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Hollows 02

Dedicatória

Ao homem que sabe que, em primeiro lugar, vem a cafeina; em segundo, o chocolate;
em terceiro, o romance... e quando devem ser usados
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Capitulo 1
Puxei a alça de tecido grosso com qual eu segurava o recipiente com água
mais para cima e coloquei sobre o ombro, estiquei-me para alcançar com o bico a
planta pendurada. A luz do Sol penetrava na divisão, quente, através do macacão
azul que servia de uniforme. Do outro lado das estreitas janelas de vidro
laminado, abria-se um pequeno pátio rodeado pelos gabinetes VIP. Semicerrando
os olhos — por causa do sol — apertei a torneira da mangueira e um fino fio de
água libertou-se com um silvo.

Ouvi o som súbito de teclas a serem pressionadas e avancei para a planta


seguinte. Uma conversa telefônica chegava até mim, filtrada, vinda do outro lado
da recepção, acompanhada por um riso profundo que se parecia com o ladrar de
um cão. Animalomens. Quanto mais alta a sua posição na hierarquia, mais
humanos conseguiam parecer-se, mas era sempre possível reconhecê-los pelos
risos.

Olhei de relance para a fila de plantas, penduradas em frente às janelas, até


ao enorme aquário atrás da escrivaninha da recepcionista. Sim. Barbatanas de cor
creme. Uma mancha preta do lado direito. Era aquele. O Sr. Ray criava kois1 e, os
exibia na feira anual de peixes de Cincinnati. O vencedor do ano anterior ficava
sempre em exibição no exterior do seu gabinete, mas agora estavam ali dois peixes
e a mascote dos Howlers tinha desaparecido. O Sr. Ray era um Den, um rival da
equipe de basebol de Cincinnati, constituída apenas por Inderlanders. Não era
muito difícil somar dois mais dois e perceber que se tratava do peixe roubado.

— Então... — disse a mulher jovial atrás da escrivaninha, ao mesmo tempo


em que se levantava para colocar um maço de folhas na bandeja da impressora. —
O Mark está de férias? Ele não me disse nada.

1Tipo de peixes para aquário.


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Acenei, sem olhar para a secretária — no seu fino conjunto saia-casaco de


tom creme — enquanto arrastava o equipamento de rega ao longo de mais um
metro. Mark estava passando umas curtas férias na escadaria do edifício em que
tinha trabalhado antes. Tinha-o deixado inconsciente com uma poção "hora de
dormir" de curta duração.

— Si m , m i n h a se n h o ra — a c re sce n t e i , e r g u e n d o a vo z e s i b i l a n d o
ligeiramente. — Mas ele disse-me quais plantas regar — escondi as unhas,
vermelhas e bem tratadas, na palma da mão antes que ela as visse. Não
combinavam com a imagem de uma garota que trabalha com plantas. Devia ter
pensado nisso mais cedo. — Todas as deste piso e depois o arbóreo no telhado.

A mulher sorriu — revelando os seus dentes — ligeiramente maiores do


que o normal. Era uma animalomem e detinha uma posição bastante elevada na
matilha do escritório, tendo em conta o seu aspeto elegante. E, o Sr. Ray não ia ter
um cão como secretário quando podia pagar um salário suficientemente alto por
uma cadela. Erguia-se dela um ligeiro odor almiscarado, não era desagradável.

— O Mark lhe falou do elevador de serviço nas traseiras do edifício? —


perguntou ela, esperançosa. — É mais fácil do que carregar esse carrinho pelas
escadas.

— Não, minha senhora — disse eu, puxando o horrível boné com o logotipo
da empresa e enterrando-o ainda mais na cabeça. — Acho que ele está tentando
tornar as coisas suficientemente duras para que eu não tente roubar-lhe o território
— sentindo o pulso mais rápido, empurrei o carrinho de Mark com as tesouras de
podar, o fertilizante granulado e o regador ao longo da fila de plantas. Eu sabia da
existência do elevador, também sabia qual a localização das seis saídas de
emergência e dos alarmes de incêndio, bem como onde guardavam os donuts.

— Homens! — disse ela, revirando os olhos, enquanto voltava a sentar-se


em frente à tela. — Será que não percebem que, se quiséssemos dominar o mundo,
poderíamos fazer?

Dirigi-lhe um aceno de cabeça descomprometido e, esguichei uma pequena


quantidade de água para o vaso seguinte... Eu achava que já estávamos
dominando.

Um zumbido tenso ergueu-se sobre o ruído da impressora e o tênue


burburinho do escritório. Era Jenks, o meu parceiro e, era óbvio que estava de mau
humor quando saiu voando do gabinete do patrão — que ficava nos fundos — e se
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aproximou de mim. As suas asas de libélula estavam vermelhas de agitação e o pó


de pixy caía dele, gerando raios de sol temporários.

— Estou farto das plantas ali dentro — disse, em voz alta, quando aterrou
na borda do vaso pendurado à minha frente. Pôs as mãos na cintura, transmitindo a
imagem de um "Peter Pan de meia-idade" que tinha crescido e se tornado o
homem do lixo com seu pequeno macacão azul. — Tudo o que precisam é de
água. Posso ajudar-te aqui fora com alguma coisa ou posso ir dormir no carro? —
acrescentou num tom azedo.

Tirei o recipiente de água das costas, pousando-o para abrir a tampa.

— Poderia conseguir um pouco de fertilizante granulado — disse-lhe,


perguntando-me qual seria o problema dele.

Resmungando, voou para o carrinho e começou a vasculhar o seu interior.


Ataduras verdes, estacas e tiras de teste de pH usadas voaram para todos os lados.

— Encontrei um — disse ele, erguendo-se com um pedaço de granulado


branco tão grande quanto sua cabeça. Largou-o no recipiente de água e ele
começou a borbulhar. Não era fertilizante granulado, mas um oxigenador e
promotor de viscosidade. De que serviria roubar um peixe se ele morresse durante
o transporte?

— Oh meu Deus, Rachel — sussurrou Jenks, aterrando no meu ombro. —


Isso é poliéster. Eu estou vestindo poliéster!

A minha tensão diminuiu quando compreendi qual a origem do seu mau


humor.

— Vai ficar tudo bem.

— Estou ficando cheio de bolhas! — exclamou, coçando-se vigorosamente


por baixo do colarinho. — Não posso usar poliéster. Os pixies são alérgicos a
poliéster. Olhe para isso, vê? — inclinou a cabeça, afastando o cabelo loiro do
pescoço, mas estava perto demais para que eu conseguisse focar o olhar. —
Bolhas! E fede, consigo sentir o cheiro do óleo. Estou vestindo um dinossauro
morto... E não posso usar um animal morto. É bárbaro, Rache — lamentou.

— Jenks? — voltei a apertar a tampa do recipiente de água e pendurá-lo no


ombro, empurrando Jenks para longe de mim. — Estou vestindo a mesma coisa,
aguente!
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— Mas fede!

Fitei-o, enquanto ele parava à minha frente.

— Vai podar qualquer coisa — disse-lhe, por entre os dentes semicerrados.

Ele mostrou-me o dedo do meio de ambas as mãos, recuando enquanto o


fazia. Que seja! Tateando o bolso de trás do horrível uniforme azul, encontrei as
minhas tesouras. Enquanto a menina "profissional de escritório" digitava uma
carta no computador, abri uma escadinha de um só degrau e comecei a cortar as
folhas da planta que pendia ao lado da sua escrivaninha. Jenks começou a ajudar
e, passados alguns momentos, sussurrei:

— Está tudo a postos lá dentro?

Ele acenou, os olhos presos na porta aberta do gabinete do Sr. Ray.

— Da próxima vez que ele verificar o correio eletrônico, todo o sistema de


segurança da internet vai parar de funcionar. Levarão cinco minutos para resolver
o problema se, ela não souber o que fazer e, quatro se ela souber.

— Só preciso de cinco minutos — disse eu, começando a suar sob o sol que
entrava pela janela. O espaço cheirava a jardim — um jardim com um cão
molhado a ofegar sobre os ladrilhos frescos.

Senti a pulsação acelerar e avancei para outra planta. Estava atrás da mesa e a
mulher ficou rígida. Eu tinha invadido o seu território, mas ela tinha de suportar, eu
era a moça da água. Esperando que ela atribuísse o aumento da minha tensão ao
fato de me encontrar tão perto dela, continuei a trabalhar. Tinha uma mão
pousada na tampa do recipiente de água. Um simples movimento e, era uma vez!

— Vanessa! — o grito irado chegou até nós, vindo do escritório.

— Lá vamos nós — disse Jenks, voando para o teto em direção às câmeras.

Virei-me e vi um homem irado — sem dúvida um animalomem, levando em


conta a estatura e a constituição — a meio caminho do gabinete dos fundos.

— Voltou a fazer a mesma coisa — disse ele, o rosto vermelho e as mãos


grossas apoiadas no queixo. — Odeio essas coisas. Qual era o problema do papel?
Eu gosto de papel.
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Um sorriso profissional pairou sobre o rosto da secretária.

— Sr. Ray, voltou a gritar com ele, não foi? Já lhe disse que os
computadores são como as mulheres. Se gritar com eles e lhes pedir que façam
muitas coisas ao mesmo tempo, apagam-se e não vai conseguir nada deles.

Ele rosnou em resposta e desapareceu para o interior do gabinete — sem


reparar ou ignorando o fato de ela ter acabado de ameaçá-lo. Senti o coração saltar
e desloquei-me de forma a ficar ao lado do aquário.

Vanessa suspirou.

— Deus o salve — murmurou, enquanto se levantava. — O homem é capaz


de partir ferro com a língua — deu-me um olhar desesperado e dirigiu-se ao
gabinete batendo os saltos enquanto andava. — Não toque em nada — disse ela,
em voz alta. — Já volto.

Respirei fundo.

— Câmeras? — sussurrei. Jenks desceu até mim.

— Um salto de dez minutos. Está salva.

Voou para a porta principal, empoleirando-se no forro de gesso sobre o


batente, onde se pendurou para observar o corredor exterior. As asas agitaram-se
até se tornarem invisíveis e ele fez um sinal levantando o polegar.

Sentia a pele tensa com a excitação. Retirei a tampa do aquário, depois


retirei a pequena rede verde do bolso de dentro do macacão. Erguendo-me sobre o
banco de um degrau, puxei a manga até ao cotovelo e mergulhei a rede na água.
Os dois peixes afastaram-se de imediato.

— Rachel! — silvou Jenks, subitamente ao meu ouvido. — Ela é boa. Já está


no meio do caminho.

— Tome conta das portas, Jenks — disse eu, um lábio preso entre os dentes.

Quanto tempo podia eu demorar a apanhar um peixe? Empurrei uma pedra para
chegar ao peixe que se escondia atrás dela. Eles nadaram para o lado oposto.

O telefone começou a tocar, um som suave.


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— Jenks, importa-se de atender? — disse calmamente, ao mesmo tempo em


que eu inclinava a rede, encurralando-os num canto. — Tenho... Você sabe...

Jenks afastou-se da porta, aterrissando de pé sobre o botão que brilhava.

— Gabinete do Sr. Ray. Por favor, aguarde — disse ele, num fingido tom de
falsete.

— Droga — praguejei, quando o peixe se contorceu e esgueirou para longe


da rede. — Tudo bem, só estou tentando levar-te para casa, sua coisa viscosa e
escamosa — resmunguei através dos dentes apertados. — Quase... Quase... —
estava entre a rede e o vidro. Se ao menos ficasse quieto...

— Ei! — disse uma voz pesada vinda do corredor.

A adrenalina fez-me erguer a cabeça. Um homem pequeno — de barba


aparada e uma pasta cheia de papéis — apareceu no corredor que dava acesso aos
restantes gabinetes.

— O que é que está fazendo? — perguntou, num tom repreensivo. Olhei de


relance para o tanque e para o meu braço. A rede estava vazia... O peixe tinha
fugido.

— Hum, deixei cair a minha tesoura? — disse.

Do gabinete do Sr. Ray, do outro lado, ouvi o bater de saltos e o grito


abafado de Vanessa.

— Sr. Ray!

Maldição. Lá se iam as facilidades.

— Plano B, Jenks — disse eu, gemendo enquanto agarrava na parte de cima


do tanque e puxava.

Na outra sala, Vanessa gritou quando o tanque se virou e os quase cem


litros de água gelada jorraram em cascata sobre a sua escrivaninha. O Sr. Ray
surgiu ao seu lado. Saltei do banco, ensopada da cintura para baixo. Ninguém se
mexeu, tal era o choque. Eu analisei o chão.

— Te peguei! — gritei, tentando agarrar o peixe.


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— Ela está atrás do peixe! — gritou o homem baixo, à medida que mais
pessoas se juntavam vindas do corredor. — Apanhem-na!

— Vai! — guinchou Jenks. — Eu os mantenho à distância.

Arquejando, fui atrás do peixe, encurvada, avançando como um caranguejo


tentando agarrá-lo sem machucá-lo. Ele retorcia-se e contorcia-se e, eu senti que a
respiração saía de mim numa explosão quando, por fim, consegui envolvê-lo com
os meus dedos. Ergui os olhos, enquanto o largava dentro do recipiente de água e
apertava a tampa.

Jenks parecia uma libelulazinha saída do inferno, enquanto esvoaçava de


animalomem em animalomem, empunhando lápis e lançando-os na direção de partes
sensíveis. Um pixy de dez centímetros estava mantendo à distância três
animalomens. Não estava surpreendida. O Sr. Ray limitara-se a observar até ter
percebido que eu tinha um dos seus peixes em meu poder.

— Que raio vai fazer com meu peixe? — exigiu saber, o rosto vermelho de
raiva.

— Fugir — disse eu. Ele atirou-se em mim, as mãos grossas estendidas à


sua frente. Fiz-lhe a vontade e agarrei-lhe numa, puxando-o para frente, na
direção do meu pé. Ele recuou, cambaleando, agarrado ao estômago.

— Pare de brincar com esses cães! — gritei a Jenks, enquanto procurava


uma saída. — Temos de ir.

Agarrando no monitor de Vanessa, atirei-o na direção da janela de vidro


laminado. Há muito tempo eu queria fazer isso com o da Ivy. Ele estilhaçou-se
num estrondo de satisfação, a tela parecia estranha no meio dos vidros. Os
animalomens entravam na sala, furiosos e emitindo um odor almiscarado.

Agarrando no recipiente de água, mergulhei através da janela.

— Atrás dela! — gritou alguém.

Os meus ombros tocaram no vidro partido e rolei para me levantar.

— Levante-se! — disse Jenks junto ao meu ouvido. — Por aqui.

Ele voou rápido — como uma seta — através do pequeno pátio fechado.
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Segui-o, atirando o pesado recipiente de água, para que ficasse pendurado


nas minhas costas. Com as mãos libertas, escalei pela cerca metálica. Espinhos
rasgavam a minha pele, ignorei-os.

A minha respiração transformou-se num arquejo veloz, ao mesmo tempo


em que eu chegava ao topo. O estalar de ramos indicava que eles vinham atrás de
mim. Lançando-me sobre a beira do telhado plano de alcatrão e pedrinhas,
comecei a correr. O vento era quente ali em cima e o horizonte de Cincinnati abria-
se à minha frente.

— Salta! — gritou Jenks, quando chegamos à beira.

Eu confiava em Jenks. Agitando os braços e sem deixar de mexer os pés,


corri além do limite do telhado. Senti que a adrenalina subia, ao mesmo tempo em
que o meu estômago caía. Era um parque de estacionamento! Ele tinha mandado
eu me atirar do telhado, para aterrissar num parque de estacionamento!

— Eu não tenho asas, Jenks! — gritei, cerrando os dentes e flexionei os


joelhos.

Senti uma explosão de dor ao aterrissar sobre o pavimento. Caí para frente,
arranhando as palmas das mãos. O recipiente onde se encontrava o peixe emitiu
um som metálico e caiu das minhas costas quando a alça rebentou. Rolei para
absorver o impacto.

O recipiente metálico rebolou para longe e, ainda arquejando de dor,


cambaleei atrás dele, tocando-lhe com a ponta dos dedos quando ele rolou para
debaixo de um carro. Praguejando, deitei-me no chão, estendendo um braço para
tentar apanhá-lo.

— Ali está ela! — ouviu-se um grito.

Ouvi um ping no carro por cima de mim, depois outro. No chão, ao lado do
meu braço, abriu-se de súbito um buraco e fui atingida por finos estilhaços.
Estavam atirando em mim? Resmungando, enfiei-me debaixo do carro e puxei o
recipiente. Dobrada sobre o peixe, recuei.

— Ei! — gritei, tirando o cabelo dos olhos. — Que diabo é que estão
fazendo? Não passa de um peixe! E, nem sequer é seu!

O trio de animalomens no telhado fitou-me. Um deles ergueu uma arma em


frente ao olho. Voltei e comecei a correr. Aquilo já não valia os quinhentos dólares.
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Cinco mil, talvez. Da próxima vez, jurei enquanto corria atrás de Jenks, iria averiguar
os pormenores antes de cobrar o valor normal.

— Por aqui! — guinchou Jenks. Pedaços de alcatrão saltavam, atingindo-


me, com o eco dos pings. O parque não tinha portão e, enquanto os meus músculos
tremiam com a adrenalina, corri para a rua e embrenhei-me no meio das pessoas.
Com o coração batendo veloz, abrandei e olhei para trás de mim, vendo as suas
silhuetas contra o horizonte. Eles não tinham saltado. Não precisavam. Eu tinha
deixado o meu sangue na cerca. Ainda assim, não achei que me fossem atacar. O
peixe não era deles, era dos Howlers. E, a equipe de basebol de Cincinnati,
constituída apenas por Inderlanders, ia pagar-me o serviço.

Meus pulmões silvavam enquanto eu tentava andar na mesma velocidade


dos que me rodeavam. O sol estava quente e, eu estava suando no interior daquele
saco de poliéster. Jenks estava, de certo, protegendo minhas costas. Esgueirei-me
para uma viela, para mudar de roupa. Pousando o peixe, deixei cair a cabeça para
trás, contra a parede fresca do edifício. Tinha conseguido. Tinha dinheiro durante
mais um mês.

Erguendo o braço, arranquei o amuleto de disfarce que tinha prendido ao


redor do pescoço. Senti-me imediatamente melhor quando as características de
uma mulher de pele escura, cabelo castanho e nariz grande desapareceram,
revelando o meu cabelo frisado até aos ombros e a minha pele clara. Olhei de
relance para as palmas das mãos arranhadas, esfregando-as uma na outra com
cuidado. Podia ter trazido um amuleto contra a dor, mas queria ter comigo tão
poucos amuletos quanto possível — para o caso de ser apanhada e a "tentativa de
roubo" transformar-se numa "tentativa de roubo e causar danos corporais". De
uma eu conseguiria escapar e, a outra teria de responder. Eu era uma agente; eu
conhecia a lei.

Enquanto as pessoas passavam pela saída da viela, despi a roupa molhada e


enfiei-a no lixo. Era uma grande melhora e dobrei-me para desenrolar a bainha
das calças de couro, cobrindo com elas o cano das botas pretas. Endireitando-me,
fitei o novo arranhão nas calças e me contorci para ver toda a extensão dos danos.
O tratamento para couro de Ivy ajudaria, mas chão e couro eram duas coisas que
não combinavam muito bem. No entanto, antes um arranhão nas calças do que em
mim — razão pela qual as tinha vestido.

O ar de setembro era agradável na sombra, ajeitei o top frente única e


peguei o recipiente. Sentindo-me mais eu, avancei para o sol, enfiando o boné na
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cabeça de um menininho que passou por mim. Ele olhou para o boné, depois
sorriu, acenando-me envergonhado enquanto a mãe se baixava para lhe perguntar
onde o tinha arranjado. Em paz com o mundo, avancei ao longo do passeio, os
saltos das botas batendo no chão enquanto ajeitava o cabelo e me dirigia em
direção à Fountain Square e à minha carona. Tinha deixado lá os meus óculos de
sol e, se tivesse sorte, ainda estariam lá. Deus me ajude, como gostava de ser
independente.

Tinham-se passado quase três meses, desde que me fartara das missões
mentirosas que o meu chefe da Segurança Inderlander me atribuía. Sentindo-me
usada e francamente subvalorizada, tinha quebrado a regra não escrita e deixado a
SI para abrir a minha própria agência. Na altura, parecia uma boa ideia e, ter
sobrevivido à ameaça de morte que se seguiu — quando não fui capaz de pagar o
suborno para me libertar do contrato — serviu para me abrir os olhos. Não teria
conseguido se não fossem Ivy e Jenks.

Estranhamente, agora que começava a ganhar alguma reputação, as coisas


estavam tornando-se mais difíceis, não mais fáceis. Era verdade que estava usando
os meus estudos para fazer os feitiços que costumava comprar e mais alguns que
nunca tinha sido capaz de pagar. Mas o dinheiro era um problema. Não era uma
questão de não ser capaz de arranjar trabalhos; é que o dinheiro não parecia ficar
muito tempo na vasilha das bolachas em cima da geladeira.

O que ganhei, ao provar que um raposomem tinha sido envenenado por uma
matilha rival, foi usado para renovar a minha licença de bruxa — algo que a SI
costumava pagar. Recuperei um familiar roubado de um mago e gastei-o na
franquia mensal do seguro de saúde. Não sabia que os agentes eram quase
impossíveis de segurar, a SI tinha me dado um cartão e eu o tinha usado. Depois,
tive de pagar a um cara qualquer para limpar as minhas coisas — que ainda
estavam num armazém — do feitiço letal que lhes tinha sido lançado, comprar um
robe de seda novo para a Ivy — para substituir o que lhe estragara — e arranjar
algumas roupas novas para mim — já que tinha uma reputação a manter.

Mas o pesado nas despesas eram os táxis. A maior parte dos motoristas de
ônibus de Cincinnati já me conhecia e recusava-se a parar para eu entrar. Não era
justo. Já se passara quase um ano desde que deixara careca quase todas as pessoas
que se encontravam dentro de um ônibus, enquanto tentava apanhar um
animalomem.
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Estava farta de estar quase falida, mas o dinheiro que iam me pagar por
recuperar a mascote dos Howlers ia garantir-me mais um mês. E, os animalomens
não viriam atrás de mim. O peixe não era deles. Se apresentassem queixa junto da
SI, teriam de explicar onde o tinham arranjado.

— Ei, Rache — disse Jenks, descendo sabe-se lá de onde. — Está livre. E,


qual é o Plano B?

Ergui as sobrancelhas e olhei para ele pelo canto do olho, enquanto ele
voava ao meu lado a um ritmo exatamente igual ao do meu andar.

— Agarrar o peixe e correr como o diabo.

Jenks riu e aterrissou no meu ombro. Tinha tirado o uniforme minúsculo e


já se parecia mais consigo mesmo — com uma camisa de seda verde de manga
comprida e umas calças do mesmo material. Uma fita vermelha atravessava-lhe a
testa para anunciar a qualquer pixy ou fada — por cujo território passássemos —
que não estava à caça. As suas asas cintilavam nos locais onde ainda restava
algum pó de pixy levantado pela excitação.

Abrandei o passo quando chegamos à Fountain Square. Procurei Ivy, não a


vendo. Sem me sentir preocupada, fui sentar-me no lado seco da fonte, passando
os dedos sob a borda do tanque até encontrar os óculos de sol. Ela ia aparecer.
Aquela mulher vivia e morria ao ritmo dos horários.

Enquanto Jenks voava através da água que jorrava da fonte — para se livrar
do "fedor de dinossauro morto" que ainda restava —, abri os óculos e coloquei-os
no rosto. A minha testa suavizou-se quando o brilho da tarde de setembro foi
filtrado. Esticando as pernas compridas, retirei num gesto casual, o amuleto de
cheiro que trazia em redor do pescoço e larguei-o na fonte. Os animalomens
caçavam pelo cheiro e se seguissem o meu, o trilho terminaria ali, mal eu entrasse
no carro de Ivy e me afastasse.

Esperando que ninguém tivesse reparado, olhei de relance para as pessoas


que me rodeavam: o lacaio de um vampiro, de aspeto nervoso e anêmico —
realizando as tarefas diurnas para o seu amante; dois humanos que sussurravam
— soltando risadinhas enquanto fitavam o seu pescoço repleto de cicatrizes; uma
bruxa cansada — não, uma maga, concluí, levando em conta o cheiro fraco de pau-
brasil — sentada num banco das redondezas comendo um muffin; e eu. Inspirei
fundo, enquanto relaxava. Ter de esperar por uma carona gerava certo anticlímax.
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— Quem me dera ter um carro — disse a Jenks, enquanto puxava o


recipiente com o peixe para o meio dos meus pés. A dez metros de mim, o trânsito
avançava lentamente. Tinha aumentado e eu calculei que já passasse das duas —
hora em que se iniciava o período do dia durante o qual, humanos e Inderlanders
lutavam para coexistir no mesmo espaço limitado. As coisas tornavam-se muito
mais fáceis quando o Sol se punha e a maior parte dos humanos se retirava para
suas casas.

— Para quê você quer um carro? — perguntou Jenks, que se empoleirara no


meu joelho e começara a limpar as asas de libélula com movimentos longos e
sérios. — Eu não tenho carro. Nunca tive carro. Movimento-me bem. Os carros são
um problema — disse, mas eu já não estava ouvindo. — Tem de lhes pôr gasolina e
mantê-los reparados e, perder tempo a limpando-os. Além de ter um local para
guarda-los. E depois o dinheiro que se gasta com eles... É pior do que uma
namorada.

— Ainda assim — disse eu, abanando um pé para irritá-lo. — Quem me


dera ter um carro — olhei de relance para as pessoas à minha volta. — James Bond
nunca teve de esperar por um automóvel — semicerrei os olhos para Jenks. —
Perde-se um bocado o estilo.

— Hum, sim — disse ele, concentrando a atenção atrás de mim. — Também


vejo em que medida poderia ser mais seguro. Onze horas. Animalomens.

A minha respiração acelerou quando olhei para trás e a tensão voltou a me


atingir.

— Droga — sussurrei, pegando o recipiente. Não eram os mesmos três.


Podia perceber pela estatura encurvada e pela forma como respiravam
profundamente. De maxilares apertados, levantei-me deixando a fonte entre nós.
Onde estava a Ivy?

— Rache? — perguntou Jenks. — Porque eles estão te seguindo?

— Não sei — meus pensamentos dirigiram-se para o sangue que deixara


nas rosas. Se não conseguisse quebrar o trilho de odor, eles me seguiriam até em
casa. Mas por quê? Com a boca seca, sentei-me de costas para eles, sabendo que
Jenks estava olhando. — Eles já sentiram o meu cheiro?

Ele partiu, as asas batendo.


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— Não — disse, ao regressar cerca de um segundo depois. — Tem cerca de


meio quarteirão entre vocês, mas tens que te pôr a andar.

Hesitando, pesei o risco de ficar quieta e esperar por Ivy sem me mexer e o
de ser descoberta.

— Inferno, quem me dera ter um carro — murmurei. Inclinei-me para olhar


para a rua em busca da capota alta e azul de um ônibus, de um táxi ou de
qualquer coisa. Onde diabos estava a Ivy?

Com o coração batendo rapidamente, ergui-me. Apertando o peixe junto a


mim, dirigi-me para a rua desejando chegar ao edifício de escritórios adjacente e
ao labirinto onde podia me perder enquanto esperava por Ivy. Mas um grande
Crown Victoria preto abrandou e parou bloqueando a minha passagem. Fitei o
motorista, o meu rosto rígido assim que a janela foi aberta e ele se inclinou sobre o
banco da frente.

— Me n i n a Mo r g a n ? — d i s se o h o m e m m o r e n o , a vo z p r o f u n d a e
acentuada.

Olhei de relance para os animalomens atrás de mim. Um Crown Victoria preto


conduzido por um homem de terno preto só podia significar uma coisa. Tratava-se
do Departamento Federal Inderlander, o equivalente da SI, gerido por humanos. O
que é que o DFI queria?

— Sim. Quem é você?

Pareceu incomodado.

— Falei com a menina Tamwood, mais cedo. Ela disse que podia encontrá-
la aqui.

Ivy. Pousei uma mão na janela aberta.

— Ela está bem?

Apertou os lábios. O trânsito começava a acumular-se atrás dele.

— Estava, quando falei com ela ao telefone.

Jenks pairou à minha frente, o rosto ligeiramente assustado.

— Eles apanharam o teu cheiro, Rache.


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O ar silvou ao passar pelo meu nariz. Olhei de relance para trás. O meu
olhar caiu sobre um dos animalomens. Vendo que eu o observava, uivou. Os outros
dois também, avançando com uma graça sem pressa. Engoli em seco. Eu ia ser
comida de cão. Era isso. Comida de cão. Game over. Podem carregar no botão de
reset.

Girando sobre os calcanhares, agarrei a maçaneta da porta e puxei-a.


Mergulhei para o interior, batendo com a porta atrás de mim.

— Arranque! — gritei, girando a cabeça para olhar através do vidro


traseiro.

O rosto longo do homem assumiu uma expressão de nojo, quando olhou de


relance para trás, através do espelho retrovisor.

— Estão com você?

— Não! Essa coisa anda ou você limita-se a ficar aqui sentado a brincando
consigo mesmo?

Emitindo um ruído de irritação, acelerou suavemente. Virei-me no banco,


observando os animalomens que paravam no meio da rua. As buzinas dos carros
obrigados a parar por causa deles fizeram-se ouvir. Virando-me de novo para
frente, agarrei com força o recipiente de água e fechei os olhos de alívio. Ivy ia me
pagar. Eu juro que ia usar os mapas dela como controle de ervas daninhas no
jardim. Ela devia vir me buscar, não mandar qualquer lacaio do DFI.

Sentindo que a pulsação abrandava, voltei-me para olhar para ele. Era mais
alto do que eu, o que dizia muito — tinha bons ombros, cabelo preto encaracolado,
cortado próximo do crânio, um maxilar quadrado e uma atitude rígida que estava
pedindo que lhe batesse. Confortavelmente musculoso, sem excessos, não tinha
sequer indícios de barriga. No seu terno preto, que lhe assentava com perfeição,
camisa branca e gravata preta, era o representante perfeito para o DFI. O bigode e
a barba estavam cortados no estilo mais recente — tão curtos que eram quase
inexistentes —, mas achei que talvez fosse boa ideia não exagerar tanto na loção
pós-barba. Olhei para a bolsa das algemas, presa ao cinto dele, desejando ainda ter
as minhas. Era propriedade da SI e eu sentia muito sua falta.

Jenks instalou-se no lugar do costume — no espelho retrovisor, onde o


vento não lhe rasgaria as asas — e o homem de pescoço rígido observou-o com
uma intensidade que indicava que tinha pouco contato com pixies. Sorte a dele.
16

Chegou uma chamada via rádio, indicando que se encontrava um ladrão no


centro comercial e ele desligou o aparelho.

— Obrigada pela carona — disse eu. — Foi Ivy que o mandou?

Ele afastou os olhos de Jenks.

— Não. Ela só disse que ia estar aqui. O capitão Edden quer falar com você.
Algo sobre o vereador Trent Kalamack — acrescentou o agente do DFI num tom
indiferente.

— Kalamack! — guinchei, depois praguejei contra mim mesma por ter dito
alguma coisa. O sacana rico queria que eu trabalhasse para ele ou que morresse.
Dependia do seu estado de espírito e do "desempenho" da sua caderneta de ações. —
O Kalamack, huh? — emendei, movendo-me desconfortável sobre o assento de
couro. — Porque Edden o mandou vir buscar-me? Está na lista negra, esta
semana?

Ele não disse nada, mas as mãos grossas agarraram o volante com tanta
força que as unhas ficaram brancas. O silêncio cresceu. Passamos por um sinal
amarelo mudando para vermelho.

— Ah, quem é você? — perguntei, finalmente.

Ele emitiu um ruído no fundo da garganta. Eu estava habituada a uma


desconfiança temerosa da maior parte dos humanos. Aquele cara não tinha medo e
isso estava me deixando irritada.

— Detetive Glenn, minha senhora — disse ele.

— Minha senhora — disse Jenks, rindo. — Ele te chamou "senhora".

Fitei Jenks de sobrancelha franzida. O cara parecia muito novo para já ter
chegado a detetive. O DFI devia estar desesperado.

— Bem, obrigada, detetive Glade — disse eu, errando o nome. — Pode


deixar-me em qualquer lado. Eu apanho um táxi a partir daqui. Irei ver o capitão
Edden amanhã. Neste momento estou trabalhando num caso importante.

Jenks soltou uma risada e o homem corou, o vermelho quase escondido


pela pele escura.
17

— É Glenn, minha senhora. E eu vi o seu caso importante. Quer que a leve de


volta à fonte?

— Não — respondi, enterrando-me no assento, enquanto a minha mente


era atravessada pela recordação dos jovens animalomens furiosos. — Mas
agradeceria uma carona até ao meu escritório. Fica em Hollows, vire na próxima à
esquerda.

— Não sou seu motorista — disse ele, num tom soturno, obviamente
insatisfeito. — Sou o seu entregador.

Puxei o braço para dentro, quando ele subiu a janela, pressionando um


botão no painel. O ar ficou de imediato abafado. Jenks esvoaçou para o teto,
encurralado.

— Que raios está fazendo? — guinchou.

— Sim! — exclamei, mais enraivecida do que preocupada. — O que é que se


passa?

— O capitão Edden quer vê-la agora, menina Morgan, não amanhã.

O olhar dele afastou-se da rua e pousou-se sobre mim. Tinha o maxilar


tenso e não gostei do sorriso maldoso.

— E, se tentar sequer levar à mão um feitiço, arranco esse seu traseiro de


bruxa do meu carro, algemo-a e te atiro no porta-malas. O capitão Edden mandou-
me apanhá-la, mas não disse em que estado devia chegar.

Jenks pousou no meu brinco, praguejando sem parar. Tentei por diversas
vezes abrir o vidro, mas Glenn tinha-o trancado. Recostei-me ao banco, bufando.
Podia enfiar um dedo no olho de Glenn e atirá-lo para fora da estrada, mas para
quê? Sabia para onde estava indo. E, Edden garantiria que eu teria condução para
casa. Mas aquilo me irritava... Dar de cara com um humano com mais coragem
que eu. A que ponto estava chegando aquela cidade?

Um silêncio solene desceu sobre nós. Tirei os óculos de sol e inclinei-me


para frente, reparando que o tipo ia mais de vinte quilômetros por hora acima do
limite de velocidade. Era de esperar.

— Olha isso — sussurrou Jenks. Ergui as sobrancelhas quando o pixy


esvoaçou para fora do meu brinco. O sol de outono que atravessava os vidros
18

encheu-se subitamente de cintilações quando ele lançou, disfarçadamente, o pó


brilhante sobre o detetive. Estava disposta a apostar o meu melhor par de
calcinhas de renda em como não se tratava do normal pó de pixy. Glenn tinha sido
pixado.

Escondi um sorriso. Dentro de vinte minutos, Glenn estaria com tanto


comichão que não seria capaz de ficar quieto.

— Então, porque é que não tem medo de mim? — perguntei, insolente,


sentindo-me muitíssimo melhor.

— Quando eu era garoto, vivia ao meu lado uma família de bruxos disse
ele, desconfiado. — Tinham uma filha da minha idade. Ela lançou-me quase tudo o
que se pode lançar a uma pessoa — um tênue sorriso atravessou-lhe o rosto
quadrado, dando-lhe um aspeto muito pouco digno do DFI. — O dia mais triste da
minha vida foi aquele em que ela partiu.

Eu fiz beicinho.

— Coitadinho do bebê — disse eu e ele voltou a franzir a testa. No entanto,


eu não fiquei contente. Edden tinha o enviado para me ir buscar porque sabia que
eu não conseguiria intimidá-lo.

Odeio segundas-feiras.
19

Capitulo 2
A pedra cinzenta da torre do DFI refletia o Sol do fim da tarde, enquanto
estacionávamos num dos lugares reservados, em frente ao edifício. A rua estava
apinhada e Glenn acompanhou a mim e ao meu peixe rapidamente através da
porta da frente. Na pele do pescoço — sob o colarinho — já começavam a aparecer
pequenas bolhas cor-de-rosa — de aspecto doloroso — que sobressaíam na sua
pele escura.

Jenks reparou que estava olhando para elas e fungou.

— Parece que o Sr. Detetive do DFI é alérgico ao pó de pixy — sussurrou. —


Vai percorrer o sistema linfático. Terá coceira em partes do corpo que nem sequer
sabia que existiam.

— É sério? — perguntei, chocada. Normalmente só se tinha comichão nos


locais expostos ao pó. Glenn estava prestes a sofrer vinte e quatro horas de tortura.

— Pois é, este não vai voltar a encurralar um pixy dentro de um carro.

Mas pareceu-me ouvir um toque de culpa na sua voz e, além disso, não
estava cantarolando a sua canção de vitória sobre margaridas e aço brilhantes
vermelhos ao luar. Os meus passos tornaram-se hesitantes, mesmo antes de pisar
no emblema do DFI gravado no chão do átrio. Eu não era supersticiosa — exceto
nas situações em que isso me pudesse salvar a vida —, mas estava entrando num
território normalmente reservado a humanos. Eu não gostava de ser uma minoria.

As conversas esporádicas e o matraquear dos teclados me fez pensar no


meu antigo trabalho na SI e os meus ombros relaxaram. As rodas da justiça
estavam bem oleadas com papel e, eram alimentadas por pés leves que percorriam
20

as ruas. Que os pés fossem humanos ou Inderlanders era irrelevante, pelo menos,
para mim.

O DFI tinha sido criado para tomar o lugar tanto das autoridades locais
como das federais, depois da Viragem. No papel, o DFI tinha sido criado para
ajudar a proteger os humanos dos... Hum... Inderlanders mais agressivos —
normalmente vampiros e animalomens. A verdade é que a dissolução das antigas
estruturas legais era uma tentativa paranoica de afastar os Inderlanders das forças
da autoridade.

S i m . P o i s , o s a g e n te s f e d e r a i s e d a p o l í c i a — s a íd o s d o a r m á r i o e
desempregados — tinham se limitado a abrir a sua própria agência, a SI. Passados
quarenta anos, o DFI tinha sido completamente ultrapassado, vendo-se obrigado a
suportar constantes abusos da SI. Enquanto ambos tentavam controlar os variados
cidadãos de Cincinnati, a SI lidava com as questões sobrenaturais que o DFI não
conseguia tratar.

Enquanto seguia Glenn para os fundos, desloquei o recipiente de forma a


esconder o meu pulso esquerdo. Não havia muitas pessoas capazes de reconhecer a
pequena cicatriz circular na parte de baixo do meu pulso como marca de um
demônio, mas preferia pecar por excesso de zelo. Nem o DFI nem a SI sabiam que
eu tinha estado envolvida no incidente provocado por um demônio — que
destruíra a seção de livros antigos da biblioteca da universidade — na primavera
passada e, eu preferia mantê-lo assim. Ele fora enviado para me matar, mas
acabou por me salvar a vida. Eu carregaria a marca até encontrar uma forma de
lhe pagar o favor.

Glenn avançava por entre as escrivaninhas para longe do átrio e as minhas


sobrancelhas ergueram-se pelo fato de nenhum dos agentes ter feito qualquer
comentário sobre uma ruiva com roupas de couro. Mas ao lado da vociferante
prostituta de cabelo roxo — com uma corrente que brilha no escuro e que estava
presa ao nariz e desaparecia em algum lugar debaixo da camisa — ficávamos
todos invisíveis.

Olhei de relance para as janelas — de persianas corridas — do gabinete de


Edden quando passamos acenando para Rose, a assistente dele. Seu rosto ficou
vermelho, ela fingiu ignorar-me e eu funguei. Estava habituada a tais descortesias,
mas continuava sendo irritante. A rivalidade entre o DFI e a SI era de longa data.
O fato de eu já não trabalhar para a SI não parecia fazer qualquer diferença. Por
outro lado, podia ser apenas uma questão de não gostarem de bruxas.
21

Comecei a respirar melhor quando deixamos para trás a recepção e


entramos no corredor estéril, iluminado por luzes fluorescentes. Glenn também
relaxou e abrandou o passo. Podia sentir os burburinhos maliciosos fluindo atrás
de nós como correntes invisíveis, mas estava muito desanimada para me importar.
Passamos por uma sala de reuniões vazia e, os meus olhos voaram para o enorme
quadro branco onde tinham sido colados os crimes mais urgentes da semana.
Excetuando os casos normais de humanos perseguidos por vampiros, estava uma
lista de nomes. Senti-me mal quando os meus olhos deixaram o quadro.
Estávamos andando depressa demais para que os conseguisse ler, mas sabia o que
eram. Tinha lido a sua história nos jornais como todos os outros.

— Morgan! — gritou uma voz familiar e eu girei as minhas botas — que


chiaram nos azulejos cinzentos.

Era Edden. A sua silhueta atarracada apressava-se ao longo do corredor na


nossa direção, os braços agitando-se ao lado do corpo. Senti-me imediatamente
melhor.

— As lesmas o levem — murmurou Jenks. — Rache, vou embora daqui.


Vemo-nos em casa.

— Fica quieto — disse eu, divertida com a irritação do pixy. — E, se disser


qualquer coisa indecente ao Edden, despejo formicida em você.

Glenn riu. E, ainda bem. Porque assim não consegui ouvir o que Jenks
continuava resmungando.

Edden era um antigo Navy Seal e mantinha aparência disso. O cabelo bem
curto, as calças cáqui bem vincadas e, o corpo sob a camisa branca e engomada,
mostrava-se firme. Embora o espesso tufo de cabelo fosse preto, o bigode era
completamente cinzento. Um sorriso convidativo cobria-lhe o rosto redondo
enquanto avançava — enfiando no bolso da camisa um par de óculos de leitura
com aros de plástico. O capitão da divisão de Cincinnati do DFI parou de repente,
lançando sobre mim o cheiro de café. Ele era praticamente da minha altura — o
que o tornava algo baixo para um homem —, mas compensava-o com a sua
presença.

Edden arqueou as sobrancelhas perante as minhas calças de couro e o meu


top sem costas pouco profissional.
22

— É bom vê-la, Morgan — disse ele. — Espero não tê-la apanhado em má


hora.

Afastei o recipiente e estendi-lhe a mão. Os dedos curtos e grossos


engoliram os meus, num gesto familiar e agradável.

— Igualmente — disse secamente e Edden pousou uma mão pesada no


meu ombro, guiando-me ao longo de um curto corredor.

Por norma, teria reagido a tal demonstração de familiaridade com uma


delicada cotovelada no estômago, mas Edden era uma alma gêmea — alguém que
odiava a injustiça tanto como eu. Embora não se parecesse minimamente com ele,
fazia-me lembrar meu pai, tendo conseguido o meu respeito por ter me aceitado
enquanto bruxa e me tratado com igualdade e não com desconfiança. Eu não
conseguia resistir à lisonja.

Percorremos o corredor um ao lado do outro, enquanto Glenn se deixava


ficar para trás.

— É bom vê-lo voar outra vez, Sr. Jenks — disse Edden, dirigindo ao pixy
uma pequena saudação de cabeça.

Jenks deixou o meu brinco, as asas batendo velozmente. Edden tinha


partido uma asa de Jenks quando o enfiara dentro de um garrafão de água e, os
pixies guardavam ressentimentos profundos.

— É Jenks — disse ele, com frieza. — Só Jenks.

— Seja Jenks, então. Podemos arranjar-lhe alguma coisa? Água com açúcar,
manteiga de amendoim... — girou, sorrindo por trás do bigode. — Café, menina
Morgan? — disse, com a voz arrastada. — Parece cansada.

O sorriso dele fez desaparecer o que restava do meu mau humor.

— Seria ótimo — disse eu e, Edden dirigiu a Glenn um olhar carregado de


ordens. O detetive tinha o maxilar cerrado e vários vergões novos marcavam a
linha do maxilar. Edden agarrou no antebraço do detetive frustrado, quando este
se virava. Puxando-o para baixo, Edden sussurrou-lhe.

— É muito tarde para lavar o pó de pixy. Tente cortisona.


23

Glenn dirigiu-me um olhar duro, endireitando-se e refazendo o caminho


que tínhamos percorrido.

— Agradeço-lhe por ter vindo — continuou Edden. — Consegui uma pista


esta manhã e, você era a única pessoa que eu podia chamar para poder aproveitar.

Jenks soltou uma gargalhada trocista.

— O que se passa, apareceu um animalomem com um espinho na pata?

— Cale-se, Jenks — disse eu, mais por hábito do que outra coisa. Glenn
mencionara Trent Kalamack e isso me deixou em nervos.

O capitão do DFI parou em frente a uma porta de aspecto simples. A meio


metro de distância encontrava-se outra porta de aspecto simples... Salas de
interrogatório. Ele abriu a boca como se fosse explicar, depois encolheu os ombros
e empurrou a porta — que se abriu revelando uma sala vazia a meia-luz. Fez-me
sinal para que entrasse esperando que a porta estivesse fechada antes de se voltar
para o espelho de dois sentidos e, em silêncio, abriu as persianas.

Eu olhei para a outra sala.

— Sara Jane! — sussurrei, sentindo meu queixo cair.

— Conhece? — Edden cruzou os braços grossos sobre o peito. — Isso é uma


sorte.

— Sorte é algo que não existe — rosnou Jenks. A brisa das suas asas tocava-
me o rosto, enquanto ele pairava na altura dos meus olhos. Tinha as mãos nos
quadris e as asas tinham abandonado a sua habitual translucidez e assumido uma
leve tonalidade cor-de-rosa. — É uma armadilha.

Eu aproximei-me mais do vidro.

— É a secretária do Trent Kalamack. O que é que ela está a fazendo aqui?

Edden erguia-se ao meu lado, os pés afastados um do outro.

— Veio à procura do namorado.

Eu o olhei e me surpreendi com expressão tensa que encontrei no seu rosto


redondo.
24

— Um mago chamado Dan Smather — disse Edden. — Desapareceu no


domingo. A SI não vai fazer nada até que se passem trinta dias. Ela está
convencida que o seu desaparecimento está ligado aos assassinatos do caçador de
bruxas. Eu acho que ela tem razão.

Senti o estômago apertado. Cincinnati não era famosa pelos seus assassinos
em série, mas tínhamos mais homicídios para explicar nas últimas seis semanas do
que ao longo dos últimos três anos. A recente onda de violência deixara todos
perturbados, tanto Inderlanders como humanos.

O vidro embaçou-se com a minha respiração e eu recuei.

— Ele corresponde ao perfil? — perguntei, sabendo de antemão que a SI


não a teria mandado embora se assim fosse.

— Se estivesse morto, sim. Mas, está apenas desaparecido.

O som áspero e seco das asas de Jenks quebrou o silêncio.

— Então para quê chamar a Rache?

— Por duas razões. A primeira é o fato de a menina Gradenko ser uma


bruxa — acenou na direção da bela mulher do outro lado do vidro, a frustração a
t o m a n d o s u a vo z . — O s m e u s a g e n t e s n ã o c o n s e g u e m q u e s t i o n á - l a
convenientemente.

Vi Sara Jane olhar para o relógio e limpar um dos olhos.

— Ela não sabe como fazer um feitiço — disse, baixinho. — Só os pode


invocar. Tecnicamente, é uma maga. Quem me dera que vocês percebessem que é o
nosso nível de especialização e, não o nosso sexo, que faz de nós bruxos ou
magos.

— Seja como for, os meus agentes não sabem como interpretar as suas
respostas.

Senti que a chama da raiva se acendia. Voltei-me para ele, os lábios


cerrados.

— Não conseguem perceber se ela está mentindo.

O capitão encolheu os ombros espessos.


25

— Se prefere, sim.

Jenks pairou entre nós com as mãos nos quadris — sua melhor pose de Peter

Pan. — Muito bem, por isso quer que a Rache a interrogue. Qual é segunda

razão? Edden encostou um ombro à parede.

— Preciso que alguém volte à escola e, como não tenho nenhuma bruxa
entre os meus funcionários, será você,
Rachel.

Por um instante não pude fazer mais do que olhar fixamente


para ele.

— Desculpe?

O sorriso dele fazia com que se parecesse ainda mais com um troll
matreiro.

— Tem acompanhado os jornais? — perguntou, desnecessariamente


e eu
assenti. — Todas as vítimas eram bruxas — disse. — Todas exceto as
duas primeiras e, todas tinham experimentado a magia das linhas Ley.

Suprimi uma careta. Não gostava de linhas Ley e evitava usá-las


sempre que possível. Tratava-se de portões para a eternidade e para os
demônios. Uma das teorias mais populares era a de que as vítimas tinham
estado lidando com magia negra e, simplesmente, tinham perdido o
controle. Eu não acreditava nisso. Ninguém era burro ao ponto de tentar
prender um demônio, a não ser Nick, o meu namorado. E, só o fizera para
me salvar a vida.

Edden acenou, mostrando-me o topo da sua cabeça coberta por


espessos cabelos negros.

— O que foi mantido em segredo é que todos eles, em determinada


altura, foram ensinados pela Dra. Anders.

Esfreguei as palmas das mãos


arranhadas.

— Anders — murmurei, vasculhando na minha memória até


encontrar o
rosto magro e carrancudo de uma mulher de cabelo curto e voz nada
agradável. — Tive uma disciplina com ela — olhei de relance para Edden e
voltei-
me
para
o
espel
ho,
atrap
alhad
a. —
Ela
era
profe
ssora
convi
dada
na
minha
univer
sidad
e,
26

tendo ocupado o lugar de um dos nossos professores que tinha tirado licença aos
s á b a d o s . En s i n a va L i n h a s L e y p a r a a s B r u x a s d e T e r r a . É u ma i d i o t a
condescendente. Chumbou-me logo na terceira aula porque eu me recusava a
arranjar um parceiro.

Ele resmungou.

— Desta vez, veja se consegue um B para eu conseguir o reembolso da


propina.

— Uou! — gritou Jenks, aumentando a voz. — Edden, pode ir plantar as


suas sementes de girassol em outro jardim. A Rachel não vai chegar nem perto da
Sara Jane. É isso que o Kalamack quer.

Edden afastou-se da parede com um impulso, franzindo a sobrancelha.

— O Sr. Kalamack não está envolvido nisso de forma alguma. E, se aceitar


esta missão para tentar pegá-lo, Rachel, eu atiro o seu pálido traseiro de bruxa
para o outro lado do rio bem no centro de Hollows. A Dra. Anders é a nossa
suspeita. Se quiser o trabalho, deixe o Sr. Kalamack fora disto.

As asas de Jenks zumbiam num gemido furioso.

— Vocês colocaram irracionalidade no café, esta manhã? — guinchou. — É


uma armadilha! Isso não tem nada a ver com os assassinatos das bruxas. Rachel,
diga que isso não tem nada a ver com os assassinatos.

— Isto não tem nada a ver com os assassinatos — disse, sem convicção. —
Aceito o trabalho.

— Rachel! — protestou Jenks.

Inspirei fundo, sabendo que nunca seria capaz de me explicar. Sara Jane era
mais honesta do que metade dos agentes da SI com quem tinha trabalhado. Era
apenas uma garota do campo que lutava para encontrar seu caminho na cidade e,
ajudar a família presa por um contrato de servidão. Embora ela não me
reconhecesse, eu lhe devia aquilo. Foi a única pessoa que me mostrou alguma
gentileza durante os três dias que passei no purgatório — presa sob a forma de um
visom no gabinete de Trent Kalamack — na primavera anterior. Fisicamente,
éramos tão diferentes quanto duas pessoas poderiam ser.
27

Enquanto Sara Jane permanecia sentada à mesa totalmente rígida com o seu
impecável uniforme de trabalho, todos os fios de cabelo loiro no lugar e a
maquiagem tão bem aplicada que era quase invisível, eu estava com umas calças
de couro roçadas e o meu cabelo ruivo ondulado, selvagem e indomável.
Enquanto ela era pequena — com um aspeto de boneca de porcelana, de pele clara
e feições delicadas —, eu era alta e tinha uma constituição atlética que me salvara a
vida mais vezes do que conseguiria contar com a ajuda das sardas que me cobriam
o nariz. Enquanto ela tinha curvas e carne nos lugares certos, eu possuía apenas
curvas, sendo os meus seios um pouco mais do que uma sugestão, mas sentia uma
afinidade com ela. Ambas tínhamos sido encurraladas por Trent Kalamack. E, o
mais certo era que, a esta altura, ela já soubesse.

Jenks pairou ao meu lado.

— Não — disse ele. — Trent a está usando para chegar até você.

Irritada, afastei-o com um aceno de mão.

— Trent não me pode tocar. Edden, ainda tem aquela pasta cor-de-rosa que
lhe dei a primavera passada?

— Aquela com o disco e a agenda que prova que o Trent Kalamack é um


produtor e distribuidor de produtos genéticos ilegais? — o homem atarracado
sorriu. — Sim. Mantenho-a junto à cama, para as noites de insônia.

Fiquei de queixo caído.

— Não era necessário abri-la a não ser que eu desaparecesse!

— Também espreito os meus presentes de Natal — disse ele. — Tenha


calma. Não farei nada a não ser que o Kalamack a mate. Continuo achando que
chantagear o Kalamack é arriscado...

— É a única coisa que me mantém viva! — disse, irada, depois me encolhi


pensando se Sara Jane me conseguiria ouvir através do vidro.

— Talvez, seja mais seguro do que tentar trazê-lo à justiça... Mas isto? —
apontou para Sara Jane. — Ele é muito esperto para isto.

Se tivesse sido outro que não Trent, teria de concordar. Trent Kalamack era
impecável no papel, tão encantador e atraente em público, como impiedoso e frio
atrás de portas fechadas. Eu o vi matar um homem no seu gabinete, fazendo com
28

que parecesse um acidente, utilizando um conjunto de preparativos rapidamente


aplicados. Mas enquanto Edden não fizesse nada em relação à minha chantagem, o
intocável me deixaria em paz.

Jenks voava veloz entre mim e o espelho. Pairou, esvoaçando, com a


preocupação a marcando suas feições minúsculas.

— Isto está cheirando pior do que esse peixe. Vá embora. Tem que ir
embora.

O meu olhar fixou-se na Sara Jane. Ela tinha chorado.

— Estou em dívida com ela, Jenks — sussurrei. — Quer ela saiba ou não.

Edden avançou para se colocar ao meu lado e, juntos, observamos Sara


Jane.

— Morgan?

Jenks tinha razão. Sorte era algo que não existia — a menos que a
comprássemos — e, nada acontecia perto de Trent sem um motivo. Os meus olhos
estavam fixos em Sara Jane.

— Sim. Sim. Eu farei!


29

Capitulo 3
O meu olhar foi atraído pelas unhas de Sara Jane, enquanto ela se movia
irrequieta à minha frente. Da última vez que eu a vi estavam limpas, mas gastas
até o sabugo. Agora eram compridas, bem cuidadas e pintadas de um tom de
vermelho que revelava bom gosto.

— Então — disse eu, afastando o olhar do esmalte que brilhava de forma


irregular e levando-o aos seus olhos. Eram azuis. Antes, não tinha a certeza. — A
última vez que ouviu notícias de Dan foi no sábado?

Do outro lado da mesa, Sara Jane acenou. Quando Edden nos apresentou,
ela não mostrou o mínimo sinal de reconhecimento. Parte de mim ficou aliviada,
outra parte dececionada. O seu cheiro lilás trouxe consigo a recordação do
desamparo que senti — enquanto vison — presa no gabinete de Trent.

O lenço que Sara Jane tinha na mão era mais ou menos do tamanho de uma
noz, apertado numa bola com os dedos trementes.

— Dan ligou quando estava saindo do trabalho — disse ela, os tremores


refletiam-se na sua voz. Olhou de relance para Edden — que se erguia junto à
porta fechada — com os braços cruzados e as mangas brancas enroladas até aos
cotovelos. — Bem, ele deixou uma mensagem na caixa postal... Eram quatro da
manhã. Disse que queria jantar comigo, que queria falar comigo. Não apareceu. É
por isso que sei que está acontecendo algo de errado, agente Morgan — seus olhos
abriram-se e ela cerrou o maxilar, lutando para não chorar.

— É Senhorita Morgan — disse eu, desconfortável. — Não trabalho


regularmente para o DFI.
30

As asas de Jenks agitaram-se, ainda que ele continuasse pousado no meu


copo de papel.

— Ela não trabalha regularmente, ponto — disse, sarcástico.

— A senhorita Morgan é a nossa consultora Inderlander — disse Edden,


franzindo a sobrancelha a Jenks.

Sara Jane limpou os olhos. Sem largar o lenço, afastou o cabelo para trás.
Tinha-o cortado e fazia-a parecer ainda mais profissional, caindo até aos ombros
numa lisa cortina loira.

— Trouxe uma fotografia dele — disse ela, vasculhando na mala e retirando


do seu interior um instantâneo que empurrou na minha direção.

Baixei os olhos e a vi na companhia de um jovem, no convés de um dos


barcos a vapor que transportam os turistas ao longo do rio Ohio. Ambos sorriam.
Seu braço a envolvia e ela se apoiava nele. Parecia feliz e relaxada, com calças
azuis bem leves e blusa.

Demorei algum tempo estudando a fotografia de Dan. Era aprumado, de


aspecto robusto e usava uma camisa xadrez. Precisamente o tipo de homem que se
esperava que uma garota do campo levasse para apresentar aos pais.

— Posso ficar com isso? — perguntei e ela acenou. — Obrigada — guardei a


fotografia na minha mala, sentindo-me desconfortável com a forma como os seus
olhos se fixavam na fotografia — como se o pudesse trazer de volta só com sua
força de vontade. — Sabe como poderemos entrar em contato com os parentes
dele? Pode ser que se trate de uma emergência familiar, ele pode ter precisado
partir sem avisar.

— Dan é filho único — disse ela, limpando o nariz com o lenço amarrotado.
— Tanto a mãe como o pai já faleceram. Eram servos numa fazenda, no Norte. A
esperança de vida não é muito elevada para um agricultor.

— Oh! — não sabia o que mais dizer. — Tecnicamente, não podemos entrar
no apartamento dele, a não ser que seja declarado desaparecido. Por acaso não tem
chave, tem?

— Sim. Eu... — ela corou visivelmente, mesmo através da maquiagem. —


Eu cuido do gato dele, quando ele trabalha até tarde.
31

Olhei de relance para o amuleto detector de mentiras que tinha no colo,


enquanto ele passava de verde para vermelho por breves instantes. Ela estava
mentindo, mas eu não precisava de um amuleto para perceber tal coisa. Não disse
nada, não querendo embaraçá-la ainda mais, levando-a a admitir que tivesse a
chave por motivos mais românticos.

— Estive lá hoje, por volta das sete — disse ela, os olhos baixos. — Tudo
parecia bem.

— Às sete da manhã? — Edden descruzou os braços e endireitou-se.

— Há essa hora vocês... Vocês bruxas, quero dizer... Não estão enfiadas na
cama?

Ela ergueu o olhar e acenou.

— Sou a secretária particular do Sr. Kalamack. Ele trabalha de manhã e no


fim do dia, por isso tenho horário duplo. Das oito ao meio-dia e das quatro às oito
da noite. Demorei algum tempo para me habituar, mas com quatro horas para
mim, pude passar mais tempo com... Com o Dan — terminou. — Por favor —
implorou a jovem, de forma súbita, o olhar saltando entre mim e Edden. — Eu sei
que algo está errado. Por que ninguém me ajuda?

Eu me mexi na cadeira, desconfortável, enquanto ela lutava para se


recompor. Ela sentia-se impotente. Eu compreendia melhor do que ela podia
imaginar. Sara Jane era a mais recente de uma longa fila de secretárias de Trent.
Sob a forma de um visom, ouvira a sua entrevista, incapaz de avisá-la que estava
sendo levada a acreditar nas meias verdades de Trent. Apesar de toda sua
inteligência, ela não tinha qualquer hipótese de escapar ao seu charme e às suas
ofertas extravagantes. Com a sua oferta de emprego, Trent tinha dado à família
dela um bilhete dourado que lhe permitiria escapar do contrato de servidão.

E , T r e n t K a l a m a c k e r a , d e fa to , u m p a tr ã o b e n e v o l e n te o fe r e c e n d o
ordenados elevados e regalias espantosas. Dava às pessoas aquilo que elas
desejavam desesperadamente, não pedindo nada em troca a não ser a sua
lealdade. Quando, por fim, compreendiam quão profunda era a exigência e
lealdade, sabiam demais para poderem se libertar.

Sara Jane tinha escapado da fazenda, mas Trent a tinha comprado


provavelmente para garantir que ela manteria a boca fechada quando descobrisse
que ele negociava com enxofre — a droga ilegal —, bem como com os muitíssimo
32

requisitados medicamentos genéticos proibidos desde a Viragem. Eu quase


consegui descobrir a verdade, mas a única testemunha que tinha falecera na
explosão de um carro.

Publicamente, Trent fazia parte do conselho da cidade e era intocável


devido à sua vasta riqueza e aos generosos donativos que oferecia a instituições de
caridade e às crianças mais pobres. Em privado, ninguém sabia sequer se era
humano ou Inderlander. Nem Jenks era capaz de perceber — o que era incomum
para um pixy. Trent controlava, discretamente, uma boa fatia do submundo de
Cincinnati e tanto o DFI como a SI, venderiam de bom grado os seus patrões para
conseguirem levá-lo ao tribunal. E, agora, o namorado de Sara Jane tinha
desaparecido.

Limpei a garganta, recordando a tentação da oferta que Trent me fizera.


Vendo que Sara Jane tinha se recomposto, perguntei:

— Disse que ele trabalha na pizzaria Piscary's?

Ela acenou.

— É entregador. Foi assim que nos conhecemos — ela mordeu o lábio e


baixou os olhos.

O detector de mentiras mantinha-se verde. Piscary's era um restaurante


Inderlander que servia de tudo, desde sopa de tomate a cheesecake gourrnet. Dizia-se
qu e o pró pri o Pi sca r y era um do s me st re s vam pi ro s de Cin cinn at i.
Suficientemente simpático, pelo que ouvira: não era ganancioso com os seus
vampiros, de temperamento calmo, documentado como morto há trezentos anos.
Claro que, provavelmente, era mais velho do que isso e quanto mais simpático e
civilizado parecia um vampiro morto-vivo, mas geralmente era depravado. A
garota com quem eu partilhava a casa pensava nele como uma espécie de tio
amigável, o que me fazia sentir quentinha e fofa por dentro.

Dei outro lenço a Sara Jane e ela sorriu ligeiramente.

— Posso ir ao apartamento dele, hoje — disse eu. — Acha que pode


encontrar-se comigo lá e levar a chave? Por vezes, um profissional consegue
perceber coisas em que os outros não reparam.

Jenks fungou e virei os olhos, batendo na parte de baixo da mesa, para fazê-
lo saltar. Sara Jane mostrou alívio.
33

— Oh, obrigada, senhorita Morgan — disse ela, de repente. — Posso ir


agora mesmo. Só tenho que ligar para o meu patrão para lhe dizer que chegarei
um pouco atrasada — agarrou na mala, parecendo pronta para sair correndo da
sala. — O Sr. Kalamack me disse que podia demorar o tempo que fosse preciso
esta tarde.

Olhei de relance para Jenks que zumbia, chamando atenção. Tinha uma
expressão preocupada que dizia: eu te disse. Como era simpático da parte de Trent
permitir que a secretária demorasse todo o tempo que fosse preciso para encontrar o
namorado, quando o mais certo era que este estivesse enfiado num armário para
manter a boca fechada.

— Ah, vamos combinar para esta noite — disse eu, pensando no meu peixe.
— Preciso tratar de umas coisas.

E preparar alguns feitiços anti-rufia, verificar o estado da minha arma de bolas


explosivas e cobrar os meus honorários...

— Claro — disse ela, recostando-se ao mesmo tempo em que sua expressão


se tornava nublada.

— E, se não encontrar nada lá passaremos ao passo seguinte — tentei fazer


com que o meu sorriso fosse reconfortante. — Poderei encontrar com você no
apartamento de Dan um pouco depois das oito?

Ouvindo a nota de despedida na minha voz, ela acenou e levantou-se. Jenks


ergueu-se no ar, esvoaçando e eu levantei-me também.

—Muito bem — disse ela. — Fica em Redwood...

Edden deslocou-se arrastando os pés.

— E u i n fo r m a r e i a s e n h o r i ta M o r g a n d a s u a l o c a l i z a ç ã o , s e n h o r i ta
Gradenko.

— Sim. Obrigada — o sorriso dela começava a parecer afetado. — É que


estou tão preocupada...

Guardei o amuleto detector de mentiras. Escondendo o gesto, vasculhei a


minha mala e retirei do seu interior um dos meus cartões.
34

— Por favor, comunique-me ou ao DFI caso receba notícias dele — disse eu,
enquanto lhe entregava. Ivy tinha mandado fazer os cartões com um profissional e
eles tinham um excelente aspecto.

— Assim farei — murmurou ela, os lábios movendo-se enquanto lia as


palavras ENCANTAMENTOS VAMPÍRICOS — o nome que Nick dera à agência
que eu e Ivy tínhamos montado.

O olhar dela cruzou-se com o meu quando guardou o cartão na bolsa. Eu


apertei-lhe a mão, achando que ela mostrara mais firmeza no gesto desta vez.
Contudo, os seus dedos continuavam frios.

— Eu a acompanho à saída, Srta. Gradenko — disse Edden, enquanto abria


a porta. Perante o seu gesto sutil, voltei a afundar-me na minha cadeira para
esperar.

Jenks agitou as asas, zumbindo para chamar a minha atenção.

— Não gosto disto — disse, quando os nossos olhares se cruzaram.

Fui consumida por uma centelha de ira.

— Ela não estava mentindo — disse eu, de forma defensiva. Ele pousou as
mãos no quadril e eu o afastei do meu copo com um aceno para poder beber um
gole do café morno. — Não a conhece, Jenks. Ela odeia vermes, mas tentou
impedir que Jonathan me atormentasse ainda que isso pudesse ter custado seu
emprego.

— Ela teve pena de você — disse Jenks. — Um pobre visom com um


traumatismo.

— Deu-me parte do seu almoço quando me recusei a comer aquela comida


seca.

— As cenouras estavam drogadas, Rache.

— Ela não sabia. Sara Jane sofreu tanto como eu.

O pixy pairava quinze centímetros à minha frente, exigindo que olhasse


para ele.
35

— É isso que estou dizendo. Trent pode estar usando-a para te atingir e ela
nunca saberá.

O meu suspiro o afastou.

— Ela está encurralada. Tenho que ajudá-la, se puder.

Ergui os olhos quando Edden abriu a porta e espreitou para o interior.


Tinha na cabeça um chapéu do DFI — algo que parecia estranho com a camisa
branca e as calças caqui — e fez um gesto na minha direção. Jenks esvoaçou para o
meu ombro.

— Esses seus "impulsos salvadores" vão acabar te matando — sussurrou,


enquanto eu saía para o corredor.

— Obrigado, Morgan — disse Edden, enquanto agarrava o recipiente do


peixe e me acompanhava ao exterior.

— Não tem de quê — disse eu, enquanto passávamos pelos gabinetes do


DFI. O burburinho das pessoas cobriu-me e eu senti a minha tensão desvanecer na
autonomia abençoada que ele me oferecia. — Ela não mentiu sobre nada a não ser
o fato de ter uma chave só para deixar sair o gato, mas eu podia ter dito isso sem o
feitiço. Depois te digo o que encontrei no apartamento de Dan. Até que horas
posso te ligar?

— Oh — disse Edden audivelmente, enquanto passávamos pela recepção e


avançamos para o passeio iluminado pelo sol. — Não é preciso, menina Morgan.
Obrigado pela sua ajuda. Irei contactá-la mais tarde.

Estanquei, surpresa. Um caracol que escapara do rabo-de-cavalo tocava-me


no ombro enquanto as asas de Jenks batiam uma contra a outra, num som áspero.

— Que raios? — murmurou ele.

Senti o rosto ferver, quando percebi que ele estava me dispensando.

— Eu não vim até aqui só para invocar um amuletozinho detector de


mentiras — disse, ao mesmo tempo em que recomeçava a andar. — Eu te disse
que deixava o Kalamack em paz. Saia do meu caminho e deixe-me fazer aquilo em
que sou boa.
36

Atrás de mim, as conversas começavam a silenciar-se. Edden não mostrou


qualquer sinal de hesitação, enquanto se deslocava lentamente para a porta.

— É um assunto do DFI, menina Morgan. Deixe que te abra a porta.

Eu segui-o, bem de perto, sem prestar atenção aos olhares desconfiados que
eram lançados.

— Este serviço é meu, Edden — quase gritei. — Os seus homens vão


estragar tudo. Trata-se de Inderlanders, não de humanos. Pode ficar com a glória.
Tudo o que quero é ser paga. E ver Trent atrás das grades, acrescentei para mim
mesma.

Ele empurrou uma das portas de vidro duplas, abrindo-a. A construção


aquecida pelo sol lançava para o ar uma onda de calor, enquanto eu saía
bruscamente atrás de Edden quase empurrando o homem baixo contra o edifício
quando ele fez sinal a um táxi.

— Ofereceu-me este serviço e eu vou realizá-lo — exclamei, puxando um


cacho da boca, enquanto o vento o fazia colar-se ao meu rosto. — Não um sujeito
qualquer convencido e arrogante com um chapéu do DFI que se acha a melhor
coisa desde a Viragem!

— Ótimo — disse ele, levemente, fazendo-me recuar com o choque.


Pousando o recipiente na calçada, enfiou o chapéu do DFI no bolso de trás das
calças. — Mas a partir deste momento, está oficialmente dispensada do serviço.

A minha boca abriu-se ao compreender. Oficialmente, eu não estava ali.


Inspirando fundo, forcei a adrenalina a sair do meu sistema. Edden acenou ao ver
que a minha fúria abrandava.

— Gostaria que agisse com discrição, neste caso — disse ele. — Enviar
Glenn sozinho para a pizzaria Piscary's não é prudente.

— Glenn! — guinchou Jenks, a voz raspando no interior do meu crânio


fazendo os meus olhos encherem-se de lágrimas.

— Não — disse eu. — Já tenho a minha equipe. Não precisamos do detetive


Glenn.

Jenks saltou do meu ombro.


37

— Isso — disse, enquanto voava entre mim e o capitão do DFI. Tinha as


asas vermelhas. — Não gostamos de brincar com outros.

Edden franziu o cenho.

— Isto é um assunto do DFI. Sempre que possível, terá alguém do DFI


acompanhando e Glenn é o único qualificado para fazê-lo.

— Qualificado? — perguntou Jenks, sarcástico. — Por que não admitir que


é o único agente capaz de falar com uma bruxa sem fazer xixi nas calças?

— Não — disse eu, com firmeza. — Trabalhamos sozinhos.

Edden endireitou-se — os braços cruzados, aliados à sua estrutura


atarracada, faziam com que parecesse tão intransponível como uma parede de
pedra.

— Ele é o nosso novo especialista Inderlander. Sei que é inexperiente...

— É um idiota! — disse Jenks, de repente. Edden sorriu.

— Pessoalmente, prefiro pouco elegante — cerrei os lábios. — Glenn é um


cara arrogante e convencido, um... — gaguejei, tentando encontrar um termo
suficientemente depreciativo. — Lacaio do DFI que vai arranjar uma maneira de
acabar morto na primeira vez que der de cara com um Inderlander que não seja tão
simpático como eu.

Jenks abanou a cabeça.

— Precisa que lhe ensinem uma lição.

Edden sorriu.

— Ele é meu filho e eu não podia estar mais de acordo — disse.

— Ele é o quê? — exclamei, enquanto um veículo descaracterizado do DFI


parava na calçada ao nosso lado. Edden levou a mão ao puxador da porta de trás e
abriu-a. Edden tinha, claramente, ascendência européia e Glenn... Não!

Minha boca movia-se enquanto eu tentava encontrar algo para dizer que
não pudesse — de todo — ser considerado racista. Sendo bruxa, eu era sensível a
esse tipo de coisas. — Então, por que ele não usa seu sobrenome? — consegui
dizer.
38

— Ele passou a usar o nome de solteira da mãe desde que se juntou ao DFI -
disse Edden, baixinho. — Não era correto ter ficado sob a minha direção, mas não
tinha mais ninguém disposto a aceitar o lugar.

Franzi o cenho, agora compreendia a fria recepção no DFI. Não tinha sido
apenas eu. Glenn era novo ali, tendo sido abrigado a aceitar um lugar que todos —
menos o pai — consideravam uma perda de tempo.

— Não vou fazer isso — disse eu. — Arranje outra pessoa para ser babá do
seu filho.

Edden pousou o recipiente no banco de trás.

— Ensine-o com cuidado.

— Não está ouvindo — disse eu, em voz alta, frustrada. — Atribuiu-me este
serviço. Eu e os meus sócios agradecemos a sua oferta de ajuda, mas foi você quem
me chamou. Afaste-se do nosso caminho e deixe-nos trabalhar.

— Ótimo — disse Edden enquanto fechava a porta de trás do carro. —


Muito obrigado por levar o detetive Glenn consigo ao Piscary's.

Deixei escapar um grito de desespero.

— Edden! — exclamei, arrancando olhares às pessoas que passavam por


nós. — Eu disse que não. Há apenas um som saindo dos meus lábios. Um som...
Três letras... Um significado... Não!

Edden abriu a porta do passageiro e fez um gesto para que eu entrasse.

— Muitíssimo obrigado, Morgan — olhou de relance para o banco de trás.


— Então, porque está trabalhando para aqueles animalomens?

Libertei a respiração com um som lento e contínuo. Maldição.

Edden soltou uma gargalhada e eu entrei no carro e bati a porta, tentando


aertar seus dedos roliços. Franzindo a testa, olhei para o motorista. Era Glenn. Ele
parecia tão feliz como eu me sentia. Tive de dizer qualquer coisa.

— Não se parece nada com seu pai — disse-lhe, sarcasticamente.

O olhar dele estava fixo — com a rigidez de uma vareta — no vidro da


frente.
39

— Ele adotou-me quando se casou com a minha mãe — disse, de dentes


cerrados.

Jenks entrou, deixando atrás de si um rastro brilhante de pó de pixy.

— É o filho do Edden?

— Tem algum problema com isso? — perguntou ele, de forma beligerante.

O pixy pousou no tablier, com as mãos na cintura.

— Não. Os humanos parecem-me todos iguais.

Edden abaixou-se enfiando o rosto sorridente e redondo através da janela.

— Tem aqui o seu horário — disse ele, entregando-me meia folha amarela
com furos dos lados. — Segunda, quarta e sexta. Glenn comprará todos os livros
que precisar.

— Espere aí! — exclamei, sentindo o alarme percorrer-me enquanto o papel


amarelo fazia barulho entre meus dedos. — Pensei que só ia meter o nariz na
universidade. Não quero ter que ir às aulas!

— É a disciplina que o Sr. Smather estava fazendo. Apareça, ou não será


paga.

Ele sorria, estava gostando daquilo.

— Edden! — gritei, enquanto ele recuava para o passeio.

— Glenn, leve a Srta. Morgan e Jenks ao gabinete deles. Depois me diga o


que encontraram no apartamento de Dan Smather.

— Sim, senhor! — bradou ele. Os nós dos dedos que agarravam o volante
revelavam uma pressão feroz. Manchas rosadas de pomada contra picadas e
alergias decoravam-lhe os pulsos e o pescoço. Não me interessava que tivesse
ouvido a maior parte da conversa. Ele não era bem vindo e quanto mais cedo
compreendesse, melhor.
40

Capitulo 4
— À direita na próxima esquina — disse eu, pousando o braço na janela
aberta da viatura descaracterizada do DFI.

Glenn passou os dedos pelo cabelo curto, coçando o couro cabeludo.

Não dissera uma palavra durante o caminho, relaxando o maxilar


gradualmente, ao compreender que eu não ia obrigá-lo a falar comigo. Não tinha
ninguém atrás de nós, mas ele ligou a seta antes de virar para a minha rua.

Tinha os óculos de sol postos e observava o bairro residencial com suas


calçadas à sombra e gramados irregulares. Estávamos nas profundezas de
Hollows, o refúgio não oficial para a maior parte dos residentes Inderlanders de
Cincinnati desde a Viragem, quando todos os humanos que sobreviveram fugiram
para a cidade e se refugiaram numa falsa sensação de segurança. Sempre houve
alguma mistura, mas na sua maioria, os humanos viviam e trabalhavam em
Cincinnati desde a Viragem e os Inderlanders trabalhavam e... Hum... Brincavam
em Hollows.

Acho que Glenn estava surpreso pelo fato de os subúrbios se parecerem


com qualquer outro bairro — até nós percebermos que havia barrancos
desenhados com jogo da amarelinha e que o cesto de basquete tinha mais de um
terço da altura regulamentar da NBA. Também era mais silencioso. Mais pacífico.
41

Em parte, isso se devia ao fato de as escolas não deixarem sair os alunos até perto
da meia-noite, mas na sua maioria, tratava-se de instinto de preservação.

Todos os Inderlanders com mais de quarenta anos tinham passado os seus


primeiros anos de vida tentando esconder o fato de que não eram humanos —
uma tradição explicável pelo receio cuidadoso dos caçados, vampiros inclusive.
Por isso, a relva é cortada por adolescentes carrancudos as sextas, os carros são
diligentemente lavados aos sábados e o lixo acumula-se em pilhas organizadas, na
calçada, às quartas. Contudo, as lâmpadas dos postes são destruídas por tiros ou
feitiços logo que a Câmara as substitui e ninguém chama a Proteção dos Animais
quando vê um cão abandonado, já que pode se tratar do filho do vizinho
cabulando as aulas.

A perigosa realidade de Hollows permanece cuidadosamente escondida.


Sabemos que se nos afastarmos muito dos limites auto impostos pela humanidade,
os medos antigos voltarão à superfície e seremos atacados. Eles perderiam a
guerra — de forma retumbante — e os Inderlanders, como um todo, gostam das
coisas equilibradas, tal como estão. Menos humanos significaria que as bruxas e os
animalomens se veriam obrigados a sustentar as necessidades dos vampiros. E,
embora uma ou outra bruxa "apreciasse" o estilo de vida vampírico por vontade
própria, nos uniríamos para acabar com eles se nos tentassem transformar em
comida. Os vampiros mais antigos sabem disso e, por isso, garantem que todos
hajam de acordo com as regras da humanidade.

Felizmente, o lado mais selvagem dos Inderlanders gravita — como é natural


— para os limites exteriores de Hollows e para longe dos nossos lares. A faixa de
clubes noturnos ao longo de ambas as margens do rio é particularmente perigosa,
já que os humanos em grupo e embriagados atraem os maiores predadores entre
nós... Como fogueiras numa noite fria, com promessas de calor e certezas de
sobrevivência. Os nossos lares são mantidos tão humanos quanto possível.
Aqueles que se afastam demais da imagem do Sr. e da Sra. Cleaver2 eram
encorajados — através de um grupo de intervenção de bairro muito notável — a
misturarem-se um pouco mais... Ou a mudarem-se para o campo, onde podiam
provocar menos danos.

Meu olhar passou divertido pelo sinal que se erguia de um canteiro de


flores. NOTURNO, VENDEDORES SERÃO COMIDOS.

Personagens da série norte-americana Leave It to Beaver. 2


42

Pelo menos na sua maioria.

— Pode estacionar ali, à direita — disse eu, apontando. Glenn franziu a


sobrancelha.

— Pensei que íamos ao seu escritório.

Jenks esvoaçou do meu brinco para o espelho retrovisor.

— E vamos — disse, sarcástico.

Glenn coçou o maxilar com a barba curta, emitindo um som raspado sob as
unhas.

— Dirige sua agência numa casa?

Eu suspirei, perante o tom paternalista.

— Mais ou menos. Por estes lados qualquer lugar serve.

Ele parou junto à calçada, em frente à casa de Keasley — o "sábio velhote"


do bairro que tinha tanto o equipamento como os conhecimentos médicos de uma
pequena sala de urgências, que colocava à disposição de todos os que soubessem
ficar de boca fechada. Do outro lado da rua erguia-se uma pequena igreja de
pedra, a torre do sino erguendo-se bem alto sobre dois carvalhos gigantes. Estava
situada sobre quatro lotes urbanos e vinha acompanhada pelo seu próprio
cemitério.

Alugar uma igreja abandonada não fora ideia minha, mas de Ivy. A
paisagem de lápides que se estendia em frente à janela de vitral do meu quarto
levou algum tempo para acostumar, mas a cozinha mais do que compensava o
fato de ter humanos mortos enterrados nos fundos.

Glenn desligou o motor e o novo silêncio impregnou tudo. Antes de sair,


percorri os pátios vizinhos, um hábito que criara devido às não muito distantes
ameaças de morte e que achei prudente manter. O velho Keasley estava — como
de costume — na sua cadeira balançando-se e mantendo o olhar atento na rua.
Acenei e recebi como resposta uma mão erguida. Convencida de que ele me
avisaria de algo — caso fosse necessário —, saí e abri a porta dos fundos para
retirar o recipiente com o peixe.
43

— Eu cuido disso, minha senhora — disse Glenn, enquanto a porta do seu


lado se fechava com um som surdo. Eu dirigi-lhe um olhar cansado, por cima da
capota.

— Pare com o "minha senhora", pode ser? Meu nome é Rachel.

Seu olhar fixou-se num ponto acima do meu ombro e ele ficou visivelmente
rígido. Eu o encarei esperando o pior e, relaxei ao ver uma nuvem de crianças
pixies que desciam do ar — num coro de diálogos agudos e muito rápidos para
que os conseguisse seguir. Tinham sentido a falta do papai Jenks, como sempre.

M e u m a u hu m o r de s a pa r e c e u en q u an t o a s f i gu r a s d a r de j a n t e s e
rodopiantes — vestidas de verde-claro e dourado — giravam em torno do pai,
como num pesadelo da Disney. Glenn tirou os óculos, os olhos castanhos muito
abertos e os lábios afastados.

Jenks emitiu um assobio penetrante com as asas e a trupe afastou-se o


suficiente para que ele pudesse pairar à minha frente.

— Ei, Rache — disse ele. — Estarei nos fundos se você precisar de mim.

— Claro — olhei de relance para Glenn e sussurrei. — Ivy está em casa?

Os pixies seguiram o meu olhar para o humano e sorriram. Sem dúvida


imaginando o que Ivy faria quando conhecesse o filho do capitão Edden.

Jax, o filho mais velho de Jenks, juntou-se ao pai.

— Não, menina Morgan — disse ele, dando à sua voz pré-adolescente um


timbre mais profundo do que tinha normalmente. — Foi fazer algumas coisas...
Supermercado, os correios, o banco. Ela disse que estaria de volta antes das cinco.

O banco, pensei, tremendo. Ela deveria esperar até eu conseguir o resto da


minha renda. Jax traçou três círculos ao redor da minha cabeça, deixando-me
tonta.

— Adeus, menina Morgan — gritou, voando para se juntar aos irmãos, que
escoltavam o pai de volta à igreja e ao tronco de carvalho para onde Jenks levara a
sua família gigantesca.

Soltei a respiração de forma ruidosa, quando Glenn contornou o carro


oferecendo-se para transportar o recipiente. Abanei a cabeça e tomei-lhe o
44

recipiente, não era assim tão pesado. Começava a sentir-me culpada por ter
permitido que Jenks o pixasse. Mas, naquela hora, não sabia que ia ser a sua babá.

— Vamos entrar — disse eu, começando a atravessar a rua, em direção aos


grandes degraus de pedra.

O som dos seus sapatos de sola dura batendo no chão da rua revelou sua
hesitação.

— Vive numa igreja.

Semicerrei os olhos.

— Sim, mas não durmo com bonecos de vodu.

— Hã?

— Esqueça.

Glenn murmurou qualquer coisa e a minha culpa tornou-se ainda mais


profunda.

— Obrigada por ter me trazido em casa — disse, enquanto subia os degraus


de pedra e abria o lado direito das portas de madeira duplas para que passasse.
Ele não disse nada e eu acrescentei. — Sério. Obrigada.

Hesitando na ombreira da porta, ele olhou para mim fixamente. Eu não


conseguia perceber o que ele estava pensando.

— Não tem de quê — acabou por dizer, mas a sua voz também não me deu
qualquer pista.

Guiei-o através do foyer vazio até ao santuário, ainda mais vazio. Antes de
termos alugado a igreja, esta tinha sido usada como jardim de infância. Os bancos
corridos e o altar tinham sido retirados para proporcionar uma área maior para as
crianças brincarem. Agora, tudo o que restava eram os vitrais e um palco l i
g e i r a me n t e e rg u i d o . A so mb r a d e u ma c ru z e n o r me — h á m u i t o t e m p o
desaparecida — espalhava-se sobre a parede como uma recordação. Olhei de
relance para o teto alto, encarando de forma diferente a divisão familiar, enquanto
Glenn a fitava. Era silenciosa. E, eu já tinha esquecido como era pacífica.
45

Ivy espalhara colchões de ginástica sobre metade do santuário, deixando


um corredor estreito que se estendia do foyer para as salas dos fundos. Pelo menos
uma vez por semana, lutávamos para mantermos as nossas capacidades — agora
que éramos as duas independentes e não percorríamos as ruas todas as noites. A
sessão terminava, invariavelmente, comigo suada e coberta de hematomas negros,
enquanto ela não ficava sequer sem fôlego. Ivy era uma vampira viva — tão viva
como eu — e, com a alma infectada pelo vírus do vampirismo por intermédio da
mãe.

Não tendo que esperar pela morte para que o vírus começasse a moldá-la,
Ivy nascera com um pouco de ambos os mundos — o dos vivos e o dos mortos —
presa num terreno intermediário até morrer e se tornar uma verdadeira morta-
viva. Dos vivos tinha a alma — que lhe permitia andar ao sol, rezar sem dor e
viver em solo sagrado se quisesse, algo que fazia para irritar a mãe — e, dos
mortos tinha os pequenos, mas afiados caninos, a capacidade de usar a sua aura e
de me assustar terrivelmente bem como o poder de enfeitiçar aqueles que o
permitissem. A sua força e velocidade sobrenaturais eram, sem sombra de dúvida,
inferiores às de um verdadeiro morto-vivo, mas ainda assim muito superiores às
minhas. E, embora não precisasse de sangue para manter a sanidade, tinha uma
perturbadora sede de sangue que estava constantemente lutando para suprimir, já
que ela era uma das poucas vampiras vivas a ter jurado manter-se limpa de
sangue. Imaginava que Ivy tivesse tido uma infância interessante, mas tinha medo
de perguntar.

— Venha até a cozinha — disse eu, enquanto atravessava a passagem em


arco no fundo do santuário.

Tirei os óculos quando passei pelo meu banheiro. Aquele fora, outrora, o
banheiro dos homens. As louças tradicionais substituídas por uma máquina de
lavar e secar, um pequeno lavatório e um chuveiro. O banheiro das senhoras, do
outro lado do corredor, tinha sido transformada num banheiro mais convencional,
com uma banheira. Esse era de Ivy. Banheiros separados tornavam as coisas muito
mais fáceis.

N ão ap r e c i a n d o a f o r m a c o m o G l e nn i a f a z e n d o o s s eu s j u l ga m e n t o s
silenciosos, fechei as portas tanto do quarto de Ivy como do meu, ao passar por
eles. Tinham sido, outrora, os gabinetes dos clérigos. Ele entrou na cozinha atrás
de mim, arrastando os pés, demorando alguns instantes a absorver tudo aquilo.
Era assim com a maior parte das pessoas.
46

A cozinha era enorme e parte da razão pela qual eu aceitara viver numa
igreja com uma vampira. Tinha dois fogões, uma geladeira de tamanho gigante e
uma grande ilha central sobre a qual estava pendurada uma estrutura repleta de
utensílios brilhantes. O aço inoxidável brilhava e o espaço do balcão era extenso.
Com exceção do meu Beta no copo de brandy, pousado no parapeito da janela e da
enorme mesa antiga que Ivy usava como mesa para o computador, parecia o
cenário de um programa de culinária. Era a última coisa que se esperava encontrar
nos fundos de uma igreja e eu adorava-a.

Pousei o recipiente com o peixe sobre a mesa.

— Porque não se senta — disse, querendo ligar para os Howlers. — Volto


num instante — hesitei, enquanto os meus bons modos avançavam com muito
custo, vindos dos recessos da minha mente. — Quer uma bebida... Ou alguma
coisa? — perguntei.

Os olhos castanhos de Glenn eram indecifráveis.

— Não, minha senhora.

A voz dele estava rígida com mais do que um toque de sarcasmo — o que
me deu vontade de lhe dar um açoite e de lhe dizer que se acalmasse. Lidaria com
a sua atitude mais tarde. Agora tinha que ligar para os Howlers.

— Então sente-se — disse, revelando parte da minha irritação. — Volto já.

A sala de estar ficava mesmo em frente à cozinha, do outro lado do


corredor. Enquanto procurava na bolsa o número de telefone do treinador, apertei
no botão para ouvir as mensagens da secretária eletrônica.

— Ei, Ray-Ray. Sou eu — disse a voz de Nick, parecendo fraca na gravação.


Olhando de relance para o outro lado do corredor, baixei o som para que Glenn
não ouvisse. — Já os tenho. Terceira fila a contar de trás, do lado direito. Agora vai
ter que cumprir com a tua palavra e arranjar os passes para os bastidores — houve
uma pausa seguida de: — Ainda não acredito que o conheceu. Falamos mais tarde.

Minha respiração acelerou de excitação quando a mensagem chegou ao fim.


Tinha conhecido Takata quatro anos antes, quando ele me vira no segundo balcão,
durante um concerto de verão. Eu pensei que ia ser expulsa quando um
corpulento animalomem com uma t-shirt do staff me acompanhou aos bastidores
enquanto a banda de abertura tocava.
47

Afinal Takata vira o meu cabelo frisado e queria saber se tratava-se de


feitiço ou se era natural e, caso fosse natural, se eu tinha algum amuleto que
permitisse manter liso algo tão rebelde? Encantada por me encontrar perante uma
estrela e embaraçando-me por várias vezes, admiti que era natural, embora lhe
tivesse dado algum encorajamento nessa noite e oferecido um dos encantamentos
para domá-lo — que eu e a minha mãe tínhamos passado a minha adolescência a
aperfeiçoar. Então ele riu, desfazendo uma das suas finas tranças louras e
revelando um cabelo ainda pior do que o meu, a estática fazia-o flutuar e colar-se a
tudo. Nunca mais alisara o meu cabelo.

Eu e os meus amigos tínhamos assistido ao espetáculo a partir dos


bastidores e, depois, Takata e eu obrigamos os guarda-costas dele a perseguirem-
nos através de Cincinnati durante toda a noite. Eu tinha certeza de que ele ia
l e m b r a r - s e d e m i m , m a s n ã o fa z i a i d e i a d e c o m o c o n t a t á - l o . N ã o p o d i a
propriamente ligar e dizer: "Lembra-se de mim? Tomamos café no verão, há quatro anos
e falamos sobre como endireitar cachos."

Um sorriso fez tremer os cantos dos meus lábios, enquanto mexia com o
dedo na secretária. Ele era legal para um velhote. Claro que qualquer pessoa com
mais de trinta anos me parecia velha. A mensagem de Nick era a única e me
surpreendi ao andar de um lado para o outro, enquanto agarrava o telefone e
discava o número dos Howlers. Puxei a borda da camisa enquanto esperava que
atendessem. Depois de ter estado fugindo daqueles animalomens, tinha que tomar
um banho. Houve um clique e uma voz baixa quase rosnou.

— Sim. Ligou para os Howlers.

— Treinador! — exclamei reconhecendo a voz do animalomem. — Boas


notícias.

Houve uma pequena pausa.

— Quem fala? — perguntou ele. — Onde é que arranjou este número?

Eu comecei.

— É a Rachel Morgan — disse lentamente. — Dos Encantamentos


Vampíricos?

Houve um grito só meio ouvido dirigido para longe do telefone.


48

— Qual de vocês, cães, ligou para o serviço de acompanhantes? Vocês são


atletas, pelo amor de Deus. Não conseguem arranjar as próprias cadelas sem terem
de pagar por elas?

— Espere! — disse eu, antes que ele pudesse desligar. — Contratou-me


para encontrar a sua mascote.

— Oh! — houve uma pausa e eu ouvi vários gritos de guerra ao fundo. —


Certo.

Avaliei rapidamente as vantagens de mudar o nosso nome e os problemas


que Ivy levantaria: mil cartões-de-visita pretos, brilhantes; o anúncio de uma
página na lista telefônica; as canecas gigantes que ela mandara gravar com o nosso
nome em folha de ouro. Não ia acontecer.

— R e c u p e r e i o s e u p e i xe — d i s s e , a r r a n c a n d o - m e d a s m i n h a s
contemplações. — Quando é que podem vir buscá-lo?

— Hum... — murmurou o treinador. — Ninguém te ligou?

Fiquei pálida.

— Não.

— Um dos rapazes mudou-a de lugar quando estavam limpando o tanque e


não disse a ninguém — explicou. — Ela nunca esteve desaparecida.

Ela? Pensei. O peixe era uma ela? Como é que eles sabiam? Depois fiquei
furiosa. Tinha entrado no escritório de um grupo de animalomens para nada?

— Não — disse friamente. — Ninguém me ligou.

— Hum... Desculpe por isso, mas obrigado pela ajuda.

— Uou! Espere um momento — gritei, ao perceber na sua voz que estava


me dispensando. — Passei três dias planejando isso. Arrisquei a minha vida!

— E, estamos gratos... — começou o treinador.

Eu girei furiosa e fitei o jardim através das janelas que eram da altura do
meu ombro.

— Acho que não, Treinador. Estamos falando de tiros!


49

— Mas ela nunca esteve perdida — insistiu o treinador. — Não tem o nosso
peixe, lamento.

— Os seus lamentos não vão manter aqueles animalomens longe de mim —


furiosa, andava de um lado para o outro ao redor da mesinha de centro.

— Ouça — disse ele. — Mando bilhetes para o jogo de apresentação que


vamos ter em breve.

— Bilhetes! — exclamei, espantada. — Por ter entrado no escritório do Sr.


Ray?

— Do Simon Ray? — perguntou o treinador. — Entrou no escritório do


Simon Ray? Droga, isso é difícil. Adeus.

— Não, espere! — gritei, mas a chamada caiu. Fitei o telefone que zumbia.
Será que eles sabiam quem eu era? Será que eles sabiam que eu podia amaldiçoar
os tacos deles para que estalassem e as bolas curtas e altas para caírem fora? Será
que eles pensavam que eu ia sentar e não fazer nada enquanto estavam me
devendo o dinheiro do pagamento?!

Deixei-me cair na cadeira de camurça de Ivy com uma sensação de


desamparo.

— Sim, claro — disse suavemente.

Para realizar um feitiço sem contato, precisava de uma varinha. As


propinas da faculdade pública não cobriam a manufatura de varinhas, só porção e
amuletos. Eu não tinha os conhecimentos — quanto mais a receita — para algo
assim tão complicado. Parece que, afinal, eles sabiam exatamente quem eu era.

