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________________Notas de Aula ERU-451 professor Marcelo Romarco – UFV-DER

UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA


DEPART AMENT O DE ECONOMIA RURAL
ERU- 451 Exte nsã o Rura l

Marcelo Leles Romarco de Oliveira1

“Não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes”


Pa u lo F r e ire

Texto Debate 06: Te or ia pe da gógic a e Ext e nsã o Rura l Par te 02: Br eve Conce pçã o
Cr ít ic o Soc ia l

Introdução

A crise ambiental pela qual a sociedade passa exige novas formas de intervenção, nos diferentes
espaços que vivemos. E, no caso do universo rural, não seria diferente, pois mudanças climáticas,
degradação dos solos, diminuição da disponibilidade de água trazem com urgência a necessidade de
um sistema sustentável. Portanto, urge a necessidade de buscar, por exemplo, alternativas
pedagógicas e metodológicas que possam contribuir para mitigar essa situação. Neste caso, os
serviços de Extensão Rural precisam ficar atentos a essas demandas.

Neste sentido, como vimos em notas anteriores, o processo de desenvolvimento voltado para a
modernização do campo brasileiro, apesar de ter contribuído para o aumento da produtividade e
consequentemente do aumento da oferta de alimentos, não deu conta de romper com as lacunas
estruturais da sociedade brasileira. Apresentado de outra maneira, essa modernização não acabou
com a pobreza, promoveu a desigualdade, não interveio nas condições de monopólio e concentração
da terra e ainda tem se mostrado ambientalmente insustentável.

Essas observações, da transformação do rural brasileiro já eram sentidas ainda na década de 1970
do século passado. Durante esse período, algumas organizações como as não governamentais
fundamentadas nas obras de Paulo Freire2 já procuravam desenvolver metodologias participativas
como instrumento pedagógico para orientação de programas e projetos no campo voltados para os
segmentos sociais colocados à margem do período modernizador do campo.

Nesse contexto, o livro de Freire Extensão ou Comunicação? É considerado uma grande


contribuição para o debate da fase da extensão denominada Humanismo Crítico (1980 – 1989). Nesta

1Doutor em Ciências Sociais com ênfase em Desenvolvimento e Sociedade e Agricultura (CPDA-UFRRJ). Professor
do Departamento de Economia Rural da Universidade Federal de Viçosa.
2Paulo Reglus Neves Freire ou simplesmente Paulo Freire, nascido em Pernambuco em 1921, falecido em 1997, foi
um Educador voltado para a pedagogia da Educação Popular, crítico do modelo de extensão rural imposto no país,
escreveu o livro em 1971 Extensão Ou Comunicação? No qual fazia duras críticas aos serviços de Extensão Rural na
América Latina e Brasil.

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obra, Freire procura questionar, por exemplo, a semântica do termo extensão como uma ação de
estender algo até alguém, como estender conhecimentos ou técnicas seria algo automático e simples.
Essa percepção simplista para Freire provocaria, na verdade, uma ruptura entre o saber técnico e
saber tradicional. Em outras palavras, esse “estender” seria nada mais e nada menos que uma
invasão cultural provocada pelos serviços de extensão. Que teria como objetivo conquistar e
manipular essas comunidades ou agricultores/as. Nesse cenário, o técnico/a faria o papel de estender
e/ou persuadir agricultores/as a aceitarem uma determinada realidade exógena (vinda de fora), o que
certamente provocaria uma ruptura entre saber técnico dos/as extensionistas e saber empírico dos/as
agricultores/as.

Continuando em suas críticas, Freire aponta para a necessidade desses profissionais procurarem
conhecer a visão de mundo dos/as agricultores/as, pois, para ele, a agricultura estaria em um sistema
de mundo próprio, no qual era preciso ser analisado a totalidade de seus públicos e não apenas as
partes. Por isso, o autor aborda que é indispensável que se forme uma relação educativa que
restabeleça a comunicação e compartilhamento de saber. E, que assim, crie condições para a tomada
de consciência constituidora de sujeitos transformadores de sua realidade (FREIRE, 1987).

