Antigo Testamento

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