O som de um pé a raspar no linóleo chegou até mim vindo da cozinha e eu


olhei de relance para o corredor. Maravilha. Glenn tinha ouvido aquilo tudo.
Embaraçada, levantei-me da cadeira. Arranjaria o dinheiro em outro lugar. Tinha
quase uma semana.

Glenn moveu-se quando eu entrei na cozinha. Estava de pé, ao lado do


recipiente com o peixe inútil. Talvez o pudesse vender. Pousei o telefone ao lado
do computador de Ivy e dirigi-me a pia.

— Pode sentar-se, detetive Edden. Vamos ficar aqui por algum tempo.
50

— O meu nome é Glenn — disse ele, rígido. — É contra a política do DFI


ficar sob a alçada de um membro da família, por isso agradecia que o mantivesse
para si. E, agora vamos ao apartamento do Sr. Smather.

Eu soltei uma gargalhada que mais parecia um latido.

— O seu pai gosta mesmo de submeter-se às regras, não é?

Ele franziu a sobrancelha.

— Sim, minha senhora.

— Não vamos ao apartamento de Dan enquanto a Sara Jane não sair do


trabalho — disse, depois me curvei. Não era com Glenn que estava zangada. —
Ouça... — disse eu, não querendo que Ivy o descobrisse ali enquanto eu estava
tomando banho. — Por que não volta para casa e vem aqui encontrar comigo por
volta das sete e meia?

— Eu prefiro ficar — ele coçou a irritação mostrando uma mancha rosada


sob o bracelete do relógio.

— Claro — disse eu, amargamente. — Como queira, mas eu tenho que


tomar um banho — era óbvio que ele temia que eu fosse sem ele. A preocupação
tinha os seus fundamentos. Inclinando-me para a janela por cima da pia, gritei
para o jardim luxuriante de que os pixies cuidavam:

— Jenks!

O pixy atravessou tão depressa o buraco na rede mosqueteira que eu podia


apostar que ele estava nos ouvindo.

— Gritou, princesa do fedor? — disse ele, aterrando ao lado do Sr. Peixe, no


parapeito.

Eu dirigi-lhe um olhar cansado.

— Importa-se de mostrar o jardim ao Glenn, enquanto eu tomo banho?

As asas de Jenks começaram a agitar-se até não serem mais do que um


borrão.
51

— Sim — disse ele, esvoaçando para traçar círculos largos ao redor da


cabeça de Glenn. — Eu tomo conta dele. Anda, biscoito. Comecemos pelo
cemitério.

— Jenks — avisei e ele dirigiu-me um sorriso, atirando com maestria os


cabelos loiros para cima dos olhos.

— Por aqui, Glenn — disse ele, voando para o corredor. Glenn seguiu-o,
mas era óbvio que não estava feliz. Ouvi o som da porta dos fundos fechando e
debrucei-me à janela.

— Jenks?

— O que foi? — O pixy voou para a janela, o rosto marcado pela irritação.

Cruzei os braços, pensativa.

— Importa-se de me trazer algumas folhas de círio-do-rei e flores de maria-


sem-vergonha quando tiver oportunidade? E, temos dentes-de-leão que ainda não
tenham sementes?

— Dentes-de-leão? — ele desceu alguns centímetros, surpreendido, batendo


as asas. — Está ficando mole? Você vai fazer um feitiço contra a coceira, não vai?

Debrucei-me ainda mais para ver Glenn que se erguia rígido sob o carvalho,
coçando o pescoço. Tinha um ar infeliz e, como Jenks nunca parava de me dizer,
eu adorava os desfavorecidos.

— Limite-se a trazê-las, está bem?

— Claro — disse ele. — Assim não serve de grande coisa, não é?

Engoli uma gargalhada e Jenks voou pela janela, juntando-se à Glenn. O


pixy aterrou-se no ombro dele e Glenn saltou de surpresa.

— Ei, Glenn — disse Jenks em voz alta. — Segue na direção daquelas flores
amarelas ali, atrás do anjo de pedra. Quero mostrar-te o resto dos meus filhos. Eles
nunca viram um agente do DFI.

Um ligeiro sorriso espalhou-se no meu rosto. Glenn ficaria seguro com


Jenks, caso Ivy regressasse mais cedo. Ela protegia com unhas e dentes sua
privacidade e odiava surpresas — em especial aquelas que envolviam agentes do
52

DFI. O fato de Glenn ser filho de Edden também não ia ajudar. Ela estava disposta a
esquecer seu ressentimento, mas se sentisse que o escritório estava sendo
ameaçado, não hesitaria em agir e o seu estranho estatuto político como futuro
vampiro morto permitia-lhe fazer coisas que me atirariam para uma prisão da SI.

Quando deixei de espiar os dois, meus olhos caíram sobre o peixe.

— O que é que vou fazer contigo... Bob? — disse eu, suspirando.

Não ia levá-lo de volta ao escritório do Sr. Ray, mas não o podia deixar ficar
no recipiente. Abri a tampa descobrindo que as suas guelras ainda se moviam,
mas que ele estava quase de lado. Pensei que talvez fosse melhor metê-lo na
banheira.

Com o recipiente na mão, levei-o para o banheiro de Ivy.

— Bem-vindo à minha casa, Bob — murmurei, despejando o recipiente na


grande banheira preta. O peixe saltitou nos dois centímetros de água e eu apressei-
me a abrir as torneiras, controlando o seu fluxo para tentar manter a água à
temperatura ambiente. Logo Bob estava nadando em ociosos círculos hipnóticos.
Fechei a torneira e esperei que esta parasse de pingar e que a superfície ficasse lisa.
Era, de fato, um belo peixe que se destacava na porcelana negra — todo prateado,
com longas barbatanas creme e um círculo preto decorando um dos lados, como
uma Lua cheia em negativo. Mexi os dedos na água e ele afastou-se rapidamente
para a extremidade oposta da banheira.

Deixando-o, atravessei o corredor para o meu próprio banheiro. Tirei uma


muda de roupa da máquina de secar e abri a torneira do chuveiro. Enquanto
desfazia os nós do cabelo e esperava que a água aquecesse, os meus olhos caíram
sobre os três tomates que amadureciam no parapeito. Tinham sido dados por uma
pixy como pagamento por tê-la ajudado a atravessar a cidade em segredo,
enquanto fugia de um casamento indesejado. E, embora os tomates já não fossem
ilegais, era de mau gosto deixá-los à vista quando se tinha um convidado humano.

Tinham passado apenas quarenta anos desde que um quarto da população


hu man a fo ra mor ta por um vír us de fa bri ca ção m i l i t ar que t i nh a si d o
inadvertidamente liberado e, que se alojara — espontaneamente — num ponto
fraco de um tomate de bioengenharia. Este foi enviado para fora do laboratório
antes que alguém percebesse o que tinha acontecido — fazendo com que o vírus
atravessasse os oceanos com a facilidade de um viajante internacional — e, então,
53

a Viragem começou. O vírus mutante teve efeitos diferentes nos Inderlanders


escondidos.

As bruxas, os vampiros mortos-vivos e as espécies menores — como os


pixies e as fadas — não foram afetados de todo. Os animalomens, os vampiros vivos,
os duendes e outros tais tiveram constipações. Os humanos morreram aos grupos,
levando consigo os elfos — cuja política de miscigenação com a humanidade para
aumentar o seu número se revelou adversa.

Os Estados Unidos teriam mergulhado no caos — seguindo os países do


Terceiro Mundo — se os Inderlanders escondidos não tivessem avançado para
impedir a propagação do vírus, queimar os mortos e manter a civilização em
movimento até que o que restava da humanidade terminasse o seu luto.

O nosso segredo estava prestes a ser revelado — graças à fatal questão do


que é que torna estas pessoas imunes — quando um carismático vampiro vivo, de
nome Rynn Cormel, realçou o fato de que nós — como um todo — e a
humanidade éramos, agora, em igual número. A decisão de revelar a nossa
presença e de vivermos abertamente entre os humanos — que tínhamos vindo a
imitar para nos mantermos em segurança — foi quase unânime.

A Viragem — como passou a ser chamada — inaugurou um período de três


anos tenebrosos. A humanidade descarregou o medo que sentia de nós sobre os
bioengenheiros que tinham sobrevivido, assassinando-os em julgamentos
concebidos para legalizar os homicídios. Depois foram mais longe, proibindo
todos os produtos geneticamente modificados, assim como a ciência que os criara.

Uma segunda onda de mortes — bem mais lenta — seguiu-se à primeira na


medida em que as doenças antigas ganhavam nova vida, assim como os
medicamentos que a humanidade criara para combater doenças — como
Alzheimer e câncer — deixaram de existir. Os tomates continuam a ser encarados
como veneno pelos humanos, ainda que o vírus tenha desaparecido há tempos.
Quem não os cultiva tem de recorrer a lojas especializadas para encontrá-los.

Uma ruga marcou-me a testa, enquanto fitava o fruto vermelho coberto pela
umidade do banho. Se eu fosse esperta, o colocaria na cozinha para ver como
reagiria Glenn no Piscary's. Levar um humano a um restaurante Inderlander não
era das melhores ideias. Se ele fizesse uma cena, além de não conseguirmos
qualquer informação, podíamos ser banidos, ou pior.
54

Calculando que a água estava suficientemente quente, deslizei para debaixo


do chuveiro com uma série de pequenos "oh, oh, oh". Vinte minutos depois, estava
enrolada numa grande toalha cor-de-rosa em frente à minha horrível penteadeira
de madeira — sobre a qual se encontravam cerca de uma dúzia de frasquinhos de
perfume, cuidadosamente alinhados. A fotografia desfocada do peixe dos Howlers
estava presa entre o espelho e a moldura. A mim, parecia o mesmo peixe.

Os gritinhos felizes dos pequenos pixies entravam pela janela aberta e


acalmavam-me. Eram poucos os pixies que conseguiam criar a sua família na
cidade. Jenks tinha um espírito mais forte do que quase todas as pessoas que
conhecia. Já tinha matado para poder manter o seu jardim e impedir que os seus
filhos morressem de fome. Era bom ouvir as suas vozes felizes: o som da família e
da segurança.

— Que perfume era? — murmurei, os dedos pairando sobre os perfumes


enquanto tentava lembrar qual deles Ivy e eu estávamos testando. De vez em
quando — sem qualquer comentário — aparecia um novo frasco na minha
penteadeira quando ela encontrava algo novo para eu experimentar.

Levei a mão um a um baixando-a quando Jenks murmurou ao meu ouvido:

— Esse não.

— Jenks!— apertei a toalha contra o corpo e virei-me. — Sai do meu quarto!

Ele voou para trás, quando eu tentei pegá-lo. O sorriso dele abriu-se ainda
mais, enquanto olhava para a perna que eu revelara, acidentalmente. Rindo,
passou por mim voando e aterrissou em cima de um dos frasquinhos.

— Este funciona bem — disse. — E, vai precisar de toda a ajuda que puder
arranjar quando for contar à Ivy que vai outra vez atrás de Trent.

Franzindo a sobrancelha, levei a mão ao frasco. Com as asas batendo, ele


ergueu-se e o pó de pixy cintilou durante alguns instantes, enquanto descia por
entre os frasquinhos brilhantes.

— Obrigada — disse eu, carrancuda, sabendo que o nariz dele era melhor
do que o meu. — Agora sai daqui. Não, espera — ele hesitou junto da pequena
janela de vitral e eu jurei costurar o pequeno buraco para pixies na rede
mosqueteira. — Quem está tomando conta do Glenn?

Jenks brilhou, literalmente, de orgulho paterno.


55

— O Jax. Estão no jardim. Glenn está atirando caroços de cerejas selvagens


com um elástico para os meus filhos os apanharem antes que caiam ao chão.

Fiquei tão surpreendida, que quase esqueci que o meu cabelo estava
pingando e que não tinha nada vestido para além de uma toalha.

— Ele está brincando com seus filhos?

— Sim. Ele não é assim tão mau... Quando o conhecemos melhor.

Jenks voou através do buraco para pixies.

— Mando-o para dentro, daqui a cinco minutos, está bem? — disse através
da rede mosqueteira.

— Espera, dez — disse, baixinho, mas ele já tinha partido.

Franzindo a sobrancelha fechei a janela, tranquei-a e verifiquei por duas


vezes se os cortinados estavam direitos. Pegando o frasco que Jenks sugeriu,
borrifei o perfume. Flores de canela. Ivy e eu tínhamos estado trabalhando durante
os últimos três meses para encontrar um perfume que escondesse seu odor natural
misturado com o meu. Aquele era um dos mais agradáveis.

Estivessem mortos-vivos ou vivos, os vampiros agiam de acordo com os


seus instintos desencadeados por feromônios e odores encontrando-se ainda mais
à mercê dos seus hormônios do que um adolescente. Emitiam um odor — em
grande medida indetectável — que cobria os espaços que eles ocupavam; um
aviso odorífico que avisava outros vampiros que aquele território estava ocupado
e que deviam afastar-se.

Era muitíssimo melhor do que a forma como os cães marcavam o seu


território, mas o fato de vivermos na mesma casa implicava que o cheiro de Ivy
também me cobria. Ela dissera-me, certa vez, que se tratava de um traço de
sobrevivência que ajudava a aumentar a esperança de vida de um espectro,
impedindo que este fosse caçado. Eu não era o espectro dela, mas o efeito era o
mesmo. Em suma, o cheiro dos nossos odores naturais misturados funcionava
como um afrodisíaco sanguíneo, tornando mais difícil a Ivy superar os seus ins-
tintos — fosse ou não praticante.

Umas das poucas discussões que tivera com Nick, foram sobre a razão de
eu aturá-la e a ameaça constante que ela representava para o meu livre-arbítrio —
caso ela se esquecesse do seu voto de abstinência durante a noite e eu não
56

conseguisse afastá-la. A verdade é que ela se considerava a minha melhor amiga,


mas ainda mais revelador era o fato de ter diminuído um pouco o controle
absoluto que mantinha sobre as suas emoções e permitido que eu fosse também
sua amiga. Tratava-se de uma honra espantosa. Ela era a melhor agente que eu já
conhecera e eu sentia-me — permanentemente — elogiada por ela ter deixado
uma brilhante carreira na SI, para trabalhar comigo e salvar meu traseiro.

Ivy era possessiva, dominante e imprevisível. Também tinha a força de


vontade mais poderosa de todas as pessoas que já conhecera, travando uma
batalha interior que, caso vencesse, lhe roubaria a possibilidade de gozar de uma
vida depois da morte. E, estava disposta a morrer para me proteger só porque eu
disse que ela era minha amiga.

Deus, como posso virar as costas para algo assim?

Com exceção dos momentos em que nos encontrávamos sós e, ela se sentia
livre de recriminações, comportava-se com uma rigidez fria ou como uma vampira
clássica sexualmente dominante — algo que descobri ser uma forma de se
divorciar dos seus sentimentos, temendo perder o controle caso revelasse alguma
brandura. Acho que ela tinha tentado manter a sua sanidade vivendo através de
mim enquanto eu tropeçava pela vida, apreciando o entusiasmo com que eu
encarava tudo... Desde uns sapatos de salto vermelhos em liquidação à
aprendizagem de um feitiço capaz de deixar dormindo um cara grande e feio. E,
enquanto os meus dedos deslizavam sobre os perfumes que ela me comprara,
perguntei-me mais uma vez se Nick teria razão e se a nossa relação poderia estar
tomando uma direção que eu não queria.

Vestindo-me rapidamente, regressei à cozinha vazia. O relógio por cima da


pia dizia que nós estávamos próximos das quatro da tarde. Tinha muito tempo
para fazer um feitiço para Glenn antes de sairmos.

Tirando um dos meus livros de feitiços da prateleira por baixo do balcão da


ilha, sentei-me no meu lugar de costume junto à antiga mesa de madeira de Ivy.
Senti a felicidade invadir-me ao abrir o volume amarelado. A brisa que entrava
pela janela estava fresca, prometendo uma noite fria. Adorava estar ali,
trabalhando na minha bela cozinha rodeada por solo sagrado e protegida de todas
as coisas más.

O feitiço contra a coceira foi fácil de encontrar, o canto dobrado e a página


coberta de manchas antigas. Deixando o livro aberto, levantei-me para ir buscar o
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meu caldeirão de cobre pequeno para feitiços e as colheres de cerâmica. Era raro
um humano aceitar um amuleto, mas se me visse a fazê-lo, quem sabe Glenn o
aceitasse. O pai aceitara um amuleto contra dores, certa vez.

Estava medindo a água da fonte com o meu cilindro graduado quando ouvi
passos arrastados nos degraus dos fundos.

— Olá? Menina Morgan? — chamou Glenn, enquanto batia e abria a porta.


— Jenks disse que eu podia ir entrando.

Eu não ergui os olhos das cuidadosas medições.

— Na cozinha — disse, em voz alta.

Glenn esgueirou-se para a divisão. Assimilou as minhas roupas novas —


começando pelos meus felpudos chinelos cor-de-rosa, subindo pelas minhas meias
de nylon pretas, pela minissaia, pela camisa vermelha até ao laço preto que
prendia os cabelos molhados. Se eu ia voltar a ver Sara Jane, queria estar bonita.
Nas mãos de Glenn estava um molho de folhas de círio-do-rei, botões de dentes-
de-leão e flores de maria-sem-vergonha. Ele parecia rígido e atrapalhado.

— Jenks... O pixy... Disse que precisava disso, minha senhora.

Eu apontei com a cabeça para o balcão da ilha.

— Pode colocá-las ali. Obrigada. Sente-se.

Com uma pressa afetada, ele atravessou a divisão e colocou as plantas.


Hesitando por breves instantes, puxou a cadeira onde Ivy costumava sentar e
instalou-se. O casaco tinha desaparecido e o coldre com a arma estava à vista,
óbvio e ameaçador. Por contraste, a gravata estava solta e o botão de cima da
camisa engomada tinha sido aberto, revelando um pequeno tufo de pêlos escuros
do peito.

— Onde está o seu casaco? — perguntei, com um tom despreocupado


tentando compreender o seu estado de espírito.

— As crianças... — hesitou. — As crianças pixies estão usando como forte.

— Oh! — escondendo um sorriso, vasculhei a prateleira das especiarias em


busca do meu frasco de xarope de erva-tostão. A capacidade de Jenks em ser uma
verdadeira dor no traseiro era inversamente proporcional ao seu tamanho. O
58

m es mo ac ont ec ia co m a s ua ca pac idad e de s er u m ami go ded ica do.


Aparentemente, Glenn conseguira ganhar a confiança de Jenks. E, esta... Hã?

Convencida de que a exibição da arma não se destinava a intimidar-me,


acrescentei um pedaço de erva-tostão batendo com a colher medidora de cerâmica
para aproveitar toda a substância pegajosa. O silêncio desconfortável foi se
instalando, acentuado pelo som do gás a incendiar-se. Podia sentir o olhar dele
preso na minha pulseira com amuletos, enquanto os pequenos amuletos de
madeira batiam suavemente uns nos outros. O crucifixo explicava-se a si mesmo,
mas se quisesse saber para que serviam os restantes, teria de perguntar. Usava uns
míseros três: os meus antigos amuletos tinham ardido até à inutilidade quando
Trent matou a testemunha que os usava, fazendo explodir a viatura onde aquela
se encontrava.

A mistura que se encontrava ao fogo já fumegava e Glenn ainda não tinha


dito uma palavra.

— Entã-ã-ão — disse eu, arrastando a palavra. — Já está no DFI faz tempo?

— Sim, minha senhora — era uma resposta curta, simultaneamente


reservada e paternalista.

— Pode parar com o "minha senhora"? Chame-me simplesmente de Rachel.

— Sim, minha senhora.

Ooooh, pensei, vai ser uma tarde divertida. Irritada, agarrei nas folhas do círio-
do-rei. Atirando-as para o pilão manchado de verde, moí-as usando mais força do
que o necessário. Deixei a papa ensopar o creme por um instante. Porque é que eu
estava me dando ao trabalho de fazer um amuleto? Ele não ia usar.

A mistura fervia e eu baixei o fogo, regulando o cronômetro para três


minutos. Tinha a forma de uma vaca e eu adorava-o. Glenn estava em silêncio,
observando-me com desconfiança, enquanto eu me apoiava na beira do balcão.

— Estou fazendo algo para pôr um fim à coceira — disse. — Deus me ajude,
mas sinto pena de você.

O rosto dele ficou sério.

— O capitão Edden obrigou-me a trazê-la comigo. Não preciso da sua


ajuda.
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Irada, inspirei fundo, preparando-me para dizer que por mim podia ir
atirar-se de uma vassoura, mas depois me contive. "Não preciso de ajuda" já foi o
meu mantra, mas os amigos tornavam as coisas muito mais fáceis. Franzi a
sobrancelha, pensativa. O que é que o Jenks fazia para me convencer de qualquer coisa?
Oh, sim. Praguejava e dizia-me que eu estava sendo idiota.

— Por mim pode se virar — disse, num tom agradável. — Mas Jenks pixou-o
e ele disse que você é alérgico ao pó de pixy. Está espalhando-se pelo seu sistema
l i n fá ti c o . Q u e r f i c a r c o m c o c e i r a d u r a n te u m a s e m a n a s ó p o r q u e é m u i to
orgulhoso para usar um mísero feitiço contra a coceira? Até uma criança
conseguiria fazer um feitiço destes — bati no caldeirão de cobre para feitiços com
uma unha e ele tiniu. — É como uma aspirina. Existem aos montes — não era
verdade, mas o mais certo era que Glenn não o aceitasse se soubesse o quanto
custava uma coisa dessas numa loja de magia. Era um feitiço medicinal de classe
dois. Provavelmente deveria ter entrado no interior de um círculo para fazê-lo,
mas fechá-lo implicava ligar-me à eternidade. E, ver-me sob a influência de uma
linha Ley faria, certamente, com que Glenn pirasse.

Os olhos do detetive recusavam cruzar-se com os meus. Um dos pés dele


remexia-se como se estivesse lutando para não coçar a perna, mesmo por cima das
calças. O cronômetro tocou — ou berrou — e, deixei-o em paz para se decidir.
Acrescentei os botões de dente-de-leão e maria-sem-vergonha, esmagando-os
contra as paredes laterais do caldeirão com um movimento que ia no sentido dos
ponteiros do relógio, nunca ao contrário. Afinal de contas, eu era uma bruxa
branca.

Glenn desistiu de tentar não se coçar e, lentamente, esfregou o braço através


da manga da camisa.

— Ninguém saberá que fui enfeitiçado?

— Só se usarem um detector de feitiços.

Fiquei ligeiramente decepcionada. Ele tinha medo de mostrar, abertamente,


que estava usando magia. O preconceito não era incomum. Por outro lado, eu já
tinha tomado uma aspirina, mas preferiria continuar com dores a ter de tomar
outra. Suponho que não tivesse moral para falar.

— Está bem — tratou-se de uma admissão relutante.

— Certíssimo — acrescentei a raiz de hidraste moída e deixei ferver.


60

Quando o caldo assumiu uma tonalidade amarelada — que cheirava a


cânfora — apaguei o fogo. Estava quase pronto.

Aquele feitiço era, por norma, suficiente para sete porções e eu perguntei-
me se ele exigiria que eu desperdiçasse uma em mim antes de acreditar que não ia
transformá-lo num sapo. Ora, aí estava uma ideia. Podia colocá-lo no jardim
afastando as lesmas das hortas. Edden não daria pela falta dele senão dali a pelo
menos uma semana.

Os olhos de Glenn não deixaram os meus enquanto eu pegava em sete


discos de pau-brasil limpos, mais ou menos do tamanho de um níquel de madeira
e os colocava sobre o balcão, onde ele os podia ver.

— Está quase pronto — disse eu, com uma alegria forçada.

— É só isso? — perguntou ele, os olhos castanhos muito abertos.

— É só isso.

— Não precisam velas acesas, círculos e palavras mágicas?

Abanei a cabeça.

— Está pensando em magia das linhas Ley. E, é latim, não são palavras
mágicas. As bruxas das linhas Ley retiram o seu poder diretamente das linhas e
precisam do aparato da cerimônia para controlá-las. Eu sou uma bruxa de terra —
graças a Deus, pensei. — A minha magia também provém das linhas Ley, mas é
naturalmente filtrada através das plantas. Se eu fosse uma bruxa negra, a maior
parte da magia teria a sua origem nos animais.

Sentindo-me como se estivesse realizando o exame final de trabalhos


laboratoriais, vasculhei a gaveta dos talheres em busca da faca. A picada afiada da
lâmina na ponta do meu dedo era quase imperceptível e eu apertei o dedo para
deixa fluir as necessárias três gotas de sangue na poção. O cheiro de rosa anã,
espesso e almiscarado, sobrepôs-se ao cheiro a cânfora. Tinha feito bem o feitiço.
Sabia que sim.

— Colocou sangue! — disse ele e eu ergui a cabeça perante o seu tom


enojado.

— Bem, dah! De que outra forma deveria ativá-lo? Pondo-o no fogão e


cozinhando? — franzi a sobrancelha e prendi atrás da orelha uma mecha de cabelo
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que escapara da fita. — Toda magia requer que seja pago um preço em morte,
Detetive. A magia branca da terra exige o meu sangue e a morte das plantas. Se eu
quisesse realizar um feitiço negro para deixá-lo dormindo, para transformá-lo
num sapo ou mesmo para lhe dar soluços, teria de usar alguns ingredientes
nojentos que envolvem partes de animais. A magia verdadeiramente negra
exigiria não só o meu sangue, mas também um sacrifício animal. Ou humano ou
Inderlander.

A minha voz tinha assumido um tom mais rude do que era minha intenção e
eu mantive os olhos baixos enquanto media as doses e deixava que ensopassem
os discos de pau-brasil. Grande parte da minha curta carreira na SI tinha
envolvido a captura de fazedores de feitiços cinzentos — bruxas que pegavam em
feitiços brancos, como um feitiço para dormir e lhes davam um mau uso —, mas
também tinha capturado alguns fazedores de encantamentos negros. A maioria
eram bruxas das linhas Ley, já que os ingredientes necessários à confecção de um
feitiço negro eram suficientes para manter brancas, a maior parte das bruxas da
terra. Olho de tritão e dedo de sapo? Nem por sombras. Pensem antes em sangue
retirado do baço de um animal ainda vivo e língua arrancada no momento em que
solta o seu último grito para o éter. Horrível.

— Não farei nenhum encantamento negro — disse, enquanto Glenn


permanecia em silêncio. — Além de ser insana e nojenta, a magia negra volta-se
sempre contra nós.

E, quando conseguisse aquilo que queria, ele teria o meu pé no seu estômago ou as
minhas algemas nos seus punhos.

Escolhendo um amuleto, deitei-lhe mais três gotas do meu sangue para


invocar o feitiço. O amuleto absorveu-o rapidamente, como se o feitiço puxasse o
sangue do meu dedo. Estendi o objeto para ele, pensando na vez em que me
sentira tentada a fazer um feitiço negro. Sobrevivi, mas acabei com uma marca de
demônio. E, para isso, bastava olhar para o livro. A magia negra vira-se sempre
contra quem a faz. Sempre.

— Tem sangue seu — disse ele, em tom de repulsa. — Faça outro e usarei o
meu.

— O seu? O seu não servirá de nada. Tem que ser sangue de bruxa. O seu
não tem as enzimas necessárias para ativação do feitiço — voltei a estender-lhe e
ele abanou a cabeça. Frustrada, rangi os dentes. — Seu pai já usou um, seu
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humanozinho chorão. Aceite-o para que todos nós possamos prosseguir com as
nossas vidas! — acenei com o amuleto na sua direção e ele agarrou-o, temeroso.

— Melhor? — perguntei, quando os dedos dele envolveram o disco de


madeira.

— Hum, sim — disse ele, o rosto de maxilar quadrado subitamente


relaxado. — De fato.

— Claro que sim — murmurei. Um pouco mais calma, pendurei o restante


dos amuletos no armário. Glenn olhou em silêncio para os objetos ali guardados,
cada um cuidadosamente rotulado graças à paranoica necessidade de Ivy em
manter tudo organizado. Por mim, a deixava feliz e não me incomodava. Fechei a
porta com um baque sonoro.

— Obrigado, menina Morgan — disse ele, surpreendendo-me.

— Não tem de quê — respondi, feliz por ele parar, finalmente, de me tratar
por "minha senhora." — Não o deixe entrar em contato com o sal e deverá durar
um ano. Poderá tirá-lo e arrumá-lo, se quiser, quando as bolhas desaparecerem.
Também funciona para erva venenosa — comecei a limpar a confusão que tinha
feito. — Lamento ter deixado que Jenks o pixasse assim — disse lentamente. — Ele
não o teria feito se soubesse que era alérgico ao pó de pixy. Normalmente as bolhas
não se espalham.

— Não se preocupe com isso — ele levou a mão a um dos catálogos de Ivy,
na mesa de apoio, afastando a mão ao ver a fotografia das facas curvas de aço
inoxidável em promoção.

Guardei o meu livro de feitiços, por baixo do balcão da ilha, feliz por ele
começar a descontrair.

— Quando se trata de Inderlanders, por vezes, as menores coisas podem ser


as mais dolorosas.

Ouviu-se o estrondo retumbante da porta da frente. Endireitando-me,


cruzei os braços à frente do peito, só então percebendo que o som que ouvira antes
fora a moto de Ivy subindo a estrada. Os olhos de Glenn cruzaram-se com os meus e
ele sentou-se mais direito ao reconhecer o meu alarme. Ivy tinha chegado a casa.

— Mas nem sempre — concluí.


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Capitulo 5
C o m o s o l h o s f i xo s n o c o r r e d o r va z i o , f i z si n a l a G l e n n p a r a q u e
permanecesse sentado. Não tinha tempo para explicar. Perguntei-me o quanto
Edden o havia informado ou se aquela seria uma das suas formas más e eficientes
de educar Glenn.

— Rachel? — disse a voz melodiosa de Ivy e Glenn levantou-se,


endireitando os vincos das calças cinzentas.

Sim, isso vai ajudar.

— Sabia que tem um carro do DFI estacionado em frente à casa do Keasley?

— Sente-se, Glenn — avisei e, como ele se recusou a fazê-lo, coloquei-me


entre ele e a passagem para o corredor.

— Bah! — exclamou Ivy, com a voz abafada. — Tem um peixe na minha


banheira. É o dos Howlers? Quando é que eles vêm buscar? — seguiu-se um
momento de hesitação e eu consegui dirigir a Glenn um sorriso amarelo. —
Rachel? — chamou ela, agora mais próxima. — Está aqui? Ei, devíamos ir ao
centro comercial esta noite. A Banho & Corpo está relançando um antigo perfume à
64

base citrina. Precisamos arranjar um dos frasquinhos de amostra. Ver como


funciona. Sabe, celebrar o fato de conseguir pagar o aluguel. Qual é o que está
usando agora? O de canela? É muito bom, mas só dura umas três horas.

Teria sido bom saber isso mais cedo.

— Estou na cozinha — disse, em voz alta.

A forma alta e envolta em couro de Ivy passou pela abertura. Ao ombro


tinha pendurado um saco de lona com as compras. O casaco comprido de seda
preta flutuava atrás dos saltos das botas e eu a ouvi procurar por qualquer coisa
na sala.

— Nunca pensei que você fosse capaz de apanhar o peixe — disse ela.

Houve um momento de hesitação e depois:

— Onde diabos está o telefone?

— Aqui — disse eu, cruzando os braços e sentindo-me desconfortável.

Ivy estacou junto à entrada quando viu Glenn. Suas feições meio orientais
ficaram inexpressivas de surpresa. Quase conseguia ver a parede ser erguida
quando ela percebeu que não estávamos sozinhas. A pele ao redor dos seus olhos
ficou tensa. O nariz pequeno ergueu-se, captando o cheiro dele, registrando o
medo dele e a minha preocupação num ápice. De lábios apertados, ela pousou o
saco de lona das compras no balcão e afastou o cabelo dos olhos. Este caía até o
meio das suas costas numa suave onda negra e eu sabia que era aborrecimento,
não os nervos, o que a levara a prendê-lo atrás da orelha.

Ivy já tivera muito dinheiro e ainda se vestia como se o tivesse, mas quase
toda sua herança fora gasta para pagar o seu contrato com a SI — quando ela se
demitiu comigo. Para dizer as coisas de forma simples, ela parecia uma modelo
assustadora: ágil e pálida, mas incrivelmente forte. Ao contrário de mim, não
usava esmalte, nem joias além do seu crucifixo e das duas pulseiras iguais ao
redor de um dos tornozelos e pouca maquiagem; não precisava. Mas... Como eu...
Estava praticamente sem grana, pelo menos até a mãe acabar de morrer e o que
ainda restava dos bens Tamwood passarem para ela. Pelos meus cálculos ainda
faltavam uns duzentos anos, no mínimo dos mínimos.

As finas sobrancelhas de Ivy ergueram-se enquanto ela fitava Glenn.


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— Voltou a trazer o trabalho para casa, Rachel?

Inspirei fundo.

— Olá, Ivy. Este é o detetive Glenn. Falou com ele esta tarde? O mandou ir
buscar-me? — meu olhar fixou-se nela. Íamos falar daquilo mais tarde.

Ivy deu-me as costas e começou a tirar as compras do saco.

— Prazer em conhecê-lo — disse ela, com um tom monótono. Depois, para


mim, murmurou. — Desculpe, tive um imprevisto.

Glenn engoliu em seco. Parecia abalado, mas estava a aguentar-se. Calculei


que Edden não lhe falou da Ivy. Eu gostava mesmo de Edden.

— É uma vampira — disse ele.

— Ooooh! — disse Ivy. — Temos aqui um espertalhão.

Tentando afastar com os dedos o fio do seu novo amuleto, puxou uma cruz
de dentro da camisa.

— Mas o Sol ainda brilha — disse, soando como se tivesse sido traído.

— Ora, ora, ora — disse Ivy. — É meteorologista também? — ela o encarou


com um ar travesso. — Ainda não estou morta, detetive Glenn. Só os verdadeiros
mortos-vivos têm restrições em relação à luz. Volte daqui a sessenta anos e talvez
eu esteja preocupada com uma queimadura solar —vendo a cruz dele, sorriu e
puxou de trás da camisa de lycra preta, o seu próprio crucifixo extravagante. —
Isso só funciona com vampiros mortos-vivos — disse ela, voltando-se de novo
para o balcão. — Onde é que aprendeu essas coisas? Filmes de série B?

Glenn recuou.

— O capitão Edden não disse que trabalhava com uma vampira —


gaguejou o agente do DFI.

Ao ouvir o nome de Edden, Ivy voltou-se para ele. Foi um movimento


espantosamente rápido e eu sobressaltei-me. Aquilo não estava nada bem. Ela
estava começando a usar a aura. Maldição. Olhei de relance para a janela. O Sol
estava prestes a se pôr. Dupla maldição.
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— Já ouvi falar de você — disse o agente e eu tremi perante a arrogância na


sua voz — algo que estava usando para esconder o medo.

Nem mesmo Glenn seria idiota ao ponto de antagonizar com uma vampira
na sua própria casa. A arma que trazia no coldre não lhe serviria de nada. Claro,
podia dar-lhe um tiro e matá-la, mas isso faria apenas com que ela passasse a ser
uma morta-viva e arrancasse a cabeça dele. E, não havia júri no mundo que a
condenasse por homicídio, tendo em conta que ele a matara primeiro.

— É a Tamwood — disse Glenn, indo sem dúvida buscar a sua coragem em


uma sensação de segurança não adequada. — O capitão Edden a fez cumprir
trezentas horas de serviço comunitário por ter lutado contra todos os agentes do
piso dele, não foi? O que a obrigou a fazer? A entreter crianças, certo?

Ivy ficou rígida e eu fiquei de boca aberta. Ele era assim tão idiota?!

— Valeu a pena — disse Ivy, baixinho. Os seus dedos tremiam, enquanto


pousava, com suavidade, um saco de marshmallows no balcão.

Perdi o fôlego. Merda. Os olhos castanhos de Ivy tinham ficado pretos


devido à dilatação das pupilas. Fiquei imóvel, espantada com a velocidade a que
aquilo tinha acontecido. Há semanas que ela não entrava em modo vampiro e
nunca o fazia sem aviso. O choque irado de encontrar um agente do DFI na sua
cozinha podia justificá-lo, em parte, mas olhando para trás, tinha a sensação
doentia de que tê-la deixado surpreender Glenn não tinha sido das melhores
coisas. O medo dele a atingiu depressa e com força, não lhe dando tempo para se
proteger da tentação.

O seu sobressalto repentino enchera o ar de feromônios. Estes agiam como


um poderoso afrodisíaco que só ela conseguia provar, pondo em movimento
instintos milenares profundamente enraizados no seu DNA alterado pelo vírus.
Num segundo, tinham-na transformado da minha ligeiramente perturbada colega,
numa predadora que podia nos matar a ambos em não mais de três segundos —
s e o d e s e j o d e s a c i a r a s u a f o m e , h á m u i t o s u p r i m i d o , s u p l a n t a s se a s
consequências inerentes de drenar um detetive do DFI. Era esse equilíbrio que me
assustava. Eu sabia em que ponto da sua escala de fome e racionalidade me
encontrava. Quanto ao Glenn, não fazia ideia.

Como pó esvoaçante, a sua postura derreteu-se e ela apoiou-se no balcão


pousando um cotovelo dobrado, erguendo o quadril. Mortalmente imóvel,
percorreu Glenn com o olhar, até fixar-se nos seus olhos. Inclinou a cabeça com
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uma lentidão provocante até fitá-lo por baixo da franja lisa. Só então inspirou,
lenta e deliberadamente. Os dedos pálidos e compridos brincavam com o
profundo decote em V da camisa de lycra, enfiada nas calças de couro.

— É alto — disse ela, a voz cinzenta fazendo renascer em mim um receio


recordado. — Gosto disso.

Ela não estava à procura de sexo, mas de domínio. Teria o enfeitiçado, se


pudesse, mas teria de esperar pela morte para ter poder sobre os relutantes.

Maravilha! — pensei, quando ela se afastou do balcão e se dirigiu à ele.

Ela tinha perdido o controle. Era ainda pior do que da vez em que me
encontrara com o Nick — enrolados no seu sofá, ignorando o combate de
wrestling. Continuava sem saber o que a tinha feito perder o controle: tínhamos
deixado bem claro que eu não era namorada dela, nem brinquedo, amante,
espectro, ou seja lá qual for o mais recente termo para lacaio de vampiro usado por
estes dias.

A minha mente apressou-se a procurar uma forma de trazê-la de volta sem


tornar as coisas piores. Ivy parou em frente à Glenn, a bainha do casaco comprido
pareceu mover-se em câmara lenta, enquanto avançava para tocar nos sapatos. A
língua dela deslizou sobre os seus dentes muito brancos, escondendo-os mesmo
quando eram revelados. Com um considerável poder reprimido, ela pousou uma
mão de cada um dos lados dele, à altura da cabeça, prendendo-o contra a parede.

— Hum — disse ela, inspirando através dos lábios apertados. — Muito alto.
Grandes pernas... Linda, linda pele negra. A Rachel te trouxe para mim.

Ela inclinou-se sobre ele, quase o tocando. Ele tinha apenas mais alguns
centímetros que ela. Ivy inclinou a cabeça como se estivesse prestes a beijá-lo. Uma
gota de suor deslizou pelo rosto e pelo pescoço dele. Ele não se mexeu, a tensão
enrijecendo cada músculo do corpo.

— Trabalha para o Edden — sussurrou, os olhos fixos no fio de umidade


que se acumulava na clavícula. — Ele seria capaz de ficar chateado se morresse.

Os olhos dela saltaram para os dele, quando ouviu a sua respiração


acelerar. Não se mexa — pensei, sabendo que se ele o fizesse, os instintos dela as-
sumiriam o controle. Ele estava em apuros — com as costas contra a parede —
daquela forma.
68

— Ivy? — disse, tentando distraí-la e evitar ter de contar a Edden a razão de


o filho dele estar nos cuidados intensivos. — Edden deu-me um serviço. Glenn vai
acompanhar-me.

Usei toda a minha força de vontade para não tremer quando ela voltou para
mim os fossos negros em que se tinham transformado os seus olhos. Eles
seguiram-me enquanto eu colocava a ilha entre nós. Ela estava imóvel, com
exceção de uma mão que percorria o ombro e o pescoço de Glenn, o dedo dela
exatamente um centímetro acima da pele dele.

— Hum, Ivy? — disse eu, hesitante. — Glenn é capaz de querer sair agora.
Deixe-o sair.

O me u p e d i d o p a re c e u ch e g a r a t é I vy e e l a i n sp i ro u ra p i d a me n t e .
Dobrando o cotovelo, empurrou o corpo, afastando-se da parede. Glenn saiu
rapidamente de debaixo dela. Armado, erguia-se na passagem para o corredor, os
pés afastados e a arma apontada para Ivy. A ponta de segurança foi desativada
com um clique e os olhos dele estavam muito abertos.

Ivy virou-lhe as costas e dirigiu-se ao saco de compras esquecido. Podia


parecer que ela estava o ignorando, mas eu sabia que ela estava consciente de
tudo, inclusive da vespa que voava alto batendo contra o teto. De costas
arqueadas, ela pousou sobre o balcão um saco de queijo ralado.

— Diga ao saco de sangue, a que chamam de capitão, que eu disse "Olá!",


da próxima vez que o vir — disse ela, a voz suave a revelar uma quantidade de
raiva chocante. Mas a fome, a necessidade de dominar, tinha desaparecido.

Sentindo os joelhos fracos, libertei o ar, expirando longamente.

— Glenn? — sugeri. — Guarda a arma antes que ela tire de você. E, da


próxima vez que insultar a minha colega, vou deixar que ela rasgue sua garganta.
Entendeu?

Os olhos dele viajaram até Ivy antes de guardar a arma. Ele deixou-se ficar
na passagem, respirando com dificuldade. Pensando que o pior já tinha passado,
abri a geladeira.

— Ei, Ivy — disse, num tom despreocupado, tentando fazer com que todos
regressassem à normalidade —, atira-me o pepperoni?
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O olhar de Ivy cruzou-se com o meu do outro lado da cozinha e ela


pestanejou, afastando o que restava dos seus instintos desembestados.

— Pepperoni — disse ela, com a voz mais rouca do que o normal. — Sim —
ela encostou as costas das mãos nas bochechas. Franzindo a sobrancelha a si
mesma, atravessou a cozinha com o que reconheci ser um andar deliberadamente
lento. — Obrigada por me trazer de volta — disse ela, suavemente, enquanto me
entregava o embrulho de carne cortada.

— Devia ter te avisado, desculpe — guardei o pepperoni e endireitei-me,


dirigindo a Glenn um olhar carrancudo. O rosto dele estava acinzentado e
franzido, enquanto ele limpava a transpiração. Creio que tinha acabado de
compreender que estávamos na mesma divisão que uma predadora controlada
apenas pelo orgulho e pela cortesia. Talvez tivesse aprendido algo, hoje. Edden
ficaria contente.

Vasculhei por entre as compras e retirei os frascos do saco. Ivy inclinou-se


na minha direção, enquanto guardava uma lata de pêssegos.

— O que ele está fazendo aqui? — perguntou ela, suficientemente alto para
que Glenn a ouvisse.

— Sou a babá.

Ela acenou esperando, claramente, por mais. Quando isso não aconteceu,
ela acrescentou:

— É um serviço pago, certo?

Olhei de relance para Glenn.

— Hum, sim. Uma pessoa desaparecida.

Olhei para ela de relance, aliviada por ver que as suas pupilas estavam
quase de volta ao normal.

— Posso ajudar? — perguntou.

Ivy não fizera quase nada, a não ser procurar pessoas desaparecidas desde
que tínhamos deixado a SI, mas eu sabia que ela ficaria do lado de Jenks, achando
que se tratava de uma armadilha de Trent Kalamack — mal soubesse que se
tratava do namorado de Sara Jane. Contudo, adiar a revelação tornaria as coisas
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ainda piores. E, eu queria que ela fosse comigo ao Piscary's. Assim conseguiria
mais informações.

Glenn deixou-se ficar com uma indiferença afetada, enquanto Ivy e eu


guardávamos as compras, não parecendo importar-se com o fato de estarmos
ignorando-o.

— Oh, vamos Rachel — brincou a vampira. — Quem é? Eu ponho as


minhas antenas no ar.

Neste momento parecia tão longe de um predador como um pato. Eu


estava acostumada a tais mudanças de temperamento, mas Glenn estava perplexo.

— Hum, um bruxo chamado Dan — girei o corpo, escondendo a cabeça na


geladeira, enquanto arrumava o requeijão. — É o namorado da Sara Jane e, antes
que fique toda irritada, Glenn irá comigo fazer uma vistoria no apartamento dele.
Pensei que podíamos esperar até amanhã para visitar o Piscary's. Ele trabalha lá
como entregador, mas nem pensem que Glenn vai comigo à universidade.

Houve um silêncio momentâneo e eu encolhi-me, esperando pelo seu grito


de protesto. Este nunca chegou. Ergui os olhos para espiar da porta da geladeira e
fiquei estupefata. Ivy tinha se colocado junto a pia e estava inclinada sobre ela —
uma mão de cada lado. Era ali que "contava até dez". Até agora nunca falhara. Ela
ergueu os olhos e pousou-os em mim. Senti a boca a ficar seca... Tinha falhado.

— Não vais aceitar este serviço — disse ela, a suavidade monótona da sua
voz lançando um arrepio gelado e negro através de mim.

Senti uma onda de pânico que depois se instalou, numa embrulhada


escaldante, no fundo do meu estômago. Tudo o que consegui ver foram os seus
olhos de pupilas negras. Ela inalou, inspirando o meu calor. A sua presença
pareceu envolver-me até me ver obrigada a lutar para não olhar para trás. Os
meus ombros ficaram tensos e a minha respiração acelerada. Ela estava usando a
aura, com toda a sua força e com todo o seu poder de roubar uma alma. Mas havia
algo diferente. O que eu estava vendo não era raiva ou fome. Era medo.

Ivy estava com medo?

— Vou aceitar o serviço — disse eu, ouvindo um fino fio de medo na minha
voz. — Trent não pode tocar-me e já disse ao Edden que aceitava.

— Não, não vai.


71

Fazendo enrolar o comprido casaco de seda, Ivy lançou-se em movimento.


Sobressaltei-me, descobrindo-a mesmo à minha frente — quase mal percebi de que
ela se tinha movido. Com o rosto mais pálido do que era costume, fechou a porta
da geladeira. Saltei para sair do caminho. Os meus olhos cruzaram-se com os dela,
sabendo que se mostrasse o medo que me prendia o estômago, ela se alimentaria
dele dando mais força ao seu fervor. Tinha aprendido muito nos últimos três
meses — em parte da forma mais difícil, até algumas coisas que eu desejava não
ter precisado saber.

— A última vez que enfrentou Trent, quase morreu — disse ela, o suor
deslizando pelo seu pescoço e desaparecendo para o interior do profundo decote
em V da sua camisa.

Ela estava suando?

— A palavra-chave é "quase" — disse eu, arrojada.

— Não, a palavra-chave é "morreu".

Conseguia sentir o calor que emanava dela e recuei. Glenn permanecia


junto à entrada, observando-me de olhos muito abertos, enquanto eu discutia com
uma vampira. Havia um truque para fazer.

— Ivy — disse eu, com a voz calma, embora estivesse tremendo por dentro.
— Vou aceitar este serviço. Se quiseres vir comigo e com Glenn quando formos
falar com o Piscary...

Faltou-me o ar.

Os dedos de Ivy estavam ao redor da minha garganta. Arquejando, o ar


saiu de mim numa explosão, quando ela bateu comigo contra a parede da cozinha.

— Ivy! — consegui gritar antes de ela me ter erguido com uma mão e
prendido ali.

Com o ar enchendo-me os pulmões em arquejos insuficientes, pendia com


os pés fora do chão. Ivy aproximou o rosto dela do meu. Os olhos estavam negros,
mas muito abertos de medo.

— Não vais falar com o Piscary — disse ela, o pânico era uma fita prateada
que envolvia a seda cinzenta da sua voz. — Não vai aceitar este serviço.
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Encostei os pés à parede e empurrei. Uma golfada de ar conseguiu abrir


caminho por entre os seus dedos e as minhas costas voltaram a bater contra a
parede. Dei pontapés na direção dela e ela afastou-se para o lado. A força com que
me segurava nunca mudou.

— Que diabo está fazendo? — perguntei, com a voz rouca. — Solte-me!

— Menina Tamwood! — gritou Glenn. — Largue a mulher e afaste-se para


o centro da divisão!

Enterrando os dedos na mão que me segurava, olhei para além de Ivy.


Glenn estava atrás dela com os pés afastados, pronto para disparar.

— Não! — raspou a minha voz. — Saia. Saia daqui!

Ivy não me daria ouvidos se ele estivesse ali. Ela estava com medo. De que
diabo estava ela com medo? Trent não me podia tocar.

Ouviu-se um agudo assobio de surpresa quando Jenks apareceu a voar.

— Merda — disse ele, em tom sarcástico. — Vejo que Rachel te falou do


serviço dela, hã, Ivy?

— Sai daqui! — exigi, sentindo a cabeça a latejar quando Ivy apertou o meu
pescoço com mais força.

— Ai, caramba! — exclamou o pixy do teto, as asas assumindo um tom


vermelho assustado. — Ela não está brincando.

— Eu sei... — com os pulmões doendo, puxei pelos dedos que me


apertavam o pescoço, conseguindo inspirar um pouco de ar. O rosto pálido de Ivy
estava cerrado. O negro dos seus olhos era completo e absoluto. E entrelaçado de
medo. Ver nela aquela emoção era aterrorizante.

— Ivy, solte-a! — ordenou Jenks, enquanto pairava à altura dos nossos


olhos. — Não é assim tão mau, é sério. Basta nós irmos com ela.

— Sai daqui! — disse eu, inspirando no instante em que os olhos de Ivy


mostraram confusão e o aperto ao redor da minha garganta diminuiu. O pânico
tomou conta de mim, enquanto os dedos dela tremiam. O suor corria-lhe pela testa
enrugada em sinal de confusão. A parte branca dos olhos sobressaía contra o
negro das pupilas.
73

Jenks voou para Glenn.

— Ouviu — disse o pixy. — Sai daqui.

O meu coração acelerou quando Glenn protestou.

— Está doido? Se sairmos, esta cadela a mata!

A respiração de Ivy era como um gemido. Era tão suave como um primeiro
floco de neve, mas eu a ouvia. O cheiro da canela inundou-me os
sentidos.

— Temos de sair daqui — disse Jenks. — Ou Rachel consegue que


Ivy a largue ou Ivy a mata. Poderá conseguir separá-las dando um tiro em
Ivy, mas Ivy irá atrás dela e a matará na primeira oportunidade, se
conseguir suplantar o domínio de Rachel.

— Rachel é
dominante?

Podia ouvir a descrença na voz de Glenn e rezei, histericamente,


para que
saíssem antes que a Ivy acabasse de me esganar. O zumbido das asas de
Jenks era tão audível como o som do sangue sendo bombeado nos meus
ouvidos.

— Como é que acha que Rachel conseguiu que Ivy te largasse?


Acha que uma bruxa conseguiria fazer uma coisa dessas, se não estivesse
em posição dominante? Sai, como ela disse.

Não sabia se dominante seria a palavra certa, mas se eles não


saíssem, a questão seria meramente teórica. A verdade era que, de uma
forma retorcida, Ivy precisava mais de mim do que eu dela. Mas o "guia de
encontros amorosos" que Ivy me dera na primavera passada — para que eu
pudesse parar de ativar os seus instintos vampíricos — não dedicava
qualquer capítulo a "O que Fazer se Descobrir-se Dominante"... Eu estava
em território não mapeado.

— Saiam... Daqui! — disse, engasgando-me, enquanto a periferia do


meu campo de visão se tornava negra.

Ouvi o som do gatilho de segurança ser recolocado. Glenn guardou a


arma no coldre com relutância. Enquanto Jenks esvoaçava dele para a porta
dos fundos e de volta à cozinha, o agente do DFI recuou, parecendo furioso e
frustrado. Fitei o teto e observei as estrelas que invadiam o meu campo
visual enquanto a porta de rede se fechava com um rangido.
74

— Ivy — disse, com a voz rouca, cruzando o meu olhar com o dela.

Fiquei rígida perante o seu terror negro. Conseguia ver o meu reflexo nas
suas profundezas, o meu cabelo selvagem e o meu rosto inchado. Senti, de súbito,
o meu pescoço a latejar sob os dedos dela, que pressionavam a cicatriz da dentada
do demônio. Deus me ajudasse, mas começava saber bem a recordação da euforia
que me tinha invadido — na primavera anterior — enquanto o demônio que tinha
sido enviado para me matar rasgava o meu pescoço e enchia a ferida com saliva de
vampiro.

— Ivy, abre um pouco os dedos para que eu possa respirar — consegui


dizer, sentindo a saliva escorrendo pelo meu queixo. O calor da mão dela
aumentava o cheiro da canela.

— Ordenou-me que o largasse — rosnou ela, expondo os dentes, ao mesmo


tempo em que apertava os dedos ao redor do meu pescoço, até os meus olhos
parecerem prestes a saltar. — Eu o queria e tu fizeste com que eu o largasse!

Os meus pulmões lutavam para trabalhar, agitando-se em arranques


breves, enquanto eu lutava por respirar. O aperto dela relaxou. Inspirei uma bem-
vinda golfada de ar. Depois outra. O rosto dela estava sério, à espera. Morrer com
um vampiro era fácil. Viver com um exigia outra finesse.

Doía-me o maxilar no local em que este se firmava contra os dedos dela.

— Se o queres — sussurrei —, vai atrás dele. Mas não quebre o teu jejum
por raiva — inspirei mais uma vez, rezando que não fosse a última vez que o fazia.
— A menos que seja por paixão, não valerá a pena, Ivy.

Ela arquejou, como se eu tivesse acertado um golpe. Com uma expressão


chocada no rosto, abriu os dedos, sem qualquer aviso. Eu caí ao chão, ficando
encostada à parede. Dobrando-me sobre mim mesma, engoli o ar às golfadas.
Senti a garganta e o estômago apertados, ao mesmo tempo em que a dentada do
demônio continuava a latejar, lançando arrepios de prazer. Tinha as pernas tortas
e endireitei-as, lentamente. Deixei-me ficar sentada, com os joelhos contra o peito,
agitei o braço, para que a pulseira de amuletos regressasse ao meu pulso, limpei a
saliva do queixo e ergui os olhos.

Fiquei surpreendida por ver que Ivy ainda se encontrava ali. Normalmente,
quando perdia o controle daquela maneira, corria para Piscary. Mas a verdade é
que ela nunca perdera o controle daquela forma. Ela tivera medo. Ela tinha me
75

prendido contra a parede porque estava com medo. Medo por quê? Porque eu lhe
dissera que ela não podia rasgar a garganta de Glenn? Amiga ou não, eu partiria
se a visse tomar alguém na minha cozinha. O sangue me daria pesadelos para
sempre.

— Está bem? — perguntei, com a voz rouca, dobrando-me sobre mim


mesma, quando isso desencadeou um ataque de tosse.

Ela não se mexeu, deixando-se ficar sentada à mesa, de costas viradas para
mim, com a cabeça entre as mãos.

Pouco depois de termos ido viver juntas, percebi que Ivy não gostava de
quem era. Odiava a violência, embora a instigasse. Lutava por se abster de ingerir
sangue, ainda que o desejasse. Mas ela era uma vampira. Não tinha outra escolha.
O vírus instalara-se nas profundezas do seu DNA e estava lá para ficar. Cada um é o
que é. O fato de ter perdido o controle e permitido que os seus instintos
levassem a melhor significava, para ela, um fracasso.

— Ivy? — levantei-me, pigarreando ligeiramente, enquanto cambaleava até


ela. Ainda sentia a impressão dos seus dedos ao redor do meu pescoço. Foi ruim,
mas não como da vez em que ela me prendera numa cadeira, numa nuvem de
luxúria e fome. Puxei o laço preto para o seu devido lugar. — Está bem? — estendi
um braço e, logo depois, recolhi-o ainda antes de lhe tocar.

— Não — disse ela, quando a minha mão caiu. A voz dela estava abafada.
— Rachel, desculpa. Eu... Eu não consigo... — ela hesitou, inspirando roucamente.
— Não aceite este serviço. Se for pelo dinheiro...

— Não é pelo dinheiro — disse eu, antes que ela pudesse terminar. Ela
voltou-se para mim e a raiva que sentira por ela tentar me comprar desvaneceu-se.
Uma pequena fita de humidade marcava o local que ela tentara limpar. Nunca
antes a vira chorar e deixei-me cair numa cadeira ao lado dela.

— Tenho de ajudar a Sara Jane.

Ela afastou o olhar.

— Então vou contigo ao Piscary's — disse ela, a voz nada mais que uma
leve recordação da sua força normal.
76

Envolvi o corpo com os braços, um deles esfregando a tênue cicatriz no meu


pescoço, até ter percebido que o estava fazendo, inconscientemente, para sentir o
seu pulsar.

— Tinha essa esperança — disse eu, enquanto obrigava a mão a descer. Ela
dirigiu-me um sorriso assustado e preocupado e afastou o olhar.

Capitulo 6
As crianças pixies voavam ao redor de Glenn — que se encontrava sentado
na mesa da cozinha, tão distante de Ivy quanto possível sem parecer demasiado
óbvio. Os filhos de Jenks pareciam ter simpatizado com o detetive do DFI de
forma inusitada e Ivy — sentada em frente ao computador — tentava ignorar o
ruído e as formas ondulantes. Ela fazia-me pensar num gato dormindo em frente a
um comedouro de pássaros — aparentando ignorar tudo, mas sempre atento a
qualquer pássaro que pudesse cometer um erro e aproximar-se demais. Todos se
esforçavam para ignorar o fato de quase termos tido um incidente e, os meus
sentimentos por me encontrar presa a Glenn tinham passado do franco desagrado a
uma ligeira irritação perante aquela nova e inesperada revelação de tato.

Usando uma seringa para diabéticos, injetei a poção "hora de dormir" na


última bola de paintball azul, de paredes finas. Já passava das sete. Não gostava de
deixar a cozinha desarrumada, mas tive de fazer aquelas pequenas balas especiais
e não havia a mínima hipótese de eu ir encontrar com Sara Jane num apartamento
estranho, desarmada.
77

Não há qualquer necessidade de facilitar a vida de Trent — pensei, enquanto


tirava as luvas protetoras e as atirava para o lado.

De uma das tigelas que se encontravam debaixo do balcão, retirei a minha


arma. Originalmente, tinha a guardado numa tina pendurada sobre o balcão da
ilha, até Ivy ter assinalado que para ir buscá-la, teria de me colocar à vista de
todos. Era preferível mantê-la a uma altura acessível caso estivesse rastejando.
Glenn endireitou-se ao ouvir o som de ferro batendo no balcão e abanou a mão
para afastar dele as adolescentes pixies — vestidas de verde — que tagarelavam.

— Não devia ter uma arma assim à vista — disse, num tom de escárnio. —
Faz ideia de quantas crianças morrem todos os anos por causa de ideias idiotas
como essa?

— Tenha calma, Sr. Agente do DFI — disse eu, enquanto limpava o


reservatório. — Ainda ninguém morreu por causa de uma arma de paintball.

— Paintball? — perguntou ele. Depois se tornou condescendente. Vamos


brincar do faz-de-conta, é?

Franzi a sobrancelha. Eu gostava da minha pequena arma de bolas


explosivas. Era agradável tê-la na mão — pesada e reconfortante — apesar do seu
tamanho reduzido. Mesmo com a sua cor vermelha viva, as pessoas não
percebiam, normalmente, o que era e acreditavam que eu estava armada. Melhor
ainda, não precisava de uma licença para usá-la.

Irritada, tirei uma bola vermelha, do tamanho da unha do dedo mindinho,


de uma caixa pousada na prateleira por cima dos meus amuletos. Coloquei-a na
câmara.

— Ivy — disse e ela ergueu os olhos do monitor, o rosto perfeito e oval sem
qualquer expressão. — Apanhada.

Ela voltou a atenção para a tela, inclinando ligeiramente a cabeça.

Os pequenos pixies guincharam e dispersaram, esvoaçando pela janela e


para o jardim escuro, deixando atrás de si rastros cintilantes de pó de pixy e a
memória das suas vozes. Lentamente, o som dos grilos veio substituí-los.

Ivy não era o tipo de companheira de quarto que gostasse de jogar Ludo e a
única vez em que me sentei com ela no sofá — para assistirmos Hora de Ponta —,
eu tinha desencadeado, inadvertidamente, os seus instintos de vampira e quase
78

fora mordida durante a última sequência de luta, quando a minha temperatura


corporal subiu e o cheiro dos nossos odores misturados a tomou de assalto. Por
isso, agora, com exceção das nossas sessões de combate cuidadosamente
orquestradas, fazíamos, por norma, coisas que implicassem manter muito espaço
entre nós. Fugir das minhas bolas explosivas era um bom treino para ela e
melhorava a minha pontaria. Era ainda melhor, à meia-noite, no cemitério.

Glenn passou a mão pela barba aparada, esperando. Era óbvio que ia
acontecer qualquer coisa, ele só não sabia o quê. Ignorando-o, pousei a arma no
balcão e comecei a limpar o caos em que deixara a pia. Minha pulsação acelerou e
a tensão fazia me doer os dedos. Ivy continuava fazendo compras na Internet, os
cliques do mouse bem audíveis. Ela levou a mão a um lápis, quando algo lhe
chamou a atenção.

Agarrando na arma, virei-me e puxei o gatilho. O puf emitido pela arma me


fez arrepiar. Ivy inclinou-se para a direita. A mão livre ergueu-se para interceptar a
bola cheia de água. Esta bateu na sua mão com um splash, arrebentando-se e
molhando a palma. Nunca chegou a erguer os olhos do monitor, enquanto sacudia a
água da mão e lia a legenda sob as almofadas de caixão. Faltavam três meses
para o Natal e eu sabia que ela não fazia a mínima ideia do que oferecer à mãe.

Glenn levantara-se ao ouvir o disparo, levando a mão ao seu coldre. De


queixo caído, o seu olhar saltava entre Ivy e eu. Atirei-lhe a arma de bolas
explosivas e ele apanhou-a. Qualquer coisa para afastar a mão dele da sua pistola.

— Se fosse poção "hora de dormir" — disse eu, presunçosa —, ela estaria


estendida no chão.

Dei a Ivy o rolo de papel de cozinha, que mantinha sobre o balcão da ilha
precisamente por aquele motivo e ela limpou a mão, despreocupadamente,
continuando a fazer as suas compras.

De cabeça baixa, Glenn olhou para a arma de paintball. Eu sabia que ele
estava calculando o seu peso, percebendo que não se tratava de um brinquedo.
Avançou até mim e devolveu-me.

— Deviam obrigá-las a ter licença para estas coisas — disse ele, enquanto
me devolvia a arma.

— Sim — concordei, sem pensar. — Deviam.


79

Senti que estava me observando, enquanto eu carregava a arma com as sete


poções. Não havia muitas bruxas usando poções, não por serem chocantemente
dispendiosas e durarem apenas cerca de uma semana sem serem invocadas, mas
porque era preciso uma boa imersão em água salgada para quebrar o feitiço. Era
um trabalho sujo e gastava mesmo muito sal. Convencida de que tinha feito valer a
minha posição, prendi a arma carregada na cintura, atrás das costas e vesti o
casaco de couro para cobri-la. Tirei os chinelos cor-de-rosa e dirigi-me para a sala
de estar em busca das minhas botas feitas por vampiros que se encontravam junto
à porta dos fundos.

— Pronto? — perguntei, enquanto me apoiava à parede do corredor e as


calçava. — Vai dirigir.

A figura alta de Glenn surgiu na entrada, os dedos escuros a apertando a


gravata com destreza.

— Vai assim?

Franzindo a sobrancelha, baixei os olhos para a minha blusa vermelha, saia


preta, meias de nylon e botas plásticas masculinas.

— Há algo de errado com o que estou vestindo?

Ivy deu uma fungada rude, ao computador. Glenn olhou de relance para
ela, depois para mim.

— Esqueça — disse, num tom monótono. Aconchegou a gravata para dar


um aspeto elegante e profissional. — Vamos.

— Não — disse eu, colocando-me à sua frente. — Quero saber o que acha
que eu devia vestir. Um daqueles sacos de batatas de poliéster que obrigam as
agentes do DFI vestirem? Há uma razão para Rose ser tão tensa e não tem nada a
ver com o fato de não haver paredes divisórias ou de a cadeira dela ter uma roda
quebrada!

De rosto sério, Glenn contornou-me e avançou pelo corredor. Agarrando a


bolsa, respondi ao preocupado aceno de despedida de Ivy e segui-o a passos
largos. Ele ocupava quase toda a largura do corredor, enquanto andava e enfiava
os braços no casaco do terno. O som do forro raspando contra a camisa era um
suave suspiro perante o som das duras solas dos seus sapatos batendo nas tábuas
de madeira do chão.
80

Mantive um silêncio frio, enquanto Glenn nos conduzia para fora de


Hollows e através da ponte. Teria sido bom que Jenks tivesse ido conosco, mas
Sara Jane dissera qualquer coisa sobre um gato e ele achou mais prudente ficar em
casa.

O Sol tinha se posto há muito e o trânsito aumentara. As luzes de Cincinnati


pareciam belas vistas da ponte e, foi com algum júbilo que reparei que Glenn
liderava uma matilha de carros muito desconfiados para o ultrapassarem. Mesmo
as viaturas descaracterizadas do DFI eram óbvias. Lentamente, o meu humor foi
melhorando. Abri ligeiramente a janela para deixar sair o cheiro da canela e Glenn
ligou o aquecimento. O perfume já não cheirava tão bem.

O apartamento de Dan situava-se num pequeno conjunto arrumado, limpo


e com portão. Não ficava muito longe da universidade. Tinha bom acesso à
rodovia. Parecia caro, mas se estava tendo aulas na universidade, de certo podia
pagá-lo sem problemas. Glenn parou no lugar reservado com o número do
apartamento de Dan e desligou o motor. A luz do apartamento estava apagada e
as cortinas fechadas. No parapeito da varanda do segundo andar estava sentado
um gato, cujos olhos brilhavam enquanto nos observava.

Sem dizer nada, Glenn enfiou a mão debaixo do banco e empurrou-o para
trás. Fechando os olhos, instalou-se como se fosse tirar um cochilo. O silêncio foi
se tornando mais pesado e eu deixei-me ficar a ouvir os estalos do motor do carro
no escuro. Levei a mão ao botão do rádio e Glenn murmurou.

— Não toque nisso.

Irritada, voltei a afundar-me no banco.

— Não quer interrogar alguns dos vizinhos?

— Farei amanhã quando houver sol e você estiver nas aulas.

Ergui as sobrancelhas. De acordo com o horário que Edden me dera, eu


teria aulas das quatro às seis. Era uma excelente hora para ir bater às portas — na
parte do dia em que os humanos regressavam às suas casas, os Inderlanders
diurnos estavam bem acordados e os noturnos começavam a despertar. E, a zona
tinha todo o aspecto de um bairro misto.

De um apartamento próximo saiu um casal, discutindo enquanto entravam


num carro brilhante e partiam. Ela estava atrasada para o trabalho. A culpa era
81

dele, se eu tinha seguido bem a conversa. Aborrecida e um pouco nervosa,


vasculhei minha bolsa e encontrei uma agulha de seringa e um dos meus amuletos
de detecção. Adorava aquelas coisas — os amuletos, não a agulha — e, depois de
ter picado o dedo e usado três gotas de sangue para invoca-lo, constatei que num
raio de nove metros não se encontrava ninguém além do Glenn e eu. Coloquei-o
ao pescoço, como o meu antigo crachá da SI, no momento em que um pequeno
carro vermelho entrava no parque. O gato no parapeito espreguiçou-se antes de
saltar para a varanda, ficando fora do nosso campo de visão.

Era Sara Jane e ela estacionou o carro no lugar logo atrás do nosso. Glenn
nada disse enquanto saíamos do carro e avançávamos para falar com ela.

— Olá — disse ela, o rosto em forma de coração revelava a sua preocupação


sob a luz do poste de luz. — Espero que não tenham ficado muito tempo à espera
— acrescentou, a sua voz com o timbre profissional do escritório.

— Não se preocupe, minha senhora — disse Glenn.

Apertei o casaco de couro para me proteger do frio, enquanto ela fazia


tilintar as chaves, procurando por uma que ainda tinha o brilho de uma chave feita
recentemente e abria a porta. Minha pulsação acelerou e olhei de relance para o
meu amuleto ao mesmo tempo em que era atravessada por imagens de Trent.
Tinha a minha arma de bolas explosivas, mas eu não era uma pessoa corajosa. Eu
fugia dos caras grandes, feios e maus. Era algo que aumentava dramaticamente a
minha esperança de vida.

Glenn seguiu Sara Jane, enquanto ela ia acendendo as luzes e iluminando


todo o apartamento. Nervosa, atravessei a soleira da porta, hesitando entre fechar
a porta para impedir que alguém nos seguisse e deixá-la aberta para manter
disponível uma rota de fuga. Optei por deixá-la entreaberta.

— Há algum problema? — sussurrou Glenn, enquanto Sara Jane avançava


confiante até à cozinha e eu abanei a cabeça. O bloco tinha um andar térreo aberto,
sendo quase todo o piso visível da entrada. As escadas traçavam um caminho
direito e pouco imaginativo até ao primeiro piso. Sabendo que o meu amuleto me
avisaria caso aparecesse alguém, relaxei. Não estava ali mais ninguém além de nós
três e o gato que miava na varanda do primeiro andar.

— Vou lá em cima, para deixar entrar o Sarcófago — disse Sara Jane, en-
quanto se dirigia às escadas.
82

Ergui as sobrancelhas.

— É o gato, certo?

— Vou contigo, minha senhora — ofereceu Glenn e subiu as escadas atrás


dela.

Fiz um rápido reconhecimento do andar térreo enquanto eles estiveram


ausentes, sabendo que não encontraríamos nada. Trent era muito bom para deixar
alguma coisa para trás — só queria ver de que tipo de garoto gostava Sara Jane. A
pia estava seca, a lixeira fedia, a tela do computador estava cheia de pó e a caixa
do gato cheia. Era óbvio que Dan já não ia pra casa há algum tempo.

As tábuas do chão por cima de mim estalaram, enquanto Glenn percorria o


andar superior. Em cima da televisão estava uma fotografia de Dan e Sara Jane a
bordo do barco a vapor, igual à que ela me dera. Peguei nela e estudei os rostos de
ambos, voltando a colocar a fotografia emoldurada em cima da televisão,
enquanto Glenn descia pesadamente as escadas. Os ombros dele ocupavam quase
toda a escada estreita. Sara Jane avançava em silêncio atrás dele, parecendo
pequena e andando de lado por causa dos saltos.

— No andar de cima tudo bem — disse Glenn, enquanto percorria a pilha


de correspondências sobre o balcão da cozinha. Sara Jane abriu a dispensa. Como
todo o resto, estava bem arrumada. Depois de um momento de hesitação, pegou
numa embalagem de comida úmida para gato.

— Importa-se que eu veja os e-mails dele? — perguntei e Sara Jane acenou,


de olhos tristes.

Abanei o mouse e descobri que ele tinha uma linha só para Internet e estava
sempre ligado, tal como Ivy. Na verdade, eu não deveria estar fazendo aquilo, mas
desde que ninguém dissesse nada... Pelo canto do olho, vi Glenn percorrer com o
olhar o vestido de corte fino de Sara Jane — enquanto esta abria a embalagem de
comida de gato — e depois as minhas roupas, enquanto eu me inclinava sobre o
teclado. Podia ver nos seus olhos que ele achava que as minhas roupas não eram
profissionais e lutei contra uma careta.

Dan tinha várias mensagens não lidas — duas de Sara Jane e uma com um
endereço da universidade. As restantes eram de uma sala qualquer de chat
dedicada ao hard-rock. Até eu sabia que não podia abrir, adulterando as provas
caso ele aparecesse morto.
83

Glenn passou uma mão pelo cabelo curto, parecendo decepcionado por não
encontrar nada de incomum. Calculei que isso se devesse, não ao fato de Dan estar
desaparecido, mas ao de ele ser um bruxo e, como tal, devia ter cabeças de burro
penduradas no teto. Dan parecia ser um normal jovem solteiro. Talvez fosse mais
arrumado do que a maioria, mas Sara Jane não andaria com um cara desleixado.

Sara Jane pousou uma tigela com comida no chão, ao lado de uma tigela
com água. Um gato preto desceu as escadas ao ouvir o bater da porcelana. Miou
para Sara Jane, não se aproximando da comida até ela ter saído da cozinha.

— O Sarcófago não gosta de mim — disse ela, desnecessariamente. — É um


gato de uma só pessoa.

Um bom gato era assim. Os melhores escolhiam os seus donos, não o


contrário. O gato comeu tudo num período de tempo surpreendentemente curto,
depois saltou para as costas do sofá. Raspei os dedos no tecido e ele aproximou-se
para investigar. Esticou o pescoço e tocou no meu dedo com o nariz. Era assim que
os gatos saudavam e eu sorri. Adoraria ter um gato, mas Jenks me pixaria todas as
noites se levasse um para casa.

Recordando-me do meu período como visom, vasculhei a mala. Tentando


ser discreta, invoquei um amuleto para verificar se o gato tinha algum feitiço.
Nada. Não me sentindo satisfeita, vasculhei ainda mais em busca de um par de
óculos de armações finas. Ignorando o olhar inquisitivo de Glenn, abri a caixa
dura e coloquei no rosto os óculos tão feios que podiam funcionar como controle
de natalidade. Tinha os comprado no mês anterior, gastando três meses de renda
com a desculpa de que os podia descontar nos impostos. Os que não me faziam
parecer uma nerd asquerosa, teriam me custado o dobro.

A magia das linhas Ley podia ser ligada à prata, tal como a magia de terra
podia impregnar a madeira e, as armações finas tinham sido enfeitiçadas para me
permitir ver através de feitiços invocados pela magia das linhas Ley. Sentia-me
vulgar ao usá-los — pensando que o fato de estar usando um amuleto que não
podia fazer, me atirava de volta ao reino dos magos. Mas, enquanto coçava o
queixo do Sarcófago — agora certa da ausência de qualquer mudança e que não se
tratava de Dan preso sob a forma de um gato — decidi que não me importava.

Glenn voltou-se para o telefone.

— Importa-se que ouça as mensagens? — perguntou.


84

O riso de Sara Jane era amargo.

— São minhas.

O estalo da caixa rígida foi bastante sonoro quando guardei os óculos.


Glenn apertou o botão e eu semicerrei os olhos quando a voz de Sara Jane invadiu o
apartamento silencioso.

"Olá, Dan. Esperei durante uma hora. Combinamos na Carew Tower, certo?"
Houve uma hesitação, depois um distante. "Bem, ligue-me. E, é melhor que me leve
uns chocolates". A voz dela tornou-se brincalhona. "Vais ter muito que implorar, moço
delavoura".

A segunda mensagem era ainda mais desconfortável.

"Olá, Dan. Se está aí, atende". Mais uma vez uma pausa. "Hum, estava só
brincando quanto ao chocolate. Nos vemos amanhã. Te Amo. Tchau."

Sara Jane estava de pé na sala de estar, o rosto inexpressivo.

— Ele não estava aqui quando vim e não o vejo desde então — disse,
baixinho.

— Bem — disse Glenn quando a máquina chegou ao fim com um clique —,


ainda não encontramos o carro dele, a escova de dente e a lâmina de barbear ainda
estão aqui. Onde quer que esteja, não tinha planejado ficar. Parece que, de fato,
aconteceu alguma coisa.

Ela mordeu o lábio e afastou o olhar. Impressionada com a sua falta de tato,
dirigi a Glenn um olhar assassino.

— Tem a sensibilidade de um cão no cio, não tem? — sussurrei.

Glenn olhou para os ombros arqueados de Sara Jane.

— Desculpe, minha senhora.

Ela voltou-se, com um sorriso infeliz no rosto.

— Talvez deva levar o Sarcófago para minha casa...

— Não — disse rapidamente, para reconforta-la. — Ainda não.


85

Toquei-lhe no ombro, em sinal de simpatia e o cheiro do seu perfume de


lilás invocou em mim a recordação do sabor do talco das cenouras drogadas. Olhei
de relance para Glenn, sabendo que ele não nos deixaria para que pudesse falar
com ela a sós.

— Sara Jane — disse, hesitante. — Tenho de lhe fazer esta pergunta e peço
desde já me desculpe por isso. Sabe se alguém ameaçou o Dan?

— Não — disse ela, levando a mão ao colarinho e com o rosto calmo.

— Ninguém.

— E quanto a você? — perguntei. — Foi ameaçada de alguma forma? De


qualquer forma?

— Não, claro que não — disse ela rapidamente, baixando os olhos e com o
rosto pálido ficando ainda mais branco.

Não precisava de um amuleto para saber que ela estava mentindo e o


silêncio tornou-se desconfortável, enquanto eu lhe dava algum tempo para mudar
de ideia e me contar. Mas ela não o fez.

— Já... Já acabamos? — gaguejou ela e eu, acenando, ajustei a bolsa ao


ombro.

Sara Jane dirigiu-se à porta, os passos rápidos e afetados. Glenn e eu a


seguimos para o degrau de cascalho. Estava muito frio para os insetos, mas uma
teia de aranha partida estendia-se junto à parede.

— Obrigada por nos ter permitido fazer uma vistoria no apartamento —


disse eu, enquanto ela fechava a porta com os dedos a trêmulos. — Amanhã vou
falar com os colegas de turma. Talvez algum deles saiba alguma coisa. Seja o que
for, pode ajudar — disse, tentando dar um significado diferente à minha voz.

— Sim, obrigada — os olhos dela pousavam em tudo menos nos meus e ela
tinha voltado a assumir um tom de voz profissional. — Agradeço por terem vindo.
Gostaria de poder ajudar mais.

— Minha senhora — disse Glenn, ao partir. Os saltos de Sara Jane batiam


estridentes na calçada enquanto ela se afastava. Segui Glenn até o carro, olhando
p a r a t r á s e v e n d o o S a r c ó fa g o s e n t a d o j u n t o à j a n e l a d o a n d a r s u p e r i o r ,
observando-nos.
86

O carro de Sara Jane piou alegremente antes de ela pousar a bolsa no seu
interior, entrar e arrancar. Deixei-me ficar de pé no escuro, ao lado da porta aberta
e observei as luzes traseiras dela desaparecerem ao dobrar numa esquina. Glenn
fitava-me, de pé, junto ao lugar do condutor com os braços pousados sobre o teto
do carro. Os seus olhos castanhos eram inexpressivos à luz do poste.

— O Kalamack deve pagar muito bem às suas secretárias para ela ter aquele
carro — disse ele, suavemente.

Eu fiquei rígida.

— Sei que o faz — disse, irada, não gostando daquilo que ele deixara nas
entrelinhas. — Ela é muito boa naquilo que faz. E, ainda sobra dinheiro para
mandar para casa, permitindo que os familiares vivam como verdadeiros reis
comparados com os restantes empregados da fazenda.

Ele resmungou e abriu a porta. Eu entrei, suspirando enquanto apertava o


cinto e me recostava no assento de couro. Olhei para o estacionamento escuro do
outro lado do vidro, ficando ainda mais deprimida. Sara Jane não confiava em
mim. Mas, do ponto de vista dela, porque haveria de fazê-lo?

— Está levando isso de forma muito pessoal, não está? — perguntou Glenn,
ao ligar o carro.

— Acha que só porque ela é uma maga, não merece ajuda? — disse,
rudemente.

— Tenha calma. Não foi isso que quis dizer — Glenn olhou para mim de
relance, enquanto dava marcha ré. Ligou o aquecedor no máximo, antes de fazer a
mudança e uma madeixa de cabelo fez-me cócegas no rosto. — Só estou dizendo
que está agindo como se tivesse algo a ganhar com o resultado.

Eu passei uma mão sobre os olhos.

— Desculpe.

— Não faz mal — disse ele, parecendo compreender. — Então... — hesitou.


— O que se passa?

Ele parou no trânsito e, sob a luz de um poste, olhei para ele perguntando-
me se queria, de fato, ser sincera com ele.
87

— Eu conheço Sara Jane — disse, lentamente.

— Quer dizer que conhece as mulheres como ela — disse Glenn.

— Não. Eu a conheço.

O detetive do DFI franziu a sobrancelha.

— Ela não a conhece.

— Sim — abri a janela toda para me livrar do cheiro do meu perfume.

Já não o conseguia suportar. Os meus pensamentos não paravam de fugir


para os olhos de Ivy, negros e
assustados.

— Isso é que torna tudo tão


difícil.

Os freios guincharam um pouco, enquanto ele parava num semáforo.


Glenn
tinha a testa enrugada e a barba e o bigode desenhavam sombras
profundas no seu rosto.

— Importa-se de falar humano, por


favor?

Dirigi-lhe um pequeno sorriso sem


alegria.

— O seu pai contou que quase conseguimos apanhar o Trent


Kalamack
como traficante e produtor de drogas
biogenéticas.

— Sim. Isso foi antes de eu ser transferido para o departamento


dele. Ele disse que a única testemunha era um agente da SI que morreu
num atentado com bombas.

O semáforo mudou e avançamos. Acenei. Edden contou o


básico.

— Deixe que eu conte a verdade sobre Trent Kalamack — disse


eu ,
enquanto o vento soprava com força contra a minha mão. — Quando ele
me apanhou vasculhando no seu gabinete, em busca de uma forma de
levá-lo ao tribunal, ele não me entregou a SI, em vez disso ofereceu-me
um emprego. Qualquer coisa que eu quisesse — sentindo frio, virei para
mi
m
a
saí
da
do
ar.

El
e
pa
ga
ria
a
a
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ea
ça
de
m
ort
e
qu
e
a
SI
lan
ça
ss
e
so
br
e
mi
m,
m
e
ins
tal
ari
a
co
m
o
ag
88

lutara durante toda a minha vida profissional. Ele ofereceu-me algo que se parecia
com a liberdade. Desejava-o tanto, que poderia ter dito que sim.

Glenn estava em silêncio, tendo a sensatez de não dizer nada. Não havia
um policial vivo que não se tivesse sentido tentado e eu tinha orgulho de ter
passado no teste.

— Quando recusei, a sua oferta tornou-se uma ameaça. Tinha assumido a


f o r m a d e u m v i s o m , p o r m e i o d e u m fe i ti ç o e , e l e i a t o r tu r a r - m e f ís i c a e
mentalmente até eu estar disposta a tudo para o fazer parar. Se não me podia ter
por minha livre vontade, se contentaria com uma sombra disforme ansiosa por lhe
agradar. Tal como a Sara Jane.

Hesitei, arranjando coragem para continuar. Nunca admitira em voz alta


que me tinha sentido indefesa.

— Ela pensava que eu era um visom, mas concedeu-me mais dignidade


enquanto animal, do que Trent me dera enquanto pessoa. Tenho de afastá-la dele.
Antes que seja tarde demais. A menos que consigamos encontrar Dan e trazê-lo de
volta em segurança, ela não terá a mínima chance.

— O Sr. Kalamack é apenas um homem — disse Glenn.

— Sério! — disse eu, com uma gargalhada sarcástica. — Diga-me, Sr.


Detetive do DFI, é humano ou Inderlander? A família dele tem vindo a gerir, nas
sombras, uma boa fatia de Cincinnati há duas gerações e ninguém sabe o que ele é.
Jenks não consegue perceber o que é, a que cheira e o mesmo se passa com as
fadas. Ele destrói as pessoas dando-lhes exatamente o que elas querem... E se
diverte com isso — observei os edifícios pelo quais passávamos sem os ver.

O prolongado silêncio de Glenn fez-me erguer os olhos.

— Acha mesmo que o desaparecimento de Dan não tem nada a ver com os
assassinatos do caçador de bruxas? — perguntou ele.

— Sim — mudei de posição, não me sentindo confortável por ter dito tanto.
— Só aceitei este serviço para poder ajudar Sara Jane e apanhar Trent. Agora vai
correr e contar ao papai?

As luzes dos carros que viajavam em sentido contrário iluminavam-nos.


Inspirou fundo, depois soltou o ar.
89

— Se fizer qualquer coisa, durante a sua vingança, que ponha em causa a


minha possibilidade de provar que a Dra. Anders é a assassina, coloco-a a uma
fogueira em Fountain Square — disse, suavemente, em tom de ameaça. —
Amanhã irá à universidade e dirá tudo o que descobrir — os ombros dele
relaxaram. — Mas tenha cuidado.

Fitei-o, as luzes que passavam iluminavam-no esporadicamente de uma


forma que parecia espelhar a minha incerteza. Ele parecia compreender. Imagine.

— É justo — disse eu, recostando-me. A minha cabeça girou quando


viramos à esquerda e não à direita. Olhei de relance para ele, com uma sensação
de déjà vu. — Para onde vamos? Meu escritório fica para aquele lado.

— À pizzaria Piscary's — disse ele. — Não há qualquer motivo para esperar


até amanhã.

Fitei-o, não querendo admitir que prometera a Ivy que não iria lá sem ela.

— O Piscary's só abre à meia-noite — menti. — Eles servem Inderlanders.


Quer dizer, com que frequência um humano pede uma pizza? — o rosto de Glenn
pareceu mostrar compreensão e eu comecei a mexer no esmalte das unhas. —
Antes das duas, o serviço não vai acalmar o suficiente para que possam falar
conosco.

— Duas da manhã, certo? — perguntou.

Bem, dah! — pensei. Era a essa hora que a maior parte dos Inderlanders
atingiam o pico de forma, em especial os mortos.

— Por que não vai para casa, dorme e vamos lá todos amanhã?

Ele abanou a cabeça.

— Irá esta noite, sem mim.

Deixei escapar um suspiro de afronta.

— Não funciono assim, Glenn. Além disso, se eu o fizesse, você acabaria


por lá ir sozinho e eu prometi ao seu pai que o manteria vivo. Esperarei. Honra de
bruxa.
90

Mentir, sim. Trair a confiança de um parceiro — mesmo de um que não era


bem-vindo — não.

Ele dirigiu-me um olhar rápido e desconfiado.

— Está bem, pela honra das bruxas.

Capitulo 7
— Rache — disse Jenks do meu brinco. — Dá uma olhada naquele cara.
Está à procura de algo ou quê?

Ajustei a alça da minha bolsa no ombro e espreitei através da tarde


razoavelmente quente de setembro para o garoto em questão, enquanto percorria o
átrio informal. A música chegou-me ao subconsciente, o volume do rádio estava
muito baixo para que conseguisse ouvir. Meu primeiro pensamento é que devia
ser um gostoso. Tinha cabelo preto, roupas pretas, óculos de sol pretos e um
casaco comprido de couro. Estava encostado em uma máquina de refrigerante
tentando parecer suave, enquanto falava com uma mulher que usava um vestido
gótico de renda preta, mas estava falhando redondamente. Ninguém fica com um
ar sofisticado com um copo de papel na mão, por muito sexy que seja a sua barba
de dois dias. E, ninguém usa roupas góticas a não ser os vampiros vivos
adolescentes e os patéticos aspirantes a vampiros.
91

Dei uma risadinha, sentindo-me muitíssimo melhor. O grande campus e o


aglomerado de jovens tinham me deixado nervosa. Tinha frequentado um
politécnico, tendo realizado o normal programa de dois anos seguido de um
estágio de quatro na SI. Minha mãe jamais teria sido capaz de pagar as propinas
da Universidade de Cincinnati com a pensão do meu pai, mesmo com o subsídio
extra por morte.

Olhei de relance para o papel amarelo que Edden me dera. Tinha as horas e
os dias em que a minha turma se reunia e no canto inferior direito estava o preço
de tudo: impostos, taxa de laboratório e propinas — o que perfazia uma soma
chocante. Só aquele lugar era quase tão dispendioso como um semestre onde eu
estudei. Sentindo-me nervosa, enfiei o papel no saco, quando reparei num
animalomem em um canto, observando-me. Eu parecia suficientemente deslocada
andando de um lado para o outro com um horário na mão. Mais valia ter
p e n d u r a d o u m l e t r e i r o a o r e d o r d o p e s co ç o d i z e n d o :Al u n o d a s N o va s
Oportunidades. Deus me ajudasse, sentia-me velha. Eles não eram muito mais
novos que eu, mas todos os seus movimentos gritavam inocência.

— Isto é um disparate — murmurei a Jenks, enquanto deixava a cafetaria


informal.

Nem sequer sabia o porquê de o pixy estar comigo. Edden devia tê-lo
obrigado a seguir-me para garantir que eu iria às aulas. Minhas botas feitas por
vampiros iam batendo ritmicamente no chão, enquanto eu avançava pela
passagem alta, repleta de janelas, que ligava o edifício de Administração e Artes à
Kantack Hall. Senti um arrepio quando compreendi que os meus pés avançavam
ao ritmo de "Shattered Sight" de Takata e, embora ainda não conseguisse ouvir a
música, a letra tinha se instalado suficientemente fundo, na minha mente, para me
deixar louca.

"Examina minuciosamente as provas cobertas de pó, as provas da minha vida, da


minha vontade. Amava-te então. Amo-te ainda."

— Devia estar com Glenn interrogando os vizinhos de Dan — lamentei-me.


— Não preciso usar a cadeira, basta falar com os colegas de turma dele.

Meu brinco balançava como um balanço de pneu e as asas de Jenks faziam-


me cócegas no pescoço.

— Edden não quer que a Dra. Anders perceba que é suspeita. Eu acho que é
uma boa ideia.
92

Franzi a sobrancelha. Meus passos iam ficando abafados à medida que


chegava ao corredor acarpetado e começava a ler os números nas portas que se
sucediam por ordem ascendente.

— Acha que é boa ideia, então?

— Sim, mas ele esqueceu-se de uma coisa — deu uma risadinha. — Ou


talvez não se tenha esquecido.

Abrandei quando vi um grupo à porta de uma das salas. Era, de certo, a


minha.

— De quê?

— Bem — disse ele, com a voz arrastada —, agora que está frequentando a
faculdade, encaixa no perfil.

A adrenalina correu através do meu corpo e desapareceu.

— É isto, hã? — murmurei. De qualquer forma, maldito Edden.

O riso do Jenks era como um espanta-espíritos. Apoiei o livro pesado no


outro quadril, observando o pequeno grupo em busca da pessoa mais suscetível
de contar os melhores rumores. Uma jovem ergueu os olhos para mim, ou para
Jenks, sorrindo por breves instantes antes de se virar. Tinha vestidas umas calças
de boca larga — como eu — com um casaco de camurça de aspecto dispendioso
por cima da camiseta. Informal e, contudo, sofisticado. Uma bela combinação.
Pousando a bolsa no carpete, encostei-me à parede — como todos os outros — um
prudente metro e meio de distância.

Olhei, disfarçadamente para o livro aos pés da mulher. Extensões sem


Contato Usando Linhas Ley. Senti-me invadida por uma onda de alívio, pelo menos
tinha o livro certo. Talvez aquilo não fosse assim tão mau. Olhei de relance para o
vidro fosco da porta fechada, ouvindo vozes abafadas vindas do interior. A aula
anterior ainda não devia ter acabado.

Jenks balançou no meu brinco, puxando-o. Isso eu podia ignorar, mas


quando ele começou a cantar sobre lagartas das traças e mal-me-queres, enxotei-o.

A mulher ao meu lado limpou a garganta.

— Acabou de se transferir? — perguntou ela.


93

— Desculpe? — perguntei, enquanto Jenks esvoaçava de volta.

Ela fez estourar a pastilha elástica, os olhos pesadamente maquiados


pulando de mim para o pixy.

— Não há muitos alunos das linhas Ley. Não me lembro de te ver. Costuma
ter aulas à noite?

— Oh! — afastei-me da parede e virei-me para ela. — Não. Estou fazendo


aula para, hum, avançar no emprego.

Ela riu, enquanto afastava do rosto o longo cabelo preto.

— Entendo perfeitamente. Mas quando eu sair daqui, o mais certo é não


haver trabalho para um produtor cinematográfico com experiência em linhas Ley.
Hoje em dia parece que todos estão a fazer o minor em artes.

— Sou Rachel — estendi a mão. — E este é o Jenks.

— Prazer em conhecê-los — disse ela, tomando a mão por um instante. —


Janine.

Jenks zumbiu na sua direção, pousando na sua mão apressadamente


erguida.

— O prazer é todo meu, Janine — disse ele.

Ela sorriu, absolutamente maravilhada. Era óbvio que não tivera muito
contato com pixies. A maioria ficava fora da cidade, a não ser que trabalhasse
numa das poucas áreas em que os pixies e as fadas eram exímios: manutenção de
equipamento de vigilância, segurança ou o bom e velho mexerico. Mesmo assim,
as fadas eram empregadas com maior frequência, já que comiam insetos, em vez
de néctar, então, os seus mantimentos eram mais fáceis de arranjar.

— Hum, a Dra. Anders dá mesmo a aula ou tem um assistente que o faz por
ela? — perguntei.

Janine riu e Jenks esvoaçou de volta para o meu brinco.

— Já ouviu falar dela? — perguntou. — Sim, ela dá pessoalmente a aula, até


porque não somos muitos — os olhos de Janine fecharam-se um pouco. — Em
especial agora. Começamos com mais de uma dúzia, mas perdemos quatro
94

quando a Dra. Anders nos disse que o assassino só andava atrás de bruxas das
linhas Ley e que deveríamos ter cuidado. E, depois, o Dan desistiu — ela voltou a
encostar-se à parede, suspirando.

— O caçador de bruxas? — perguntei, refreando um sorriso. Tinha


escolhido a pessoa certa. Abri muito os olhos. — Está brincando...

O rosto dela mostrou preocupação.

— Acho que, em parte, foi por isso que Dan foi embora. E, pena que foi. O
homem era um espanto, era capaz de fazer faiscar um borrifador durante uma
tempestade. Tinha uma grande entrevista. Não quis me dizer mais nada. Acho que
tinha medo que eu também me candidatasse. Parece que conseguiu o emprego.

Abanei a cabeça, perguntando-me se seria aquilo que planejara dizer a Sara


Jane, no sábado. Mas, depois, uma ideia insinuou-se — a de que talvez o jantar em
Carew Tower fosse para pôr um ponto final no relacionamento, mas ele tivesse
perdido a coragem e partido sem lhe dizer nada.

— Tem certeza que ele desistiu? — perguntei. — Talvez o caçador de


bruxas...

Deixei a frase pendurada e Janine sorriu, tranquilizadoramente.

— Sim, desistiu. Ele perguntou-me se queria comprar o giz magnético dele,


caso conseguisse o lugar. A livraria não o aceita de volta, depois de termos
quebrado o selo.

Fiquei branca, sentindo-me súbita e verdadeiramente alarmada.

— Não sabia que precisávamos de giz.