Assim, contrapondo a visão de uma educação bancária (conforme visto na nota anterior), foi necessário
repensar na possibilidade da construção de caminhos que fossem alicerçados numa visão que
considerasse as particularidades, o diálogo e conhecimento de cada grupo assistido. Em outras
palavras, a troca de saber entre técnicos/as e agricultores/as, seria o caminho mais aceitável para
esse tipo de intervenção.

É importante destacar que tais reflexões trazidas por Freire, vão servir de orientação para o
estabelecimento da Política Nacional de Extensão Rural, promulgada em janeiro de 2010. Em seu
artigo 3º, III aponta para a necessidade de “Adoção de metodologia participativa, com enfoque
multidisciplinar, interdisciplinar e intercultural, buscando a construção da cidadania e a
democratização da gestão da política pública” (BRASIL, 2022).

Extensão baseada em práticas de Educação libertária: Uma breve introdução ao modelo


Dialógico

Pensando nas contribuições sobre educação libertadora trazida por Freire, podemos entender que
esta forma pedagógica de se fazer extensão partiria do pressuposto de um processo comunicativo,
fundado na problematização, no diálogo e horizontalidade. Sem uma definição de hierarquização do
conhecimento.

Para trazer essa definição é importante apresentar uma passagem do livro de Paulo Freire, no qual:
“O diálogo, como o encontro dos homens para a pronúncia do mundo, é uma condição fundamental
para a sua real humanização” (FREIRE, 1987, p. 134). Assim, essa vertente aponta que a educação
dialógica pressupõe que os seres humanos se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo.

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Isso significa dizer que a interação é necessária para que se concretize a educação e a aprendizagem
e uma possível adoção de uma nova técnica ou tecnologia.

Essa visão na Extensão Rural leva a refletir que na Educação Libertadora, o/a extensionista não só
educa, mas enquanto educa é EDUCADO. Portanto, toda construção do conhecimento é
reconstrução do conhecimento. “Conhecimento não se transmite, se constrói” (PAULO FREIRE,
1987).

Mas a partir daí podemos afirmar que a Educação como forma de libertação pressupõe o respeito
aos conhecimentos prévios dos/as agricultores/as. Considerando, portanto, que o/a extensionista
deverá respeitar não só os saberes técnicos, mas também, os saberes humanos, culturais, sociais e
ambientais que contribuam para impulsionar o desenvolvimento.

Em trabalhos realizados para Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
(FAO), por Blum e Sulaiman (2020) vão referendar essa posição mais integrativa e/ou holística para
os processos de intervenção dos serviços de Ater. Dito de outra forma, na visão dos autores, os
serviços de Ater para além da transferência tecnologia, focada no aumento da produção, eles
precisam contemplar outras ações tais como: mobilização comunitária, gestão de conflitos,
resolução de problemas, educação e desenvolvimento humano. Sendo importante considerar o
contexto local e o conhecimento empírico do público assistido pela intervenção. Haja vista que as
realidades de um grupo, comunidade ou até mesmo países são distintas, como, por exemplo, as
relações estabelecidas com os sistemas agrícolas, se diferem de região para região. Desta forma,
é quase impossível ter uma abordagem universal. Por isso, a necessidade da valorização dos
contextos, bem como os saberes dos diferentes agricultores/as, com os outros, com a terra, com o
sistema produtivo, o diálogo e justiça social entre mulheres e homens, entre raças, etnias e
gerações.

Dessa forma, é possível destacar que nos últimos anos as ações voltadas para a extensão têm
procurado privilegiar a participação das comunidades com o intuito de colocar em curso um processo
educativo de articulação que possibilitasse a comunidade de exercer a cidadania através da
participação. Para isso, têm sido adotadas diversas ferramentas e técnicas de animação e dinâmica
de grupo que procuram estimular a participação e a interação da comunidade com os agentes de
desenvolvimento. Dito de outra forma, é uma perspectiva que ficou conhecida como interacionista
dialógica, ou seja, vinculado num processo de interação extensionista-produtor, no qual ambos são
detentores de conhecimento e somente juntos podem protagonizar um verdadeiro processo de
mudança (COELHO, 2014).

Procurando sintetizar essa abordagem que procura valorizar os diferentes conhecimentos, e uma
forma de abordagem mais dialógica, a Figura 01, a seguir, traz um esquema desse processo de
intervenção.

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Figura 01. Perspectiva pedagógica de Ater baseada em uma educação emancipatória proposta por Paulo Freire

Fonte: Elaborado pelo Prof. Marcelo Romarco. Material para a disciplina ERU 451-DER- UFV, 2022.
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De maneira geral, o esquema da Figura 01 nos mostra para a importância do/a extensionista tenha a
sensibilidade de conhecer a comunidade que ele irá trabalhar, buscando compreender seus hábitos,
costumes e saberes. Entendendo que cada comunidade rural e/ os agricultores/as têm suas crenças,
culturas, habitus (BORDIEU, 1989), e sabedoria de todo um conhecimento local, que precisa ser
valorizado, considerado, apreendido e compartilhado.

Sobre o habitus, Bourdieu (1989) descreve que este consistiria em um esquema de percepção e
ação de cada indivíduo, adquirido e formado pela história social de cada um deles e resultante de
um longo processo de aprendizagem formal e informal. O habitus adquirido funcionaria no estado
prático da vida social, permitindo aos seus portadores operar um senso prático da vida, como
esquema de percepção, de apreciação e de ação acionado emdeterminadas situações de suas
vidas.

Assim, para que o/a extensionista, pesquisador/a ou qualquer profissional que exerça ações de
intervenção em áreas rurais possa trabalhar é preciso refletir e valorizar com os grupos a noção de
local e de lugar, pois, é imprescindível conhecer esses detalhes, onde o local pode ser visto como
o centro do mundo para esses grupos. Assim, por práticas cooperativas e associativas o/a
profissional pode contribuir auxiliando os grupos assistidos na identificação dos problemas, objetivos
e na resolução destes.

Nessa linha de raciocínio, autores mais recentes, como Coelho (2014), trazem a importância de
trabalhar com um processo de intervenção que procure o diálogo e contribua para a emancipação
dos atores sociais envolvidos em determinado processo. Contrapondo, assim, a um modelo
extensionista que carrega elementos de uma heteronomia que busca impor aos atores sociais uma
visão de mundo hegemônica, desconsiderando, assim, os costumes e os conhecimentos locais.

Sobre conhecimentos locais, autores da antropologia chamam atenção para importância de se


conhecer e entender as categorias nativas, buscando, por exemplo, entender como são construídas
as relações entre, os agricultores/as entre as comunidades, entre a vizinhança. Nesse sentido,
Gueertz (1997), enaltece a importância de entender o conhecimento ou saber que as populações,
numa determinada comunidade, desenvolveram ao longo do tempo, para poder construir um diálogo
com esses grupos. Suas análises são baseadas nas suas observações de que à cultura e o ambiente
local estão em constante desenvolvimento. Portanto, este conhecimento é usado para sustentar a
comunidade, sua cultura e os recursos genéticos necessários para a sobrevivência contínua da
comunidade.

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Considerações finais

Como vimos ao longo dessa breve nota, a visão de mundo de uma educação libertadora nas práticas
extensionista tem Paulo Freire como seu principal expoente, no qual na sua obra Comunicação ou
Extensão? Procura abordar que um dos principais papéis atribuído a um extensionista é ser um
educador, aprendendo e educando, procurando retratar que o campo possui uma diversidade
sociocultural, que se dá a partir dos povos que nele habitam. Ou seja, são diferentes gerações, etnias,
gêneros, crenças e diferentes modos de trabalhar, de viver, de organizar, de resolver os problemas,
de lutar, de ver o mundo e de residir no campo. Essa perspectiva tem como ponto principal a busca
pela diversidade e pelo diálogo, contribuindo para a emancipação dos atores sociais envolvidos em
determinado processo.

Por fim, é importante concluir que as práticas pedagógicas dialógicas podem ser instrumentos
democratizantes da relação entre técnicos/as (extensionistas) e agricultores/as, contribuindo como
sujeitos empenhados em não reproduzir o autoritarismo das relações de dominação, que
normalmente prevalece. Nesse sentido, que um processo de intervenção que possibilite que tanto
técnicos/as e agricultores/as construam juntos um novo saber, que não mais subjugue os interesses
dos grupos assistidos.