— Oh, tenho um que posso te emprestar — disse ela, enquanto vasculhava


pela bolsa. — Normalmente a Dra. Anders põe-nos para desenhar qualquer coisa:
pentagramas, apogeus norte/sul... Pensa em qualquer coisa e então a desenhamos.
Ela mistura o trabalho de laboratório com a parte teórica. É por isso que nos
reunimos aqui e não no anfiteatro.

— Obrigada — disse, aceitando o pauzinho metálico e segurando nele,


juntamente com o meu livro.
95

Pentagramas? Eu odiava pentagramas. As minhas linhas eram sempre


tortas. Ia ter de perguntar a Edden se ele me pagava uma nova ida à livraria. Mas
depois me lembrei do custo do curso e do fato de ele, provavelmente, não vir a ser
reembolsado, por isso decidi ir à casa da minha mãe buscar os meus antigos
artigos escolares. Maravilha. Era melhor ligar.

Janine viu a minha expressão indisposta e, interpretando-a erroneamente,


apressou-se a dizer:

— Oh, não se preocupe, Rachel. O assassino não anda atrás de nós. Sério. A
Dra. Anders disse-nos para termos cuidado, mas ele só anda atrás de bruxas
experientes.

— Sim — disse eu, perguntando-me se ele me consideraria experiente ou


não. — Calculo que sim.

A conversa à nossa volta cessou, quando se ouviu a voz da Dra. Anders,


gritando do outro lado da porta fechada.

— Não sei quem é que anda matando meus alunos. Já estive em muitos
funerais este mês para ter de ouvir as suas acusações nojentas. E, processarei
vários daqui até a Viragem se mancharem o meu nome!

Janine pareceu alarmada, enquanto pegava no livro e o segurava contra o


peito. Os alunos que se encontravam no corredor passaram o seu peso de um pé
para o outro, trocando olhares desconfortáveis. Pousado no meu brinco, Jenks
murmurou:

— Lá se vai a ideia de manter a Dra. Anders na ignorância quanto ao seu


estatuto de possível suspeita — acenei, perguntando-me se Edden me deixaria
desistir da cadeira agora. — É Denon quem está lá dentro com ela — acrescentou
Jenks e eu inspirei fundo.

— O quê?

— Consigo sentir o cheiro dele — disse. — Ele está lá dentro com a Dra.
Anders.

Denon? — pensei, perguntando-me o que estava o meu antigo patrão


fazendo longe da sua sala.
96

Ouviu-se um suave murmúrio, depois um sonoro estalo. Todos os que se


encontravam no corredor — com exceção de Jenks e eu — saltaram. Janine ergueu
uma mão e tocou na orelha como se tivesse acabado de levar uma boa tapa.

— Não sentiu isto? — perguntou-me ela e eu abanei a cabeça. — Ela acabou


de fazer um círculo sem o desenhar primeiro.

Fitei a porta, como todos os presentes. Não sabia que era possível fazer um
círculo sem o desenhar. Também não gostava do fato de todos — com exceção de
Jenks e eu — terem sido capazes de perceber que ela o tinha feito. Sentindo que
aquilo era muito areia para o meu caminhão, peguei minha bolsa.

O som áspero e grave da voz do meu antigo patrão arrancou-me um


arrepio. Denon era um vampiro vivo, tal como Ivy. Mas era de sangue inferior, não
de sangue superior, tendo nascido humano e sido infectado pelo vírus do
vampirismo mais tarde — por um dos verdadeiros mortos-vivos. E, enquanto Ivy
tinha poder político — porque nascera vampira e, como tal se juntaria,
garantidamente, aos mortos-vivos mesmo que morresse sozinha com todas as
gotas do seu sangue ainda dentro dela —, Denon seria sempre um vampiro de
s e g u n d a , te n d o d e c o n fi a r q u e a l g u é m s e d a r i a a o tr a b a l h o d e a c a b a r a
transformação depois de morto.

— Saia da minha sala — exigiu a Dra. Anders. — Antes que eu o processe


por assédio.

Os alunos mexeram-se nervosos. Não fiquei surpreendida quando o vidro


fosco escureceu com uma forma que se aproximava. Fiquei rígida, tal como todos
os outros quando a porta se abriu e Denon avançou para fora da sala. O homem
quase tinha de se virar de lado, para passar pela porta.

Continuava a manter a crença de que Denon tinha sido um pedregulho na


sua vida anterior: uma pedra macia, gasta pelo rio, com cerca de uma tonelada,
talvez? Sendo de sangue inferior e possuindo apenas força humana, tinha de
trabalhar com afinco para conseguir acompanhar os seus irmãos mortos. O
resultado era uma cintura cuidada e montes de músculos. Estes repuxavam a
c a m i s a b r a n c a , e n q u a n t o e l e s a ía p a r a o c o r r e d o r . O a l g o d ã o e n g o m a d o
contrastava fortemente com a sua pele, atraindo o meu olhar e prendendo-o, tal
como ele queria.

Os alunos recuaram, enquanto ele passava. Uma presença fria pareceu


jorrar da sala e rodeá-lo, os resquícios da aura que ele tentara usar contra a Dra.
97

Anders. Um sorriso confiante e dominador curvou seus lábios quando seus olhos
pousaram em mim.

— Hum, Rachel? — murmurou Jenks, enquanto esvoaçava para Janine. —


Vemo-nos lá dentro, está bem?

Eu não disse nada, sentindo-me, de repente, muito frágil e vulnerável.

— Guardo um lugar — disse Janine, mas eu não afastei o olhar do meu


antigo patrão. Ouviu-se um ligeiro burburinho enquanto o corredor se esvaziava.

Eu tivera medo do homem e estava pronta e disposta a ter medo dele agora,
mas algo tinha mudado. Apesar de ainda se mover com a graça de um predador, o
porte atemporal que tivera antes desaparecera. A expressão esfomeada do seu
olhar — que ele não se dava ao trabalho de esconder — significava que continuava
a ser um vampiro praticante, mas calculei que perdera o favor de alguém e já não
se alimentava dos mortos-vivos, embora eles continuassem, provavelmente, a
alimentar-se dele.

— Morgan — disse, e as suas palavras pareceram embater contra a parede


de tijolo atrás de mim e empurrar-me para frente. A sua voz era como ele,
experiente, poderosa e repleta de promessas. — Ouvi dizer que tinha se vendido
ao DFI. Ou será que está apenas tentando tornar-se melhor?

— Olá, Sr. Denon — disse eu, sem afastar o olhar das suas pupilas negras e
dilatadas. — Foi despromovido a agente? — a luxúria esfomeada dos seus olhos
transformou-se em raiva e eu acrescentei: — Parece que está fazendo os serviços
que costumava me dar. Salvar familiares das árvores? Verificar a validade das
licenças? Já agora, como estão os trolls sem abrigo que vivem debaixo da ponte?

Denon avançou, os olhos fixos em mim e os músculos tensos. Senti o rosto


ficar gelado e dei por mim com as costas encostadas à parede. O sol que entrava
pela passagem distante parecia estar a esmorecer. Como um caleidoscópio, girou
parecendo duas vezes mais longe do que estava na verdade. O meu coração
saltou, depois retomou o seu andamento habitual. Ele estava tentando usar a sua
aura, mas eu sabia que ele não o podia fazer se eu não lhe desse o medo de que ele
precisava para alimentá-la. Eu não teria medo.

— Deixe de besteira, Denon — disse, atrevida e sentindo um nó no


estômago. — Vivo com uma vampira que podia comê-lo no café da manhã. Poupe a
sua aura para alguém que lhe dê atenção.
98

Ainda assim, aproximou-se de tal forma que eu não conseguia ver mais
nada para além dele. Eu tinha de levantar os olhos e isso me irritou. Sua respiração
era quente e eu conseguia sentir nele o cheiro de sangue. Minha pulsação acelerou
e odiei que ele soubesse que eu ainda tinha medo dele.

— Tem aqui mais alguém além de nós dois? — disse ele, a voz tão suave
como leite com chocolate.

Movendo a mão de forma lenta e controlada, toquei no punho da minha


arma de bolas explosivas. Os nós dos dedos rasparam no tijolo, mas assim que os
meus dedos tocaram no punho da arma, senti a confiança regressar veloz.

— Só nós dois e a minha arma de bolas explosivas. Se me tocar, dou-lhe um


tiro — sorri. — O que acha que ponho nas minhas bolas explosivas? Deve ser um
bocado difícil explicar porque teve de vir aqui alguém da SI para regá-lo com água
salgada, hã? Eu diria que isso arrancaria gargalhadas durante pelo menos um ano.

Observei enquanto a expressão dos olhos dele se transformava em ódio.

— Afaste-se — disse eu, com voz nítida. — Se pegar, vou usá-la.

Ele recuou.

— Afaste-se disto, Morgan — ameaçou. — Esta missão é minha.

— Isso explica porque é que a SI está andando em círculos. Talvez devesse


voltar às multas de estacionamento e deixar um profissional tratar disto.

Ele expirou ruidosamente e eu encontrei novas forças na sua raiva.

Ivy tinha razão. Havia medo no fundo da sua alma. Medo de que um dia,
os vampiros mortos-vivos que se alimentavam dele perdessem o controle e o
matassem. Medo de que não o trouxessem de volta como um dos seus irmãos.

Era um medo justificado.

— Isto é um assunto da SI — disse ele. — Interfere e mando te prender —


sorriu, mostrando-me os seus dentes humanos. — Se acha que ter estado numa
gaiola do Kalamack foi mau, espera até ver a minha.

A minha confiança estalou. A SI sabia daquilo?


99

— Cão que ladra não morde — disse eu, sarcástica. — Estou aqui por causa
de uma pessoa desaparecida, não dos seus assassinatos.

— Pessoa desaparecida — falou ele. — Bela história. Tenta manter o seu


alvo vivo, dessa vez — dirigiu um último olhar, antes de avançar pelo corredor,
para o sol e o som distante da cafeteria. — Não será o bichinho de estimação da
Tamwood para sempre — disse ele, sem se virar. — E, quando acontecer, irei atrás
de ti.

— Sim, como queira — disse eu, ainda que uma centelha do meu antigo
medo tenha tentado vir à superfície.

Eu não era o animal de estimação de Ivy — embora viver com ela me


protegesse consideravelmente da população vampírica de Cincinnati. Ela não
estava numa posição de poder, mas como último membro vivo da família
Tamwood, gozava de um estatuto de futuro líder honrado pelos vampiros sábios
— tanto vivos como mortos.

Inspirei fundo para afastar a fraqueza dos meus joelhos. Ótimo. Agora,
provavelmente, ia entrar na aula, depois de terem começado. Pensando que o meu
dia não podia ficar pior, recuperei a compostura e avancei para a sala fortemente
iluminada pelas janelas que davam para o campus. Como Janine dissera, a sala
estava arrumada como um laboratório, com duas pessoas sentadas em bancos em
frente a cada uma das mesas altas. Janine estava sozinha conversando com Jenks
tendo, claramente, guardado um lugar para mim ao seu lado.

Senti o ozônio que emanava do círculo apressadamente gerado pela Dra.


Anders. O círculo tinha desaparecido, mas o meu nariz formigou perante os
resquícios do seu poder. Olhei de relance para sua origem na frente da sala.

A Dra. Anders estava sentada em uma feia mesa de metal, perante um


tradicional quadro preto. Tinha os cotovelos apoiados na mesa e a cabeça pousada
nas mãos. Podia ver os seus dedos finos tremendo e perguntei-me se teriam sido
as acusações de Denon ou o fato de ter puxado poder suficiente da eternidade
para poder fazer um círculo sem a ajuda de uma manifestação física. A turma
parecia estranhamente silenciosa.

O cabelo dela estava preso num coque de aspecto sério, com fios cinzentos
traçando linhas pouco elogiosas por entre os pretos. Parecia mais velha do que a
minha mãe e, usava um par de calças castanhas de aspecto conservador e uma
100

blusa de bom gosto. Tentando não chamar atenção para mim, deslizei para as
primeiras duas filas de mesas e sentei-me ao lado de Janine.

— Obrigada — sussurrei.

Ela fitava-me de olhos esbugalhados, enquanto eu pousava a bolsa debaixo


da mesa.

— Trabalha para a SI?

Olhei de relance para a Dra. Anders.

— Costumava trabalhar. Desisti a primavera passada.

— Pensei que não se podia desistir da SI — disse ela, o rosto ficando ainda
mais redondo de espanto.

Encolhendo os ombros, afastei o cabelo para que Jenks pudesse ocupar o


seu lugar costumeiro.

— Não foi fácil — segui sua atenção para frente da sala quando a Dra.
Anders se levantou.

A mulher alta era tão assustadora quanto me lembrava — de rosto longo e


magro e um nariz que não ficaria mal numa descrição pré Viragem de uma bruxa.
Contudo, não tinha nenhuma verruga e a sua pele não era verde. Ela exalava
autoridade, chamando a atenção da turma só por ter se levantado. O tremor tinha
desaparecido das mãos quando pegou num maço de folhas.

Empoleirando na ponta do nariz um par de óculos de armação fina, fez de


conta que estava estudando seus apontamentos. Eu estava disposta a apostar que
eles tinham sido enfeitiçados para ver através de encantamentos das linhas Ley —
além de corrigirem a sua visão — e desejei ter a ousadia de pôr os meus próprios
óculos para ver se ela usava magia das linhas Ley para parecer tão pouco atraente
ou se era tudo natural. Um suspiro fez abanar os seus ombros estreitos quando ela
ergueu os olhos, seu olhar prendendo-se de imediato em mim através dos óculos
enfeitiçados.

— Vejo — disse ela, a sua voz lançando-me um arrepio pela espinha —, que
temos aqui um rosto novo.
101

Eu dirigi-lhe um sorriso falso. Era óbvio que ela tinha me reconhecido, o


seu rosto estava enrugado como uma ameixa seca.

— Rachel Morgan — disse ela.

— Aqui — disse eu, num tom monótono.

Um toque de irritação pairou sobre ela.

— Eu sei quem é — com os saltos baixos batendo, ela aproximou-se até ficar
à minha frente. Inclinando-se, olhou para Jenks.

— E, quem é você, senhor pixy?

— Hum, Jenks, minha senhora — gaguejou ele, as asas movendo-se


rapidamente e prendendo-se no meu cabelo.

— Jenks — disse ela, em tom quase respeitoso. — É um prazer conhecê-lo.


Não faz parte do meu rol de alunos. Por favor, saia.

— Sim, minha senhora — disse ele e, para minha grande surpresa, o pixy
normalmente arrogante saltou do meu brinco. — Desculpa, Rache — disse ele,
pairando à minha frente. — Estarei no átrio da faculdade ou na biblioteca. Pode
ser que o Nick ainda esteja trabalhando.

— Certo. Depois procuro por você.

Ele curvou a cabeça à Dra. Anders e voou pela porta ainda aberta.

— Desculpe — disse, Dra. Anders. — A minha cadeira está interferindo


com a sua vida social?

— Não, Dra. Anders. É um prazer voltar a vê-la — ela recuou, perante o


sarcasmo ligeiro.

— Sério?

Pelo canto do olho, vi a boca de Janine completamente aberta. Pelo que


podia ver, o resto da turma estava igual. Senti o rosto arder. Não sabia o porquê
de a mulher não gostava de mim, mas não gostava. Era tão simpática como uma
vaca esfomeada para todos os outros, mas comigo era um texugo voraz.
102

A Dra. Anders deixou cair os papéis na minha mesa com um estalo. O meu
nome estava marcado com um espesso círculo vermelho. Os seus finos lábios
apertaram-se de forma quase imperceptível.

— Por que está aqui? — perguntou ela. — Já passaram duas aulas desde o
início do semestre.

— Durante esta semana ainda podemos nos inscrever ou desistir de uma


vaga — contrapus, sentindo a minha pulsação a acelerar.

Ao contrário de Jenks, não tinha qualquer problema em lutar contra


autoridade. Mas, como dizia a música, a autoridade ganhava sempre.

— Nem sequer sei como conseguiu ser aprovada para esta aula — disse ela,
em tom sarcástico. — Não cumpre qualquer dos pré-requisitos.

— Transferi todos os meus créditos. E, obtive um ano por experiência


devida.

Era um fato, mas Edden era a verdadeira razão porque fora capaz de passar
diretamente para uma aula de nível quinhentos.

— Está me fazendo perder tempo, menina Morgan — disse ela. — É uma


bruxa de terra. Pensei que tinha deixado isso bem claro. Não possui o controle
para usar as linhas Ley além do básico necessário para fechar um círculo modesto
— ela inclinou-se na minha direção e eu sentia a pressão sanguínea a subir. — Vou
chumbá-la e correr com você da minha sala mais depressa do que da outra vez.

I n s p i r e i f u n d o p a ra me a ca l ma r , o l h a n d o d e r e l a n ce p a ra o s ro st o s
chocados. Era óbvio que nunca tinham visto aquele lado da sua amada professora.

— Preciso desta aula, Dra. Anders — disse eu, não sabendo o porquê de
estar tentando apelar ao seu raquítico sentido de compaixão. A não ser pelo fato
de, caso fosse corrida, Edden poder me obrigar a pagar a propina. — Estou aqui
para aprender.

Dito isto, a mulher irritadiça pegou nas suas folhas e colocou-se junto à
mesa vazia atrás dela. O seu olhar percorreu a turma antes de se fixar em mim.

— Está tendo problemas com o seu demônio?


103

Vários colegas de turma arquejaram. Janine chegou ao ponto de se afastar


de mim. Maldita fosse aquela mulher — pensei, levando a mão ao pulso. Não estava
ali nem há cinco minutos e ela já me tinha alienado da turma toda. Devia ter usado uma
pulseira. O meu maxilar cerrou-se e a minha respiração tornou-se mais rápida,
enquanto eu lutava para não responder. Dra. Anders parecia satisfeita.

— Não se pode esconder adequadamente a marca de um demônio com


magia de terra — disse ela, a voz alta como se estivesse a dar uma lição. — Para
isso é preciso magia da linha Ley. É por isso que está aqui, menina Morgan? —
perguntou ela.

Tremendo, recusei-me a afastar o olhar. Eu não sabia isso. Não era de


admirar que os feitiços que eu usava para disfarçar nunca durassem até depois do
p ô r - d o - s o l .As r u g a s d e l a to r n a r a m - s e m a i s p r o f u n d a s , q u a n d o fr a n z i u a
sobrancelha.

— A cadeira de Demonologia para Praticantes Modernos do professor


Peltzer fica no próximo edifício. Talvez pudesse sair e ir ver se não é muito tarde
para trocar de sala. Aqui não lidamos com artes negras.

— Não sou uma bruxa negra — disse baixinho, temendo começar a gritar,
caso erguesse a voz. Levantei a manga, revelando a marca do demônio e
recusando-me a ter vergonha dela. — Eu não invoquei o demônio que me fez isso.
Lutei contra ele.

Inspirei fundo, incapaz de olhar para quem quer que fosse, sobretudo para a
Janine — que tinha se afastado de mim, tanto quanto lhe era possível.

— Estou aqui para aprender como mantê-lo longe de mim, Dra. Anders.
Não vou tirar nenhuma cadeira de Demonologia. Tenho medo delas.

A última frase disse num sussurro, mas eu sabia que toda a turma tinha
ouvido. Dra. Anders parecia surpresa. Eu sentia-me embaraçada, mas se isso a
fizesse recuar, era um embaraço bem gasto. Os passos dela eram audíveis,
enquanto avançava para frente da sala.

— Vá para casa, menina Morgan — disse ela, virada para o quadro negro.
— Eu sei porque está aqui. Eu não matei os meus antigos alunos e a acusação
implícita ofende-me — com esse pensamento alegre, voltou-se, dirigindo à turma
u m s o r r i s o de l á b i o s ap e r t a do s . — E , o s r e s t a n t e s s e n ã o s e i m po r t a r e m ,
conservem as vossas cópias dos pentagramas do século XVIII. Vamos fazer um
104

teste sobre eles sexta-feira. Para a próxima semana quero que leiam os capítulos
seis, sete e oito dos vossos manuais e que resolvam os exercícios ímpares no final
de cada um. Janine?

Ao ouvir o seu nome, a jovem saltou. Tinha estado tentando ver bem o meu
pulso. Eu ainda estava tremendo e os meus dedos não paravam quietos, enquanto
anotava os trabalhos de casa.

— Janine, é melhor fazer também os exercícios pares do capítulo seis. Seu


controle sobre a libertação da energia acumulada das linhas Ley deixa algo a
desejar.

— Sim, Dra. Anders — disse ela, de rosto pálido.

— E vá sentar-se ao lado do Brian — acrescentou. — Pode aprender mais


com ele do que com a menina Morgan.

Janine não hesitou. Ainda antes de a Dra. Anders ter terminado, Janine já
tinha agarrado a bolsa e o livro, passando para a mesa do lado. Eu fiquei sozinha,
sentindo-me mal. O giz que Janine me emprestara estava pousado ao lado do meu
livro como um biscoito roubado.

— Na sexta-feira também gostaria de avaliar a ligação dos vossos familiares


já que, durante as próximas semanas, iremos abordar o tema da proteção a longo
prazo — dizia Dra. Anders. — Por isso tragam-nos, por favor. Vou demorar algum
tempo a avaliar todos. Aqueles cujos nomes estiverem no fim da lista devem
contar com a possibilidade de ficarem retidos depois da aula.

Alguns dos estudantes gemeram de aborrecimento, mas faltava-lhes certa


jovialidade que me parecia ser comum ali. Senti o estômago apertado. Eu não
tinha um familiar. Se não arranjasse um até sexta-feira, ela chumbaria-me. Tal
como da última vez.

Dra. Anders sorriu para mim, com o calor de uma boneca.

— Isso é um problema, menina Morgan?

— Não — respondi, num tom monótono, começando a querer culpá-la


pelos homicídios quer ela os tivesse cometido ou não. — Não é nenhum problema.
105

Capitulo 8
Felizmente não havia nenhuma fila quando chegamos à pizzaria Piscary's
— na viatura descaracterizada do DFI conduzida por Glenn. Ivy e eu saímos do
carro, mal ele parou. Não tinha sido uma viagem muito confortável para nenhum
de nós — com a recordação dela prendendo-me contra a parede da cozinha ainda
muito vívida. Seus modos tinham estado estranhos durante a tarde, compostos,
mas excitados. Eu sentia-me como se estivesse prestes a conhecer os pais dela. De
certa forma, suponho que fosse. Piscary era a origem ancestral da sua linhagem
familiar viva.

Glenn bocejou enquanto saía lentamente do carro e vestia o casaco, mas


acordou o suficiente para enxotar Jenks, que esvoaçava ao redor da sua cabeça. Ele
não parecia nada desconfortável com o fato de estar prestes a entrar num
106

restaurante exclusivamente Inderlander. Sua arrogância era quase tangível. Talvez


ele fosse lento para aprender.

O detetive do DFI tinha concordado em trocar o seu terno formal de agente


do DFI por uma calça jeans e uma camisa de flanela desbotada, que Ivy tinha
guardado no fundo do guarda-roupa, numa caixa rotulada "RESTOS" com
marcador preto. Serviam a Glenn com perfeição e eu nem quis saber onde é que
e l a a s t i nh a a r r a nj a d o ou po r q u e t i nh a m a l gu n s r a s g õe s c ui d ad o s a m en t e
remendados em locais deveras inusitados. Um casaco de nylon escondia a arma
que ele se recusara a deixar para trás, ainda que eu tivesse deixado a minha arma
de bolas explosivas em casa. Seria inútil numa sala cheia de vampiros.

Um carrinho entrou lentamente no parque de estacionamento e ocupou um


espaço vazio na extremidade oposta. Minha atenção saltou dele para a janela bem
iluminada das entregas. Enquanto observava, partia mais uma pizza, o carro
lançando-se para a rua e acelerando para longe com a rapidez indicadora de um
grande motor. Os entregadores de pizza faziam bom dinheiro já que tinham
conseguido pressionar os patrões, com sucesso, para receberem subsídio de risco.

Além do parque de estacionamento, ouvia-se o suave bater da água na


madeira. Compridas tiras de luz brilhavam sobre o rio Ohio e os edifícios mais
altos de Cincinnati refletiam-se, em pinceladas largas, sobre as suas águas planas.
O Piscary's fica em frente ao rio, situando-se no centro da zona mais concorrida de
clubes, restaurantes e discotecas. Tinha até um cais onde os clientes que viajavam
de iate podiam amarrar os seus barcos. Contudo, conseguir uma mesa virada para
a doca, a esta altura, seria impossível.

— Prontos? — perguntou Ivy alegremente, enquanto acabava de ajeitar o


casaco.

Estava vestida com sua calça de couro preta e uma camisa de seda que lhe
dava um aspecto alto, magro e predatório. A única cor no seu rosto era o vermelho
forte do batom. Uma corrente de ouro negro pendia ao redor do pescoço,
substituindo o crucifixo que normalmente usava e que se encontrava agora na
caixinha das joias, em casa. Combinava perfeitamente com as pulseiras que usava.
Além disso, tinha pintado as unhas com um esmalte transparente, o que lhes dava
um brilho sutil.

As joias e o esmalte não eram incomuns e, depois de tê-las visto, eu optara


por usar uma pulseira de prata larga, em vez da normal pulseira de amuletos —
107

para esconder a marca do demônio. Sabia bem arrumar-me e eu até tentara fazer
qualquer coisa com o meu cabelo. O frisado ruivo com que acabei quase parecia
intencional.

Mantive-me um passo atrás de Glenn enquanto avançávamos em direção à


porta da frente. Os Inderlanders misturavam-se sem problemas, mas o nosso grupo
era mais estranho do que o normal e, eu tinha a esperança de conseguir entrar e
sair rapidamente com a informação que procurávamos sem atrair atenções. O
carrinho que estacionara depois de nós pertencia a uma matilha de animalomens,
deveras ruidosos enquanto encurtavam a distância que nos separava.

— Glenn — disse Ivy, quando chegamos à porta. — Mantém a boca


fechada.

— Como queira — disse o agente, antagonicamente.

Minhas sobrancelhas ergueram-se e recuei, preocupada. Jenks aterrou nas


minhas grandes argolas.

— Isso vai ser bonito — disse, rindo.

Ivy agarrou Glenn pelo colarinho, erguendo-o do chão e encostando-o


ruidosamente contra o pilar de madeira. Glenn, sobressaltado, estancou por um
instante, depois esperneou tentando acertar no estômago de Ivy. Ela largou-o para
escapar ao ataque. Depois, com a rapidez de um vampiro, voltou a pegá-lo e a
atirá-lo contra o pilar. Glenn gemeu de dor, lutando por recuperar o fôlego.

— Ooooh — exclamou Jenks. — Isso vai doer amanhã de manhã.

Eu bati com o pé e olhei de relance para a matilha de animalomens.

— Não podiam ter tratado disso antes de sairmos? — queixei-me.

— Ouve, pequeno petisco — disse Ivy, calmamente, aproximando o rosto


do de Glenn. — Vai manter a boca fechada. Não fale a menos que eu te faça uma
pergunta.

— Vá para o inferno — conseguiu Glenn dizer, o rosto ficando vermelho


sob a pele escura.

Ivy ergueu-o um pouco mais e ele gemeu.


108

— Você fede humano — continuou, os olhos ficando negros. — No


Piscary's só entram Inderlanders e humanos ligados. A única forma de conseguir
sair daqui com todas as partes intactas e sem furos, é se todos pensarem que é o
meu espectro.

Espectro — pensei. Tratava-se de um termo ofensivo. Servo era outro.

B r i nq u e do s e ri a m a i s c o r r e t o . R e f e ri a - s e a u m h u m an o mo r d id o
recentemente, agora pouco mais do que uma fonte de sexo e alimento e,
mentalmente ligado a um vampiro. Eram mantidos submissos durante tanto
tempo quanto possível. Por vezes durante décadas. O meu antigo patrão, Denon,
tinha feito parte desse grupo até ter caído nas graças daquele que lhe dera uma
existência um pouco mais livre.

De rosto contorcido, Glenn libertou-se dela e caiu ao chão.

— Vá se ferrar, Tamwood — disse, com voz rouca, esfregando o pescoço. —


Consigo cuidar de mim mesmo. Isso não vai ser pior do que entrar num bar de
imbecis nas profundezas da Geórgia.

— Não? — perguntou ela, a mão pálida pousada no quadril erguido. —


Algum deles queria te comer?

A matilha de animalomens passou por nós e entrou. Um deles virou-se,


olhando para mim duas vezes e, eu perguntei-me se o fato de ter roubado o peixe
ia ser um problema. A música e a conversa deslizaram para o exterior, cessando
quando a porta voltou a se fechar. Suspirei. Parecia lotado. Agora, o mais certo era
termos de esperar por uma mesa.

Estendi uma mão a Glenn para ajudá-lo a levantar, enquanto Ivy abria a
porta. Glenn recusou minha ajuda, enfiando o amuleto contra o comichão dentro
da camisa, enquanto lutava para recuperar o seu orgulho esmagado em algum
lugar sob as botas de Ivy. Jenks esvoaçou de mim para o ombro dele e Glenn
sobressaltou-se.

— Vai se sentar noutro lado, pixy — disse ele, tossindo.

— Oh, não — disse Jenks alegremente. — Não sabe que um vampiro não te
tocará se tiver um pixy no ombro? É um fato bem conhecido.

Glenn hesitou e eu revirei os olhos. Que dor no traseiro!


109

Fizemos fila atrás de Ivy, enquanto a matilha de animalomens era levada


para sua mesa. O restaurante estava lotado, o que não era estranho num dia de
trabalho. Piscary's tinha as melhores pizzas de Cincinnati e não aceitavam
reservas. O calor e o ruído ajudaram-me a relaxar e tirei o casaco. As grossas vigas
de apoio, de corte rude, pareciam sustentar o teto baixo e um batuque rítmico ao
som de "Rehumanize Yourself", do Sting descia pela escadaria larga. Depois delas,
abriam-se janelas largas que davam para o rio negro e para a cidade do outro lado.
Preso ao cais estava um iate de três pisos, obscenamente caro e com as luzes de
atracagem a iluminando o nome na proa: SOLAR. Bonitas jovens universitárias
moviam-se de um lado para o outro, eficientes nos seus uniformes curtos — uns
mais sugestivos que outros. A maior parte era humanos ligados, já que os
empregados vampiros costumavam ficar no piso superior, onde a supervisão era
menor.

As sobrancelhas do host ergueram-se quando viu Glenn. Percebi que era o


host, porque a camisa só estava meio aberta e o crachá com o nome o dizia.

— Mesa para três? Iluminada ou não?

— Iluminada — disse, antes que Ivy pudesse dizer o contrário. Não queria
ir para o piso de cima. Parecia caótico.

— Então terão de esperar quinze minutos. Podem aguardar no bar, se


quiserem.

Suspirei. Quinze minutos. Eram sempre quinze minutos. Quinze pequenos


minutos que se transformavam em trinta, depois em quarenta e, depois, já
estávamos dispostos a esperar mais dez, para que não tivesse de ir para outro
restaurante e começar tudo de novo.

Ivy sorriu, revelando os dentes. Os seus caninos não eram maiores do que
os meus, mas eram afiados como os de um gato.

— Esperamos aqui, obrigada.

Parecendo quase elevado pelo sorriso dela, o host acenou. O peito, visível
através da camisa aberta, estava repleto de cicatrizes pálidas. Não era o tipo de
roupa que usavam os hosts do Denny's, mas quem era eu para me queixar? Havia
nele uma expressão doce que eu não apreciava nos meus homens, mas que
algumas mulheres gostavam.
110

— Não vai demorar muito — disse ele, fixando em mim os olhos quando
reparou na atenção que lhe estava dedicando. Os lábios afastaram-se sugestivos.
— Querem pedir?

Uma pizza passou por nós num tabuleiro e, enquanto eu afastava dele o
olhar, olhei de relance para Ivy e franzi as sobrancelhas. Não tínhamos ido ali pelo
jantar, mas porque não? Cheirava maravilhosamente.

— Sim — disse Ivy. — Uma extragrande. Com tudo exceto, pimenta e


cebola.

Glenn arrancou a atenção do que parecia ser uma assembleia de bruxas


aplaudindo a chegada do jantar. Comer no Piscary's era um evento.

— Disseram que não íamos ficar.

Ivy voltou-se, o negro enchendo os seus olhos.

— Tenho fome. Tem algum problema com isso?

— Nenhum — murmurou ele.

Ivy recuperou de imediato a compostura. Eu sabia que ela não entraria em


modo de vampiro ali. Poderia desencadear uma reação em cadeia entre os
vampiros que ali se encontrassem e isso levaria o Piscary's a perder a sua
classificação A no LPM.

— Talvez possamos partilhar a mesa com alguém. Estou esfomeada — disse


ela, mexendo o pé.

LPM era a abreviatura de Licenciamento Público Misto. O que significava


uma estrita política de não derramamento de sangue no local. Algo banal na maior
parte dos locais onde eram servidas bebidas alcoólicas desde a Viragem. Criava
uma zona de segurança que nós, frágeis criaturas para quem "morto significa
morto", precisávamos. Se estivessem muitos vampiros juntos e um deles
derramasse sangue, os restantes tendiam a perder o controle. Era algo que não
representava um problema caso todos fossem vampiros, mas as pessoas não
g o s t a va m m u i t o q u a n d o o p a s s e i o p e l a c i d a d e d e u m e n t e q u e r i d o se
transformava numa estadia eterna no cemitério. Ou pior.

Existiam clubes e discotecas sem LPM, mas não eram tão populares e não
faziam muito dinheiro. Os humanos gostavam dos espaços com LPM, já que
111

podiam namoricar sem que as más decisões de outros pudessem transformar o seu
companheiro num monstro descontrolado e sedento de sangue. Pelo menos até se
encontrarem na privacidade do seu próprio quarto, onde talvez conseguissem
sobreviver. E, os vampiros também gostavam, era mais fácil quebrar o gelo
quando o companheiro não estava preocupado com a possibilidade de ver a sua
pele rasgada.

Olhei ao redor da sala semiaberta, vendo apenas Inderlanders entre os


clientes. LPM ou não, era óbvio que Glenn estava chamando atenção. A música
tinha terminado e ninguém tinha introduzido uma nova moeda. Além das bruxas
no canto e da matilha de animalomens ao fundo, o piso inferior estava repleto de
vampiros de diferentes níveis de sensualidade — que iam do informal ao
acetinado e rendilhado. Grande parte do piso estava ocupada pelo que parecia ser
uma festa de aniversário da morte.

O súbito bafo quente no meu pescoço fez-me endireitar, de repente, e só o


olhar aborrecido de Ivy me impediu de bater em quem quer que fosse. Girando,
minha resposta mordaz desvaneceu-se. Maravilha. Kisten.

O vampiro vivo era amigo de Ivy e eu não gostava dele. Isso se devia, em
parte, ao fato de Kist ser o delfim de Piscary — uma extensão do mestre vampiro
que fazia o seu trabalho durante o dia. O fato de Piscary ter usado Kist para me
enfeitiçar contra a minha vontade — algo que, na época, eu não sabia ser possível
— não ajudava. O que também não ajudava era o fato de ele ser muito, muito
bonito — o que o tornava, segundo os meus cálculos, muito, muito perigoso.

Se Ivy era uma diva da escuridão, Kist era o seu consorte e, Deus me
ajudasse, ele representava o papel com perfeição. Cabelo loiro curto, olhos azuis e
um queixo com pelos suficientes para dar às suas feições delicadas um ar mais
rude — e faziam dele um sensual pacote de prometida diversão. Estava vestido de
forma mais conservadora do que era costume, o couro e as correntes próprias de
um motard tinham dado lugar à uma camisa e umas calças de bom gosto. No
entanto, a sua atitude "devia preocupar-me com o que pensa, por quê?",
mantinha-se. A ausência das botas de motard3 faziam com que fosse ligeiramente
mais alto do que eu — mesmo com os sapatos de salto que tinha calçado — e, o ar
atemporal de um vampiro morto-vivo pairava sobre ele como uma promessa a ser
cumprida. Movia-se com uma confiança felina, tendo músculos suficientes para

Tipo de botas para motoqueiro.


3
112

desejarmos passar as pontas dos dedos sobre eles, mas não tantos que ficassem no
caminho.

Ivy e ele partilhavam um passado que eu não queria conhecer já que, na


época, ela era uma vampira muito praticante. Ficava sempre com a impressão de
que, se ele não a pudesse ter, se contentaria com a sua companheira de quarto. Ou
com a garota da porta ao lado. Ou com a mulher que conhecera no ônibus naquela
manhã...

— Evening, love — sussurrou ele, num fingido sotaque britânico, os olhos


divertidos por ter me surpreendido.

Empurrei-o para trás com um dedo.

— A sua pronúncia é uma droga. Vai embora até a aprender como deve ser.

Mas a minha pulsação tinha acelerado e um suave calafrio de prazer


espalhou-se a partir da cicatriz no meu pescoço, fazendo tocar todos os alarmes de
proximidade. Diabos. Tinha-me esquecido daquilo.

Ele olhou de relance para Ivy, como que pedindo autorização, depois
lambeu os lábios, num gesto brincalhão, quando ela franziu a sobrancelha em
resposta. Eu fiquei de semblante carregado, pensando que não precisava da ajuda
dela para afastá-lo. Vendo-o, Ivy bufou exasperada e puxou Glenn para o bar,
levando Jenks a segui-los com a promessa de ponche de mel. O detetive do DFI
olhou de relance por cima do ombro, enquanto se afastava, sabendo que algo tinha
acontecido entre nós três, mas não entendendo o quê.

— Por fim, sós — Kist colocou-se ao meu lado, ombro com ombro e olhou
para o piso aberto. Podia sentir o cheiro de couro, embora ele não tivesse vestido
qualquer peça desse material. Pelo menos, que eu visse.

— Não arranjou uma frase de paquera melhor do que essa? — perguntei,


desejando não ter afugentado Ivy.

— Não é uma frase de paquera.

O ombro dele estava muito perto do meu, mas eu não ia me afastar e dar-
lhe a entender que isso estava me incomodando. Olhei-o de relance, enquanto ele
respirava com uma lentidão profunda; os olhos dele estavam analisando os
clientes, ao mesmo tempo em que inalava o meu cheiro para avaliar a dimensão
do meu desconforto. Numa das orelhas brilhavam dois brincos de diamante e eu
113

lembrava-me que a outra tinha apenas um brinco e um rasgão sarado. Uma


corrente feita do mesmo material da de Ivy era a única pista do seu normal
aparato de garoto perigoso. Perguntei-me o que estaria ele fazendo ali. Havia
melhores locais para um vampiro vivo arranjar um "par/petisco".

Os dedos moviam-se sem parar, atraindo para ele o meu olhar. Eu sabia que
ele estava emitindo feromônios vampíricos para me acalmar e relaxar — só para te
comer melhor, minha querida —, mas quanto mais bonitos são, mais defensiva me
torno. Meu rosto perdeu toda a expressão quando percebi que tinha sincronizado a
minha respiração com a dele.

Sutil enfeitiçamento no seu melhor — pensei, sustendo propositadamente a


respiração para que deixássemos de estar sincronizados e o vi sorrir, quando
baixou a cabeça e passou a mão pelo queixo. Normalmente só um vampiro morto-
vivo tinha a capacidade para enfeitiçar aqueles que não o desejassem. No entanto,
ser o delfim de Piscary garantia a Kist parte dos poderes do mestre. Contudo, ele
não se atreveria a fazê-lo ali. Não com Ivy observando a partir do bar, do outro
lado de uma garrafa de água.

De súbito percebi que ele estava se balançando, movendo os quadris de


forma constante e sugestiva.

— Para com isso — disse, enquanto me virava para olhar para ele, enojada.
— Tem uma série de mulheres te observando do bar. Vai chatear a elas.

— É muito mais divertido chatear você — inspirando profundamente o meu


odor, inclinou-se na minha direção. — Continua cheirando à Ivy, mas ela ainda
não te mordeu. Meu Deus, é uma tentação.

— Somos amigas — disse eu, ofendida. — Ela não está me caçando.

— Então não se vai importar se eu o fizer.

Irritada, afastei-me. Ele seguiu-me, até as minhas costas baterem contra um


pilar.

— Para de se mexer — disse ele, apoiando uma mão no grosso pilar, ao lado
da minha cabeça e prendendo-me, embora tivesse deixado algum espaço entre
nós. — Quero dizer-te uma coisa e não quero que mais ninguém nos ouça.
114

— Como se alguém pudesse ouvir por cima deste barulho — disse,


zombadora com a mão atrás das costas, dobrando os dedos de forma a que as
unhas não me cortassem a pele da palma da mão, se tivesse de lhe bater.

— Talvez ficasse surpreendida — murmurou ele, fixando-me intensamente.

Eu o olhei nos olhos, procurando e reconhecendo um ligeiro aumento da


pupila negra, ao mesmo tempo em que a sua proximidade concedia à minha
cicatriz um calor promissor. Já vivia com Ivy há tempo suficiente para saber qual o
aspecto de um vampiro prestes a perder o controle. Ele estava bem, os instintos
controlados e a sede saciada.

Eu estava razoavelmente segura, por isso relaxei, baixando os ombros.

Os seus lábios sensuais e vermelhos apartaram-se, surpreendidos pela


minha aceitação da sua proximidade. De olhos brilhantes, ele respirava de forma
lenta e langorosa, inclinando a cabeça e aproximando-se até os seus lábios tocarem
no lóbulo da minha orelha. A luz cintilava sobre a corrente negra ao redor do seu
pescoço, atraindo a minha mão. Estava quente e essa surpresa fez com que os
meus dedos continuassem a brincar com ela, quando deveriam ter parado.

O som de pratos batendo e dos diálogos tornou-se um eco distante,


enquanto eu me deixava absorver pelo seu murmúrio suave e irreconhecível. Urna
sensação deliciosa atravessou-me, como metal derretido a correr-me pelas veias.
Não queria saber se a sensação tivera a sua origem no fato de ele ter ativado a
minha cicatriz. E, ele ainda não dissera uma palavra que eu reconhecesse.

— Senhor? — disse uma voz hesitante, atrás dele.

Kist parou de respirar. Durante alguns instantes, manteve-se em silêncio,


imóvel, enquanto os seus ombros ficavam tensos de irritação. A minha mão
desceu do seu pescoço.

— Alguém quer falar contigo — disse eu, olhando além dele, para o host,
que se movia nervoso.

Um sorriso apoderou-se de mim. Kist estava tentado a quebrar o LEM e


tinham mandado alguém para o refrear. As leis eram coisas boas. Mantinham-me
viva quando eu fazia algo idiota.
115

— O que foi? — perguntou Kist, num tom neutro. Eu nunca ouvira a sua
voz com outra coisa que não petulância picante e o poder nela me fez arrepiar e, o
fato de não estar à espera tornava-a ainda mais poderosa.

— Senhor, o grupo de animalomens no andar de cima? Estão começando a


armar confusão.

Oh! — pensei. Não estava à espera daquilo.

Kist endireitou o cotovelo e afastou-se do pilar, com a irritação a cintilar nos


olhos. Eu inspirei fundo, sentindo uma decepção pouco saudável misturada com
um toque de alívio preocupantemente pequeno.

— Eu disse a você que lhes dissesse que tinha acabado o acônito4 — disse
Kist. — Quando entraram, já perturbavam.

— Foi o que fizemos, senhor — protestou o empregado, recuando um passo


quando Kist se afastou completamente de mim. — Mas eles conseguiram fazer
Tarra admitir que ainda haviam alguns nos fundos e ela os levou para eles.

A irritação de Kist transformou-se em raiva.

— Quem mandou Tarra lá para cima? Eu disse-lhe que ficasse no piso


térreo até aquela dentada de animalomem sarar.

O Kist trabalhava no Piscary's? Surpresa, surpresa. Nunca pensei que o


vampiro tivesse a presença de espírito para fazer algo útil.

— Ela convenceu Samuel a deixá-la ir lá para cima, disse que as gorjetas


eram melhores — respondeu o empregado.

— O S a m .. . — d i s s e K i s t p o r e n tr e o s d e n te s c e r r a d o s . A e m o ç ã o
atravessou-o, os primeiros sintomas de pensamentos coerentes que não envolviam
sexo e sangue, surpreenderam-me. Com os lábios cheios apartados, percorreu a
sala com o olhar. — Muito bem. Reúna todos como se fosse uma festa e tirem-na
de lá, antes que ela os deixe loucos. Pare de servir acônito. Sobremesas de cortesia
para todos os que as quiserem.

4Planta venenosa utilizada em "medicamentos" homeopáticos. Apenas 10 g do consumo é letal ao ser

humano.
116

Com os pêlos louros refletindo na luz, ele olhou de relance para cima, como
se pudesse ver através do teto, para a confusão do andar superior. A música
tocava alta, de novo, e podia-se ouvir a voz de Jess Beck... "Loser". De alguma
forma parecia adequado, quando todos começaram a cantar a letra em conjunto,
com as vozes embaraçadas. Os patronos mais ricos do piso inferior não pareceram
ficar preocupados.

— O Piscary chuta o meu traseiro se perdermos a classificação A por causa


de uma dentada de animalomem — disse Kist. — E, por muito excitante que isso
seja, quero poder trabalhar amanhã.

A calma admissão por parte de Kist — da sua relação com Piscary —


apanhou-me de surpresa, embora não o devesse. Embora eu relacionasse sempre a
troca de sangue com sexo, tal não era necessário, em especial quando a troca
ocorria entre um vampiro vivo e um morto-vivo. Os dois tinham pontos de vista
muitíssimo diferentes, provavelmente por um ter alma e o outro não.

A "garrafa de onde vinha o sangue" era importante para quase todos os


vampiros vivos. Escolhiam com cuidado os seus companheiros, seguindo
normalmente — mas nem sempre — a sua preferência de gênero, na esperança de
que o sexo pudesse ser incluído na troca. Mesmo quando despoletada pela fome, a
troca de sangue preenchia também uma necessidade emocional — a afirmação
física de um laço emocional —, um papel muito semelhante ao que o sexo podia
cumprir, mas nem sempre era assim.

Os vampiros mortos-vivos eram ainda mais meticulosos, escolhendo os


seus companheiros com o cuidado de um assassino em série. Procurando o
domínio e a manipulação emocional em vez do compromisso, o gênero não fazia
parte da equação — ainda que os mortos-vivos não recusassem o sexo, já que este
gerava uma sensação de domínio ainda maior, semelhante à violação, mesmo com
alguém disposto a fazê-lo. Qualquer relacionamento nascido de tal troca era
absolutamente unilateral embora, normalmente, o mordido não o aceitasse,
pensando sempre que o seu mestre era a exceção à regra. Fiquei a pensar no fato
de Kist parecer ansioso por um novo encontro com Piscary e perguntei-me, ao
olhar para o vampiro ao meu lado, se isso teria a ver com o fato de Kist retirar uma
grande dose de força e estatuto do fato de ser o seu delfim.

Ignorando os meus pensamentos, Kist franziu a sobrancelha, irado.

— Onde está Sam? — perguntou.


117

— Na cozinha, senhor.

U m d o s o l h o s d e l e tr e m e u . K i s t o l h o u p a r a o e m p r e g a d o c o m o s e
p e r gu n t a s s e " De qu e é q ue e s t á à e s pe r a ?" e o ho m e m d e s ap a r e c eu
apressadamente. Com a garrafa de água na mão, Ivy apareceu por trás de Kist,
afastando-o mais de mim.

— E você achou que eu era idiota por ter feito o major em segurança, em vez
de gestão — disse ela. — Parece quase responsável, Kisten. Tem cuidado ou vai
dar cabo da tua reputação.

Kist sorriu, revelando os caninos afiados, deixando cair o ar de preocupado


gerente de um restaurante.

— As regalias são ótimas, Ivy, querida — disse ele, colocando uma mão nas
costas dela com uma familiaridade que ela tolerou durante um instante, antes de
lhe bater. — Se precisar de um emprego, vem falar comigo.

— Mete-o onde o sol não brilha, Kist.

Ele riu, baixando a cabeça por um momento, antes de voltar a cruzar o seu
olhar maroto com o meu. Um grupo de empregados de ambos os sexos dirigia-se
para o piso de cima, batendo palmas e cantando uma música idiota qualquer.
Parecia irritante e inócuo, dando-lhes o aspecto de uma missão de salvamento — o
que era na verdade. Ergui uma sobrancelha. Kist era bom naquilo.

Quase como se me lesse a mente, ele aproximou-se mais de mim.

— Sou ainda melhor na cama, querida — sussurrou, a sua respiração


lançando um delicioso arrepio até as profundezas do meu ser.

Ele afastou-se de mim antes que eu o pudesse empurrar e, sem parar de


sorrir, afastou-se. A meio caminho da cozinha, virou-se para ver se eu o estava
observando. E estava... Diabos, tudo que usava saia — morto, vivo ou
intermediário — estava o observando.

Afastei dele o olhar e descobri Ivy, que me fitava com uma expressão
curiosamente indescritível.

— Já não tens medo dele — disse ela, num tom monótono.


118

— Não — respondi, surpresa por descobrir que não tinha. — Acho que é
pelo fato de ele ser capaz de fazer outra coisa além de namorar.

Ela afastou o olhar.

— Kist é capaz de fazer muitas coisas. Ele diverte-se sendo dominado, mas
quando se trata de trabalho, é capaz de acabar contigo só com um olhar. O Piscary
não teria escolhido um idiota para delfim, por muito bom que fosse de sangrar —
ela apertou os lábios até estes ficarem brancos. — A mesa está pronta.

Segui o olhar dela para uma mesa vazia contra a parede mais distante das
janelas. Glenn e Jenks tinham-se juntado a nós, mal Kist partiu e, em grupo,
avançamos através das mesas, instalando-nos num banco em semicírculo, com as
costas voltadas para a parede — Inderlander, humano, Inderlander — e, esperamos
que o garçom viesse nos atender.

Jenks tinha se empoleirado no candelabro baixo e a luz que lhe atravessava


as asas cobria a mesa de manchas verdes e douradas. Glenn absorvia tudo aquilo
em silêncio tentando, claramente, não parecer perplexo perante a imagem dos
belos empregados — de ambos os sexos — com as suas cicatrizes. Fossem homens
ou mulheres, eram todos jovens, de rostos sorridentes e abertos, deixando-me
nervosa.

I v y n ã o d i s s e m a i s n a d a s o b r e K i s t, a l g o p e l o q u e f i q u e i g r a t a . E r a
embaraçosa a velocidade com que os feromônios vampíricos tinham se apoderado
de mim, transformando um "cai fora" num "chega mais". Graças à quantidade
excessiva de saliva de vampiro que o demônio tinha bombeado para a minha
c o r r e n te s a n g u ín e a e n q u a n to te n t a v a m e m a t a r , a m i n h a r e s i s tê n c i a a o
s feromônios vampíricos era quase nula.

Glenn pousou cuidadosamente os cotovelos sobre a mesa.

— Ainda não me contou como foi a aula.

Jenks riu.

— Fo i o i n f e r n o n a t e r r a . D u a s h o r a s d e i m p l i câ n ci a s e a g u l h a d a s
sucessivas.

Fiquei de queixo caído.

— Como sabe isso?


119

— Voltei a entrar furtivamente. O que você fez àquela mulher, Rachel?


Matou seu gato?

Senti o rosto arder. Saber que Jenks tinha presenciado tudo tornava as
coisas piores.

— A mulher é uma cadela — disse eu. — Glenn, se quiser culpa-la pelos


homicídios, esteja à vontade. Ela já sabe que é suspeita. A SI esteve lá a agitá-la até
fumegar. Não consegui encontrar nada que se parecesse, nem de longe, com um
possível motivo ou demonstração de culpa.

Glenn tirou os braços da mesa e recostou-se.

— Nada?

Abanei a cabeça.

— Tudo o que fiquei sabendo é que Dan teve uma entrevista depois da aula
de sexta-feira. Estou pensando que essas eram as notícias que ia dar a Sara Jane.

— Ele desistiu de todas as aulas na sexta-feira à noite — disse Jenks. —


Limitou-se a solicitar o seu cancelamento com reembolso total. Deve tê-lo feito por
e-mail.

Franzi a sobrancelha ao pixy, sentado junto às lâmpadas para manter-se


quente.

— Como sabe?

As asas bateram até se tornarem imperceptíveis e ele sorriu.

— Durante o intervalo fiz uma visita à secretaria. Acha que o único motivo
para ter ido contigo era servir de adereço no seu ombro?

Ivy tamborilou na mesa com as unhas.

— Vocês três não vão falar de trabalho a noite toda, vão?

— Ivy, linda! — disse uma voz forte e todos ergueram os olhos. Um homem
baixo e robusto, com um avental de cozinheiro, avançava para nós aos
ziguezagues através do restaurante, contornando graciosamente as mesas. —
Minha linda Ivy! — chamou por cima do ruído. — Já de volta. E com amigos!
120

Olhei de relance para Ivy, surpresa por ver um toque avermelhado nas suas
faces pálidas. Ivy, linda?

— Ivy, linda? — perguntou Jenks do alto. — Que inferno é esse?

Ivy levantou-se para dar ao homem um abraço embaraçado, quando ele


parou à nossa frente desenhando uma estranha imagem — já que ele era quase
quinze centímetros mais baixo do que ela. Ele respondeu com uma paternal
tapinha nas costas. Ergui as sobrancelhas. Ela abraçou-o?

Os olhos negros do cozinheiro brilhavam do que parecia ser prazer. O


cheiro da polpa de tomate e sangue deslizou até mim. Tratava-se, claramente, de
um vampiro traficante. Contudo, eu ainda não conseguia dizer se estava morto.

— Olá, Piscary — disse Ivy, enquanto se sentava e Jenks e eu olhamos um


para o outro.

Aquele era Piscary? Um dos mais poderosos vampiros de Cincinnati?


Nunca vira um vampiro de aspecto tão inócuo.

Piscary tinha, na verdade, menos três ou quatro centímetros do que eu e


exibia a sua constituição pequena e bem proporcionada com uma calma
confortável. Tinha um nariz estreito, olhos afastados e amendoados, lábios finos
que ajudavam à sua aparência exótica. Os seus olhos eram muito escuros e
brilharam quando tirou o chapéu de cozinheiro e o prendeu atrás dos feixes do
avental. Tinha um crânio raspado e a pele cor de mel brilhava à luz do candeeiro
por cima da nossa mesa. A camisa leve e clara — bem como as calças que usava —
podia ter sido comprada numa loja de quinta, mas eu duvidava. Dava a ele um ar
confortável, de classe média, o sorriso aberto realçando uma imagem na minha
mente. Piscary geria grande parte do lado negro de Cincinnati, mas olhando para
ele, perguntava-me como.

A minha normal desconfiança em relação aos vampiros mortos-vivos


transformou-se numa precaução desconfiada.

— Piscary? — perguntei. — Da pizzaria Piscary's?

O vampiro sorriu, mostrando os dentes. Eram mais compridos que os de


Ivy — tratava-se de um verdadeiro morto-vivo — e, pareciam muito claros em
contraste com a pele escura.

— Sim, a pizzaria Piscary's é minha.


121

A voz dele era profunda para uma estrutura tão pequena e parecia carregar
a força da areia e do vento. Os tênues resquícios do seu sotaque fizeram eu me
perguntar a quanto tempo falaria inglês.

Ivy tossiu para limpar a garganta, afastando minha atenção dos seus olhos
rápidos e negros. De alguma forma, a imagem dos seus dentes não instigara em
mim o normal alarme de fazer tremer os joelhos.

— Piscary — disse Ivy —, esta é a Rachel Morgan e este é o Jenks, são os


meus sócios.

Jenks tinha esvoaçado para o pimenteiro e Piscary dirigiu-lhe um aceno


antes de se voltar para mim.

— Rachel Morgan — disse, lenta e cuidadosamente. — Tenho estado à


espera que a minha linda Ivy te trouxesse para que pudesse te conhecer. Acho que
e l a t e m m e do qu e e u l he di g a qu e j á n ã o po d e b r i n c a r c o n t i go — o s l áb i o s
curvaram-se num sorriso. — Encantado.

Sustentei a respiração, enquanto ele me tomava a mão com uma gentileza


que contrastava com o seu aspecto. Ele ergueu os meus dedos, levando-os para
perto dos lábios. Seus olhos negros estavam presos aos meus. A minha pulsação
acelerou, mas sentia-me como se o meu coração estivesse noutro lado. Ele inalou
sobre a minha mão, como se cheirasse o sangue que corria nela. Sustentei um
arrepio, cerrando o maxilar.

Os olhos de Piscary eram da cor do gelo negro. Eu enfrentei corajosamente o


seu olhar, intrigada com as insinuações além das suas profundezas. Foi Piscary
quem primeiro afastou o olhar e eu tirei rapidamente a minha mão da dele. Ele era
bom. Muito bom. Tinha usado a sua aura para me encantar, em vez de me
assustar. Só os muito antigos eram capazes de tal coisa. E, eu não sentira sequer
um arrepio na cicatriz que o demônio me fizera. Não sabia se o devia tomar como
bom ou mau sinal.

Rindo alegremente — perante a minha súbita e óbvia desconfiança —


Piscary sentou-se no banco ao lado de Ivy, enquanto três empregados lutavam por
passar com as travessas redondas. Glenn não parecia minimamente perturbado
com o fato de Ivy não o ter apresentado e Jenks mantinha a boca fechada. Meu
ombro ficou encostado ao de Glenn, quando este me empurrou para o lado, até eu
quase cair do banco, para arranjar espaço para Piscary.
122

— Devia ter me dito que vinha — disse Piscary. — Teria reservado uma

mesa. Ivy encolheu os ombros.

— Arranjamos uma sem problema.

Virando-se ligeiramente, Piscary olhou para o bar e gritou:

— Tragam-me uma garrafa de tinto para Tamwood! — um sorriso matreiro


abriu-se no seu rosto. — Sua mãe não dará pela falta
dela.

Glenn e eu trocamos um olhar preocupado. Uma garrafa de


tinto?

— Hum, Ivy? —
perguntei.

— Oh, Deus do Céu — disse ela. — É vinho.


Relaxa.

Relaxa — pensei. É mais fácil dizer do que fazer, quando tenho a


bunda
meio fora do banco e estou rodeada de
vampiros.

— Já pediram? — perguntou Piscary a Ivy, mas o seu olhar estava


preso em mim, sufocando-me. — Tenho um novo queijo que usa uma nova
espécie de fungo para envelhecer. Veio diretamente dos Alpes.

— Sim — disse Ivy. — Uma


extragrande...

— Com tudo, menos cebola e pimenta — terminou ele, mostrando os


dentes
com um sorriso aberto, enquanto afastava de mim seu olhar e o pousava
nela.

Os meus ombros relaxaram quando seu olhar me deixou. Ele não


parecia mais do que um amigável cozinheiro e isso estava despertando
mais alarmes do que se fosse alto, magro e sedutoramente envolto em seda e
renda.

— Ah! — disse ele de repente e eu refreei um salto. — Vou fazer-te o


jantar, Ivy, linda.

Ivy sorriu, ficando parecida com uma criança de dez


a Algo especial. Algo novo. Por conta da casa. Será a minha
ncriação mais bela! — disse, arrojado. — Darei o nome do teu
oespectro.
s
.

O
b
ri
g
a
d
a
,
P
i
scar
y.
G
o
st
ari a
m
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t
o.

C
l
ar
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m
.
123

— Eu não sou o espectro dela — disse Glenn, tenso, os ombros arqueados e


os olhos presos na mesa.

— Não estava falando de você — disse Piscary e os meus olhos abriram-se.


Ivy mexeu-se, desconfortável.

— A Rachel... Também... Não é o meu espectro.

Ela parecia sentir-se culpada e, por um instante, a confusão atravessou o


rosto do velho vampiro.

— Sério? — perguntou e Ivy ficou visivelmente tensa. — Então o que é que


está fazendo com ela, Ivy, linda?

Ela não levantava os olhos da mesa. Piscary voltou a fitar-me. O meu


coração acelerou quando um ligeiro arrepio alastrou pelo meu pescoço na dentada
do demônio. De súbito a mesa pareceu muito cheia. Senti-me apertada por todos
os lados e uma sensação de claustrofobia abateu-se sobre mim. Chocada pela
mudança, fiquei sem fôlego e sustentei a respiração. Maldição.

— É uma cicatriz interessante, essa que tens no pescoço — disse Piscary, a


voz parecendo queimar minha alma. Doía e sabia bem ao mesmo tempo. — Foi
um vampiro?

Minha mão ergueu-se para ela, sem que o desejasse. A esposa de Jenks
tinha-a costurado e os pequenos pontos eram quase invisíveis. Não me agradava
que ele tivesse reparado.

— Foi um demônio — disse eu, não querendo saber se Glenn ia contar ao


pai. Não queria que Piscary pensasse que eu tinha sido mordida por um vampiro,
fosse Ivy ou outro.

Piscary arqueou as sobrancelhas ligeiramente surpreso.

— Parece de um vampiro.

— O demônio também parecia um, na época — disse eu, sentindo o


estômago apertado com a recordação.

O velho vampiro acenou.


124

— Ah, isso explica tudo — ele sorriu, gelando-me. — Uma virgem


violentada cujo sangue ficou por reclamar. Que deleitável combinação, menina
Morgan. Não é de admirar que a minha linda Ivy ande te escondendo de mim.

De boca aberta, não conseguia pensar em nada para dizer. Ele levantou-se
sem qualquer aviso.

— Mando o jantar, num instante — inclinando-se para Ivy, murmurou: —


Fale com sua mãe, ela sente a sua falta.

Ivy baixou os olhos. Com a sua graça casual, Piscary os pratos de porcelana
de uma bandeja que ia passando.

— Tenham uma boa noite — disse ele, enquanto os colocava na mesa.

Piscary regressou à cozinha, parando várias vezes para saudar os clientes


mais bem vestidos. Fitei Ivy, esperando por uma explicação.

— Então? — disse eu, mordaz. — Importa-se de explicar por que Piscary


acha que eu sou o teu espectro?

Jenks soltou uma risada assumindo a sua pose de Peter Pan, de mãos nos
quadris, em cima do pimenteiro. Ivy encolheu os ombros, sentindo-se obviamente
culpada.

— Vivemos sob o mesmo teto. Ele simplesmente presumiu...

— Estou vendo.

Irritada, encostei-me à parede. Minha relação com Ivy era estranha,


independentemente da forma como a encarássemos. Ela estava tentando abster-se
de sangue e, o desejo de quebrar o jejum era quase irresistível. Como bruxa,
conseguia afastá-la sempre que os seus instintos começavam levar a melhor.
Pusera-a para dormir, uma vez e, era essa recordação que ajudava a dominar seus
desejos e a mantinha do seu lado do corredor.

Mas o que mais me incomodava, era o fato de ser por causa de sua
vergonha que deixara Piscary acreditar no que queria: vergonha por ter virado as
costas à sua herança. Ela não o desejava. Partilhando a casa com alguém, podia
mentir ao mundo, fingir que tinha uma vida de vampiro normal, com uma fonte de
sangue residente e, mesmo assim, continuar fiel ao seu segredo culpado. Disse a
mim mesma que não me importava que ela me protegesse de outros vampiros.
125

Mas, por vezes... Por vezes, irritava-me que todos partissem do princípio que eu
era o brinquedo de Ivy...

Meu silêncio foi interrompido pela chegada do vinho — ligeiramente


quente, como a maior parte dos vampiros gosta dele. Já tinha sido aberto e Ivy
apoderou-se da garrafa, evitando meu olhar quando serviu os três copos. Jenks
contentou-se com a gota no gargalo da garrafa. Ainda irritada, voltei a recostar-me
com o copo na mão e observei os restantes clientes.

Não ia beber porque o enxofre que libertava tendia a gerar o caos dentro de
mim. Teria dito a Ivy, mas ela não tinha nada a ver com isso. Não tinha a ver com
o fato de eu ser bruxa, era uma particularidade pessoal — algo que me dava
enxaquecas tão grandes e me tornava de tal forma sensível à luz que, tinha de me
esconder no quarto, com um pano tapando os olhos.

Tratava-se de um problema crônico estranhamente relacionado com uma


doença de criança, que me atirara constantemente para o hospital até a puberdade.
Preferia, sem dúvida, a sensibilidade ao enxofre à minha infelicidade enquanto
criança, fraca e enjoada, enquanto o meu corpo se tentava matar.

A música tinha recomeçado e, o meu desconforto por causa de Piscary foi se


dissipando lentamente, arrastado pela música e pelas conversas. Todos podiam
ignorar Glenn, agora que Piscary tinha falado conosco. O humano perturbado
bebeu o vinho como se fosse água. Ivy e eu trocamos um olhar, enquanto ele
voltava a encher o copo, com as mãos a tremer. Perguntei-me se ele ia beber até
cair para o lado ou se ia enfrentar a situação sóbrio. Deu um gole no copo seguinte
e eu sorri. Ia fazer um pouco de cada.

Glenn dirigiu a Ivy um olhar desconfiado e inclinou-se na minha direção.

— Como conseguiu olhá-lo nos olhos? — sussurrou, fazendo com que fosse
difícil ouvi-lo sobre o ruído ambiente. — Não teve medo que ele a enfeitiçasse?

— O cara tem mais de trezentos anos de idade — disse eu, compreendendo


que o sotaque de Piscary era inglês antigo. — Se ele quisesse me enfeitiçar, não
precisaria olhar para os meus olhos.

Com o rosto ficando pálido por detrás da barba curta, Glenn afastou-se.
Deixando-o a pensar naquilo durante algum tempo, mexi a cabeça para chamar
atenção de Jenks.
126

— Jenks — disse baixinho. — Por que não dá uma olhada nos fundos? Dá
uma olhadela na sala dos empregados, vê o que se passa?

Ivy despejou o copo.

— O Piscary sabe que estamos aqui por uma razão — disse ela. — Ele dirá o
que precisarmos saber. A única coisa que Jenks vai conseguir é ser apanhado.

O pequeno pixy indignou-se.

—Vai se ferrar, Tamwood — rosnou. — Por que eu vim, se não foi para
fazer uma vistoria? O dia em que não conseguir passar por um padeiro é o dia em
que... — calou-se, antes de acabar. — Hum... — continuou. — Volto já.

Tirando uma fita vermelha do bolso de trás, colocou-a na cintura como se


fosse um cinto. Tratava-se da versão pixy da bandeira branca — uma declaração a
outros pixies e fadas de que não estava caçando, caso entrasse no território
ciosamente guardado de alguém. Esvoaçou, zumbindo, logo abaixo do teto, em
direção à cozinha.

Ivy abanou a cabeça.

— Ele vai ser apanhado.

Eu encolhi os ombros e puxei os pãezinhos para mais perto de mim.

— Eles não vão machucá-lo — recostando-me, observei as pessoas felizes


que se divertiam, pensando em Nick e em quanto tempo passara desde a nossa
última saída. Tinha começado a roer o meu segundo pão quando apareceu um
empregado. Já silenciosos, os ocupantes da mesa tornaram-se expectantes
enquanto ele limpava as migalhas e levantava os pratos usados. O pescoço do
homem, que se erguia por entre a camisa de cetim azul, era uma mistura de
cicatrizes, a mais recente delas ainda vermelha e de aspecto doloroso. O sorriso
que dirigiu a Ivy era um pouco ansioso demais, um pouco parecido demais com o
de um cachorrinho. Odiei-o e perguntei-me quais teriam sido os seus sonhos antes
de se tornar no brinquedo de alguém.

A dentada do demônio, no meu pescoço, pulsou e o meu olhar atravessou a


sala apinhada descobrindo Piscary que, nos trazia pessoalmente, a nossa comida.
As cabeças viravam-se à medida que ele ia passando, atraídas pelo cheiro fabuloso
que, de certo, emanava da travessa elevada. O volume das conversas baixou
consideravelmente. Piscary pousou a travessa à nossa frente, com um sorriso
127

ansioso pairando no rosto; o seu desejo de ser reconhecido pelas suas aptidões
culinárias parecia estranho em alguém com tanto poder escondido.

— Chamo de Desejo de Temere — disse ele.

— Oh, meu Deus! — exclamou Glenn, enojado, a sua voz límpida sobre os
sussurros. — Tem tomates!

Ivy deu-lhe uma cotovelada no estômago com força suficiente para deixa-lo
sem fôlego. A sala ficou em completo silêncio, com exceção do ruído que chegava
do andar de cima e eu fitei Glenn.

— Hum, que maravilha — arquejou.

Passando os olhos por Glenn, Piscary cortou a pizza em fatias com um


floreado profissional. A minha boca salivava perante o cheiro do queijo derretido e
do molho.

— Cheira muito bem — disse, em tom de admiração, a minha anterior


desconfiança aquietada pela promessa de comida. — As minhas pizzas nunca
ficam assim.

O homem baixo ergueu as sobrancelhas finas, quase inexistentes.

— Porque usa molho de frasco.

Acenei, depois me perguntei como é que ele sabia. Ivy olhou para a
cozinha.

— Onde é que está Jenks? Ele devia estar aqui para ver isso.

— Me u p e s s oa l e s t á br i n c an d o c o m e le — disse Piscary,
despreocupadamente. — Imagino que saia de lá em breve.

O vampiro morto-vivo fez deslizar a primeira fatia de pizza para o prato de


Ivy, depois para o meu, por fim para o de Glenn. O detetive do DFI afastou o prato
com um dedo, enojado. Os outros clientes sussurraram, desejando ver qual a nossa
reação à mais recente criação de Piscary.

Ivy e eu agarramos de imediato nossas fatias. O cheiro de queijo era forte,


mas não o suficiente para esconder o odor das especiarias e dos tomates. Dei uma
dentada. Os meus olhos fecharam-se de prazer. Tinha apenas a polpa de tomate
128

suficiente para sustentar o queijo. Apenas o queijo suficiente para sustentar os


restantes ingredientes. Não queria saber se tinha enxofre, era deliciosa.

— Oh, queimem-me agora na fogueira — gemi, enquanto mastigava. - Isso é


absolutamente maravilhoso.

Piscary acenou, a luz brilhando sobre a cabeça raspada.

— E você Ivy, linda?

Ivy limpou o molho do queixo.

— É o suficiente para querer regressar dos mortos.

O homem suspirou.

— Dormirei em paz quando o Sol nascer.

Comecei a comer mais devagar, virando-me, como todos os outros, para


olhar para Glenn. Este permanecia imóvel, entre Ivy e eu, o maxilar apertado
numa mistura de determinação e náusea.

— Uh — disse, olhando de relance para a pizza. Engoliu em seco; parecia


que a náusea estava ganhando.

O sorriso de Piscary desapareceu e Ivy olhou-o fixamente.

— Come — disse ela, suficientemente alto, para que todo o restaurante a


ouvisse.

— E começa pela ponta, não pela beira — avisei. Glenn lambeu os lábios.

— Mas tem tomate — disse ele, fazendo com que eu cerrasse os lábios. Era
precisamente aquilo que eu esperara evitar. Até parecia que estavam a pedindo
que comesse larvas vivas.

— Não seja idiota — disse Ivy, em tom frio. — Se acha mesmo que o vírus
T 4 A n j o s a l t o u q u a r e n ta g e r a ç õ e s d e to m a te s e a p a r e c e u n u m a e s p é c i e
completamente diferente só para te infectar, eu peço ao Piscary que te morda antes
de sair. Assim não morre, só se transforma em vampiro.

Glenn avaliou os rostos que o fitavam, compreendendo que teria de comer


uma fatia de pizza, caso quisesse sair dali com o controle de si mesmo. Engolindo
129

em seco, visivelmente, pegou desajeitadamente na fatia. Os olhos ergueram-se


quando abriu a boca. O som que vinha do andar de cima parecia ainda mais alto,
enquanto todos os que se encontravam no piso inferior observavam, sustentando a
respiração.

Ele deu uma dentada, o rosto selvagemente distorcido. O queijo formava


duas pontes que o ligavam à pizza. Ele mastigou duas vezes antes dos seus olhos
se abrirem de repente. O maxilar abrandou. Estava a prová-la, agora. Os olhos
dele prenderam-se nos meus e eu acenei. Lentamente, ele afastou a pizza, até o
queijo partir.

— Sim? — Piscary inclinou-se, pousando as mãos expressivas sobre a mesa.

O vampiro estava verdadeiramente interessado no que um humano


pensava da sua comida. Glenn devia ser o primeiro, em quatro décadas, a prová-
la. O rosto dele mostrava espanto. Engoliu.

— Hum... — gemeu, com a boca ainda quase cheia. —É... Hum... Bom... —
parecia chocado. — É mesmo muito bom.

O restaurante inteiro pareceu suspirar. Piscary endireitou-se em toda a sua


pequena altura, obviamente contente, enquanto as conversas recomeçavam, agora
com um tom novo e excitado.

— Será sempre bem-vindo, agente do DFI — disse ele e Glenn ficou gelado,
claramente preocupado com o fato de ter sido identificado.

Piscary agarrou a cadeira atrás de si e virou-a. Inclinado sobre a mesa, à


nossa frente, observou-nos enquanto comíamos.

— Agora — disse, enquanto Glenn erguia o queijo para fitar o molho de


tomate sob ele. — Não vieram aqui pelo jantar. Em que posso ajudar?

Ivy pousou a pizza e levou a mão ao copo de vinho.

— Estou ajudando Rachel a encontrar uma pessoa desaparecida — disse


ela, atirando para trás o longo cabelo preto, desnecessariamente. — Um dos seus
empregados.

— Problemas, Ivy, linda? — perguntou Piscary, a voz ressonante,


surpreendentemente gentil e carregada de arrependimento.
130

Bebi um gole de vinho.

— Era isso que queríamos descobrir, Sr. Piscary. Trata-se de Dan Smather.

As poucas rugas de Piscary aproximaram-se num suave franzir de


sobrancelha, enquanto ele olhava para Ivy. Com movimentos reveladores, tão
ligeiros que eram quase indetectáveis, ela remexeu-se, os olhos simultaneamente
preocupados e desafiantes.

Minha atenção saltou para Glenn. Ele estava tirando o queijo da pizza.
Chocada, observei-o a empilhar, hesitante, o queijo num monte.

— Pode dizer-nos quando foi a última vez que o viu, Sr. Piscary? —
perguntou a ele, claramente mais interessado em desnudar a pizza do que no
nosso interrogatório.

— Certamente — Piscary olhou para Glenn, a sobrancelha franzindo como


se não soubesse ao certo se se deveria sentir-se insultado ou agradado, enquanto o
homem comia a pizza, que agora não era mais que pão com polpa de tomate. —
Foi no sábado de manhã, depois do trabalho. Mas Dan não está desaparecido. Ele
demitiu-se.

Fiquei de queixo caído, de surpresa. Ainda estive assim durante alguns


segundos, depois semicerrei os olhos, irada. Começava tudo a fazer sentido e o
quebra-cabeça era muito menor do que eu tinha pensado. Uma grande entrevista,
o fato de ter desistido das aulas, de se ter demitido do emprego, de ter deixado a
namorada pendurada num jantar de "temos que conversar". Meus olhos
pousaram-se em Glenn e ele dirigiu-me um olhar breve e desagradado, chegando à
mesma conclusão. Dan não tinha desaparecido; tinha arranjado um bom
emprego e deixado a namorada camponesa.

Afastando o copo, lutei contra uma sensação de depressão.

— Demitiu-se? — perguntei.

O vampiro de aspecto inócuo olhou por cima do ombro, para a porta da


frente, por onde entrava um grupo ruidoso de jovens vampiros, recebido pelo que
parecia a totalidade dos empregados, que os chamavam e abraçavam.

— Dan era um dos meus melhores entregadores — disse ele. — Vou sentir a
falta dele, mas desejo-lhe boa sorte. Ele disse que era por causa daquilo que estava
131

frequentando na escola — o homem pequeno sacudiu a farinha da frente do


avental. — Serviço de segurança... Acho que foi o que ele disse.

Troquei um olhar desconfiado com Glenn. Ivy endireitou-se no banco —


sua normal expressão relaxada parecia forçada. Fui invadida por uma sensação
d e sa g ra d á ve l . N ã o q u e ri a se r e u a d i ze r a Sa r a Ja n e q u e e l a t i n h a si d o
abandonada. Dan tinha recebido uma boa proposta de emprego e cortara todos os
vínculos antigos, o covarde saco de merda. Estava disposta a apostar que ele tinha
uma segunda namorada, à espera. O mais certo era estar escondido na casa dela,
deixando que Sara Jane pensasse que estava morto em uma viela qualquer e rindo,
enquanto ela alimentava o gato. Piscary encolheu os ombros e todo o seu corpo
acompanhou o movimento ligeiro.

— Se eu soubesse que ele era um bom segurança, talvez tivesse feito uma
oferta melhor, embora fosse difícil oferecer mais do que o Sr. Kalamack. Afinal de
contas, sou apenas o dono de um restaurante.

Saltei ao ouvir o nome de Trent.

— Kalamack? — disse eu. — Ele recebeu uma proposta de emprego de


Trent Kalamack?

Piscary acenou, enquanto Ivy ficava ainda mais rígida, a pizza intacta com
uma única dentada.

— Sim — disse ele. — Ao que parece, a namorada também trabalha para o


Sr. Kalamack. Creio que o nome dela é Sara? O melhor é falarem com ela, se estão à
p r o c u r a d e l e — o s o r r i s o d e d e n t e s c o m p r i d o s to r n o u - s e m a l a n d r o .
— Provavelmente, foi ela quem lhe arranjou o emprego, se sabem o que
quero dizer.

Eu sabia o que ele queria dizer, mas aparentemente Sara Jane não sabia.
Senti o coração bater mais depressa e comecei a suar. Eu sabia. Trent era o caçador
de bruxas. Atraíra Dan com a promessa de um emprego e, provavelmente, acabara
com ele, quando Dan tentou recuar, ao perceber de que lado da lei Trent
trabalhava. Era ele. Para a Viragem com ele, eu sabia!

— Obrigada, Sr. Piscary — disse eu, desejando partir para que pudesse
começar a fazer alguns feitiços nessa noite.

Sentia o estômago apertado, a agradável fatia de pizza e o gole de vinho a


azedarem de excitação. Trent Kalamack — pensei, amargamente — é meu.
132

Ivy pousou o copo vazio sobre a mesa. Meu olhar cruzou-se com o dela. Em
triunfo, minha emoção prazerosa desvanecendo-se, enquanto ela observava a si
mesma enchendo de novo o copo. Ela nunca, nunca, bebia mais de um copo...
E st a va p re o cu p a d a e co m ra zã o , c o m a d i mi n u i ç ã o d a s i n i b i çõ e s. Me u s
pensamentos regressaram à forma como ela se descontrolara na cozinha, depois de
eu lhe ter dito que ia outra vez atrás de Trent.

— Rachel — disse Ivy, o seu olhar fixo no vinho. — Sei no que está
pensando. Deixa o DFI tratar disso. Ou passa o caso à SI.

Glenn ficou rígido, mas permaneceu em silêncio. A memória dos dedos


dela ao redor do meu pescoço fez com que fosse fácil para mim encontrar um tom
monótono.

— Ficarei bem — disse eu.

Piscary levantou-se, a cabeça exposta sob o candeeiro de teto.

— Vem ver-me amanhã, Ivy, linda. Precisamos conversar.

A mesma onda de medo que eu vira nela, no dia anterior, voltou a invadi-
la. Estava se passando alguma coisa que eu desconhecia e não era nada bom. Ivy e
eu também íamos ter de conversar.

A sombra de Piscary caiu sobre mim e ergui os olhos. Senti o rosto gelado.
Ele estava perto e o cheiro a sangue sobrepôs-se ao odor ácido da polpa de tomate.
Os olhos negros fixaram-se nos meus; algo mudou, tão súbito e inesperado como o
gelo se partindo.

O vampiro antigo nunca me tocou, mas um arrepio delicioso correu através


de mim quando exalei. Meus olhos abriram-se em surpresa. O sussurro da sua
respiração seguiu meus pensamentos através do meu ser, assumindo a forma de
uma onda quente que se espalhou por mim, como água através da areia. Os
pensamentos dele tocaram no fundo da minha alma e ecoaram, enquanto ele
sussurrava algo que eu não conseguia ouvir.

Fiquei sem fôlego, enquanto a cicatriz no meu pescoço pulsava ao ritmo da


minha pulsação. Chocada, deixei-me ficar sentada, imóvel, enquanto arrepios de
prometido êxtase corriam através de mim. Um súbito desejo fez-me abrir os olhos
e recomecei a respirar, rapidamente.
133

O olhar intenso de Piscary estava consciente de tudo enquanto eu inspirava,


mais uma vez, fitando a fome que crescia em mim. Eu não queria sangue. Queria a
ele. Queria que ele sugasse o meu pescoço, que me encostasse à parede, forçasse a
minha cabeça para trás e retirasse o meu sangue, deixando atrás de si aquela
sensação de êxtase latejante, que era melhor do que sexo. Embatia contra a minha
determinação, exigindo uma resposta. Sentei-me rígida, incapaz de me mexer, o
coração a bater.

O seu olhar poderoso percorreu o meu pescoço. Tremi perante a sensação,


ao mesmo tempo em que mudava de posição, convidando-o. A atração tornou-se
ainda pior, hipnotizante e insistente. Os olhos dele acariciaram a dentada do
demônio. Os meus olhos fecharam-se perante os galhos da promessa ansiosa. Se
e l e m e t o c a s s e . ..An s i a v a a té m e s m o p o r i s s o . M i n h a m ã o a p r o x i m o u - s e
espontaneamente do meu pescoço. A aversão e uma sensação intoxicante de
prazer guerreavam dentro de mim, afogadas por um desejo doloroso.

Mostra-me, Rachel — senti a sua voz repicar através de mim. Envolta no


pensamento estava em compulsão. Uma linda, linda compulsão inconsciente. O
meu desejo transformou-se em expectativa. Eu teria tudo e mais ainda... Em breve.
Calor e alegria... Percorri com o dedo o caminho entre a minha orelha e a clavícula,
quase tremendo quando a minha unha saltava sobre cada uma das cicatrizes. O
zumbido dos diálogos tinha desaparecido. Estávamos sós, envoltos num remoinho
enevoado de expectativa. Ele tinha me enfeitiçado. Eu não queria saber. Deus me
ajudasse!

— Rachel? — sussurrou Ivy e eu pestanejei.

Tinha a mão no pescoço. Podia sentir a pulsação batendo ritmicamente


contra ela. A sala e o ruído voltaram à vida como uma corrente de adrenalina.
Piscary estava ajoelhado à minha frente, uma mão sobre a minha, enquanto me
olhava. Os olhos negros de pupilas dilatadas, fitavam penetrantes e límpidos,
enquanto ele inspirava, provando a minha respiração enquanto esta o atravessava.

— Sim — disse ele, enquanto eu afastava a minha mão da dele, sentindo o


estômago apertado. — Minha linda Ivy foi muito descuidada.

Quase arfando, fitei os joelhos, esmagando o medo súbito e forçando-o a


misturar-se com o desejo que começava a desvanecer. A cicatriz que o demônio
deixara no meu pescoço pulsou uma última vez e dissipou-se. A respiração que
134

segurei escapou-se de mim num suave suspiro. Transportava consigo uma


sugestão de desejo e eu odiei-me por isso.

Num movimento gracioso, ele levantou-se. Eu fitei-o, vendo e detestando a


sua compreensão do que me tinha feito. O poder de Piscary era tão íntimo e certo
que a ideia de que eu o pudesse enfrentar nunca lhe ocorrera. Ao seu lado, Kist
não parecia mais do que uma criança, mesmo quando usava as habilidades do seu
mestre. Como poderia voltar a sentir medo de Kisten?

Os olhos de Glenn estavam muito abertos e mostravam a sua insegurança.


Perguntei-me se todos sabiam o que tinha acontecido. Os dedos de Ivy agarraram
o pé do copo de vinho vazio, os nós dos dedos brancos de pressão. O velho
vampiro inclinou-se sobre ela.

— Isso não está funcionando, Ivy, linda. Ou controla o seu animal de


estimação ou farei por ti.

Ivy não respondeu, continuando sentada com uma expressão assustada,


desesperada. Ainda tremendo, não estava em posição de lhes recordar que não era
um objeto.

Piscary suspirou, parecendo um pai cansado. Jenks esvoaçou erraticamente


até à nossa mesa, com um leve gemido.

— Por que diabos eu vim? — rosnou ao aterrar em cima do saleiro,


começando a sacudir-se. Algo que cheirava a queijo em pó caiu sobre a mesa e
tinha molho nas asas. — Podia estar em casa, na cama. Os pixies dormem de noite,
sabem? Mas nã-ã-ã-ão... — disse, arrastando a voz. — Tinha de me oferecer para o
papel de babá. Rachel, dá-me parte do teu vinho. Sabes como é difícil tirar polpa
de tomate da seda? Minha mulher vai me matar.

Pôs um fim ao seu monólogo irado, percebendo que ninguém estava


ligando. Olhou para a expressão aflita de Ivy e para os meus olhos assustados.

— Que Viragem se passa aqui?—- perguntou, beligerante e Piscary afastou-


se da mesa.

— Amanhã — disse o velho vampiro a Ivy. Voltou-se para mim e acenou a


sua despedida.

Jenks olhou para Ivy e depois para mim, outra vez.


135

— Perdi alguma coisa?

Capitulo 9
— Onde está o meu dinheiro, Bob? — sussurrei, enquanto colocava a
malcheirosa comida seca na banheira de Ivy.
136

No dia anterior, Jenks enviara a sua progenitura ao parque mais próximo


em busca de uma mão-cheia de comida de peixe. O belo peixe veio até à superfície
e abocanhou e, em seguida, lavei das mãos o cheiro de óleo de peixe. Com os
d e d o s p i n g a n d o , o l h e i p a r a a s to a l h a s c o r - d e - r o s a d e Iv y p e r f e i t a m e n te
organizadas. Depois de um momento de hesitação, sequei nelas as mãos, depois as
alisei para que ela não percebesse que eu as tinha usado.

Passei um momento tentando prender o cabelo por baixo do boné de couro,


por fim avancei para cozinha, batendo os pés. Meus olhos pousaram-se no relógio
por cima da pia. Inquieta, dirigi-me à geladeira, abrindo-a para fitar o nada. Onde
infernos estava Glenn?

— Rachel... — murmurou Ivy, sentada ao computador. — Pára! Está me


deixando com dor de cabeça.

Fechei a geladeira e apoiei-me no balcão.

— Ele disse que estaria aqui uma hora.

— Então está atrasado — disse ela, um dedo na tela do computador,


enquanto apontava um lugar.

— Uma hora? — exclamei. — Merda... Tinha tido tempo de ir ao DFI e


voltar.

Ivy passou para outra página.

— Se ele não aparecer, empresto dinheiro para o ônibus.

Virei-me para a janela e para o jardim.

— Não é por isso que estou à espera dele — disse, embora fosse.

— Sei... — destampou e tampou a caneta tão depressa que o estalido quase


pareceu um zumbido. — Por que não nos faz o café da manhã enquanto espera?
Comprei waffles congelados.

— Claro — disse eu, sentindo um toque de culpa.

Eu não estava encarregada do café da manhã — só do jantar — mas, o fato


de termos comido fora na noite anterior, me fazia sentir que devia qualquer coisa.
O acordo era: Ivy tratava das compras e eu fazia o jantar. Originalmente o acordo
137

fora feito para evitar que eu me deparasse com assassinos nas lojas e desse um
novo sentido à frase "pessoal da limpeza ao corredor dos frescos". Mas, agora, Ivy
não queria cozinhar e negava-se a renegociar. Paciência. Pelo rumo que as coisas
estavam tomando, eu não teria dinheiro sequer para uma lata de molho, antes do
fim da semana. E, o aluguel era pago no domingo.

Abri a porta do congelador e afastei os pacotes meio vazios de sorvete, até


encontrar as waffles congeladas. A caixa bateu no balcão com um baque sonoro.
Mas que bom. Ivy olhou para mim, com uma sobrancelha erguida, enquanto eu
lutava por abrir a caixa de papelão úmida.

— Entã-ã-ã-ão... — disse ela, arrastando a voz, enquanto eu enfiava as


unhas na parte de cima da caixa e a arrancava por completo, quando a tira de
abertura fácil se partiu. — Quando é que eles vêm buscar o peixe?

Os meus olhos saltaram para o Sr. Peixe que nadava no seu copo de brandy,
pousado no parapeito da janela.

— O que está na minha banheira — acrescentou ela.

— Oh! — exclamei, corando. — Bem

A cadeira dela estalou, quando ela se inclinou para trás.

— Rachel, Rachel, Rachel — censurou ela. — Já tinha dito antes... Tens de


pedir o dinheiro adiantado. Antes do serviço.

Furiosa por ela ter razão, enfiei duas waffles na tostadeira e apertei-as. Elas
inflamaram e eu voltei a apertá-las.

— A culpa não foi minha — disse eu. — O idiota do peixe afinal não tinha
desaparecido e ninguém se deu ao trabalho de me dizer. Mas eu terei o dinheiro
da renda na segunda-feira. Prometo.

— Temos de pagar no domingo.

Ouviu-se um bater distante na porta da frente.

— É o Glenn — disse eu, saindo da cozinha antes que ela pudesse dizer
mais alguma coisa. Com as botas a martelar o chão, percorri o corredor e entrei no
santuário. — Pode entrar, Glenn! — gritei, minha voz ecoando no teto distante. A
porta permaneceu fechada, por isso empurrei-a, parando, surpreendida. — Nick!
138

— Ei... Olá! — disse ele, sua estrutura alta e magra parecia estranha no
alpendre grande. O rosto comprido tinha estampado uma expressão interrogativa e
a s s o b r a n c e l h a s f i n a s e s t a va m e r g u i d a s .Af a s t a n d o a f r a n j a p re t a e
invejavelmente lisa dos olhos, perguntou: — Quem é Glenn?

Um sorriso repuxou os cantos dos meus lábios, perante o toque de ciúme.

— O filho de Edden.

O rosto de Nick ficou branco e eu sorri, agarrando-o por um braço e


puxando-o para dentro.

— É um detetive do DFI. Estamos trabalhando juntos.

— Oh!

A quantidade de emoção atrás daquela expressão tão pequena valia mais


do que um ano inteiro de saídas românticas. Nick passou por mim, os tênis
silenciosos no chão de madeira. A camisa azul aos quadrados estava presa nas
calças e agarrei-o antes que ele entrasse no santuário, voltando a puxá-lo para o
foyer escuro. A pele do pescoço dele quase parecia brilhar no escuro, bronzeada e
tão macia que pedia que os meus dedos percorressem o contorno dos seus ombros.

— Onde está o meu beijo? — queixei-me.

A expressão preocupada que lhe repuxava os olhos desapareceu. Dando-me


um sorriso de esguelha, pousou as mãos na minha cintura.

— Desculpa — disse. — Me deixou um bocado confuso.

— Oh! — brinquei. — Está preocupado com o quê?

— Hum... — ele desceu o olhar pelo meu corpo, voltando depois a subi-lo.
— Muita coisa — com os olhos quase negros na luz tênue, puxou-me para mais
perto dele, fazendo com que o cheiro de livros antigos e computadores novos me
enchesse os sentidos. Inclinei a cabeça para encontrar os seus lábios, sentindo um
calor que se espalhava a partir do centro do meu corpo. Oh, sim. Era assim que eu
gostava de começar o meu dia.

Sendo estreito de ombros e um pouco magro, Nick não correspondia


exatamente ao estereótipo do herói montado num cavalo branco. Mas salvara-me
a vida ao prender um demônio que estava me atacando, o que me levara a pensar
139

que um homem inteligente podia ser tanto sexy como musculoso. Era uma ideia
que ganhara força quando, depois de me ter perguntado galantemente se podia
me beijar, me deixara sem fôlego e agradavelmente chocada, ao dizer que sim.

Mas dizer que Nick não era um monte de músculo não equivalia a dizer
que ele era fraco. A sua constituição magra era surpreendentemente forte, como
fiquei sabendo da vez em que lutamos por uma última colherada de Chunky
Monkey5 e partimos o lustre de Ivy. E, era atlético de uma forma esguia, as pernas
compridas capazes de me acompanhar sempre que eu o convencia a levar-me ao
Jardim Zoológico, durante as primeiras horas, quando estava aberto apenas para
corredores — os montes eram verdadeiros assassinos das pernas.

Contudo, o que mais me encantava em Nick era o fato de o seu exterior


relaxado — de quem se deixa ir na onda — esconder uma mente diabolicamente
rápida, quase assustadora. Seus pensamentos viajavam mais depressa do que os
meus, levando-o a locais que eu nunca pensaria ir. Qualquer ameaça originava
uma resposta rápida e decidida, sem grande consideração pelas consequências
futuras. E, ele não tinha medo de nada. Era esta última característica a que eu mais
admirava e que mais me preocupava. Ele era um humano capaz de usar magia.
Ele devia ter medo. Muito medo. Mas não tinha.

Mas o melhor — pensei, enquanto me apoiava nele —, é que não se importava


minimamente com o fato de eu não ser humana.

Os lábios dele eram suaves contra os meus, com uma familiaridade


reconfortante. Não havia sequer uma sugestão de barba arruinando o nosso beijo.
As minhas mãos uniram-se atrás da cintura dele e eu puxei-o contra mim,
sugestivamente. Desequilibrados, mudamos de posição até as minhas costas
baterem na parede. Interrompemos o nosso beijo e eu senti os lábios dele
curvarem contra os meus, num sorriso, perante o meu atrevimento.

— É uma bruxa muito, muito má — sussurrou ele. — Sabe disso, não sabe?
Vim para trazer os bilhetes e me deixa assim perturbado.

A franja dele era um suave suspiro contra a ponta dos meus dedos.

— Sim? Se colar... Acho melhor fazer qualquer coisa em relação à isso.

Sorvete.
5
140

— Farei — seu abraço afrouxou. — Mas vai ter de esperar — quando se


afastou, a mão dele traçou um caminho delicioso e leve ao longo do meu traseiro.
— É um perfume novo?

Perdendo a vontade de brincar, afastei o olhar.

— Sim — tinha jogado fora o perfume de canela, nessa manhã. Ivy não
dissera uma palavra quando descobriu o frasco de trinta dólares no caixote do
lixo, fazendo com que cheirasse como se fosse Natal. Tinha falhado e não tinha
coragem para voltar a usá-lo.

— Rachel...

Era o início de uma discussão familiar e eu fiquei rígida. Devido ao


inusitado acaso de ter crescido em Hollows, Nick sabia mais sobre vampiros e as
suas fomes desencadeadas pelo cheiro do que eu.

— Não me vou mudar — disse, num tom monótono.

— Podia só... — hesitou, as compridas mãos de pianista movendo-se em


acenos curtos e repentinos, mostrando a sua frustração ao ver o meu maxilar
cerrado.

— Estamos nos dando bem. Eu tenho muito cuidado.

O sentimento de culpa por não ter dito que ela tinha me prendido contra a
parede da cozinha obrigou-me a baixar os olhos. Ele suspirou, movendo o corpo
estreito.

— Toma — contorceu-se para chegar ao bolso de trás. — Fica você com os


bilhetes. Eu perco tudo o que fica guardado comigo durante mais de uma semana.

— Então vai me lembrando de não ficar parada — brinquei, para aliviar o


ar, enquanto agarrava neles. Olhei de relance para o número dos lugares. —
Terceira fila. Fantástico! Não sei como consegue, Nick.

Ele mostrou os dentes num sorriso agradado, uma sugestão de astúcia


brilhando nos olhos. Ele nunca me diria onde os tinha arranjado. Nick conseguia
arranjar qualquer coisa e, se não conseguisse, conhecia alguém que conseguiria. Eu
tinha a sensação que a desconfiança resguardada que ele mostrava em relação às
autoridades tinha aí a sua origem. Contra a minha vontade, achava aquela parte
141

do Nick, ainda por explorar, deliciosamente ousada. E, desde que não soubesse
com toda a certeza...

— Quer café? — perguntei, enfiando os bilhetes no meu próprio bolso.

Nick olhou através de mim, para o santuário vazio.

— Ivy ainda está?

Eu não disse nada e ele leu a minha resposta no silêncio.

— Ela gosta mesmo de você — menti.

— Não, obrigado — ele avançou para a porta. Ivy e Nick não se entendiam.
Eu não fazia ideia do porquê. — Tenho de voltar para o trabalho. Estou no
intervalo de almoço.

A decepção fez com que os meus ombros afundassem.

— Está bem.

Nick trabalhava o tempo inteiro no museu de Eden Park limpando artigos,


isso quando não estava trabalhando noite afora, na biblioteca da universidade,
ajudando a catalogar e a mover os volumes mais sensíveis para uma localização
mais segura. Eu achava divertido o fato de o nosso assalto à seção de livros antigos
estar, muito provavelmente, na origem da mudança. Eu tinha a certeza de que
Nick aceitara o trabalho para poder "pegar emprestados" os mesmos livros que
eles estavam tentando proteger. Tinha de conciliar os dois trabalhos até ao final do
mês e eu sabia que aquilo o estava deixando cansado.

Ele virou-se para sair e eu o segui quando tive uma ideia súbita.

— Ei, ainda tens o meu caldeirão para feitiços grande, não tens? —tínhamos
usado para fazer chilli, três semanas antes, quando assistimos a uma maratona de
Dirty Harry na casa dele e eu nunca o trouxera de volta.

Ele hesitou, a mão no fecho da porta.

— Precisa dele?

— Edden obrigou-me a assistir a uma aula de linhas Ley — disse eu, não
querendo dizer que estava trabalhando nos assassinatos do caçador de bruxas.
Não ainda. Não estava disposta a arruinar aquele beijo com uma discussão. —
142

Preciso de um familiar ou a bruxa vai chumbar-me. Isso significa o caldeirão para


feitiços grande.

— Oh! — ele ficou em silêncio e eu perguntei-me se ele ia perceber de


qualquer forma. — Claro — disse ele, lentamente. — Esta noite, pode ser? —
quando eu acenei, ele acrescentou: — Está bem, até logo!

— Obrigada, Nick. Tchau — feliz por ter arrancado a promessa de vê-lo


mais tarde, abri a porta parando a meio caminho, quando uma voz masculina
gritou em protesto. Olhei para o exterior e descobri Glenn no alpendre, tentando
equilibrar três sacos de fast food e uma travessa de bebidas.

— Glenn! — exclamei, levando a mão às bebidas. — Aí está você. Entra.


Este é o Nick, o meu namorado. Nick este é o detetive Glenn.

Nick, o meu namorado. Sim, soava bem.

— Prazer em conhecê-lo — disse Nick, depois se voltou para mim. — Eu,


hum, te vejo esta noite, Rachel.

— Ok, tchau — pareceu algo desprendido, mesmo para mim, e Nick


alternou o peso de um pé para o outro, antes de se inclinar para me dar um beijo
no canto da boca. Pareceu-me que o fizera mais para demonstrar o seu estatuto de
namorado do que numa tentativa de mostrar afeto. Paciência.

Com os tênis silenciosos, Nick apressou-se a descer os degraus e dirigiu-se à


pickup azul, salpicada de ferrugem, que tinha estacionado junto à calçada. Senti
uma onda de preocupação perante os seus ombros curvados e o passo afetado.
Também Glenn o observava, mas sua expressão era mais de curiosidade do que de
qualquer outra coisa.

— Entra — repeti, enquanto fitava os sacos de comida e abria mais a porta.

Glenn tirou os óculos, guardando-os no bolso de dentro do blazer com uma


das mãos. Com a sua constituição atlética e barba aparada, parecia um agente dos
Serviços Secretos pré-Viragem.

— Era Nick Sparagmos? — perguntou, quando Nick acelerou para longe. —


O que foi uma ratazana?

Os pelos do meu pescoço ergueram-se perante a forma como ele dissera


aquilo, como se ser transformado em ratazana ou visom fosse moralmente errado.
143

Levei uma mão ao quadril, a travessa das bebidas inclinando-se até ficar
perigosamente perto de entornar gelo e refrigerante. Era óbvio que o pai tinha
contado mais do que ele deixara transparecer.

— Está atrasado.

— Parei para comprar comida — disse ele, rígido. — Importa-se que entre?

Eu recuei e ele atravessou a ombreira da porta. Prendeu a porta com o pé,


fechando-a com um baque surdo atrás de si. O cheiro de batatas fritas tornou-se
avassalador, na súbita escuridão do foyer.

— Belo vestuário — disse ele. — Quanto tempo demorou para pintá-lo?

Ofendida, olhei para as minhas calças de couro e para a blusa de seda


vermelha presa nelas. Usar couro antes do pôr-do-sol tinha me preocupado, até
Ivy ter me convencido que a elevada qualidade do couro que eu comprava fazia
com que o look deixasse de ser de "bruxa das barracas" para ser de "bruxa da
classe alta". Ela devia saber, mas eu continuava a ser sensível aos comentários.

— É o que uso para o trabalho — disse irritada. — Poupo nos enxertos de


pele, caso tenha de correr e acabe deslizando pelo chão. Tens algum problema com
isso?

Resumindo os seus comentários a um ronco descomprometido, Glenn


seguiu-me até à cozinha. Ivy ergueu os olhos do mapa, assimilando em silêncio os
sacos de hambúrgueres e as bebidas.

— Bem — disse, com a voz arrastada —, vejo que sobreviveu à pizza.


Mesmo assim, posso pedir ao Piscary que te morda, se quiser.

A expressão subitamente séria de Glenn ajudou a melhorar o meu humor.


Ele emitiu um som horrível com a garganta e eu fui guardar as waffles congeladas,
já que a tostadeira estava desligada.

— Comeu a pizza bem depressa a noite passada — disse eu. — Admite.


Você goooostou.

— Comi para sobreviver — com movimentos rápidos, colocou-se em frente à


mesa e puxou os sacos para si. Ver aquele homem, alto e negro, num terno caro, a
desembrulhar comida envolta em papel era uma estranha imagem. — Fui para
144

casa e acabei rezando ao deus de porcelana durante duas horas sem parar —
acrescentou e Ivy e eu trocamos um olhar divertido.

Afastando o trabalho, Ivy agarrou o hambúrguer menos esborrachado e o


pacote de batatas fritas mais cheio. Eu deixei-me cair numa cadeira ao lado de
Glenn. Ele desviou-se para a ponta da mesa, sem sequer se dar ao trabalho de
fazer com que o movimento parecesse casual.

— Obrigada pelo café da manhã — disse eu, comendo uma batata frita,
antes de desembrulhar o meu hambúrguer com um farfalhar de papel.

Ele hesitou, relaxando um pouco o controle sobre a sua imagem de agente


do DFI, enquanto desapertava o botão de baixo do casaco e se sentava.

— O DFI é que paga. Na verdade, este também é o meu café da manhã.


Cheguei em casa quando o Sol estava nascendo. Vocês têm uns dias muito
compridos.

O ligeiro tom de aceitação fez com que eu relaxasse um pouco os ombros.

— Na verdade, não. Simplesmente começa cerca de seis horas depois do


seu.

Querendo ketchup nas batatas fritas, levantei-me e fui à geladeira. Hesitei


quando levei a mão ao frasco vermelho. Ivy olhou para mim e encolheu os ombros
quando eu apontei. Sim — pensei. Ele estava invadindo nossas vidas. Tinha
comido pizza na noite anterior. Por que Ivy e eu haveríamos de sofrer por causa
disso? Decidida, tirei o frasco da geladeira e coloquei na mesa com um baque
arrojado. Para minha grande decepção, Glenn não reparou.

— Então — disse Ivy, esticando o braço sobre a mesa e agarrando o ketchup.


— Vai tomar conta da Rachel, hoje? Não a leve de ônibus. Eles não param.

Ele olhou de relance, sobressaltando-se ao ver Ivy derramar o molho


vermelho sobre o hambúrguer.

— Hum... — pestanejou, sendo óbvio que tinha perdido a linha de


pensamento. Tinha os olhos fixos no ketchup. — Sim. Vou mostrar-lhe o que já
temos dos homicídios.

Um sorriso ergueu-me os cantos da boca, perante uma ideia súbita.


145

— Ei, Ivy — disse, alegremente. — Passa-me o sangue coagulado.

Sem hesitar, ela empurrou o frasco sobre a mesa. Glenn ficou gelado.

— Oh, meu Deus! — sussurrou, rouco, o rosto pálido.

Ivy riu e eu dei uma sonora gargalhada.

— Tenha calma, Glenn — disse eu, enquanto apertava o ketchup sobre as


batatas fritas. Reclinei-me na cadeira, dirigindo-lhe um olhar matreiro
enquanto comia uma. — É ketchup.

— Ketchup! — puxou a base de papel, onde tinha a comida, para mais


perto
de si. — São loucas?

— É praticamente a mesma coisa que esteve comendo a noite


passada — disse Ivy.

Eu empurrei o frasco na direção dele.

— Não vai te matar.


Prova.

Com os olhos fixos no plástico vermelho, Glenn abanou a cabeça.


Tinha o
pescoço rígido e puxou a comida ainda mais para si.

— Não.

— Oh, vamos, Glenn — provoquei. — Não seja esquisito. Estava


brincando
em relação ao sangue.

De que serve ter um humano por perto, se não podemos assustá-lo um


bocadinho?

Ele continuou amuado, comendo o hambúrguer como se fosse uma


obrigação e não uma experiência agradável. Mas, sem ketchup, bem que
podia ser uma obrigação.

— Ouve — disse eu, tentando convencê-lo, ao mesmo tempo em


que me aproximava e virava o frasco —, eis o que isso tem... Tomate,
xarope de milho, vinagre, sal... — hesitei, franzindo a sobrancelha. — Ei,
Ivy. Sabia que eles põem
cebola e pó de alho no
k
e
t
c
h
u
p
?
146

Ela acenou, limpando uma gota de ketchup do canto da boca. Glenn pareceu
interessado, tendo se inclinado mais para ler as letras pequenas por cima da minha
unha pintada recentemente.

— Por quê? — perguntou. — Qual é o problema da cebola e do alho? — os


seus olhos castanhos brilharam com uma expressão de entendimento e ele
recostou-se. — Ah! — disse, em tom sábio. — Alho.

— Não seja idiota — pousei o frasco. — O alho e a cebola têm muito


enxofre. Tal como os ovos. Dão-me dores de cabeça.

— Hum... — disse Glenn, com um ar satisfeito, enquanto pegava no frasco


de ketchup com dois dedos e lia o rótulo. — O que são aromas naturais?

— Não queira saber — disse Ivy, a voz num tom melodramático.

Glenn pousou o frasco. Não pude deixar de fungar, divertida.

O som de uma moto que se aproximava fez Ivy levantar-se.

— É a minha carona — disse ela, amarrotando o embrulho de papel e


empurrando o pacote de batatas meio comidas para o meio da mesa. Espreguiçou o
corpo alto e magro, estendendo-se para o teto. Os olhos de Glenn percorreram-
na, depois ele afastou o olhar.

Os meus olhos cruzaram-se com os de Ivy. Pelo som, parecia tratar-se da


moto de Kist. Perguntei-me se teria alguma coisa a ver com a noite anterior. Vendo a
minha apreensão, Ivy agarrou na bolsa.

— Obrigada pelo café da manhã, Glenn — voltou-se para mim. — Vemo-


nos mais tarde, Rachel — acrescentou, enquanto se ia embora.

Relaxando os ombros, Glenn olhou para o relógio por cima da pia, depois
continuou a comer. Estava raspando o que restava do ketchup com uma batata frita
quando a voz exigente de Ivy se fez ouvir da rua.

— Vai se ferrar, Kist. Eu conduzo.

Sorri, quando a moto acelerou e a rua ficou em silêncio.


147

Tendo terminado, amarrotei o papel numa bola e levantei-me. Glenn ainda


não tinha acabado e, limpando a mesa, deixei o ketchup. Pelo canto do olho, vi-o
olhar para o frasco.

— Também é bom nos hambúrgueres — disse, agachando-me ao lado da


ilha e agarrando num dos livros de feitiços. Ouvi o som de plástico deslizando. De
livro na mão, virei-me para descobrir que ele tinha afastado o frasco. Seus olhos
recusavam-se a fitar os meus, quando me sentei à mesa.

— Importa-se que verifique uma coisa antes de sairmos? — perguntei,


abrindo o livro no índice.

— Força.

A voz dele tornara-se fria, de novo e, considerando que se tratava do livro


de feitiços, suspirei e inclinei-me sobre as letras sobressalentes.

— Quero fazer um feitiço para que os Howlers mudem de ideia quanto a


não me pagar — disse eu, esperando que ele relaxasse se soubesse o que eu estava
a fazer. — Pensei que podia arranjar aquilo que não tenho no jardim, enquanto
estiver fora. Não se importa de fazer uma parada extra, não?

— Não — sua voz estava ligeiramente menos fria e eu considerei que se


tratava de um bom sinal.

Ele estava mexendo ruidosamente o gelo com o canudo e eu aproximei-me


mais dele, para que ele pudesse ver.

— Olha — disse eu, apontando para as letras borradas —, eu tinha razão. Se


quiser fazer com que as bolas curvas e altas deles caiam fora, preciso de um feitiço
sem contato — para uma bruxa de terra, como eu, sem contato significava com
varinha. Eu nunca fizera um antes, mas as minhas sobrancelhas ergueram-se
perante os ingredientes. Eu tinha tudo, menos a semente em desenvolvimento e a
varinha. Quanto poderia custar um taco de pau-brasil?

— Por que o faz?

A voz dele tinha um toque de agressividade e, pestanejando, fechei o livro.


Decepcionada, fui arrumá-lo, voltando-me para encará-lo, as costas apoiadas no
balcão da ilha.
148

— Fazer feitiços? É o que eu faço. Não vou magoar ninguém. Pelo menos,
não com um feitiço.

Glenn pousou o copo gigante. Os dedos negros abriram um pouco e


deslizaram sobre ele. Inclinando-se para trás, na cadeira, hesitou.

— Não — disse. — Como é que pode viver com alguém assim? Prestes a
explodir sem aviso?

— Oh! — levei a mão à minha bebida. — Você a encontrou num mau dia,
mais nada. Ela não gosta do seu pai e descontou em você.

Além disso, estava pedindo, idiota. Bebi o resto do refrigerante e joguei fora o
copo.

— Pronto? — perguntei enquanto tirava o casaco e a bolsa de cima de uma


cadeira.

Glenn levantou-se e ajeitou o casaco antes de passar à minha frente, para


jogar o lixo por baixo da pia.

— Ela quer qualquer coisa — disse ele. — Sempre que ela olha para você,
vejo culpa. Quer o queira fazer ou não, vai magoar-te e ela sabe disso.

Insultada, olhei-o de cima a baixo.

— Ela não está me caçando — tentando conter a raiva, avancei pelo


corredor a passo rápido.

Glenn estava perto, as solas duras dos seus sapatos batendo no chão logo
atrás de mim.

—Vai dizer que ontem foi a primeira vez que ela te atacou?

Apertei os lábios e o bater das minhas botas subiu-me pela espinha. Tinha
havido muitos "quase" até eu ter percebido o que a provocava e ter deixado de
fazer. Glenn não disse nada, sendo óbvio que tinha ouvido a resposta no meu
silêncio.

— Ouve — disse ele, quando emergimos no santuário —, eu posso ter


parecido o humano idiota a noite passada, mas estive sempre a observá-las. O
Piscary enfeitiçou-te mais depressa do que se apaga uma vela. Ele puxou-te para
149

ele, bastando dizer o teu nome. Isso não pode ser normal. E, ele disse que era o
animal de estimação dela. É isso que é? É o que parece.

— Não sou o animal de estimação dela — disse. — Ela sabe. Eu sei. O


Piscary pode pensar o que quiser — enfiando os braços dentro do casaco, avancei
pela igreja e desci bruscamente os degraus. O carro dele estava trancado e eu
agarrei o puxador. — E você não tem nada a ver com isso — acrescentei.

O detetive do DFI ficou em silêncio, enquanto abria a porta, depois olhou


para mim, por cima do teto do carro. Colocou os óculos de sol, escondendo os
olhos.

— Tem razão. Não tenho nada a ver com isso.

A porta destrancou-se e eu entrei, batendo com ela e fazendo o carro


tremer. Glenn deslizou para trás do volante e fechou a sua porta.

— Pode crer que não tem nada a ver com isso — murmurei, no espaço
fechado do carro. — Você a ouviu noite passada. Eu não sou o espectro dela. Ela
não estava mentindo quando disse aquilo.

— Também ouvi o Piscary dizer que se ela não te controlasse, ele o faria por
ela.

Uma onda de medo apertou-me, indesejada e inquietante.

— Eu sou amiga dela — assegurei. — Tudo o que ela quer é uma amiga que
não esteja atrás do sangue dela. Já pensou nisso?

— Um animal de estimação, Rachel? — disse ele suavemente, ao mesmo


tempo em que ligava o carro.

Eu não disse nada, batendo com os dedos no apoio do braço. Eu não era o
bichinho de estimação de Ivy. E, nem mesmo Piscary a podia obrigar a
transformar-me num.
150

Capitulo 10
O sol de fim de tarde daquele dia, no final de setembro, era quente através
do casaco de couro, enquanto eu deixava o braço apoiado na janela do carro. O
pequeno frasco de sal na pulseira de amuletos, agitava-se ao vento e batia contra a
cruz de madeira. Estendendo um braço, ajustei o espelho retrovisor para poder
observar o tráfego que se arrastava atrás de nós a uma distância segura. Era bom
ter um veículo ao meu dispor. Chegaríamos ao DFI em quinze minutos e não nos
quarenta que, normalmente, precisaria para chegar lá de ônibus, com o trânsito e
tudo o mais.

— Vire à direita no próximo semáforo — disse eu, apontando. Assisti,


incrédula, enquanto Glenn conduzia em linha reta, através do cruzamento.

— Que inferno se passa contigo?! — exclamei. — Ainda está para chegar o


dia em que vou entrar neste carro e me levará onde quero ir.

A expressão de Glenn era arrogante, por trás dos óculos escuros.

— Atalho.

S o r r i u . O s d e n t e s e s p a n to s a m e n te b r a n c o s . E r a o p r i m e i r o s o r r i s
o
verdadeiro que via e deixou-me espantada.

— Claro — disse eu, abanando uma mão no ar. — Mostre-me o atalho —


duvidava que fosse mais rápido, mas não ia dizer nada. Não depois daquele
sorriso.

Virei a cabeça para seguir um letreiro familiar, num dos edifícios pelos
quais passamos.

— Ei! Pára! — gritei, rodando no banco. — É uma loja de magia.


151

Glenn olhou para trás e fez uma inversão de marcha ilegal. Agarrei-me ao
a l t o d a ja n e la qu a nd o e l e f e z o u t r a , pa r a nd o m e s m o e m f r e n t e à lo j a e
estacionando na calçada. Abri a porta e agarrei minha mala.

— É só um minuto — disse, e ele acenou, chegando o banco para trás e


encostando a cabeça no descanso.

Deixando-o tirando um cochilo, entrei na loja. As campainhas por cima da


porta tilintaram e respirei fundo, sentindo-me relaxar. Gostava de lojas de
amuletos. Aquela cheirava a lavanda, dente-de-leão e amargo da clorofila.
Passando pelos encantamentos prontos para usar, dirigi-me para o fundo da loja,
onde se encontravam as matérias-primas.

— Posso ajudá-la?

E rg u i o s o l h o s d e u m ra m o d e sa n g u i n á r i a , d e p a ra n d o - me co m u m
vendedor de aspecto limpo e entusiasmado, debruçado sobre o balcão. Pelo cheiro,
era um bruxo, embora fosse difícil perceber com todos aqueles odores.

— Sim — respondi. — Estou à procura de semente de feto6 e de um taco de


pau-brasil adequado para uma varinha.

— Ah! — disse ele, triunfante. — Guardamos as nossas sementes aqui.

Avancei, paralelamente, do meu lado do balcão até um expositor repleto de


frascos cor de âmbar. Ele passou os dedos por eles retirando um, do tamanho do
meu mindinho e apresentando-me. Recusei-me a pegar nele, fazendo-lhe sinal
para que o pousasse no balcão. Ele pareceu ofendido, enquanto eu vasculhava na
mala e segurava um amuleto sobre o frasquinho.

— Garanto, minha senhora — disse, rígido —, é da melhor qualidade.

Dei um sorriso fraco, enquanto o amuleto brilhava num pálido tom verde.

— Estive sob ameaça de morte na primavera passada — expliquei. — Não


pode me culpar por ser cuidadosa.

Feto= Samambaia. Ela não produz semente, então essa semente que ela procura é um pequeno 6

brotinho em desenvolvimento, enroladinho que se parece uma semente.


152

As campainhas tilintaram e eu olhei para trás, vendo Glenn entrar. O


vendedor animou-se, estalando os dedos e dando um passo para trás.

— É a Rachel. A Rachel Morgan, certo? Conheço você! — colocou o


f r a s q u i n h o e m m i nh a s m ã o s . — É p o r c o n t a d a c a s a . F i c o t ã o f e l i z p o r t e
r
sobrevivido. Quais eram as hipóteses contra você? Trezentos para um?

— Eram duzentos — disse, ligeiramente ofendida. Observei o olhar dele


saltar — sobre o meu ombro — para Glenn, seu sorriso desaparecendo ao
compreender que se tratava de um humano. — Está comigo — disse eu, e o
homem arquejou, tentando disfarçar com um falso ataque de tosse.

Os olhos dele fixaram-se na arma meio escondida de Glenn. Que o levasse a


Viragem, sentia falta das minhas algemas.

— As varinhas estão aqui — disse ele, seu tom uma clara indicação de que
desaprovava a minha escolha de companhia. — As guardamos numa caixa de
desidratação para mantermos frescas.

Glenn e eu o seguimos até um espaço livre atrás da máquina registradora.


O vendedor puxou uma caixa de madeira do tamanho de um violino, abriu-a e
virou-a com um floreado para que eu pudesse ver. Suspirei quando o cheiro de
pau-brasil emanou da caixa. Ergui a mão para tocar, voltando a baixá-la quando o
vendedor tossiu, limpando a garganta.

— Que feitiço pretende fazer, menina Morgan? — perguntou, o seu tom


tornando-se profissional, enquanto me fitava por cima dos óculos.

Os aros eram de madeira e eu estava disposta a apostar que estavam


enfeitiçados para ver através de encantamentos de disfarce realizados com magia
de terra.

— Quero experimentar um feitiço sem contato. Para... Hum... Partir


madeira já sobtensão — disse, engolindo uma pitada de vergonha.

— Qualquer uma das menores serve — disse ele, o olhar saltando entre
Glenn e eu.

Acenei, os olhos fixos nas varinhas do tamanho de um lápis.

— Quanto custam?
153

— Novecentos e setenta e cinco — disse ele. — Mas para você, vendo por
novecentos.

Dólares?

— Sabe — disse, lentamente —, talvez eu devesse assegurar se tenho tudo o


que preciso antes de comprar a varinha. Não faz sentido tê-la por aí pegando
umidade antes de precisar dela.

O sorriso do vendedor tornou-se rígido.

— Claro — num movimento fluído, fechou a caixa com um estalido e


guardou-a.

Encolhi-me, murchando por dentro.

— Quanto devo pelas sementes de feto? — perguntei, sabendo que a sua


anterior oferta tinha sido feita porque eu ia comprar uma varinha.

— Cinco e cinquenta.

Isso eu tinha... Achava eu. De cabeça baixa, vasculhei na minha mala. Sabia
que as varinhas eram caras, mas não tão caras. Com o dinheiro na mão, ergui os
olhos, vendo Glenn fitando uma prateleira repleta de ratazanas empalhadas.
Enquanto o vendedor registrava minha compra, Glenn inclinou-se para mim, sem
tirar os olhos das ratazanas e sussurrou:

— Para que servem?

— Não faço ideia.

Peguei meu recibo e enfiei tudo na mala. Tentando recuperar nem que fosse
uma centelha de dignidade, avancei para a porta com Glenn atrás de mim. As
campainhas repicaram quando chegamos ao exterior. Mais uma vez ao sol,
inspirei uma golfada de ar purificante. Não ia gastar novecentos dólares para,
talvez, recuperar os quinhentos que me eram devidos.

Glenn surpreendeu-me ao abrir a porta do carro para eu entrar e, enquanto


eu me instalava no assento, debruçou-se pela janela aberta.

— Volto já — disse, e voltou a entrar na loja.


154

Saiu pouco depois com um pequeno saco branco. Observei-o passar pela
frente do carro, curiosa. Coordenando os seus movimentos com a passagem do
trânsito, abriu a porta e deslizou para trás do volante.

— Então? — perguntei, enquanto ele pousava o embrulho entre nós. — O


que comprou?

Glenn ligou o carro e arrancou pelo meio do trânsito.

— Uma ratazana empalhada.

— Oh! — disse, surpresa.

Que diabos é que ele ia fazer com aquilo? Nem eu sabia para que serviam.
Passei o caminho até ao DFI mortinha de vontade de perguntar, mas consegui
manter a boca fechada, mesmo enquanto deslizávamos para a fria sombra do
parque de estacionamento subterrâneo.

Glenn tinha um lugar reservado e os meus saltos ecoaram, quando pousei


os pés no chão de cimento. Com a dolorosa lentidão que recordava o meu pai,
Glenn alisou lentamente as roupas enquanto saía e puxou para baixo as mangas
do casaco. Debruçou-se para apanhar a ratazana e fez um gesto em direção às
escadas.

Ainda em silêncio, segui-o até às escadas metálicas. Só tínhamos de subir


um piso e ele segurou a porta aberta, enquanto entrávamos pela porta de trás.
Glenn tirou os óculos de sol quando entramos e eu afastei o cabelo dos olhos,
enfiando-o debaixo do chapéu. O ar condicionado estava ligado e olhei para a
pequena entrada, pensando que estava a mundos de distância do átrio apinhado.

Glenn tirou um passe de visitante de detrás de uma mesa cheia, registrando


a minha entrada e, dirigindo ao homem com o telefone, um aceno de cabeça.
Prendi o passe na lapela enquanto o seguia para os gabinetes abertos.

— Olá, Rose — disse Glenn, quando se aproximou da secretária de Edden.


— O capitão está disponível?

Ignorando-me, a mulher mais velha pousou um dedo no papel que estava


datilografando na máquina e abanou a cabeça.

— Está numa reunião. Quer que lhe diga que está aqui?
155

Glenn pegou no meu cotovelo e começou a empurrar-me para longe dela.

— Quando ele sair. Não há pressa. A menina Morgan vai ficar por aqui
durante algumas horas.

— Sim, senhor — disse ela, regressando ao seu trabalho.

Horas? — pensei, não gostando que ele não me tivesse deixado falar com
Rose; eu queria descobrir qual era o modo de atuar deles. O DFI não podia ter
assim tanta informação. A SI tinha jurisdição sobre os crimes.

— O meu gabinete é aqui — disse Glenn, apontando para a fila de gabinetes


com paredes divisórias e uma porta, que rodeavam o espaço dividido em
cubículos. Os poucos agentes que se encontravam sentados às suas mesas
ergueram os olhos dos seus papéis, enquanto Glenn me empurrava. Começava a
ter a distinta sensação de que não queria que ninguém soubesse que eu estava ali.

— Bonito — disse eu, em tom sarcástico, enquanto era empurrada para o


seu gabinete. A sala branca era quase estéril, a sujeira óbvia nos cantos. Sobre a
mesa quase vazia encontrava-se uma tela de computador nova. Os alto-falantes
eram velhos. Atrás dela encontrava-se uma cadeira de má qualidade e perguntei-
me se haveria uma cadeira decente em todo o edifício. A mesa era pintada de
branco, mas a sujeira entranhada pelas utilizações passadas tornava-a quase
cinzenta. Não havia nada no caixote de lixo ao seu lado.

— Cuidado com os fios de telefone — disse Glenn, enquanto passava por


mim e largava o saco da ratazana sobre o armário de arquivos. Tirou o casaco e
pendurou-o meticulosamente num cabide de madeira que, por sua vez, foi
pendurado num cabide de pé. Fitando a sala horrível, perguntei-me como seria o
seu apartamento.

Os dois cabos telefônicos que saíam de uma tomada atrás da mesa


comprida corriam pelo chão até a sua mesa. Tê-los assim esticados consistia,
certamente, numa violação das diretivas da OSHN7, mas se ele não se preocupava
com a possibilidade de alguém arrancar o telefone da mesa por tropeçar nos fios,
porque eu havia de me preocupar?

— Por que não põe a mesa ali? — perguntei, fitando a mesa repleta de
papéis que se encontrava no local onde, pela lógica, devia estar a sua mesa.

Occupational Safety and Health Administration (Departamento de Saúde e Segurança Ocupacional). 7


156

Erguendo-se sobre o teclado, Glenn levantou os olhos.

— Ficaria de costas para a porta e não seria capaz de ver o piso.

— Oh!

Não havia ali enfeites de qualquer espécie — nada de natureza pessoal — e


a única prateleira da divisão continha apenas pastas transbordando de papéis.
Não parecia que estivesse ali há muito tempo. Suaves sombras retangulares
revelavam os locais anteriormente ocupados por fotografias. A única coisa
pendurada na parede, além do seu certificado de detetive, era um poeirento
placard8 informativo, pendurado logo por cima da mesa comprida, com centenas
de post-its9 presos com massa adesiva. Estavam desbotados e enrugados, com
mensagens criptografadas que, provavelmente, só Glenn seria capaz de decifrar.

— O que é isso? — perguntei, enquanto ele verificava se as persianas da


janela que dava para o piso aberto estavam fechadas.

— Notas relativas a um caso antigo em que estou trabalhando — sua voz


soava preocupada quando regressou ao teclado e escreveu uma série de letras. —
Por que não se senta?

Eu encontrava-me no centro do seu gabinete, fitando-o.

— Onde? — acabei por perguntar.

Ele ergueu os olhos, enrubescendo ao compreender que se encontrava


debruçado sobre a única cadeira da sala.

— Volto já.

Glenn contornou a mesa, estacando de forma súbita e atrapalhada à minha


frente, enquanto eu me desviava. O andar dele tornou-se mais altivo quando
passou por mim e saiu da sala.

Tirei o chapéu e o casaco, pendurei no prego atrás da porta, pensando que


aquele gabinete era a mais inospitaleira fatia de burocracia do DFI que alguma vez
vi. Aborrecida, vagueei até a mesa. Uma tela de acolhimento com uma caixa de
diálogo piscava aguardando por novas ordens.

Placa 8
Folhinhas para lembretes.
9
157

O som das rodas precedeu a chegada de Glenn que empurrava uma cadeira
para o gabinete. Dirigindo-me um olhar neutro, colocou-a ao lado da sua. Pousei a
mala na mesa estéril e sentei-me ao lado dele, inclinando-me para frente para ver.

O vi introduzir três senhas: golfinho, tulipa, Mônica. Antiga namorada? —


perguntei-me. Apareciam na tela como asteriscos, mas ele escrevia apenas com
dois dedos e não era difícil de seguir.

— Muito bem — disse ele, puxando um bloco de notas com uma lista de
nomes e números de identificação.

Olhei de relance para o primeiro e de novo para a tela. Com uma lentidão
dolorosa, franziu a sobrancelha e começou a escrevê-los. Letra. Pausa. Letra, letra.

— Oh, dá-me isso — disse eu, puxando o teclado para mais perto.

Com as teclas a tilintando alegremente, introduzi o primeiro, depois agarrei


no mouse e cliquei no botão TODOS, deixando que o único limite de busca, fosse
as entradas feitas nos últimos doze meses. Uma nova caixa de diálogo surgiu na
tela e hesitei.

— Qual das impressoras? — perguntei.

Glenn não disse nada e eu virei-me, descobrindo-o encostado para trás, na


cadeira, com os braços cruzados à frente do corpo.

— Aposto que também rouba o comando do teu namorado — disse,


puxando o teclado de novo para a sua frente e reclamando o mouse.

— Bem, a televisão é minha — disse eu, intempestivamente, depois


acrescentei: — Desculpe.

Na verdade era de Ivy, a minha perdera-se no grande banho salgado. O que


não era mau, já que teria parecido um brinquedo ao lado da dela.

G l e n n e m i ti u u m p e q u e n o r u íd o n o f u n d o d a g a r g a n t a . In tr o d u z i u
lentamente o nome seguinte, comparando-o com a lista antes de avançar para o
próximo. Eu esperava impaciente. Meus olhos saltaram para o saco amarrotado
sobre o armário de arquivos. Senti-me invadida por um desejo imbecil de tirar a
ratazana do saco. Aquela devia ser a razão porque ele dissera que iríamos ficar ali
durante horas. Teria sido mais rápido recortar as letras e colá-las num bilhete.
158

— Não é a mesma impressora — disse eu, vendo que ele as tinha trocado.

— Não sabia que querias ver tudo — disse ele, a voz preocupada enquanto
escolhia as letras no teclado. — Vou mandar o resto para a impressora da cave10.
— lentamente, escreveu a última fileira de números e carregou no ENTER. — Não
quero que me chateiem por ter entupido a impressora desse piso — acrescentou.

Lutei para esconder um sorriso. Não queria que o chateassem? Quanto mais
informação poderia haver?

Glenn levantou-se e ergui os olhos para ele.

— Vou buscá-las. Fica quieta até eu voltar.

Acenei, enquanto ele saía. Fazendo girar a cadeira de um lado para o outro,
esperei, ouvindo as conversas de fundo filtradas através da parede. Um sorriso
t o m o u c o n t a d o m e u r o s t o . N ã o t i n h a p e r c e b i d o a f a l t a q u e se n t i a d a
camaradagem dos meus colegas da SI. Sabia que, se saísse do gabinete de Glenn,
as conversas cessariam e os olhares tornariam-se gelados, mas se ficasse ali e as
escutasse, poderia fingir que, a qualquer momento, alguém poderia passar por ali
e dizer "olá", perguntar a minha opinião sobre um caso ou contar uma piada suja
para me ver rir.

Suspirando, levantei-me para tirar a ratazana de Glenn do saco. Pousei o


bicho horrível de olhos brilhantes sobre o armário de arquivos, de onde podia
observá-lo. Um barulho junto à porta fez-me virar.

— Oh, olá — disse, vendo que não era Glenn.

— Minha senhora.

O pesado agente do DFI olhou primeiro para minhas calças de couro,


depois para o meu crachá de visitante. Virei-me mais, para que ele pudesse ver
melhor. O crachá, não as calças.

— Sou Rachel — disse. — Estou ajudando o detetive Glenn. Ele foi buscar
umas impressões.

— Rachel Morgan? — disse ele. — Pensei que fosse uma bruxa velha.

Pavimento inferior de uma casa destinado à manutenção.


10
159

Abri a boca enraivecida, depois fechei compreendendo. A última vez que


me vira, era provável que eu parecesse uma bruxa velha.

— Era um disfarce — disse, enquanto amassava o saco e o jogava fora. —


Este é o verdadeiro eu.

Ele voltou a deslizar os olhos pela minha roupa.

— Está bem.

O cara virou-se para sair e eu respirei com mais facilidade.

Já tinha ido embora quando Glenn regressou, com um ar decididamente


preocupado. Nas mãos trazia um maço de folhas de tamanho considerável e
pensei que, afinal, as capacidades de recolhimento de informação do DFI deviam
ser equivalentes às da SI. Por um instante, deixou-se ficar no centro do gabinete,
depois empurrou os papéis, que se encontravam sobre a mesa comprida, contra a
parede do lado oposto.

— Este é o primeiro — disse, pousando os relatórios na zona livre. Volto já


com os da cave.

Estanquei no movimento para toca-lo. O primeiro? Eu tinha pensado que


aquilo era tudo. Inspirei, preparando-me para perguntar, mas ele já tinha saído. A
grossura do relatório era impressionante. Empurrei a cadeira até a mesa e
coloquei-a de lado para não ficar de costas para a porta. Sentando-me, cruzei as
pernas e puxei a pilha de papel para o meu colo.

Reconheci a fotografia da primeira vítima — porque a SI a tinha fornecido


aos jornais. Tratava-se de uma mulher bela, de alguma idade, com um sorriso
maternal. Tendo em conta a maquiagem e as joias, parecia que tinham ido buscar a
sua foto em um fotógrafo profissional, um daqueles retratos que se tiram nos
aniversários e etc. Ela estava a três meses de se aposentar de uma empresa de
segurança que desenhava cofres resistentes à magia. Falecera de "complicações
inerentes à violação". Aquilo já não era novidade. Avancei para o relatório do
médico-legista e os meus olhos caíram sobre a fotografia.

Senti um aperto no estômago e fechei o relatório. Sentindo-me subitamente


gelada, olhei, através da porta aberta do gabinete de Glenn, para o espaço aberto.
Tocou um telefone e alguém o atendeu. Voltei a inspirar fundo e segurei a
respiração. Obriguei-me a respirar, voltando a segurar o ar para não hiperventilar.
160

Suponho que, de uma forma abrangente, se pudesse considerar violação. As


entranhas da mulher tinham sido puxadas para fora, por entre as suas pernas, e
pendiam até aos joelhos. Perguntei-me quanto tempo permanecera viva, durante a
provação, depois desejei não o ter feito. Com o estômago às voltas, jurei não olhar
mais para as fotos.

Com os dedos tremendo, tentei concentrar-me no relatório. O DFI tinha


sido surpreendentemente exaustivo, deixando-me apenas com uma pergunta.
Esticando-me, agarrei no telefone sem fio que se encontrava na mesa. Doía-me o
maxilar por tê-lo apertado durante tanto tempo, enquanto marcava o número
listado como sendo do familiar mais próximo.

Atendeu um homem de idade.

— Não — garanti, quando ele tentou desligar o telefone. — Não faço parte
de nenhum serviço de acompanhantes. Encantamentos Vampíricos é uma empresa
de agentes independentes. Neste momento estou trabalhando com o DFI para
identificar a pessoa que atacou a sua esposa.

A imagem dela, retorcida e quebrada sobre a maca, insinuou-se na minha


mente. Empurrei-a para longe, para um local onde permaneceria, provavelmente,
até que eu tentasse dormir. Esperava que ele não tivesse visto a fotografia. Rezava
para que não tivesse sido ele a encontrar o corpo.

— Peço desculpas por ligar, Sr. Graylin — disse, num tom de voz o mais
profissional possível. — Só tenho uma pergunta. Por acaso a sua esposa falou com
o Sr. Trent Kalamack algum tempo antes da sua morte?

— O vereador? — perguntou ele, a voz carregada de espanto. — Ele é


suspeito?

— Longe disso — menti. — Estou seguindo uma pista vaga referente a um


perseguidor que estaria tentando chegar até ele.

— Oh! — houve um momento de silêncio, depois: — Sim. Por acaso,


falamos.

O choque de adrenalina me fez endireitar.

— O conhecemos numa peça, esta primavera — dizia o homem. — Lembro-


me porque se chamava Pirates of Penzance e eu achei que o pirata principal se
161

parecia com o Sr. Kalamack. Depois disso jantamos em Carew Tower e rimos
sobre isso. Ele não está em perigo, não?

— Não — disse eu, com o coração batendo acelerado. — Tenho de pedir


que mantenha esta linha de investigação em segredo até que possamos provar que
é falsa. Lamento muito pela morte da sua esposa, Sr. Graylin. Era uma mulher
linda.

— Obrigado. Sinto falta dela.

Ele desligou o telefone no silêncio desconfortável. Pousei o telefone,


aguardando alguns instantes antes de sussurrar um exuberante:

— Sim!

Fazendo girar a cadeira, descobri Glenn, de pé, à porta.

— O que está fazendo? — perguntou pousando outra pilha de papéis à


minha frente.

Sorri, continuando a girar de um lado para o outro, na minha cadeira.

— Nada.

Ele dirigiu-se à mesa e apertou o botão na base do telefone, franzindo a


sobrancelha quando o último número marcado piscou numa tela minúscula.

— Não disse que podia telefonar para estas pessoas — o rosto dele estava
zangado e a sua postura tornou-se rígida. — Este homem está tentando deixar
tudo isso para trás. Não precisa que lhe traga tudo de volta.

— Só lhe fiz uma pergunta — de pernas cruzadas, girava, sorridente.

Glenn olhou para trás de si, para o espaço aberto.

— É uma convidada — disse, com rudeza. — Se não consegue jogar de


acordo com as minhas regras... — parou. — Por que está rindo?

— O Sr. e a Sra. Graylin jantaram com Trent um mês antes de ela ser
atacada.

O detetive do DFI endireitou-se, em toda a sua altura e deu um passo atrás.


Os seus olhos estreitaram-se.
162

— Importa-se que telefone para próximo? — perguntei.

Ele olhou para o telefone ao lado da minha mão, depois para o espaço
aberto. Com uma calma forçada, fechou a porta quase por completo.

— Fala baixo.

Agradada comigo mesma, puxei a pilha de papéis para mais perto. Glenn
regressou ao computador, escrevendo com uma lentidão irritante. O meu humor
depressa se tornou mais sério, enquanto eu analisava o relatório do médico-
legista, saltando a parte das imagens. Aparentemente o homem tinha sido comido
vivo, a começar pelas extremidades. Sabiam que se encontrava vivo, devido ao
padrão rasgado das feridas. E, estavam bastante confiantes de que tinha sido
comido devido à falta de partes do corpo.

Tentando ignorar a fotografia mental que a minha imaginação criara, liguei


para o número de contato. Não houve resposta, nem mesmo de uma secretária
eletrônica. Em seguida liguei para o seu local de trabalho, considerando que a
minha intuição me levava num bom caminho, ao ler o nome da empresa: Seary
Security.

A mulher que me atendeu era muito simpática, mas não sabia de nada,
dizendo-me apenas que a esposa do Sr. Seary se encontrava ausente numa "clínica
de recuperação" tentando reaprender a dormir. Ainda assim, verificou os seus
arquivos, dizendo-me que tinham sido contratados para instalar um cofre na
propriedade Kalamack.

— Segurança... — murmurei, colando o relatório do Sr. Seary no placard


informativo, por cima dos post-its de Glenn, para tirá-los do caminho. — Ei, Glenn,
tem mais post-its?

Ele procurou na gaveta da mesa, atirando-me um bloco seguido de uma


caneta. Escrevi o nome do local de trabalho do Sr. Seary e colei-o ao relatório.
Depois de ter pensado por um instante, fiz o mesmo para a mulher, escrevendo
"designer de cofres". Acrescentei um segundo post-it onde escrevi "falou com T",
fazendo um círculo com tinta preta.

Um ruído no corredor me fez levantar os olhos do terceiro relatório. Sorri,


despreocupadamente, reconhecendo o policial obeso, com um pacote pequeno de
batatas fritas na mão. Ele respondeu ao meu sorriso e ao aceno de Glenn, tendo se
encostado à porta.
163

— Glenn pôs você a fazer o trabalho de secretária? — perguntou, seu


sotaque de simplório tão espesso que quase se podia cortar.

— Não — disse eu, sorrindo, docemente. — Trent Kalamack é o caçador de


bruxas e eu estou apenas ligando todos os indícios.

Ele roncou, olhando para Glenn. Este respondeu com um olhar cansado,
acrescentando um encolher de ombros.

— Rachel — disse —, este é o agente Dunlop. Dunlop, esta é a Senhorita


Morgan.

— Encantada — disse eu, não oferecendo a mão, iria ela voltar coberta de
óleo das batatas fritas.

Não percebendo a dica, o homem entrou, espalhando migalhas pelo chão


de azulejo.

— O que é que tem aí? — perguntou, vindo espreitar os grossos relatórios


presos ao placard por cima dos post-its desbotados de Glenn.

— Ainda é muito cedo para dizer — afastei-o do meu espaço, encostando


um dedo em seu estômago. — Com licença.

Ele recuou, mas não foi embora indo antes ver o que Glenn estava fazendo.
Os céus me protegessem dos policiais no intervalo. Os dois conversaram sobre as
suspeitas de Glenn em relação à Dra. Anders, revelando-se calmante o ondular das
suas vozes.

Soprei as migalhas de batatas fritas de cima das folhas, sentindo a pulsação


mais rápida ao ver que a terceira vítima tinha trabalhado na pista de corridas da
cidade, no departamento de controle meteorológico. Tratava-se de um campo
muito difícil, que recorria bastante à magia das linhas Ley. O homem tinha sido
prensado até a morte, num dia em que ficara trabalhando até mais tarde para
umedecer a pista para a corrida do dia seguinte. O objeto utilizado para provocar
sua morte era desconhecido. Não havia nada nos estábulos suficientemente
pesado. Também não olhei para aquela fotografia.

Fora nesse momento que a media tinham compreendido que as três mortes
estavam relacionadas, apesar da variação dos métodos de morte, eles atribuíram
ao louco sádico o nome de "caçador de bruxas".
164

Um rápido telefonema pôs-me em contato com a irmã dele que me disse,


claro, que ele conhecia Trent Kalamack. Que o vereador ligava muitas vezes para
irmão dela para saber o estado da pista, mas que ela não sabia se ele tinha ou não
falado com o Sr. Kalamack antes da sua morte; disse ainda que estava doente com a
morte do irmão e perguntou-me se eu sabia quanto tempo demoravam os
cheques do seguro.

Por fim consegui desejar minhas condolências no meio da sua tagarelice e


desliguei o telefone na cara. Todos lidam com a morte de forma diferente, mas
aquilo era ofensivo.

— Ele conhecia o Sr. Kalamack? — perguntou Glenn.

— Sim — prendi o relatório no quadro e colei um post-it que dizia "controle


meteorológico".

— E o emprego dele é relevante porque...?

— É preciso uma extraordinária perícia em linhas Ley para manipular o


tempo. Trent cria cavalos. Podia facilmente ter estado lá e ter falado com ele, sem
que ninguém prestasse a menor atenção.

Acrescentei outra nota: "Conhecia T".

O velho Dunlop — o policial — emitiu um ruído interessado e aproximou-


se, bamboleando-se. Deste feito, manteve-se cerca de um metro atrás de mim,
respeitosamente.

— Já não precisa desse? — perguntou, apontando para o primeiro.

— Agora não — respondi e ele tirou-o do placard.

Alguns dos post-its de Glenn flutuaram e caíram atrás da mesa. O maxilar


de Glenn ficou mais apertado.

Sentindo que alguém começava a me levar a sério, sentei-me mais ereta. O


homem obeso bamboleou-se de volta para junto de Glenn, emitindo ruídos ao
descobrir as fotografias. Largou o relatório sobre a mesa de Glenn e eu ouvi o som
característico das migalhas das batatas fritas. Outro agente entrou na sala,
parecendo que uma reunião improvisada iria começar a tomar forma, enquanto
eles iam se reunindo ao redor da tela do computador de Glenn. Virei de costas e
olhei para o relatório seguinte.
165

A quarta vítima fora encontrada no início de agosto. Os jornais diziam que


a causa da morte fora perda de sangue. O que não tinham dito era que o homem
tinha sido estripado, estraçalhado, como se tivesse sido atacado por animais
selvagens. O patrão o tinha encontrado nos fundos do local de trabalho, ainda
vivo, tentando empurrar as entranhas de novo para dentro de si, onde deviam
estar. Tratava-se de uma operação ainda mais difícil do que o normal, já que ele só
tinha um braço, o outro pendendo, preso apenas pela pele da axila.

— Aqui tem, senhorita — disse uma voz ao meu lado e eu saltei.

Com o coração batendo veloz, deparei-me com um jovem agente do DFI.

— Desculpe — disse ele, apresentando-me um maço de papéis. — O


detetive Glenn pediu que trouxesse isso quando acabassem de imprimir. Não
queria assustá-la — os olhos dele desceram para o relatório em minhas mãos. —
Terrível, não é?

— Obrigada — disse eu, aceitando os relatórios. Meus dedos tremiam,


enquanto marcava o número do patrão da vítima, já que não havia nenhum
familiar próximo listado.

— Jim — disse uma voz cansada ao terceiro toque.

A minha saudação prendeu-se na garganta. Reconheci a voz. Era o


apresentador das lutas de ratazanas ilegais de Cincinnati. Com o coração veloz,
desliguei, falhando o botão na primeira tentativa. Fitei a parede. A sala ficara em
silêncio.

— Glenn? — disse eu, com a garganta apertada. Voltei-me e descobri-o


rodeado pelos três agentes. Todos a olhar para mim.

— Sim?

Minha mão tremia, enquanto estendia o relatório através do espaço


pequeno.

— Importa-se de ver as fotografias da cena do crime por mim?

De rosto inexpressivo, Glenn agarrou-o. Eu voltei-me para a parede de post-


its, enquanto ouvia as páginas a serem viradas, pés se mexerem.

— Do que estou à procura? — perguntou.


166

Engoli em seco.

— Gaiolas de ratazanas? — perguntei.

— Oh, meu Deus — alguém sussurrou. — Como é que ela sabia?

Voltei a engolir em seco. Não parecia conseguir parar.

— Obrigada.

Com movimentos lentos e deliberados, peguei no relatório e prendi-o ao


placard informativo. A minha mão tremia enquanto escrevia "acesso a T" e
colava o post-it sobre as folhas. O relatório dizia que ele era segurança
numa discoteca, mas se se tratava de um dos alunos da Dra. Anders, era
hábil no uso das linhas Ley e o mais certo era ser o chefe de segurança nas
lutas de ratazanas de Jim.

Levei a mão ao quinto maço com uma sensação sinistra. Era Trent
— eu sabia que era Trent — mas o horror do que ele tinha feito estava
matando toda e qualquer alegria que eu poderia retirar de tal constatação.

Senti que os homens atrás de mim me observavam, enquanto eu


percorria o relatório lembrando-me que a quinta vítima, descoberta três
semanas antes, tinha morrido da mesma forma que a primeira. Numa
chamada à mãe chorosa, fiquei sabendo que ela tinha conhecido Trent
numa livraria especializada, no mês anterior. Lembrava-se porque a filha
ficara surpreendida pelo fato de um homem tão jovem e importante se
interessar por antologias de contos de fadas pré- Viragem. Depois de ter
confirmado que a filha trabalhava para uma empresa de
assinaturas de segurança, apresentei-lhe as minhas condolências e
desliguei.

Os m u r m ú r i o s d e fu n d o d o s h o m e n s e x c i ta d o s a u m e n ta r a m m i n h
a sensação de torpor. Com cuidado, escrevi o T maiúsculo, tendo o cuidado
de fazer as linhas claras e direitas. Colei-o ao lado de uma cópia da fotografia
do seu cartão de identificação do trabalho. Ela era jovem, de cabelo loiro e
liso
até os ombros e, um rosto belo e oval. Acabara de sair da faculdade. A
recordação da fotografia que vira, da primeira mulher deitada na maca,
veio-me de novo à mente. Senti o sangue fugir-me. Com a cabeça rodando,
levantei-me.

A conversa dos homens parou como se eu tivesse tocado uma


campainha.

— Onde é que fica o banheiro feminino? — sussurrei, a boca


seca.

Vir
e
à
es
qu
er
da
.
Si
ga
at
éo
fu
nd
o
da
sa
la.
167

Não tinha tempo para agradecer. Com os saltos baixos batendo no chão, saí
bruscamente da sala. Não olhei nem para a esquerda, nem para a direita,
movendo-me ainda mais depressa quando vi a porta ao fundo da sala. Bati contra
ela, tendo a tempo ao sanitário.

Vomitando violentamente, joguei fora o café da manhã. As lágrimas


corriam-me pelo rosto, o sal misturando-se com o sabor amargo do vômito. Como
é que alguém podia fazer aquilo com outra pessoa? Não estava preparada para
aquilo. Maldição, era uma bruxa, não um médico-legista. A SI não ensinava aos
seus agentes como lidar com aquilo. Os agentes eram agentes, não eram
investigadores do departamento de homicídios. Traziam sempre os seus alvos
vivos, mesmo os mortos.

Meu estômago estava vazio e, quando os arranques em seco cessaram,


deixei-me ficar onde estava, sentada no chão do banheiro do DFI a testa encostada
na porcelana fria, tentando não chorar. De súbito compreendi que alguém estava
segurando meu cabelo longe do rosto e que já estava fazendo isso há algum
tempo.

— Isso passa — sussurrou Rose, quase para si. — Prometo. Amanhã ou no


dia seguinte, vai fechar os olhos e a imagem terá desaparecido.

Ergui os olhos. Rose afastou a mão e recuou. Depois da porta aberta, estava
uma fila de lavatórios e espelhos.

— Sério? — perguntei, infelicíssima.

Ela sorriu, levemente.

— É o que dizem. Eu ainda estou à espera. Acho que estão todos.

Sentindo-me tola, levantei-me atrapalhada e dei descarga. Sacudi as roupas,


feliz porque o DFI mantinha os seus banheiros mais limpos do que eu mantinha o
meu. Rose foi para um dos lavatórios, dando-me um momento para me recompor.
Saí do compartimento, sentindo-me envergonhada e idiota. Glenn nunca me
deixaria esquecer aquilo.

— Melhor? — perguntou Rose, enquanto enxugava as mãos e acenei-lhe,


com o pescoço mole, pronta para começar a chorar mais uma vez só por ela não
estar me chamando novata, ou fazendo com que me sentisse inadequada, ou que
não era suficientemente forte.
168

— Pensei que pudesse querer sua maquiagem.

Voltei a acenar.

— Obrigada, Rose.

Ela sorriu, as rugas do seu rosto tornando sua expressão ainda mais
reconfortante.

— Não se preocupe — falei. Ela virou-se para sair e eu disse, de repente: —


Como é que lida com isso? Como é que faz para não desabar? Aquilo... O que
aconteceu a eles é horrível. Como uma pessoa pode fazer aquilo a outra?

Rose inspirou fundo.

— Uma pessoa chora, zanga-se e depois age.

A vi partir, o bater dos seus saltos rápidos, soando fortemente antes da


porta fechar.

Sim, posso fazer isso.


169

Capitulo 11
Foi preciso mais coragem do que gostaria de admitir para sair do banheiro.
Perguntei-me se todos saberiam que eu tinha perdido a compostura. Rose
mostrara-se inesperadamente gentil e compreensiva, mas eu tinha certeza de que
os agentes do DFI usariam aquilo contra mim. A bruxinha linda é meiga demais para
brincar com os meninos crescidos? Glenn jamais esqueceria aquilo.

Passei um olhar nervoso pelos gabinetes abertos, os meus passos hesitando,


quando descobri não rostos carrancudos e conhecedores, mas mesas vazias. Não,
estavam todos à porta do gabinete de Glenn, a espreitar. Do seu interior chegava o
som de vozes altas.

— Desculpem — murmurei, segurando a bolsa contra o corpo, enquanto


passava pelos agentes do DFI. Parei junto ao limiar da porta, deparando-me com
uma sala cheia de pessoas, com armas e algemas, a discutir.

— Morgan — o policial que estava comendo batatas fritas agarrou-me por


um braço e puxou-me mais para dentro. — Já está melhor?

Tentei recuperar o equilíbrio, tropeçando abruptamente perante a entrada.

— Sim — disse, hesitante.

— Ainda bem. Liguei para sexto por você — os olhos de Dunlop pousaram-
se nos meus. Eram castanhos e eu parecia capaz de olhar diretamente para sua
alma, de tão claros. — Espero que não se importe. Estava morrendo de
curiosidade — passou uma mão pelo bigode, limpando dele a gordura, enquanto
o seu olhar percorria os seis relatórios colados por cima dos post-its de Glenn.

Meu olhar percorreu a sala. Todos os homens e mulheres que ali se


encontravam olharam para mim ao sentir o peso do meu olhar sobre eles,
acenando-me antes de regressarem às suas conversas. Todos sabiam que eu tinha
170

jogado fora as entranhas, mas pela falta de comentário, parecia que isso tinha
servido — de uma forma retorcida — para quebrar o gelo. Talvez o fato de ter
desabado tivesse provado para eles que eu era tão humana como eles... Por assim
dizer.

Glenn estava sentado à mesa com os braços cruzados, não dizendo nada,
enquanto observava as diferentes discussões. Dirigiu-me um olhar seco, de
sobrancelhas erguidas. Pelo que conseguia ouvir, a maior parte da sala queria
prender Trent, mas alguns se sentiam muito amedrontados pelo seu estatuto
político e queriam mais. Havia menos tensão na sala do que era de se esperar,
levando em conta que estavam todos gritando uns com os outros. Aparentemente,
os humanos gostavam de fazer as coisas em reuniões ruidosas.

Coloquei a bolsa no chão ao lado da mesa e sentei-me para olhar para o


último relatório. O jornal noticiara que a mais recente vítima era um antigo
nadador olímpico. Tinha morrido no banheiro. Afogado. Trabalhava num canal de
televisão local, como apresentador do boletim meteorológico, mas frequentara a
universidade para aprender a manipular as linhas Ley. O post-it colado nele dizia,
numa letra esguia, que o irmão não sabia se ele tinha ou não falado com Trent.
Tirei o relatório do placard e obriguei-me a olhar para ele, dando mais atenção às
conversas que se desenrolavam à minha volta do que ao que estava escrito.

— Ele está rindo de nós — disse uma mulher morena, endurecida pela vida
nas ruas, enquanto discutia com um agente magro, de aspecto nervoso.

Todos, exceto Glenn e eu, estavam de pé e eu sentia-me como se estivesse


no fundo de um poço.

— O Sr. Kalamack não é o caçador de bruxas — protestou o homem, com


uma voz anasalada. — Ele dá mais à cidade de Cincinnati do que o Papai Noel.

— Isso adequa-se ao perfil — interveio Dunlop. — Já viram os relatórios.


Quem quer que esteja fazendo isso é louco. Vidas paralelas... Provavelmente
esquizofrênico.

Houve um suave murmúrio dos agentes ao redor, enquanto as discussões


convergiam para aquela. Valesse o que valesse, concordava com Dunlop. Quem
quer que esteja fazendo isso é um bocadinho esquizofrênico. Trent adequava-se
maravilhosamente.
171

O homem nervoso endireitou-se, seu olhar a percorrer a sala em busca de


apoio.

— Está bem, o assassino é insano, sim — admitiu, com um gemido irritante.


— Mas eu já estive com o Sr. Kalamack. O homem é tão assassino como a minha
mãe.

Avancei para o relatório do médico-legista, ficando sabendo que o nosso


nadador olímpico tinha, de fato, morrido na sua banheira, mas que esta estava
cheia de sangue de bruxa. Um mau pressentimento começou a afastar o horror. É
preciso muito sangue para encher uma banheira. Muito mais do que uma pessoa
tem; são precisas cerca de duas dúzias. De onde é que ele tinha vindo? Um
vampiro não o desperdiçaria assim.

A discussão quanto à mãe do policial magro tornou-se mais audível e


perguntei-me se devia contar sobre o fato do benevolente Sr. Kalamack ter matado
o seu principal geneticista, atirando depois as culpas para uma picada de abelha.
Belo, simples e limpo. Assassinato quase sem mexer um dedo. Trent dera à esposa
viúva e à filha de quinze anos um pacote de benefícios melhorado e uma bolsa
total, anônima, para a universidade.

— Pare de pensar com a carteira, Lewis — disse Dunlop, agitando a barriga


g ra n d e d e f o r ma a me a ça d o ra . — Só p o rq u e o ca ra p a rt i ci p a d o l e i l ã o d e
recolhimento de fundos do DFI, não faz dele um santo. Eu digo que isso o torna
ainda mais suspeito. Nem sequer sabemos se ele é humano.

Glenn olhou para mim.

— O que é que isso tem a ver com o resto?

Dunlop gaguejou, recordando-se, sem dúvida, de que eu estava ali.

— Absolutamente nada! — disse, em voz alta, como se o volume da sua voz


pudesse esconder o preconceito racial escondido e subentendido. — Mas o cara
tem algo a esconder.

Concordei em silêncio, começando a apreciar o policial obeso apesar da sua


falta de tato. Os agentes que se aglomeravam junto da porta olharam, por cima do
ombro, para o espaço vazio. Trocaram olhares e recuaram.
172

— Tarde, capitão — disse um deles, enquanto se esgueirava para fora do


caminho e, não fiquei surpreendida quando a forma atarracada de Edden
substituiu a deles junto à porta.

— O que se passa aqui? — perguntou, empurrando os óculos de armações


redondas nariz acima.

Outro agente do DFI dirigiu-me um aceno de despedida silencioso e saiu.

— Olá, Edden — disse eu, sem me levantar da cadeira.

— Srta. Morgan — disse o homem baixo; havia nele uma sugestão de raiva
quando apertou a mão que eu lhe estendi e ergueu as sobrancelhas perante as
minhas calças de couro. — Rose disse que estava aqui. Não estou surpreendido
por encontra-la no meio de uma discussão.

O l h o u pa r a G l e n n e o a l t o a ge n t e d o D F I en c o l he u o s om b r o s , s e m
aparentar qualquer arrependimento, quando se levantou.

— Capitão — disse Glenn, respirando fundo. — Estávamos conduzindo um


exercício de dedução livre em relação a suspeitos alternativos para os assassinatos
do caçador de bruxas.

— Não, não estavam — disse Edden e os meus olhos saltaram para os dele,
perante a raiva na sua voz. — Estavam falando mal do vereador Kalamack. Ele
não é suspeito.

— Sim, senhor — concordou Glenn, enquanto Dunlop me dirigia um olhar


impossível de ler e se esgueirava da sala, de forma surpreendentemente ágil para
a lg u é m d o s e u t a m a nh o . — M a s a c r ed i t o qu e a m e ni n a M o r ga n es t e j a
considerando um caminho válido.

Surpreendida com o apoio, pestanejei, olhando para Glenn. Edden nem


sequer olhou para mim.

— Pare com essas tretas psicológicas, Glenn. A Dra. Anders é a nossa


principal suspeita. É melhor que tenha uma boa razão para afastar daí suas
energias.

— Sim, senhor — disse Glenn, nada chateado. — A Srta. Morgan descobriu


uma ligação direta de quatro das seis vítimas ao Sr. Kalamack, bem como uma
janela de oportunidade para o contato do Sr. Kalamack com as outras duas.
173

Em vez de se mostrar excitado, como seria de esperar, Edden ficou


desanimado. Levantei-me quando ele se aproximou para fitar os relatórios presos
à parede. Seus olhos cansados saltaram de um para o outro. Percebi que estava
prendendo a respiração e soltei-a. Incapaz de resistir, disse:

— Todos, com exceção da última vítima, usavam bastante as linhas Ley no


seu trabalho. E, há uma lenta progressão, começando com os mais habilidosos e
terminando com os que tinham acabado de sair da faculdade e ainda não estavam
aplicando suas licenciaturas.

— Eu sei — a voz de Edden era monótona. — Razão pela qual a Dra.


Anders é suspeita. É a última bruxa das linhas Ley praticante e de alguma
reputação que resta em Cincinnati. Acho que está a se ver livre da concorrência.
Em especial tendo em conta que a maioria das vítimas trabalhava em campos
relacionados com a segurança.

— Ou Trent ainda não chegou a ela — disse eu, baixinho. — A mulher é um


autêntico cacto.

Edden deu as costas aos relatórios.

— Morgan, por que Trent Kalamack estaria matando as bruxas das linhas
Ley? Ele não tem qualquer motivo.

— Tem o mesmo motivo que atribui à Dra. Anders — disse eu. — Ver-se
livre da concorrência. Talvez tenha oferecido emprego e, quando eles recusaram,
os tenha matado? Adequaria-se ao caso do namorado desaparecido da Sara Jane.

Para não falar do que ele me fez. A testa de Edden enrugou-se.

— O que me leva a perguntar por que ele teria deixado sua secretária vir ao
DFI?

— Não sei — respondi, levantando a voz, quando comecei a me sentir


frustrada. — Talvez os dois casos não estejam relacionados. Talvez ela tenha
mentido sobre o fato de ele saber que ela tinha vindo. Talvez o homem seja louco e
queira ser apanhado. Talvez esteja tão certo de que não somos sequer capazes de
encontrar os nossos traseiros no escuro que está nos provocando. Ele mandou
matá-los, Edden. Eu sei que sim. Ele falou com eles antes de morrerem. Do que
mais precisa?
174

Estava quase gritando. Sabia que isso não me levaria a lugar algum com
Edden, mas aquele tipo de burocracia era parte da razão porque deixara a SI. E o
fato de me encontrar, mais uma vez, tentando "convencer o patrão" dava cabo de
mim. De cabeça baixa e mão no queixo, Glenn recuou, deixando-me só. Eu não
queria saber.

— Não é contra a lei falar com Trent Kalamack — disse Edden, os olhos
fixos nos meus. — Metade da cidade o conhece.

— Vai ignorar o fato de ele ter falado com todas essas pessoas? — protestei.

O rosto dele estava vermelho atrás dos óculos, que pareciam muito
pequenos para o seu rosto redondo.

— Não posso acusar um vereador por fazer telefonemas e ter conversas de


circunstância — disse ele. — É o trabalho dele.

Minha pulsação acelerou.

— Trent matou aquelas pessoas — disse, baixinho. — E você sabe isso.

— Aquilo que sabe não vale uma bolinha de cocô de ganso, Rachel. É o que
posso provar. E não posso provar nada com isso — abanou a mão junto ao
relatório mais próximo, fazendo-o esvoaçar.

— Então faça uma busca ao complexo dele — exigi.

— Morgan! — gritou Edden, chocando-me. — Não vou autorizar uma


busca baseada no simples fato de ele ter falado com as vítimas. Preciso de mais.

— Então me deixe falar com ele. Eu arranjo as provas.

— Santo Deus! — praguejou. — Quer que eu seja despedido, Rachel? É


isso? Sabe o que me aconteceria se eu a deixasse vasculhar o complexo dele e não
encontrasse nada?

— Nada — disse eu.

— Errado! Eu seria acusado de homicídio um homem respeitado. Ele é um


vereador. Um benfeitor da maior parte das obras de caridade e dos hospitais dos
dois lados da fronteira do Estado. O DFI tornaria-se uma palavra sórdida tanto no
mundo humano como no Inderland. Minha reputação estaria acabada!
175

Frustrada, erguia-me mesmo à frente dele, capaz de fitá-lo, olhos nos olhos.

— Não sabia que tinha se tornado agente do DFI para melhorar a sua
reputação.

Glenn mudou de posição, emitindo um som de aviso. Edden ficou rígido, o


maxilar cerrado, até começarem a aparecer manchas brancas na testa.

— Rachel — disse, numa ameaça suave —, esta é uma investigação oficial


do DFI e vamos conduzi-la à minha maneira. Deixou se envolver emocionalmente e
o seu discernimento está comprometido.

— O meu discernimento? — gritei. — Ele enfiou-me numa porra de uma


gaiola e obrigou-me a combater nas lutas de ratazanas!

Edden avançou.

— Eu não vou — disse, apontando para mim —, permitir que entre no


gabinete dele e revele as suas desconfianças baseadas numa vingancinha,
enquanto estamos recolhendo provas. Mesmo que nós o interroguemos, VOCÊ.
NÃO. VAI. ESTAR. LÁ!

— Edden! — protestei.

— Não! — bradou ele, fazendo-me recuar um passo. — Esta conversa está


terminada.

Inspirei, preparando-me para dizer que não estaria até que eu o dissesse,
mas ele já tinha saído. Furiosa, saí atrás dele.

— Ed d e n — c h a me i , p e r s e g u i n d o su a so m b r a q u e d e s a p a r e c i a
rapidamente. Para um homem atarracado, movia-se depressa. Uma porta bateu.
— Edden!

Ignorando os agentes do DFI que me olhavam, atravessei o espaço aberto,


passei por Rose e dirigi-me à porta fechada. Levei a mão ao puxador, depois
hesitei. Aquele era o gabinete dele; furiosa ou não, não podia entrar ali. Frustrada,
deixei-me ficar do lado de fora da porta e gritei:

— Edden! — prendi uma madeixa de cabelo atrás da orelha. — Você e eu


sabemos que o Trent Kalamack é capaz e está disposto a matar. Se não me deixa
falar com ele através do DFI, então me demito!
176

Tirei o crachá de visitante, como se isso tivesse algum significado e atirei-o


para a mesa de Rose.

— Está me ouvindo? Vou falar com ele sozinha.

A porta de Edden abriu-se, de repente, e eu recuei. Ele erguia-se à minha


frente, as calças cáqui amarrotadas. Apareceu no corredor, quase me empurrando
para cima da mesa de Rose com o dedo roliço.

— Eu disse que se viesse decidida a apanhar o Sr. Kalamack, eu atiraria o


seu traseiro de bruxa para o outro lado do rio e para o meio de Hollows.
Comprometeu-se a trabalhar com o detetive Glenn neste caso e vou cobrar o
compromisso. Mas, se falar com o Sr. Kalamack, atiro você para a nossa cadeia por
assédio.

Inspirei, preparando-me para responder, mas faltou-me a determinação.

— Agora saia daqui — quase rosnou Edden. — Tem aula amanhã e eu vou
descontar o valor da propina dos seus honorários, se não for.

Pensamentos relativos à renda intrometeram-se. Detestando o fato de ser o


dinheiro — não que ele estivesse certo — a me parar, fitei-o.

— Sabe bem que ele matou aquelas pessoas — disse, com a voz tensa.
Afastando a adrenalina que não gastara, afastei-me. Passei pelos silenciosos
agentes do DFI sentados às suas mesas, a caminho da porta da frente.

Apanharia o ônibus para casa.


177

Capitulo 12
Caí com força quando Ivy arrancou as minhas pernas de debaixo de mim.
Rolei, afastando-me, já com dores no local onde o meu quadril batera no chão.
Meu coração batia ao ritmo das dores que sentia na batata das pernas. Afastei dos
olhos uma madeixa de cabelo que tinha fugido da fita de ginástica que o segurava.
Com uma mão contra a parede do santuário, usei-a para me equilibrar, enquanto
me levantava. Com os pulmões pesados, passei a parte de trás da mão pela testa,
para limpar o suor que escorria.

— Rachel — disse Ivy, a dois metros e meio de distância. — Presta atenção.


Dessa vez quase te machuquei.

Quase? Abanei a cabeça para tornar a minha visão mais clara. Eu nem a vira
mover-se, ela era tão rápida. Claro que podia não tê-la visto porque, na hora,
estava caindo de bunda.

Ivy deu três passos rápidos na minha direção. De olhos abertos, torci o
corpo num círculo apertado para a esquerda, lançando o meu pé para o centro do
corpo dela. Gemendo, ela agarrou o estômago e cambaleou para trás.

— Ai — queixou-se, recuando.

Dobrei-me sobre mim mesma, pousando as mãos nos joelhos, em sinal de


que queria uma pausa. Ivy afastou-se obedientemente e esperou, tentando não
revelar que eu a tinha acertado.

Da posição que assumi, olhei de relance para Ivy, que se erguia numa faixa
verde e dourada do sol da tarde que jorrava através das janelas do santuário. O
body de corpo inteiro e as sapatilhas que usava quando estávamos lutando uma
com a outra, faziam com que ela parecesse ainda mais predatória do que o normal.
O cabelo liso e negro estava preso num rabo-de-cavalo, acentuando a sua
178

aparência alta e esguia. De rosto inexpressivo e branco, esperou que eu


recuperasse o fôlego, para que pudéssemos continuar.

O treino era mais para mim do que para ela. Ivy insistia que aumentaria a
minha esperança de vida, caso me deparasse com um cara grande, feio e mau, sem
os meus feitiços ou uma rota de fuga. Saía sempre dos nossos combates
machucada e dirigia-me diretamente para o armário dos amuletos. Como isso
podia aumentar minha esperança de vida era algo que estava fora do meu alcance.
Ganhando prática na preparação de amuletos contra as dores, talvez?

Ivy tinha chegado cedo em casa depois de passar a tarde com Kist,
surpreendendo-me com sua oferta para treinarmos. Eu ainda estava fervendo por
causa da recusa de Edden em deixar-me interrogar Trent e precisava queimar
parte daquela raiva, por isso concordei. Como de costume, passados quinze
minutos estava cheia de dores e respirando com dificuldade, ao passo que ela nem
sequer transpirava.

Ivy movia-se impaciente, saltando de um pé para o outro. Seus olhos


tinham uma estável e agradável cor castanha. Eu mantinha uma vigilância atenta
sobre ela, não querendo levá-la muito perto dos seus limites. Ela estava ótima.

— O que se passa? — perguntou, enquanto eu me endireitava.

— Está mais agressiva do que o normal.

Dobrei a perna para trás, para alongar o músculo e puxar a bainha das
calças de treino para o tornozelo.

— Todas as vítimas falaram com Trent antes de morrer — disse, esticando


um pouco a verdade. — Edden não me deixa interrogá-lo.

Estiquei a outra perna, depois acenei.

A respiração de Ivy acelerou. Agachei-me quando ela se lançou em frente.


Muito rápido para pensar, desviei-me do seu golpe, lançando minha perna na
direção dos seus pés. Gritando, ela lançou-se num salto mortal para trás, aterrando
primeiro com as mãos e depois com os pés. Eu desviei-me para trás, para impedir
que o pé dela me acertasse no maxilar, ao passar por mim.

— E? — perguntou Ivy, calmamente, enquanto eu me levantava.

— E o Trent é o assassino.
179

— Pode provar?

— Ainda não — atirei-me à ela.

Dançou para fora do meu alcance, saltando para o estreito parapeito da


janela. Mal os seus pés aterraram, impulsionou-se para frente, passando mesmo
por cima de mim num mortal. Virei-me para não perdê-la de vista. Ela começava a
revelar algumas manchas vermelhas do esforço. Ivy estava recorrendo ao seu
reportório vampírico para me evitar. Encorajada, prossegui, tentando acertar-lhe
com os punhos e cotovelos.

— Então desiste e termina o trabalho sozinha — disse Ivy entre bloqueios e


contra-ataques.

Meus punhos doíam quando chocavam com os seus bloqueios, mas


continuei.

— Eu disse Que era isso que ia fazer... — golpe, bloqueio, bloqueio, golpe — E
ele ameaçou me prender por assédio. Disse que eu devia me concentrar na Dra.
Anders — recua dois metros. Arqueja. Transpira. Por que eu estava a fazendo
aquilo?

U m s o r r i s o , v e r d a d e i r o e i n c o m u m , e s p a l h o u - s e p e l o r o s to d e l a e
desapareceu.

— O malandro... — disse ela. — Eu sabia que Deus o tinha posto na terra


para ser mais do que um cardápio infantil.

— Edden? — limpei o suor que pingava no nariz. — Ele é capaz de ser uma
refeição para crianças um pouco mais graúdas, não?

Fiz um gesto indicando que ela devia vir até mim. Com os olhos brilhando
d e d i v e r ti m e n t o , o b e d e c e u , a t a c a n d o c o m u m a b a r r a g e m d e g o l p e s q u
e culminaram num ataque ao meu peito e que me fez cambalear.

— Está perdendo a concentração — disse ela, respirando fundo enquanto


olhava para mim, de joelhos no chão a arquejando. — Devia ter previsto esse
ataque.

Eu previra, mas o meu braço estava ficando dormente e lento por ter sido
fustigado por demasiadas vezes.
180

— Estou bem — silvei.

Aquela era a primeira vez que eu a via a suar e não ia parar agora. Ergui-
me, com as pernas tremendo e levantei dois dedos, depois um. Minha mão desceu
e ela atirou-se com uma rapidez sobrenatural.

Alarmada, bloqueei os seus golpes vampiricamente velozes, recuando até


sair dos tapetes e quase chegando ao foyer. Ela agarrou-me no braço, quando
cheguei à entrada, atirando-me por cima dela e de volta aos tapetes. Minhas costas
bateram neles com um baque surdo, expulsando o ar de dentro de mim. Senti os
pés dela correndo atrás de mim. A adrenalina aumentou. Ainda sem conseguir
respirar, rebolei até chegar à parede. Ela estava mesmo atrás de mim, aterrando à
minha frente e prendendo-me ali.

Com os olhos brilhantes, inclinou-se sobre mim.

— Edden é um homem sábio — disse ela, entre golfadas de ar, uma


madeixa de cabelo que fugira do seu rabo-de-cavalo fazia cócegas no meu rosto. A
transpiração umedecia seu rosto. — Devia dar ouvidos e deixar Trent em paz.

— Et tu, Brute? — silvei. Gemendo, ergui o joelho em direção à virilha dela.

Ela pressentiu o golpe e deixou-se cair para trás. Eu sabia que era muito
rápida para permitir que o golpe lhe acertasse, mas fez com que saísse de cima de
mim e era o que eu queria.

Ivy recuou os habituais dois metros e meio e esperou que eu me levantasse.


Mas o fiz mais devagar dessa vez. Esfreguei o ombro, enquanto olhava para ela,
evitando olhá-la nos olhos para que ela soubesse que eu não estava pronta.

— Nada mau — admitiu. — Mas não continuou. O Sr. Grande Feio e Mau
não se vai afastar e esperar que retome o equilíbrio e você deve fazer o mesmo.

Dei a ela um olhar cansado pelo meio dos meus cabelos ruivos ondulados.
Tentar acompanhá-la já era difícil, quanto mais superá-la. Até então nunca tivera
de pensar em tentar vencer um vampiro, já que a SI não mandava bruxas para
pegá-los. E, com todos os seus defeitos, a SI cuidava dos seus, no trabalho e fora
dele. A menos que nos quisessem mortos.

— O que é que vai fazer? — perguntou, enquanto eu tateava as minhas


costelas através da camisola.
181

— Em relação ao Trent? — disse, sem fôlego. — Falar com ele sem que
Edden e Glenn saibam.

O movimento balanceado de Ivy cessou. Com um grito de aviso, saltou.

O instinto e a prática salvaram-me, fazendo com que me abaixasse. Ela


girou num círculo apertado e eu saltei para fora do caminho. Ivy desferiu uma
série de golpes que me obrigaram a recuar até à parede. A voz dela ecoou nas
paredes vazias do santuário, enchendo-o com o som.

Chocada com sua ferocidade súbita, impulsionei-me para longe da parede e


contra-ataquei, usando todos os truques que ela tinha ensinado. Fiquei furiosa
com o fato de ela nem sequer estar tentando. Com a sua velocidade e força de
vampiro, eu era um boneco de treino em movimento.

Meus olhos abriram-se mais quando o rosto de Ivy se tornou selvagem. Ela
ia mostrar algo novo. Maravilha. Ela gritou e girou. Eu me mantive imóvel
tolamente, enquanto o pé dela me acertava no peito, lançando-me contra a parede
da igreja.

Senti o ar a fugir e a dor esmagou meus pulmões. Ela afastou-se veloz, me


deixando arquejar. Fitando o chão, vi os raios de Sol verdes e dourados brilhando,
enquanto as janelas de vitral de ambos os lados recebiam o calor. Ainda sem
respirar, ergui os olhos e vi Ivy saltar para longe. Seu passo lento e trocista me
irritou. A raiva dentro de mim ardeu, dando-me força. Mesmo sem ter recuperado o
fôlego, ataquei.

I v y g r i to u d e s u r p r e s a q u a n d o a te r r e i s o b r e s u a s c o s t a s . S o r r i n d o
selvagemente, envolvi sua cintura com as pernas. Agarrei numa mão cheia dos
seus cabelos e puxei a cabeça sua para trás, deslizando um braço ao redor da
garganta para estrangulá-la.

Arquejando, recuou. Larguei-a, sabendo que ia me atirar contra a parede


mais uma vez. Deixei-me cair ao chão e ela tropeçou por cima de mim. Ivy caiu.
Saltei sobre ela, voltando a agarrá-la pelo pescoço. Ela recuou contra a parede,
contorcendo o corpo num ângulo impossível, fazendo com que a largasse.

Com o coração acelerado, girei ficando de pé e descobrindo Ivy a dois


metros e meio de distância... À espera. A alegria que sentia por tê-la surpreendido
desapareceu quando compreendi que algo tinha mudado. Ela saltava de um pé
182

para o outro com uma graciosidade irritante e fluida — o primeiro sinal de que seu
lado vampiro começava levar a melhor.

Endireitei-me de imediato e agitei os braços em sinal de rendição.

— Acabamos — arquejei. — Tenho de me limpar. Acabei. Preciso fazer


meus trabalhos de casa.

Mas, em vez de recuar como fazia sempre, ela começou a rodear-me.

Seus movimentos eram langorosamente lentos e os seus olhos estavam fixos


nos meus. Meu coração acelerou e girei para não perdê-la de vista. A tensão
percorreu-me, apertando meus músculos um a um. Ela parou, sob um raio de Sol,
a luz brilhando sobre o seu body preto de corpo inteiro, como se fosse óleo. O
cabelo estava solto, o elástico preto caído entre nós, no local onde eu lhe arrancara,
acidentalmente.

— Esse é seu problema, Rachel — disse ela, a voz suave ecoando no


santuário. — Desiste sempre que as coisas começam a ficar boas. É uma chata. Não
é nada mais que uma chata.

— Desculpe? — perguntei, sentindo o estômago apertado. Sabia exatamente o


que ela queria dizer e isso me assustava como tudo.

Seu rosto tornou-se mais sério. Avisada, preparei-me para o embate quando
ela saltou. Bloqueei seus punhos, afastando-a com um pé dirigido aos seus joelhos.

— Para com isso, Ivy! — gritei quando ela saltou para fora do meu alcance.
— Eu disse que já acabei!

— Não, não acabou — a voz cinzenta desceu sobre mim como seda. —
Estou tentando salvar tua vida, bruxinha. Um vampiro grande e mau não vai
parar porque você pediu. Vai continuar avançando até conseguir aquilo que quer
ou até que o afaste. Vou salvar tua vida, de uma forma ou de outra. Vai agradecer-
me quando tudo estiver terminado.

Lançou-se para frente. Agarrando-me por um braço, torceu-o tentando me


obrigar a cair no chão. Arquejei e pontapeei as pernas dela, fazendo-a perder o
equilíbrio. Caímos as duas no chão e minha respiração faltou, de repente. Em
pânico, empurrei-a e rebolei até ficar de pé.
183

Descobri Ivy à espera, afastada de mim nos habituais dois metros e meio,
rondando. Um calor sutil impregnara seus movimentos. De cabeça baixa, fitava-
me através do cabelo. Tinha os lábios entreabertos e eu quase conseguia ver a
respiração dela atravessá-los. Recuei. Meu medo cresceu quando o anel castanho
dos seus olhos se tornou completamente preto. Maldição.

Engolindo em seco, passei uma mão sobre mim mesma, tentando limpar o
suor dela de cima de mim. Sabia que não devia tê-la atacado. Tinha de tirar o
cheiro dela de cima de mim e depressa. Meus dedos tocaram a cicatriz que o
demônio me deixara no pescoço e fiquei sem fôlego. Estava latejando, devido aos
feromônios que ela estava lançando no ar. Dupla maldição.

— Para, Ivy! — disse, praguejando contra o tremor que se infiltrara em


minha voz. — Acabamos.

Sabendo que minha vida dependia do que acontecesse nos próximos


segundos, virei de costas numa falsa demonstração de confiança. Ou conseguia
chegar ao meu quarto e às suas duas trancas, ou não conseguia.

Os pêlos na parte de trás do meu pescoço eriçaram-se quando passei por


ela. Com o coração acelerado, segurei a respiração. Ela não fez nada enquanto me
aproximava do corredor e deixei que o ar se escapasse dos meus pulmões.

— Não, não acabamos — sussurrou ela.

O som do ar em movimento fez-me girar.

Ela atacou em silêncio, os olhos perdidos no negrume. Bloqueei os seus


golpes por instinto. Ela nem sequer estava se esforçando. Ivy agarrou-me um
braço e gritei de dor, enquanto ela me fazia girar puxando minhas costas contra
ela. Inclinei-me para frente como se estivesse tentando escapar. Quando os braços
dela se apertaram à minha volta e o corpo se inclinou para encontrar o ponto de
equilíbrio, atirei a cabeça para trás, contra o queixo dela.

Gemendo, largou-me e cambaleou para trás. A adrenalina correu através de


mim. Ela estava entre mim e os meus feitiços. Mesmo que corresse para a porta,
nunca conseguiria chegar lá. Para a Viragem com aquilo, eu não devia ter atacado.
Não devia ter me tornado agressiva. Ela era impulsionada pelo instinto e eu fui
longe de mais.
184

Deixei-me ficar de pé imóvel observando-a, enquanto ela parava sob um


raio de Sol. De lado para mim, inclinou a cabeça e tocou no canto da boca. Senti o
estômago apertado quando a ponta do dedo dela se mostrou vermelha de sangue.
Seu olhar cruzou-se com o meu, enquanto ela esfregava o sangue entre os dois
dedos e sorria. Tremi ao ver os seus caninos afiados.

— Primeiro sangue, Rachel?

— Ivy, não! — gritei, quando ela atacou.

Ela apanhou-me antes que conseguisse me mexer. Agarrando-me pelo


ombro, atirou-me para frente da igreja. Bati contra a parede — no local onde antes
se erguera o altar — deslizando para o chão. Lutei para recuperar o fôlego,
enquanto ela avançava para mim lentamente. Tudo me doía. Seus olhos eram
fossos negros. Os movimentos dela eram suaves, carregados de poder. Tentei
rebolar para longe. Ela apanhou-me, puxando-me para cima.

— Vamos, bruxa — disse ela, suavemente, a voz negra coberta de penas de


coruja, em forte contraste com a forma dolorosa como me agarrava o ombro. —
Ensinei você. Nem sequer está tentando.

— Não quero te machucar — arquejei, um braço envolvendo meu tronco.

E l a s e gu r o u - m e c on t r a a pa r e d e , s o b a s o m b ra da c ru z há mu i t o
desaparecida. O sangue do lábio dela parecia uma joia vermelha presa no canto da
boca.

— Não pode — sussurrou.

Com o coração esmagando meu peito, contorci-me sem sucesso para tentar
escapar.

— Larga, Ivy — arquejei. — Você não quer fazer isso — um enjoativo cheiro
de incenso invocou a memória da vez em que ela me prendera contra a cadeira, na
primavera anterior. — Se fizer isso — disse eu, histérica —, vou embora. Vai ficar
sozinha.

Ela aproximou-se ainda mais, encostando o antebraço livre à parede ao lado


da minha cabeça.

— Se eu fizer isso, não irá embora — abriu um sorriso excitado, revelando


um pouco dos seus dentes e encostou-se ainda mais em mim. — Mas pode escapar
185

se desejar de verdade. O que acha que tenho estado te ensinando ao longo dos
últimos três meses? Quer escapar... Rachel?

O pânico instalou-se profundamente dentro de mim. Meu coração batia


loucamente e Ivy inspirou, de forma súbita, como se eu tivesse dado um estalo. O
medo era um afrodisíaco e eu acabara de lhe dar uma dose. Perdida na escuridão
dos seus instintos e dos seus desejos, os músculos dela ficaram tensos como cabos
de sustentação.

— Quer escapar, bruxinha? — murmurou ela, seu hálito contra a minha


cicatriz do demônio lançou uma onda de arrepios através de mim.

O ar que inspirei foi até o centro de mim, parecendo transformar meu


sangue em metal líquido que se transportava pela pulsação através de mim.

— Sai — arquejei, a sensação deliciosa jorrando do meu pescoço e


enchendo-me.

Era minha cicatriz. Ela estava brincando com a cicatriz do demônio, tal
como Piscary fizera. Lambeu os lábios.

— Me briga — ela hesitou, a fome pura e dura, transformando-se em algo


mais brincalhão e insidioso. — Diz que não gosta quando faço isso.

Com a respiração saindo de seu corpo num suspiro, Ivy observou meus
olhos, enquanto os seus dedos traçavam um rastro da minha orelha, através do
meu pescoço e ao longo da clavícula.

Quase desabei perante a sensação da sua unha sobre os pequenos altos de


tecido cicatrizado, estimulando a cicatriz até esta atingir a máxima força. Fechei os
olhos ao recordar que o demônio assumira o rosto de Ivy quando me rasgou a
ga rga nt a, enc hend o- me co m um co ck tai l de neu ro tr ans mi sso re s que
transformavam a dor em prazer.

— Sim — sussurrei, quase gemendo. — Deus me ajude. Por favor... Pára!

O corpo dela mudou de posição contra o meu.

— Eu conheço a sensação — disse ela. — A fome que se ergue dele para te


encher o corpo, o desejo que inspira até que o único pensamento que arde em você é
tocar no objeto do seu desejo e saciá-lo.
186

— Ivy? — choraminguei. — Para. Não posso. Não quero.

Meus olhos abriram-se perante o seu silêncio. A gota de sangue no canto


dos seus lábios tinha desaparecido. Podia sentir o sangue pulsando através de
mim. Sabia que minhas reações estavam ligadas à cicatriz do demônio, que ela
estava lançando feromônios para voltar a estimular a saliva pseudovampírica que
permanecia em mim para transformar a dor em prazer. Sabia que era uma das
adaptações de sobrevivência que os vampiros usavam para ligar as pessoas a eles,
garantindo que gozariam de um fornecedor de sangue disposto a tudo. Sabia tudo
aquilo, mas estava tonando-se mais difícil recordar. Mais difícil querer saber. Não
era sexual. Era um desejo. Uma fome. Um calor.

I v y e n c o s to u a te s t a à p a r e d e , a o l a d o d a m i n h a c a b e ç a , c o m o s e
recuperasse a determinação. O cabelo era uma cortina de seda entre nós. Senti o
calor que emanava dela, através do body de corpo inteiro. Não conseguia me
mexer, tensa de medo e desejo, perguntando-me se ela me tomaria ou se eu teria
força de vontade suficiente para afastá-la.

— Não sabe como tem sido viver ao seu lado, Rachel — disse ela, o
sussurro vindo de detrás do seu cabelo como se atravessasse a parede de um
confessionário. — Sabia que ficaria assustada se soubesse o quão vulnerável te
torna a cicatriz. Foi marcada para o prazer e, a menos que tenha um vampiro que
te reclame e proteja, todos se aproveitarão dela tomando o que quiserem e
passando-te para o seguinte até não ser mais que um fantoche que implora que o
sangrem. Esperava que fosse capaz de dizer não. Esperava que, se te ensinasse o
suficiente, fosse capaz de afastar-se de um vampiro esfomeado. Mas não consegue,
querida. As neurotoxinas entranharam-se demais. A culpa não é sua. Lamento...

Respirava, agora, em curtos arquejos, cada um deles lançando através de


mim uma promessa de prazer futuro, recuando depois para renovar o que se
preparava, sobrepondo-se aos que o tinham precedido. Sustentei a respiração,
tentando encontrar força de vontade para dizer que me largasse. Oh, Deus, eu
estava fraquejando.

A voz de Ivy tornou-se doce, persuasiva.

— Piscary disse que essa era a única maneira de ficar com você. De te
manter viva. Serei gentil, Rachel. Não pediria nada que não estivesse disposta a
dar. Não seria como um desses espetros patéticos que vimos no Piscary's, mas
forte e igual. Ele mostrou-me, quando te enfeitiçou, que não seria doloroso — a
187

voz dela tornou-se macia como a de uma garotinha. — O demônio já te domou. A


dor terminou. Nunca mais voltará a doer. Ele disse que responderia e, por Deus,
Rachel, respondeu. É como se tivesse sido domada por um mestre. E é minha.

O medo correu através de mim, perante o tom duro e possessivo. Ela virou
a cabeça, o cabelo caindo para trás e revelando seu rosto, seus olhos negros com
uma fome antiga, perfeita na sua inocência.

— Vi o que te aconteceu sob o controle do Piscary; o que sentiu não foi mais
do que um dedo tocando tua pele.

Eu estava muito assustada e elevada pelas ondas de sensações que se


espalhavam do meu pescoço ao ritmo da minha pulsação, para me mexer.

— Imagina — sussurrou ela —, a sensação que te trará quando não for o teu
dedo, mas os meus dentes cortando através de ti, limpos e puros.

A ideia lançou uma onda de calor através de mim. Fiquei mole sob o seu
abraço, meu corpo revoltando-se contra os meus pensamentos lamurientos.
Lágrimas escorreram pelo meu rosto, quentes e caindo sobre a minha clavícula.
Não conseguia perceber se, se tratava de lágrimas de medo ou desejo.

— Não chore, Rachel — disse ela, inclinando a cabeça para tocar meu
pescoço com os lábios, ao ritmo das suas palavras. Quase desmaiei com a força do
desejo. — Também não queria que fosse assim. Mas, por você — sussurrou ela —,
quebrarei meu jejum.

Os dentes dela tocaram-me o pescoço, provocadores. Ouvi um suave


gemido, chocada ao constatar que vinha de mim. Meu corpo desejava-o, mas
minha alma gritava não. Os rostos ansiosos e moles que vira no Piscary's
voltaram-me à memória. Sonhos perdidos. Vidas desperdiçadas. Existências
voltadas ao serviço das necessidades de outra pessoa. Tentei afastá-la, mas não fui
capaz. Minha força de vontade era uma fita de algodão-doce, quebrando-se ao
menor toque.

— Ivy — protestei, ouvindo o meu próprio suspiro. — Espera.

Não conseguia dizer não. Mas conseguia dizer espera.

Ela ouviu, afastando-se para olhar para mim. Ivy estava perdida num
nevoeiro de antecipação e êxtase. Um terror entorpecido atravessou-me
repentinamente.
188

— Não — disse, arquejando enquanto lutava contra o prazer induzido


pelos feromônios. Eu dissera-o. De alguma forma, conseguira dizê-lo.

Espanto e dor atravessaram o rosto dela, um sopro de consciência


regressando aos olhos negros.

— Não? — ela parecia uma criança magoada.

Meus olhos fecharam-se nas ondas de êxtase que fluíam do meu pescoço,
enquanto as unhas dela continuavam a percorrer minhas cicatrizes, no local que os
seus lábios tinham abandonado.

— Não... — consegui dizer, sentindo-me surreal e desconectada, enquanto


tentava debilmente afastá-la de mim. Não.

Meus olhos abriram-se, quando ela apertou meu ombro com mais força.

— Acho que não é isso que quer dizer — rosnou.

— Ivy! — guinchei, quando me puxou contra ela.

A adrenalina ardeu nas minhas veias. A dor seguiu-a, castigando minha


provocação. Aterrorizada, encontrei a força para afastá-la do meu pescoço. Ela
puxou-me com um poder cada vez maior. Os lábios afastaram-se dos dentes. Os
meus músculos começaram a tremer. Lentamente, ela puxou-me para mais perto.
A alma desapareceu de seus olhos. Sua fome brilhava como um deus. Meus braços
tremiam, prestes a desistirem.