Proposta de atividade a ser desenvolvida:

Vejamos o seguinte cenário hipotético:

A Secretaria de Saúde do município de Aragonita, interior do estado de Minas Gerais, realizou um


diagnóstico nas zonas rurais do município com intuito de identificar os principais problemas relativos
às doenças negligenciadas3 que estão ocorrendo com frequência neste espaço.

Nestas ações foi identificado que em cinco comunidades no qual vivem aproximadamente 400
famílias, os principais problemas ligados à saúde dizem respeito a falta de saneamento (as fossas
utilizadas são aquelas que os dejetos entram em contato diretamente com o solo, o que contamina o
lençol), além disso, a água consumida não recebe nenhum tratamento, vindo de um curso d'água que
nasce no alto da serra e que perpassa por diversas propriedades rurais com grande criação de
pecuária de corte. Assim, nestas comunidades foram identificados, alguns problemas que são
oriundas da água como verminose (Giardíase e Amebíase) e alguns casos de Esquistossomose.

3As doenças negligenciadas ou negligenciadas são um grupo de doenças infecciosas, muitas delas parasitárias, que
afetam principalmente as populações mais pobres e com acesso limitado aos serviços de saúde; especialmente
aqueles que vivem em áreas rurais remotas e em favelas. A prevenção e o controle dessas doenças relacionadas à
pobreza requerem uma abordagem integrada, com ações multissetoriais, iniciativas combinadas e intervenções
econômicas para reduzir o impacto negativo na saúde e no bem-estar social e econômico dos povos das Américas.
(OPAS – OMS)

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Outrossim, foi identificado que no passado a prefeitura tinha contratado uma empresa privada para
desenvolver ações de educação ambiental na maioria dessas comunidades. Entretanto, a forma de
atuação dessa empresa seguiu um modelo de intervenção de verticalizada, não levando em conta a
realidade local. Entre as ações que esta empresa adotou foi a distribuição de filtros de barro e
orientação para ferver a água antes de tomar. E, nas escolas das comunidades e em algumas
propriedades (chamadas de piloto), foram construídas fossas verdes/ciclo de bananeiras, um tipo de
fossa que daria um destino adequado ao esgoto das casas. Mas, como a intervenção foi de cima para
baixo e sem os devidos cuidados com a realidade local, a maioria das famílias não deu
prosseguimento ao modelo levado por tal empresa. O que demonstrou, portanto, que tais ações
fracassaram.

Diante desse cenário, problemas com água e uma intervenção malsucedida, a Secretária de Saúde
criou um Programa denominado “Água tratada é Vida-todos/as devemos participar”. Um dos objetivos
do Programa é sensibilizar através da participação e do diálogo ações que permitam que as
comunidades mudem a sua forma de lidar com esse recurso (água), com intuito de melhorar a saúde
humana e animal.

O programa conta com a parceria de diversas secretarias, entre estas da Secretaria de Agricultura,
que ficou responsável juntamente com os técnicos da Emater local de elaborar um plano de
abordagem que procure mitigar esse problema.

Para isso, vocês deverão elaborar um roteiro de quais os caminhos metodológicos que vocês
acreditam que podem ser possíveis para atender essa demanda.

Referências

BLUM, M.L., COFINI, F., SULAIMAN, R.V. Agricultural extension in transition worldwide: Policies
and strategies for reform. Rome, FAO. 2020.
BRASIL, Lei de ATER 12.188, 11/01/2010. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12188.htm. Capturado em julho de
2022.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro. Editora Bertrand Brasil, S.A, 1989.
COELHO, France Maria Gontijo. A arte das orientações técnicas no campo. Viçosa, Suprema.
2014.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, v. 1,
1990.
FONSECA, Maria Teresa Louza. Extensão Rural: uma educação para o capital. São Paulo,
Edições Loyola, 1985.
FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
GEERTZ, Clifford. O saber local. Petrópolis, RJ, Vozes, 1997.

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