Deus me ajude — pensei, desesperada, os olhos fixos na cruz incorporada no


teto. Ivy me abanou quando um bong metálico reverberou através do ar.

Ficou rígida. O desejo nela tremeluziu. As sobrancelhas ergueram-se em


sinal de admiração e a sua concentração falhou. Sustendo a respiração, senti que
me largava. Com os dedos deslizando de mim, ela caiu aos meus pés, com um
suspiro.

Atrás dela erguia-se Nick com o meu maior caldeirão de cobre para feitiços.

— Nick — sussurrei, as lágrimas embaçando minha visão. Inspirei e estendi


um braço na sua direção, desmaiando quando ele tocou minha mão.
189

Capitulo 13
Estava quente e abafado. Podia sentir o cheiro de café frio... Starbucks: dois
torrões de açúcar, sem natas. Abri os olhos e descobri um aglomerado fibroso de
cabelos vermelhos bloqueando-me a visão. Sentindo o braço dolorido, afastei-o do
caminho. Havia silêncio, só o som abafado do trânsito e o familiar zumbido do
relógio de Nick quebravam a quietude. Não fiquei surpreendida por me descobrir
no quarto dele, segura no lado da cama que ocupava ocasionalmente — de frente
tanto para a janela como para a porta. O guarda-roupa de Nick, sem maçaneta,
nunca me pareceu tão bom.

A luz que entrava através das cortinas era tênue. Calculei que estivéssemos
perto do pôr-do-sol. Um olhar de relance ao relógio revelou que eram 5:35 pm. Eu
sabia que ele estava certo. Nick adorava gadjets e o relógio recebia um sinal do
Colorado todos os dias à meia-noite, para acertá-lo pelo relógio atômico aí
existente. O mesmo ocorria com o relógio de pulso. Por que alguém precisava
estar assim tão certo, era algo que me deixava curiosa. Eu nem sequer usava
relógio de pulso.

A m a n ta d o u r a d a e a z u l q u e a m ã e d e N i c k f i z e r a p a r a e l e e s t a v a
aconchegada debaixo do meu queixo, libertando um suave cheiro de sabão branco.
O que reconheci ser um amuleto contra as dores estava pousado na mesa de
cabeceira, logo ao lado da pequena agulha. Nick pensava em tudo. Se ele o
pudesse invocar, teria feito.

Sentei-me procurando por ele, sabendo, pelo cheiro de café, que ele devia
estar por perto. A manta caiu rodeando-me quando pousei os pés no chão. Com os
músculos em protesto, levei a mão ao amuleto. Doíam-me as costelas e sentia as
costas doloridas. De cabeça curvada, piquei o dedo para obter as três gotas de
sangue que invocariam o amuleto. Mesmo antes de passar o fio pela cabeça, senti-
me relaxar num alívio imediato. Estava com os músculos doloridos e repleta de
manchas negras, mas nada que não sarasse.
190

Semicerrei os olhos na obscuridade artificial. Um copo de café abandonado


atraiu meu olhar para um monte de roupas em cima da cadeira. Este se movia a
um ritmo suave, revelando tratar-se de Nick dormindo com as pernas compridas
estendidas à sua frente. Tinha os pés calçados com umas meias — já que não
permitia que andasse de sapatos sobre o tapete — e os pés grandes arrancaram-me
um sorriso.

Sentei-me satisfeita em não fazer nada, no momento. O dia de Nick


começava seis horas antes do meu e a barba que começava a despontar lançava
sombras sobre o rosto comprido e inexpressivo no seu sono. O queixo descansava
contra o peito, o cabelo curto e negro caía para frente escondendo seus olhos. Eles
se abriram quando uma parte primitiva do seu ser, sentiu meu olhar sobre ele.
Meu sorriso cresceu quando ele se espreguiçou na cadeira, deixando escapar um
bocejo.

— Olá, Ray-Ray — disse ele e a sua voz rodeou-me como uma poça de água
quente ao redor dos meus tornozelos. — Como está?

— Estou bem.

E s t a v a e n v e r g o n h a d a p o r e l e te r t e s te m u n h a d o o q u e a c o n t e c e r
a,
envergonhada por ele me ter salvado e, francamente feliz por ele lá estar para
ambos.

Ele veio sentar-se ao meu lado, seu peso fazendo-me deslizar. Expirei, num
som aliviado e satisfeito quando caí contra ele. Envolveu-me com um braço e
abraçou-me de lado. Pousei a cabeça no ombro dele, inspirando profundamente o
cheiro de livros antigos e enxofre. Lentamente, o bater do meu coração tornou-se
óbvio, enquanto eu me sentava sem fazer nada, ganhando coragem simplesmente
com a sua presença.

— Te m ce r t e z a q u e e st á b e m ? — p e r g u n t o u e l e , a m ã o e n t e r r a d a
profundamente no meu cabelo, enquanto me abraçava.

Afastei-me para olhar para ele.

— Sim. Obrigada. Onde está Ivy? — ele não disse nada e o meu rosto ficou
flácido, em alarme. — Ela não te machucou, não?

A mão dele desceu do meu cabelo.

— Ela está no chão onde a deixei.


191

— Nick! — protestei, afastando-me dele para me poder sentar direita. —


Como é que pôde deixá-la ali? — levantei-me, procurando pela minha bolsa e
compreendendo que ele não a trouxera. Também continuava descalça. — Me leva
para casa — disse, sabendo que o ônibus não pararia para mim.

Nick levantara-se ao mesmo tempo em que eu, o rosto assumindo uma


expressão de alarme e os olhos baixos.

— Merda — disse ele num sussurro. — Desculpa. Pensei que tinha dito não.
— o olhar dele caiu sobre o meu e afastou-se, o rosto comprido em sofrimento,
decepcionado e vermelho de vergonha. — Oh, merda, merda, merda —
murmurou. — Lamento muito. Sim. Sim, vamos. Eu te levo à sua casa. Talvez ela
ainda não tenha acordado. Lamento muito, sério. Pensei que tinha dito não. Oh,
Deus! Não devia ter interferido. Pensei que tinha dito não!

Ele estava encurvado, sentindo-se desconfortável e confuso; estendi um


braço e puxei-o para mim, antes que ele pudesse sair do quarto.

— Nick? — disse, quando ele parou de repente. — Eu disse não.

Os olhos de Nick abriram-se ainda mais. Os lábios afastaram-se e ele ficou


estático, parecendo incapaz até de pestanejar.

— Mas... Queres voltar?

Sentei-me na cama e olhei para ele.

— Bem, sim. Ela é minha amiga — fiz um gesto incrédulo. — Não consigo
acreditar que a tenha deixado ali deitada!

Nick hesitou, a confusão visível nos seus olhos semicerrados.

— Mas eu vi o que ela tentou fazer — disse ele. — Ela quase te mordeu e
você quer voltar?

Meus ombros abateram-se e baixei o olhar para o feio tapete amarelo


coberto de manchas.

— A culpa foi minha — disse, baixinho. — Estávamos lutando e eu estava


zangada — ergui os olhos. — Não com ela. Com Edden. Depois ela começou a
ficar convencida e isso me irritou, por isso ataquei-a, apanhando-a desprevenida...
192

Aterrissei nas costas dela, puxei a cabeça para trás pelos cabelos e respirei em seu
pescoço.

Com os lábios apertados, Nick abaixou-se para se sentar na ponta da


cadeira e apoiou os cotovelos nos joelhos.

— Deixa eu ver se entendi bem. Decidiu lutar com ela, estando zangada.
Esperou até ambas se encontrarem emocionalmente carregada e depois a atacou?
— exalou audivelmente, pelo nariz. — Tem certeza que não queria que ela te
mordesse?

Fiz uma careta.

— Eu disse que a culpa não era dela.

Não querendo discutir, levantei-me e afastei os braços para arranjar lugar


no colo dele. Ele emitiu um ruído surpreendido, depois me envolveu com os
braços, enquanto eu me sentava. Enfiei a cabeça entre o rosto e o ombro dele,
inspirando seu cheiro masculino. A memória da euforia induzida pela saliva de
vampiro tremeluziu através de mim e desapareceu. Eu não queria que ela me
mordesse — não queria —, mas um pensamento irritante não desaparecia: o fato
de um lado de mim, mais básico e movido pelo prazer, ter querido. Eu já devia
saber. A culpa não era dela. E, assim que conseguisse me convencer disso e sair do
colo de Nick, ia telefonar e dizer o mesmo.

Aninhei-me e fiquei ouvindo o som do trânsito, enquanto Nick passava a


mão pela minha cabeça. Ele parecia imensamente aliviado.

— Nick? — perguntei. — O que teria feito se eu não tivesse dito não?

Ele inspirou, lentamente.

— Tinha colocado o caldeirão para feitiços na porta e teria ido embora —


disse ele.

Endireitei-me e ele gemeu quando o peso do meu corpo mudou de posição


contra ele.

— Teria deixado que ela me rasgasse a garganta? — ele recusava-se a olhar-


me nos olhos.
193

— Ivy não teria sugado todo o sangue e a deixado como morta — disse ele,
com relutância. — Mesmo no frenesi em que a deixou. Ouvi o que ela te ofereceu.
Não se tratava de um caso passageiro. Era um compromisso para toda a vida.

A cicatriz que o demônio me fizera titilou com as suas palavras e,


assustada, afastei a sensação.

— Quanto tempo esteve ali? — perguntei, gelando ao pensar que o


pesadelo poderia ser muito maior do que o simples fato de Ivy ter perdido o
controle.

Ele abraçou-me com mais força, ainda que seus olhos não se voltassem para
os meus.

— Tempo suficiente para ouvi-la perguntar se queria ser o delfim dela. Não
ia atravessar seu caminho, se fosse algo que você quisesse.

Fiquei de boca aberta e recolhi o braço que o envolvia.

— Teria ido embora e deixado que ela me transformasse num brinquedo?

Um surto de raiva brilhou nos seus olhos castanhos.

— Um delfim, Rachel. Não uma sombra ou um brinquedo, nem mesmo um


servo. Há um mundo de diferença.

— Teria ido embora?! — exclamei, não querendo sair do seu colo com medo
que o orgulho me fizesse deixar o seu apartamento. — Não teria feito nada?

Ele cerrou o maxilar, mas não fez qualquer tentativa de me lançar ao chão.

— Não sou eu quem vive numa igreja com um vampiro! — disse ele. —
Não sei o que quer. Só posso agir com base no que me diz e no que vejo. Vive com
ela. Namora comigo. É suposto eu pensar o quê?

Eu não disse nada e ele acrescentou num tom mais suave:

— O que Ivy deseja não é errado ou inusitado, é um fato frio e assustador.


Ela vai precisar de um delfim de confiança dentro de uns quarenta anos, mais ou
menos e, ela gosta de você. Para dizer a verdade, é uma oferta e tanto. Mas é
melhor que decida o que quer fazer antes que o tempo e os feromônios de vampiro
decidam por você — a voz dele tomou-se hesitante, relutante. — Não seria um
194

brinquedo. Não com Ivy. E ficaria em segurança com ela, intocável por
praticamente todas as coisas más que existem em Cincinnati.

Com o olhar distante, meus pensamentos iluminaram pequenas instâncias


aparentemente não relacionadas de fricção entre Ivy e Nick, vendo-as sob uma
nova luz.

— Ela tem estado me caçando durante todo este tempo — sussurrei,


sentindo os primeiros sinais de um medo verdadeiro.

As rugas ao redor dos olhos de Nick acentuaram-se.

— Não. Não é só sangue o que ela quer, embora a troca faça parte. Mas
tenho de ser sincero. Vocês complementam-se como nunca vi um vampiro e seu
delfim complementarem-se — uma centelha de emoção desconhecida ocupou e
desapareceu dos seus olhos. — É uma oportunidade de grandeza, se estiver
disposta a desistir dos seus sonhos e a unir-se aos dela. Ficaria sempre em
segundo lugar. Mas estaria em segundo lugar em relação a um vampiro destinado
a dominar Cincinnati — a mão de Nick parou de se mover sobre o meu cabelo. —
Se cometi um erro — disse ele, com cuidado, sem olhar para mim —, e quiser ser o
delfim dela, então ótimo. Levo você, bem como a sua escova de dente para casa e
afasto-me, deixando-lhes terminar aquilo que interrompi — a mão dele recomeçou
a mover-se. — Meu único arrependimento será o fato de não ter sido o suficiente
para te atrair para longe dela.

Meus olhos percorreram as peças de mobiliário descoordenadas de Nick,


ouvindo o som do trânsito no exterior do apartamento. Era tão diferente da igreja
de Ivy — com os seus vastos espaços abertos, onde era possível respirar. Tudo o
que eu queria era ser sua amiga. Ela precisava desesperadamente de uma, infeliz
consigo mesma e desejando ser algo mais, algo limpo e puro, algo intacto e sem
mácula. Ela estava esforçando-se tanto para fugir da sua existência vampírica e eu
sabia que ela acalentava a esperança de que um dia eu pudesse encontrar um
feitiço que a ajudasse. Eu não podia partir e destruir a única coisa que a fazia
continuar. Deus me ajudasse, se estava sendo uma tola, mas eu admirava sua
inabalável determinação e crença em que, um dia, encontraria aquilo que estava à
procura.

Apesar da potencial ameaça que ela representava, suas exigências idiotas de


organização e a sua estrita adesão à estrutura, era a primeira pessoa com quem eu
v i v i a e q u e n a d a d i z i a d o s m e u s e s q u e c i m e n to s c o m o : a c a b a r a á g u a d o
195

reservatório ou esquecer-me de desligar o aquecedor antes de abrir as janelas.


Tinha perdido muitos amigos por causa de discussões mesquinhas como essas.
Não queria continuar sozinha. O mais assustador era o fato de Nick ter razão.
Funcionávamos bem juntas.

E, agora, eu tinha um novo medo. Não tinha percebido a ameaça que


representava a cicatriz de vampiro até ela ter me revelado. Marcada para o prazer e
não reclamada. Passada de um vampiro para o outro até implorar ser sangrada.
Recordando as ondas de euforia e a dificuldade que sentira em dizer não,
compreendi o quão facilmente a previsão de Ivy podia se tornar realidade. Embora
ela não tivesse me mordido, tinha certeza de que constava que eu já tinha sido
reclamada e que todos deviam se afastar. Maldição. Como é que eu chegara àquele
ponto?

— Quer que te leve de volta? — sussurrou Nick, puxando-me para ele.

Mudei o ombro de posição, para me moldar a ele. Se eu fosse esperta,


pediria ajuda para tirar minhas coisas da igreja nessa mesma noite, mas o que saiu
da minha boca foi um débil: — Ainda não. Mas vou telefonar para ter certeza de
que está bem. Não vou ser o delfim dela, mas não posso deixá-la sozinha. Disse não
e acho que ela vai respeitar isso.

— E se não respeitar?

Aconcheguei-me ainda mais.

— Não sei... Talvez ponha um sininho em seu pescoço.

Ele deu uma gargalhada, mas me pareceu ouvir nela uma pitada de dor.
Senti que o divertimento dele desaparecia. O peito dele fazia com que a minha
cabeça se movesse quando respirava. O que aconteceu me marcou mais do que eu
queria admitir.

— Já não está sob uma ameaça de morte — sussurrou. — Por que não vai
embora?

Eu não me mexi, escutando as batidas do seu coração.

— Não tenho dinheiro para isso — protestei suavemente. — Já falamos


disso antes.

— Eu disse que podia vir morar comigo.


196

Sorri, embora ele não conseguisse ver, sentindo meu rosto a roçar na camisa
de algodão dele. O apartamento era pequeno, mas não foi por isso que limitei
meus pernoites aos fins de semana. Ele tinha sua própria vida e eu atravessaria
seu caminho, caso ele tivesse de me aturar em doses maiores.

— Não duraria mais de uma semana e passaríamos a nos odiar — disse,


sabendo, por experiência própria, que era verdade. — Além disso, sou a única
coisa que a impede de voltar a ser uma vampira praticante.

— Deixa-a ser. Ela é uma vampira.

Suspirei, não conseguindo encontrar forças para me zangar.

— Ela não quer ser. Vou ser mais cuidadosa. Vou ficar bem — apliquei um
tom confiante e persuasivo à minha voz, mas fiquei pensando se estava tentando
convencer a ele ou a mim.

— Rachel... — sussurrou Nick, sua respiração agitando o ar sobre a minha


cabeça. Esperei, quase sendo capaz de ouvir se estava tentando decidir se deveria
dizer mais alguma coisa. — Quanto mais tempo ficar — disse, com relutância —,
mais difícil será resistir à euforia induzida pelos vampiros. O demônio que te
atacou na primavera passada, injetou em você mais saliva de vampiro do que um
mestre vampiro. Se as bruxas pudessem ser transformadas, já teria sido. No ponto
em que estamos, creio que Ivy conseguiria te enfeitiçar apenas por dizer teu nome.
E ela ainda nem sequer está morta. Está fazendo racionalizações inseguras para
ficar numa situação insegura. Se acha que um dia vai querer partir, deve sair já.
Acredite em mim, eu sei bem como funciona uma cicatriz de vampiro quando o
desejo se instala. Eu sei qual a profundidade da mentira e qual a força da atração.

Endireitei-me, cobrindo o pescoço com a mão.

— Sabe?

Seus tornaram-se ingênuos.

— Andei no liceu em Hollows. Não acha que consegui passar por isso sem
ser mordido pelo menos uma vez, não é?

Minha sobrancelha ergueu-se perante sua expressão quase culpada.

— Tem uma mordida de vampiro? Onde?


197

Os olhos dele recusavam-se a encontrar os meus.

— Foi uma paixonite de verão. E ela não estava morta, por isso não contraí
o vírus do vampirismo. Não foi usada muita saliva, por isso a cicatriz mantém-se
bastante calma, a menos que eu esteja numa situação em que tenham sido libertos
muitos feromônios vampíricos. É uma armadilha. Sabe disso, não sabe?

Voltei a encostar-me nele, acenando. Nick estava seguro. Sua cicatriz era
antiga e feita por uma vampira viva acabada de sair da adolescência. A minha era
nova e de tal forma repleta de neurotoxinas que Piscary podia acionar apenas com
o peso dos seus olhos. Nick ficou imóvel e eu perguntei-me se sua cicatriz tinha
despertado quando ele entrou na igreja. Isso poderia explicar o fato de não ter
feito nada e ter se limitado a olhar. Quão bem funciona a cicatriz dele? — perguntei-
me, incapaz de o culpar por isso.

— Onde é? — perguntei, lentamente. — A cicatriz de vampiro?

Nick puxou-me mais para cima no seu colo.

— Esquece isso... Bruxa — disse, em tom brincalhão.

Fiquei de súbito consciente do corpo dele a pressionar o meu, os braços


envolvendo-me para me impedir de cair. Olhei de relance para o relógio. Tinha de ir
à casa da minha mãe, buscar meus antigos artigos das linhas Ley antes de poder
fazer os trabalhos de casa. Se não os fizesse esta noite, não os conseguiria fazer.
Meu olhar regressou a Nick e ele sorriu. Ele sabia o porquê de eu estar olhando
para o relógio.

— É isso? — perguntei.

Mudando de posição no seu colo, puxei o colarinho da camisa para o lado,


revelando uma tênue cicatriz branca no ombro, provocada por um arranhão
profundo.

Ele sorriu.

— Não sei.

— Hum... — disse eu. — Aposto que sou capaz de perceber.

Enquanto ele cruzava os dedos para me segurar pelos quadris, eu abri o


botão de cima da camisa dele. O ângulo era estranho e eu mudei uma vez mais de
198

posição, para ficar sentada ao seu colo, com uma perna de cada lado. As mãos dele
deslizaram, para me segurar um pouco mais abaixo e, arqueando as sobrancelhas
perante a nossa nova posição, aproximei-me mais dele. Meus dedos deslizaram
para a parte de trás do pescoço dele; afastei o colarinho com o nariz e pousei os
lábios contra a cicatriz, deixando-a com um pop audível.

Nick inspirou ruidosamente, mexendo-se debaixo de mim e deslizando


para uma posição mais deitada, para que não tivesse que me impedir de cair.

— Não é isso — disse ele.

A mão dele viajou pelas minhas costas, deslizando ao longo da minha


coluna, parando quando descobriu a cintura das minhas calças de treino.

— Está bem — murmurei, enquanto os dedos dele puxavam pela bainha da


minha camisola. Enfiou a mão por baixo dela, os dedos dando-me arrepios sobre a
pele. — Sei que não é essa.

Dobrada sobre ele, deixei que o meu cabelo caísse sobre o peito, enquanto
passava a língua pela primeira e depois pela segunda cicatriz que lhe fizera
quando eu era um visom e pensava que ele era uma ratazana que estava tentando
me matar. Ele não disse nada e eu toquei, cuidadosamente, na cicatriz já com três
meses, com os dentes.

— Não — disse ele, a voz subitamente tensa. — Essa foi você que me fez.

— É verdade — murmurei, meus lábios tocando seu pescoço, enquanto


avançava resolutamente em direção à sua orelha com pequenos beijos repicados.
— Hum... — murmurei. — Parece que terei que investigar um pouco. Tem
consciência, Sr. Sparagmos, que sou uma profissional treinada no campo da
investigação?

Ele não disse nada, a mão livre provocando deliciosas sensações, enquanto
percorria a parte de baixo das minhas costas, testando-me. Afastei-me e as mãos
dele seguiram as curvas da minha cintura, por baixo da camisola, com uma
pressão crescente. Estava feliz por ser quase de noite. Estava tudo tão calmo e
quente. Seu olhar brilhava em ansiosa antecipação e, inclinando-me para frente
para tocar seu rosto com a ponta dos meus cabelos, sussurrei:

— Fecha os olhos.
199

Todo o seu corpo se agitou quando ele suspirou, fazendo o que eu pedia. O
toque de Nick tornou-se mais insistente e eu pousei a cabeça na curva entre o
pescoço e o ombro dele. De olhos fechados, tateei em busca dos botões da camisa,
apreciando o crescer de expectativa, enquanto cada um deles cedia. Lutei com o
último, puxando a camisa de dentro das calças jeans. As mãos dele largaram-me e
ele contorceu-se para soltar a camisa. Inclinei a cabeça e mordi de leve o lóbulo da
orelha.

— Não se atreva a ajudar — sussurrei, o lóbulo da orelha ainda preso entre


os meus dentes. Tremi quando ele retomou o toque, as mãos quentes contra as
minhas costas. Todos os botões estavam desapertados e passei os meus lábios
pelas tênues cicatrizes que lhe cobriam as orelhas.

Com um movimento rápido, ergueu as mãos puxando o meu rosto para o


dele. Os seus lábios eram exigentes. Um som suave impedia-me de responder. Terá
sido ele ou eu? Não sei. Não quero saber. Uma mão estava enterrada no meu cabelo,
segurando-me contra os seus lábios e a sua língua explorava-me. Os seus
movimentos tornaram-se agressivos e eu empurrei-o de novo contra a cadeira,
apreciando seu toque rude. Bateu nas costas da cadeira com um baque surdo,
puxando-me com ele.

Os pelos da barba que despontava picavam-me e os seus lábios ainda


prendiam os meus, envolvendo-me com os braços, puxando-me para ele. Com um
gemido de esforço, ergueu-se, levando-me com ele. Minhas pernas envolveram
sua cintura, enquanto ele nos levava para a cama. Senti frio nos lábios quando ele
se afastou, pousando-me suavemente. Os braços dele deslizaram de mim,
enquanto se ajoelhava sobre o meu corpo.

Ergui os olhos para ele; ainda tinha a camisa vestida, mas esta estava aberta e
revelava os músculos secos que lhe cobriam o ventre que desaparecia sob a
cintura das calças. Eu tinha lançado um braço, com maestria, sobre a cabeça e
estiquei o outro, traçando uma linha descendente, ao longo do peito, acabando de
puxar as calças.

Braguilha de botões — pensei numa maré de impaciência. Deus me ajudasse.


Odiava braguilhas de botões. O sorriso sombrio hesitou e ele quase tremeu
quando eu desisti por um momento e contornei o seu corpo, traçando a curva das
suas costas, seguindo-a até onde me era possível. Não era o suficiente e puxei-o
para mim. Tombando para frente, Nick apoiou-se no antebraço. Deixei escapar um
suspiro quando consegui levar as mãos até onde queria.
200

Quente e com uma mistura deliciosa de pressão suave e pele áspera, Nick
enfiou a mão inquisitiva por baixo da minha camisa. Passei a mão pelos ombros
dele, sentindo seus músculos retesarem-se e relaxarem. Ele deslizou mais para
baixo e eu arquejei de surpresa quando ele me tocou com o nariz na barriga e, com
os dentes, procurou a bainha da minha camisola.

Minha respiração acelerou e um arquejo sussurrado de antecipação escapou


de mim, enquanto ele me erguia a camisola, as mãos empurrando contra a minha
cintura. Apressada, com uma necessidade súbita, afastei as mãos que lutavam
contra a braguilha de botões para ajudá-lo tirar a minha camisola. Esta raspou no
meu nariz ao passar, levando com ela o amuleto. Expirei num som de alívio. Os
dentes de Nick eram uma tentação provocante enquanto ele puxava pelo meu
apertado soutien esportivo. Tremi, arqueando as costas para encorajá-lo.

Ele enterrou o rosto na base do meu pescoço. A cicatriz que o demônio me


fizera — que ia da clavícula ao ouvido — emitiu uma afiada pulsação de sensações
e eu estanquei, preocupada e assustada. Ela nunca fizera aquilo quando eu estava
com Nick. Não sabia se devia gozar o sentimento ou uni-lo ao terror da origem da
cicatriz.

Sentindo meu medo súbito, Nick abrandou, seu corpo tocando no meu uma
vez, duas, depois parando. Num movimento lento e calmo, tocou com os lábios na
minha cicatriz. Não conseguia me mexer, enquanto ondas de prometido prazer
corriam através de mim, instalando-se, profundas e insistentes, no meu corpo.
Meu coração acelerou enquanto comparava a sensação do êxtase induzido pelos
feromônios vampíricos em que Ivy me lançara e os achava idênticos. Era muito
bom para ser ignorado.

Nick hesitou, sua respiração rude ao meu ouvido. Lentamente, a sensação


desvaneceu-se.

— Devo parar? — suspirou, a voz rouca de desejo.

Fechei os olhos, estendendo os braços para abrir a braguilha, em gestos


quase desesperados.

— Não — gemi. — Quase dói. Tem... Cuidado.

Ele inspirou, emitindo um ruído rápido, igual ao meu. Mais insistente,


passou as mãos por baixo do meu soutien e depositou suaves beijos no meu
201

pescoço marcado. Um gemido não solicitado fugiu de mim quando consegui


desapertar o último dos botões.

Os lábios de Nick tocaram levemente na parte de baixo do meu queixo e


e n c o n tr a r a m a m i n h a b o c a . O s e u t o q u e e r a g e n t i l e e u l a n c e i a l ín g u a
profundamente dentro dele. Ele afastou-se, os pelos da barba arranhando-me. A
nossa respiração sincronizou-se. Os seus dedos gentis, que continuavam a tocar o
meu pescoço, lançaram um espasmo através do meu corpo.

Deslizei as mãos pela sua camisa aberta até encontrar as calças jeans.
Respirando rapidamente, puxei a roupa dele até poder prender com o pé e despi-
lo por completo. Ardendo de desejo por ele, minhas mãos partiram inquisitivas,
tentando encontrar o que eu queria.

Nick segurou a respiração quando eu o agarrei, sentindo a carne tensa e


macia entre os dedos e o polegar. A cabeça dele abandonou a minha, enterrando-
se entre os meus seios, tocando-me agora que o meu soutien tinha, sabe-se lá como,
desaparecido.

Ele encostou os quadris contra mim, inquisitivamente e eu fiz o mesmo.


Mais tarde tentaria perceber se aquilo era ou não errado. Minhas mãos apressaram
seus movimentos, sentindo a diferença entre ele e um bruxo — sentindo que isso
me excitava ainda mais. Deixando uma mão acariciá-lo, agarrei na mão que ele
não estava usar para suportar seu peso sobre mim e guiei-a para os feixes das
minhas calças de treino.

Ele agarrou-me no pulso, prendendo-o sobre a minha cabeça na almofada,


recusando-se a aceitar minha ajuda. Senti um arrepio súbito. Ele mordiscou meu
pescoço e afastou-se rapidamente, a simples promessa de dentes suficiente para
me arrancar um arquejo. As mãos de Nick agarraram a cintura das minhas calças,
puxando por elas e pelas minhas calcinhas com um desejo feroz. Arqueei as costas
para ajudá-lo a libertá-las dos meus quadris e uma mão pesada prendeu o meu
ombro à cama.

Abri os olhos. Nick inclinou-se sobre mim e murmurou:

— Esse é o meu trabalho, bruxa — mas as minhas calças tinham


desaparecido.

Estendi o braço para ele e ele ajustou o seu peso, tocando com o joelho na
parte de dentro da minha coxa. Uma vez mais ergui os quadris, procurando
202

encontrá-lo. Ele deixou-se cair sobre mim, seus lábios nos meus e começamos a
mover-nos um contra o outro.

Lentamente, de forma quase provocadora, ele introduziu-se dentro de mim.


Agarrei-lhe os ombros, agitada por arrepios titilantes, quando os seus lábios
tocaram meu pescoço.

— Meu pulso — arquejou ele ao meu ouvido. — Oh, Deus, Rachel. Ela
mordeu-me no pulso.

As ondas de prazer moviam-se ao mesmo ritmo que os nossos corpos,


enquanto eu procurava seu pulso, sedenta. Ele gemeu quando me apoderei dele.
Passei os dentes sobre a pele, ao mesmo tempo em que chupava ardentemente,
enquanto ele fazia o mesmo no meu pescoço. O desejo cresceu em mim e fez-me
enlouquecer; mordi a antiga cicatriz de Nick, tornando-a minha, tentando tirá-la de
quem primeiro o tinha marcado.

Senti uma dor lancinante no pescoço e gritei. Nick hesitou, depois voltou a
prender um pedaço de pele marcada entre os dentes. Eu fiz o mesmo no seu pulso,
para lhe dar a entender que estava tudo bem. Silenciosa, com um desejo
desesperado, a boca dele lançou-se esfomeada para mim. O desejo vinha de
dentro. Podia senti-lo inchar. Seduzi-o, chamando-o para mim, desejando a sua
realização. Agora — pensei, quase gritando. Oh, Deus! Que seja agora.

Juntos, Nick e eu, trememos, nossos corpos respondendo como um,


enquanto uma onda de euforia corria de mim para ele. Depois voltou para trás,
atingindo-me com o dobro da força. Arquejei, agarrando-o. Ele gemeu como que
de dor. Uma vez mais a onda tomou-nos, puxando-nos de volta. Imobilizados,
pendíamos à beira do clímax, tentando mantê-lo para sempre.

Lentamente, desvaneceram-se os arrepios do prazer que murchava


lançando tremores pelos nossos corpos, enquanto a tensão se dissipava por
estágios. O peso de Nick abateu-se gradualmente sobre mim. Sua respiração soava
rude ao meu ouvido. Exausta, fiz um esforço consciente de abrir as mãos e as
soltar dos seus ombros. As marcas dos meus dedos traçavam linhas vermelhas na
sua pele.

Deixei-me ficar deitada, por um instante, sentindo o palpitar do meu


pescoço dissipando-se. Depois desapareceu. Passei a língua pelos dentes. Não
havia sangue. Não tinha rasgado sua pele. Graças a Deus. Ainda em cima de mim,
Nick mudou de posição para conseguir respirar melhor.
203

— Rachel? — sussurrou. — Acho que você quase me matou.

Com a respiração tornando-se mais lenta, não disse nada, pensando que
podia abdicar da minha corrida de cinco quilômetros. O bater do meu coração
acalmou-se, enchendo-me com uma lentidão relaxada. Puxei o pulso dele para
perto de mim, fitando a antiga cicatriz cuja cor branca contrastava com a pele
vermelha e maltratada. Senti um toque de vergonha ao ver que tinha feito um
chupão. Contudo, não senti culpa por tê-lo marcado. O mais certo era que ele
soubesse o que ia acontecer melhor do que eu e, meu pescoço estava, sem dúvida,
em estado semelhante.

Queria eu saber? Não naquele momento. Talvez mais tarde, quando minha
mãe o visse. Dei um beijo na pele macia e passei meu braço nele.

— Por que parecia que um de nós era um vampiro? — perguntei. — A


cicatriz do demônio nunca foi assim tão sensível. E a sua...? — deixei a pergunta
por terminar.

Tinha mordiscado boa parte do seu corpo durante os últimos dois meses e
nunca provocara nele aquela resposta. Não que estivesse me queixando.
Parecendo exausto, ele saiu de cima de mim e deixou-se cair gemendo, na cama.

— Deve ter sido porque Ivy pôs as coisas em andamento — disse ele, os
olhos fechados e o rosto virado para o teto. — Vou estar todo dolorido, amanhã.

Agarrei a manta e a puxei para me cobrir, com frio, agora que não tinha o
calor do corpo dele. Virando-me de lado, aproximei-me dele e sussurrei:

— Tem certeza que quer que eu saia da igreja? Acho que começo a perceber
porque os trios são tão populares entre os vampiros.

Os olhos de Nick abriram-se, ao mesmo tempo em que ele gemia.

— Está tentando me matar, não está?

Rindo, levantei-me enrolando-me na manta. Meus dedos tocaram meu


pescoço, descobrindo a pele dolorida, mas intacta. Não diria que era errado
aproveitar as sensibilidades que Ivy despertara, mas a necessidade veemente que
sentira deixava-me preocupada. Quase intensa demais e maravilhosa para ser
controlada... Não era de admirar que Ivy tivesse tanta dificuldade.
204

Com os pensamentos lentos e especulativos, vasculhei a gaveta de baixo da


cômoda de Nick em busca de uma de suas camisas velhas e dirigi-me para o
chuveiro.
205

Capitulo 14
— Olá — a voz gravada de Nick fazia-se ouvir na minha secretária
eletrônica, num som suave e polido. — Ligou para Morgan, Tamwood e Jenks.
Agentes Privados de Encantamentos Vampíricos. No momento eles não podem
atender. Por favor, deixe uma mensagem e indique se prefere ser contatado de dia
ou de noite.

Agarrei com mais força o plástico preto do telefone de Nick e esperei pelo
bip. Pedir ao Nick que gravasse a mensagem foi ideia minha. Gostava da voz dele
e achava muito fino e profissional o fato de passarmos a imagem de ter um
homem como recepcionista. Claro que toda a imagem se desmoronava quando
viam a igreja.

— Ivy? — disse, encolhendo-me perante a culpa que ouvia na minha voz.


— Atende se estiver aí.

Nick passou por mim vindo da cozinha, a mão tocando minha cintura,
enquanto se dirigia para a sala de estar. O telefone continuava silencioso e
apressei-me para falar antes que a máquina desligasse.

— Ei, estou na casa do Nick. Hum... Sobre lá atrás. Desculpa. A culpa foi
minha — olhei de relance para Nick que fazia a sua "arrumação de solteiro",
enquanto andava de um lado para o outro, escondendo coisas debaixo do sofá e
atrás das almofadas. — Nick pede desculpa por ter te acertado.

— Não peço nada — disse ele e eu tapei o telefone, pensando que a audição
de vampiro dela pudesse ouvi-lo.

— Ei, hum — continuei —, vou à minha mãe buscar umas coisas, mas
estarei de volta aí pelas dez horas. Se chegar em casa antes de mim, por que não
tira a lasanha para comermos hoje? Podíamos jantar por volta da meia-noite?
206

Jantamos cedo para que eu consiga fazer os trabalhos de casa — hesitei, querendo
dizer mais. — Espero que ouça isso — concluí, debilmente. — Tchau.

Desliguei o telefone e olhei para Nick.

— Acha que ela ainda está inconsciente?

Os olhos dele apertaram-se.

— Não lhe acertei assim com tanta força.

Inclinei-me para me apoiar na parede. Estava pintada de um castanho


esquisito e não combinava com mais nada. Nada na casa de Nick combinava com
nada, por isso, de certa maneira, adequava-se... De uma forma retorcida. Não era
que Nick não se preocupasse com a continuidade, mas olhava para as coisas de
forma diferente. Da vez em que o encontrei com uma meia azul e outra preta, ele
olhou para mim pestanejando e respondeu que eram da mesma espessura.

Os livros não estavam catalogados alfabeticamente — os mais antigos não


tinham nome ou autor —, mas por qualquer outro sistema classificativo que eu
ainda não conseguira compreender. Eles enchiam por inteiro uma das paredes da
sala, transmitindo-me uma estranha sensação de estar sendo observada quando
entrava ali. Ele tinha tentado me convencer a guardá-los no meu guarda-roupa —
depois de sua mãe deixá-los na porta da casa dele numa manhã bem cedo. Beijei-o
apaixonadamente e recusei. Davam-me arrepios.

Nick entrou na cozinha e agarrou as chaves. O som de metal puxou-me da


parede e me fez ir até à porta. Olhei de relance para minhas roupas antes de segui-
lo no corredor: calças jeans azuis, t-shirt de algodão e os chinelos que usava
quando íamos nadar na piscina do edifício. Tinha as deixado ali no mês anterior e,
as descobri lavadas e penduradas no armário de Nick.

— Não tenho minha bolsa — murmurei, enquanto ele dava um forte puxão
na porta para trancá-la.

— Quer passar pela igreja no caminho?

Sua oferta não soava genuína e hesitei. Teríamos de atravessar metade de


Hollows para chegar lá. Já passava do pôr-do-sol. As ruas estavam ficando
apinhadas e demoraríamos uma eternidade. Não tinha muito dinheiro na bolsa e
não ia precisar dos meus amuletos — só ia à casa da minha mãe —, mas a ideia de
Ivy inconsciente no chão era intolerável.
207

— Podemos?

E l e i n s p i r o u l e n ta m e n te e , c o m o r o s t o c o m p r i d o c o n to r c i d o n u m a
expressão estoica, acenou.

Sabia que ele não queria ir e o transtorno que isso provocava em mim quase
m e f e z f a l h a r n o d e g r a u d o e d i f í c i o q u e n o s l e va va a t é o p a r q u e d e
estacionamento. Estava frio. Não havia uma nuvem no céu, mas as estrelas
estavam perdidas atrás das luzes da cidade. Meus pés sentiam todas as brisas nos
chinelos e, quando envolvi o corpo com os braços, Nick passou-me o seu casaco.
E n c o l h i - m e d e n t r o d e l e , m i n h a r a i va p e r a n t e s u a r e l u t â n c i a e m ve r I v y
diminuindo por causa do calor e do cheiro dele no tecido grosso.

Um poste emitia um gemido débil. Meu pai o teria chamado de "luz de


ladrão". Uma iluminação suficiente apenas para permitir que o ladrão visse o que
estava fazendo. O som dos nossos pés era audível e Nick foi abrir a porta para
mim.

— Eu abro — disse, galante e sorri enquanto ele lutava com o puxador,


gemendo enquanto dava um último puxão e a porta abria.

Nick só estava naquele emprego há três meses, mas já tinha conseguido


arranjar uma velha Ford pickup azul. Gostava dela. Era grande e feia, razão pela
qual tinha sido tão barata. Disse que era a única coisa no stand que não apertava
suas pernas até o queixo. A fina pintura estava descascando e a luz traseira estava
enferrujada e saliente, mas de qualquer forma, era um meio de transporte.

Icei-me e entrei, colocando os pés lado a lado no ofensivo tapete que o dono
anterior ali deixara, enquanto Nick fechava a porta batendo-a. A pickup balançou,
m a s e r a a ú n i c a fo r m a d e t e r c e r te z a q u e a p o r t a n ã o s e a b r i r i a q u a n d o
atravessássemos as trilhas dos caminhos-de-ferro.

Enquanto esperava que Nick desse a volta, uma sombra tremeluzente sobre o
capô chamou-me a atenção. Inclinei-me para frente, semicerrando os olhos. Algo
quase se chocou com o vidro e eu saltei.

— Jenks! — exclamei, reconhecendo-o. O vidro entre nós não escondia sua


agitação. As asas eram uma mancha de gás que brilhava sob a luz da rua enquanto
ele franzia a sobrancelha. Na cabeça tinha um chapéu vermelho, de aba larga, que
parecia cinzento sob a luz fraca e as mãos estavam pousadas nos quadris. Meus
pensamentos culpados viajaram até Ivy e abri o vidro, rodando a maçaneta e
208

empurrando-a quando ficou presa no meio do caminho. Jenks esvoaçou


velozmente para o interior e tirou o chapéu.

— Quando diabos vocês vão comprar um telefone com viva voz? — rosnou
ele. — Pertenço a esta firma de treta tanto quanto vocês e não consigo usar o
telefone!

Ele veio da igreja? Eu não sabia que ele conseguia se mover assim tão
depressa.

— O que é que fez à Ivy? — continuou, enquanto Nick entrava no carro em


silêncio e fechava a porta. — Passei a tarde toda com Glenn, o Bom, tentando
acalmá-lo depois de você ter gritado com o pai dele. Depois chego em casa e
deparo-me com a Ivy tendo um ataque de histeria no chão da cozinha.

— Ela está bem? — perguntei, depois olhei para Nick. — Leve-me pra casa.

Nick ligou o carro, saltando quando Jenks aterrissou no câmbio das


marchas.

— Está ótima... Dentro do possível para ela — disse Jenks, sua raiva
transformando-se em preocupação. — Não volte ainda.

— Sai daí — disse eu, passando a mão por baixo dele.

Jenks esvoaçou, depois voltou a pousar, fitando Nick até ele colocar as
mãos no volante.

— Não — disse o pixy. — Estou falando sério. Dê algum tempo a ela. Ela
ouviu sua mensagem e está acalmando-se — Jenks voou para se sentar no painel à
minha frente. — Deus, o ela fez? Não parava de dizer que não conseguia te
proteger, que Piscary ia ficar zangado com ela e que ela não sabia o que faria se
você fosse embora — suas feições minúsculas assumiram uma expressão de
crescente preocupação. — Rache? Talvez você devesse se mudar. Isso é muito
esquisito, mesmo para você.

Senti frio ao ouvir o nome do vampiro morto. Talvez eu não a tivesse


levado aos limites, talvez Piscary a tivesse convencido a fazer aquilo. Teríamos
ficado bem se ela tivesse parado quando pedi da primeira vez. O mais certo era
que ele tivesse percebido que Ivy não era a dominante na nossa estranha relação e
quisesse que ela retificasse a situação... Cretino. Ele não tinha nada a ver com
aquilo.
209

Nick engatou a marcha e os pneus rangeram e estalaram contra o chão de


cimento compactado.

— Igreja? — perguntou.

Olhei de relance para Jenks e ele abanou a cabeça. Foi a pitada de medo que
vi nele que fez com que decidisse.

— Não — disse eu. Esperaria. Daria tempo a ela para que pudesse se
recompor. Nick parecia tão aliviado como Jenks. Saímos para o trânsito, dirigindo-
nos para a ponte.

— Bom — disse Jenks. Notando minha falta de brincos, ergueu-se no ar


para se sentar no espelho retrovisor. — Afinal de contas, o que aconteceu?

Voltei a fechar o vidro, sentindo o frio da noite que se aproximava na brisa


úmida.

— Levei-a aos limites quando estávamos treinando. Ela tentou fazer de


mim o seu... Hum... Tentou morder-me. Nick acertou sua cabeça com meu
caldeirão para feitiços, deixando-a inconsciente.

— Ela tentou te morder?

Afastei os olhos da noite que passava e encarei Jenks, vendo, graças à luz do
carro atrás de nós, suas asas imobilizarem-se e depois agitarem-se até se tornarem
invisíveis e voltarem a parar. Jenks encarou o rosto embaraçado de Nick e depois
meu rosto preocupado.

— Ohhh — disse ele, os olhos muito abertos. — Agora estou entendendo.


Ela queria te unir a ela para que só ela pudesse ativar a cicatriz com os feromônios
vampíricos. Você recusou. Meu Deus, ela deve estar envergonhada. Não é de
admirar que esteja perturbada.

— Jenks, cale-se — disse, refreando o súbito desejo de agarrá-lo e atirá-lo


pela janela. Ele se limitaria a alcançar-nos no primeiro sinal vermelho.

O pixy esvoaçou para o ombro de Nick encarando as luzes que brilhavam


no painel.

— Belo carro.
210

— Obrigado.

— Clássico?

O olhar de Nick deslizou das luzes traseiras do carro à nossa frente para

Jenks. — Modificado.

As asas de Jenks viraram um borrão e depois se acalmaram.

— Qual é a velocidade máxima?

— Duzentos e quarenta.

— Caramba! — praguejou o pixy, enquanto voava regressando ao


retrovisor. — Verifique os cabos. Sinto o cheiro de um
escape.

Os olhos de Nick dispararam para uma alavanca suja — que


obviamente
não vinha de fábrica — por baixo do painel, antes de voltar à
estrada.

— Obrigado. Já tinha me perguntado — lentamente, abriu um pouco


a janela.

— Não tem de quê.

Abri a boca para perguntar, depois a fechei. Devia ser uma coisa
de
homens.

— Entã-ã-ã-ão — perguntou Jenks, arrastando a voz. — Vamos para


casa da sua
mãe?

Eu acenei.

— Sim. Quer vir?

Ele ergueu-se uns dois centímetros quando passamos num buraco,


pairando de pernas
cruzadas.

— Claro. Obrigada. O hibisco provavelmente ainda está florindo.


Acha que
ara casa?
e
l — Por que não
a pergunta?

s
e

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p
o
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p
ó
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n

p
211

— Vou perguntar — um sorriso espalhou-se pelo rosto. — É melhor por


alguma maquiagem nessa dentadinha de amor.

— Jenks! — exclamei, a mão erguendo-se para tapar meu pescoço. Tinha


esquecido. Meu rosto aqueceu, enquanto Jenks e Nick trocavam olhares numa
expressão estúpida de macho. Deus me ajudasse, sentia-me como se estivesse de
volta a eras das cavernas: Mim mulher marcada, por isso Glurg manter mãos peludas
longe dela.

— Nick — implorei, sentindo intensamente a falta da minha bolsa.

— Pode me emprestar algum dinheiro? Preciso parar numa loja de magia.

Mas a única coisa mais embaraçosa que comprar um feitiço de compleição


era comprá-lo quando se tinha um chupão no pescoço. Por isso optei pelo
anonimato e pedi a Nick que parasse num posto de gasolina. Claro que o expositor
de feitiços junto à caixa registadora estava vazio, de modo que acabei por cobrir o
pescoço com maquiagem convencional. Covergir11? Não acreditem nisso. Nick
disse que estava bem, mas Jenks riu até ficar com as asas vermelhas. Sentou-se no
ombro de Nick e tagarelou sobre os atributos das garotas pixy que conhecera antes
de ter conhecido Matalina, sua esposa. O lascivo pixy não se calou até chegarmos
aos subúrbios de Cincinnati — onde vivia minha mãe —, enquanto eu tentava
retocar a maquiagem no espelho do tapa-sol.

— À esquerda naquela rua — disse, limpando os dedos um no outro. É a


terceira casa à direita.

Nick não disse nada enquanto parava junto à calçada, em frente a minha
casa. A luz da varanda estava acesa e podia jurar que tinha visto a cortina se
mexer. Já não ia lá há algumas semanas e a árvore que tinha plantado com as
cinzas do meu pai estava mudando de folha. O bordô crescera até quase cobrir a
garagem, nos doze anos desde que fora plantado.

Jenks já tinha saído pela porta aberta de Nick e, enquanto Nick se inclinava
para sair, toquei seu braço.

— Nick? — perguntei. Ele parou perante o tom preocupado na minha voz,


voltando a recostar-se no gasto assento de vinil, enquanto eu tirava a mão e olhava

Marca de produtos de maquiagem.


11
212

para os joelhos. — Hum, quero te pedir desculpas pela minha mãe... Antes de
conhecê-la — disse.

Ele sorriu, o rosto longo assumindo uma expressão calma. Inclinou-se sobre
o banco da frente e deu-me um beijo rápido.

— As mães são terríveis, não são? — saiu e eu esperei, impaciente, até ele
ter dado a volta e aberto a porta do meu lado com um puxão.

— Nick? — disse eu, enquanto ele tomava minha mão e avançávamos pela
calçada. — Estou falando sério. Ela é um bocado maluca. A morte do meu pai a
afetou mesmo. Não é uma psicopata nem nada disso, mas não pensa no que diz. O
que passa pela cabeça, sai pela boca.

A expressão séria que tomava conta de seu rosto, desfez-se.

— É por isso que ainda não a conheci? Pensei que era por causa de mim.

— De você? — perguntei e depois, encolhi-me por dentro. — Oh! A coisa de


humano/bruxa? — disse suavemente para que ele não tivesse de fazê-lo. — Não.

Na verdade, tinha me esquecido disso. De súbito nervosa, ajeitei o cabelo e


levei a mão à bolsa em falta. Sentia os dedos frios e os chinelos eram ruidosos e
desajeitados nos degraus de metal. Jenks pairava ao lado da luz da varanda,
parecendo-se com uma pequena traça. Toquei a campainha e coloquei-me ao lado
de Nick. Por favor, que este seja um dos seus dias bons.

— Fico feliz por não ser por minha causa — disse Nick.

— Sim — disse Jenks, enquanto aterrava no meu ombro. — Sua mãe devia
conhecê-lo. Tendo em conta que ele anda saltando em cima da filha dela e isso
tudo.

— Jenks! — exclamei, depois controlei o rosto, quando a porta se abriu.

— Rachel! — gritou a minha mãe, lançando-se em frente e dando-me um


abraço.

Ela era mais baixa do que eu e isso parecia estranho. O cheiro de dela colou-
se à minha garganta, sobrepondo-se ao leve cheiro de pau-brasil. Sentia-me mal
por não ter dito toda a verdade sobre ter saído da SI e sobre as ameaças de morte a
que tinha sobrevivido. Não quis preocupá-la.
213

— Olá, mãe — disse, afastando-me. — Este é Nick Sparagmos. E lembra-se


de Jenks?

— Claro que lembro. É bom vê-lo novamente, Jenks — ela recuou para a
ombreira da porta, uma mão tocando por breves instantes no liso cabelo ruivo
desbotado e depois no vestido de malha que ficava no meio da canela. Senti que
um nó de preocupação se desfazia. Ela parecia bem. Melhor do que da última vez.
O brilho malandro regressara aos seus olhos e movia-se rapidamente, enquanto
nos incitava a entrar. — Entrem, entrem — disse, colocando uma das mãos
pequenas no ombro de Nick. — Antes que os insetos nos sigam.

A luz do hall estava acesa, mas fazia pouco para iluminar o corredor verde
envolto em sombras. O espaço apertado estava repleto de fotografias e senti um
pouco de claustrofobia quando ela me deu mais um abraço feroz, sorrindo,
enquanto se afastava.

— Fico tão feliz por terem vindo — disse, depois se virou para Nick.

— Então, você é o Nick — disse ela, olhando-o de cima a baixo, o lábio


inferior preso entre os dentes. Ela acenou vivamente, quando viu os sapatos gastos
dele, depois os lábios contorceram-se pensativos, quando viu os meus chinelos.

— Sra. Morgan — disse ele, sorrindo e oferecendo a mão.

Ela agarrou-a e eu encolhi-me quando o puxou cambaleando, para um


abraço. Ela era muito mais baixa do que ele e, depois de um primeiro momento de
sobressalto, ele sorriu para mim por cima da cabeça dela.

— Como é bom te conhecer — disse ela, largando-o e virando-se para Jenks.

O pixy se ergueu até ao teto.

— Olá, Sra. Morgan. Está bonita esta noite — disse ele, cauteloso e
baixando-a ligeiramente.

— Obrigada — ela sorriu, suas poucas rugas tornando-se mais vincadas. A


casa cheirava a molho de espaguete e perguntei-me se deveria ter avisado a minha
mãe de que Nick era humano. — Bem, entrem todos. Podem ficar para o almoço?
Estou fazendo espaguete. Não me custa nada fazer mais um pouco...

Não pude evitar um assobio enquanto ela nos guiava até à cozinha.
Lentamente, comecei a relaxar. Minha mãe parecia estar prestando mais atenção
214

ao que dizia do que o normal. Entramos na cozinha iluminada pela luz do teto e
respirei com mais facilidade. Parecia normal... Uma normalidade humana.

Minha mãe já não fazia muitos feitiços e, só a tigela de dissolução com água
salgada perto da geladeira e o caldeirão de cobre para feitiços no fogão, davam
qualquer indicação do que era. Estava no ensino médio quando se deu a Viragem e
a geração dela era muito discreta.

— Só viemos buscar minhas coisas das linhas Ley — disse eu, sabendo que a
minha ideia de chegar, pegar nas coisas e sair rapidamente seria impossível de
concretizar — já que o caldeirão de cobre para feitiços se encontrava cheio de água
fervente para o espaguete.

— Não custa nada — disse ela, enquanto acrescentava o molho de


espaguete. Passou os olhos por Nick e depois acrescentou outro molho.

— Já passa das sete. Tem fome, não tem, Nick?

— Sim, Sra. Morgan — disse ele, apesar do meu olhar suplicante. Ela virou-
se para o fogão, satisfeita.

— E você, Jenks? Não tenho muita coisa no quintal, mas pode ficar com o
que conseguir encontrar. Ou posso misturar um pouco de água com açúcar, se
quiser.

Jenks cintilou.

— Obrigado, minha senhora — disse, esvoaçando suficientemente perto


para abanar as madeixas soltas do seu cabelo ruivo. — Vou fazer uma vistoria no
jardim. Importa-se que pegue o pólen do seu hibisco? Faria muitíssimo bem ao
meu mais novo, neste fim de estação.

Minha mãe sorriu.

— Claro. Sirva-se. Aquelas malditas fadas mataram quase tudo à procura


de aranhas — suas sobrancelhas ergueram-se e estanquei num momento de
pânico. Ela teve uma ideia. Era impossível saber do que se tratava.

— Por acaso não conhece nenhuma criança interessada num trabalho de fim
de verão? — perguntou, e o ar fugiu de mim num som aliviado.
215

Jenks aterrou na mão que ela oferecia, as asas brilhando num satisfeito tom
cor-de-rosa.

— Sim, minha senhora. Meu filho Jax ficaria maravilhado por trabalhar no
seu jardim. E, minhas duas filhas mais velhas seriam suficientes para manter as
fadas longe. Posso mandá-los amanhã antes do nascer do Sol, se quiser. Quando
estiver tomando sua primeira caneca de café, já não haverá uma fada à vista.

— Maravilhoso! — exclamou minha mãe. — Aqueles sacanas malditos têm


andado pelo meu quintal o verão todo. Afugentaram meus pássaros.

Nick sobressaltou-se quando ouviu o termo rude sair da boca de uma


mulher de aspecto tão doce e eu encolhi os ombros. Jenks voou ao arco da porta
atrás até mim, num pedido silencioso para que a abrisse.

— Se não se importa — disse, pairando junto à maçaneta. — Vou lá fora dar


uma conferida. Não quero que eles se deparem com nada inesperado. Ele é apenas
um garoto e eu quero ter certeza de que sabe ao que deve dar atenção.

— Excelente ideia — disse minha mãe, os saltos batendo no chão de linóleo


branco. Ela acendeu a luz de trás e o deixou sair. — Bem! — disse quando se virou,
olhando para Nick. — Sentem-se, por favor. Quer beber alguma coisa? Água?
Café? Acho que tenho cerveja, em algum lugar.

— Um café seria ótimo, Sra. Morgan — disse Nick, enquanto puxava uma
cadeira de debaixo da mesa e sentava nela.

Abri a geladeira em busca do café e minha mãe tirou-me das mãos o saco de
grãos, enxotando-me com suaves sons maternais até eu me sentar ao lado de Nick.
O raspar dos pés da minha cadeira foi sonoro e desejei que ela não estivesse
fazendo tanto alarde. Nick sorriu, apreciando claramente o meu desconforto.

— Café — disse ela, enquanto andava de um lado para o outro. — Admiro


um homem que gosta de café no almoço. Não faz ideia de como fico feliz por te
conhecer, Nick. Já faz tanto tempo que Rachel não traz um rapaz aqui em casa.
Mesmo no ensino médio não era grande adepta de namoros. Começava a
perguntar-me se ela estaria indo para o outro lado, se é que me entende.

— Mãe! — exclamei, sentindo o rosto ficando tão vermelho quanto o meu


cabelo.

Ela piscou-me um olho.


216

— Não que haja algo de errado com isso — acrescentou, pegando os grãos e
enchendo o filtro.

Eu nem conseguia olhar para Nick e ouvindo a forma como tossiu, ele
estava se divertindo. Pousei os cotovelos na mesa e deixei cair a cabeça entre as
mãos.

— Mas já sabem como eu sou — acrescentou minha mãe, de costas viradas


para nós, enquanto guardava o café. Encolhi-me, esperando pelo que quer que
fosse que estivesse prestes a sair pela boca afora. — Acho que é melhor não se ter
homem nenhum, do que ter o homem errado. Seu pai, esse era o homem certo.

Suspirando, ergui os olhos. Enquanto estivesse falando do meu pai, não


estaria falando de mim.

— Um homem tão bom — disse ela, os movimentos lentos enquanto se


dirigia ao fogão. Deixou-se ficar de lado, para que pudesse nos ver, enquanto
tirava a tampa do molho e o mexia. — É preciso o homem certo para se ter filhos.
Tivemos sorte com a Rachel — disse ela. — Ainda assim, quase a perdemos.

Nick endireitou-se, interessado.

— Como assim, Sra. Morgan?

O rosto dela assumiu uma expressão de preocupação antiga e levantei-me


para ligar a cafeteira na tomada, já que ela tinha se esquecido. A história que se
aproximava era embaraçosa, mas era um embaraço conhecido, muito melhor do
que qualquer outra coisa de que ela pudesse ter lembrado, principalmente depois
de ter falado em filhos. Voltei a sentar-me ao lado de Nick, enquanto a minha mãe
começava o seu discurso com a frase habitual.

— Rachel nasceu com uma estranha doença de sangue — disse ela. — Não
fazíamos ideia que estava lá, aguardando por um momento inoportuno para se
revelar.

Nick voltou-se para mim, as sobrancelhas erguidas.

— Nunca me contou isso.

— Bem, ela já não a tem — disse minha mãe. — Uma mulher simpática, na
clínica explicou tudo, dizendo que tivemos sorte com o irmão mais velho da
217

Rachel e que a probabilidade de o nosso próximo filho ser como a Rachel era de
um em quatro.

— Isso parece um distúrbio genético — disse ele. — Normalmente, não se


leva a melhor.

Minha mãe acenou e baixou o fogo sob a massa fervendo.

— Rachel respondeu a um tratamento à base de ervas medicinais e


medicamentos tradicionais. Ela é a nossa bebê milagre.

Nick não parecia convencido, por isso acrescentei:

— Minhas mitocôndrias estavam libertando uma enzima esquisita e os


meus glóbulos brancos achavam que se tratava de uma infeção. Estavam atacando
células saudáveis como se estas fossem invasoras, sobretudo a medula e tudo o
que tivesse a ver com a produção de sangue. Tudo o que sei é que estava sempre
cansada. Os medicamentos à base de plantas ajudaram, mas foi quando entrei na
puberdade que tudo pareceu voltar ao normal. Agora estou ótima, exceto pelo fato
de ter ficado sensível ao enxofre. De qualquer forma, minha expectativa de vida
foi reduzida em cerca de dez anos. Pelo menos foi o que me disseram.

Nick tocou no meu joelho por baixo da mesa.

— Lamento.

Dirigi-lhe um sorriso.

— Ei, o que são dez anos? Eu nem sequer deveria ter chegado à puberdade.

Não tive coragem para lhe dizer que, mesmo com dez anos cortados à
minha expectativa de vida, ainda ia viver décadas depois da morte dele, mas ele já
devia sabê-lo.

— Monty e eu conhecemo-nos na escola, Nick — disse minha mãe, levando a


conversa de volta ao seu tópico original. Eu sabia que ela gostava de falar sobre os
primeiros doze anos da minha vida. — Foi tão romântico. A universidade tinha
acabado de abrir o seu curso de Estudos Paranormais e havia muita confusão em
relação aos pré-requisitos. Todos podiam fazer tudo. Eu não tinha nada que estar
numa turma de linhas Ley e o único motivo porque me inscrevi nela foi por causa
do gato que estava à minha frente na secretaria tê-lo feito e porque as restantes
alternativas estavam cheias.
218

Os movimentos da colher tornaram-se mais lentas e o vapor deslizou sobre


ela.

— É engraçado como, por vezes, o destino parece empurrar as pessoas


umas para as outras — disse ela, baixinho. — Escolhi aquela aula para me sentar
ao lado de um homem, mas acabei me apaixonando pelo melhor amigo dele — ela
sorriu para mim. — Seu pai... Estávamos os três no mesmo grupo, no laboratório.
Eu teria bombado se não fosse Monty. Eu não sou bruxa das linhas Ley e, como
Monty era incapaz de fazer um feitiço nem que a sua vida dependesse disso,
preparou todos os meus círculos durante os dois anos seguintes e em troca eu
invoquei todos os seus amuletos até ele ter terminado o curso.

Eu nunca tinha ouvido aquilo e, quando me levantei para ir buscar três


canecas de café, meu olhar caiu sobre o pote de molho vermelho. De sobrancelha
franzida, perguntei-me se havia alguma forma discreta de despejá-lo na lata do
lixo. Além disso, ela estava cozinhando no caldeirão para feitiços. Esperava que
ela tivesse se lembrado de lavá-lo com água salgada ou o almoço seria mais
interessante do que o costume.

— Como você e a Rachel se conheceram? — perguntou minha mãe,


enquanto me empurrava para longe do pote e colocava um pão congelado para
assar no forno.

De olhos subitamente abertos, abanei a cabeça em aviso para Nick. Os olhos


dele saltitaram entre mim e a minha mãe.

— Hum, um evento desportivo.

— Os Howlers? — questionou ela.

Nick olhou para mim em busca de ajuda e eu sentei-me ao lado dele.

— Conhecemo-nos nas lutas de ratazanas, mãe — disse eu. — Eu apostei


num visom e ele apostou numa ratazana.

— Lutas de ratazanas? — disse ela, fazendo uma careta. — Uma coisa


terrível. Quem ganhou?

— Eles fugiram — disse Nick, os olhos doces nos meus. — Sempre


imaginamos que tinham escapado juntos, apaixonados loucamente um pelo outro e
que estavam vivendo em algum lugar nos esgotos da cidade.
219

Reprimi uma gargalhada, mas a minha mãe deixou que a dela fluísse
livremente. Meu coração pareceu saltar ao ouvir aquele som. Já não a ouvia rir de
prazer a muito tempo.

— Sim — disse ela, enquanto colocava as luvas de forno. — Gosto disso.


Visons e ratazanas. Tal como Monty e eu sem mais filhos.

Pestanejei, perguntando-me como tínhamos passado de ratazanas e visons


para ela e o meu pai e como isso se relacionava com o fato de eles não terem mais
filhos.

Nick inclinou-se na minha direção e sussurrou:

— Os visons e as ratazanas também não podem procriar.

Minha boca abriu-se num "oh" silencioso e pensei que talvez Nick, com a
sua forma peculiar de ver o mundo, pudesse compreender minha mãe melhor do
que eu.

— Nick, querido — disse minha mãe, enquanto dava uma rápida mexida ao
molho, no sentido dos ponteiros do relógio —, não teve nenhuma doença celular
na vida, hum?

Oh, não, pensei em pânico enquanto Nick respondia sem hesitação:

— Não, Sra. Morgan.

— Me chame de Alice — disse ela. — Gosto de você. Case com Rachel e


façam um monte de filhos.

— Mãe! — exclamei.

Nick sorriu, apreciando tudo aquilo.

— Mas não agora — continuou ela. — Gozem da liberdade juntos durante


algum tempo. Não queiram ter filhos até estarem prontos. Estão praticando sexo
seguro, sim?

— Mãe! — gritei. — Cale-se!

Deus me ajudasse a chegar ao fim desta noite.

Ela virou-se, uma mão no quadril, a outra segurando a colher que pingava.
220

— Rachel, se não queria que eu falasse nisso, devia ter escondido o chupão
com um feitiço.

Eu fitei-a, de boca aberta. Completamente mortificada, ergui-me e puxei-a


para o corredor.

— Com licença — consegui dizer, vendo Nick sorrir. — Mãe! — sussurrei,


na segurança do corredor. — Devia estar tomando a sua medicação, sabe disso?

Ela baixou a cabeça.

— Ele parece um jovem tão simpático. Não quero que o afugente como fez
aos seus outros namorados. Eu amava tanto seu pai. Só queria que você fosse
assim tão feliz.

Minha raiva desvaneceu-se de imediato, vendo-a ali, só e perturbada. Meus


ombros moveram-se num suspiro. Devia visitá-la mais vezes — pensei.

— Mãe — disse. — Ele é humano.

— Oh — disse ela baixinho. — Suponho que sexo mais seguro é impossível,


nãoé?

Senti-me mal quando o peso dessa simples afirmação se abateu sobre ela e
perguntei-me se isso mudaria sua opinião sobre Nick. Nunca poderíamos ter
filhos, Nick e eu. Os cromossomos não se alinhavam. Tê-lo descoberto com toda
certeza marcara o fim de uma controvérsia de longa data entre Inderlanders,
provando que as bruxas — ao contrário dos vampiros e dos animalomens — eram
uma espécie diferente dos humanos, tanto como os pixies e os trolls. Os vampiros e
os animalomens quer tivessem sido mordidos, quer tivessem nascido assim, não
passavam de humanos modificados. Embora os bruxos imitassem a humanidade
quase em perfeição, éramos tão diferentes como bananas e moscas da fruta ao
nível celular. Com Nick, eu seria estéril.

E u d i s s e i s so a N i c k d a p r i me i r a ve z q u e o s n o s s o s c a r i n h o s s e
transformaram em algo mais intenso, temendo que ele reparasse se algo não
estivesse bem no lugar. Tinha ficado quase doente com a ideia de que ele reagisse
com nojo ao fato de sermos espécies diferentes. Depois quase chorei, quando a sua
única pergunta, de olhos bem abertos, foi: "São parecidos e funcionam da mesma
maneira, certo?" Na época, sinceramente, não sabia. Tínhamos respondido juntos a
essa pergunta.
221

Corando por me ocorrerem tais pensamentos em frente à minha mãe, dei a


ela um ligeiro sorriso. Ela devolveu-o, endireitando o corpo magro.

— Bem — disse ela —, nesse caso vou abrir um frasco de Alfredo.

A tensão desapareceu de mim e eu lhe dei um abraço. Os braços dela


tinham uma nova força e eu correspondi. Tinha sentido falta dela.

— Obrigada, mãe — sussurrei.

Ela deu-me uma palmadinha nas costas e separamo-nos. Sem cruzar seus
olhos com os meus, regressou à cozinha.

— Tenho um amuleto no banheiro se quiser, terceira gaveta a contar de


baixo.

Ela inspirou e, com um rosto alegre, dirigiu-se para a cozinha com passos
rápidos e curtos. Fiquei à escuta por um instante, decidindo que nada mudara
quando ela começou a falar alegremente com Nick sobre o tempo, enquanto
guardava o molho de tomate. Aliviada, avancei pelo corredor escuro, batendo com
os chinelos.

O banheiro de minha mãe era assustadoramente parecido com o de Ivy,


menos o peixe na banheira. Encontrei o amuleto e, depois de ter lavado a
maquiagem, invoquei o feitiço, feliz com o resultado. Um último retoque ao cabelo
e apressei-me a regressar à cozinha. Era impossível saber o que minha mãe diria
ao Nick se eu a deixasse sozinha com ele durante muito tempo.

Encontrei-os juntos, com as cabeças quase tocando uma na outra, enquanto


ela apontava para um álbum de fotografias. Ele tinha uma caneca de café nas
mãos, o vapor erguendo-se entre ambos.

— Mãe — queixei-me. — É por isso que nunca trago ninguém aqui.

As asas de Jenks emitiram um matraquear seco quando ele se ergueu do


ombro da minha mãe.

— Oh, relaxa, bruxa. Já passamos das fotografias de bebê nu.

Fechei os olhos para recuperar as forças. Movendo-se com uma leveza


alegre nos passos, minha mãe foi mexer o molho Alfredo. Ocupei o lugar dela, ao
lado de Nick, apontando.
222

— Este é o meu irmão Robert — disse, pensando em silêncio o quanto


desejava que ele respondesse aos meus telefonemas. — E aqui está meu pai —
disse, sentindo uma suave emoção apoderar-se de mim. Sorri para a foto, sentindo
sua falta.

— Parece simpático — disse Nick.

— Era o melhor — virei a página e Jenks aterrou sobre ela, as mãos nos
quadris enquanto passeava por cima da minha vida, cuidadosamente organizada
em pequenas filas e colunas. — Essa é minha fotografia preferida dele — disse eu,
tocando com o dedo num grupo improvável de garotas de onze e doze anos, de
pé, em frente a um ônibus amarelo.

Estávamos todas de castigo, os cabelos três tons mais claros do que o


normal. O meu estava cortado curto e completamente desgrenhado. Meu pai
estava de pé ao meu lado, uma mão no meu ombro, sorrindo para a câmera. Senti
um suspiro escapar de mim.

— Essas eram minhas amigas do acampamento de férias — disse, pensando


que os três anos que passei lá tinham sido as minhas melhores férias de verão. —
Olha — disse eu, apontando. — Consegue-se ver o lago. Fica em algum lugar bem
no norte de Nova Iorque. Só fui nadar uma vez porque estava muito frio. Fiquei
com cãibras nos dedos.

— Nunca fui para um acampamento de férias — disse Nick, olhando para


os rostos atentamente.

— Era um desses acampamentos "Esperança" — disse eu. — Correram


comigo quando descobriram que eu já não estava morrendo.

— Rachel! — protestou a minha mãe. — Nem todos estavam morrendo.

— A maior parte estava.

Meu humor tornou-se mais negro, enquanto meu olhar percorria os rostos e
eu percebia que, muito provavelmente, era a única da fotografia que ainda
continuava viva. Tentei recordar-me do nome da garota magra de cabelos negros
ao meu lado, não gostando do fato de não ser capaz. Ela tinha sido a minha
melhor amiga.
223

— Pediram à Rachel que não voltasse depois de ela ter perdido a calma —
disse a minha mãe —, não por estar ficando boa. Ela meteu na cabeça que havia de
castigar um garotinho por se meter com as meninas.

— Garotinho — disse eu, sarcástica. — Ele era mais velho que todos os
outros e um bruto.

— O que fez? — perguntou Nick com um brilho de divertimento nos olhos


castanhos.

Levantei-me para colocar café na minha caneca.

— Atirei-o contra uma árvore.

Jenks deu uma risadinha e minha mãe raspou a colher na borda do pote de
molho.

— Não seja modesta. Rachel usou a linha Ley sobre a qual tinha sido
construído o acampamento e atirou-o nove metros pelo ar.

Jenks assobiou e os olhos de Nick abriram-se. Bebi o café, envergonhada.


Não tinha sido um dia muito bom. O fedelho tinha cerca de quinze anos e estava
atormentando a garota sobre cujos ombros estavam em meu braço, na fotografia.
Eu tinha lhe dito para deixá-la em paz e, quando ele me empurrou para o chão,
perdi a calma. Eu nem sequer sabia como usar uma linha Ley. Foi algo que,
simplesmente, aconteceu. O garoto aterrissou numa árvore, caiu e cortou o braço.
Havia tanto sangue que fiquei assustada. Os jovens vampiros do acampamento
tiveram de ser levados para uma viagem especial durante a noite para o outro
lado do lago, até que fossem capazes de escavar a terra onde ele sangrou e
queimá-la.

O meu pai teve de voar até lá e resolver as coisas. Foi a primeira vez que
usei as linhas Ley e, basicamente, a última até ter ido para a faculdade, já que meu
pai me tinha dado um sermão dos bons. Tive sorte em não terem me obrigado a
sair imediatamente.

Regressei à mesa, olhando para ele sorrindo para mim, da foto.

— Mãe, posso ficar com essa fotografia? Perdi a minha essa primavera
quando... Um feitiço mal alinhado as apagou.
224

Meu olhar cruzou-se com o de Nick, a compreensão partilhada que vi neles


garantindo-me que não diria nada sobre as minhas ameaças de morte. Minha mãe
deslizou para mais perto.

— É uma boa fotografia do teu pai — disse ela, arrancando a fotografia do


álbum e entregando-me antes de voltar ao fogão.

Sentei-me na cadeira e fitei os rostos, procurando o nome de qualquer um


deles. Não me conseguia lembrar nenhum dos nomes. Isso me incomodava.

— Hum, Rachel? — disse Nick, olhando para o álbum.

— O que foi?

Amanda? — perguntei em silêncio à garota de cabelos negros. Era esse o teu


nome?

As asas de Jenks começaram a agitar-se, fazendo meu cabelo dançar em


frente ao meu rosto.

— Ai, caramba! — exclamou.

Baixei os olhos para a fotografia que se encontrava por baixo daquela que
tinha na mão e senti meu rosto ficar branco. Foi tirada no mesmo dia, já que o
plano de fundo era o ônibus. Mas desta vez, em vez de estar rodeado por garotas
pré-adolescentes, meu pai estava ao lado de um homem que parecia mesmo Trent
Kalamack mais velho.

Não conseguia respirar. Os dois homens estavam sorrindo, semicerrando os


olhos ao sol. Tinham um braço em volta dos ombros um do outro e era óbvio que
estavam felizes. Troquei um olhar assustado com Jenks.

— Mãe? — consegui dizer, por fim. — Quem é este?

Ela aproximou-se emitindo um pequeno som de surpresa.

— Oh, já me tinha esquecido essa. Esse era o dono do acampamento. Seu


pai e ele eram tão bons amigos. Seu pai ficou de coração partido quando ele
morreu. E de forma tão trágica, nem seis anos depois da morte da esposa. Acho
que isso foi parte do motivo de seu pai perder a vontade de lutar. Morreram
apenas com uma semana de diferença, sabia?
225

— Não, não sabia — sussurrei, olhando para baixo.

Não era Trent, mas a semelhança era assustadora. Tinha de ser o pai dele.
Meu pai conhecia o pai de Trent?

Levei uma mão ao estômago quando me ocorreu um pensamento súbito. Eu


tinha ido para o acampamento com uma rara doença de sangue e todos os anos
saía de lá me sentindo melhor. Trent mexia com investigações genéticas. Talvez
seu pai fizesse o mesmo. Minha recuperação tinha sido chamada milagre. Talvez
tivesse se tratado de manipulação genética, ilegal e imoral.

— Deus me ajude — murmurei.

Três verões no acampamento. Meses sem acordar quase até ao pôr-do-sol.


As inexplicáveis dores no quadril. Os pesadelos de que me fazia acordar por
vezes, enjoada.

Q u a n to ? — p e r g u n t e i . O q u e o p a i d e T r e n t ti r o u d o m e u p a i c o m
o
pagamento pela vida da filha? Teria trocado pela sua?

— Rachel? — perguntou Nick — Está bem?

— Não — concentrei-me em respirar, olhando para a fotografia. — Posso


ficar com essa também, mãe? — perguntei, ouvindo minha voz, como se não fosse
minha.

— Oh, não a quero — disse ela e eu a tirei, os dedos tremendo. — Era por
isso que estava por baixo. Sabe que não consigo jogar fora nada que tenha sido do
seu pai.

— Obrigada — sussurrei.
226

Capitulo 15
Tirei um dos chinelos cor-de-rosa felpudos e, despreocupadamente, cocei a
batata da perna. Já passava da meia-noite, mas a cozinha estava iluminada —
feixes de luz fluorescente refletindo nos meus caldeirões de cobre e nos utensílios
pendurados. Erguendo-me junto à ilha de aço inoxidável, bati com o pilão
reduzindo o gerânio selvagem a uma pasta verde. Jenks tinha o encontrado num
lote vazio, trocando por ele um dos seus preciosos cogumelos. O clã pixy que
cuidava do lote tinha saído beneficiado do negócio, mas acho que Jenks tinha pena
deles.

Nick fizera sanduíches cerca de meia hora antes e a lasanha foi guardada na
geladeira ainda quente. Meu sanduíche de mortadela não tinha gosto de nada.
Acho que não podia pôr a culpa no fato de Nick não ter posto ketchup como eu
tinha pedido, dizendo que não o conseguia encontrar. Idiota fobia humana. Teria
achado fofo, se não me irritasse tanto.

Ivy ainda não tinha aparecido e eu não ia comer a lasanha sozinha na frente
do Nick. Queria falar com ela, mas teria de esperar até ela estar pronta. Ivy era a
pessoa mais reservada que eu conhecia, não dizendo sequer a si mesma quais
eram os seus sentimentos até descobrir uma forma lógica de justificá-los.

Bob, o peixe, nadava no caldeirão para feitiços ao meu lado, sobre o balcão.
Tinha decidido usá-lo como meu familiar. Precisava de um animal e os peixes
eram animais, certo? Além disso, Jenks teria um ataque de nervos se eu sequer
pensasse num gatinho e Ivy tinha levado as corujas para casa da irmã depois de
227

uma ter escapado por pouco quando apanhou a filha mais nova de Jenks. Jezebel
estava ótima. A coruja talvez voltasse a voar... Um dia.

Deprimida, continuei esmagando as folhas numa polpa. A magia de terra


tinha mais poder entre o pôr-do-sol e a meia-noite, mas estava tendo dificuldade
em concentrar-me e já passa de uma da manhã. Meus pensamentos continuavam a
regressar à foto do acampamento Esperança. Deixei escapar um suspiro profundo.

Nick ergueu os olhos do lado oposto do balcão, onde se encontrava


empoleirado num banco alto, comendo o último sanduíche de mortadela.

— Desiste, Rachel — disse ele, sorrindo suavemente perante as minhas


palavras, sabendo obviamente onde estavam os meus pensamentos. — Não
acredito que tenham te adulterado e, mesmo que o tivessem feito, como é que o
poderia provar?

Deixei que o pilão se imobilizasse e afastei-o.

— Meu pai morreu por minha causa — disse eu. — Se não fosse por mim e
da minha maldita doença de sangue, ele ainda estaria aqui. Eu sei.

Seu rosto comprido ficou triste.

— Na mente dele, provavelmente era o culpado pela tua doença.

Isso me fez sentir muito melhor e deixei-me ficar onde estava, abatida.

— Talvez eles fossem apenas amigos, como disse sua mãe — sugeriu Nick.

— E talvez o pai de Trent tenha tentado chantagear meu pai, forçando-o a


fazer algo ilegal e, ele morreu por ter recusado.

Pelo menos tinha levado o pai de Trent com ele.

Nick esticou um braço comprido para agarrar a fotografia que ainda estava
sobre o balcão, onde eu a tinha deixado.

— Não sei — disse ele, a voz suave enquanto olhava para a foto. — Para
mim, parecem amigos.

Limpei as mãos nas calças jeans e debrucei-me para agarrar a fotografia.


Meus olhos enrugaram-se enquanto analisava o rosto de meu pai. Bloqueando
minhas emoções, devolvi a Nick.
228

— Não melhorei graças a remédios de ervas e feitiços. Fui adulterada.

Era a primeira vez que o dizia em voz alta e senti um aperto no estômago.

— Mas está viva — tentou ele.

Virei as costas e medi seis canecas de água de nascente. O som da água


caindo no meu maior caldeirão de cobre para feitiços era audível.

— E se soubessem? — perguntei, incapaz de olhar para ele. — Me Pegavam e


enfiavam em qualquer ilha gelada, como se fosse um leproso, com medo que eu
sofresse uma mutação e começasse outra peste.

— Oh, Rache... — Nick deslizou do banco. Ansiosa, ocupei-me a secar,


desnecessariamente o copo medidor. Ele aproximou-se por trás de mim, dando-
me um abraço antes de me virar para olhar para ele. — Não é uma peste à espera
de acontecer — brincou, seus olhos presos nos meus. — Se o pai de Trent curou
tua doença de sangue, então pronto. Mas foi só isso. Resolveu o problema. Não vai
acontecer nada. Vê? Ainda estou aqui — sorriu. — Vivo e tudo.

Funguei, não gostando que aquilo me perturbasse tanto.

— Não quero dever nada.

— Não deve. Isso foi entre seu pai e o de Trent, presumindo que aconteceu.
— as mãos dele eram quentes ao redor da minha cintura. Meus pés estavam entre
os dele e entrelacei os dedos atrás de suas costas, usando meu peso como
contrapeso ao seu. — Só porque seu pai e o de Trent se conheciam, não quer dizer
nada — disse ele.

Certo — pensei, sarcasticamente. Largamo-nos ao mesmo tempo, afastando-


nos com relutância. Enquanto Nick enfiava a cabeça na despensa, eu verificava
minha receita para o meio de transferência. O texto que possuía sobre como
prender um familiar estava em latim, mas eu conhecia o suficiente dos nomes
científicos das plantas para ser capaz de segui-lo. Esperava que Nick me ajudasse
com o encantamento.

— Obrigada por me fazer companhia — disse, sabendo que ele tinha de


fazer meio turno na universidade, no dia seguinte, seguido do turno da noite no
museu. Se não se fosse embora em breve, não conseguiria dormir nada antes de ter
de ir trabalhar.
229

Nick olhou de relance para o corredor escuro enquanto se sentava no banco


com um pacote de batatas fritas.

— Estava à espera de ainda aqui estar quando Ivy chegasse. Por que não
passa a noite em minha casa?

Meus lábios ergueram-se num sorriso.

— Vou ficar bem. Ela não regressará para casa enquanto não estiver calma.
Mas, se vai ficar durante algum tempo, que me diz de desenhar uns pentagramas
por mim?

O estalar do plástico parou. Nick olhou para meu papel negro e para o giz
prateado empilhado, suspeitamente sobre o balcão, depois para mim. Seus olhos
iluminaram-se de alegria e ele acabou de desenrolar as beiras do pacote.

— Não vou fazer os trabalhos de casa por ti, Ray-Ray.

— Eu sei qual é o seu aspecto — protestei, deitando as madeixas do meu


cabelo no caldeirão para feitiços e empurrando-as com a colher de cerâmica até
irem ao fundo. — Prometo que os copio mais tarde. Mas se não os entregar
amanhã, ela vai chumbar-me e Edden vai descontar o valor da propina dos meus
honorários. Não é justo, Nick. Aquela mulher me odeia!

Nick comeu uma batata, transpirando ceticismo.

— Conhece-os? — eu acenei e ele limpou a mão na calça jeans, antes de


puxar meu manual para ele. — Muito bem — desafiou, enquanto inclinava o livro
para que eu não conseguisse ver. — Qual é o aspecto de um pentagrama de
proteção?

O ar fugiu de mim num suspiro aliviado e acrescentei a decocção de


sanícula12 que preparara mais cedo.

— Um gráfico standard com duas linhas entrançadas no círculo exterior.

— Muito bem. E o de adivinhação?

— Luas novas desenhadas nas pontas e uma fita de Möbius no centro para
dar equilíbrio.

Planta apiácea.
12
230

O brilho divertido nos olhos de Nick transformou-se em admiração.

— De invocação? — perguntou.

Sorri e despejei a polpa de gerânio na mistura. Os pedaços de verde ficaram


suspensos como se a água fosse um gel. Legal.

— Qual deles? De invocação de um poder interior ou de uma entidade


física?

— Ambos.

— De um poder interior tem bolotas e folhas de carvalho nos pontos


intermediários e o de invocação de uma entidade apresenta uma cruz celta unindo
os pontos.

Sentindo-me presunçosa perante a sua óbvia surpresa, ajustei a chama sob o


caldeirão para feitiços e procurei uma agulha na gaveta dos talheres.

— Muito bem. Estou impressionado — o livro deslizou para baixo e ele


agarrou uma mão cheia de batatas fritas.

— Vai desenhá-los para mim? — perguntei, encantada.

— Promete que os fará mais tarde?

— Negócio fechado — disse, alegremente. Já tinha terminado os relatórios.


Agora tudo o que precisava fazer era tornar Bob o meu familiar e estaria pronta.
Era fácil. Olhei para Bob e tremi. Sim. Fácil.

— Obrigada — disse baixinho enquanto Nick endireitava o papel de


desenho preto, batendo com as pontas no balcão.

— Vou fazê-los pouco cuidadosos para ela pensar que foi você — disse ele.

Fitei-o de sobrancelha erguida.

— Muito obrigada — disse, secamente e ele sorriu.

Tendo terminado a mistura, piquei o dedo e retirei três gotas de sangue. O


cheiro de pau-brasil ergueu-se, enquanto elas caíam no caldeirão para feitiços e a
poção era ativada. Até ali, tudo bem.
231

— As bruxas de terra não usam pentagramas — disse Nick enquanto afiava


o giz, esfregando-o contra um pedaço de papel de rascunho. — Como os conhece?

C o m c ui d a do pa r a m a n t e r a o l on g e m e u de d o e n s an g u en t a d o , po l i o
espelho de adivinhação com um lenço de veludo que pedira emprestado a Ivy. Fui
atravessada por um arrepio perante o frio que emanava dele. Odiava adivinhação.
Deixava-me com pés de galinha.

— Por causa dos frascos de geleia com pentagramas — disse. Nick ergueu
os olhos, a expressão perdida em seu rosto fez com que me sentisse bem, por
qualquer razão. — Sabe. Aqueles frascos de geleia que se podem usar como copos
depois de vazios? Havia uns com pentagramas no fundo e os seus usos escritos de
lado. Nesse ano vivi à base de sanduíches de manteiga de amendoim e geleia. Meu
estado de espírito tornou-se leve com a recordação do meu pai a interrogar-me
enquanto comíamos torradas.

Nick enrolou as mangas e começou a desenhar.

— E eu que pensava que era ruim o fato de me atirar ao fundo das caixas de
cereais em busca do brinquedo.

Tinha terminado o trabalho de preparação e estava pronta para fazer


feitiços a sério. Estava na hora de erguer o meu círculo.

— Dentro ou fora? — perguntei, e Nick ergueu os olhos dos meus trabalhos


de casa, pestanejando. Vendo sua confusão, acrescentei: — Estou pronta para
erguer o círculo. Quer ficar dentro ou fora dele?

Ele hesitou.

— Quer que mude de lugar?

— Só se quiser ficar fora dele.

Assumiu uma expressão incrédula.

— Vai rodear esta ilha toda?

— Isso é um problema?
232

— Nã-ã-ã-ão — Nick puxou o banco alto para mais perto. — As bruxas


devem ser capazes de controlar mais poder das linhas Ley do que os humanos. Eu
não consigo fazer um círculo com muito mais de um metro de diâmetro.

Sorri.

— Não sei. Perguntaria à Dra. Anders se ela não me fizesse sentir como
uma idiota. Acho que depende. Minha mãe também não consegue fazer um
círculo com mais de um metro. Então... Dentro ou fora?

— Dentro?

Minha respiração escapou-se, em alívio.

— Ótimo. Eu tinha esperança que dissesse isso — debruçando-me sobre o


balcão, empurrei para ele meu livro de feitiços. — Preciso da sua ajuda para
traduzir isso.

— Quer que faça os teus trabalhos de casa e que te ajude a prender o teu
familiar? — protestou.

Encolhi-me.

— O único feitiço que consegui encontrar nos meus livros estava em latim.

Nick fitou-me, incrédulo.

— Rachel. Eu durmo durante a noite.

Olhei de relance para o relógio por cima da pia.

— Ainda é só uma e meia.

Suspirando, puxou o livro para ele. Eu sabia que ele não seria capaz de
resistir depois de ter começado e, certa disso, sua pequena irritação transformou-
se em apaixonado interesse, antes de ter lido mais de um parágrafo.

— Ei, isso é latim antigo.

Debrucei-me sobre o balcão até a minha sombra cobrir as páginas escritas.

— Consigo ler os nomes das plantas e tenho certeza de ter feito bem o meio
de transferência, pois é básico, mas o encantamento é mais complicado.
233

Ele já não estava ouvindo; franziu a sobrancelha enquanto passava um


dedo longo por baixo do texto.

— Teu círculo precisa ser modificado para decompor e reunir o poder.

— Obrigada — disse eu, feliz por ele me ajudar. Eu não me importava de


desenrascar a maioria das coisas, mas a realização de feitiços era uma ciência
e xa t a . E a s i mp l e s i d e i a d e q u e p r e c i sa va d e u m f a m i l i a r d e i xa va - m e
desconfortável. A maior parte das bruxas tinha-os, mas as bruxas das linhas Ley
precisavam deles por uma questão de segurança. Dividir a aura impedia que a
pessoa fosse arrastada para a eternidade por um demônio. Pobre Bob.

Nick voltou a desenhar pentagramas para mim, olhando de relance


enquanto eu agarrava o saco de dez quilos de sal e o pousava em cima do balcão
com um baque surdo. Plenamente consciente dos seus olhos em mim, agarrei uma
mão-cheia da substância aglomerada. Por insistência de Ivy, tinha ignorado o
depósito de segurança e cortado um círculo não muito fundo no linóleo, Ivy tinha
ajudado. Na verdade, Ivy fizera todo o trabalho, usando uma engenhoca com uma
corda e um pedaço de giz para garantir que o círculo fosse perfeito. Eu fiquei
sentada em cima do balcão e deixei que ela o fizesse, sabendo que a irritaria se
atravessasse seu caminho. O resultado foi um círculo absolutamente perfeito. Ela
tinha até pegado numa bússola e marcado o verdadeiro norte com verniz preto
para me mostrar onde deveria começar o círculo.

Agora, fitando o chão em busca do ponto negro, comecei a espalhar o sal,


movendo-me no sentido dos ponteiros do relógio, ao redor da ilha até ter
encontrado o meu ponto de partida. Acrescentei os rabiscos de proteção e
adivinhação, coloquei as velas verdes nos respectivos locais, depois acendi com a
chama que tinha usado para fazer o meio de transferência.

Nick observou, usando apenas metade da sua atenção. Gostava do fato de


ele me aceitar como bruxa. Quando nos conhecemos, tinha ficado preocupada
temendo que, sendo ele um dos poucos humanos a praticar magia negra, fosse
acabar por ter de lhe dar um soco e levá-lo preso, mas Nick tinha feito a cadeira de
Demonologia para melhorar o seu latim e conseguir acabar uma cadeira de
Desenvolvimento Linguístico, não para invocar demônios. E a novidade de um
humano que aceitava a magia com tanta calma era, sem dúvida, excitante.

— Última oportunidade para sair — disse eu, enquanto desligava o fogo e


colocava o meio de transferência no centro da ilha.
234

Nick emitiu um ruído vindo do fundo da garganta, terminando parte do


seu pentagrama perfeito e começando o seguinte. Com inveja das suas linhas
suaves e direitas, afastei minha parafernália para limpar um espaço no balcão, na
frente dele.

A recordação de ter sido castigada por ter, sem saber, usado o poder de
uma linha Ley para fazer o brutamontes do acampamento voar contra uma árvore,
atravessou-me. Achava idiota que meu desagrado em relação às linhas Ley
pudesse ter sua origem num incidente de infância, mas eu sabia que era mais do
que isso. Não confiava na magia das linhas Ley. Era muito fácil perder a noção do
lado da magia em que nos encontrávamos.

Com a magia de terra, era fácil. Se é exigido que se mate cabras, é seguro
apostar que se trata de magia negra. A magia das linhas Ley também exigia um
pagamento de morte, mas era uma morte mais nebulosa, retirada da alma, muito
mais difícil de quantificar e muito mais fácil de ignorar até ser tarde demais.

O preço a pagar pela utilização de magia branca das linhas Ley era o
equivalente a arrancar algumas ervas e usá-las nos meus feitiços. Mas o poder cru,
disponível através das linhas Ley, era sedutor. Era preciso uma enorme força de
vontade para alguém se manter dentro de limites autoimpostos e continuar a
praticar magia branca das linhas Ley.

As fronteiras que pareciam tão razoáveis e prudentes quando estabelecidas


começavam, muitas vezes, a parecer tolas ou tímidas quando se sentia a força de
uma linha. Já vi muitos amigos passando da analogia do "arrancar de ervas" para a
do "matar cabras" sem sequer perceber de que tinham dado o salto para a magia
negra. E nunca me davam ouvidos, diziam que eu tinha ciúmes ou era tola. Por
fim, acabava por me ver obrigada a levar seus traseiros para o cárcere da SI —
depois de terem lançado um encantamento negro ao policial que os mandara
encostar por seguirem a oitenta numa zona de cinquenta. Talvez fosse por isso que
eu não conseguia manter os meus amigos.

Eram essas que me faziam confusa, pessoas que, no fundo, eram boas, mas
que tinham sido tentadas por um poder maior do que a sua força de vontade.
Eram dignas de pena, suas almas lentamente comidas para pagar a magia negra
com que brincavam. Mas as bruxas negras profissionais é que me assustavam,
aquelas que eram suficientemente fortes para fazer com que fossem outros a pagar
pela magia, com a morte da alma. Contudo, a morte da alma acabava por
encontrar seu caminho de volta a casa, provavelmente arrastando consigo um
235

demônio. Tudo o que eu sabia era que havia gritos, sangue e uma grande explosão
que fazia balançar a cidade.

E, depois, já não tinha que me preocupar com aquela bruxa em particular.

Eu não tinha assim tanta força de vontade. Sabia, aceitava e evitava o


problema, fugindo da utilização das linhas Ley sempre que possível. Esperava que o
fato de estar tomando um peixe como meu familiar, não fosse o início de um novo
caminho, mas uma lombada na estrada que eu já estava trilhando. Olhando de
relance para Bob, jurei que era só isso. Todas as bruxas tinham familiares. E não
havia nada naquele feitiço de ligação que pudesse magoar alguém.

Inspirando fundo, fechei os olhos para me preparar para a desorientação


que advinha do fato de me ligar a uma linha Ley. Lentamente, usei a força de
vontade para focar minha segunda visão. O fedor de âmbar queimado fez-me
cócegas no nariz. Um vento invisível agitou-me os cabelos, embora a janela da
cozinha estivesse fechada. Estava sempre ventando na eternidade. Imaginei as
paredes que me rodeavam tornarem-se transparentes e, no olho da minha
mente, fizeram-no.

Minha segunda visão tornou-se mais forte e a sensação de estar no exterior


cresceu até o cenário mental além das paredes da igreja ter se tornado tão real
como o balcão, invisível sob os meus dedos. Com os olhos fechados para bloquear
minha visão mundana, olhei de relance sobre a cozinha inexistente com o olho da
minha mente. Nick não era de todo visível e a memória das paredes da igreja tinha
se desvanecido, assumindo a forma de ténues linhas de giz prateadas. Através
delas conseguia ver a paisagem que me rodeava.

Parecia um parque, com uma névoa vermelha e brilhante que refletia o


fundo das nuvens no local onde devia se encontrar Cincinnati, escondida atrás das
árvores mirradas. Era de conhecimento geral que os demônios tinham sua própria
cidade, construída sobre as mesmas linhas Ley de Cincinnati.

As árvores e as plantas tinham o mesmo brilho avermelhado e, embora não


sussurrasse qualquer vento através da tília13 no exterior da cozinha, os ramos das
escassas árvores da eternidade agitavam-se no mesmo vento que me erguia os
cabelos. Havia pessoas que adoravam as discrepâncias entre a realidade e a
eternidade, mas eu as achava muito desconfortáveis. Um dia ainda haveria de ir

Tipo de flor.
13
236

até Carew Tower e olhar para a prostrada e brilhante cidade dos demônios, com
minha segunda visão. Senti um aperto no estômago. É claro que ia.

Meu olhar foi atraído para o cemitério pelas puras lápides brancas, quase
brilhantes. Elas e a Lua eram as únicas coisas que pareciam existir sem aquele
brilho branco, imutáveis em ambos os mundos, e reprimi um tremor. A linha Ley
era um borrão vermelho de aparência sólida e que corria para o norte à altura da
cabeça, por cima das lápides. Era pequena — não tinha, sequer, vinte metros, pelos
meus cálculos —, mas era tão pouco usada que parecia mais forte do que a enorme
linha Ley sobre a qual se encontrava a universidade.

Consciente de que Nick devia estar observando tudo aquilo com sua
segunda visão, estendi minha força de vontade e toquei na fita de poder.
Cambaleei, forçando os olhos a permanecerem fechados enquanto agarrava o
balcão com mais força. Minha pulsação tornou-se irregular e minha respiração
mais rápida.

— Maravilha — respirei, pensando que a força que fluía para o meu interior
parecia maior do que da última vez.

Deixei-me ficar de pé e nada fiz, enquanto o influxo continuava tentando


equilibrar nossas forças. Senti um formigamento na ponta dos dedos das mãos e
os dos pés doeram, enquanto a força ricocheteava nas minhas extremidades
teóricas que espelhavam as reais. Por fim, começou a equilibrar-se e um rastro de
energia deixou-me para voltar a se juntar à linha. Era como se eu fosse parte de
um circuito e a passagem da linha deixasse um resíduo crescente que me fazia
sentir pegajosa.

A ligação à linha era arrebatadora e eu já não era capaz de manter as


pálpebras fechadas; elas abriram-se de repente. Minha cozinha desarrumada
substituiu o esboço prateado. Enjoada e desorientada, tentei reconciliar o olho da
mente com minha visão mais mundana, usando-as em simultâneo. Embora não
conseguisse ver Nick com minha segunda visão, esta lançaria sombras sobre ele
através da minha visão normal. Por vezes não havia diferença, mas estava
disposta a apostar que Nick não seria uma dessas pessoas. Nossos olhos
cruzaram-se e senti meu rosto empalidecer.

A aura dele tinha contornos negros. Isso não era necessariamente mau, mas
apontava numa direção desconfortável. Sua constituição esguia parecia doente e o
237

seu aspecto de livreiro14 — que normalmente lhe dava um ar erudito — tinha


agora um toque de perigo. Mas o que mais me chocou foi a sombra circular sobre a
têmpora esquerda. Era o local onde o demônio de que tinha salvado colocou sua
marca — uma nota promissória que Nick teria, um dia, de pagar. Olhei de
imediato para meu pulso.

Minha pele mostrava apenas o normal tecido cicatrizado e erguido, com a


forma de um círculo atravessado por uma linha. Mas isso não significava que fosse
tudo o que Nick conseguia ver. Erguendo o braço, perguntei:

— Está brilhando em preto?

Ele acenou, solenemente, sua aparência normal começava a sobrepor-se ao


ar ameaçador, enquanto o olho da minha mente começava a esmorecer sob a força
da minha visão mundana.

— É a marca do demônio, não é? — disse, enquanto passava os dedos sobre o


pulso. Não via preto algum, mas também não conseguia ver minha aura.

— Sim — disse ele suavemente. — Já, hum, alguém te disse que você fica
muito diferente quando está canalizando uma linha Ley?

Acenei, quase perdendo o equilíbrio quando as duas realidades chocaram.


"Diferente" era melhor do que "assustadora como o diabo", que foi do que Ivy me
chamou, certa vez.

— Quer sair do círculo? Ainda não o fechei.

— Não.

Senti-me imediatamente melhor. Um círculo adequadamente fechado não


podia ser quebrado senão pelo seu criador. Ele não se importava de ficar preso lá
dentro comigo e isso mostrava uma confiança que era gratificante.

— Então, muito bem. Lá vai — inspirando fundo, para me acalmar, movi


mentalmente o estreito trilho de sal dessa dimensão para a eternidade. Meu
círculo fez o salto com a tensão de um elástico contra minha pele. Sobressaltei-me
quando o sal piscou e desapareceu, sendo substituído por um anel equivalente de
eternidade. O arrepio na espinha era de esperar, mas apanhava-me sempre.

14 Pessoa que comercializa livros.


238

— Odeio quando faz isso — disse, enquanto olhava de relance para Nick,
mas ele fitava o círculo.

— Uau — murmurava ele de espanto. — Olha para aquilo. Sabia que


faziam aquilo?

Segui o olhar dele até as velas e fiquei de queixo caído. Tinham se tornado
transparente. As chamas ainda tremeluziam, mas a cera verde brilhava com um
aspecto absolutamente surreal.

Nick deslizou do banco, movendo-se cuidadosamente ao redor do balcão


para evitar tocar no círculo. Agachou-se junto a uma das velas e eu quase entrei
em pânico quando ele esticou um dedo para tocar.

— Não! — gritei e ele afastou a mão, num gesto repentino. — Hum, acho
que passaram para a eternidade, juntamente com o sal. Não sei o que aconteceria
se tocássemos. Por isso... Não o faça. Está bem?

Ele acenou, enquanto se levantava. Parecendo adequadamente intimidado,


regressou ao seu banco. No entanto não pegou no giz. Ia observar. Sorri
fracamente, não gostando de me encontrar em tamanha desvantagem no que dizia
respeito à magia das linhas Ley. Mas, se seguisse a receita, tudo correria bem.

Todo o poder que eu retirei da linha, com exceção de um tênue resquício,


corria através do meu círculo. Podia senti-lo pressionando minha pele. A fatia de
eternidade, da espessura de uma molécula, era uma mancha vermelha entre mim e
o resto do mundo, criando uma cúpula imediatamente acima da minha cabeça.
Nada poderia atravessar as faixas de realidades que se alternavam. A esfera
oblonga prolongava-se por igual distância por baixo de mim e, se fosse obrigado a
atravessar canos ou fios elétricos, o círculo não seria perfeito, mas vulnerável e
passível de ser quebrado naquele ponto.

Embora a maior parte da força da linha Ley tivesse sido utilizada para selar o
círculo, já sentia um acumulo secundário começando dentro de mim. Era mais
lento, de forma quase insidiosa. Continuaria até eu quebrar o círculo e minha
l i g a ç ã o à l i n h a L e y . A s b ru xa s d a s l i n h a s L e y s a b i a m c o m o a c u mu l a r
adequadamente o poder, mas eu não sabia e, se ficasse ligada à linha durante
muito tempo, me levaria à loucura. Os cerca de sessenta minutos dos quais
necessitaria não seriam, de todo, tempo de mais.
239

Convencida de que o círculo estava seguro, deixei minha segunda visão


morrer por inteiro. A visão da aura de Nick perdeu-se.

— Pronta para o segundo passo? — perguntou e eu acenei. Colocando


completamente de lado os pentagramas, puxou o livro antigo mais para si. Franziu
a sobrancelha enquanto passava um dedo por baixo do texto, deixando uma marca
de giz enquanto lia. — Em seguida, deve retirar todos os amuletos e feitiços — ele
ergueu os olhos. — Talvez devesse ter tomado um banho de sal.

— Não. Meus únicos encantamentos são amuletos — tirei o feitiço que


minha mãe me dera, o fio puxando-me pelo cabelo. Passei a mão pelo pescoço,
dirigindo a Nick um sorriso pálido, quando reparei nos seus olhos fixos nele.
Depois de um momento de hesitação, tirei o anel que usava no mindinho e
coloquei-o no balcão.

— Eu sabia! — exclamou Nick. — Eu sabia que você tinha sarda. Era o anel,
não era?

Ele estendeu o braço e eu os passei, por cima da tralha que se encontrava


entre ambos.

— Meu pai deu-me no meu décimo terceiro aniversário — disse eu. — Vê o


forro em madeira? Tenho de renová-lo todos os anos.

Nick olhou para mim de relance, espreitando por baixo da franja.

— Gosto das suas sardas.

Envergonhada, voltei a pegar no anel e coloquei-o ao meu lado.

— O que é que faço agora?

Ele olhou para baixo.

— Hum... Prepare o meio de transferência.

— Feito — disse eu, dando uma pancada seca no caldeirão para feitiços
para ouvi-lo tinir. Isso não era assim tão mau.

— Muito bem... — ele estava em silêncio e o tique-taque do relógio pareceu


estar ficando mais alto. Sem parar de ler, disse: — Agora tem que se pôr de pé
sobre o espelho de adivinhação e empurrar a aura para baixo, em direção ao seu
240

reflexo — os olhos castanhos dele estavam carregados de preocupação quando se


cruzaram com os meus. — Consegue fazer isso?

— Em teoria. Foi por isso que fui tão esquisita com o círculo. Até conseguir
recuperar minha aura, ficarei vulnerável a todo o tipo de coisas — ele acenou, seu
olhar distante preso em pensamentos. — Importa-se de observar e de me dizer se
está funcionando? Não consigo ver minha própria aura.

— Claro. Não vai doer, não?

Abanei a cabeça, enquanto pegava no espelho de adivinhação e o colocava


no chão. Olhando para sua superfície preta, lembrei-me porque me esforçava tanto
para evitar a magia das linhas Ley. Sua escuridão perfeita parecia absorver a luz,
mas ao mesmo tempo, permanecia brilhante. Não conseguia ver nele meu reflexo e
isso fez ativar meu medidor de coisas sinistras.

— Descalça — acrescentou Nick e eu tirei os chinelos.

Inspirando fundo, avancei para o espelho. Era tão frio como preto e reprimi
um arrepio, sentindo que podia cair através dele como se fosse um buraco.

— Ugh — disse eu, fazendo uma careta perante o puxão que senti sob os
pés.

Nick encarava-me, levantando-se e olhando para os meus pés por cima do


balcão.

— Está funcionando — disse ele, o rosto subitamente pálido. Engolindo em


seco, ergui as mãos e passei-as pela cabeça, como se estivesse empurrando água.
Uma dor começou a fazer latejar a cabeça. — Oh, sim — disse Nick, parecendo
enojado. — Isso empurra mais depressa.

— A sensação é horrível — murmurei, enquanto continuava empurrando a


aura em direção aos meus pés. Sabia que estava desaparecendo pela dor suave que
sua ausência deixava. Tinha na boca um gosto metálico e olhei de relance para a
superfície negra, ficando de queixo caído ao ver pela primeira vez, meu próprio
reflexo no espelho. Meu cabelo envolvia-me o rosto, parecendo-se com a imagem
que eu esperava encontrar, mas meu rosto estava escondido atrás de um borrão
âmbar. — Minha aura é castanha? — perguntei.
241

— É de um dourado vivo — respondeu Nick, enquanto arrastava o banco


até ao meu lado. — Na sua maior parte. Acho que já está toda. Podemos...
Avançar?

Ouvindo o desconforto na sua voz, meus olhos cruzaram-se com os dele.

— Por favor.

— Ótimo — ele sentou-se e puxou o livro para o colo. Com a cabeça


inclinada sobre ele, leu a passagem seguinte. — Muito bem, põe o espelho de
adivinhação dentro do meio de transferência, tendo o cuidado de não deixar que
teus dedos toquem no meio ou tua aura regressará para você e terá de começar de
novo.

Recusei-me a olhar para o espelho, temendo me ver presa nele. Com os


ombros tensos, voltei a calçar os chinelos. Doíam-me os pés e a minha cabeça
latejava como o início de uma enxaqueca. Se não acabasse aquilo depressa, ia ficar
presa num quarto escuro com uma toalha sobre os olhos durante todo o dia
s e g u i n te . P e g a n d o n o e s p e l h o , o fi z d e s l i z a r , h e s i t a n te , p a r a o m e i o d e
transferência. Os pedaços de gerânio selvagem desapareceram, dissolvidos pela
minha aura. Era assustador, mesmo pelos meus padrões e eu não fui capaz de
segurar um "oooh" de admiração.

— O que se segue? — perguntei, desejando despachar aquilo, para poder


recuperar minha aura.

A cabeça de Nick estava inclinada sobre o livro.

— Depois precisa ungir seu familiar com o meio de transferência, mas tem
de ter cuidado para não tocar nele — ele ergueu os olhos. — Como se unge um
peixe?

Senti-me ficar de rosto caído.

— Não sei. Talvez pudéssemos coloca-lo dentro do caldeirão para feitiços,


junto com o espelho? — levei a mão ao livro no colo dele, virando a página. — Isso
não diz nada sobre como tornar um peixe um familiar? — perguntei.

Nick afastou minhas mãos das páginas, quando uma delas se rasgou.

— Não. Vai meter o peixe no caldeirão dos feitiços. Se isso não resultar,
tentaremos outra coisa.
242

Fiquei de mau humor.

— Não quero que a minha aura fique cheirando a peixe — disse, enquanto
mergulhava uma mão no recipiente do Bob, e ele riu.

Bob não queria ir para o caldeirão de feitiços. Tentar apanhar sua forma
escorregadia no recipiente redondo era quase impossível. Tirá-lo da banheira foi
mais fácil — limitei-me a despejar a água —, mas agora, depois de um instante
frustrante de fracassos por pouco, estava pronta para atirá-lo ao chão. Por fim
apanhei-o e, pingando água sobre o balcão, atirei-o dentro. Olhei para o caldeirão
de feitiços, observando as guelras dele bombeando o líquido de cor âmbar.

— Pronto — disse eu, esperando que ele estivesse bem. — Está ungido. E o
resto?

— Apenas um encantamento. E, quando o meio de transferência estiver


límpido, pode recuperar a aura que o seu familiar tiver deixado.

— Encantamento — disse eu, pensando que a magia das linhas Ley era
idiota.

A magia de terra não precisava de encantamentos. A magia de terra era


precisa e bela na sua simplicidade. Meus olhos saltaram para as velas que não
estavam lá e reprimi um arrepio.

— Vamos. Eu leio por ti.

Ele levantou-se com o livro e eu arranjei espaço para ele, ao lado de Bob no
recipiente. Inclinei-me mais para ele, sobre o livro, pensando que ele cheirava
masculamente bem. Tocando-lhe intencionalmente, senti uma corrente quente,
provavelmente sua aura. Muito ocupado decifrando o texto, ele não percebeu.
Suspirando, voltei minha atenção para o livro.

Nick tossiu, limpando a garganta. As sobrancelhas uniram-se no centro e os


lábios moveram-se enquanto ele sussurrava as palavras, parecendo soturno e
perigoso. Eu só percebia cerca de uma em cada três palavras. Ele terminou,
dirigindo-me um dos seus sorrisos de esguelha.

— E esta, hã? — disse. — Rima.

Um suspiro agitou-me os ombros.


243

— Preciso dizer isso em latim?

— Não creio. A única razão porque fazem estas coisas com rima é para as
bruxas se lembrarem delas. É a intenção das palavras mais do que as palavras em
si que faz o serviço — ele voltou ao livro. — Dá-me um instante e eu traduzo isso.
Acho que até consigo fazê-lo rimar. O latim é muito dubio na sua interpretação.

— Está bem.

Nervosa e ansiosa, prendi o cabelo atrás da orelha e olhei para o caldeirão


de feitiços. Bob não parecia muito feliz.

— "Pars tibi, toum mihi. Vinctus vinculis, prece factis — Nick ergueu os olhos.
— Hum... "Um pouco para ti, mas todo para mim. Preso por laços, por pedido
tornado assim".

Repeti as palavras, respeitosamente, sentindo-me tola. Encantamentos.


Podia ser mais cafona? Não demoraria e estaria a equilibrando-me num pé e a
acenando à Lua cheia com um molho de penas.

O dedo de Nick corria por baixo das letras.

— "Luna servata, lux sanata. Chaos statutum, pejus minutum" — franziu a


sobrancelha. — Optemos por "Lua tornada segura, noite antiga tornada sã. Caos
decretado, viagem realizada se vã".

Eu fiz eco das palavras dele, pensando que as bruxas das linhas Ley tinham
uma considerável falta de imaginação.

— "Mentem tegens, malum ferens. Semper servus, dum duret mundus". Hum, eu
diria: "Proteção chamada, possuidor de valor profundo. Preso antes do renascer
do mundo".

— Oh, Nick — queixei-me —, tem certeza que está traduzindo isso bem? É
terrível.

Ele suspirou.

— Tenta isso então — pensou por um momento. — Também se podia


traduzir: "Protegido da mente, portador de sofrimento. Escravo até o universo
terminar seu movimento".
244

Com aquilo eu conseguia viver e disse-o, não sentindo nada. Ambos


espiamos Bob, esperando que o líquido âmbar se tornasse límpido. Minha cabeça
latejava, mas, além disso, não acontecia nada.

— Acho que fizemos isso errado — disse eu, esfregando os chinelos.

— Oh... Merda — praguejou Nick e eu ergui os olhos, descobrindo-o a olhar


por cima do meu ombro para a passagem para cozinha. Ele engoliu em seco,
agitando o pomo-de-adão.

Senti o pelo na parte de trás do pescoço eriçar-se. A cicatriz que o demônio


me fizera pulsou. Sustendo a respiração, virei-me, pensando que Ivy devia ter
voltado para casa.

Mas não era Ivy. Era um demônio.


245

Capitulo 16
— Nick! — gritei, recuando.

O demônio sorriu — parecia um aristocrata britânico —, mas o reconheci


como aquele que assumiu o rosto de Ivy e rasgou minha garganta na primavera.

Minhas costas bateram contra o balcão. Eu tinha que correr. Eu tinha que
sair dali! Ele ia me matar! Desesperada para colocar o balcão entre nós, bati no
caldeirão de feitiços.

— Cuidado com a poção! — gritou Nick, esticando um braço no preciso


momento em que o recipiente tombava.

Arquejei, afastando meu olhar do demônio durante um período de tempo


suficiente para ver o recipiente onde se encontrava Bob entornar. A água
misturada com minha aura deslizou sobre o balcão numa onda de cor âmbar. Bob
deslizou para o exterior, agitando-se.

— Rachel! — exclamou Nick. — Pegue o peixe! Ele tem sua aura. Pode
quebrar o círculo!

Estou num círculo — pensei, estrangulando meu pânico. O demônio não


estava e ele não podia me machucar.
246

— Rachel!

O grito de Nick arrancou meu olhar do demônio sorridente. Nick tentava


desesperadamente apanhar Bob — que saltitava sobre o balcão — e impedir que a
água entornada chegasse à borda. Senti o rosto gelado. Eu estava disposta a
apostar que bastaria a água misturada com aura para quebrar o círculo.

Lancei-me em busca do rolo de papel. Enquanto Nick tentava apanhar Bob,


corri loucamente ao redor do balcão, espalhando quadrados de papel branco para
ensopar os fios de água antes que estes fizessem poças no chão e corressem até ao
círculo. Meu coração batia acelerado e eu dividia minha atenção, frenética, entre a
água e o demônio que se encontrava de pé, com uma expressão espantada e
divertida no arco que dava para o corredor.

— Te peguei! — sussurrou Nick, a respiração explodindo dele num som


rouco quando por fim ganhou o controle do peixe.

— Na água salgada não! — avisei quando Nick ergueu o peixe sobre minha
tigela de dissolução. — Aqui.

Empurrei para Nick o recipiente original de Bob. A água normal que se


encontrava no seu interior salpicou o balcão e eu sequei-a, enquanto Nick
depositava Bob no seu interior. O peixe tremeu, submergindo com as guelras
bombeando.

O silêncio desceu sobre nós, enquadrado pelo som rouco da nossa


respiração e pelo tique-taque do relógio sobre a pia. Os olhos de Nick e os meus
encontraram-se sobre o recipiente. Como um só, viramo-nos para o demônio.

Parecia suficientemente agradável — tendo assumido a forma de um jovem


com bigode —, elegante e educado. Estava vestido como um homem de negócios
do século dezoito — com uma roupa de veludo azul com bainha de renda e longas
caudas. Sobre o nariz fino estavam empoleirados uns óculos redondos. Eram
escuros para esconder seus olhos vermelhos. Embora capaz de mudar de forma à
vontade — transformando-se em qualquer um, desde a minha companheira de
casa até um músico punk —, seus olhos permaneciam iguais, a menos que fizesse
um esforço para assumir todas as habilidades de quem quer que esteja imitando.
Por isso minha dentada era repleta de saliva de vampiro. Fui agitada por um
tremor ao recordar que suas pupilas eram verticais como as de uma cobra. O medo
apertou-me o estômago e eu odiava ter medo. Obriguei minhas mãos soltarem
meus cotovelos, endireitei-me e ergui a cabeça.
247

— Alguma vez pensou em atualizar o guarda-roupa? — brinquei. Estou


segura dentro do meu círculo... Estou segura dentro do meu círculo.

Segurei a respiração quando ele foi tomado por uma neblina de eternidade.
As roupas do demônio assumiram a forma de uma roupa moderna que eu
esperaria encontrar num executivo que fizesse parte dos Fortune 20.

— Isso é tão... Comum — disse ele, com seu reverberante sotaque britânico,
perfeito para o palco. — Mas eu não gostaria que dissessem que não sou amável.

Tirou os óculos e eu inspirei, silvando. Fitei a estranheza dos seus olhos,


saltando quando Nick tocou meu braço.

Nick parecia preocupado — nem de longe suficientemente assustado para


meu gosto — e, no entanto, senti vergonha perante meu pânico anterior. Mas
inferno, demônios me assustavam como o diabo. Desde a Viragem que ninguém
se arriscava a chamar um demônio.

Exceto quem chamou esse para me atacar na primavera passada. E, depois,


tinha havido também aquele que atacara Trent Kalamack. Talvez a invocação de
demônios fosse mais comum do que eu queria admitir.

Odiava o fato de o respeito que Nick sentia por eles não chegar sequer perto
do terror. Eles o fascinavam e eu temia que a sua procura de conhecimento o
levasse um dia a tomar uma decisão tola, deixando o tigre voltar-se e comê-lo.

O demônio sorriu, revelando dentes grossos e lisos, enquanto olhava para


sua vestimenta. Emitiu um som de profunda consideração e a lã desapareceu,
dando lugar a uma t-shirt preta presa na calça de couro, com uma corrente
dourada envolvendo os quadris estreitos. Seguiu-se o aparecimento de um casaco
de couro e o demônio espreguiçou-se numa nuvem de sensualidade, exibindo
cada curva do seu novo corpo, atraente e musculoso que repuxava a camisa sobre
o peito. O cabelo loiro, cortado curto, cresceu quando ele abanou a cabeça e sua
altura aumentou.

Senti-me empalidecer. Transformara-se em Kist, puxando meu antigo medo


dele diretamente da minha cabeça. O demônio parecia ter um grande prazer em se
transformar no que quer que fosse e que, de preferência, me assustasse. Não ia
deixar que me abalasse. Não ia.

— Oh, isso é agradável — disse o demônio, seu sotaque transformando-se


num arrastar maroto e sensual para combinar com a nova aparência. — Você tem
248

medo das pessoas mais belas, Rachel Mariana Morgan. Gosto bastante de ser esta
— lambendo os lábios de forma sugestiva, pousou o olhar no meu pescoço,
demorando-se no local da cicatriz que me fez, enquanto eu jazia no chão do porão
da biblioteca da universidade, perdida numa névoa de êxtase induzida pela saliva
de vampiro, enquanto ele me matava.

A memória acelerou meu coração. Ergui a mão para tapar o pescoço. O peso
do seu olhar fixo fazia pressão sobre minha cicatriz, fazendo-a latejar.

— Pare — exigi, assustada quando ele ativou a cicatriz e os arrepios de


prazer correram como metal derretido do meu pescoço para a minha virilha.
Inspirei ruidosamente pelo nariz. — Eu disse pare!

O azul dos olhos de Kist cresceu e tornou-se vermelho. Vendo minha


determinação, os contornos do demônio borraram-se.

— Já não tem medo desse — disse ele, a voz alterando-se, ficando mais
baixa e carregada de sotaque britânico. — Que pena. Gosto tanto de ser jovem e
cheio de testosterona. Mas eu sei o que te assusta. Manteremos em segredo, hã?
Não há necessidade de Nick Sparagmos ficar sabendo. Não ainda. Ele pode querer
comprar a informação.

A respiração de Nick parecia rouca ao meu lado, enquanto o demônio


tirava o capacete de motociclista — que desapareceu de imediato numa névoa de
eternidade vermelha — e tremeluzia, regressando à sua anterior forma de nobreza
britânica de renda e veludo verde. Sorriu sob os óculos escuros redondos.

— Isso servirá, no entanto — disse.

Saltei quando Nick me tocou.

— Porque é que você está aqui? — perguntou. — Ninguém te chamou.

O demônio não disse nada, olhando para a cozinha com uma curiosidade
indisfarçável. Revelando uma graça predatória, começou a contornar a sala
iluminada, as brilhantes botas de fivela silenciosas sobre o linóleo.

— Sei que tudo isso é novo para vocês — meditou em voz alta, enquanto
tocava no copo de brandy onde se encontrava o Sr. Peixe — pousado no parapeito
da janela e o peixe tremia. — Mas, em geral, o invocador está fora do círculo e o
invocado dentro — girou sobre os calcanhares lançando pelo ar as longas caudas
do casaco. — Vou deixar passar essa, Rachel Mariana Morgan. Porque me fez rir.
Já não ria desde a Viragem. Todos nós rimos disso.
249

Minha pulsação tinha abrandado, mas meus joelhos ainda estavam moles.
Queria me sentar, mas não me atrevi.

— Como pode estar aqui? — perguntei. — Estamos em solo sagrado.

A visão de graça britânica abriu a geladeira. Emitindo um som de censura,


percorreu os restos retirando do interior uma embalagem meio vazia de cobertura
para bolos.

— Oh, sim, eu gosto desse acordo. Estar do lado de fora é muito mais
interessante. Acho que também vou responder a essa pergunta de graça.

Transpirando charme do velho mundo, abriu a tampa da embalagem. O


plástico azul desapareceu numa mancha de eternidade e o demônio mergulhou a
colher dourada que tinha tomado seu lugar na embalagem.

— Isso não é solo sagrado — disse, de pé, na minha cozinha envergando


um sobretudo e comendo cobertura de bolo. — A cozinha foi acrescentada depois
de o santuário ter sido abençoado. Podia mandar santificar todo o terreno, mas
depois ligaria o teu quarto à linha Ley no cemitério. Ooooh, não seria lindo?

Uma sensação terrível virou-me o estômago perante o possível significado


da sua afirmação. De sobrancelhas erguidas, ele olhava para mim sob os óculos
escuros, os olhos vermelhos revelando, de súbito, uma chocante dose de ira.

— É m e l h o r q u e t e n h a a l g o q u e va l h a a p e n a o u vi r o u vo u f i c a r
francamente irritado.

Endireitei-me ao compreender. Ele pensava que eu o tinha invocado com


uma oferta de informação para pagar minha nota promissória. Minha pulsação
voltou a correr, enquanto o recipiente de cobertura para bolos desaparecia da mão
do demônio e este se aproximava do círculo.

— Não! — disse, de repente, enquanto ele tocava no lençol de eternidade


entre nós.

O r o s t o d o d e m ô n i o p e r d e u s u a e xp r e s s ã o d i ve r t i d a e , d e r o s t o
mortalmente sério, virou sua atenção para sua linha de junção com o solo. Agarrei
o braço de Nick, enquanto ele murmurava qualquer coisa sobre estraçalhar os
invocadores membro a membro, chás interrompidos e a desconsideração de
arrancar alguém do seu jantar ou da frente da televisão na quarta-feira à noite. Um
choque de adrenalina percorreu meu corpo, quando o demônio se dissolveu numa
250

neblina vermelha e se afundou através das tábuas do assoalho. Apoiei-me em


Nick, enquanto os meus joelhos ameaçavam ceder.

— Ele está procurando canos — disse eu. — Não há canos. Eu verifiquei — o


medo fez tremer meus ombros, enquanto esperava que o demônio se erguesse
através do chão, aos meus pés e me matasse. — Eu verifiquei! — assegurei,
tentando convencer a mim mesma.

Sabia que o círculo atravessava rochas e raízes e o seu topo penetrava no


sótão, mas desde que não houvesse um caminho aberto — como uma linha
telefônica ou um cano de gás — o círculo era seguro. Até um notebook podia
quebrar o círculo, caso estivesse ligado à Internet e recebesse um e-mail.

— Oh, que bom! Ele está de volta — murmurou Nick quando o demônio
reapareceu no exterior do círculo e eu reprimi uma gargalhada, sabendo que
soaria histérica. Que tipo de vida eu estava levando para que ver um demônio
fosse uma coisa boa?

O de m ô n i o er g u eu - s e à no s s a f r e n t e , pe g a nd o n u m a pi t a d a d o q ue ,
provavelmente não era tabaco, de um pequeno bolso no colete e cheirando o pó
preto com ambas as narinas.

— Lançou um bom círculo — disse ele, entre espirros educados. — Tão


bom como o do teu pai.

Os meus olhos abriram-se e eu avancei para os limites do círculo.

— O que você sabe sobre meu pai?

— Reputação, Rachel Mariana Morgan — disse ele, com um trejeito.

— Só co n h e ço s u a re p u t a ç ã o . El e n ã o p e rt e n ci a a o me u ra m o d e
especialidade quando estava vivo. Agora que está morto, sinto-me interessado.
Minha especialidade são os segredos. Tal como Nick Sparagmos, ao que parece —
guardou a lata e puxou a cadeira de Ivy, que se encontrava em frente ao
computador. — Agora — disse ele, despreocupadamente, enquanto abanava o
mouse e entrava na Internet —, por muito divertido que isso seja, podemos
avançar? Seu círculo é vedado. Não vou te matar agora — os olhos vermelhos
tornaram-se marotos. — Mais tarde, talvez.

Segui seu olhar para o relógio sobre a pia. Era uma e quarenta. Esperei que
Ivy não chegasse, entretanto. Um vampiro morto-vivo era capaz de sobreviver ao
ataque de um demônio, mas um vivo teria tantas chances quanto eu. Inspirei
251

fundo, preparando-me para mandá-lo embora, porque eu não o tinha chamado,


mas um pensamento me fez parar. Ele sabia o apelido de Nick. Disse-o por duas
vezes.

— Ele sabe seu apelido — disse eu, voltando-me para Nick. — Por que ele
sabe seu apelido?

A boca de Nick abriu-se e os olhos dele deslizaram para o demônio.

— Hum...

— Por que ele sabe seu apelido? — exigi saber, as mãos nos quadris. Eu
estava farta de ter medo e Nick era um escape conveniente. — Tem chamado ele,
nãoé?

— Bem... — disse ele, com o rosto ficando vermelho.

— Seu idiota! — gritei. — Eu te disse que não chamasse. Você prometeu


que não chamaria!

— Não — disse ele, as mãos agarrando-me pelos ombros. — Não prometi.


Você disse que eu não iria fazer. E foi algo que, simplesmente, aconteceu. Da
primeira vez, nem sequer era minha intenção chamá-lo.

— Da primeira vez? — exclamei. — Quantas vezes foram?

Nick coçou os pêlos que despontavam no seu rosto.

— Sabe, eu estava desenhando pentagramas... Para treinar. Não ia fazer


nada. Ele apareceu, pensando que eu estava tentando chamá-lo com qualquer
informação para pagar minha dívida. Graças a Deus, estava dentro de um círculo
— Nick olhou para os papéis ensopados com suas linhas em giz prateado. — Tal
como apareceu esta noite.

Juntos, nos viramos para o demônio e ele encolheu os ombros, fazendo-os


subir e descer. Parecia mais do que disposto a esperar pelo final da nossa
discussão — no momento mais interessado na lista de favoritos de Ivy do que em
nós.

— Fala como se ele fosse uma pessoa, é uma coisa — disse eu. — E eu não
vou deixar que coloque a culpa no demônio.
252

— Que simpático da sua parte, Rachel Mariana Morgan — disse o demônio,


e eu franzi a sobrancelha.

Nick começava a parecer zangado. Com um impulso súbito, afastei seu


cabelo da têmpora esquerda. Fiquei sem fôlego ao ver que duas linhas cruzavam a
cicatriz de demônio, em vez de uma.

— Nick! — gemi. — Sabe o que acontece quando fica com muitas linhas
dessas?

Ele recuou um passo, incomodado, e o cabelo castanho caiu, escondendo-as.

— Ele pode te puxar para a eternidade! — gritei, querendo dar-lhe uma boa
tapa.

Eu só tinha uma linha atravessando minha cicatriz e, mesmo assim, a


preocupação era suficiente para me manter acordada à noite. Nick não disse nada,
observando-me com olhos que não mostravam qualquer arrependimento. Maldito
fosse tudo aquilo, ele nem sequer estava tentando se explicar.

— Fala comigo! — exclamei.

— Rachel — disse ele. — Não vai acontecer nada. Eu tenho tido cuidado.

— Mas você já tem duas notas promissórias — protestei. — Se não


conseguir pagá-las, passará a pertencê-lo.

Ele sorriu confiante e eu amaldiçoei sua crença de que a palavra impressa


tinha todas as respostas e que ele ficaria em segurança se seguisse as regras.

— Está tudo bem — disse ele, voltando a segurar em meus ombros. — É


apenas um contrato de experiência.

— Contrato de experiência... — repeti, chocada. — Nick, isso não é uma


promoção de leve três e pague dois. Ele está tentando ficar com tua alma!

O demônio riu e eu direcionei a ele meu olhar.

— Isso não vai acontecer — disse Nick, para me acalmar. — Posso chamá-lo
sempre que quiser, como se entregasse minha alma. E, ao fim de três anos, estou
livre, sem ligações ou compromissos.

— Parece um negócio bom demais, não está prestando atenção nas letras
miudinhas.
253

Ainda assim ele sorria. O rosto mostrando confiança em vez do terror que
devia estar sentindo.

— Eu li as letras miudinhas — o dedo ergueu-se para me tocar nos lábios e


pôr um fim às minhas explosões. — Todas. As perguntas menores são respondidas
de graça e posso colocar perguntas maiores como crédito.

Fechei os olhos.

— Nick. Sabia que sua aura tem contornos negros? No olho da minha
mente, você parece um fantasma.

— Você também, querida — sussurrou Nick, puxando-me para mais perto.

Chocada, não fiz nada quando seus braços me envolveram. Minha aura
estava tão manchada como a dele? Eu não fiz nada a não ser permitir que ele me
salvasse a vida.

— Ele tem todas as respostas, Rachel — sussurrou Nick e eu senti meu


cabelo mover-se com a respiração dele. — Não consigo evitá-lo.

O demônio tossiu, limpando a garganta e eu afastei-me de Nick.

— Nick Sparagmos é o meu melhor aluno desde Benjamin Franklin — disse


o demônio. Sua pronúncia fazia com que isso parecesse absolutamente razoável,
enquanto tocava na tela de Ivy e fazia com que esta se tornasse azul.

Contudo, ele não me enganava. Aquela coisa não podia ser influenciada por
pena, culpa ou remorso. Se tivesse encontrado uma forma de atravessar meu
c ír c u l o , te r i a n o s m a t a d o , a m b o s , p e l a a u d á c i a d e te r m o s o c h a m a d o d a
eternidade... Tivesse sido intencional ou não.

— Ainda que Átila pudesse ter ido mais longe se tivesse sido capaz de ver
além das aplicações militares — continuou, olhando para as unhas. — E é difícil
ser melhor que Leonardo di Ser Piero da Vinci, no que diz respeito à esperteza
sem rodeios.

— Exibicionista — murmurei e o demônio inclinou graciosamente a cabeça.

Era mais do que óbvio que, se Nick tivesse o demônio às suas ordens
durante três anos, concordaria com qualquer coisa para mantê-lo ali. Que era
precisamente aquilo com que o demônio estava contando.
254

— Hum, Rachel... — disse Nick, enquanto lhe tocava no ombro. — Já que


ele está aqui, talvez não fosse má ideia arranjar um nome de invocação para que
ele não apareça a cada vez que você fechar um círculo ou desenhar um
pentagrama. Foi assim que ele ficou sabendo meu nome. Disse em troca do seu
nome de invocação.

— Eu sei vossos nomes, Rachel Mariana Morgan — disse o demônio. —


Quero um segredo.

Senti um aperto no estômago.

— Claro — disse, cansada, enquanto procurava algo. Tinha alguns. Meus


olhos caíram sobre a fotografia do meu pai e do pai de Trent e ergui-a, em silêncio,
perante o lençol transparente de eternidade.

— Onde está o segredo nisso? — troçou o demônio. — Dois homens em


frente a um ônibus.

Depois piscou os olhos. Eu observei fascinada, enquanto suas pupilas se


abriam até os olhos ficarem quase inteiramente pretos. De pé, à nossa frente,
estendeu um braço na direção da fotografia. Um palavrão murmurado atravessou-
lhe os lábios quando os dedos chocaram com a barreira. Senti o cheiro de
queimado.

Minha pulsação acelerou perante seu súbito interesse. Talvez fosse o


suficiente para pagar toda minha dívida.

— Interessado? — perguntei, provocando-o. — Limpa minha dívida e digo


quem são.

O demônio recuou, rindo.

— O h , a c h a qu e é as s i m t ã o i m p o r t a n t e? — t r o ç o u . M a s s e u s o l h o s
seguiram a foto enquanto a colocava no balcão atrás de mim.

Sem aviso, mudou de forma. A mancha vermelha de eternidade derreteu-se


e fluiu. Fitei-o, em choque, enquanto ele assumia meu rosto. Até tinha sarda. Era
c o m o o l h a r p a r a u m e s pe l ho e eu f i q u e i c o m p é s de ga l i n h a q ua n d o m i n h a
imagem se moveu sem que fosse eu a controlá-la. Nick ficou pálido, o rosto caído,
enquanto seus olhos saltavam entre mim e o demônio.

— Eu sei quem são os dois homens — disse o demônio, usando minha voz.
— Um é o seu pai, o outro é o pai de Trenton Aloysius Kalamack. Mas o ônibus do
255

acampamento de férias? — seus olhos fixaram-se em mim com um prazer


retorcido. — Rachel Mariana Morgan, deste-me, de fato, um segredo.

Ele sabia o nome completo de Trent? Então fora o mesmo demônio que nos
atacou. Alguém quis matar aos dois. Por um instante, senti-me tentada a
perguntar ao demônio quem foi, depois deixei cair o olhar. Podia descobri-lo
sozinha e não me custaria a alma.

— Ficamos quites por ter me levado através das linhas Ley e parte para
sempre — disse eu e o demônio riu. Perguntei-me se meus dentes eram,
realmente, assim tão grandes quando abria a boca.

— Oh, é uma querida — disse ele, com minha voz e a pronúncia dele. —
Ver essa fotografia é suficiente para comprar um nome de invocação, talvez, mas
não para te absolver da sua dívida, preciso de algo mais. Algo que poderia
significar tua morte, caso fosse sussurrado aos ouvidos certos.

A ideia de que poderia me ver livre dele para sempre encheu-me de uma
ousadia considerável.

— E se eu te dissesse o porquê de estar lá? No acampamento de férias? —


Nick moveu-se nervoso ao meu lado, mas se isso bastasse para me ver livre do
demônio para sempre, valia a pena.

O demônio riu.

— Se acha muito importante. Isso não pode valer sua alma.

— Então direi o porquê se puder te chamar em segurança, sem precisar de


um círculo — disse, de repente, pensando que ele não queria limpar minha dívida
só para poder me apanhar mais tarde.

Dito isso, o demônio riu, revirando-me o estômago quando sua forma


mudou de modo grotesco, adquirindo de novo a aparência do cavalheiro britânico
sem nunca parar de rugir de júbilo.

— Uma promessa de segurança sem um círculo? — disse ele, limpando os


olhos, quando voltou a ser capaz de falar. — Não há nada sobre essa terra
fedorenta que valha isso.

Engoli em seco. Meu segredo era bom — e tudo o que eu queria era me ver
livre dele —, mas ele não acreditaria no seu valor a menos que eu lhe contasse
primeiro.
256

— Eu tinha uma rara doença de sangue — disse, antes que mudasse de


ideia. — Acho que o pai de Trent me curou com sua terapia genética ilegal.

O demônio deu uma gargalhada.

— Você e vários milhares de outros fedelhos — com a cauda do casaco a


flutuar, avançou para a beira do círculo. Eu recuei até ao balcão, com o coração
acelerado. — É melhor que comece a levar isso a sério ou posso perder meu bom...
— estacou ao ver meu livro aberto no encantamento para prender um familiar. —
Humor — terminou, a palavra perdendo-se no vazio. — Onde é que... —
gaguejou, depois pestanejou me analisando e depois a Nick, com os seus olhos de
cobra. Não podia ter ficado mais surpreendida quando um som de descrença
escapou dele. — Oh — disse, parecendo chocado. — Maldito seja três vezes.

Nick estendeu o braço atrás de mim, fechando o livro e tapando-o com


minhas folhas de papel preto. De súbito senti-me dez vezes mais nervosa. Meu
olhar percorreu as velas transparentes e o pentagrama de sal. Que raio eu estava
fazendo?

O demônio recuou, imerso em pensamentos, pousando primeiro os dedos,


depois os calcanhares. Levando ao queixo a mão coberta por uma luva branca,
olhou para mim com uma nova intensidade, dando-me a sensação de ser capaz de
ver através de mim com a mesma facilidade com que eu conseguia ver através das
velas verdes que acendi, sem saber para que serviam. Sua rápida passagem de
raiva para surpresa e depois para uma maquinação insidiosa penetrou até meu
âmago, fazendo-me tremer.

— Ora bem, não sejamos apressados — corrigiu, a testa franzida, enquanto


fitava o relógio repleto de engenhocas que lhe apareceu no pulso mal ele baixou os
olhos. O relógio era igual ao de Nick. — O que fazer, o que fazer... Matar-te ou
manter-te? Agarrar-me à tradição ou curvar-me ao progresso? Creio que a única
coisa que sobreviverá em tribunal será deixar-te decidir — sorriu e um arrepio
incontrolável me fez tremer. — E nós queremos que isso seja legal. Muito, muito
legal.

Assustada, deslizei ao longo do balcão para tocar em Nick. Desde quando a


legalidade significava alguma coisa para um demônio?

— Eu não te matarei se me invocar sem um círculo — disse abruptamente o


demônio, os saltos batendo sonoros no linóleo, enquanto ele recuava e a excitação
era visível em seus movimentos impulsivos. — Se estiver certo, seria algo que te
257

daria de qualquer forma. Em breve saberemos — ele sorriu. Maléfico. — Mal


posso esperar. Seja como for, será minha.

Saltei quando Nick me tocou no cotovelo.

— Nunca ouvi falar de uma promessa de segurança sem círculo —


sussurrou ele, os olhos semicerrados. — Nunca.

— É porque só é dada aos mortos-vivos, Nick Sparagmos.

O mau pressentimento que se instalara no fundo do meu estômago


começou a subir, apertando todos os músculos no seu caminho. Não havia nada
nesta terra fedorenta que valesse uma invocação sem riscos, mas ele me dera em
vez de me absolver da minha dívida? Oh, aquilo tinha de ser bom. Eu tinha
ignorado qualquer coisa. Eu sabia. Resoluta, afastei o pressentimento. Já tinha feito
maus negócios e sobrevivido.

— Ótimo — disse eu, minha voz tremendo. — Já terminei. Quero que


regresse diretamente à eternidade, sem quaisquer desvios pelo caminho.

O demônio voltou a olhar de relance para o pulso.

— Uma senhora tão dura — disse, elegante, revelando excelente humor,


enquanto abria o congelador e tirava uma caixa de batatas fritas de micro-ondas
congeladas. — Mas você está num círculo e eu estou aqui, partirei quando me
apetecer — a mão coberta pela luva estava envolta num borrão vermelho que se
dissipou revelando as batatas fumegando. Abrindo a porta da geladeira, franziu a
sobrancelha. — Não há ketchup?

Duas da manhã — pensei, olhando de relance para o relógio. Por que isso era
importante?

— Nick — sussurrei, gelando. — Tira a bateria do seu relógio. Agora.

— O quê?

O relógio por cima da pia dizia que faltavam dois minutos para as duas. Eu
não tinha certeza que estivesse muito certo.

— Faça! — gritei. — Está ligado ao relógio atômico do Colorado. Este envia


um impulso à meia-noite, a hora local para acertar todos os relógios. O impulso
vai quebrar o círculo, tal como uma linha telefônica ativa ou um cano de gás.

— Oh... Merda — disse Nick, o rosto inexpressivo tornando-se branco.


258

— Maldita seja, bruxa! — gritou o demônio, furioso. — Quase apanhei os


dois.

Nick mexia frenético no seu relógio, os dedos longos puxando pela parte de
trás.

— Tem uma moeda? Preciso de uma moeda para abrir a parte de trás — os
olhos dele estavam assustados, quando se fixaram no relógio por cima da pia.
Enfiou a mão no bolso, procurando.

— Me dá aqui! — exclamei, arrancando o relógio. Atirei-o para o balcão.


Tirando o martelo de carne do suporte por cima da ilha, agitei-o.

— Não! — gritou Nick, enquanto as peças do relógio voavam para todos os


lados. — Ainda tínhamos três minutos!

Afastei as mãos dele com uma tapa e continuei martelando o relógio.

— Vê! — exclamei, fazendo cair o martelo, uma e outra vez. — Vê como ele
é esperto? — a adrenalina tornava meus movimentos bruscos, enquanto agitava o
martelo de madeira na direção dele. — Sabia que você tinha esse relógio. Só estava
à espera! Foi por isso que concordou em dar-me uma invocação segura!

Com um grito de frustração, lancei o martelo na direção do demônio. O


martelo bateu na parede invisível do círculo e voltou, caindo aos meus pés com
um baque. Não restava muito do relógio de Nick, além da parte de trás e de
estilhaços de quartzo. Nick encostou-se ao balcão, os dedos de uma das mãos
pressionando a testa, enquanto mantinha a cabeça inclinada.

— Pensei que ele queria me ensinar — sussurrou Nick — Todas essas vezes,
ele só estava tentando que eu o mantivesse comigo até o círculo ser quebrado.

Ele saltou quando toquei seu ombro, fitando-me com olhos assustados.
Finalmente estava assustado.

— Compreende agora? — perguntei, amarga. — Vai te matar. Vai te matar


e ficar com sua alma. Diz que não vai voltar a chamá-lo. Por favor?

Nick inspirou. Seu olhar cruzou-se com os meus, a cabeça balançava.

— Terei mais cuidado — sussurrou. Frustrada, virei-me para o demônio.

— Sai daqui, já disse! -— gritei.


259

Com uma graça sobrenatural, o demônio endireitou-se. A imagem de um


cavalheiro britânico demorou-se ajustando a renda ao redor do pescoço e, depois,
dos punhos. Com movimentos lentos e deliberados, voltou a empurrar a cadeira
para debaixo da mesa. Inclinou a cabeça na minha direção, os olhos vermelhos a
espreitar por cima dos óculos.

— Parabéns por ter conseguido prender seu familiar, Rachel Mariana


Morgan — disse ele. — Invoque-me com o nome Algaiarept. Se revelar a alguém
meu nome, será minha de imediato. E não pense que, só porque não tem de estar
num círculo para me invocar, está segura. É minha. Nem mesmo sua alma vale sua
liberdade.

E, dito isto, desapareceu num borrão de eternidade vermelha, deixando


para trás o cheiro de gordura e batatas fritas.
260

Capitulo 17
Eu estava sentada no banco alto do laboratório batendo com o tornozelo
contra a perna do banco.

— Durante quanto tempo acha que ela pode arrastar isso? — perguntei a
Janine, enquanto apontava para Dra. Anders com a cabeça. A mulher estava junto à
mesa, em frente ao quadro negro, testando um dos alunos.

Janine arrebentou o chiclete em uma bolha e enrolou um dedo no cabelo


invejosamente liso. Seu anterior medo da minha marca de demônio tinha se
transformado em atrevimento rebelde, depois de eu ter dito que tinha recebido a
cicatriz devido ao meu anterior trabalho com a SI. Sim, era 90% mentira, mas não
consegui suportar sua desconfiança.

— As avaliações de familiares demoram uma eternidade — concordou a


jovem. Os dedos da mão livre acariciavam gentilmente o pêlo entre as orelhas do
gato.

O Manx de pêlo branco tinha os olhos fechados apreciando, claramente, a


atenção. Meu olhar deslizou para Bob. Eu o tinha colocado num recipiente grande
de manteiga de amendoim com tampa, para poder levá-lo até ali. Janine tinha feito
um "ooooh" quando o viu, mas eu sabia que estava apenas tentando ser simpática.
261

Quase todos tinham gatos. Um tinha um furão. Eu pensei que isso era legal e o
garoto a quem pertencia disse que eram os melhores familiares.

Bob e eu éramos os únicos dois que ainda não tinham sido avaliados e a sala
estava quase vazia, mas Janine estava à espera de Paula, a aluna com a Dra.
Anders. Nervosa, puxei o recipiente onde estava Bob para mais perto e olhei de
relance pela janela, para as luzes que começavam a se acender no parque de
estacionamento.

Tinha a esperança de ver Ivy essa noite. Ainda não tínhamos nos cruzado
desde que Nick a pôs para dormir. Eu sabia que ela tinha estado na igreja. Nessa
tarde havia café na cafeteira e as mensagens tinham sido apagadas. Ela tinha se
levantado e saiu antes de eu acordar. Isso não parecia nada com ela, mas sabia que
não devia forçar uma conversa antes de ela estar pronta.

— Ei — disse Janine, voltando a chamar minha atenção. — Eu e Paula


vamos ao Piscary's almoçar antes de o Sol se pôr e aquilo ficar cheio de vampiros
mortos-vivos. Quer vir? Podemos esperar por você.

Sua oferta agradava-me mais do que eu queria admitir, mas abanei a


cabeça.

— Obrigada, mas não. Já fiz planos com meu namorado — Nick estava
trabalhando no edifício ao lado e como saía mais ou menos na mesma hora em que
minha aula devia terminar, íamos ao Micky-d's — ele para jantar e eu para
almoçar.

— Trás ele com você — disse Janine, o risco espesso de delineador azul
chocando com sua aparência, em todo o resto de bom gosto. — Ter um cara numa
mesa de garotas atrai sempre os caras mais gostosos e solteiros para a mesa.

Não pude evitar um sorriso.

— Nã-ã-ã-ão — disse, sem querer revelar que o Piscary me assustava de


morte fazendo tilintar minha cicatriz e, que era o tio da minha colega de casa, por
falta de melhor termo. — Nick é humano — disse eu. — Seria um bocado
esquisito.

— Está namorando um humano! — sussurrou Janine, com a voz rouca. —


Ei, é verdade o que dizem?

Olhei para ela de lado, enquanto Paula deixava a Dra. Anders e se juntava a
nós.
262

— Sobre o quê? — perguntei, enquanto Paula enfiava o gato pouco


cooperante numa mala transportadora desdobrável, entre miados e cuspidelas. Eu
observava, chocada, enquanto ela puxava o fecho.

— Você sabe... — Janine tocou-me no braço. — Eles têm... Hum... São


mesmo...

Afastando os olhos da transportadora que tremia, sorri.

— Sim. Têm. São mesmo.

— Droga! — exclamou Janine, estendendo um braço para agarrar no de


Paula. — Ouviu isso, Paula? Tenho de encantar um humano antes que fique muito
velha para apreciá-lo.

Paula corou, parecendo especialmente vermelha em contraste com o cabelo


louro.

— Pára — silvou ela, dirigindo um olhar à Dra. Anders.

— O que foi? — disse Janine, nem um pouco atrapalhada enquanto abria a


transportadora e o gato entrava nela voluntariamente, enroscando-se e
ronronando. — Não me casaria com um, mas o que há de mau em dar umas
cambalhotas com um humano enquanto se procura o Sr. Certo? A primeira
mulher do meu pai era humana.

Nossa conversa foi interrompida quando a Dra. Anders tossiu para limpar a
garganta. Janine agarrou a mala e deslizou do banco alto. Dirigindo às duas
mulheres um sorriso fraco, tirei o recipiente de manteiga de amendoim onde
e s t a v a B o b d e c i m a d e u m d o s b a n c o s e a v a n c e i p a r a fr e n te d a s a l a . Os
pentagramas de Nick estavam enfiados debaixo do meu braço e a Dra. Anders não
levantou os olhos enquanto eu deslizava o recipiente para o espaço vazio sobre
sua mesa.

Queria acabar com aquilo e sair dali. Nick ia levar-me ao DFI depois de
jantar para que eu pudesse falar com Sara Jane. Glenn tinha lhe pedido que fosse
lá para obter algumas informações sobre os padrões cotidianos de Dan e eu queria
perguntar sobre o paradeiro de Trent nos últimos dias. Glenn não estava muito
contente com o caminho que eu escolhi seguir na investigação, mas aquela missão
também era minha, porra.

Nervosa, obriguei-me a avançar para a cadeira ao lado da mesa da Dra.


Anders, perguntando-me se Jenks tinha razão e a ida de Sara Jane ao DFI seria
263

apenas uma forma indireta de Trent me pegar. Uma coisa era certa, Dra. Anders
não era o caçador de bruxas. Ela era má, mas não era uma assassina.

As duas garotas hesitaram junto à porta com as transportadoras dos gatos


fazendo-as inclinar-se.

— Nos vemos segunda-feira, Rachel — disse Janine.

Acenei-lhe e a Dra. Anders emitiu um ruído irritado com a garganta. A


mulher, tensa, colocou uma folha branca no topo da pilha de papéis e escreveu
meu nome em grandes letras maiúsculas.

— Tartaruga? — calculou a Dra. Anders ao olhar de relance para o meu


recipiente.

— Peixe — disse eu, sentindo-me uma idiota.

— Pelo menos conhece os seus limites — disse ela. — Sendo uma bruxa de
terra, seria difícil controlar uma quantidade de eternidade suficiente para unir
uma ratazana a si, quanto mais o gato que, decerto, desejava.

A voz dela era quase paternalista e tive de forçar as mãos a abrirem-se.

— Sabe, senhorita Morgan — disse a Dra. Anders, enquanto abria a tampa e


espreitava —, quanto mais poder conseguir canalizar, mais inteligente precisa ser
seu familiar. Eu tenho um papagaio cinzento africano como familiar — olhar dela
caiu sobre o meu. — Isso é o seu trabalho de casa?

Reprimi uma onda de irritação e entreguei-lhe uma pasta cor-de-rosa


repleta de composições. No fundo estavam os pentagramas de Nick, salpicados de
água, o papel preto enrolado e ondulado. Os lábios da Dra. Anders estavam tão
apertados que pareciam brancos.

— Obrigada — disse ela, atirando os desenhos de Nick para o lado sem


sequer os olhar. — Tem uma segunda oportunidade, senhorita Morgan. Mas não
tem lugar na minha cadeira e correrei com você na primeira oportunidade.

Mantive a respiração controlada. Sabia que ela não teria se atrevido a dizer
aquilo se estivesse mais alguém na sala.

— Bem — murmurou como se estivesse cansada —, vamos ver quanto da


sua aura o peixe foi capaz de aceitar.
264

— Foi muita — meu humor alterou-se, ficando mais nervoso. Nick tinha
olhado para minha aura antes de sair na noite anterior, anunciando que estava
muito fina. Iria se repor lentamente, entretanto, sentia-me vulnerável.

A Dra. Anders manteve para si a sua opinião sobre a minha óbvia agitação.
Com o olhar ficando distante, mergulhou os dedos na água de Bob. A pele na parte
de trás do meu pescoço ficou tensa e pareceu-me que meu cabelo esvoaçou no
vento que soprava sempre na eternidade. Observei, fascinada, enquanto uma
mancha azul saía das suas mãos e envolvia Bob. Era poder das linhas Ley, tendo
passado de vermelho para azul, refletindo a cor dominante da aura da mulher.

Era pouco provável que a Dra. Anders estivesse usando a linha Ley da
universidade. O poder devia ter sido recolhido mais cedo e armazenado; permitia
realizar os feitiços mais depressa. Eu estava disposta a apostar que o fato de ter
uma esfera de eternidade no estômago era o que a fazia tão amarga. A névoa azul
ao redor de Bob desvaneceu-se, enquanto a Dra. Anders retirava os dedos da água.

— Pegue seu peixe e saia daqui — disse a mulher, bruscamente. —


Considere-se reprovada.

Chocada, não podia fazer mais nada senão olhar fixamente para ela.

— O quê? — acabei por dizer.

A Dra. Anders limpou os dedos num lenço de papel seco e atirou-o para a
lixeira, por baixo da mesa.

— Este peixe não está ligado a você. Se estivesse, a força das linhas Ley com
que o cobri teria assumido a cor da sua aura — o olhar dela tornou-se indistinto,
como se estivesse olhando através de mim, depois voltou a focá-lo. — Sua aura é
de um dourado enjoativo. O que andou fazendo, senhorita Morgan, para manchá-
lo com uma tão espessa névoa vermelha e preta?

— Mas eu segui as instruções! — gritei, sem me levantar, enquanto ela


começava a escrever no meu formulário. — Falta-me um bom bocado de aura.
Onde ela está?

— Talvez tenha entrado um inseto no círculo — disse ela, colérica. — Vá


para casa, chame seu familiar e veja o que aparece.

Com o coração batendo veloz, lambi os lábios. Como infernos é que se


chama um familiar? Ela ergueu os olhos do texto que estava escrevendo, cruzando
os braços sobre a página.
265

— Não sabe como chamar seu familiar.

Não era uma pergunta. Ergui o ombro esquerdo e deixei-o cair, num
encolher de ombros. O que é que eu podia dizer?

— Eu faço — murmurou ela — Dê-me sua mão.

Assustei-me quando ela me agarrou no pulso. Sua mão ossuda era


surpreendentemente forte. O sabor metálico da cinza cobriu-me a língua enquanto
a Dra. Anders murmurava um encantamento. Era como roer papel de estanho e
afastei a mão, mal seus dedos relaxaram. Esfregando o pulso, observei Bob,
desejando que ele nadasse até à superfície, na minha direção, qualquer coisa. Ele
limitou-se a ficar no fundo e a abanar a cauda.

— Não compreendo — sussurrei, sentindo-me traída pelos meus livros e


pelas habilidades na realização de feitiços em que confiava tanto. — Eu segui as
instruções.

A Dra. Anders tinha uma expressão absolutamente arrogante.

— Acabará por descobrir, senhorita Morgan, que, ao contrário da magia de


terra, a manipulação das linhas Ley requer mais do que uma adesão sem
imaginação a regras e dicas de fazê-las. É necessário talento e certa dose de
liberdade de pensamento e adaptabilidade. Vá para casa. Transforme o que quer
que seja que lhe apareça à porta num animal de estimação. E não volte à minha
aula.

— Mas eu fiz tudo certo! — protestei, levantando-me enquanto ela me


enxotava, agitando as mãos e mexia nos papéis, indicando-me que devia partir. —
Pus-me em cima do espelho de adivinhação e empurrei minha aura. Meti-o no
meio de transferência sem lhe tocar. Joguei Bob lá dentro...

A Dra. Anders saltou, virando para mim o rosto magro.

— Espelho de adivinhação?

— Disse o encantamento — continuei. — Nick disse que não fazia diferença


dizê-lo ou não em latim.

Frustrada, deixei-me ficar em frente à mesa dela e funguei. Se partisse,


estaria tudo acabado. Já não era uma questão de dinheiro. Era o fato de aquela
mulher me achar uma idiota.

— Latim? — o rosto da Dra. Anders estava branco.


266

— Eu disse-o — protestei, recordando a noite na minha mente. — E


depois... — fiquei sem fôlego e senti o rosto gelado. — E depois apareceu o
demônio — sussurrei, afundando-me na cadeira antes que os meus olhos
cedessem. — Oh, Deus! Será que ele levou a minha aura? Será que o demônio
levou a minha aura?

— Demônio? — ela parecia chocada. — Chamou um demônio?

E n t r e i e m p â n i c o , s e n ta d a à m e s a d a q u e l a m u l h e r te r r ív e l . E s t a v
a
assustadíssima e não me importava que ela soubesse. Algaliarept tinha minha
aura.

— Ele atravessou o círculo! — balbuciei, usando toda minha força de


vontade para não lhe agarrar o braço. — Ele conseguiu, de alguma forma, tirar
minha aura através do círculo!

— Senhorita Morgan! — exclamou a Dra. Anders. — Se um demônio


entrasse no seu círculo, não estaria sentada à minha frente. Estaria com ele na
eternidade implorando que a matassem!

Assustada, deixei-me ficar sentada onde estava com os braços envolvendo


meu corpo num abraço apertado. Eu era uma agente, não uma caçadora de
demônios.

A mulher parecia zangada, enquanto batia com a caneta no tampo da mesa.

— Por que se pôs a invocar um demônio? Essas coisas são perigosas.

— Eu não o fiz — disse, de forma repentina. — Tem de acreditar em mim.


Apareceu sozinho. Sabe, eu lhe devo um favor por ter me levado através das
linhas Ley depois de ter tentado me matar. Era a única forma de voltar para Ivy
antes de me esvair em sangue. Ele pensou que eu o estava chamando para saldar
minha dívida, por causa do círculo e dos pentagramas que Nick estava copiando...
Hum... Para mim.

Os olhos dela saltaram para os desenhos manchados de água.

— Foi seu namorado quem os desenhou?

Uma vez mais acenei incapaz de mentir diretamente.

— Eu ia refazê-los mais tarde — disse eu. — Não tinha tempo para fazer
duas semanas de trabalho e apanhar um assassino ao mesmo tempo.
267

A Dra. Anders ficou rígida.

— Eu não matei meus antigos alunos.

Baixei os olhos e senti que me começava a acalmar.

— Eu sei.

Ela inspirou fundo, segurando por um momento a respiração antes de


deixar escapar o ar. Senti uma espécie de força das linhas Ley passar entre
nós e deixei-me ficar sentada de olhos muito abertos, perguntando-me o
que ela estava fazendo.

— Não pensa que eu os matei — disse ela, por fim e a sensação de


que
estava roendo folha de estanho parou. — Então por que está na minha
aula?

— O capitão Edden do DFI enviou-me em busca de provas de que


a senhora é o caçador de bruxas — disse eu. — Ele não me paga se eu não
seguir o ponto de vista dele. É desagradável, autoritária e a coisa pior que
já vi desde a
minha professora da quarta série, mas não é uma
assassina.

A mulher mais velha afundou-se na cadeira, enquanto a tensão


desaparecia.

— Obrigada — sussurrou. — Não sabe como é bom ouvir alguém


dizer isso
— ergueu a cabeça, chocando-me com um sorriso. — A parte de não ser o
assassino — acrescentou. — Os adjetivos eu vou ignorar.

Vendo nela um toque de humanidade, disse, de


repente:

— Não gosto de linhas Ley, Dra. Anders. Onde está o resto da minha
aura?

Ela inspirou, preparando-se para dizer qualquer coisa parando


quando o
olhar se dirigiu sobre o meu ombro, para a porta. Girei na cadeira, ao ouvir
um hesitante bater na porta. Nick espreitou pela porta aberta e eu senti o
meu rosto iluminar-se.

— Peço desculpa, Dra. Anders — disse ele, exibindo o crachá de


funcionário da universidade que trazia preso à camisa. — Posso
interromper por
um momento?
edor.
— Importa-se de fechar a porta, por
favor?
Est
ou co
m
um
a
alu na

diss
e
ela,
o
tom prof
issi
ona l de
volt aà
sua voz.

Irei ver
voc
ê
den
tro de
um
min uto
se
não
se
imp orta
r de esp
erar
no
corr
268

Nick encolheu-se, parecendo desconfortável com sua calça jeans e camisa


simples, no corredor.

— Hum, é com Rachel que preciso falar. Lamento muito por interromper
assim. Trabalho no edifício ao lado — virou-se para olhar para o corredor e depois
para o interior da sala. — Queria ver se ela estava bem. E saber quanto tempo
ainda irá demorar?

— Quem é você? — perguntou Dra. Anders, o rosto pálido.

— Este é Nick — disse eu, envergonhada. — Meu namorado.

Dobrado de embaraço, Nick remexeu-se.

— Nem sequer sei o porquê de está-las incomodando — disse ele. — Vou


esperar no pátio.

Um repente do que parecia ser horror passou pelo rosto da Dra. Anders. Ela
olhou de mim para Nick, depois se levantou. Batendo os calcanhares, puxou-o
para ela e fechou a porta atrás dele.

— Fique aqui — disse ela, deixando-o pasmo em frente à mesa dela.

Os pentagramas de Nick encontravam-se à nossa frente, como se tivesse


sido dada substância ao sentimento de culpa. De pé, em frente às janelas e de
costas viradas para nós, a Dra. Anders olhava para o parque de estacionamento.

— Onde arranjaram um feitiço em latim para prender um familiar? —


perguntou.

Nick tocou meu ombro num gesto de simpatia e eu desejei nunca o ter
envolvido naquilo.

— Hum, de um dos meus livros de feitiços antigos — admiti, pensando que


ela queria Nick ali para confirmação. — Foi o único feitiço que consegui encontrar,
em tão pouco tempo. Mas eu conheço os pentagramas. Só não tive tempo de
desenhá-los.

— Há um encantamento para prender o familiar no apêndice do seu


manual — disse ela, parecendo cansada. — Era suposto ter usado esse — não era
com os pentagramas que ela estava preocupada e um arrepio gelado percorreu o
meu corpo, quando ela se virou. As rugas que lhe marcavam o rosto pareciam
mais profundas sob a luz fluorescente. — Conte-me exatamente o que fez.
269

Perante o aceno encorajador de Nick, eu disse:

— Hum, primeiro fiz o meio de transferência, depois fechei o círculo.

— Modificado para invocar e proteger — interrompeu Nick. — Eu estava lá


dentro com ela.

— Esperem um instante — disse a Dra. Anders. — Que tamanho tinha o


círculo?

Eu puxei o cabelo para trás, feliz por ela já não estar falando comigo num
tom ríspido.

— Talvez uns dois metros.

— De circunferência?

— De diâmetro.

Ela inspirou fundo e sentou-se, fazendo-me um gesto para que continuasse.

— Hum, depois me pus em cima do espelho e empurrei a aura para fora de


mim.

— Qual foi a sensação? — sussurrou ela, os cotovelos pousados na mesa


enquanto fitava a janela.

— Muitíssimo... Hum... Desconfortável. Coloquei o espelho no meio de


transferência sem tocar na superfície. Minha aura precipitou-se para ele e, depois
mergulhei Bob.

— No meio de transferência?

Acenei, embora ela não estivesse olhando para mim.

— Calculei que fosse a única forma de ungir o peixe. Depois disse o


encantamento.

— Na verdade — interrompeu Nick. — Eu disse o encantamento primeiro,


em latim, depois traduzi, tendo dado uma interpretação alternativa quanto à
última parte.

— É verdade — admiti. — Eu o disse e, depois, apareceu o demônio —


olhei de relance para Nick, mas era algo que não o incomodava tanto como a mim.
270

— Depois entornei o recipiente onde estava Bob. A minha aura estava sobre ele. Eu
tive medo que o círculo pudesse ser quebrado caso minha aura lhe tocasse.

— Teria sido — a Dra. Anders estava de novo de pé olhando para o parque


de estacionamento.

— É por isso que me falta tanta aura? — perguntei. — Joguei fora com o
papel de cozinha?

A Dra. Anders pousou sobre mim o seu olhar.

— Não. Acho que fez de Nick seu familiar.

Fiquei de queixo caído. Virei-me na cadeira e ergui os olhos para Nick. Sua
mão caiu do meu ombro e ele deu um passo atrás.

— O quê?! — exclamei.

— Pode-se fazer isso? — perguntou Nick.

— Não. Não se pode — disse a Dra. Anders. — Os seres pensantes com


livre vontade não podem ser unidos a outros através de um encantamento. Mas
misturaram magia de terra com magia das linhas Ley. Nunca ouvi falar de um
método como esse para prender um familiar. Onde arranjou o livro?

— No meu sótão — sussurrei. Olhei para Nick. — Oh, Nick — disse,


envergonhada. — Lamento muito. Deve ter pegado minha aura quando estava
tentando apanhar Bob.

Nick parecia confuso.

— Eu sou seu familiar? — sussurrou, o rosto comprido com uma expressão


interrogativa.

A Dra. Anders soltou uma gargalhada amarga.

— Não é nada de que se deva orgulhar, senhorita Morgan. Tomar um


humano como familiar é hediondo. É escravidão. É demoníaco.

— Espera aí — gaguejei, sentindo-me gelar. — Foi um acidente.

Os olhos da mulher ficaram duros.

— Lembra-se do que disse sobre as habilidades do praticante estarem


ligadas às do seu familiar? Os demônios usam pessoas como familiares. Quanto
271

mais poderosa a pessoa, mais poder o demônio consegue usar através dela. É por
isso que estão sempre tentando educar os tolos em magia negra. Os ensinam
apoderar-se das suas almas, depois os tornam seus familiares. Ao misturar a
magia de terra com a magia das linhas Ley, usou magia demoníaca.

Pousei uma mão no estômago.

— Lamento, Nick — sussurrei.

Ele estava pálido e erguia-se, imóvel, junto ao meu ombro.

— Foi um acidente.

A Dra. Anders emitiu um ruído rude.

— Acidente ou não, é a coisa mais horrenda que já ouvi. Colocou Nick em


grande perigo.

— Como? — procurei pela mão dele. Estava fria na minha e ele apertou-me
de leve os dedos.

— Porque ele transporta com ele parte da sua aura. As bruxas das linhas
Ley dão aos seus familiares parte da sua aura para que eles possam funcionar
como uma âncora quando elas usam as linhas Ley. Se algo correr mal, o familiar é
puxado para a eternidade, não a bruxa. Mas o mais importante é que os familiares
impedem que a bruxa enlouqueça por canalizar muita força das linhas Ley. As
bruxas das linhas Ley não acumulam em si mesmas a energia que retiram de uma
linha. Acumulam-na nos seus familiares. Simon, o meu papagaio, acumula-a para
mim. E eu vou buscá-la à medida que vou precisando. Quando estamos juntos,
sou mais forte. Quando ele está doente, minhas capacidades diminuem. Se ele
estiver mais perto de uma linha Ley do que eu, posso chegar até ela através dele.
Se as coisas correrem mal, ele morrerá, não eu.

Engoli em seco, sentindo-me gelada quando os olhos da Dra. Anders


pousaram em mim, como se eu tivesse feito de propósito.

— É por isso que usamos animais como familiares — disse ela friamente. —
Não pessoas.

— Nick — murmurei. — Lamento.

Era o quê? A terceira vez que eu dizia aquilo?

O rosto da Dra. Anders enrugou-se.


272

— Lamenta? Até o conseguirmos libertar de você, não acumulará energia


das linhas Ley. É muito perigoso.

— Não sei como prender força das linhas Ley — admiti. Eu tinha feito do
Nick o meu familiar?

— Espere um instante — a mulher levou uma mão magra à testa. — Não


sabe como acumular a força das linhas Ley? Sério? Fez um círculo com dois metros
de diâmetro, suficientemente forte para manter um demônio no exterior, usando
energia retirada diretamente da linha? Não usou energia previamente acumulada?

Abanei a cabeça.

— Não sabe como acumular sequer uma pitada de eternidade?

Uma vez mais abanei a cabeça. A mulher suspirou.

— Seu pai tinha razão.

— Conhecia meu pai? — perguntei. Por que não? Todo mundo parecia
conhecer.

— Ensinei uma das suas matérias de licenciatura — disse ela. — Embora


não o soubesse, na época. Só voltei a vê-lo há três anos, quando nos encontramos
para falar sobre você — ela recostou-se e ergueu as sobrancelhas. — Ele pediu-me
que a reprovasse, se alguma vez aparecesse em uma turma minha.

— Por-por quê? — gaguejei.

— Aparentemente ele sabia a quantidade de energia que você era capaz de


puxar de uma linha, já que queria que eu a fizesse optar pela magia de terra em
detrimento da das linhas Ley. Disse que seria mais seguro. Nesse ano, minha
turma estava com excesso de alunos e fazer a vontade de um pai para proteger
uma filha não me dissuadia nem um pouco. Parti do princípio que ele achava que
era mais seguro para você. Olhando para trás, creio que ele estava falando de
todos os outros.

— Mais seguro? — sussurrei, sentindo-me doente.

— Tornar um humano seu familiar não é normal, senhorita Morgan — disse


a Dra. Anders.

— A doutora poderia fazê-lo? — perguntou Nick e olhei para ele de relance,


feliz por ele ter perguntado, não eu.
273

Ela pareceu ofendida.

— Provavelmente. Se tivesse o feitiço. Mas não o faria. É demoníaco. A


única razão pela qual não vou chamar a Segurança Inderlander é o fato de ter se
tratado de um acidente que, em breve, retificaremos.

— Obrigada — murmurei, atordoada.

Eu fiz de Nick meu familiar? Eu tinha usado magia demoníaca para prendê-
lo a mim? Tonta, pus a cabeça entre os joelhos, calculando que seria ligeiramente
mais digno do que desmaiar e cair no chão. Senti a mão de Nick nas minhas costas
e reprimi uma gargalhada histérica. O que eu tinha feito? A voz de Nick ergueu-se
na escuridão, enquanto eu fechava os olhos e lutava para não vomitar.

— Pode quebrar o feitiço? Pensei que os familiares estavam presos para


toda a vida.

— Normalmente estão... Para o familiar — ela parecia cansada. — Mas


podemos nos libertar de um, caso as nossas capacidades atinjam tal nível que ele
acabe por estar nos retendo. E depois substituímos o familiar antigo por um
melhor. Mas o que é melhor do que uma pessoa, Nick?

Ergui a cabeça de entre os joelhos, deparando-me com a Dra. Anders


sorrindo.

— Preciso ver esse livro — disse ela. — É provável que haja algo nele sobre
como libertar uma pessoa. Os demônios são famosos por agarrarem algo melhor
quando lhes aparece pela frente. Gostaria de saber como é que um livro de magia
demoníaca foi parar no seu sótão, para começar?

— Vivo numa igreja — sussurrei. — Estava lá quando me mudei.

Olhei de relance para a janela, minha indisposição começava a diminuir.


Nick tinha minha aura. Era melhor do que se ela estivesse nas mãos de um
demônio. E seríamos capazes de desfazer aquilo... De alguma forma. Combinei
encontrar-me com Glenn no DFI naquela noite, mas Nick vinha primeiro.

— Vou buscar o livro — disse eu, olhando para a porta fechada. —


Podemos fazer isso aqui ou tem de ser num local mais privado? Podemos usar a
minha cozinha. Tenho uma linha Ley no jardim de trás.

A Dra. Anders tinha perdido todo seu torpor. Agora parecia simplesmente
cansada.
274

— Não posso fazer nada esta noite — disse ela, olhando para Nick de
r e l a n ce . — Ma s d e i xe q u e l h e d ê o m e u e n d e r e ço — p e g o u u m a ca n e t a ,
escrevendo na folha dobrada onde tinha feito a avaliação do meu familiar. — Pode
deixar o livro com o guarda no portão e o verei durante o fim de semana.

— Por que não esta noite? — perguntei enquanto pegava no papel.

— Estou ocupada esta noite. Vou fazer uma apresentação amanhã e tenho
de preparar uma declaração de sucessos e fracassos atualizada.

Ela corou, o que a tornou anos mais nova.

— Para quem? — perguntei, sentindo o frio regressar ao fundo do meu


estômago.

— Sr. Kalamack.

Meus olhos fecharam-se, enquanto eu pestanejava para recuperar as forças.

— Dra. Anders? — disse eu, ouvindo Nick saltar de um pé para o outro ao


meu lado. — É Trent Kalamack quem anda matando as bruxas das linhas Ley.

A mulher regressou à sua habitual expressão de escárnio.

— Não seja tola, senhorita Morgan. O Sr. Kalamack não é mais assassino do
que eu.

— Chame-me Rachel — disse eu, pensando que nós podíamos começar a


nos tratar pelo nome próprio. — E Kalamack é o caçador de bruxas. Vi os
relatórios. Ele falou com todas as vítimas um mês antes da sua morte.

A Dra. Anders abriu a última gaveta da secretária e retirou do seu interior


uma bolsa preta de bom gosto.

— Falei com ele na primavera passada depois do fim do curso e ainda estou
viva. Ele está interessado em falar sobre minha investigação. Se conseguir chamar
sua atenção, ele me financiará e eu poderei fazer aquilo que desejo de verdade.
Estou trabalhando há seis anos nisso e não vou perder a oportunidade de arranjar
um benfeitor por causa de uma coincidência tola.

Deslizei para a ponta da cadeira, perguntando-me como podia passar tão


depressa de odiá-la para estar preocupada com ela.
275

— Dra. Anders, por favor — disse, olhando de relance para Nick. Eu sei que
pensa que sou uma cabeça de vento. Mas não faça isso. Eu vi os relatórios das
pessoas que foram mortas. Todos morreram aterrorizados. E Trent falou com
todos eles.

— Ah, Rachel? — interrompeu Nick. — Não sabe disso com toda certeza.

Virei-me para ele.

— Não está ajudando!

A Dra. Anders levantou-se, com a bolsa na mão.

— Traga-me o livro. Vou analisá-lo durante o fim de semana.

— Não! — protestei, vendo que ela estava a pôr um fim à nossa conversa.
— Ele vai matá-la, sem lhe dedicar mais consideração do que ao ato de matar uma
mosca — meu maxilar rangeu, quando ela fez um gesto na direção da porta. —
Então me deixe acompanhá-la — disse, enquanto me levantava. — Já acompanhei
humanos em visita a Hollows. Sei como ficar calada, limitando-me a protegê-la.

Os olhos da mulher semicerraram-se.

— Sou doutorada em magia das linhas Ley. Acha que pode me proteger
melhor do que eu posso proteger a mim mesma?

Inspirei, preparando-me para protestar, depois expirei.

— Tem razão — disse eu, pensando que seria mais fácil segui-la sem que
ela soubesse. — Pode dizer ao menos quando vai encontrar com ele? Sentiria-me
melhor se pudesse ligar na hora em que deverá chegar em casa.

Ela ergueu uma sobrancelha.

— Amanhã à noite, às sete. Vamos jantar num restaurante no topo de


Carew Tower. Acha que é suficientemente público para o seu gosto?

Ia ter de pedir dinheiro emprestado a Ivy se queria segui-la até ali.

Um copo de água custava três dólares e uma mísera salada doze... Ou pelo
menos foi o que ouvi dizer. Também não me parecia que tivesse um vestido
suficientemente bom. Mas não ia permitir que ela se encontrasse com Trent sem
proteção.

Acenando, pus a alça da bolsa no ombro e coloquei-me ao lado de Nick.


276

— Sim. Obrigada.

Capitulo 18
O sol do início da tarde quase já não incidia sobre a cozinha, uma última
faixa deixava sua marca sobre a pia e o balcão. Estava sentada à mesa antiga de
Ivy, folheando os catálogos dela e terminando de fazer o café para tomarmos o
café da manhã. Só estava acordada há cerca de uma hora, segurando minha caneca
e esperando por Ivy. Tinha feito uma cafeteira cheia, esperando atraí-la a falar
comigo. Ela ainda não estava pronta, tendo fugido de mim usando como desculpa o
fato de ter de fazer uma investigação para seu mais recente trabalho. Não
parecia possível que desse tanta importância ao incidente. Já tivera um deslize
antes e tínhamos superado.

Suspirando, estiquei as pernas por baixo da mesa. Virei a página para um


conjunto de organizadores de guarda-roupa, os olhos voando sem direção sobre a
página. Eu não tinha muito para fazer até ir com Glenn e Jenks atrás da Dra.
Anders, à noite. Nick tinha me emprestado algum dinheiro e eu tinha um vestido
que não parecia tão barato e que serviria para esconder minha arma de bolas
explosivas.

Edden tinha ficado encantado quando eu lhe disse que ia seguir a mulher...
Até ter admitido, tolamente, que ela se ia encontrar com Trent. Quase tínhamos
trocado golpes por causa disso, deixando chocados todos os agentes do piso. A
essa altura não queria saber se Edden ia me atirar para na prisão. Teria de esperar
que eu fizesse qualquer coisa e, por essa altura, já teria aquilo de que precisava.
277

Glenn também não estava muito contente comigo. Tinha usado a cartada do
menino do papai para que ele mantivesse a boca fechada e fosse comigo nessa
noite. Não queria saber. Trent estava matando pessoas.

Meus olhos, percorrendo o catálogo, caíram sobre uma mesa de carvalho


semelhante às que usavam os detetives dos filmes pré-Viragem. Deixei escapar um
sussurro, numa exalação de desejo. Era linda, com aquele brilho profundo que
faltava nas madeiras de compensado. Tinha todo o tipo de pequenos cubículos e
um compartimento secreto atrás da última gaveta da esquerda, de acordo com o
que dizia a legenda. Adequaria-se maravilhosamente ao santuário.

Uma careta repuxou-me o rosto quando pensei no meu mobiliário patético,


parte dele ainda no armazém. Ivy tinha belas peças de mobiliário, de linhas suaves
e grande peso. As gavetas nunca ficavam mal fechadas e os fechos de metal
emitiam um clique quando se fechavam. Queria algo assim. Algo permanente.
Algo que chegasse completamente montado aos meus degraus da frente. Algo que
pudesse ser mergulhado em água salgada, caso eu voltasse a receber uma ameaça
de morte.

Nunca aconteceria — pensei, afastando o catálogo. Receber boa mobília, não


uma ameaça de morte. Meus olhos deslizaram do papel brilhante para meu
manual de magia das linhas Ley. Fitei-o, pensativa. Posso canalizar mais poder do
que a maioria. Meu pai não queria que eu soubesse. A Dra. Anders pensava que
eu era uma idiota. Só havia uma coisa a fazer.

Inspirando, puxei o livro para mais perto. Avancei para o final, para os
apêndices parando no encantamento para prender um familiar. Era inteiramente
ritualista, com notas referindo técnicas que eu desconhecia. O encantamento
estava em inglês e não envolvia a utilização de poções ou plantas. Era tão estranho
como geometria e, eu não gostava de me sentir estúpida.

As páginas emitiram um som agradável quando recuei para o início do livro


em busca de algo que fosse capaz de compreender. Abrandei, introduzindo o
polegar entre as folhas quando descobri um encantamento para fazer afastar do
seu percurso objetos em movimento. Legal — pensei. Era exatamente para aquilo
que eu queria uma varinha.

Sentando-me mais direita, cruzei as pernas e inclinei-me sobre o livro.

Era suposto usar-se a energia acumulada das linhas Ley para manipular
objetos pequenos e recorrer diretamente a uma linha se se tratasse de objetos de
278

grande massa ou que se movessem muito depressa. A única coisa física de que eu
necessitava era de um objeto que servisse de ponto focal.

Ergui os olhos, quando Jenks esvoaçou pela janela aberta da cozinha.

— Ei, Rache — disse ele, alegremente. — O que está fazendo?

Levando a mão ao catálogo de mobílias, a fiz deslizar devagar sobre o


manual.

— Nada de especial — disse, olhando para baixo. — Está de bom humor.

— Acabei de regressar da casa da sua mãe. Ela é ótima, sabe? — voou para
o balcão da ilha, aterrando nele de forma a ficar à altura dos meus olhos. — Jax
está se saindo bem. Se a sua mãe achar legal, vou deixar que ele tente fazer um
jardim suficientemente grande para sustentá-lo.

— Legal? — perguntei, virando a página e vendo umas belas mesas de


telefone. Fiquei branca quando vi o preço. Como é que algo tão pequeno podia ser
tão caro?

— Sim. Sabe... Bom, simpático, agradável, maneiro.

— Eu sei o que significa — disse, reconhecendo-a como uma das frases


preferidas da minha mãe e pensando que era estranho que Jenks tivesse
apanhando-a.

— Já falou com a Ivy? — perguntou.

— Não.

Minha frustração era óbvia na palavra curta. Jenks hesitou, depois com um
bater das asas, voou em arco até aterrissar no meu ombro.

— Lamento.

Obriguei meu rosto a assumir uma expressão agradável, enquanto


levantava a cabeça e prendia um cacho atrás da orelha.

— Eu também.

Ele emitiu um som furioso com as asas.

— Entã-ã-ã-ão, o que está escondendo por baixo do catálogo? Está vendo o


catálogo de roupas de couro da Ivy?
279

Meu maxilar ficou tenso.

— Não é nada — disse, baixinho.

— Está pensando em comprar mobília? — gozou. — Me poupe.

Irritada, afastei-o com um aceno.

— Sim. Quero o mobiliário, algo que não seja em contraplacado, desculpa,


madeira sintética. As coisas de Ivy fazem com que as minhas pareçam
vindas de
barracas.

Jenks riu, o vento das suas asas fazendo meu cabelo voar ao redor
do meu rosto.

— Então compra algo bonito da próxima vez que tiver


dinheiro.

— Como se isso alguma vez fosse acontecer —


murmurei.

Jenks voou para debaixo da mesa. Não confiando nele, espreitei para
ver o
que ele estava fazendo.

— Ei! Para! — gritei, movendo o pé quando senti um puxão no meu


sapato. Ele voou para longe e, quando ergui os olhos depois de voltar a
atar o sapato, reparei que ele tirou o catálogo de cima do manual. Tinha as
mãos nos quadris e estava de pé, em cima do livro, lendo.

— Jenks! — queixei- me.

— Pensei que não gostava das linhas Ley — disse ele, esvoaçando
na
vertical e voltando a descer, aterrando no local onde esteve antes. — Em
especial
agora que não pode usá-la sem pôr Nick em
perigo.

— N ã o se i — d i s se e u , d e se j a n d o n ã o t e r l h e co n t a d o q u e t i n h a ,
acidentalmente, tornado Nick meu familiar. — Mas olha, isso é uma coisa
básica.

Jenks estava em silêncio com as asas caídas, enquanto olhava


para o encantamento.

— Vai
experimentar?
endo — Jenks virou-se de lado para poder me ver, bem como ao texto
—impresso. — Diz aqui que não precisa usar a
N
ão —
re
sp on di , ra
pi
da m
en te. —Ni
ck va
i
fic ar
be m
se pu xa ra
en er gi a
dire tam ent
e
das linh as.
Ne m
seq uer
ficar
á
sab
280

energia acumulada, que pode retirá-la diretamente da linha. Vê? Está aqui mesmo,
preto no branco.

— Sim — disse, lentamente, pouco convencida. Jenks sorriu.

— Se aprendesse a fazer isso, poderia vingar-se dos Howlers. Ainda tem os


bilhetes para o jogo no próximo domingo, não tem?

— Sim — disse, cuidadosamente.

Jenks percorreu as páginas, as asas num borrão vermelho de excitação.

— Podia obrigá-los a te pagar e, como vai receber o pagamento do Edden


para cobrir o aluguel, ainda pode comprar uma bela sapateira de carvalho, ou algo
assim.

— Si-i-i-im — arrisquei.

Jenks fitou-me matreiro sob a franja loura.

— A menos que tenha medo.

Semicerrei os olhos.

— Alguém já te disse que você é um verdadeiro cretino?

Ele riu, erguendo-se num raio brilhante de pó de pixy.

— Se tivesse uma moeda... — disse pensativo. Esvoaçando para mais perto,


aterrissou no meu ombro. — É difícil?

Debruçando-me sobre o livro, atirei o cabelo para um dos lados, para que
ele também pudesse ver.

— Não, e é isso que me preocupa. Há um encantamento e preciso de um


objeto que me ajude a concentrar a energia. Terei de me ligar a uma linha Ley. E há
um gesto... — franzi a sobrancelha e toquei o livro. Não podia ser assim tão fácil?

— Quer experimentar?

A ideia de que Algaiarept pudesse ficar sabendo que eu estava usando a


linha atravessou-me, fugaz. Mas, tendo em conta que era de dia e tínhamos um
acordo, pensei que seria suficientemente seguro.

— Sim.
281

Sentando-me mais ereta, acalmei-me. Usando minha segunda visão,


procurei a linha. O Sol sobrepunha-se a qualquer visão da eternidade, mas a linha
Ley era clara no olho da minha mente, parecendo um risco de sangue seco
pendendo sobre as lápides. Pensando que era realmente feia, estendi com cuidado
minha energia e a toquei. Minha respiração entrou, com um silvo, pelo nariz e eu
fiquei rígida.

— Está bem, Rache? — perguntou Jenks, saltando do meu ombro.

Com a cabeça inclinada sobre o livro, acenei. A energia fluía através de mim
mais depressa do que antes, equilibrando rapidamente as forças. Era como se as
anteriores tentativas tivessem aberto os canais. Preocupada com a possibilidade de
estar usando muita energia, tentei empurrar um pouco através do meu corpo em
direção aos pés.

Não ajudou muito. A força voltou, simplesmente, a encher-me. Resignada à


sensação desconfortável, afastei mentalmente minha segunda visão e ergui os
olhos. Jenks estava observando-me, preocupado. Dirigi-lhe um sorriso encorajador
e ele acenou aparentemente satisfeito.

— Que tal isso? — perguntou Jenks, voando para o meu estoque de bolas
explosivas cheias de água. A esfera vermelha era tão grande como a cabeça dele e
claramente pesada, mas ele conseguiu segurá-la sem problemas.

— É tão bom como qualquer outra coisa — concordei. — Atira uma e


tentarei desviá-la.

Pensando que aquilo era mais fácil do que moer plantas e ferver água, disse o
encantamento e desenhei no ar o arco de uma figura usando uma das mãos,
imaginando que aquilo era como escrever meu nome com foguetes para bolos no 4
de Julho. Disse as últimas palavras enquanto Jenks atirava a bola ao ar.

— Uou! — gritei, quando uma onda de força das linhas Ley me queimou a
mão esquerda. Olhei espantada para Jenks, enquanto ele ria. — O que eu fiz de
errado?

Ele esvoaçou para mais perto com a bola vermelha presa debaixo do braço,
tendo a apanhado quando ela voltou a descer na sua direção.

— Esqueceu-se do objeto focal. Toma. Usa isso.

— Ah! — embaraçada, peguei a bola vermelha, enquanto ele a colocava em


minha mão. — Vamos experimentar outra vez — disse, segurando-a na mão que
282

u s a va m e n o s , c o mo o l i vr o i n d i c a va . S e n t i n d o s u a f r i a m a c i e z , d i s s e o
encantamento e desenhei a figura no ar, com a mão direita.

Jenks atirou uma segunda bola com um assobio das asas. Sobressaltada,
soltei uma onda de poder. Desta vez funcionou. Reprimi um gritinho quando a
energia das linhas Ley me percorreu a mão, seguindo minha atenção diretamente
para a bola. Acertou nela, lançando-a contra a parede e deixando uma mancha
molhada.

— Boa! — exclamei, devolvendo o sorriso de Jenks. — Olha para isso!


Funcionou!

Jenks voou para o balcão para ir buscar outra bola.

— Tenta outra vez — pediu ele, lançando-a excitado, na direção do teto.

Desta vez, foi mais fácil. Descobri que conseguia dizer o encantamento e
fazer o gesto em simultâneo, segurando a energia das linhas Ley com a força de
vontade até querer libertá-la. Com isso advinha uma grande dose de controle e,
em breve, já não lhes estava acertando com tanta força que arrebentavam contra a
parede. Minha pontaria também estava ficando melhor e a pia estava repleta com
as bolas que eu atirava contra a rede. O Sr. Peixe, sobre o parapeito, não estava
contente.

Jenks era um parceiro solícito, voando pela cozinha e atirando bolas


vermelhas na direção do teto. Meus olhos abriram-se mais quando ele atirou uma
na minha direção.

— Ei! — gritei, atirando-a através do buraco para pixy da rede. — Contra


mim, não!

— Que excelente ideia — disse ele, depois sorriu maliciosamente ao emitir


um assobio forte. Três dos seus filhos voaram do jardim, falando ao mesmo
tempo. Traziam consigo o cheiro de dentes-de-leão e áster. — Atire-as contra a
senhorita Morgan — disse ele, entregando a esfera à garota de cor-de-rosa.

— Esperem — protestei, agachando-me quando a pixy a lançou com tanta


maestria e força quanto o pai.

Olhei para trás de mim, para a mancha escura na parede amarela, depois
para eles. Fiquei de boca aberta. No instante em que afastei os olhos, todos eles
tinham agarrado bolas explosivas.
283

— Peguem-na! — gritou Jenks.

— Jenks! — disse eu, rindo, enquanto conseguia desviar uma das bolas. As
três em que eu não acertei rolaram inofensivas pelo chão. O pixy menor apanhou-
as do linóleo e atirou-as para cima e as irmãs apanharam-nas. — Quatro contra um
não é justo! — gritei, quando eles voltaram a fazer pontaria.

Meus olhos saltaram para o corredor, quando o telefone tocou.

— Pausa! — gritei, lançando-me para a sala de estar. — Façam uma pausa!


— ainda sorrindo, levei a mão ao telefone. Jenks pairou até à passagem em arco,
esperando. — Estou sim. Encantamentos Vampíricos. Rachel falando — disse,
desviando-me da bola que ele me lançava. Conseguia ouvir o riso dos pixies vindo
da cozinha e perguntei-me o que estariam tramando.

— Rachel? — perguntou a voz de Nick. — Que diabos está fazendo?

— Olá, Nick — fiz uma pausa para desenhar com os lábios o encantamento.
Segurei a energia até Jenks lançar a bola na minha direção. Estava ficando melhor,
quase acertando ele com a bola desviada. — Jenks. Pára — protestei. — Estou no
telefone.

Ele sorriu, depois saiu correndo. Deixei-me cair sobre uma das almofadas
de Ivy que combinavam com as cadeiras de veludo, sabendo que ele não se
arriscaria a molhá-las ou Ivy iria atrás dele.

— Olá, já está acordado? Quer fazer alguma coisa? — perguntei, pousando


uma perna sobre o braço do sofá e abanando a outra. Girei a bola que estava
usando como objeto focal entre dois dedos, desafiando-a a arrebentar-se com a
pressão que estava fazendo sobre ela.

— Hum, talvez — disse ele. — Está puxando energia das linhas Ley?

Fiz um gesto a Jenks para que parasse quando ele entrou rompendo à sala.

— Sim! — disse, sentando-me e voltando a pôr o pé no chão. — Desculpa.


Não pensei que a sentiria. Não estou puxando-a através de você, não é?

Jenks aterrou numa moldura. Eu tinha certeza de que ele era capaz de ouvir
Nick, embora o pixy estivesse do outro lado da divisão.

— Não — disse ele, um toque pequeno de riso na sua voz. — Creio que
seria capaz de perceber. Mas é estranho. Estava aqui sentado lendo, e, de repente,
parecia que estava bem aqui. A melhor forma de descrevê-lo é quando você está
284

aqui e eu estou fazendo o jantar e observando-te enquanto você vê televisão. Está


fazendo suas coisas sem tentar chamar minha atenção, mas ao mesmo tempo,
sendo barulhenta. É algo perturbador.

— Voc ê me obse rva ver televisão? — perguntei, sentindo-


me
desconfortável e ele riu.

— Sim. É muito divertido. Só falta saltar para cima e para baixo.

Franzi a sobrancelha enquanto Jenks ria.

— Desculpe — murmurei, mas depois um tênue arrepio de preocupação


fez-me endireitar. Nick estava rindo. Ele, normalmente, passava o sábado na
cama, recuperando o sono. — Nick, que livro está lendo?

— Hum, o seu — admitiu.

Eu só tinha um livro em que ele pudesse estar interessado.

— Nick! — protestei, enquanto deslizava para a ponta do cadeirão e


agarrava o telefone com mais força —, você disse que iria levá-lo à Dra. Anders.

Depois de ter cancelado minha ida ao DFI porque estava com os nervos
mais emaranhados que o meu cabelo, Nick levara-me para casa. Pensei que ele
tinha se oferecido para levar o livro devido à minha recente e saudável fobia,
literalmente maldita. Obviamente, Nick tinha outros planos e não fora longe.

— Ela não ia olhar para ele a noite passada — disse, defensivamente. — E


fica mais seguro no meu apartamento do que numa guarita com um guarda
enchendo-se de xícaras de café. Se não se importa, gostaria de mantê-lo comigo
mais uma noite. Há algo que quero perguntar ao demônio — parou, sem dúvida à
espera do meu protesto.

Senti o rosto ficar quente.

— Idiota — disse, fazendo sua vontade. — É um idiota. A Dra. Anders disse


o que o demônio estava tentando fazer. Ele quase nos matou e você continua a
tentar tirar informações?

Ouvi o suspiro de Nick.

— Estou sendo cuidadoso — disse, e eu emiti uma gargalhada assustada. —


Rachel, prometo que o levo amanhã cedo. De qualquer forma ela não vai olhar
para ele até lá — hesitou e eu quase conseguia ouvi-lo reunindo sua coragem. —
285

Vou chamá-lo. Por favor, não me obrigue a fazer isso nas suas costas. Sentiria-me
melhor se alguém soubesse.

— Por quê? Para que possa dizer à sua mãe o que te matou? — disse, irada,
depois me controlei. Fechando os olhos, apertei a bola vermelha entre os dedos.
Ele permanecia em silêncio, esperando. Odiava o fato de não ter o direito de
impedi-lo. Mesmo enquanto sua namorada. Invocar demônios não era ilegal. Só
era muito, muito idiota. — Promete que me ligará quando tiver terminado? —
perguntei, sentindo um tremor no estômago. — Estou acordada até cerca das
cinco.

— Claro — murmurou ele. — Obrigado. Depois quero saber como correu o


jantar com Trent.

— Pode crer — disse. — Falamos mais tarde.

Se sobreviverer.

Desliguei o telefone, cruzando meu olhar com o de Jenks. Ele estava


pairando no meio da sala, uma bola explosiva debaixo do braço.

— Vocês dois vão acabar como dois borrões escuros em círculos de linhas
Ley — disse ele e eu atirei-lhe a bola explosiva que tinha na mão. Ele apanhou-a
com uma mão, recuando alguns metros antes de conseguir parar o movimento.
Atirou-a para mim e eu desviei-me. A bola bateu no cadeirão de Ivy sem
arrebentar-se. Grata por estas pequenas bênçãos, levantei-me e regressei à cozinha.

— Agora! — guinchou Jenks, enquanto eu entrava na divisão iluminada.

— Apanhem-na! — guincharam uma dúzia de pixies.

Obrigada a sair da minha depressão, encolhi-me quando uma saraivada de


bolas explosivas se abateu sobre mim, arrebentando contra minha cabeça coberta.
Correndo para a geladeira, abri a porta e escondi-me atrás dela. A adrenalina fazia
com que o meu sangue parecesse cantar. Sorri ao ouvir o som de seis ou mais
bolas a se arrebentarem contra a porta metálica.

— Seus malvados! — gritei, espreitando por cima da porta e vendo-os


esvoaçar na ponta oposta da cozinha, como vaga-lumes loucos. Fiquei de olhos
muito abertos, deviam ser uns vinte!

Bolas explosivas cobriam o chão, rebolando lentamente para longe de mim.


Excitada, disse o encantamento ao triplo da velocidade e lancei os três mísseis
286

seguintes de volta na direção deles. Os filhos de Jenks gritaram de prazer, seus


vestidos e calças de seda uma mancha de cor. Pó de pixy caía em trilhos de raios de
Sol. Jenks estava de pé, na concha da sopa pendurada por cima da ilha. Tinha na
mão a espada que usava para lutar contra as fadas e erguia bem alto, em sinal de
encorajamento.

Sobre as suas direções ruidosas, juntaram-se todos. Sussurros e risos


interrompidos por gritos excitados enchiam o ar, enquanto eles se organizavam.
Sorrindo, escondi-me atrás da porta, os tornozelos frescos pela brisa que saía da
geladeira. Disse o encantamento uma e outra vez, sentindo a magia das linhas Ley
aumentar atrás dos meus olhos. Estavam preparando-se para um ataque em
massa, sabendo que não conseguiria afastar todos.

— Agora! — gritou Jenks. Agitando o sabre minúsculo, atirou-se de cima da


concha.

Eu gritei perante a alegre ferocidade dos filhos dele, que voavam como um
enxame na minha direção. Rindo com os meus protestos, desviei algumas bolas
vermelhas. Aquelas que falhavam, acertavam-me com pequenos baques.
Arquejando para respirar, lancei-me rebolando para debaixo da mesa. Eles
seguiram-me, bombardeando-me.

Tinha acabado meus encantamentos.

— Desisto! — gritei, tendo o cuidado de não acertar nenhum dos filhos de


Jenks, enquanto punha as mãos por baixo do tampo da mesa. Estava coberta de
manchas de água e afastei as mechas de cabelo úmido que se colavam ao meu
rosto. — Desisto! Ganharam!

Eles gritaram de alegria e o telefone recomeçou a tocar. Orgulhoso e


exuberante, Jenks começou a cantar a plenos pulmões uma canção animada sobre
afastar os invasores da sua terra e regressar para casa para sua progenitura. Com a
espada erguida sobre a cabeça, voou ao redor da mesa, arrastando atrás de si os
filhos. Todos cantando em gloriosa harmonia, voaram pela janela para o jardim.

Deixei-me ficar sentada, no silêncio súbito, sob a mesa da cozinha. Todo o


meu corpo se agitou quando respirei fundo, sorrindo enquanto expirava.

— Uau! — bufei, ainda rindo enquanto passava a mão por baixo de um dos
olhos.
287

Não era de admirar que as fadas assassinas que tinham sido enviadas para
me matar, no ano anterior, não tivessem tido a menor oportunidade. Os filhos de
Jenks eram espertos, rápidos... E agressivos.

Ainda sorrindo, levantei-me e dirigi-me à sala de estar para atender o


telefone antes que a secretária eletrônica atendesse. Pobre Nick. Tinha certeza que
ele sentiu o último golpe.

— Nick — disse de imediato, antes que ele conseguisse dizer o que quer
que fosse. — Desculpa. Os filhos de Jenks me encurralaram debaixo da mesa da
cozinha e estavam atirando bolas explosivas contra mim. Deus me proteja, mas era
divertido. Agora estão no jardim, traçando anéis ao redor do freixo e a entoar uma
canção sobre aço frio.

— Rachel?

Era Glenn e minha alegria desvaneceu-se perante a preocupação na sua


voz.

— O que foi? — perguntei, olhando para as árvores através das janelas que
ficavam à altura do meu ombro. As manchas de água que me cobriam pareciam
subitamente geladas e envolvi o corpo com um dos braços.

— Estarei aí dentro de dez minutos — disse ele. — Consegue estar pronta?

Afastei o cabelo úmido.

— Por quê? O que é que aconteceu? — perguntei.

Ouvi-o tapar o telefone com a mão e gritar qualquer coisa a alguém.

— Conseguiste o mandado para fazer uma busca à propriedade do


Kalamack — disse ele, quando regressou.

— Como? — perguntei, não acreditando que Edden tivesse cedido. Não que
esteja me queixando!

Glenn hesitou. Respirou fundo e ouvi o burburinho de vozes excitadas atrás


dele, ao fundo.

— A Dra. Anders me ligou a noite passada — disse ele. — Sabia que ia


s e g u i - l a , p o r i s s o p a s s o u a a p r e s e n ta ç ã o p a r a o n t e m e p e d i u - m e q u e a
acompanhasse.
288

— A bruxa — exclamei, baixinho, desejando poder ter visto o que Glenn


usara. Apostava que tinha ido bem vestido. Mas, quando ele continuou em
silêncio, a sensação fria no meu estômago transformou-se num caroço amargo.

— Lamento, Rachel — disse Glenn baixinho. — O carro dela caiu de


Roebling Bridge esta manhã, empurrado por cima da vedação pelo que parece ter
sido uma enorme bolha de força das linhas Ley. Acabaram de tirar o carro do rio.
Ainda estão à procura do corpo.

Capitulo 19
Meu pé tremia, enquanto eu me erguia impaciente ao lado de uma pilha de
manuais e copos de papel vazios pousados no parapeito da guarita do guarda de
Trent. Jenks estava pousado no meu brinco, murmurando soturnamente enquanto
observava Quen carregando o botão do telefone. Eu só vi Quen uma vez, talvez
duas. Da primeira estava vestido de jardineiro, tendo conseguido capturar Jenks
numa bola de vidro. Tinha uma crescente suspeita de que Quen era o terceiro
cavaleiro que tentou me apanhar, perseguindo-me a cavalo na noite em que roubei
o disco de Trent — e que usava para chantageá-lo. Tratava-se de uma sensação
que se tornara ainda mais forte quando Jenks me disse que Quen tinha o mesmo
cheiro de Trent e Jonathan.

Quen estendeu uma mão à minha frente para agarrar numa caneta e eu
saltei para trás, não querendo que ele me tocasse. Sem largar o telefone sorriu
cuidadosamente, revelando dentes extremamente brancos e direitos. Este sabia do
que eu era capaz — pensei. Este não me ia subestimar como Jonathan fazia
continuamente. E, embora fosse agradável ser levada a sério ao menos uma vez,
desejei que Quen fosse tão egoísta e chauvinista como Jonathan.

Trent dissera-me, certa vez, que Quen estava disposto a aceitar-me como
aluna, isso depois de o chefe de segurança ter conseguido ultrapassar o desejo de
me matar por ter conseguido infiltrar-me no complexo de Kalamack. Perguntei-me
se teria sobrevivido, caso tivesse aceitado tê-lo como professor.
289

Quen parecia ter a mesma idade que meu pai teria se ainda fosse vivo.
Tinha cabelo muito escuro, com caracóis que lhe caíam sobre as orelhas, olhos
verdes que pareciam não parar de me observar e a graça de um bailarino, que eu
sabia ter a sua origem numa vida inteira de prática de artes marciais. Envergando
um uniforme de segurança preto, sem qualquer insígnia, parecia pertencer à noite.
Era pouco mais alto do que eu de saltos e a força do seu corpo ligeiramente
enrugado deixava-me nervosa. A única fraqueza que identifiquei nele foi um
ligeiro coxear. E, ao contrário de todos os outros que se encontravam na sala, além
de mim, não tinha nenhuma arma, que eu visse.

O capitão Edden erguia-se ao meu lado, com o seu aspecto atarracado, mas
capaz — usava de calça cáqui e camisa branca. Glenn envergava outro dos seus
vestuários pretos, tentando parecer controlado apesar do seu óbvio nervosismo.
Edden também parecia preocupado com a possibilidade de ser publicamente
envergonhado caso não encontrássemos nada.

Ajustei a bolsa — puxando a alça mais para cima sobre o ombro — e fiz
uma careta. Estava repleta de amuletos que me ajudariam a encontrar a Dra.
Anders, morta ou viva. Tinha obrigado Glenn a esperar enquanto os carregava,
usando o papel onde ela escrevera o endereço como objeto focal. Se houvesse nem
que fosse um pedaço dela que coubesse numa caixa de sapatos, os amuletos
brilhariam vermelhos. Ia aproveitar a oportunidade para ver se ele usava um
amuleto para disfarçar sua aparência, enquanto falava com ele. Ninguém tinha
assim tão bom aspecto sem ajuda.

No exterior, estacionados em vagas ao lado da guarita, estavam três carros


do DFI. As portas estavam abertas e os agentes pareciam cheios de calor, enquanto
esperavam sob o sol da tarde razoavelmente quente. A brisa das asas de Jenks fez
abanar uma madeixa que me fez cócegas no pescoço.

— Consegue ouvi-lo? — murmurei, enquanto Quen se virava e começava a


falar ao telefone.

— Oh, sim — murmurou o pixy. — Ele está falando com o Jonathan. Quen
está dizendo que está na guarita com você e com o Edden e, que trazem um
mandado para fazer uma busca à propriedade e que é melhor que ele vá acordá-lo.

— Ele, sendo Trent? — calculei e senti o brinco abanar, enquanto Jenks


acenava. Olhei para o relógio por cima da porta, vendo que passava pouco das
duas. Devia ser bom.
290

Edden tossiu para limpar a garganta quando Quen desligou. O chefe da


segurança de Trent não tentou esconder o fato de não estar contente com a
situação. As rugas suaves aprofundaram-se, o maxilar estava tenso e os olhos
tinham uma expressão estranha.

— Capitão Edden, o Sr. Kalamack está compreensivelmente perturbado e


gostaria de falar com você, enquanto seus homens levam a cabo a busca.

— Claro — disse Edden, e eu deixei escapar um som de incredulidade.

— Por que está sendo tão simpático? — murmurei, enquanto Quen nos
guiava através das pesadas portas de vidro e metal, de novo para o sol forte.

— Rachel — sussurrou Edden, a tensão transportada no seu murmúrio —,


se mostrará educada e graciosa ou ficará à espera no carro.

Graciosa — pensei. Desde quando os antigos Navy SEAL eram graciosos?


Pragmáticos, agressivos, politicamente corretos ao ponto de serem impossíveis de
aturar. Ah... Estava sendo politicamente correto.

Edden inclinou-se para mim, enquanto segurava a porta de um dos carros


para que eu entrasse.

— E depois vamos acabar com ele — acrescentou, confirmando minhas


suspeitas. — Se Kalamack a assassinou, vamos apanhá-lo — disse ele, os olhos
presos em Quen, enquanto o homem entrava numa station. — Mas se entrarmos
com tropas de choque, o júri o deixará escapar, mesmo que ele confesse. Está tudo
nos procedimentos. Impedi a entrada e saída de viaturas. Ninguém sai sem uma
busca.

Semicerrei os olhos, levando uma mão ao chapéu, para impedi-lo de voar.


Tinha preferido entrar aos gritos com vinte carros e as sirenes tocando, mas teria
de me contentar com aquilo.

Os cinco quilômetros de estrada que atravessavam o bosque que Trent


mantinha ao redor da sua propriedade foram calmos, já que Jenks tinha ido com
Glenn na station, para tentar perceber que tipo de Inderlander era Quen. Seguimos
o carro da segurança de Quen além da última curva e estacionamos no
estacionamento para visitantes, vazio.

Não pude deixar de me sentir impressionada pelo edifício principal de


Trent. O prédio de três andares enquadrava-se na vegetação que o rodeava, como
se se encontrasse ali há centenas de anos e não há uns meros quarenta. O mármore
291

branco lançava raios de luz do Sol que se acumulavam contra as árvores como um
nascer do Sol de oeste. Os grandes pilares e os degraus baixos e compridos
criavam um acesso convidativo. Rodeado por árvores e jardins, o edifício de
escritórios criava uma imagem de permanência que os edifícios da cidade não
tinham. Vários edifícios menores germinavam do principal, ligados por passagens
cobertas. Os famosos jardins murados de Trent ocupavam grande parte da parte
lateral e dos fundos. Os hectares de plantas eram bem cuidados, rodeados por
relvados e, depois, a sua floresta fantasmagoricamente planejada.

Fui a primeira a sair do carro, meu olhar atravessando a rua, dirigindo-se


para os distantes edifícios baixos, onde Trent criava os seus cavalos puros-
sangues. Um ônibus de excursão acabava de sair, horrendamente barulhento e
repleto de anúncios de visitas aos jardins de Trent.

Jenks esvoaçou e aterrou no meu ombro, já que os brincos que estava


u sa n d o e ra m mu i t o p e q u e n o s p a ra q u e e l e c o n s e g u i sse se e mp o l e i ra r,
resmungando devido à sua incapacidade de perceber o que era Quen. Voltei-me
de novo para o edifício principal e comecei a subir os degraus de pedra, os saltos
batendo no chão em um ritmo regular. Edden foi rápido a seguir-me.

Senti o estômago apertado ao identificar a silhueta familiar que nos


aguardava junto aos pilares de mármore.

— Jonathan — sussurrei, meu desagrado pelo homem extremamente alto


dando lugar a um ódio lento.

Por uma vez, gostaria de poder subir aqueles degraus sem ter os olhos
arrogantes dele sobre mim.

Meus lábios apertaram-se e, de súbito, senti-me feliz por ter vestido meu
melhor terno apesar do calor fora de estação. A roupa de Jonathan era requintada.
Tinha de ter sido feito por medida, pois ele era muito alto para poder arranjar
qualquer coisa num mostruário. O cabelo escuro começava a ficar branco junto às
têmporas e as rugas ao redor dos olhos eram profundas, como se tivessem sido
f e i t a s c o m á c i d o e m m e t a l . E l e e ra u m a c r i a n ça d u r a n t e a V i r a g e m e ,
aparentemente, seu medo deixara para sempre uma marca no seu corpo magro
quase malnutrido.

Limpo e exageradamente vestido para a ocasião, seus modos gritavam


cavalheiro britânico, mas seu sotaque era tão centro-oeste como o meu. Tinha o
rosto barbeado e as suas faces, bem como os lábios, nunca abandonavam o
292

perpétuo franzir de sobrancelha a não ser à custa dos outros. Tinha sorrido
durante os três dias em que eu estivera presa numa gaiola no gabinete de Trent,
sob a forma de um visom — os seus vívidos olhos azuis brilhantes e ansiosos
enquanto me atormentavam.

Quen subiu rapidamente as escadas para passar à minha frente. Meu olho
começou a tremer, quando os dois homens aproximaram as cabeças. Viraram-se, o
sorriso profissional de Jonathan marcado por uma irritação profissional.

Boa.

— Capitão Edden — disse ele, estendo-lhe a mão magra, enquanto Edden e


eu parávamos à frente deles. A estrutura musculosa de Edden parecia quase
g o rd u ch a , q u a n d o a p e rt a ra m a s mã o s. — Me u n o m e é Jo n a t h a n e so u o
conselheiro de marketing do Sr. Kalamack. Ele está à sua espera — acrescentou, a
simpatia da voz nunca lhe chegando aos olhos. — Pede que transmita seu desejo
de ajudar em tudo que puder.

Jenks disse do meu ombro, rindo:

— Podia nos dizer onde enfiou a Dra. Anders.

Ele limitou-se a sussurrar, mas tanto Quen como Jonathan ficaram rígidos.
Fingi estar verificando a trança em que prendera o cabelo — ameaçando,
sutilmente, espancar Jenks —, depois pus as mãos atrás das costas para evitar ter
de apertar a mão de Jonathan. Não ia tocá-lo. A menos que fosse para lhe dar um
murro no estômago. Inferno, como sentia a falta das minhas algemas.

— Obrigado — disse Edden, as sobrancelhas erguidas perante os olhares


que Jonathan e eu estávamos trocando. — Tentaremos fazer isso tão rápido e não
intrusivo quanto possível.

Enquanto eu me erguia com um ar ameaçador, Edden puxava Glenn para o


lado.

— Mantém a busca discreta, mas minuciosa — disse, enquanto os olhos de


Jonathan passavam por cima do meu ombro e se fixavam nos agentes do DFI que
se reuniam num grupo pouco compacto sobre os degraus largos. Tinham trazido
com eles vários cães, todos eles com capas azuis com DFI gravado em amarelo dos
lados. As caudas abanavam em sinal de entusiasmo e era óbvio que estavam
ansiosos por se lançarem ao trabalho.

Glenn acenou e eu agitei o minha bolsa de um lado para o outro.


293

— Toma — disse eu, tirando da bolsa uma mão-cheia de amuletos e


p o u s a n d o - o s n a s m ã o s a b e r t a s d e l e . — P r e p a r e i - o s n o c a m i n h o . E s tã
o
sintonizados para encontrar a Dra. Anders, morta ou viva. Dê-lhes a quem quiser
aceitá-los. Ficarão vermelhos se chegarem a trinta metros dela.

— Garantirei que todos os elementos da equipe os levem — disse Glenn, os


olhos castanhos sobressaltados, enquanto tentava impedir que os amuletos
caíssem.

— Ei, Rache — disse Jenks, enquanto esvoaçava do meu ombro. — Glenn


pediu-me que fosse com ele. Importa-se? Não posso fazer nada sentadinho no teu
ombro.

— Claro, vai — disse eu, pensando que ele seria capaz de vasculhar melhor o
jardim do que uma matilha de cães.

Uma sombra de preocupação marcou o rosto comprido de Jonathan e


dirigi-lhe um sorriso sarcástico. Por norma, não era permitida a entrada no
complexo pixies e fadas e, eu era capaz de usar as calcinhas do lado de fora
durante uma semana, se alguém me dissesse do quê Trent tinha medo que Jenks
descobrisse.

Quen e Jonathan trocaram um olhar silencioso. Os lábios do homem mais


baixo apertaram-se e seus olhos verdes semicerraram-se. Com uma expressão que
indicava que estava mais disposto a fazer poças de lama com excremento do que a
deixar Jonathan sozinho para nos levar a Trent, Quen apressou-se a seguir Jenks.
Meus olhos seguiram o segurança enquanto ele descia as escadas, quase pairando,
com a sua impressionante graciosidade apressada.

Jonathan endireitou-se enquanto voltava para nós a sua atenção.

— O Sr. Kalamack está à vossa espera no gabinete principal — disse, rígido,


enquanto abria a porta.

Dirigi-lhe um sorriso terrível, enquanto arrancava.

— Toca-me e te machucarei — ameacei, enquanto puxava a porta ao lado


da que Jonathan segurava.

O átrio era espaçoso e estava fantasmagoricamente vazio, o murmúrio


abafado do trabalho silenciado pela ausência dos funcionários durante o fim de
semana. Sem esperar por Jonathan, avancei ao longo do corredor largo que levava
ao gabinete de Trent. Com as mãos vasculhando o fundo da bolsa, retirei do seu
294

interior os óculos enfeitiçados usando magia das linhas Ley — pecaminosamente


caros e criminalmente feios — e coloquei-os sobre o nariz. Jonathan abandonou
qualquer tentativa de mostrar algum decoro, deixando Edden para trás, para me
apanhar.

Avancei ao longo do corredor, os pulsos cerrados e os calcanhares batendo.


Queria ver Trent. Queria dizer o que pensava dele e cuspir na sua cara por ter
tentado me sujeitar colocando-me nas lutas ilegais de ratazanas da cidade.

As portas de vidro fosco de cada um dos lados estavam abertas, revelando


mesas vazias. Mais ao fundo encontrava-se uma mesa resguardada, num recanto
em frente à porta de Trent. A mesa de Sara Jane era tão arrumada e organizada
como a própria mulher. Com o coração batendo veloz, levei a mão à maçaneta da
porta de Trent, recuando, num movimento repentino, quando Jonathan me
alcançou. Dirigindo-me um olhar capaz de obrigar um cão feroz a interromper o
seu ataque e sentar-se, o homem alto bateu à porta de Trent, esperando pelo som
da sua voz abafada antes de abrir.

Edden chegou ao meu lado, seu olhar irritado dando lugar ao choque,
quando viu os meus óculos. Nervosa, toquei no chapéu e endireitei o casaco com
um puxão. Talvez devesse ter pedido um empréstimo a Ivy e optado pelos mais
bonitos. O som de água caindo sobre pedras emergia do gabinete de Trent e eu
entrei, logo atrás de Jonathan.

Trent levantou-se de trás da sua mesa quando eu entrei. Inspirei fundo para
lhe dirigir um cumprimento sarcástico, mas sincero. Queria dizer-lhe que ele tinha
matado a Dra. Anders. Queria dizer-lhe que era um cretino. Queria pôr-me à
frente dele e gritar que eu era melhor que ele e que ele nunca conseguiria me
quebrar. Que era um sacana manipulador e que eu ia acabar com ele... Mas não fiz
nada disso, chocada pela sua calma força interior. Aquele era o homem mais
composto que eu alguma vez conheci e fiquei em silêncio, enquanto os
pensamentos dele abandonavam visivelmente, outros assuntos, para se
concentrarem em mim. E não, ele não usava nenhum amuleto das linhas Ley para
lhe dar aquele aspecto. Era tudo dele.

Todos os fios do seu cabelo quase transparente estavam no devido lugar. O


terno cinzento com fio de seda não tinha um vinco, acentuando o físico de cintura
estreita e ombros largos que eu passara três dias admirando enquanto visom.
Erguendo-se mais alto do que eu, dirigiu seu sorriso de marca registrada: uma
inevitável mistura de calor e interesse profissional. Ajustou o casaco com uma
lentidão casual, os dedos compridos chamando minha atenção, enquanto
295

manipulava o último botão. Na mão direita tinha um único anel e, como eu, não
usava relógio.

Trent devia ter apenas mais três anos do que eu — fazendo com que fosse
um dos solteirões mais ricos da face do planeta —, mas o terno fazia com que
parecesse mais velho. Ainda assim, a linha do maxilar bem definida, bem como as
faces macias e o nariz pequeno, faziam com que parecesse mais adequado à praia
do que a uma sala de administração.

Mantendo o sorriso confiante, quase satisfeito, baixou a cabeça tirando os


óculos de armação fina e atirando-os para cima da mesa. Envergonhada, guardei
os meus próprios óculos enfeitiçados em sua caixa de pele. Meus olhos pousaram-
se no seu braço direito quando ele contornou a mesa e se colocou à frente dela. Da
última vez que o vi, estava engessado — provavelmente a razão pela qual a arma
que disparou na minha direção errou o alvo. Entre a mão e o punho do casaco, era
visível um tênue anel de pele mais clara, que o sol ainda não teve a oportunidade
de escurecer.

Fiquei rígida enquanto ele me percorria com o olhar, parando por breves
instantes no anel que eu usava no mindinho e que ele me roubou e devolveu, para
provar que podia fazê-lo, pousando, por fim, no meu pescoço e na quase invisível
cicatriz do ataque do demônio.

— Senhorita Morgan, não sabia que podia trabalhar para o DFI — disse ele,
como forma de cumprimento, não fazendo qualquer movimento para me apertar a
mão.

— Sou consultora — disse eu, ignorando a forma como a sua voz líquida
me prendia a respiração. Tinha me esquecido da sua voz, toda ela âmbar e mel, se é
que a cor e o sabor podem descrever um som, ressonante e profundo, cada sílaba
clara e precisa e, no entanto, misturando-se como se fossem um líquido. Era
enfeitiçante, encontrando igual apenas na dos antigos vampiros. E incomodava-
me gostar dela.

Cruzei o meu olhar com o dele, tentando mostrar um reflexo dessa


confiança. Nervosa, estendi o braço, obrigando-o a corresponder. A mão dele
estendeu-se para apertar a minha, apenas com um ligeiríssimo sinal de agitação.
Senti-me aquecida por um toque de satisfação, pelo fato de ter sido capaz de
obrigá-lo a fazer algo que ele não desejava, mesmo que fosse uma coisa tão
pequena.
296

Sentindo-me convencida, deslizei minha mão para a de Trent. Embora seus


olhos estivessem frios com o conhecimento de que eu o tinha forçado a tocar em
mim, seu aperto era quente e firme. Perguntei-me há quanto tempo estaria a
praticá-lo. Satisfeita, quebrei o meu aperto, mas em vez de fazer o mesmo, a mão
d e T r e n t de s l i z o u d a m i nh a c o m u m a l en t i d ã o í n t i m a q ue nã o e r a d e t o d o
profissional. Quase diria que ele flertou comigo, não fosse pelo ligeiro fechar de
olhos que indicava uma cautela desconfiada.

— Sr. Kalamack — disse, recusando limpar a mão na saia. — Está com bom
aspecto.

— Tal como a senhorita — o sorriso dele parecia congelado no seu lugar e a


mão direita estava quase atrás das costas. — Consta que está se saindo
razoavelmente bem com a sua pequena firma de investigação. Imagino que seja
difícil quando se está começando.

Pequena firma de investigação? A minha inquietude transformou-se em


irritação.

— Obrigada — consegui dizer.

Com o sorriso a repuxar os cantos da boca, Trent voltou sua atenção para
Edden. Enquanto os dois profissionais trocavam cumprimentos educados,
politicamente corretos e hipócritas, percorri o gabinete de Trent com os olhos. Sua
janela ainda mostrava uma imagem animada de uma das pastagens dos seus
potros. A luz artificial jorrava através da tela de vídeo, criando uma faixa quente
que brilhava sobre o carpete. No aquário — suficientemente grande para pertencer
a um jardim zoológico — encontrava-se um novo grupo de peixes pretos e brancos
e, o aquário tinha sido embutido na parede atrás da sua mesa. No local onde antes
se encontrava minha gaiola, estava agora uma laranjeira num vaso e a recordação
do cheiro da comida seca apertou-me o estômago. A câmera, num dos cantos do
teto, piscava sua pequena luz vermelha.

— É um prazer conhecê-lo, capitão Edden — dizia Trent, a suave cadência


da sua voz chamando-me a atenção. — Quem me dera que pudesse ter sido em
melhores circunstâncias.

— Sr. Kalamack — a voz forte de Edden parecia rude, quando comparada


com a de Trent. — Peço desculpa por qualquer inconveniente que a nossa busca
aos seus terrenos possa trazer.
297

Jonathan entregou o mandado a Trent, que olhou para ele por breves
instantes, antes de devolvê-lo.

— Evidências corpóreas que possam levar à captura do responsável pelas


mortes conhecidas como assassinatos do caçador de bruxas? — disse ele, os seus
olhos saltando para os meus. — É um bocado vago, não é?

— Escrever "cadáveres" pareceria rude — disse eu, com a voz tensa e


Edden tossiu para limpar a garganta, sua pose profissional manchada por uma
tênue sugestão do seu receio de que pudéssemos não encontrar nada. Reparei que
Edden se encontrava tenso — de pernas afastadas e mãos atrás das costas — e
perguntei-me se o antigo Navy SEAL dentro dele percebia a posição militar
assumida. — Foi a última pessoa a ver a Dra. Anders — acrescentei, querendo ver
a reação de Trent.

— Está passando do limite, senhorita Morgan — murmurou Edden, mas eu


estava mais interessada na emoção que vira em Trent, por breves instantes. Raiva,
frustração, mas nada de choque.

Lentamente, Trent olhou para Jonathan que fez o mais subtil encolher de
ombros que eu alguma vez vira. Lentamente, Trent recuou para a mesa,
entrelaçando os dedos das mãos compridas e bronzeadas pelo sol à frente do
corpo.

— Não sabia que ela tinha morrido — disse ele.

— Eu nunca disse que ela estava morta — disse eu.

Meu coração deu um salto, quando Edden agarrou meu braço, em sinal de
aviso.

— Está desaparecida? — disse Trent, fazendo um trabalho incrível na sua


demonstração de alívio. — Isso é bom. Que esteja desaparecida e não... Hum...
Morta. Jantei com ela a noite passada — uma ligeiríssima sugestão de preocupação
tremeluziu sobre Trent, enquanto ele apontava para as duas cadeiras atrás de nós.
— Por favor, sentem-se — disse, enquanto contornava a mesa. — Tenho certeza de
que tem perguntas para mim... Levando em consideração que estão fazendo uma
busca aos meus terrenos.

— Obrigado, senhor. Tenho.

Edden ocupou o lugar mais perto do corredor. Meus olhos seguiram


Jonathan enquanto este fechava a porta do gabinete de Trent, continuando de pé,
298

ao lado dela, parecendo assumir uma posição defensiva. Sentei-me na cadeira que
sobrara, sob o sol artificial, obrigando-me a encostar as costas ao encosto.
Tentando mostrar um ar despreocupado, pousei a bolsa no colo e procurei a
agulha que guardara no bolso do casaco. O picar da lâmina lançou um arrepio
através de mim. Levei o dedo sangrando ao interior da bolsa, procurando
cuidadosamente o amuleto. Agora vamos ver se Trent consegue mentir e safar-se.

A expressão de Trent gelou ao ouvir o som do meu amuleto.

— Guarde seu amuleto da verdade, menina Morgan — disse, em tom


acusatório. — Eu disse que estava disposto a responder às perguntas do capitão
Edden, não a submeter-me a um interrogatório. O vosso mandado é de busca e
apreensão, nada diz sobre a colocação de questões.

— Morgan — silvou Edden, estendendo a mão grossa. — Dê-me isso!

Com uma careta, limpei o dedo e entreguei o amuleto. Edden enfiou-o no


bolso.

— Minhas desculpas — disse, a tensão visível no rosto redondo. — A


senhorita Morgan é tenaz no seu desejo de encontrar a pessoa ou pessoas
responsáveis por tantas mortes. Ela tem uma perigosa — falando diretamente para
mim —, tendência para esquecer que tem de operar dentro dos parâmetros da lei.

O cabelo liso e leve de Trent agitava-se na brisa vinda dos condutores de ar.
Vendo meu olhar preso nele, passou a mão pela cabeça, dando um sinal de
irritação.

— Ela tem boas intenções.

Haveria algo mais paternalista? Furiosa, pousei a bolsa no chão com um


baque surdo.

— A Dra. Anders também era bem intencionada — disse eu. — A matou


depois de ela ter recusado sua oferta de emprego?

Jonathan ficou rígido e as mãos de Edden saltaram como se ele as estivesse


tentando manter sobre o colo e longe do meu pescoço.

— Não vou voltar a avisar, Rachel... — rosnou.

O sorriso de Trent nunca enfraqueceu. Estava furioso e tentava não mostrá-


lo. Eu estava feliz por poder expressar meus sentimentos, era muito mais
satisfatório.
299

— Não, está tudo bem — disse Trent, unindo os dedos e inclinando-se para
frente para pousá-los sobre a mesa. — Se isso servir para diminuir a crença da
senhorita Morgan de que sou capaz de crimes tão monstruosos, terei todo o prazer
em revelar o tema da nossa conversa da noite passada — embora estivesse falando
com Edden, seu olhar não se afastou do meu.

— Estivemos discutindo a possibilidade de eu financiar a investigação dela.

— Investigação sobre as linhas Ley? — perguntei.

Ele pegou um lápis — o movimento que realizou, fazendo-o girar, era


revelador do seu desconforto. Tratava-se de um hábito que precisava mesmo
dominar.

— Investigação das linhas Ley — concordou. — Tem pouco valor prático.


Estava satisfazendo minha curiosidade, nada mais.

— Acho que lhe ofereceu um emprego — disse eu. — E, quando ela se


recusou a trabalhar para você mandou mata-la, tal como fez com todas as outras
bruxas das linhas Ley de Cincinnati.

— Morgan! — exclamou Edden, endireitando-se na cadeira. — Vá esperar


no carro — o capitão levantou-se, dirigindo a Trent um olhar de desculpas. — Sr.
Kalamack, lamento muito. A senhorita Morgan passou completamente dos limites
e não está agindo sobre autoridade do DFI nas suas acusações.

Virei-me na cadeira para olhar para ele.

— Foi o que tentou fazer comigo. Por que seria diferente com a Dra.
Anders?

O rosto de Edden ficou vermelho por trás dos seus pequenos óculos
redondos. Cerrei o maxilar, pronta para responder. Ele inspirou furioso, expirando
em seguida ao ouvir baterem à porta. Jonathan abriu, recuando quando Glenn
entrou, com uma ligeira inclinação da cabeça na direção de Trent em sinal de
cumprimento. Podia ver, na sua expressão fechada e furtiva, que a busca não
estava correndo bem.

Ele murmurou algo a Edden e o capitão franziu a sobrancelha, rosnando


algo em resposta. Trent observou a troca de palavras com interesse, as rugas que
lhe marcavam a testa suavizando-se e a tênue tensão nos ombros aliviando-se. O
lápis foi pousado e ele recostou-se na cadeira.
300

Jonathan dirigiu-se a Trent, pousando uma mão sobre a mesa enquanto se


inclinava para sussurrar ao ouvido deste. Minha atenção saltou do sorriso
condescendente de Jonathan, para o franzir de sobrancelha preocupado de Edden.
Trent ia emergir daquela situação como um cidadão maltratado pelo rude DFI.
Maldição.

Jonathan endireitou-se e os olhos verdes de Trent pousaram-se nos meus,


com uma ligeira expressão de gozo. A voz rouca de Edden chamou-me a atenção,
pedindo a Glenn que levasse Jenks para uma nova busca aos jardins. Trent ia se
safar. Ele matara aquelas pessoas e ia se safar!

A frustração apoderou-se de mim, enquanto Glenn me dirigia um olhar


desamparado e saía fechando a porta atrás de si. Eu sabia que meus amuletos
eram bons, mas estes poderiam não funcionar se Trent estivesse usando magia das
linhas Ley para esconder o que quisesse. Fiquei de queixo caído. Magia das linhas
Ley? Se ele a estava escondendo com magia das linhas Ley, eu podia encontrá-la
usando a mesma magia.

Olhei de relance para Trent, vendo sua satisfação diminuir perante a súbita
expressão inquisitiva que eu sabia ter estampada no rosto. Trent ergueu um dedo
na direção de Jonathan, fazendo sinal ao homem alto para que ficasse em silêncio,
enquanto me fitava, claramente tentando descobrir em quê eu estava pensando.

Fazer um amuleto de busca usando magia de terra era, obviamente, magia


branca. Pelo que podia concluir que fazê-lo usando magia das linhas Ley seria,
também, magia branca. O preço cobrado ao meu karma seria negligenciável,
menor, digamos, que mentir sobre o dia do meu aniversário para conseguir
bebidas de graça. E quer tivesse sido feito com magia de terra ou com magia das
linhas Ley, o amuleto de busca estaria abrangido pelo mandado de busca e
apreensão. Minha pulsação acelerou e estendi a mão para tocar no cabelo.

Não conhecia o encantamento, mas Nick talvez o tivesse nos seus livros. E
se Trent tinha usado magia das linhas Ley para esconder seu rastro, teria de haver
uma linha suficientemente perto para ser usada. Interessante.

— Preciso fazer uma ligação — disse, ouvindo minha voz como se estivesse
fora da minha cabeça.

Trent parecia sem palavras. Era uma emoção que gostava de ver nele.

— Pode usar o telefone da minha mesa — disse ele.


301

— Tenho o meu — disse eu, procurando na minha bolsa. — Obrigada.

Edden dirigiu-me um olhar desconfiado e continuou a falar com Trent e


Jonathan. Tendo em consideração a sua pose educada e a sua expressão
reconciliadora, calculei que estivesse tentando atenuar as ondas políticas que a
visita falha do DFI pudesse causar. Tensa, levantei-me, dirigindo-me ao canto
mais distante e tentando ficar fora do ângulo das câmeras, bem como do alcance
dos seus ouvidos.

— Espero que esteja aí — sussurrei, enquanto percorria minha curta lista de


contatos e carregava no botão de chamada. — Atende, Nick. Por favor, atende...

Podia ter ido às compras. Podia estar lavando a roupa, tirando um cochilo
ou tomando banho, mas eu estava disposta a apostar meu salário não existente em
como ainda estava lendo o maldito livro. Meus ombros relaxaram um pouco
quando ele atendeu. Estava em casa. Adorava um homem previsível.

— Sim — disse ele, parecendo preocupado.

— Nick — sussurrei. — Graças a Deus!

— Rachel? O que houve?

A preocupação envolvia sua voz, deixando, mais uma vez, meus ombros
tensos.

— Preciso da sua ajuda — disse, olhando de relance para Edden e Trent,


tentando manter a voz baixa. — Estou no gabinete do Trent com o capitão Edden.
Temos um mandado de busca. Importa-se de procurar nos seus livros por um
encantamento das linhas Ley que permita encontrar... Hum... Pessoas mortas?

Houve uma longa hesitação.

— É isso que gosto em você, Ray-Ray — disse ele, enquanto eu ouvia o


ruído de um livro deslizar, seguido de um som surdo. — Diz as coisas mais doces.

Esperei, o estômago apertado, enquanto o som das páginas a serem viradas


chegava, tênue, através do telefone.

— Pessoas mortas — murmurou, nada perturbado, enquanto as borboletas


se agitavam no meu estômago como martelos pneumáticos. — Fadas mortas.
Fantasmas mortos. Uma invocação para fantasmas serve?
302

— Não — raspei o esmalte das unhas observando Trent, cuja atenção estava
fixa em mim, enquanto falava com Edden.

— Reis mortos, gado morto... Ah, pessoas mortas!

Minha pulsação acelerou e eu vasculhei minha bolsa, em busca de uma


caneta.

— Muito bem... — ele calou-se, lendo o encantamento. — É bastante


simples, mas acho que não pode usá-lo durante o dia.

— Por que não?

— Sabe como as lápides do nosso mundo brilham na eternidade?

Bem, o encantamento faz com que mesmo os túmulos não marcados do


nosso mundo brilhem. Tem de ser capaz de ver a eternidade com a segunda visão e
não pode fazê-lo a menos que o Sol se ponha.

— Posso, se estiver sobre uma linha Ley — sussurrei, sentindo-me gelada.

Nunca vira essa informação escrita em livro algum. Meu pai meu contara
quando eu tinha oito anos.

— Rachel — protestou ele, depois de um momento de hesitação. — Não


pode. Se esse demônio sabe que está numa linha Ley, tentará puxar-te através dela
para a eternidade.

— Não pode fazê-lo. Não é dono da minha alma — sussurrei, voltando-me


para esconder o movimento dos meus lábios.

Ele estava em silêncio e a minha respiração soava alta.

— Não gosto disso — acabou por dizer.

— E eu não gosto que você invoque demônios. Além disso, é uma coisa, não
uma pessoa.

O telefone estava silencioso. Olhei de relance para Trent, depois virei as


costas. Perguntei-me quão boa era sua audição.

— Sim — disse Nick —, mas ele tem dois terços da minha alma e um terço
da tua. E se...
303

— As almas não se somam como números, Nick — disse eu, minha voz
rouca de preocupação. — É uma questão de tudo ou nada. Não tem o suficiente de
mim. Não tem o suficiente de ti. Não vou sair daqui sem provar que Trent matou
aquela mulher. Qual é o encantamento?

Esperei, sentindo os joelhos ficarem fracos.

— Tem uma caneta? — acabou por dizer e eu acenei, esquecendo-me que


ele não podia ver o gesto.

— Sim — disse eu, equilibrando o telefone para escrever na palma da mão


como se se tratasse de uma cola para uma prova.

— Muito bem. Não é muito longo. Vou traduzir tudo menos a palavra da
invocação, isso só porque não temos uma palavra que signifique as cinzas
brilhantes dos mortos e acho que é importante que essa esteja absolutamente
correta. Dá-me um momento e posso fazer com que rime.

— Mesmo que não rime, não há problema — disse eu, lentamente,


pensando que as coisas estavam ficando cada vez melhores. Cinzas brilhantes dos
mortos? Que tipo de linguagem precisava de uma palavra para aquilo?

Ele tossiu para limpar a garganta e eu preparei a caneta.

— "Mortos aos mortos, brilhantes como a Lua. Que se silenciem todos


exceto os inquietos" — ele hesitou. — E depois a invocação é "Favilla".

— Favilla — repeti, escrevendo-a foneticamente. — Algum gesto?

— Não. Não atua fisicamente sobre nada, por isso não precisa de um gesto
nem de um objeto focal. Quer que o repita?

— Não — disse eu, sentindo-me um pouco indisposta, enquanto olhava


para a palma da mão. Será que eu queria mesmo fazer aquilo?

— Rachel — disse ele, a voz soando preocupada através do telefone. —


Tenha cuidado.

— Sim — disse eu, a pulsação rápida com a antecipação e a preocupação. —


Obrigada, Nick — mordi o lábio inferior, quando me ocorreu uma ideia súbita. —
Ei, hum, pode manter o livro ao perto de você até eu voltar a telefonar.

— Ray-Ray? — perguntou ele, preocupado.


304

— Pergunta mais tarde — disse eu, olhando de relance para Edden, depois
para Trent. Não tive de dizer mais nada. Ele era um homem esperto.

— Espera. Não desligue — disse ele, a preocupação na sua voz fazendo-me


parar. — Fica na linha. Não posso ficar aqui sentado, sentindo aqueles puxões,
sem saber se está ou não em apuros.

Lambi os lábios e obriguei a mão a descer e a soltar a madeixa com que


tinha estado brincando. Usar Nick como familiar ia contra toda a fibra moral que
eu possuía — e eu gostava de pensar que tinha bastante —, mas não podia virar as
costas. De qualquer forma, nem sequer o experimentaria se não soubesse que Nick
não seria afetado.

— Vou passar ao capitão Edden, está bem?

— Edden? — disse ele, com a voz fraca, sua preocupação assumindo um


toque de autopreservação.

Virei-me de novo para os três homens.

— Capitão — disse eu, chamando a atenção deles. — Gostaria de tentar um


feitiço de busca diferente antes de sairmos.

O rosto redondo de Edden estava marcado pela frustração.

— Já acabamos, Morgan — disse ele, bruscamente. — Já roubamos tempo


mais do que suficiente do Sr. Kalamack.

Engoli em seco, tentando dar a impressão de que fazia aquilo todos os dias.

— Este funciona de forma diferente.

Ele inspirou e expirou, emitindo um som áspero.

— Posso dar uma palavrinha com você no corredor? — entoou.

Corredor? Não seria arrastada para o corredor como uma criança mal-
educada. Voltei-me para Trent.

— O Sr. Kalamack não se vai importar. Ele não tem nada a esconder, certo?

O rosto de Trent era uma máscara de cortesia profissional. Jonathan erguia-


se atrás, com o rosto estreito contorcido numa careta.
305

— Desde que caiba nos parâmetros do vosso mandado — disse Trent,


suavemente.

Senti um arrepio ao ouvir a preocupação que ele tentava esconder. Ele


estava preocupado. Eu também. Avancei lentamente, atravessando o gabinete e
entregando o telefone a Edden.

— Trata-se de um feitiço de busca destinado a descobrir sepulcros não


marcados. Nick explicará, Capitão, para que possa ter certeza de que é legal.
Lembra-se dele, não lembra?

Edden pegou no telefone. O fino retângulo cor-de-rosa parecia ridículo em


suas mãos grossas.

— Se é assim tão simples, por que não me falou disso antes?

Eu dirigi-lhe um sorriso nervoso.

— Usa a magia das linhas Ley.

O rosto de Trent parecia gelado. Seu olhar saltou para o meu pulso,
marcado pelo demônio e recostou-se na cadeira, sob a proteção de Jonathan.
Arqueei as sobrancelhas, embora sentisse um nó no estômago. Se ele protestasse,
pareceria culpado. Suas mãos moviam-se com uma rapidez nervosa, enquanto
pegava nos óculos de armação fina e batia com eles na mesa.

— Por favor — disse ele, como se tivesse voto na matéria. — Invoque o seu
encantamento. Gostaria de saber o que uma bruxa de terra como a senhorita sabe
sobre a magia das linhas Ley.

— Eu também — disse Edden, secamente, antes de levar o telefone ao


ouvido e começar a falar com Nick, num tom baixo e firme, assegurando-se de que
o que eu estava a fazer se enquadrava nos limites do mandado do DFI.

— Vamos ter de mudar de lugar — disse eu, quase para mim mesma. —
Preciso encontrar uma linha Ley sobre a qual possa me colocar.

— Hum, senhorita Morgan — disse Trent, claramente agitado, ao mesmo


tempo em que se endireitava na sua cadeira.

Os óculos de armação fina, que tinha voltado a colocar no rosto, faziam com
que parecesse menos sofisticado, conferindo-lhe um aspecto mais suave, quase
inofensivo. Achei que ele também parecia um pouco pálido.
306

Certo — pensei cinicamente, enquanto fechava os olhos para facilitar a


busca da linha Ley com minha segunda visão como se tivesse uma linha Ley
atravessando o jardim. Usei meus pensamentos, procurando a mancha vermelha
da eternidade. Inspirei, silvando e os meus olhos abriram-se de repente. Fitei Trent
fixamente.

Havia uma linha Ley atravessando seu gabinete.

Capitulo 20
De boca aberta, olhei para o outro lado do gabinete, para Trent. O rosto
estava tenso e fechado e estava sentado com Jonathan ao seu lado. Nenhum deles
parecia feliz. Senti minha pulsação acelerar. Trent sabia que ela estava ali. Ele
podia usar as linhas Ley. Isso significava que era um humano ou um bruxo. Os
vampiros não eram capazes de usá-las e os humanos — que o podiam fazer e eram
posteriormente infetados pelo vírus do vampirismo — perdiam essa capacidade.
Não sabia o que me assustava mais, se era o fato de Trent ser capaz de usar as
linhas Ley ou se o fato de ele saber que eu sabia. Deus me ajudasse. Estava a meio
caminho de descobrir o segredo mais precioso de Trent, que diabo era ele.

A porta do gabinete de Trent abriu-se, batendo contra a parede. Um surto


de adrenalina ergueu-se, dolorosamente, dentro de mim e assumi uma posição
defensiva. Quen entrou rompendo a sala.

— Sa... Senhor — bradou, evitando o nome Sa'han, no meio do discurso.


Quen parou, de repente, semicerrando os olhos, enquanto avaliava a minha
postura tensa em um canto e a de Edden, sentado na sua cadeira, com o telefone
encostado ao ouvido, tendo o cuidado de não se mexer um centímetro que fosse.

Os olhos verdes do homem estavam presos nos meus. Meu coração batia
forte. Nossas posturas defensivas suavizaram-se e ajeitei a saia, puxando-a para o
307

devido lugar. A porta fechou-se desenhando um arco, enquanto Jenks entrava


voando.

— Ei, Rache! — gritou o pixy, as asas vermelhas de excitação. — Alguém


descobriu uma linha Ley e isso deixou alguém com um enorme ataque de raiva —
parou, de repente, avaliando a sala tensa. — Oh, foi você — disse, sorrindo.

Batendo as asas, pousou no meu ombro depressa me trocando por Edden e


pela possibilidade de ouvir o que Nick estava dizendo. Trent inclinou-se para
frente e pousou os cotovelos sobre a mesa. Uma pérola de suor começava a
deslizar pela testa. Tentei engolir, descobrindo que tinha a boca seca.

— A senhorita Morgan está demonstrando suas capacidades de utilização


das linhas Ley — disse Trent. — Estou muito interessado em vê-las.

Aposto que sim — pensei, perguntando-me quão profundo seria o buraco


onde tinha me enfiado. A magia das linhas Ley era muito usada na segurança e
Quen percebeu que eu mal a usei.

Sentindo-me inquieta, aproveitei a oportunidade para examinar as auras de


todos com minha segunda visão. A de Jenks parecia um arco-íris, tal como a da
maioria dos pixies. A de Edden era de um azul forte, que assumia um tom mais
amarelo na cabeça. A de Quen era de um verde tão escuro que parecia quase
preto, transpassada por riscas de um alaranjado vibrante, na zona central do corpo
e nas mãos, nada bom. A de Jonathan também era verde, muito mais claro e quase
monótono na sua uniformidade e tonalidade. A de Trent... Hesitei, vacilando.

A a u ra d e T re n t e ra d e u m a ma r e l o s o l a r , ra i a d a d e u m ve r me l h o
fortemente definido. As riscas carmesins indicavam que, no passado, tinha tido
mais do que a sua quota normal de tragédias capazes de perturbar a alma. Esta
ficava inusitadamente próxima do seu corpo e estava envolta em centelhas
prateadas, como a de Ivy. Pareceram arrebentar e flutuar em seu redor, quando ele
ergueu uma mão e a passou pela cabeça para alisar o cabelo. Estava à procura de
algo: a forma como as centelhas se misturavam com a aura indicava que tinha
dedicado a sua vida a essa busca. O dinheiro, o poder, a ambição, tudo isso servia
um propósito maior. De quê estaria à procura? — perguntei-me.

Não conseguia ver a minha própria aura. A menos que me encontrasse


sobre um espelho de adivinhação, algo que não voltaria a fazer. Mas tinha certeza
de que Trent estava olhando para ela e eu não gostava do fato de ele ser capaz de
ver a m ar ca do demô ni o no pul s o, pal pi ta ndo numa man cha ne gra e
308

desagradável, nem que a minha aura tinha aquelas horríveis marcas vermelhas ou
que, excluindo as centelhas, as nossas auras eram quase idênticas.

Edden olhava para ambos, desconfiado, sabendo que algo estava se


passando, mas sem saber o quê. De sobrancelha franzida deslizou para a beira da
cadeira e continuou a conversa tensa e sussurrada com Nick.

— Tem uma linha Ley atravessando o seu gabinete? — disse eu, sentindo-
me tonta.

— A senhorita tem uma no jardim dos fundos — respondeu Trent com uma
voz monótona.

De maxilar cerrado, olhou para Edden. Seu desejo de que o capitão do DFI
não estivesse ali era quase visível. Sua expressão estava envolta num aviso
ameaçador. Não era público que só os humanos e os bruxos fossem capazes de
manipular as linhas Ley, mas qualquer um podia chegar a essa conclusão e eu
sabia que ele queria que eu mantivesse esse fato em silêncio. Eu estava mais do
que disposta a fazê-lo, consciente de que ter tal informação era como segurar uma
cobra pela cauda.

Meus dedos tremiam devido à adrenalina e cerrei-os num punho, enquanto


me voltava para a mancha de eternidade, com cerca de um metro de largura, que
corria através do gabinete de Trent. Esta atravessava o gabinete de leste para oeste, à
frente da mesa dele, mais correta do que qualquer bússola, e calculei que
também devia atravessar o gabinete dos fundos. Mal a pisasse, poderia fazer um
cálculo mais aproximado.

Senti o suor acumular-se no fundo das costas enquanto fitava a linha.


Nunca antes tinha pisado numa. A menos que se fizesse um esforço consciente
para tocar na linha, esta podia ser atravessada sem que se sentisse o que quer que
fosse. Inspirei fundo, forçando-me a relaxar. Se Algaiarept aparecesse, tudo o que
tinha de fazer era sair da linha. Ele não podia deixar a eternidade, enquanto o Sol
estivesse acima do horizonte.

Com um último olhar desconfiado para os dois homens que se erguiam


protetoramente atrás de Trent, eu fechei os olhos. Avançando furtivamente,
estendi minha vontade e toquei na linha.

O poder — concentrado e embriagante — correu através de mim. Minha


pulsação saltou e creio que cambaleei. Com a respiração rápida e entrecortada,
ergui uma mão para impedir que Edden me tocasse. Ouvi-o levantar-se.
Enquanto
309

ele disparava perguntas sussurradas a Nick deixei cair a cabeça e não fiz nada,
cavalgando nas ondas de poder que se erguiam através de mim em pulsações cada
vez mais fortes. Estas tocavam nas minhas extremidades e voltavam para trás,
minha cabeça latejando de dor, enquanto recuavam e chocavam contra a energia
que não parava de fluir. Senti um momento de pânico quando a energia cresceu,
cresceu e continuou a crescer. Que força tinha, exatamente, aquela coisa?

Sentia-me como um balão extremamente cheio e pareci prestes a arrebentar


ou enlouquecer. Isso — pensei, quase arquejando, era a razão porque as bruxas das
linhas Ley usavam familiares. Seus companheiros animais filtravam a energia crua,
sendo as suas mentes mais simples, mais capazes de lidar com a tensão. Não faria
Nick correr um risco que era meu. Tinha de recebê-la por inteiro. E ainda não
tinha avançado, efetivamente, para a linha. Quão mais potente seria então,
ninguém sabia ao certo.

Lentamente, o exigente influxo esmoreceu, tornando-se quase suportável.


Sentindo-me tilintar de dentro para fora, inspirei, emitindo um som que se parecia
com um soluço. O equilíbrio de energias parecia ter sido atingido. Podia sentir os
fios de cabelo que tinham escapado da minha trança fazerem-me cócegas no
pescoço, enquanto o vento da eternidade passava por mim e através de mim.

— Meu Deus... — ouvi Edden sussurrar e esperei que não tivesse perdido
sua confiança. Não creio que tivesse compreendido o quanto éramos diferentes até
àquele momento, até ver meu cabelo mover-se numa brisa que só eu conseguia
sentir.

— Não é grande bruxa — ouvi Jonathan dizer —, enquanto cambaleava


embriagada de poder, ao meio do dia.

— Não seria, se estivesse ascendendo à linha como a maior parte das pes-
soas — disse Quen num sussurro rouco e esforcei-me para ouvir. — Ela não está
usando um familiar, Sa'han. Está canalizando na íntegra a linha.

O som de alarme que ouvi de Jonathan fez com que me sentisse vingada,
até que ele o seguiu com uma frase carregada de urgência:

— Mate-a. Esta noite. Ela já não vale o risco.

Meus olhos quase se abriram de repente, mas consegui mantê-los fechados


para que eles não percebessem de que os ouvi. Meu coração batia loucamente,
ressoando nos meus ouvidos, somando-se ao crescimento lento da força das linhas
Ley, que continuava a entrar em mim.
310

— Jonathan — disse Trent, parecendo cansado. — Não matamos uma coisa


só porque ela é mais forte. Arranjamos uma forma de usá-la.

Usar-me? — pensei, amargamente. Só por cima do meu cadáver. Esperando


que não se tivesse tratado de uma premonição, ergui a cabeça, cruzei os dedos
para me dar sorte, rezei que não estivesse cometendo um erro e entrei na linha Ley.

Meus joelhos vacilaram quando o poder que crescia em mim desapareceu,


de forma súbita e dolorosa. Tinha desaparecido. O desconfortável influxo de
eternidade tinha desaparecido. Incapaz de acreditar, ergui-me, percebendo que
tinha caído sobre um dos joelhos. Obriguei meus olhos a permanecerem fechados
para não perder a segunda visão, afastando com uma palmada a mão de Edden
que me agarrava o ombro.

A força da linha Ley redemoinhava através de mim, deixando-me a pele


arrepiada e fazendo erguer meu cabelo, mas o equilíbrio tinha de ser perfeito.
Deixara-me abalada, mas já não tinha de lutar contra a pressão do seu poder. Por
que nunca ninguém me contou aquilo? Estar diretamente sobre uma linha era
muito mais fácil do que manter uma ligação com ela, ainda que o vento áspero
requeresse alguma prática.

Com os olhos ainda fechados, olhei para a eternidade pensando que, sob o
sol dos demônios, a sua luminosidade era ainda mais estranha. As paredes do
gabinete de Trent tinham desaparecido e só a conversa sussurrada de Edden com
Nick me mantinha presa à terra, dizendo à minha mente esgotada que não, não
tinha atravessado para a eternidade, que estava num alçapão, vendo parte dela.

Estendendo-se em todas as direções, havia uma paisagem ondulada


salpicada de pequenos bosques entre os quais se estendiam terrenos vastos e
abertos. Para leste e oeste estendia-se a nebulosa e poderosa linha Ley. Eu estava a
dois terços do seu considerável comprimento e calculava que se estendia até ao
gabinete dos fundos de Trent. O céu era de um amarelo sobressalente e o sol
intenso, abatendo-se sobre o chão como se quisesse esmagar as árvores
atarracadas. Sentia-me como se ele passasse através de mim, refletindo-se no chão
e aquecendo-me as plantas dos pés. Até mesmo a relva áspera parecia atrofiada,
quase não chegando ao meio da minha canela. Na nebulosa distância, para oeste,
encontrava-se um aglomerado de linhas e ângulos agudos que se erguiam sobre a
paisagem. Fantasmagórica e estranha, a cidade dos demônios estava claramente
em ruínas.
311

— Legal — murmurei e Edden silenciou com um "shhh" os pedidos de


informação de Nick.

Sabendo que Trent estava me observando, embora não pudesse vê-lo, virei
de costas para que não pudesse ler meus lábios enquanto murmurava a primeira
parte do encantamento. Felizmente ainda me lembrava da curta frase traduzida, já
que não desejava abrir os olhos para ler na palma da mão.

As palavras saíram de mim, a energia da eternidade agitou-se de leve aos


meus pés, erguendo-se em redemoinho e instalando-se na minha barriga. Meus
joelhos foram ficando mais soltos, à medida que a relva se dobrava em direção a
mim, de todos os lados. A força da linha Ley fluía para mim, trazendo consigo uma
agradável e espessa onda de arrepios. Perguntei-me quão intensa se tornaria a
sensação, sem querer admitir que sabia bem.

Meu cabelo ergueu-se num súbito redemoinho de poder quando comecei a


segunda parte do encantamento. Faltando apenas pronunciar a palavra da
invocação, a energia aumentava, enviando através de mim um formigueiro que
me atravessava uniformemente. Pairou dentro de mim por um instante, depois
saiu de mim num pulsar plano e amarelo. O pulsar era da cor da minha aura e
senti-me inquieta, tendo de me recordar que o feitiço tinha assumido apenas a cor
da minha aura, não levando a minha aura em si.

O anel continuou a expandir-se até se tornar tênue, na distância. Não sei se


me devia sentir contente ou alarmada com o fato de ter se estendido quase até à
cidade meio visível. A onda que saíra de mim não deixara a paisagem da
eternidade imutável e o meu espanto transformou-se em alarme ao compreender
que ela deixara atrás de si uma série de borrões verdes que brilhavam levemente.

Corpos. Estavam por todo o lado. Ao meu lado conseguia ver os menores,
alguns não eram maiores do que a unha do meu mindinho. Mais ao longe só era
capaz de discernir os maiores. A minha primeira reação esmoreceu quando
compreendi que o encantamento estava a assinalar todas as coisas mortas:
roedores, pássaros, insetos, tudo. Um grande número de corpos maiores estendia-
se para oeste, em filas e colunas ordenadas e perfeitas. Senti um momento de
pânico até ter percebido que se encontravam no local onde, no mundo real,
estavam situados os estábulos de Trent e se tratava, provavelmente, dos corpos
dos seus antigos cavalos de corrida premiados.

O bater do meu coração abrandou e tentei recordar a última palavra, aquela


que permitiria que o feitiço se limitasse a restos mortais humanos. De sobrancelha
312

franzida, me erguia no gabinete de Trent, os pés firmemente apoiados num portão


para o outro mundo, tentando recordar-me qual era ela.

— Oh, se não é um prazer — disse uma voz rica e culta, atrás de mim.
Esperei que alguém me dissesse quem tinha acabado de entrar no gabinete de
Trent, mas ninguém disse nada. Os pêlos da parte de trás do meu pescoço
levantaram-se. Antecipando o pior, mantive os olhos fechados, minha segunda
visão aberta e virei-me. Levei a mão à boca e estanquei. Era um demônio, de robe e
chinelos.

— Rachel Mariana Morgan? — disse ele, sorrindo maldoso. Engoli em seco.


Está bem, era o meu demônio. — O que está fazendo na linha Ley de Trent
Aloysius Kalamack? — perguntou ele.

Minha respiração tornou-se mais rápida e agitei uma mão atrás de mim,
tentando encontrar o limite da linha.

— Estou trabalhando — disse eu, a minha mão latejando quando o


encontrei. — O que está fazendo aqui?

Ele encolheu os ombros, seu corpo estendendo-se, enquanto ele assumia a


familiar imagem de um vampiro alto e magro, vestido de couro, com cabelo loiro e
uma orelha rasgada. Assumindo o andar de maroto, lambeu os lábios mal
humorados, com a corrente que ia do bolso de trás à presilha do cinto a tilintar.
Minha respiração tornou-se incerta. Ele estava ficando melhor em tirar Kisten da
minha mente, tinha feito com perfeição. Na sua mão surgiu um par de óculos
escuros e ele abriu-os com um rápido movimento do pulso.

— Te senti, querida — disse ele, os dentes estendendo-se até se parecerem


com os de um vampiro, enquanto punha os óculos para esconder os olhos de
cobra vermelhos. — Eu simplesmente ti-i-i-inha de fazer uma visita. Não se
importa que seja este, não é? Tem as bolas de um touro.

Deus me proteja. Tremi, passando a mão para o exterior da linha, apesar da


dor provocada pelo desequilíbrio na eternidade.

— Não estava tentando chamar sua atenção — sussurrei. — Vá embora.

Senti um toque na mão e afastei-a. Pude sentir o cheiro de café queimado e


desejei que Edden parasse de fazer aquilo.

— Com que diabo ela está falando? — perguntou baixinho o capitão do


DFI.
313

— Não sei — respondeu Jenks. — Mas não vou entrar naquela linha para
descobrir.

— Embora? — perguntou o demônio, seu sorriso crescendo. — Não, não,


não. Não seja tola. Quero ver quanto mais da eternidade é capaz de manipular.
Vamos, querida. Termina seu pequeno encantamento — disse ele, encorajando-
me.

Ao fundo conseguia ouvir Trent e Quen, que discutiam intensamente. Não


ia abrir os olhos e arriscar perder o demônio de vista, mas pareceu-me que Trent
estava ganhando. Nervosa, lambi os lábios, odiando-me quando a imagem de
Kisten fez o mesmo com uma lentidão trocista.

— Esqueci qual era a última palavra — admiti; depois me endireitei ao


recordar. — Favilla — disse, aliviada e o demônio bateu palmas, deliciado.

Saltei, quando uma segunda onda de eternidade passou através de mim.


Envolvendo o corpo com os braços — como que para manter a aura intacta —
o b s e r v e i a tê n u e p u l s a ç ã o a m a r e l a a f a s ta r - s e v e l o z .Al g a i a r e p t g e m e u
,
cambaleando como que de prazer, enquanto ela o atravessava. Observei sua
reação quase horrorizada. Era óbvio que o demônio gostava dela, mas se pudesse tomar a
minha aura, já o teria feito — pensei.

— Algodão-doce — disse ele, fechando os olhos. — Esfolem-me e matem-


me. Algodão-doce e néctar.

Maravilha. Eu tinha de sair dali.

Enquanto Algaiarept passava a mão pela relva e lambia dos dedos o borrão
amarelo de linha Ley que o meu encantamento deixara sobre ela, observei a
paisagem que nos rodeava. Meus ombros tornaram-se tensos de preocupação.
Todos os borrões brilhantes que marcavam a morte tinham desaparecido.
Algaiarept parecia suficientemente contente em procurar os restos do meu feitiço
na relva, pelo que dei uma rápida espreitadela para trás de mim, meu movimento
rápido parando subitamente.

Uma das sepulturas dos cavalos brilhava num vermelho forte. Não era um
cavalo, era uma pessoa. Trent a matou — pensei, minha atenção voltando-se para
uma nova forma que se materializava dentro da linha Ley.

Era Trent que tinha entrado nela para ver o que eu estava vendo. Seus olhos
dirigiram-se para o ponto vermelho, abrindo-se, mas o choque desse momento
314

não era nada comparado com o que sentiu quando o demônio se transformou
numa cópia de mim, envergando um body de corpo inteiro, justo e perigoso.

— Trenton Aloysius Kalamack — disse ele, tornando minha voz mais


sensual do que eu alguma vez seria capaz. Num gesto sugestivo, lambeu o resto
do meu feitiço do dedo e perguntei-me se o demônio estaria me dando um aspecto
m e lh o r do q u e eu t i nh a n a r e al i d ad e . — Q u e d i re ç ã o p e ri g o s a o s t e u s
pensamentos tomaram — disse o demônio. — Devia ter mais cuidado com quem
convida para brincar na sua linha Ley — hesitou, o quadril erguido, enquanto
espreitava sobre os óculos e comparava nossas auras. — Que belo par vocês
fazem, como cavalos emparelhados nos meus estábulos.

E desapareceu no meio de um formigueiro, deixando-me olhando para


Trent, sobre a paisagem da eternidade.
315

Capitulo 21
Meus saltos matraqueavam no chão com mais autoridade do que aquela
que eu sentia, enquanto percorria o longo alpendre de madeira do estábulo dos
cavalos de Trent, à frente dele e de Quen. A fila de cocheiras vazias estava virada
para sul e para o Sol da tarde. Sobre elas situavam-se os aposentos do veterinário.
Estavam vazios, pois era outono. Embora os cavalos pudessem ter as crias em
q u al q ue r al t u r a d o a no , a m a i o r pa r t e do s e s t á b ul o s es t a b e l e c i a u m r í g i do
programa de procriação — para que todas as éguas parissem ao mesmo tempo,
ultrapassando de uma só vez o período mais difícil.

Pensei que os edifícios temporariamente abandonados eram um local


perfeito para esconder um corpo. Deus me ajude — pensei sob uma súbita onda de
sofrimento que me atravessou. Como é que eu podia ser tão indiferente? A Dra.
Anders estava morta.

O tênue uivar de um beagle ergueu-se sobre a neblina da tarde. Minha


cabeça voltou-se, repentinamente, e meu coração saltou. Mais abaixo no caminho
estava um canil do tamanho de um pequeno complexo habitacional. Os cães
estavam de pé, as patas contra as paredes de arame, observando. Trent passou por
mim, tocando-me, a brisa de sua passagem cheirava a folhas caídas.

— Eles nunca esquecem uma presa — murmurou, e eu fiquei tensa. Trent e


Quen tinham nos acompanhado até ali, deixando Jonathan para trás, para
supervisionar os agentes do DFI que ainda estavam saindo dos jardins. Os dois
316

homens viraram para um quarto mesmo no meio da fila de cocheiras. A divisão de


paredes de madeira era completamente aberta ao vento e ao sol de um dos lados.
Pelo mobiliário rústico, calculei que se tratasse de uma pequena cocheira
convertida em espaço de confraternização exterior, para os veterinários poderem
relaxar durante os nascimentos e etc. Não gostava do fato de não se encontrar
ninguém com eles, mas também não estava disposta a juntar-me aos dois homens.
Lentamente, apoiei-me num pilar de apoio, decidindo que podia mantê-los
debaixo do olho a partir dali.

Os três agentes do DFI com os cães farejadores de cadáveres erguiam-se


junto ao carro dos cães estacionado à sombra de um enorme carvalho. As portas
estavam abertas e a voz autoritária de Glenn deslizava e pairava sobre o pasto
aquecido pelo sol. Edden estava com eles, parecendo deslocado, mantendo-se à
margem. Era óbvio que Glenn estava encarregado da operação — pela forma
como Edden mantinha as mãos nos bolsos e a boca fechada.

Esvoaçando sobre eles estava Jenks, as asas vermelhas de excitação,


enquanto atravessava o caminho dos outros e oferecia um fluxo constante de
conselhos não solicitados, que eram prontamente ignorados. Os restantes agentes
do DFI encontravam-se sob o antigo carvalho que lançava sua sombra pelo parque
de estacionamento. Enquanto os observava, aproximou-se um carro de
investigação criminal, num movimento exageradamente lento. O capitão Edden
tinha o chamado depois de eu ter encontrado o corpo.

Olhei de relance para Trent, concluindo que o homem de negócios parecia


ligeiramente perturbado, enquanto se erguia na sala informal com as mãos atrás
das costas. Pessoalmente, estaria visivelmente perturbada se alguém estivesse
prestes a descobrir um corpo inexplicado na minha propriedade. Eu tinha certeza
de que fora ali que brilhara sepultura não marcada.

Sentindo frio, saí da passagem coberta, para o sol. Com as mãos segurando
os cotovelos, parei no parque de estacionamento coberto de serragem observando,
fraudulentamente, Trent, com o rosto escondido por uma madeixa de cabelo que
escapou da minha trança. Ele colocou um chapéu leve, de cor creme, para se
proteger do sol e trocou os sapatos por botas em deferência à nossa visita aos
estábulos. De alguma forma a mistura parecia perfeita nele. Não era justo que
pudesse parecer tão calmo e relaxado. Mas, depois, saltou ao ouvir a porta de um
carro bater. Estava tão tenso como eu, só era melhor em escondê-lo.

Glenn disse algumas últimas palavras e o grupo separou-se. Com as caudas


abanando, os cães começaram a sua busca metódica: dois nos pastos próximos, um
317

através do edifício em si. Não pude deixar de reparar que o tratador que ficara
encarregado dos estábulos também estava usando suas capacidades, em vez de
depender apenas do nariz do cão, erguendo os olhos para as vigas e abrindo os
armários fechados. O capitão Edden tocou no ombro do filho e dirigiu-se para
mim, agitando os braços curtos.

— Rachel — disse, mesmo antes de ter chegado junto de mim; ergui os


olhos, surpreendida por ele estar usando o meu primeiro nome. — Já estivemos
neste edifício.

— Se não for neste edifício, é perto daqui. Seus homens podem não ter
usado adequadamente os meus amuletos.

Ou não os terem usado, terminei em silêncio, sabendo que os preconceitos


dos humanos eram muitas vezes escondidos com sorrisos, mentiras e hipocrisia.
Mas sabia que não devia tirar conclusões precipitadas. Estava bastante certa de
que Trent tinha usado um feitiço das linhas Ley para esconder seu paradeiro e, por
isso, meus amuletos não tinham sido úteis. Minha atenção saltou dos cães para
Trent, enquanto Quen se inclinava para lhe falar ao ouvido.

— Eles não deviam estar presos, detidos ou algo assim? — perguntei.


Edden semicerrou os olhos por causa do Sol baixo.

— Tenha calma. Os casos de homicídio ganham-se e perdem-se com o


recolhimento de provas, Morgan. Devia saber isso.

— Sou uma agente, não uma detetive — disse eu, amargamente. — A maior
parte das pessoas que prendi já tinham sido acusadas antes de eu buscá-las.

Ele resmungou. Pensei que a adesão do capitão Edden às "regras" podia


fazer com que Trent desaparecesse numa nuvem de fumo, para não mais ser visto.
Vendo minha inquietação, ele apontou para mim e para o chão, indicando-me que
deveria ficar onde estava, antes de se afastar, na direção de Quen e Trent. O
homem atarracado tinha as mãos nos bolsos, mas não muito longe da arma. Quen
não estava armado, mas olhando para a forma leve como saltitava, não pensei que
precisasse.

Senti-me melhor quando Edden afastou, sutilmente, os dois homens,


agarrando num agente de passagem e dizendo-lhe que pedisse a Quen que
detalhasse seus procedimentos de segurança, enquanto falava com Trent sobre o
próximo jantar de arrecadação de fundos do DFI. Boa.
318

Virei-me observando o Sol que brilhava sobre o pêlo dourado do cão. O


calor impregnou-me e o cheiro dos estábulos era quente na minha memória. Eu
tinha gostado dos três verões que passei no acampamento de férias. O cheiro dos
cavalos e do feno, misturando-se com o toque de estrume velho era como um
bálsamo.

Minhas aulas de equitação tinham como objetivo aumentar meu equilíbrio,


melhorar a tonificação muscular e aumentar a contagem de glóbulos vermelhos,
mas acho que seu maior benefício foi a confiança que obtive do fato de ser capaz
de controlar um animal grande e belo que fazia tudo o que eu lhe pedia. Para uma
criança de onze anos, tal sensação de poder era viciante.

Um sorriso curvou os meus lábios e fechei os olhos, sentindo o sol de


o u to n o i m p r e g n a r m a i s p r o f u n d a m e n t e e m m e u c o r p o . M i n h a a m i g a e e u
tínhamos escapulido dos dormitórios, certa madrugada, para dormir nos estábulos
com os cavalos. O suave som da sua respiração fora indescritivelmente
reconfortante. A responsável pelo nosso dormitório ficou furiosa, mas há muito
tempo que não dormia tão bem.

Meus olhos abriram-se. Fora, talvez, a única noite que eu dormira


ininterruptamente. Jasmim também dormiu bem nos estábulos. E a garota pálida
precisava desesperadamente dormir. Jasmim! — pensei, agarrando-me ao nome.
Era esse o nome da garota de cabelos pretos. Jasmim.

O som de vozes no rádio afastou meu olhar do campo, deixando-me com


uma sensação de melancolia maior do que a que esperei. Ela tinha um tumor no
cérebro que não podia ser operado. Não acreditava que mesmo as atividades
ilegais do pai de Trent o pudessem resolver.

Minha atenção foi para Trent. Seus olhos verdes estavam fixos em mim,
embora estivesse falando com Edden e eu endireitei o chapéu e prendi uma
madeixa de cabelo atrás da orelha. Recusando-me a permitir que ele me abalasse,
fitei-o igualmente. O olhar dele saltou para trás de mim e virei-me enquanto o
carro vermelho de Sara Jane parava no meio de uma nuvem de serragem, atrás
dos veículos do DFI.

A mulher pequena saiu disparada do carro, parecendo uma pessoa


completamente diferente, com umas calças jeans e uma blusa simples. Batendo
com a porta, avançou a passos largos.
319

— Você! — acusou, parando, atrapalhadamente, à minha frente e fazendo


com que eu desse um passo atrás, surpresa. — Isso é obra sua, não é? — gritou.

Fiquei branca.

— Hã?

Ela aproximou-se e eu recuei mais um passo.

— Eu pedi ajuda para encontrar meu namorado — disse ela, guinchando,


os olhos brilhantes de raiva. — Não que acusasse meu patrão de homicídio! Você é
uma bruxa maléfica, tão maléfica que seria capaz... Seria capaz de despedir Deus!

— Hum... — gaguejei, olhando de relance para Edden em busca da sua


ajuda. Ele e Trent estavam a caminho e eu recuei mais um passo, segurando a
bolsa contra o corpo. Não pensei naquilo.

— Sara Jane — disse Trent, com voz calma, antes de chegar junto de nós. —
Está tudo bem.

Ela voltou-se para ele, o cabelo loiro refletindo os raios de Sol.

— Sr. Kalamack — disse ela, o rosto assumindo, repentinamente, uma


expressão de medo e preocupação. De olhos semicerrados, ela entrelaçou os
dedos. — Lamento. Vim assim que soube. Não pedi que viesse aqui. Eu... Eu... —
os olhos encheram-se de lágrimas e, emitindo um pequeno som, baixou a cabeça,
pousou-a entre as mãos e começou a chorar.

Meus lábios afastaram-se, em surpresa. Ela estava preocupada com o


trabalho, o namorado ou Trent? Trent dirigiu-me um olhar sombrio, como se fosse
por minha culpa que ela estivesse perturbada. Este se derreteu numa expressão de
genuína simpatia, enquanto colocava uma mão sobre o ombro trêmulo da mulher
pequena.

— Sara Jane — disse, em tom calmo, baixando a cabeça para tentar ver os
seus olhos. — Não pense que te culpo por isso. As acusações da senhorita Morgan
não têm nada a ver com o fato de ter ido ao DFI por causa do Dan — a voz
maravilhosa dele erguia-se e caía em poças de seda.

— M-mas ela pensa que o senhor matou aquelas pessoas — gaguejou ela,
fungando, enquanto tirava as mãos do rosto e borrava o rímel numa mancha
castanha por baixo dos olhos.
320

Edden mexeu-se desconfortavelmente, saltando de um pé para o outro. As


vozes nos rádios das viaturas do DFI erguiam-se sobre o som dos grilos. Recusei-
me a sentir pena por ter feito Sara Jane chorar. O patrão dela não valia nada e
quanto mais depressa ela o percebesse, melhor estaria. Trent não matou aquelas
pessoas com as próprias mãos, mas tinha ordenado fazendo com que fosse tão
culpado como se as tivesse cortado ele mesmo. Meus pensamentos viajaram até à
fotografia da mulher na maca e tive de me controlar.

Trent puxou para cima o olhar de Sara Jane com um ligeiro gesto de
encorajamento. Perguntei-me qual seria a sensação de ouvir sua bela voz a
acalmar-me, dizendo-me que ia ficar tudo bem. Depois me perguntei se haveria a
mínima hipótese de Sara Jane escapar dele com a vida intacta.

— Não tire conclusões precipitadas — disse Trent, entregando-lhe um lenço


de linho, bordado com as suas iniciais. — Ninguém foi acusado de nada. E não há
qualquer necessidade de ficar aqui. Por que não volta para casa? Este assunto
horrível ficará resolvido assim que seja descoberto o cão vadio em que o feitiço da
senhorita Morgan se fixou.

Sara Jane dirigiu-me um olhar venenoso.

— Sim, senhor — disse, a voz rouca.

Cão vadio? — pensei, dividida entre o meu desejo de levá-lo para almoçar
para que pudéssemos ter uma conversa franca e a necessidade de lhe meter algum
juízo na cabeça.

Edden tossiu, para limpar a garganta.

— Eu pediria à senhorita Gradenko e a você para ficarem aqui até sabermos


mais, Sr. Kalamack.

O sorriso profissional de Trent vacilou.

— Estamos sendo detidos?

— Não, senhor — disse ele, respeitosamente. — Trata-se apenas de um


pedido.

— Capitão! — gritou um tratador do terraço do segundo piso. Meu coração


bateu mais depressa, perante a excitação na voz do homem. — Peúgas não
apontou nada, mas encontramos uma porta fechada.
321

A adrenalina correu veloz através de mim. Olhei para Trent. Seu rosto não
revelava nada. Quen e um homem pequeno avançaram, acompanhados por um
agente do DFI. O homem baixo era, obviamente, um antigo jóquei que trabalhava
agora como responsável pelos estábulos. Seu rosto estava curtido pelo sol e
enrugado, com ele trazia um molho de chaves. Estas tilintaram quando ele tirou
uma delas e a entregou a Quen. Com o corpo tenso com aquela enervante ameaça
líquida, Quen entregou-a a Edden.

— Obrigado — disse o capitão do DFI. — Agora fique ao lado dos agentes


— hesitou, sorrindo. — Se não se importa, por favor.

Fez um gesto, enrugando um dedo a dois agentes do DFI que tinham


acabado de chegar, apontando para Quen. Estes se aproximaram. Glenn deixou o
carro de investigação criminal com seu rádio e dirigiu-se para nós. Jenks estava
com ele e o pixy contornou-o por três vezes antes de voar em frente.

— Dê-me a chave — disse Jenks, quando parou, envolto em pó de pixy,


entre mim e Edden. — Eu a levo lá para cima.

Glenn olhou para o pixy, irritado, enquanto se juntava a nós.

— Não é do DFI. Chave, por favor.

Um suspiro mudo ergueu-se de Edden. Eu percebia que ele queria ver o


que estava naquela divisão e que estava fazendo um esforço consciente para
permitir que fosse o filho a tratar de tudo. Na verdade, ele nem sequer devia estar
ali. Embora imaginasse que o fato de se tratar de um vereador lhe garantisse uma
justificação maior do que em qualquer outro caso.

As asas de Jenks bateram secamente enquanto o capitão Edden entregava a


chave a Glenn. Conseguia sentir o suor de Glenn por cima da água-de-colônia e
sua ansiedade. Um aglomerado de pessoas tinha se juntado ao cão e ao seu
tratador junto à porta e, agarrando com força o minha bolsa, avancei para as
escadas, mesmo ao lado dele.

— Rachel — disse Glenn, parando e agarrando-me pelo cotovelo. — Vai


ficar aqui.

— Não vou nada! — exclamei, arrancando o cotovelo da sua mão. Olhei de


relance para o capitão Edden, em busca de apoio, mas o homem atarracado
limitou-se a encolher os ombros, parecendo chateado por também não ter sido
convidado.
322

O rosto de Glenn endureceu, quando viu a direção do meu olhar.


Largando-me, disse:

— Fica aqui. Quero que observe o Kalamack. Lê as suas emoções e depois


me diz quais foram.

— Isso é um monte de besteira — disse eu, pensando que, besteira ou não,


talvez fosse boa ideia. — O teu p... — mordi a língua. — Teu capitão pode fazer
isso — corrigi.

A preocupação franziu sua sobrancelha.

— Está bem. São besteiras. Mas você vai ficar aqui. Se descobrirmos o corpo
da Dra. Anders, quero esta cena do crime mais vedada do que...

— As nádegas de um heterossexual na prisão? — ofereceu Jenks, a sua


pequena forma começando a brilhar.

Aterrissou no meu ombro e deixei-o ficar.

— Vamos, Glenn — implorei. — Eu não toco em nada. E precisa de mim


para te dizer se não existem feitiços letais.

— Jenks pode fazer isso — disse ele. — E não precisa pôr os pés no chão.

Frustrada, levei a mão ao quadril e bufei. Podia perceber que, sob o seu
verniz oficial, Glenn estava preocupado e excitado ao mesmo tempo. Só tinha sido
promovido a detetive há pouco tempo e calculei que aquele fosse o caso mais
importante em que tivesse trabalhado. Os policiais podiam passar todas as suas
vidas profissionais sem que lhes fosse atribuído um caso com tantas possíveis
ramificações políticas. Mais uma razão para que eu estivesse lá.

— Mas eu sou a sua consultora Inderlander — disse eu, tentando agarrar-me


a qualquer coisa.

Ele pousou uma mão escura no meu ombro e eu afastei-a.

— Ouça — disse ele, com a ponta das orelhas ficando vermelha. — Há


procedimentos a seguir. Perdi meu primeiro caso em tribunal por causa de uma
cena do crime contaminada e não vou me arriscar a perder o Kalamack porque
você é muito impaciente para esperar sua vez. É preciso aspirar, fotografar,
recolher impressões digitais, analisar e tudo o mais que consiga me lembrar. Pode
entrar logo depois do psíquico. Entendeu?
323

— Psíquico? — perguntei, e ele franziu a sobrancelha.

— Está bem, estava brincando em relação ao psíquico, mas se puser uma


dessas unhas pintadas no limiar daquela porta, antes que eu diga alguma coisa,
corro contigo mais depressa do que o fedor numa cobra.

Mais depressa do que o fedor numa cobra? Ele devia estar falando muito
sério, para misturar as metáforas daquela maneira.

— Quer um vestuário EAF? — perguntou ele, os olhos saltando de mim


para o carrinho dos cães.

Inspirei fundo perante a ameaça velada. Equipamento Anti-Feitiço. Da


última vez que tentara apanhar Trent, ele matou a testemunha mesmo debaixo do
meu nariz.

— Não — respondi.

Meu tom submisso pareceu satisfazê-lo.

— Ainda bem — disse, voltando-se e prosseguindo caminho.

Jenks pairou à minha frente, esperando. Suas asas de libélula estavam


vermelhas de excitação e o sol refletia-se, cintilando, no pó de pixy.

— Me conta o que descobrir, Jenks — pedi, feliz pelo fato de, pelo menos,
um representante da nossa pequena firma estar presente.

— Pode crer, Rache — disse ele, depois saiu disparado atrás de Glenn.
Edden juntou-se a mim, em silêncio e senti-me como se fôssemos as únicas duas
pessoas do lugar que não tinham sido convidadas para uma grande festa à beira
da piscina, ficando do outro lado da rua, olhando. Ficamos à espera, com um Trent
nervoso, uma Sara Jane indignada e um Quen de lábios apertados, enquanto
Glenn batia na porta, anunciava a presença do DFI — como se esta não fosse óbvia
— e a abria.

Jenks foi o primeiro a entrar. Saiu quase de imediato, o seu voo um pouco
irregular, aterrissando no corrimão. Glenn inclinou-se para o interior da negra
abertura retangular, saindo logo de seguida.

— Arranjem-me uma máscara — ouvi-o murmurar, as palavras nítidas


sobre os sussurros.
324

A minha respiração tornou-se rápida. Ele descobriu alguma coisa. E não era
um cão. Com uma mão tapando a boca, uma agente do DFI estendeu uma máscara
cirúrgica a Glenn. O fedor horrendo sobrepunha-se ligeiramente ao aroma
reconfortante do feno e do estrume. Torci o nariz e olhei de relance para Trent,
vendo seu rosto vazio. O parque de estacionamento ficou em silêncio. Um inseto
guinchou e outro lhe respondeu. Junto à porta, no piso de cima, Peúgas gania e
tocava com as patas nas pernas do tratador, em busca de conforto. Senti-me
doente. Como é que era possível não terem reparado naquele cheiro antes? Eu
tinha razão. Tinha de ter sido usado um feitiço para contê-lo na divisão.

Glenn deu um passo para o interior da divisão. Por um momento as costas


foram iluminadas pelo sol, depois, com mais um passo, desapareceu, deixando
apenas a moldura negra e vazia da porta. Uma agente do DFI, de uniforme,
entregou-lhe uma lanterna a partir da porta, uma mão sobre a boca. Jenks
recusava-se a olhar para mim. Tinha as costas viradas para a porta, erguendo-se
no corrimão, as asas dobradas e imóveis.

Meu coração bateu mais depressa e segurei a respiração, enquanto a mulher


junto à porta recuava e Glenn emergia do seu interior.

— É um corpo — disse ele, a um segundo agente; sua voz ressoava,


chegando clara até nós. — Detenham o Sr. Kalamack para interrogatório —
Inspirou fundo. — A senhorita Gradenko, também.

A resposta da agente foi submissa e desceu as escadas em busca de Trent.


Eu fitei-o, em triunfo, depois fiquei séria ao imaginar o corpo da Dra. Anders
morto, no chão. Ao mesmo tempo, revi a memória de ver Trent matando seu
principal investigador, de forma tão rápida e limpa, o álibi pronto e à espera de ser
implementado. Desta vez tinha o apanhado, tendo agido muito depressa para que
conseguisse cobrir seu rastro.

Sara Jane agarrou-se a Trent. O medo, real e forte a fez abrir os olhos e
trouxe cor ao seu rosto pálido. Trent não parecia reparar na força com que ela o
agarrava, o rosto sério e inexpressivo enquanto olhava para Quen. Com os joelhos
fracos, vi Trent inspirar fundo, como que para se controlar.

— Sr. Kalamack? — disse a jovem agente, fazendo um gesto a Trent para


que a acompanhasse.
325

Um toque de emoção perpassou pelo rosto de Trent, quando a agente do


DFI disse o nome dele. Teria de dizer que era medo, se houvesse algo capaz de
perturbar aquele homem.

— Senhorita Morgan — disse Trent em despedida, enquanto ajudava Sara


Jane a começar a andar.

Edden e Quen foram com eles, o rosto redondo do capitão leve de alívio.
Devia ter arriscado sua reputação ainda mais do que eu julgava. Sara Jane afastou-
se de Trent e virou-se para mim.

— Sua cadela — disse ela, o medo e o ódio audíveis na sua voz aguda e
infantil. — Não faz ideia do que fez.

Chocada, não disse nada, enquanto Trent lhe segurava no cotovelo com o
que parecia ser a força de um aviso. Minhas mãos começaram a tremer e senti o
estômago apertado. Glenn estava nas escadas. Nas mãos tinha um guardanapo
descartável e estava passando-o pelos dedos, enquanto avançava na minha
direção. Apontou para o carro da investigação criminal, depois para o retângulo
preto formado pela porta. Dois homens avançaram. Com uma tensão calma, em-
purravam à sua frente uma bolsa preta, dura.

Eu ia fazer com que Trent Kalamack fosse preso — pensei. Conseguiria


sobreviver?

— É um corpo — disse Glenn, enquanto parava de olhos semicerrados, à


minha frente, limpando as mãos em um novo guardanapo. —Tinha razão — ele
viu minha expressão e eu sabia que devia parecer ansiosa, pois ele seguiu meu
olhar para Trent que se encontrava com Quen e Edden. — É apenas um homem.

Trent estava confiante e impávido, a imagem da cooperação em forte


contraste com a raiva e a histeria de Sara Jane.

— Será? — murmurei.

— Ainda vai demorar algum tempo até que você possa entrar — disse ele,
pegando num terceiro guardanapo e limpando a parte de trás do pescoço. Parecia
um bocado cinzento. — Talvez só amanhã. Quer carona para casa?

— Vou ficar — sentia o estômago leve. Ocorreu-me que talvez devesse ligar
para Ivy e dizer o que estava acontecendo. Se ela falasse comigo. — É ruim? —
perguntei.
326

Junto à porta, os dois homens falavam com um terceiro enquanto retiravam


o aspirador da bolsa achatada e colocavam os cobre-sapatos de papel. Glenn não
respondeu, seus olhos pousavam em tudo menos em mim e naquela porta preta.

— Se vai ficar, precisa disso — disse ele, enquanto me entregava um crachá


do DFI onde estava escrito TEMPORÁRIO. Estavam colocando a fita amarela para
delimitar a cena do crime e parecia que estavam se instalando. O rádio não parava
de debitar pedidos curtos e diretos e todos — com exceção dos cães e de mim —
pareciam felizes. Eu tinha que subir aquelas escadas. Tinha que ver o que Trent fez à
Dra. Anders.

— Obrigada — sussurrei, passando o fio do crachá pela cabeça.

— Beba um café — disse ele, olhando na direção de um dos carrinhos que


tinham vindo conosco.

Os agentes do DFI que não tinham nada para fazer já tinham se reunido à
sua volta. Acenei e Glenn dirigiu-se de novo para as escadas, suas pernas
compridas subindo os degraus dois a dois. Só por uma vez, olhei de relance para
Trent, na divisão aberta entre as cocheiras. Estava falando com um agente, tendo,
ao que parecia, abdicado do seu direito à presença de um advogado. Para dar a
impressão de que era inocente? — perguntei-me. Ou pensaria ele que era mais
esperto do que todos os outros?

Atordoada, juntei-me ao pessoal do DFI ao redor do carro. Alguém me


entregou um refrigerante e, depois, evitei os olhos de todos — eles fizeram o favor
de me ignorar. Não estava com vontade de fazer amigos e não me sentia
confortável com o teor leve das conversas. Jenks, por outro lado, continuava a
conquistar açúcar e cafeína de todos os presentes, fazendo imitações do capitão
Edden que faziam a todos rirem.

Eventualmente, dei por mim nas abas do grupo, ouvindo três conversas
distintas, enquanto o Sol se movia e uma brisa fria se apoderava do ar. O ruído do
aspirador era tênue, mas o som que emitia ao ligar e desligar deixava-me nervosa.
Por fim parou e não mais recomeçou. Ninguém pareceu reparar. Meus olhos
ergueram-se para as divisões do piso de cima e apertei mais o casaco ao redor do
corpo. Glenn tinha descido apenas alguns instantes antes e desapareceu no
interior do carro de investigação criminal. Senti a respiração entrar e sair do meu
corpo, com a mesma facilidade do dia em que nasci. Dando a mim mesma um
pequeno empurrão, dei por mim a mover-me em direção às escadas.
327

J e n k s a p a r e c e u d e i m e d i a t o n o m e u o m b r o , fa z e n d o c o m q u e m e
perguntasse se estava de olho em mim.

— Rache — avisou. — Não vá lá dentro.

— Tenho que ver — sentia-me irreal, o corrimão áspero sob a minha mão
ainda quente do sol.

— Não vá — protestou, com um matraquear das asas. — Glenn tem razão.


Espera pela sua vez.

Abanei a cabeça, o balançar da minha trança forçando-o a sair do meu


ombro. Precisava ver antes que a atrocidade fosse atenuada pelos pequenos sacos,
pelos cartões brancos com palavras impecavelmente impressas e pelos cuidadosos
recolhimentos de dados concebidos para dar estrutura à loucura, para que esta
pudesse ser compreendida.

— Saia do meu caminho — disse, num tom monótono, acenando com a


mão enquanto ele pairava, desafiante, à frente do meu rosto.

Ele recuou de repente e eu estanquei quando senti a ponta do dedo tocar


numa das suas asas. Tinha lhe batido?

— Ei! — gritou ele. Surpresa, alarme e por fim, raiva abateu-se sobre ele. —
Como queira! — disse, rispidamente. — Vá ver. Não sou seu pai.

Ainda a praguejar, afastou-se, voando para longe à altura das cabeças.


Cabeças essas que se voltavam na sua direção, enquanto uma torrente de
palavrões jorrava dele de forma contínua.

Senti as pernas pesadas, enquanto obrigava a mim mesma a subir as


escadas. O som forte de passos chamou minha atenção, obrigando-me a erguer os
olhos e desviei-me para o lado, enquanto o primeiro dos caras do aspirador
passava apressadamente por mim. O cheiro fétido da carne pútrida o seguia e meu
estômago deu um salto. Obriguei-o a aquietar-se e continuei, dirigindo um sorriso
amarelo ao agente do DFI que se encontrava ao lado da porta.

O cheiro era pior ali. Meus pensamentos saltaram para as fotografias que vi
no gabinete de Glenn e quase perdi o controle. A Dra. Anders não podia estar
morta senão há algumas horas. Como é que podia ter ficado tão mau, tão
depressa?
328

— Nome? — perguntou o homem, o rosto tenso enquanto tentava parecer


insensível ao fedor enjoativo.

Fitei-o por um momento, depois vi o caderno na sua mão. Nele estavam


inscritos vários nomes, o último deles seguido pela palavra "fotógrafo".

O homem que ainda se encontrava na varanda fechou a bolsa com um


clique e arrastou-a ruidosamente pelas escadas. Junto à porta encontrava-se uma
câmera de vídeo, sua sofisticação em algum lugar entre a das câmeras das equipes
de reportagem da televisão e a da câmera que o meu pai usou antes de morrer
para gravar os meus aniversários e os do meu irmão.

— Oh, hum, Rachel Morgan — disse eu, com a voz fraca. — Consultora
especial Inderlander.

— É a bruxa, certo? — perguntou ele, escrevendo meu nome, a hora e o


número do meu crachá temporário. — Quer uma máscara, além das botas e das
luvas?

— Sim, obrigada.

Sentia os dedos fracos enquanto colocava a máscara. Exalava a bétula,


bloqueando o cheiro da carne podre. Agradecida, olhei para o chão de madeira,
que brilhava, polido e amarelo, sob os últimos raios de Sol da tarde. Do interior da
divisão, fora de vista, erguia-se o snick, snick, snick do capturador da câmera.

— Não o vou incomodar, não é? — perguntei, minhas palavras abafadas.

O homem abanou a cabeça.

— É ela — disse o agente. — E não, não vai incomodar Gwen. Tenha


cuidado ou ela ainda vai pôr você para segurar a fita métrica.

— Obrigada — disse eu, determinada a não fazer nada do gênero.

Meu olhar voltou-se para o parque de estacionamento, em baixo, enquanto


colocava o cobre-sapatos nos pés. Quanto mais tempo ali ficasse, mais provável
seria que Glenn percebesse minha escapada. Preparando-me, apertei mais a
máscara, sobressaltando-me quando a fragrância pungente me chegou ao nariz.
Meus olhos começaram a lacrimejar, mas não iria tirá-la por nada. Enfiei as mãos
enluvadas nos bolsos, como se estivesse numa loja de magia negra, e entrei.

— Quem é você? — inquiriu uma voz forte e feminina, enquanto minha


sombra escondia o Sol.
329

Minha atenção recaiu sobre a mulher esbelta e elegante, com cabelo escuro
preso num rabo-de-cavalo despretensioso. Tinha uma câmera na mão e estava
colocando um rolo numa bolsa preta que tinha presa à cintura.

— Rachel Morgan — disse eu. — Edden trouxe-me aqui com... — minhas


palavras ficaram suspensas quando meus olhos caíram sobre o torso preso a uma
cadeira de costas alta parcialmente escondida pela mulher. Levei a mão à boca e
obriguei a garganta a fechar-se.

É um manequim — pensei. Tinha de ser um manequim. Não podia ser a Dra.


Anders. Mas eu sabia que era. Cordas de nylon amarelo prendiam-na à cadeira e a
parte superior do torso mais pesada, estava inclinada, fazendo a cabeça tombar
para frente escondendo o rosto. O cabelo mole, coberto por uma substância preta,
pendia, escondendo ainda mais a expressão e agradeci a Deus por isso. As pernas,
abaixo de ambos os joelhos, tinham desaparecido, os cotos projetados, como os pés
de uma criança pequena, da beira da cadeira. As extremidades estavam
irregulares e feias, inchadas e pútridas. Os braços tinham sido cortados pelo
cotovelo. Sangue escuro e velho cobria-lhe as roupas num padrão de regatos tão
espesso que a cor original podia apenas ser calculada.

M e u s o l h o s s a l t a r a m p a r a G we n , c h o c a d a c o m a s u a e x p r e s s ã o
despreocupada.

— Não toque em nada. Ainda não acabei, está bem? — murmurou ela,
quando voltou às suas fotografias. — Deus santo. Será que não posso ter cinco
minutos antes que entrem todos aqui adentro?

— Desculpe — murmurei, surpreendida por ainda ser capaz de falar.

O corpo inclinado da Dra. Anders estava coberto de sangue, mas havia


surpreendentemente pouco debaixo da cadeira. Senti a cabeça girar, mas não
podia afastar o olhar. O ventre tinha sido aberto pelo umbigo, um círculo de pele
perfeitamente redondo e do tamanho do meu pulso, mantido aberto com uma faca
de prata, revelava a dissecação cuidadosa das suas entranhas. Havia falhas
suspeitas e a incisão não tinha sangue algum, como se tivesse sido lavada... Ou
lambida. Nos pontos onde a pele não estava coberta de sangue, esta era branca
como cera. Meu olhar percorreu as paredes e o chão impecáveis. O corpo não
combinava com eles. Tinha sido mutilado noutro local e depois movido.

— Este cara é mesmo doente — disse Gwen, a câmera continuando a


disparar. — Veja o parapeito da janela.
330

Apontou com o queixo e eu virei-me. No parapeito da janela parecia


erguer-se uma pequena maquete de uma cidade. Os edifícios atarracados tinham
sido dispostos em linhas retas sem aparente ordem de tamanho. Pequenos
pedaços de massa cinzenta os seguravam direitos, como cola. Estavam dispostos
ao redor de um grosso anel de curso, colocado como um monumento entre as ruas
da cidade. Observei mais de perto, sentindo o horror apertar-me o estômago.
Voltei-me para o corpo sem membros e de novo para a janela.

— Yup — dizia Gwen, enquanto fotografava. — Ele os colocou em exibição.


Os pedaços maiores foram atirados para o armário.

Meu olhar dirigiu-se ao armário minúsculo, depois regressou ao parapeito à


sombra. Não eram edifícios, eram os dedos das mãos e dos pés. Ele tinha lhe
cortado os dedos, nó a nó, distribuindo-os como Tinkertoys. A massa eram pedaços
das suas entranhas, as vísceras mantinham o conjunto unido.

Senti-me quente, depois fria. Meu estômago ficou leve e pensei que ia
desmaiar. Segurei a respiração, quando compreendi que estava hiperventilando.
Estava disposta a apostar que ela estava viva enquanto tudo aquilo acontecia.

— Saia — disse Gwen, preparando outra fotografia, como se nada fosse. —


Se vomitar aqui, Edden vai ter uma síncope.

— Morgan! — erguia-se, quase inaudível dentro da divisão o grito irado de


Glenn, no parque de estacionamento. — Aquela bruxa está aí?

A resposta do agente que se encontrava à porta foi abafada. Não conseguia


afastar os olhos do corpo estraçalhado sobre a cadeira. As moscas percorriam as
ruas da cidade construída com os dedos mutilados, voando pelos edifícios como
monstros num filme série B. Os cliques de Gwen eram como o bater do meu
coração, rápidos e furiosos. Alguém me agarrou o braço e quase gritei.

— Rachel — disse Glenn, fazendo-me girar na direção dele. — Tira esse


traseiro de bruxa daqui.

— Detetive Glenn — gaguejou o agente junto à porta. — Ela registou a


entrada.

— Então registe a saída — rosnou. — E não volte a deixá-la entrar.

— Está me machucando — sussurrei, sentindo-me zonza e irreal.

Ele arrastou-me até à porta.


331

— Eu te disse que ficasse lá fora — murmurou ele, ferozmente.

— Está me machucando — repeti, empurrando os dedos que me rodeava o


braço, enquanto ele me puxava para o exterior.

Saí para o sol que se punha. Atingiu-me como uma agulhada e eu inspirei
uma enorme golfada de ar, saindo do meu torpor. Não se tratava da Dra. Anders.
O corpo era muito antigo e o anel era de homem. Pareceu-me ter visto nele o
logotipo da universidade. Acho que tinha acabado de encontrar o namorado de
Sara Jane.

Glenn arrastou-me para as escadas.

— Glenn — disse eu, tropeçando no primeiro degrau.

Teria caído não fosse a força com que ele me segurava. Outro veículo do
DFI chegava ao parque de estacionamento. Desta vez tratava-se de um necrotério
móvel. Glenn, sem querer correr qualquer risco, estava trazendo tudo para ali.

Lentamente minhas pernas perderam sua sensação aguada, enquanto eu me


distanciava do que tinha visto no andar de cima. Observei os agentes do DFI
trocarem piadas, sem compreendê-los. Era óbvio que eu não fui fadada para o
trabalho na cena do crime. Eu era uma agente, não uma investigadora. Meu pai
tinha trabalhado na divisão secreta, onde aparecia a maior parte dos corpos. Agora
percebia porque ele não falava muito sobre o seu dia durante o jantar.

— Glenn — voltei a tentar, enquanto ele me puxava para a divisão aberta


entre as cocheiras. Trent estava em um canto, com Sara Jane e Quen, respondendo
calmamente às perguntas. Glenn estancou quando os viu. Olhou para o pai, que se
limitou a encolher os ombros. O capitão do DFI estava sentado em frente a um
notebook sobre um fardo de palha colocado de pé. Alguém tinha estendido um
cabo desde o carro da investigação criminal e os dedos curtos de Edden
deslizavam sobre as teclas enquanto ele desempenhava um papel subordinado
para poder ficar.

A irritação repuxou o rosto de Glenn que fez um gesto na direção do jovem


agente do DFI que se encontrava com Trent.

— Glenn — disse eu, enquanto o agente avançava na nossa direção. — Não é


a Dra. Anders, lá em cima.

O rosto redondo de Edden assumiu uma expressão inquisitiva por trás dos
óculos. Glenn olhou para mim.
332

— Eu sei — disse ele. — O corpo é muito antigo. Agora se sente e se cale.

O agente do DFI parou ao nosso lado e meus olhos abriram-se quando


Glenn passou o braço pelos ombros do jovem, num gesto agressivo.

— Eu disse que os detivesse — disse baixinho. — O que eles ainda estão


fazendo aqui?

O homem ficou branco.

— Queria dizer num dos carros? Pensei que o Sr. Kalamack ficaria mais
confortável aqui.

Os lábios de Glenn apertaram-se e os músculos do pescoço ficaram tensos.

— Deter para interrogatório significa levá-los para os escritórios do DFI.


Não se questionam pessoas no local do crime, quando são coisas assim tão
importantes. Leve-os daqui.

— Mas não disse... — o homem engoliu em seco. — Sim, senhor.

Olhando de relance para Edden, dirigiu-se para Trent e Sara Jane com uma
expressão assustada, o que fazia parecer muito novo. Eu não tinha tempo para
sentir pena dele. Ainda furioso, Glenn colocou-se junto ao pai, introduzindo sua
própria senha com o dedo rígido. Meu estômago saltou e depois se recompôs.
Fechei a tampa do computador nas mãos dele. Glenn cerrou o maxilar quando os
dois olharam para mim. Voltei-me para Trent e Sara Jane que estavam de saída,
esperando que o olhar de Edden e Glenn seguisse o meu até eles, antes de dizer:

— Não posso dizer com toda a certeza, mas acho que é o Dan.

O rosto de Sara Jane permaneceu impávido e sereno durante um momento


revelador. Abrindo os olhos, agarrou-se a Trent. A boca abriu-se e fechou-se.
Enterrando o rosto no ombro dele, começou a soluçar. Trent deu-lhe umas suaves
pa1madinhas, mas seus olhos fixos nos meus estavam semicerrados de raiva.

Edden franziu os lábios, pensativo, o que fez com que o seu bigode cinzento
se espetasse enquanto trocávamos um olhar sagaz. Sara Jane não conhecia Dan tão
bem como queria que os outros pensassem. Por que Trent fizera Sara Jane ir ao
DFI com uma queixa falsa, relatando o desaparecimento do namorado, quando
sabia que acabaríamos por descobrir o corpo nos seus terrenos? A menos que não
soubesse? Como podia não saber?
333

Glenn não tinha, aparentemente, reparado em nada, pois agarrou meu


braço e puxou-me além de uma Sara Jane histérica, arrastando-me para a sombra
de um carvalho.

— Porra, Rachel — silvou, enquanto Sara Jane era levada em soluços para
um dos carros. — Eu disse para se calar! Vá embora daqui. Agora. Esse teu
pequeno número pode ser o suficiente para permitir que Kalamack saia em
liberdade.

Mesmo de saltos, Glenn era mais alto do que eu e, isso me irritava.

— Sim? — gritei em resposta. — Pediu-me que lesse as emoções de Trent?


Bem, eu o fiz. Sara Jane não conhece melhor Dan Smather do que o carteiro. Trent
mandou mata-lo. E aquele corpo foi movido.

Glenn estendeu o braço na minha direção e eu recuei, ficando fora do seu


alcance. Seu rosto ficou tenso e ele deu um passo atrás, exalando.

— Eu sei. Vai para casa — disse ele, estendendo a mão para o crachá
temporário do DFI. — Agradeço a sua ajuda para encontrar o corpo, mas como
você mesma disse, não é um detetive. Cada vez que abre a boca, está tornando
mais fácil para os advogados de Trent convencerem o júri. Limita-se... A ir para
casa. Ligo amanhã.

Senti-me arder de raiva, as últimas gotas de adrenalina fazendo com que


me sentisse fraca, não forte.

— Eu descobri o corpo. Não pode me obrigar a ir embora.

— Acabei de fazê-lo. Dá-me o crachá.

— Glenn — disse eu, enquanto tirava o colar, baixando-me, antes que ele
me arrancasse do pescoço. — Trent assassinou aquele bruxo, é tão certo como se
tivesse sido ele a empunhar a faca.

Ele segurou meu crachá com força, a raiva abrandando o suficiente para
revelar sua frustração.

— Posso falar com ele, até posso detê-lo para interrogatório, mas não posso
prendê-lo.

— Mas foi ele! — protestei. — Têm o corpo. Têm a arma. Têm o motivo.
334

— Tenho um corpo que foi movido — disse ele, a voz monótona sob o peso
das emoções reprimidas. — O motivo não passa de conjectura. Tenho uma arma
que seiscentos empregados podiam ter deixado ali. Ainda não tenho nada que
ligue Trent ao homicídio. Se prendê-lo agora, ele pode safar-se, mesmo que
confesse mais tarde. Já vi acontecer. O Sr. Kalamack pode ter feito isso de
propósito, ter colocado o corpo aqui, garantindo que nada o ligasse a ele. Se este
não pegar, será duas vezes mais difícil atribuir-lhe qualquer outro cadáver, mesmo
que ele venha cometer algum erro.

— Tem medo de apanhá-lo — acusei, tentando levá-lo a prender Trent.

— Ouve-me muito bem, Rachel — disse ele, fazendo-me dar um passo


atrás. — Não estou nem aí para o fato de você pensar que foi o Kalamack. Eu
tenho que provar. E esta é a minha única oportunidade — dando meia-volta,
percorreu com os olhos o parque de estacionamento. — Alguém leve a senhorita
Morgan para casa! — disse em voz alta.

Sem olhar para trás, avançou em direção aos estábulos, os passos pesados
silenciosos sobre a serragem. Fiquei olhando para ele, sem saber o que fazer. A
minha atenção saltou para Trent, que estava entrando no carro do DFI, o terno
dispendioso fazendo com que a imagem parecesse errada. Ele dirigiu-me um olhar
imperscrutável antes da porta se fechar com um ruído metálico. Com as luzes
apagadas, em marcha lenta, os dois carros arrancaram.

Meu sangue zumbia e a cabeça latejava. Trent não ia sair incólume. Mais
cedo ou mais tarde, eu acabaria por conseguir ligar a ele todos os homicídios. Ter
descoberto o corpo de Dan na sua propriedade daria ao capitão Edden a desculpa
para conseguir todos os mandados que eu quisesse. Trent ia fritar. Eu podia levar
as coisas com calma. Eu era uma agente. Eu sabia como perseguir uma presa.

Voltei-me, enojada. Odiava a lei, embora me fiasse nela. Preferia lutar


contra uma assembleia de bruxas do que uma sala de tribunal. Compreendia
melhor os hábitos das bruxas do que os dos advogados. Pelo menos as bruxas
usavam os seus.

— Jenks! — gritei, enquanto o capitão Edden surgia, vindo de trás dos


estábulos, as chaves tilintando nas mãos. Ótimo. Agora ia ter de ouvir um sermão
de besteira de velho sábio, durante todo o caminho até em casa. Gritar ele sabia
bem e inspirei para voltar a gritar por Jenks, quando o pixy parou a poucos
centímetros de mim. Estava, literalmente, brilhando de excitação, o pó que se
libertava dele caía em cima de mim devido aos seus movimentos rápidos.
335

— Sim, Rache? Ei, ouvi dizer que Glenn te pôs para correr. Eu te disse para
não ir lá em cima. Mas será que você me deu ouvido? Nã-ã-ã-ão. Ninguém me dá
ouvidos. Tenho trinta e tantos filhos e só a minha libélula é que me dá ouvidos.

Minha raiva abrandou por um instante, enquanto me perguntava se ele


teria, realmente, uma libélula de estimação. Depois afastei essa ideia, voltando
minha atenção para uma forma de salvar um pouco a situação.

— Jenks — disse eu —, acha que consegue voltar para casa sozinho?

— Claro. Posso pegar a carona do Glenn ou dos cães. Sem problemas.

— Ótimo — olhei de relance para o capitão Edden que se aproximava. —


Depois me conte o que aconteceu, está bem?

— Entendi. Ei, se serve de alguma coisa, lamento. Tem que aprender a


manter a boca fechada e os dedos para si. Nos vemos mais tarde.

Isso vindo de um pixy?

— Não toquei em nada — disse, irritada, mas ele já voava de volta ao


gabinete temporário de Glenn, deixando atrás, à altura da cabeça, um trilho de pó
que se dissipava lentamente.

Edden dirigiu-me apenas um olhar breve quando passou por mim.


Franzindo a sobrancelha, segui-o, abrindo violentamente a porta do carro. O
motor arrancou e eu entrei e bati a porta com força. Depois de pôr o cinto, pousei o
braço na janela aberta e fitei a pastagem vazia.

— O que se passa? — disse, maldosa. — Glenn também pôs você para


correr?

— Não — Edden deu marcha ré. — Preciso falar com você.

— Claro — disse eu, na falta de algo melhor.

Deixei escapar um suspiro de frustração, controlando-me quando meu


olhar pousou em Quen. Este se encontrava, imóvel, à sombra do antigo carvalho.
Não havia qualquer expressão no seu rosto. Devia ter ouvido toda minha conversa
com Glenn sobre Trent. Senti um arrepio e perguntei-me se não teria acabado de
me colocar na lista das "pessoas especiais" de Quen.
336

Com olhos verdes fixos em mim com uma intensidade chocante, Quen
agarrou num ramo baixo e içou-se com a facilidade de quem apanha uma flor,
desaparecendo no meio do antigo carvalho como se nunca tivesse existido.

Capitulo 22
Edden conduziu o carro para o minúsculo parque de estacionamento
repleto de ervas daninhas da igreja. Não disse grande coisa no caminho — os nós
dos dedos brancos e o pescoço vermelho — indicando o que pensava do livre
fluxo de consciência que eu vinha debitando desde que me confessou o verdadeiro
motivo de estar servindo de motorista.

P o u c o d e p o i s d e te r m o s d e s c o b e r t o o c o r p o , ti n h a m r e c e b i d o u m a
informação via rádio de que eu deveria ser "retirada" da lista de pagamentos do
DFI. Aparentemente tinham ficado sabendo que estavam sendo ajudados por uma
bruxa e, a SI considerou que se tratava de engano. Talvez tivesse sido possível
contornar a coisa se Glenn tivesse se dado ao trabalho de explicar que eu não
passava de uma consultora, mas ele não disse uma palavra, aparentemente ainda
amuado por eu ter contaminado sua preciosa cena do crime. E, nem sequer haveria
uma cena do crime se não fosse eu, mas não parecia ter grande importância.
337

Parando, de repente, Edden ficou olhando pela janela e esperou que eu


saísse. Tinha que lhe dar algum crédito. Não era fácil ficar quieto ouvindo alguém
comparando o filho com ventosas de lulas e cocô de morcego, tudo numa mesma
frase.

Deixando cair os ombros, não me mexi. Se saísse, significava que tudo tinha
terminado e eu não queria que fosse assim. Além disso, manter um monólogo de
vinte minutos era cansativo e provavelmente devia-lhe, no mínimo, um pedido de
desculpas. Meu braço pendia da janela aberta e consegui ouvir um piano tocando
uma música qualquer elaborada e complicada — daquelas que os compositores
inventam para exibir sua destreza, mais do que qualquer expressão artística.
Inspirei fundo.

— Se eu pudesse falar com Trent...

— Não.

— Não posso, pelo menos, ouvir a gravação da entrevista dele?

— Não.

Esfreguei as têmporas, um cacho fujão me fazendo cócegas no rosto.

— Como é que esperam que eu faça meu trabalho, se não me deixam fazê-
lo?

— Já não é seu trabalho — disse Edden. O toque de raiva na sua voz me fez
erguer a cabeça. Segui seu olhar para as crianças pixies que deslizavam pelos
pequenos quadrados de papel encerado que eu cortei para eles no dia anterior.
Com o pescoço rígido, Edden mudou de posição no assento para tirar a carteira do
bolso de trás. Abrindo-a, entregou-me algumas notas. — Disseram-me que lhe
pagasse em dinheiro. Não o ponha na sua declaração de renda — disse,
inexpressivo.

Pressionei os lábios e agarrei o dinheiro, contando-o. Pagar em dinheiro? Do


bolso do capitão? Alguém tinha se colocado em modo "proteger seu próprio
traseiro". Senti o estômago apertado quando percebi que era muito menos do que o
acordo. Estava trabalhando naquilo há quase uma semana.

— E depois me darão o resto, certo? — perguntei, enquanto enfiava o


dinheiro na bolsa.
338

— A administração recusa-se a pagar pela aula cancelada da Dra. Anders —


disse ele, sem olhar para mim.

Fodida outra vez. Sem qualquer vontade de dizer a Ivy que não tinha o
dinheiro todo para o aluguel, abri a porta e saí. Se não soubesse melhor, diria que o
som do piano vinha da igreja.

— Fazemos assim, Edden — bati com a porta, fechando-a. — Não volte a


me ligar.

— Cresça, Rachel — disse ele, fazendo-me virar para trás. O rosto redondo
estava tenso e ele inclinara-se sobre o banco para falar comigo através da janela. —
Se tivesse sido comigo, teria te prendido e entregado a SI para que pudessem
brincar contigo. Ele disse para esperar e você passou por cima da autoridade dele.

Enquanto puxava a alça da bolsa mais para cima, sobre o ombro, senti a
tensão na minha testa diminuir. Não pensei nas coisas assim.

— Ouça — disse ele, vendo que, de súbito, eu compreendi. — Não quero


terminar o nosso relacionamento profissional. Talvez depois de as coisas se
acalmarem, possamos voltar a tentar. Vou arranjar o resto do dinheiro, de alguma
forma.

— Claro — endireitei-me, minhas crenças nas reações estúpidas e


precipitadas dos postos mais altos da administração reforçadas, mas talvez
devesse uma desculpa ao Glenn.

— Rachel?

Sim. Devia uma desculpa ao Glenn. Virei-me para Edden, deixando escapar
um suspiro deprimido e frustrado.

— Diga ao Glenn que lamento — murmurei.

Antes que ele pudesse responder, avancei — os saltos batendo ao longo da


calçada estalada — e subi os largos degraus de pedra. Por um momento fez-se
silêncio. Depois a corrente da ventoinha do carro gemeu, enquanto Edden dava
marcha ré e se afastava. A música vinha do interior. Ainda irritada pela falta do
pagamento, abri bruscamente a porta pesada e entrei.

Ivy devia estar em casa. Minha frustração com Edden desvaneceu-se


perante a oportunidade de falar com ela. Queria dizer-lhe que nada tinha mudado
e que ela ainda era minha amiga... Se quisesse me considerar como tal. O fato de
339

ter recusado sua oferta para me tornar seu delfim podia ser um insulto indescritível
no mundo dos vampiros. Mas não pensava que fosse assim. O pouco que vi dela
revelava culpa, não raiva.

— Ivy? — chamei, com cuidado.

O piano silenciou-se no meio de um acorde.

— Rachel? — respondeu Ivy do santuário. Tinha na voz um toque de


alarme que me deixou preocupada.

Maldição, ela ia fugir. Depois ergui as sobrancelhas. Não era uma gravação.
Nós tínhamos um piano?

Tirando o casaco com um movimento dos ombros, pendurei-o e entrei no


santuário, pestanejando devido à súbita luminosidade. Tínhamos um piano.
Tínhamos um lindo piano de cauda pequeno, preto, sob um raio de luz âmbar e
verde que jorrava através das janelas de vitral. O tampo estava aberto, revelando
as entranhas, os fios brilhantes e os martelos aveludados e macios.

— Quando comprou o piano? — perguntei, vendo-a em posição, pronta


para fugir.

Dupla maldição. Se ela ao menos pudesse parar e ouvir.

Meus ombros relaxaram quando ela pegou numa camurça e começou a


esfregar a madeira brilhante. Estava com umas calças jeans e uma t-shirt vulgar e
eu me senti muito vestida no meu terno.

— Hoje — disse ela, enquanto limpava o pó da madeira que não precisava


ser limpa.

Talvez, se eu não falasse sobre o acontecido, as coisas pudessem voltar a ser


como antes. Ignorar um problema era uma forma perfeitamente aceitável de lidar
com ele, desde que ambas as pessoas concordassem em não voltar a falar dele.

— Não precisava parar por minha causa — disse, apressando-me a dizer


qualquer coisa antes que ela descobrisse um motivo para ir embora.

Ela deslizou para polir a parte de trás, enquanto eu tocava no dó central.


Ivy endireitou-se, os olhos fechando-se e o pano do pó imobilizando-se.

— Dó central — disse ela, enquanto a paz relaxava seu rosto pálido e oval.
340

Escolhi outra, prendendo a tecla como forma de ouvir seu eco entre as
vigas. Soava maravilhosa no espaço aberto de paredes duras. Em especial agora,
que os colchões de ginástica tinham desaparecido.

— Fá sustenido — sussurrou ela e eu toquei em duas teclas ao mesmo


tempo. — Dó e ré sustenido — disse ela, abrindo os olhos. — É uma combinação
horrível.

Sorri, aliviada por ela olhar para mim.

— Não sabia que você tocava — disse eu, puxando a bolsa mais para cima,
no ombro.

— Minha mãe obrigou-me a ter aulas.

Acenando, inconscientemente, tirei o dinheiro da mala. Meus pensamentos


viajaram para o espaço entre nós, enquanto eu me inclinava através do piano e lhe
entregava. Ivy estava comprando um pequeno piano de cauda e minha cômoda
era feita de madeira compensada.

Com a cabeça inclinada sobre o dinheiro, ela contou.

— Faltam duzentos — disse ela.

Inspirando fundo, dirigi-me para a cozinha. A culpa pesava sobre mim,


enquanto pousava a bolsa sobre a mesa de cozinha antiga de Ivy e me dirigia a
geladeira em busca de um suco.

— Edden cortou-me os honorários — gritei para o santuário, pensando que


talvez ela não fosse embora se estivéssemos falando de dinheiro. — Vou arranjar o
resto. Vou falar outra vez com a equipe de basebol.

— Rachel... — disse Ivy do corredor e eu virei-me, o coração batendo veloz.

Não ouvi seus passos. Ivy percebeu minha surpresa e uma onda de dor
interior pairou sobre ela. A triste tentativa de compensação de Edden estava na
mão dela e eu odiava tudo. Absolutamente tudo.

— Esquece isso — disse ela, fazendo-me sentir ainda melhor. — Posso


cobrir a sua parte este mês.

Outra vez — terminei silenciosamente por ela. Para o inferno com tudo
aquilo. Eu devia ser capaz de pagar minhas próprias contas.
341

Deprimida, tirei o chapéu e pendurei-o na cadeira. Meus sapatos seguiram-


se, tendo-os tirado com um pontapé lançando-os pela passagem para aterrisarem
com um baque surdo em algum lugar na sala de estar. Calçando apenas as meias,
afundei-me na mesa e segurei o copo de suco como se fosse uma cerveja perto do
happy hour. Sobre a mesa tinha um saco de bolachas aberto e puxei-as para perto.
O creme de chocolate faria com que tudo ficasse melhor, se eu conseguisse comê-
lo em quantidade suficiente.

Ivy esticou-se para pôr o dinheiro no frasco em cima da geladeira.

Não era o local mais seguro para guardar o dinheiro que juntávamos para
pagar as contas, mas quem é que ia roubar uma vampira Tamwood? Sem dizer
uma palavra, deslizou para a cadeira à minha frente, deixando a mesa entre nós. O
cooler do computador começou a girar quando ela mexeu no mouse. Meu mau
humor melhorou. Ela não partiu. Estava trabalhando no computador. Eu estava na
mesma sala que ela. Talvez se sentisse suficientemente segura para poder, pelo
menos, ouvir.

— Ivy... — comecei.

— Não — disse ela, dirigindo-me um olhar assustado.

— Só queria dizer que lamento — apressei-me. — Não vá embora — me


calei.

Como alguém tão forte e poderoso podia ter tanto medo de si próprio? A
mulher era uma massa conflituosa de força e vulnerabilidade que eu não
compreendia. Seus olhos fixavam-se em tudo, menos em mim. Lentamente sua
postura tensa relaxou.

— Mas a culpa não foi sua — sussurrou.

Então por que me sinto tão mal?

— Lamento, Ivy — disse eu, puxando seus olhos para os meus por um
breve instante. Estavam castanhos como chocolate, sem qualquer toque de preto a
rodeá-los. — É que...

— Pára — disse ela, pousando o olhar na sua própria mão que agarrava a
mesa, as unhas ainda brilhando por causa do esmalte transparente que passou
para irmos ao Piscary's. Obrigou-se, visivelmente, a relaxar. — Eu... Não voltarei a
pedir que seja meu delfim se não disser mais nada.
342

A última parte foi hesitante — desconcertante na sua vulnerabilidade. Era


quase como se ela soubesse o que eu ia dizer e não suportasse ouvi-lo. Eu não seria
o seu delfim... Não conseguia. Os laços que nos uniriam seriam muito fortes e
tirariam minha independência. Embora eu soubesse que o dar e receber de sangue
não eram necessariamente equivalentes a sexo, mas para mim era o mesmo.

E não queria ter de dizer: "Não podemos ser só amigas?" Era vulgar e
degradante, mesmo que ser sua amiga fosse tudo o que eu queria. Ela tomaria as
palavras com o mesmo sentido que a maior parte das pessoas as usava. E eu
percebia que sua promessa não tinha sua origem numa amargura residual. Ela não
voltaria a me pedir para ser seu delfim porque não queria voltar a sentir a dor de
ser rejeitada. Eu não compreendia os vampiros. Mas era neste ponto que Ivy e eu
nos encontrávamos.

Seu olhar cruzou-se com o meu com uma insegurança que se fortaleceu
quando viu meu acordo silencioso para ignorar o que tinha acontecido. Os ombros
dela acalmaram-se e reconquistou uma pitada da sua confiança usual. Mas,
enquanto estava sentada na nossa cozinha, com os pés ao sol, percebi como eu a
estava usando. Ela oferecia-me, de livre vontade sua proteção contra os muitos
vampiros que se aproveitariam da minha cicatriz — no fundo, estava garantindo
minha livre vontade — e, estava disposta a ignorar o fato de eu não pagar do
modo usual entre vampiros. Deus me ajudasse, era o suficiente para eu odiar a
mim mesma. Ela queria algo que não podia dar e contentava-se em aceitar minha
amizade, esperando que, um dia, eu lhe pudesse dar mais.

Inspirei, lentamente, observando-a fingir que não percebia meus olhos fixos
nela, enquanto deixava que as peças se encaixassem nos seus lugares. Eu não
podia partir. Era mais do que uma questão de não querer perder a única amiga de
verdade que tive nos últimos oito anos, ou meu desejo de ajudá-la a lutar contra si
mesma. Era o medo de ser transformada num brinquedo pelo primeiro vampiro
que encontrasse num momento de fraqueza. Eu estava encurralada pela
conveniência e o tigre preso comigo estava disposto a deitar-se no meu colo e a
ronronar, apostando que acabaria encontrando uma forma de me fazer mudar de
ideia. Fantástico. Esta noite ia ter problemas para dormir.

O olhar de Ivy cruzou-se com o meu, sua respiração hesitou apenas por um
segundo quando compreendeu que eu tinha, por fim, percebido.

— Onde está Jenks? — perguntou, virando-se para a tela como se nada


tivesse acontecido.
343

Exalei lentamente, aceitando a nova abordagem. Podia partir e lutar contra


todos os vampiros esfomeados que encontrasse ou podia ficar sob a proteção de
Ivy, confiando que não teria de lutar com ela. Como o meu pai gostava de dizer,
um perigo conhecido é muito melhor do que um desconhecido.

— Na propriedade de Trent, ajudando Glenn — disse eu, os dedos


tremendo enquanto tirava outra bolacha. Eu ia ficar. Tínhamos um acordo. Ou
Nick teria razão e eu queria, de fato, que ela me mordesse, mas não conseguia
aceitar que as minhas "preferências" tinham se alterado um pouco? De certo era a
primeira hipótese. — Estou fora do caso. Encontrei um corpo e ficaram sabendo
que havia uma bruxa ajudando o DFI.

O olhar dela cruzaou-se com o meu sobre a tela entre nós, as finas
sobrancelhas erguidas.

— Encontrou um corpo? No complexo de Trent? Está brincando!

Acenei, pousando os cotovelos na mesa, sem vontade de continuar a


analisar a minha mente em maior profundidade.

— Tenho quase certeza de que era Dan Smather, mas não interessa. Glenn é
mais teimoso que um pixy numa sala cheia de sapos, mas Trent vai safar-se —
meus pensamentos saltaram das considerações sobre o que ia fazer em relação a
Ivy, para a memória do corpo mutilado de Dan. — Trent é muito esperto para
deixar para trás algo que o ligue ao corpo — disse eu. — Nem sequer imagino o
porquê de estar na sua propriedade.

Ela acenou, sua atenção voltando a tela do computador.

— Talvez ele o tenha posto lá.

Um sorriso amarelo atravessou-me o rosto.

— É o que Glenn pensa. Que Trent é o assassino, mas que queria que o
descobríssemos, sabendo que não o podemos ligar a ele e, como tal, tornando
ainda mais difícil apanhá-lo, caso cometa um erro mais tarde. Corresponde à
reação da Sara Jane. Ela não conhece Dan Smather melhor do que conhece o
entregador da UPS, mas há alguma coisa... — hesitei, tentando passar meus
sentimentos para palavras. — Há alguma coisa que não está certa.

Voltei a pensar na fotografia que ela me deu. Era igual à que tinha visto
sobre a televisão dele. Eu devia ter percebido que o namoro deles era falso.
344

Começava a duvidar da minha crença, impelida pelo ressentimento de que


Trent era o responsável pelos homicídios e isso era perturbador. Ele era capaz de
matar — já o vi em primeira mão —, mas o corpo mutilado e sem sangue, preso à
cadeira e torturado estava muito longe da morte limpa e rápida que infligiu ao
geneticista na primavera passada. Pensando, levei a mão até uma bolacha.
Mordendo a bolacha, levantei-me para olhar para a geladeira e decidir o que ia
fazer para o jantar, deixando que meu subconsciente fizesse seu trabalho. Talvez
fizesse algo especial. Já há algum tempo que não fazia mais do que abrir pacotes e
mexer coisas no fogão.

Olhei de relance para Ivy, sentindo culpa e alívio ao mesmo tempo. Não era
de admirar que ela pensasse que eu queria partilhar mais do que a casa com ela.
Era, em parte, culpa minha. Talvez na maior parte.

— Então, o que Trent fez quando descobriram o corpo? — perguntou Ivy, o


mouse a clicar enquanto ela percorria as salas de chat. — Culpa?

— Ah, não — disse eu, afastando meus sentimentos desconfortáveis,


enquanto tirava da geladeira um hambúrguer magro com duzentos gramas e o
pousava com estrondo na pia. — E a surpresa que ele revelou não foi por eu ter
descoberto um corpo, foi por ser o corpo de Dan. É por isso que não me agrada a
ideia de que ele o tivesse posto lá para se proteger. Mas ele sabe mais do que diz.

Olhei pela janela, para o jardim iluminado pelo sol e para o brilho das asas
dos pixies enquanto os filhos de Jenks afugentavam um colibri em migração da
última das lobélias. Tinha de estar em migração. Jenks o mataria antes de permitir
que qualquer tipo de competição pusesse uma pata naquele jardim.

Enquanto as crianças gritavam e clamavam, trabalhando em conjunto para


afugentar o pobre pássaro, meus pensamentos regressaram à preocupação que
Trent mostrara quando eu descobri que ele tinha uma linha Ley atravessando seu
gabinete. Ele tinha ficado mais perturbado com o fato de eu ter descoberto aquela
linha do que com o fato de ter descoberto o corpo de Dan.

A linha Ley. Era aí que estava a verdadeira pergunta. Senti um formigueiro


nos dedos, enquanto me virava, limpando o gelo que o hambúrguer deixou numa
toalha e não na saia. Olhei de relance para a janela, perguntando-me se chamaria
mais atenção gritando ou se devia confiar na sorte e rezar para os filhos de Jenks
estarem muito ocupados para ouvir a conversa. Ivy afastou-se da tela do
computador quando percebeu o meu súbito silêncio. Jenks tinha uma boca grande e
eu não queria que ele soubesse das minhas desconfianças em relação à possível
345

ascendência de Trent. Iria espalhá-la e Trent contrataria um avião para largar


"acidentalmente" uma bela dose de veneno sobre todo o quarteirão só para pôr
um fim aos rumores.

Cortando o mal pela raiz, fechei as cortinas e deixei-me ficar junto à janela,
onde podia ver a sombra das asas dos pixies, fosse algum aproximar-se o suficiente
para ouvir.

— Trent tem uma linha Ley no gabinete — disse eu, a voz baixa.

Ivy fitou-me sob o sol tingido de azul.

— Sério? Quais são as hipóteses de isso acontecer?

Ela não tinha percebido.

— Isso significa que ele deve saber usá-las — lembrei.

— E... — suas sobrancelhas estavam erguidas numa interrogação.

— E quem é que é capaz de usar as linhas Ley? — perguntei em resposta.

O queixo dela caiu, quando compreendeu, de repente.

— Ele ou é humano ou bruxo — murmurou ela. Levantou-se com um


movimento rápido, que me deixou nervosa. Aproximando-se da pia, empurrou a
cortina e fechou a janela com um baque. — Trent sabe que a viu? — perguntou, os
olhos negros sob a luz fraca.

— Oh , e u d i r i a q u e s a b e — f u i b u s c a r o u tr a b o l a c h a p a r a c o l o c a r ,
sutilmente, algum espaço entre nós. — Levando em consideração que tive de usar a
linha para encontrar o corpo.

Os lábios dela apertaram-se e assumiu uma posição tensa.

— Voltou a pôr a cabeça à prêmio. A sua, a minha, a de Jenks, a de toda a


família dele. Trent fará qualquer coisa para manter isso em silêncio.

— Se estivesse assim tão preocupado com isso, não teria corrido o risco de
colocar o gabinete sobre a linha — protestei, esperando que estivesse certa. —
Qualquer um que estivesse à procura poderia encontrá-la. Ele tanto pode ser
Inderlander como humano. Estamos em segurança, em especial se não dissermos
nada sobre a linha Ley.
346

— Jenks pode descobrir — insistiu ela. — Sabe que vai meter a boca no
trombone. Ele adoraria o prestígio de descobrir o que Trent é.

Agarrei uma bolacha.

— O que eu faço? Se lhe disser para manter a boca fechada quanto à linha
Ley, ele vai tentar perceber.

Os dedos dela matraquearam no balcão, enquanto eu comia a bolacha com


creme. Numa enervante demonstração de força, usou uma mão para se erguer e
sentar sobre os armários. O seu rosto tinha ganhado vida, as sobrancelhas finas
franzidas com a possibilidade de resolver o mistério há muito debatido.

— Então o que você acha que ele é? Humano ou bruxo?

Regressando à pia, deixei a água quente cair sobre a carne congelada.

— Nem um, nem outro — tratou-se de uma simples constatação. Ivy


continuou em silêncio e eu fechei a torneira. — Ele não é nem um, nem o outro,
Ivy. Sou capaz de apostar a minha vida em como não é um bruxo e Jenks jura que
ele é mais do que humano.

Teria sido por aquilo que eu tinha ficado? Sua lógica, Sua intuição. Apesar
dos nossos problemas, trabalhávamos bem em conjunto. Sempre foi assim. Ivy
abanou a cabeça, suas feições desfocadas sob a luz do entardecer filtrada pela
cortina azul, mas podia sentir sua tensão aumentar.

— São as únicas escolhas que temos. Eliminou todo o resto e o que ficar, por
muito improvável que seja, é a resposta.

Não me surpreendia que ela estivesse citando Sherlock Holmes. A lógica


inflexível e a natureza brusca do detetive fictício adequavam-se à personalidade
de Ivy.

— Be m , s e q u i s e r c o n s i d e r a r o i m p ro vá ve l — m u r m u re i — , p o d
e acrescentar os demônios à lista de possibilidades.

— Demônios? — os dedos de Ivy pararam de bater. Abanei a cabeça


preocupada.

— Trent não é um demônio. Só o referi porque os demônios pertencem à


eternidade e, como tal, também são capazes de manipular as linhas Ley.
347

— Tinha esquecido isso — murmurou ela, o som suave lançando um


arrepio pela minha espinha, mas estava concentrada nos seus pensamentos e não
fazia ideia do quão assustadora estava se tornando. — Que são aparentados, eu
quero dizer. As bruxas e os demônios — deixei escapar um resfolegar ofendido e
ela encolheu os ombros. — Desculpa. Não sabia que era uma questão sensível.

— Não é — disse, tensa, embora fosse.

Tinha havido uma onda de controvérsia — há cerca de uma década —


quando uma humana metida no campo da Genealogia Inderlander pôs a mão aos
poucos mapas genéticos que tinham sobrevivido à Viragem, teorizando que, como
as bruxas eram capazes de manipular as linhas Ley, a nossa origem era, tal como
no caso dos demônios, a eternidade. As bruxas não são aparentadas com os
demônios. Mas, para nosso grande embaraço, a ciência obrigou-nos a admitir que
tínhamos evoluído lado a lado, na eternidade.

Tendo conseguido obter financiamento graças a esse pedaço de informação


desagradável, a mulher ultrapassou o âmbito da sua teoria original, utilizando as
taxas de mutação do RNA para calcular com bastante certeza a altura da nossa
migração em massa. A mitologia das bruxas alegava que uma revolta de demônios
tinha originado a mudança, deixando os elfos a lutar, tolamente, numa guerra
perdida, pois não desejavam abandonar seus campos e bosques adorados para
serem extirpados dos seus recursos naturais e poluídos. Parecia uma teoria viável
e os elfos já tinham perdido toda sua história quando, por sua vez, desistiram e
seguiram o mesmo caminho, há uns míseros dois mil anos atrás.

O fato de os humanos terem desenvolvido sua maestria na utilização das


linhas Ley, mais ou menos na mesma época, foi atribuído à prática dos elfos de
usarem sua magia para se misturarem com os humanos, tentando evitar a extinção
que os demônios tinham começado e a Viragem terminaria.

Meus pensamentos se voltaram para Nick e deixei-me abater. Ainda bem


que as bruxas estavam tão distantes da humanidade que nem mesmo a magia
podia ultrapassar as diferenças. Quem sabe do que seria capaz um híbrido
humano/bruxo desinformado e hábil no uso de magia das linhas Ley? O fato de os
elfos terem levado os humanos para a família dos utilizadores das linhas Ley já era
suficientemente mau. A destreza dos elfos no uso de magia das linhas Ley tinha
passado para o genoma humano como se lhe pertencesse. Era o suficiente para nos
fazer pensar.

Elfos?— pensei, gelando. Tinha estado sempre debaixo do meu nariz.


348

— OH. MEU. DEUS... — sussurrei.

Ivy ergueu os olhos, imobilizando as pernas que tinha estado balançando e


fitando-me olhos nos olhos.

— E l e é u m e l fo — s u s s u r r e i , s e n t i n d o a e x c i ta ç ã o d a d e s c o b e r t a
borbulhando, fazendo minha pulsação acelerar. — Eles não morreram todos na
Viragem. Ele é um elfo. Trent é um maldito elfo!

— Ei, espera lá — disse Ivy, em tom de aviso. — Eles desapareceram. Se


houvesse algum vivo, Jenks saberia. Teria sido capaz de cheirá-los.

Abanei a cabeça, avançando até ao corredor, em busca de mexeriqueiros


alados.

— Não se os elfos tiverem permanecido escondidos durante uma geração de


pixies e fadas. A Viragem deu praticamente cabo deles e não teria sido difícil
esconder os que sobreviveram até morrer o último pixy que conhecia seu cheiro.
Eles só vivem durante cerca de vinte anos, os pixies quero eu dizer — minhas
palavras chocavam umas com as outras, na minha pressa de expressá-las. — E
você viu que Trent não gosta deles ou das fadas. É quase uma fobia. Adequa-se.
Nem posso acreditar! Descobrimos!

— Rachel — censurou Ivy, enquanto se levantava do balcão. — Não seja


idiota. Ele não é um elfo.

De braços cruzados, cerrei os lábios em sinal de frustração.

— Ele dorme ao meio-dia e à meia-noite — disse eu — e, está mais ativo de


madrugada e ao anoitecer, tal como acontecia com os elfos. Possui reflexos quase
tão rápidos como os dos vampiros. Gosta da solidão, mas é muitíssimo bom em
manipular as pessoas. Meu Deus, Ivy, o homem tentou caçar-me, montado a
cavalo, numa noite de Lua cheia! — eu agitava os braços enquanto gesticulava. —
Você viu os jardins dele e a floresta artificial. Ele é um elfo! Tal como o Quen e o
Jonathan.

Ela abanou a cabeça.

— Eles morreram. Todos eles. E o que é que teriam a ganhar ao deixar que
até os Inderlanders pensassem que tinham desaparecido, se não tivessem? Sabe
bem como gostamos de atirar dinheiro às espécies em extinção. Em especial às
inteligentes.
349

— Não sei — disse eu, exasperada com sua descrença. — A humanidade


nunca gostou muito do fato de os elfos roubarem os bebês humanos e os
substituírem pelas suas crianças fracas. Isso seria suficiente para que eu
mantivesse a boca fechada e a cabeça baixa até que todos pensassem que
estávamos mortos.

Ivy emitiu um ruído de dúvida com o fundo da garganta, mas podia ver que
começava a ceder.

— Ele usa as linhas Ley — insisti. — Você própria o disse. Elimina o


impossível e o que restar, por improvável que seja, é a verdade. Ele não é humano
nem bruxo — fechei os olhos, enquanto me lembrava do dia em que mordi
Jonathan e Trent, quando era um visom lutando por fugir. — Não pode ser. O
sangue dele cheira a canela e a vinho.

— Ele é um elfo — disse Ivy, a voz chocantemente monótona. Abri os olhos.


O rosto dela estava vivo e brilhante. — Por que não me disse que ele cheirava a
canela? — disse ela, enquanto deslizava do balcão, as botas pretas batendo no
linóleo sem qualquer ruído.

O instinto de autopreservação me fez recuar um passo, sem que eu


percebesse sequer que tinha me mexido.

— Pensei que pudesse ter sido por causa das drogas que ele me tinha dado
— disse, não gostando do fato de a referência ao sangue tê-la posto a se mexer.

O castanho das suas íris estava diminuindo, escondido pelo negro das
pupilas dilatadas. Eu tinha certeza de que se prendia com o fato de termos
descoberto a origem de Trent e não com o fato de eu me encontrar no meio da sua
cozinha, com o sangue pulsando e as palmas das mãos suadas. Mesmo assim...
Não gostava daquilo. Com a mente em turbilhão, ela dirigiu-me um olhar de aviso e
colocou a ilha entre nós.

Está bem, então eu sabia a história de Trent. Dizer-lhe isso garantiria, de certo,
uma audiência com ele, mas como se diz a um assassino em série que conhecemos
o segredo dele, sem acabarmos mortos?

— Não vai dizer a ele que sabe — disse Ivy, com um olhar de desculpas,
antes de encostar as costas ao balcão, mantendo a distância de forma evidente.

— Eu tenho de falar com Trent. Ele falará comigo se eu lhe disser o que sei.
Vou ficar bem. Tenho aquele material sobre ele.
350

— Edden te dará logo um processo por assédio se sequer ligar para ele —
avisou Ivy.

Meus olhos pousaram-se na embalagem das bolachas, com seu pequeno


carvalho e claquete15. Movendo-me lentamente, puxei o saco para mais perto,
escolhendo uma figura com os membros intactos. Os olhos de Ivy desceram até ao
celofane, depois se ergueram até mim. Quase conseguia ver seus pensamentos
alinharem-se com os meus. Dirigiu-me um dos seus raros sorrisos honestos,
deixando escapar apenas um ligeiríssimo brilho dos dentes, ao mesmo tempo em
que uma expressão maléfica, embora envergonhada, dava vida ao seu rosto. Um
arrepio atravessou-me o corpo, apertando-me as entranhas.

— Acho que sei como chamar a atenção dele — disse, mordendo a cabeça
da bolacha coberta de chocolate e limpando as migalhas dos lábios. Mas, no fundo
da minha mente, erguia-se uma nova pergunta, incitada pelas constantes
preocupações de Nick. Seria a excitação que eu sentia erguer-se através de mim
causada pela conversa com Trent... Ou o ligeiro vislumbre de dentes brancos?

Pequeno painel de duas placas, com as referências de cada cena filmada, para facilitar a montagem
15

posterior.
351

Capitulo 23
O clamor do motor a gasolina do ônibus era horrendo, quando este
arrancou e tentou encontrar força para prosseguir monte acima. Eu encontrava-me
de pé — na calçada repleta de ervas daninhas — e esperei que ele passasse antes
de atravessar a rua. Os sons suaves do passar dos carros eram um confortável
pano de fundo para os pássaros, insetos e o ocasional grasnar de um pato. Virei-
me, sentindo os olhos de alguém pousados em mim.

Tratava-se de um animalomem, de cabelo preto até os ombros, um corpo


firme que me dizia que corria tanto em duas patas como em quatro. Sua atenção
saltou de mim para o parque e ele voltou a encostar-se à árvore, ajustando o puído
casaco de couro. Acalmei o passo quando o reconheci da universidade, mas ele
afastou o olhar e puxou o chapéu para cima dos olhos, ignorando-me. Queria
qualquer coisa, mas era óbvio que sabia que eu estava ocupada e estava disposto a
esperar.
352

Os solitários eram assim e, pela sua aparência confiante e reservada,


calculei que fosse isso que ele fosse. Provavelmente tinha um trabalho para mim e
não estava disposto a bater à minha porta, sentindo-se mais confortável esperando
por um momento em que eu não estivesse ocupada. Já me aconteceu antes. Os
animalomens tinham tendência para considerar todos os que viviam em solo
consagrado como misteriosos e esotéricos.

Apreciando seu profissionalismo, comecei a percorrer a rua, avançando na


direção oposta à do ônibus — o sol da tarde quente sobre os meus ombros.
Gostava de Eden Park, em especial daquela parte pouco usada. Nick trabalhava
limpando artefatos no museu de arte no final da rua e, por vezes, eu ia encontrar
com ele para almoçar, enquanto ele jantava ao ar livre no pequeno monte sobre
Cincinnati. Mas minha zona preferida era a extremidade virada para o lado
oposto, sobre o rio e Hollows.

Meu pai gostava de me levar ali aos sábados de manhã, para comer donuts e
dar migalhas aos patos. Meu humor tornou-se mais pesado quando me recordei
da ocasião em que ele me levou até lá — depois de uma das suas raras discussões
com minha mãe. Era de noite e tínhamos visto as luzes de Hollows tremeluzindo
sobre o rio, parecendo que o mundo continuava à nossa volta, enquanto nós
ficávamos presos numa gota de tempo pendurada no lábio do presente —
relutante em cair e dar lugar à seguinte. Suspirando, apertei melhor o curto casaco
de couro e prestei atenção ao lugar onde colocava os pés.

No dia anterior, tinha enviado uma embalagem daquelas bolachas a Trent


— por mensageiro especial — que dizia simplesmente "Eu sei". A embalagem de
celofane e as bolachas com recheio estavam carregadas com uma insultuosa
mistura de propaganda élfica e mágica que nem mesmo os tempos iluminados que
se seguiram à Viragem tinham sido capazes de esmagar.

Fui acordada nessa manhã pelo toque do telefone. Que voltou a tocar
quando a secretária eletrônica se desligou. E tocou outra vez. E outra vez. E outra
vez. Às oito horas da manhã não era uma boa hora para as bruxas — eu só estava
dormindo há quatro horas —, mas Jenks era incapaz de atender ao telefone e
acordar Ivy não era boa ideia. Resumindo e concluindo, Trent convidou-me para
tomar chá no seu jardim. Disse a Jonathan que me encontraria com Trent em Eden
Park, mais precisamente em Twin Lakes Bridge, às quatro da tarde, logo depois do
cochilo do patrão.

Twin Lakes Bridge era um nome muito grandioso para a pequena ponte de
pedreste de concreto, mas eu conhecia o troll que vivia debaixo dela e sentia que
353

podia confiar nele em caso de necessidade. A água que corria pelas curvas
artificiais distorceria qualquer feitiço de escuta. Além disso, sendo domingo de
jogo, o parque devia estar quase deserto, dando-nos privacidade suficiente para
falar, tendo, contudo, um número suficiente de pessoas para impedir que Trent
pudesse optar por caminhos idiotas, como matar-me.

Obriguei meu olhar a erguer-se da calçada quando passei pela viatura


descaracterizada do DFI que Glenn costumava conduzir, estacionada ilegalmente
na calçada. Ele devia ter sido alertado para manter os olhos em Trent. Bom. Isso
significava que não teria de sujeitar qualquer agente do DFI para seguir o homem
e, para que Trent e eu pudéssemos nos falar sem sermos interrompidos.

Tinha feito questão de não levar comigo quaisquer feitiços além do normal
anel que usava no mindinho. Também não levava a bolsa grande. Apenas minha
carteira de motorista gasta e o passe do ônibus. Havia duas razões para a ausência
de artigos pessoais. Não só podia correr mais depressa — caso Trent tentasse
alguma coisa — como não lhe dava qualquer oportunidade de dizer que eu tinha
feito um encantamento contra ele.

A tensão do passo rápido fazia-me doer as pernas e percorri com os olhos o


grande parque, encontrando-o tão pouco frequentado como esperava. Tinha
passado a primeira parada porque queria dar uma boa olhada antes de sair. Já
para não falar da impossibilidade de realizar uma entrada em grande estilo
quando se acaba de descer de um ônibus. Nem mesmo as calças de couro, com o
casaco combinando e o top frente única, vermelho, podiam ajudar.

Acalmei, fitando a água do lago verde com sulfato de cobre e a relva viçosa.
As árvores estavam cobertas de cor, ainda não apressadas pelo gelo. O cobertor
vermelho de Trent era uma mancha contrastante no chão. Ele estava sozinho e
fingia ler. Perguntei-me onde estaria Glenn, pensando que, se não estava naquelas
últimas árvores grandes ou nos pequenos apartamentos do outro lado da rua, o
mais certo era estar rondando o banheiro.

Balançando os braços, acenei para o outro lado do parque, para Jonathan,


que se erguia aborrecido, junto à limusine Gray Ghost, ao sol. Obviamente infeliz,
ergueu o pulso e apontou para o relógio. Senti o estômago apertado, enquanto
imaginava Quen à espreita no topo das árvores. Forcei meu passo a abrandar até
um bambolear calmo, enquanto entrava no banheiro, minhas botas feitas por
vampiros silenciosas no corredor.
354

Para banheiros, eram elegantes — com a pedra coberta de hera e suas telhas
de cedro. As persianas e portas de metal integravam-se na permanente estrutura,
tanto quanto os materiais perecíveis que a abafavam. Sem duvidar, encontrei
Glenn no banheiro dos homens, as costas voltadas para mim, enquanto se erguia
sobre o vaso, observando Trent com um par de binóculos através do vidro
quebrado. A ponte ficava no seu campo de visão e senti-me melhor por saber que
ele estaria observando.

— Glenn — disse, e ele virou-se, quase caindo do vaso.

— Deus santo! — praguejou, dirigindo-me um olhar sombrio, antes de


voltar sua atenção, uma vez mais, para a janela. — O que está fazendo aqui?

— E bom dia para você também — disse eu, educadamente, querendo dar-
lhe uma tapa e perguntar-lhe por que não tinha me defendido no dia anterior e
mantido na missão.

A divisão exalava a cloro e não tinha quaisquer divisórias. Pelo menos o


banheiro das mulheres tinha compartimentos. Ele estava com o pescoço tenso e eu
tinha de lhe dar crédito por não afastar o olhar de Trent, nem por um momento.

— Rachel — disse, em tom de aviso. — Vá para casa. Não sei como


descobriu que o Sr. Kalamack ia estar aqui, mas se você se aproximar dele, eu
mesmo te entregarei a SI.

— Ouça, desculpa — disse eu. — Cometi um erro. Devia ter ficado quieta
até você dizer que eu podia entrar na cena do crime, mas Trent me pediu que eu
viesse encontrar com ele aqui, por isso pode ir se danar!

Glenn baixou os binóculos, o rosto uma máscara de incredulidade quando


olhou para mim.

— Palavra de escoteira — disse, dirigindo-lhe uma saudação sarcástica.

Os olhos dele tornaram-se distantes, em pensamento.

— Este serviço já não é seu. Saia daqui antes que eu mande te prender.

— Podia, pelo menos, ter me dado acesso ao interrogatório de Trent no DFI


ontem — disse eu, dando um passo em frente, agressivo. — Por que deixou que
me mandassem embora? Esse serviço era meu!
355

As mãos dele estavam pousadas no rádio de duas vias que tinha preso à
cintura, mesmo ao lado da arma. Seus olhos castanhos estavam furiosos, devido a
um incidente passado que não me incluía.

— Estava destruindo o caso que eu estava construindo contra ele. Eu te


disse que ficasse de fora e você não o fez.

— Já pedi desculpas. E não haveria caso nenhum, se não fosse por mim —
exclamei.

Frustrada, pousei uma mão no quadril e ergui a outra num gesto furioso,
p a r a n d o d e r e p e n te q u a n d o a l g u é m e n t r o u . E r a u m h o m e m d e a s p e c t
o
desmazelado com um casaco de aspecto desmazelado. Ficou imóvel, chocado,
durante alguns segundos, percorrendo Glenn com o olhar — com o seu terno caro,
de pé em cima do vaso, e eu, de calças e casaco de couro.

— Hum, volto mais tarde — disse ele, apressando-se a sair.

Voltei-me para Glenn, tendo de inclinar a cabeça num ângulo estranho,


para olhar para ele.

— Graças a você, já não posso trabalhar para o DFI. Estou te informando do


meu encontro com Trent num gesto de cortesia de um profissional para outro. Por
isso, se afaste e não interfira.

— Rachel...

Semicerrei os olhos.

— Não se meta comigo, Glenn. Foi Trent quem pediu a reunião.

A s t ênue s r uga s de pr eoc upa ção ao red or do s ol h os de Gl enn


aprofundaram-se. Podia ver seus pensamentos guerrearem entre si. Não teria me
dado ao trabalho de informá-lo não fosse pelo fato de que, muito provavelmente,
ele ligaria para todo o pessoal — do pai à brigada de minas e armadilhas —
quando me visse com Trent.

— Estamos claros? — perguntei, beligerante e ele desceu do vaso.

— Se eu descobrir que mentiu...

— Sim, sim, sim — virei-me para sair.


356

Ele estendeu um braço na minha direção. Eu senti a mão dele e afastei-me,


girando. Abanei a cabeça em sinal de aviso, mas os olhos dele abriram-se perante a
velocidade do meu movimento.

— Não entende mesmo, não é? — disse eu. — Eu não sou humana, isso é
um assunto Inderlander e é muita areia para o seu caminhão.

E com aquele pensamento — destinado a mantê-lo acordado durante a


noite — saí a passos largos para a luz do Sol, confiando que ele ia manter-me
vigiada e não interferiria.

Agitei os braços, enquanto tentava afastar o que restava da adrenalina e


minha pele pareceu eriçar-se quando os olhos de Jonathan pousaram em mim.
Ignorando-o, tentei verificar onde Quen tinha se escondido enquanto avançava
pela ponte de concreto. Do outro lado dos lagos gêmeos estava Trent, sobre seu
cobertor. Ainda tinha o livro na mão, mas sabia que eu estava ali. Ia me fazer
esperar, o que estava ótimo para mim. Eu não estava pronta para ele. No fundo
das sombras da ponte corria uma larga faixa de água veloz, ligando os dois lagos.
Meu pé tocou na ponte e a poça de roxo por entre a corrente tremeu.

— Ó lari — disse eu, parando quase na beira da ponte.

Sim, era um bocado idiota, mas tratava-se de um cumprimento tradicional


entre os trolls. Se eu tivesse sorte, Sharps ainda estaria em posse da ponte.

— Ló lela — disse a escura poça de água, erguendo-se numa série de ondas


até aparecer um rosto gotejante e rochoso. Na pele azulada cresciam algas e as
unhas estavam brancas da argamassa que raspava da base da ponte, para
complementar sua dieta.

— Sharps — disse, verdadeiramente contente, quando o reconheci pelo seu


olho branco, cego numa luta antiga. — Como corre a água?

— Agente Morgan — disse ele, parecendo cansado. — Não pode esperar


pelo pôr-do-sol? Prometo sair da cidade. O Sol agora está demasiado brilhante.

Eu sorri.

— É só Rachel, agora. Demiti-me da SI. E não precisa se mudar por minha


causa.
357

— Sério? — a poça de água voltou a afundar-se, até só a boca e o olho bom


serem visíveis. — Isso é bom. É uma garota simpática. Não é como o mago que
têm agora, que aparece ao meio-dia com sondas e sinos.

Encolhi-me em simpatia. Os trolls tinham uma pele extremamente sensível,


o que os mantinha longe da luz direta do Sol a maior parte do tempo. Tendiam a
destruir qualquer ponte sob a qual se instalassem — razão pela qual a SI os estava
sempre escorraçando. Mas era uma batalha perdida. Assim que um partia, outro
tomava seu lugar e, depois, havia uma luta quando o troll original regressava para
reclamar sua casa.

— Ei, Sharps — disse eu. — Talvez pudesse me ajudar.

— Qualquer coisa que esteja ao meu alcance — um braço magro, de cor


arroxeada ergueu-se para apanhar um grão de argamassa do lado de baixo da
ponte.

Olhei de relance para Trent, vendo que ele se preparava para avançar na
minha direção.

— Andou alguém pela tua ponte, esta manhã? Será que alguém deixou para
trás um feitiço ou amuleto?

A poça de água oleosa deslizou para o lado oposto da ponte, para uma
sombra onde deixei de vê-lo.

— Seis crianças atiraram rochas da ponte, um cão fez xixi na sua base, três
humanos adultos, dois vadios, um animalomem e cinco bruxas. Antes do nascer do
Sol, houve dois vampiros. Alguém foi mordido. Senti o cheiro do sangue que caiu
no canto sudoeste.

Olhei para lá, não vendo nada.

— Mas ninguém deixou nada.

— Só o sangue — sussurrou ele, soando como bolinhas contra as rochas.

Trent tinha se levantado e estava sacudindo as calças. Senti o pulso acelerar


e endireitei a alça do top por baixo do casaco.

— Obrigada, Sharps. Tomarei conta da tua ponte, se quiser dar um


mergulho.
358

— Sério? — a voz dele assumiu uma tonalidade esperançosa, incrédula. —


Faria isso por mim, agente Morgan? É uma mulher espantosa — o borrão de água
roxa hesitou. — Não deixará que ninguém fique com a minha ponte?

— Não. Posso ter de sair com pressa, mas ficarei enquanto puder.

— Uma mulher espantosa — repetiu ele.

Inclinei-me e vi uma tira de roxo, surpreendentemente longa, deslizar de


debaixo da ponte e fluir em volta das rochas para a água mais profunda na bacia
mais distante. Trent e eu devíamos ter uma considerável privacidade, mas a
atração de um troll pelo seu território era tão forte que eu sabia que Sharps me
manteria debaixo de um olho. Sentia-me injustificadamente segura com Glenn de
um lado, no banheiro dos homens, e Sharps do outro, na água.

Virando as costas ao Sol e aos olhos de Glenn, encostei-me à mureta da


ponte, para observar Trent que avançava sobre a relva na minha direção. Atrás
dele, no cobertor, deixou um conjunto artisticamente disposto, de dois copos de
vinho, uma garrafa em gelo e uma tigela de morangos fora de época que fazia com
que parecesse estarmos em junho e não em setembro. Seu passo era comedido e
seguro à superfície, mas eu podia ver que, no fundo, estava carregado de
nervosismo, revelando o quão jovem era, na verdade.

Trent cobriu o cabelo loiro com um chapéu leve que lhe deixava o rosto
descoberto. Era a primeira vez que o via com outra coisa que não um terno de
negócios e seria fácil esquecer que ele era um assassino e um barão da droga. A
confiança que mostrava nas salas de administração ainda estava presente, mas a
cintura esguia, os ombros largos e o rosto suave davam-lhe agora a aparência de
um pai com uma forma particularmente invejável.

As roupas informais realçavam sua juventude, em vez de escondê-la como


acontecia com os ternos Armani. Sob os punhos da camisa de bom gosto,
espreitavam alguns pêlos loiros e pensei que estes deviam ser tão macios como o
cabelo claro que lhe esvoaçava ao redor das orelhas. Os olhos verdes estavam
semicerrados, enquanto se aproximava, franzidos por causa do Sol ou da
preocupação. Eu apostava na última, já que as mãos dele estavam atrás das costas
para que eu não lhes apertasse.

Trent acalmou-se ao subir para a ponte. Suas sobrancelhas expressivas


inclinaram-se e lembrei-me do medo que ele mostrara quando Algaiarept se
transformou em mim. Só havia um motivo para o demônio ter feito aquilo. Trent
359

tinha medo de mim, ou por ainda pensar, erroneamente, que eu lancei Agaliarept
atrás dele por ter conseguido entrar no seu gabinete por três vezes, ou por eu
saber o que ele era.

— Nenhuma das anteriores — disse ele, arrastando os sapatos quando


parou.

Fui varrida por uma onda de choque gelado.

— Desculpe? — gaguejei, erguendo-me e afastando-me da mureta.

— Não tenho medo de você.

Fitei-o, sua voz líquida fundindo-se com o som da água que nos rodeava.

— E também não sou capaz de ler sua mente, apenas seu rosto.

Minha respiração regressou, num som suave, e fechei a boca. Como tinha
perdido o controle assim tão depressa?

— Vejo que tratou do troll — disse ele.

— E do detetive Glenn, também — disse eu, enquanto tocava no cabelo


para me assegurar de que os cachos não tinham escapado da trança. — Ele não nos
incomodará a menos que faça algo idiota.

Os olhos dele semicerraram-se por causa do insulto. Não se mexeu,


mantendo o mesmo metro e meio entre nós.

— Onde está seu pixy? — perguntou.

A irritação deixou-me tensa.

— O nome dele é Jenks e está em outro lugar. Ele não sabe e eu prefiro que
assim continue, levando em consideração sua boca grande.

Trent relaxou visivelmente. Colocou-se à minha frente, deixando entre nós


a estreita largura da ponte. Tinha sido difícil escapar de Jenks esta tarde e, Ivy
acabou por intervir, levando-o com ela para um serviço inexistente. Acho que, na
verdade, ia comprar donuts.

Sharps estava brincando com os patos, puxando-os e deixando-os regressar


à superfície, vendo-os voar para longe grasnando. Afastando os olhos da imagem,
Trent encostou as costas na mureta e cruzou um tornozelo sobre o outro, numa
360

posição que era o exato reflexo da minha. Éramos duas pessoas que tinham se
cruzado por acaso e que partilhavam algumas palavras, ao sol.

Ce-e-e-e-erto.

— Se ficarem sabendo — disse ele, os olhos presos no banheiro distante,


atrás de mim — tornarei públicos os registros do pequeno acampamento de férias
do meu pai. Você e todos os outros infelizes ranhosos serão perseguidos e tratados
como leprosos. Isso se não se limitarem a cremá-los com medo de que possa
ocorrer alguma mutação e que possa começar uma nova Viragem.

Senti os joelhos leves e aguados. Eu tinha razão. O pai de Trent tinha me


feito qualquer coisa, arrumado o que quer que fosse que estivesse mal. E a ameaça
de Trent não era fútil. A melhor das hipóteses envolvia um bilhete de ida para a
Antártica. Mexi a língua no interior da boca, tentando encontrar saliva suficiente
para engolir.

— Como soube? — perguntei, pensando que meu segredo era mais mortal
que o dele.

Com os olhos fixos nos meus, ele puxou a manga da camisa, revelando um
braço musculoso. Os pêlos estavam brancos do sol e a pele bronzeada. Uma
cicatriz irregular manchava sua suavidade regular. Meus olhos ergueram-se para
os dele, lendo uma raiva antiga.

— Era você? — gaguejei. — Foi você que atirei contra a árvore?

Com emoções curtas e bruscas, ele voltou a puxar a manga para baixo,
escondendo a cicatriz.

— Nunca te perdoei por ter me feito chorar na frente do meu pai.

Uma raiva de infância alimentada por descobertas que eu julgava, há


muito, extintas.

— A culpa é sua. Eu pedi que parasse de se meter com ela! — disse, não
querendo saber se a minha voz se erguia acima do som da água que nos rodeava.
— Jasmim estava doente. Ela chorou até adormecer durante três semanas por sua
causa.

Trent endireitou-se, de repente.

— Sabe o nome dela?! — exclamou. — Diga-o. Depressa!


361

Eu fitei-o, incrédula.

— Por que quer saber o nome dela? Ela já tinha problemas demais sem você
para perturbá-la.

— O nome dela! — disse Trent, apalpando os bolsos até ter encontrado uma
caneta. — Qual era o nome dela?

Franzindo a sobrancelha, prendi um cacho atrás da orelha.

— Não vou te dizer — respondi, envergonhada por ter voltado a esquecer.

Trent pressionou os lábios e guardou a caneta.

— Já se esqueceu, não foi?

— Por que quer saber? Tudo o que fazia era aborrecê-la.

Ele parecia irritado, enquanto puxava o cabelo mais para baixo, sobre os
olhos.

— Eu tinha catorze anos. Uns catorze anos muito desajeitados, senhorita


Morgan. Implicava com ela porque gostava dela. Da próxima vez que se recordar
do nome dela, agradeceria que o anotasse e me enviasse. A água que bebíamos no
campo tinha agentes bloqueadores da memória de longo prazo e eu gostaria de
saber se...

A voz dele silenciou-se e observei a emoção tremeluzir no fundo dos olhos.


Eu estava me tornando boa a lê-los.

— Quer saber se ela sobreviveu — terminei por ele, sabendo que tinha
acertado quando o olhar dele se afastou. — Por que você estava lá? — perguntei,
quase com medo que ele me respondesse.

— Meu pai era o dono do acampamento de férias. Onde mais haveria de


passar meus verões?

A cadência de sua voz e a ligeira tensão em sua testa, disseram-me que era
mais do que isso. Senti um arrepio de satisfação, tinha descoberto a forma de
perceber quando estava mentindo. Agora tudo o que precisava era descobrir uma
forma de dizer quando estava dizendo a verdade e ele nunca mais seria capaz de
mentir para mim com sucesso.
362

— É tão porco como seu pai — disse eu, enojada —, chantageando pessoas
com uma cura, colocando-a ao alcance delas e depois transformando-as em
marionetes. A fortuna dos seus pais foi construída sobre a miséria de centenas,
talvez milhares, Sr. Kalamack. E você não é diferente.

O queixo dele tremeu, de forma quase imperceptível, e pensei que tinha


visto o brilho de centelhas à sua volta, a recordação da sua aura estava me
pregando truques. Devia ser uma coisa de elfos.

— Não justificarei minhas ações perante você — disse ele. — Além disso,
tornou-se uma grande adepta da arte da chantagem. Não vou perder tempo numa
discussão infantil sobre quem feriu os sentimentos de quem há mais de uma
década. Quero contratar seus serviços.

— Contratar-me? — disse eu, incapaz de manter a voz baixa e levando as


mãos aos quadris num gesto de incredulidade. — Tentou me matar nas lutas de
ratazanas e acha que vou trabalhar para você? Para limpar seu nome? Você matou
aquelas bruxas. Eu vou prová-lo.

Ele riu, o chapéu lançando uma sombra sobre o rosto, enquanto ele baixava
a cabeça e ria.

— O que tem tanta graça? — perguntei, sentindo-me tola.

— Você — os olhos dele estavam brilhantes. — Nunca esteve em perigo


naquela arena. Só estava te usando para que registrasse a sordidez do seu estado.
Mas consegui, de fato, estabelecer alguns contatos impressionantes enquanto
estive lá.

— Seu filho da... — de lábios apertados, fechei a mão num punho. A alegria
de Trent desapareceu e inclinou a cabeça em sinal de aviso, ao mesmo tempo em
que recuava um passo.

— Eu não o faria — ameaçou, erguendo um dedo. — Não o faria mesmo.

Recuei lentamente, os joelhos tremendo com a recordação da arena. A


sensação atrofiante de desamparo, de estar encurralada e ser obrigada a matar ou
ser morta, varreu-me. Eu tinha sido o brinquedo de Trent. Ele correndo atrás de
mim a cavalo não era nada, comparado com aquilo. Afinal de contas, dessa vez eu
estava roubando-o.

— Ouça-me com atenção, Trent — sussurrei, a ideia de que Quen pudesse


aparecer obrigou-me a recuar até sentir o concreto frio contra as costas. — Não
363

vou trabalhar para você. Vou acabar contigo. Vou descobrir como relacioná-lo a
todos estes homicídios.

— Oh, por favor — disse ele e perguntei-me como é que tínhamos passado
tão depressa de um homem de negócios dos Fortune 20 e de uma habilidosa
agente independente para duas pessoas discutindo por causa de injustiças
passadas. — Continua a bater nessa tecla? Até o capitão Edden já percebeu que o
corpo de Dan Smather foi colocado nos meus estábulos, razão pela qual mandou o
filho vigiar-me em vez de apresentar queixa. E, quanto a ter estabelecido contatos
com as vítimas, sim, falei com todas elas, tentando contratá-las, não matá-las. Tem
um excelente conjunto de habilidades, senhorita Morgan, mas ser detetive não está
entre elas. É muito impaciente, deixa-se guiar pelas suas capacidades intuitivas
que parecem só funcionar num sentido.

Ofendida, levei as mãos aos quadris e emiti um som incrédulo. Quem ele
pensava que era para me dar sermões?

Trent levou a mão ao bolso da camisa, retirando do seu interior um


envelope branco e entregando-me. Inclinando-me para frente e depois para trás,
agarrei nele, abrindo-o. Fiquei sem fôlego ao compreender que se encontrava no
seu interior vinte notas impecáveis de cem dólares.

— É o avanço de dez por cento, pago o resto no final — disse ele, e


estanquei, tentando parecer indiferente.

Vinte mil dólares?

— Quero que identifique o responsável pelos homicídios. Tenho estado


tentando contratar uma bruxa das linhas Ley há três meses e todas aparecem
mortas. Começa a ser cansativo. Tudo o que quero é um nome.

— Pode ir para o inferno, Kalamack — disse eu, deixando cair o envelope,


quando ele não o aceitou de volta.

Estava zangada e frustrada. Tinha ido ali com uma informação tão boa que
estava certa de conseguir uma confissão. O que conseguira fora ser ameaçada,
insultada e, depois, subornada. Parecendo imperturbado, ele abaixou-se para
apanhar o envelope, batendo com ele na palma da mão por várias vezes para
sacudir a terra, antes de guardá-lo.

— Compreende que, depois do número que realizou ontem, você é a


próxima na lista do assassino? Corresponde perfeitamente ao perfil, tendo se
364

revelado tão hábil no uso da magia das linhas Ley e se, depois, somarmos a isso
esse nosso pequeno encontro...

Maldição. Tinha me esquecido disso. Se Trent não fosse realmente o


assassino, então eu não tinha como impedir o verdadeiro de vir atrás de mim. De
súbito, o sol não era suficientemente quente. Senti-me sem fôlego, doente com o
fato de ter de encontrar o verdadeiro assassino antes que ele me encontrasse.

— Agora — disse Trent, a voz mais macia do que água. — Aceite o dinheiro
para que eu possa lhe dizer o que consegui descobrir.

C o m o e s t ô m a g o à s vo l t a s , f i t e i s e u s o l h o s t r o c i s t a s . E u i a f a z e r
precisamente aquilo que ele queria. Tinha me manipulado, levando-me a ajudá-lo.
Maldição, maldição e dupla maldição. Atravessando a ponte para o lado dele,
coloquei os cotovelos sobre a mureta grossa, as costas voltadas para Glenn. Sharps
estava no fundo da água, só a ausência de patos mostrando qualquer sinal da sua
presença. Ao meu lado estava Trent.

— Mandou Sara Jane ao DFI com a única intenção de fazer com que Edden
me chamasse? — perguntei, amargamente.

Trent mudou de posição, colocando-se tão perto que conseguia sentir o


aroma límpido do seu shampoo. Não gostava da proximidade dele, mas se me
mexesse, ele ficaria sabendo que isso me perturbava.

— Sim — disse ele, suavemente.

Na sua voz estava o som da verdade que eu tanto procurei e senti um


arrepio de excitação suster-me a respiração. Lá estava. Agora o tinha na mão. Ele
nunca mais seria capaz de mentir para mim. Olhando para as nossas conversas
passadas sob uma nova luz, compreendi que, além do motivo pelo qual estava no
campo de férias do pai, nunca o fiz. Nunca.

— Ela não o conhece, não é? — perguntei.

— Algumas saídas para tirar a fotografia, mas não. Era quase uma certeza
matemática que ele seria assassinado depois de ter concordado em trabalhar para
mim, embora eu tivesse tentado protegê-lo. Quen está muito perturbado — disse
ele, levemente, o olhar preso nas ondas de Sharps. — O fato de o Sr. Smather ter
aparecido nos meus estábulos significa que o assassino está ficando arrojado.

Meus olhos fecharam-se por breves instantes, espelhando minha frustração,


enquanto eu lutava por realinhar meus pensamentos. Trent não matou aquelas
365

bruxas. Foi outra pessoa a fazê-lo. Podia aceitar o dinheiro e ajudar Trent a
resolver aquele problema de trabalho ou não aceitar o dinheiro e ele o conseguiria
de graça. Ia aceitar o dinheiro.

— É um cretino, sabia?

Vendo que eu compreendera, Trent sorriu. Tive de usar toda minha força
de vontade para não lhe cuspir na cara. As mãos compridas pairavam sobre a
beira da mureta. O sol concedia à sua pele bronzeada, uma quente cor dourada
que quase brilhava contra a camisa branca e o rosto obscurecido. Alguns fios do
seu cabelo agitavam-se com a brisa, quase tocando minhas madeixas caprichosas.

Com um movimento casual, levou a mão ao bolso da camisa e, com os


nossos corpos escondendo o movimento dos olhos de Glenn, passou-me o
envelope. Sentindo-me suja, aceitei-o, escondendo-o atrás do casaco, preso pela
cintura das calças.

— Excelente — disse ele, quente e sincero. — Fico feliz por podermos


trabalhar juntos.

— Vá se ferrar, Kalamack.

— Estou razoavelmente certo de que se trata de um mestre vampiro —


disse ele, afastando-se de mim.

— Qual deles? — perguntei, enojada comigo mesma. Por que eu estava


fazendo aquilo?

— Não sei — admitiu ele, atirando um pedaço de argamassa da mureta,


fazendo-a cair na água. — Se soubesse, já teria resolvido a questão.

— Aposto que sim — disse eu, amarga. — Por que não matá-los todos?
Arrumar a questão?

— Não posso andar por aí espetando estacas em vampiros ao acaso,


senhorita Morgan — disse ele, deixando-me preocupada com o fato de ter levado
a minha pergunta a sério, em vez de aceitá-la pelo sarcasmo que era. — Isso seria
ilegal, para não dizer que desencadearia uma guerra de vampiros. Cincinnati
poderia não sobreviver. E eu sei que os meus negócios sofreriam então.

Ri disfarçadamente.

— Oh, e não podemos permitir uma coisa dessas, não é? — Trent suspirou.
366

— Usar o sarcasmo para esconder seu medo faz com que pareça muito
jovem.

— E fazer girar o lápis entre os dedos faz com que pareça nervoso — rebati.

Sabia bem como era discutir com alguém que não me morderia se as coisas
saíssem de controle. Os olhos dele tremeram. Com os lábios brancos, virou-se de
novo para o grande lago à nossa frente.

— Agradeceria se mantivesse o DFI fora disso. É um assunto Inderlander,


não humano, e também não tenho certeza de que se possa confiar na SI.

Achava interessante a rapidez com que caí para a diferença "eles" e "nós".
Aparentemente eu não era a única a conhecer as origens de Trent e não gostava do
grau de intimidade que isso estabelecia entre nós.

— Penso que se possa tratar de uma assembleia de vampiros em ascensão


que está tentando arranjar uma base maior, afastando-me — disse ele. — Seria
muito menos arriscado do que tentar destruir uma das casas menores.

Ele não estava se gabando — tratava-se de um fato, ainda que de mau gosto
— e os meus lábios contorceram-se ao pensar que estava aceitando dinheiro de um
homem que lidava com o submundo como se fosse um tabuleiro de xadrez. Pela
primeira vez na vida, senti-me feliz por meu pai estar morto e não poder me
p e r gu n t a r " P o r q uê ? " . A i m a g e m do s no s s o s p a i s e m f r e n t e a o ô ni b u s d o
acampamento de férias intrometeu-se e tive de me recordar que não podia confiar
em Trent. Meu pai fizera o mesmo e isso o matou.

Trent suspirou, um som simultaneamente pesaroso e cansado.

— O submundo de Cincinnati é muito fluído. Todos meus contatos usuais


se silenciaram ou morreram. Estou perdendo contatos com o que está acontecendo
— olhou de relance para mim. — Alguém está tentando impedir que continue com a
minha investigação. E, sem uma bruxa das linhas Ley ao meu dispor, cheguei a
um impasse.

— Pobre bebê — trocei. — Por que não usa a sua própria magia? A
linhagem está muito poluída com esses terríveis genes humanos para conseguir
fazer magias mais elaboradas?

Os nós dos dedos dele ficaram brancos, quando agarrou a mureta, depois
relaxou.
367

— Eu irei arranjar uma bruxa das linhas Ley. Preferiria contratar alguém
voluntariamente que mandá-la raptar, mas se todas as bruxas com quem falo
acabam mortas, eu roubarei uma.

— Sim — disse eu, num tom arrastado e cáustico. — Os elfos são conhecidos
por isso, não são?

Ele cerrou o maxilar.

— Tenha cuidado.

— Tenho sempre cuidado — disse eu, sabendo que não era uma bruxa
suficientemente boa para ter de me preocupar com a possibilidade de ele me
"roubar".

Observei enquanto as suas orelhas perdiam, lentamente, a tonalidade


rosada. Semicerrei os olhos, perguntando-me se eram ligeiramente pontiagudas
ou se se tratava apenas da minha imaginação. Era difícil dizer, com o chapéu que
ele tinha posto.

— Pode restringir a busca? — perguntei.

Vinte mil dólares para vasculhar o submundo de Cincinnati e descobrir


quem queria estragar o dia do Sr. Kalamack, matando os seus potenciais
empregados. Sim. Parecia um serviço fácil.

— Tenho imensas ideias, senhorita Morgan. Imensos inimigos, imensos


empregados.

— E nenhum amigo — acrescentei, maldosa, observando Sharps fazer saltos


serpenteantes, como um monstro do Lago Ness em miniatura. Minha respiração
deslizou de mim, enquanto pensava o que Ivy iria dizer quando eu regressasse
para casa e lhe contasse que estava trabalhando para Trent. — Se eu descobrir que
está mentindo, virei atrás de você eu mesma, Kalamack. E, dessa vez, o demônio
não vai falhar.

Emitiu uma gargalhada trocista e eu virei-me para ele.

— Pode parar com o blefe. Não mandou aquele demônio atrás de mim na
primavera passada.

A ligeira brisa que se levantou era fria e apertei mais o casaco contra o
corpo, enquanto me virava.
368

— Como é que...

O olhar de Trent deslizou para a bacia mais baixa do lago.

— Depois de ter ouvido a conversa que teve com seu namorado no meu
gabinete e de ter visto sua reação àquele demônio, soube que tinha sido outra
pessoa, embora tenha de admitir que tê-la visto esmurrada e azul, depois de ter
libertado o demônio para matar seu invocador, quase me convenceu.

Não gostava do fato de ele ter ouvido minha conversa com Nick. Ou que
tivesse respondido exatamente da mesma maneira que eu, depois de ter
conseguido controlar Algaiarept. Os sapatos de Trent rasparam na ponte e uma
pergunta cuidadosa chegou aos seus olhos.

— A sua cicatriz de demônio... — ele hesitou e a chama da emoção


assombrada fortaleceu-se. — Foi um acidente? — concluiu.

Observei as ondas formadas pelos movimentos de Sharps, desaparecendo


sob a superfície.

— Tinha sangrado tanto que... — parei, os lábios apertados. Por que estava
lhe contando aquilo? — Sim. Foi.

— Ainda bem — disse ele, o olhar ainda sobre o lago. — Fico feliz por
saber.

Idiota — pensei, considerando que quem quer que tenha enviado Algaiarept
atrás de nós, nessa noite, tinha sofrido uma dose dupla de dor.

— Parece mesmo que alguém não gostou nada que tivéssemos conversado,
hã? — disse eu, depois parei. Meu rosto ficou gelado e sustentei a respiração. E se
o s a t a q u e s c o n t ra n o s sa vi d a e a r e ce n t e o n d a d e vi o l ê n ci a e st i ve s se m
relacionados? Talvez eu estivesse destinada a ser a primeira vítima do caçador de
bruxas?

Com o coração batendo acelerado, deixei-me ficar imóvel, pensando. Cada


uma das vítimas morreu no seu inferno pessoal: o nadador afogou-se, o tratador
de ratazanas foi estraçalhado e comido vivo, duas mulheres violadas, um homem
que trabalhava com cavalos foi comprimido até à morte. Algaiarept tinha recebido
ordens para me matar em terror, demorando algum tempo para descobrir qual
meu maior receio. Maldição, era a mesma pessoa.

Trent inclinou a cabeça perante meu silêncio.


369

— O que foi? — perguntou.

— Nada — apoiei-me pesadamente na mureta.

Pousando a cabeça nas mãos em concha, usei toda minha força de vontade
para não desmaiar. Glenn chamaria alguém e seria o fim. Trent afastou-se da
mureta.

— Não — disse ele, e eu ergui a cabeça. — Já vi essa expressão duas vezes.


O que foi?

Engoli em seco.

— Nós deveríamos ter sido as duas primeiras vítimas do caçador de bruxas.


E l e t e n t o u m a t a r a a m b o s , t e n d o de s i s t i d o de p o i s de t e r m o s m o s t r ad o qu e
podíamos vencer um demônio e eu ter deixado bem claro que não ia trabalhar
para você. Só as bruxas que concordaram em trabalhar contigo foram mortas,
certo?

— Todos concordaram em trabalhar para mim — ele inspirou e eu refreei


um sussurro pela forma como as palavras pareceram fluir pela minha espinha. —
Nunca pensei em ligar os dois.

Não se pode acusar um demônio de homicídio. Como não há forma de


contê-lo caso seja sentenciado, os tribunais há muito optaram por tratar os
demônios como armas, embora a comparação não fosse exatamente correta. Havia a
questão do livre arbítrio, mas desde que o pagamento fosse comensurável com a
tarefa, um demônio não recusaria um homicídio. No entanto, alguém o invocou.

— O demônio disse quem o tinha enviado atrás de você? — perguntei.


Eram os vinte mil dólares mais fáceis que alguma vez recebi. Deus me ajude. Uma
raiva tingida de medo atravessou o rosto de Trent.

— Estava tentando manter-me vivo, não tendo uma conversa. No entanto, a


senhorita parece ter desenvolvido uma relação com ele. Por que não pergunta?

Inspirei, de forma súbita, incrédula.

— Eu? Já estou lhe devendo um favor. Não pode me pagar o suficiente para
me enterrar ainda mais. Mas fazemos assim: eu o chamo e você pergunta. Tenho
certeza que os dois podem chegar a um acordo quanto ao pagamento.

O rosto sombreado pelo sol ficou pálido.


370

— Não.

Satisfeita, fitei o pequeno lago.

— Não me chame de covarde, a menos que seja algo que esteja disposto a
fazer. Sou irrefletida. Não sou idiota — mas depois hesitei. Nick o faria.

Um tênue sorriso, surpreendente e genuíno, tomou conta do rosto de Trent.

— Está fazendo outra vez.

— O quê? — disse, num tom monótono.

— Teve outra ideia. É tão divertida, senhorita Morgan. Observá-la é como


observar uma criança de cinco anos.

Ofendida, olhei para a água. Questionei-me se Nick perguntasse se ele tinha


sido enviado para me matar seria considerada uma pergunta pequena ou uma
pergunta grande, exigindo um pagamento maior. Afastando-me da mureta, decidi ir
até o museu para descobrir.

— Então? — insistiu Trent. Abanei a cabeça.

— Terei sua informação depois do pôr-do-sol — disse, e ele pestanejou.

— V a i c h a m á - l o ? — a s u r p r e s a s ú b i ta e fr a n c a d e l e a p a n h o u - m e
desprevenida e mantive o rosto impassível, pensando que conseguir sobressaltá-lo
era um encorajamento ao meu ego de que precisava terrivelmente. A rapidez com
que o escondeu fez-me sentir duplamente feliz. — Acabou de dizer...

— Está pagando pelo resultado, não pelo passo a passo. Entrarei em contato
quando descobrir alguma coisa.

A expressão dele mudou para algo que poderia ser respeito.

— A julguei mal, senhorita Morgan.

— Sim, eu sou uma caixinha de surpresas — murmurei, erguendo uma mão


para afastar o cabelo dos olhos, quando soprou uma brisa mais forte. O chapéu de
Trent ameaçou sair voando para a água e estendi um braço para apanhá-lo antes
que ele deixasse sua cabeça. Meus dedos tocaram no chapéu, depois no vazio.

Trent saltou para trás. Eu fitei, pestanejando, o local onde ele estivera. Tinha
desaparecido. Encontrei-o a mais de um metro de distância, completamente fora
da ponte. Já tinha visto gatos moverem-se assim. Ele parecia assustado quando se
371

endireitou, depois furioso por eu ter visto nele aquela emoção. O sol brilhava nos
seus cabelos finos; o chapéu estava na água, assumindo um doentio tom verde.

Fiquei rígida quando Quen caiu de uma árvore próxima, aterrissando


suavemente à frente dele. O homem erguia-se com os braços soltos, como um
samurai dos tempos modernos — de calça jeans preta e camisa. Eu não me mexi
quando ouvi o som da água atrás de mim. Podia sentir o cheiro de sulfato de cobre
e sujeira. Senti, mais do que vi, Sharps erguer-se atrás de mim, frio, molhado e
quase tão grande como a ponte sob a qual vivia, tendo sugado uma enorme
quantidade de água para ficar com uma massa maior. O ruído tênue, vindo do
banheiro, dizia-me que Glenn vinha a caminho.

Meu coração acelerou quando ninguém se mexeu. Não devia ter lhe tocado.
Não devia ter lhe tocado. Lambendo os lábios, puxei o casaco para endireitá-lo,
feliz por Quen ter o bom senso de perceber que eu não estava tentando machucar
Trent.

— Ligo quando tiver um nome — disse, e a minha voz parecia fraca.

Dirigindo a Quen um olhar de desculpas, girei sobre um calcanhar e


avancei rapidamente para a rua, os saltos batendo, sem qualquer ruído, enviando
impulsos pela minha espinha.

Ele tem medo de mim — pensei silenciosamente. Por quê?

Capitulo 24
— Pela terceira vez, Rachel. Quer outra fatia de pão?

Ergui os olhos da luz que brilhava sobre a superfície do meu copo de vinho,
deparando-me com Nick que esperava, com uma expressão curiosa e divertida.
372

Estendi o prato do pão. Levando em conta sua expressão inquisitiva, calculei que o
estava segurando já há algum tempo.

— Hum, não. Não, obrigada — disse eu, olhando de relance para baixo e
descobrindo o jantar — que Nick preparou para mim — praticamente intacto.

Dando um sorriso de desculpas, enrolei no garfo mais um pedaço de massa


com molho branco. Tratava-se do jantar dele, do meu almoço e, estava delicioso,
ainda mais porque eu não tive de fazer nada senão a salada. O mais certo era ser a
última coisa que ia comer hoje, porque Ivy saiu com Kist. Isso significava que eu ia
jantar Ben and Jerry em frente à televisão. Pensei que era inusitado ela sair com
um vampiro vivo, tendo em conta que ele era pior do que um macaco — no que
dizia respeito a sexo e sangue —, mas eu não tinha mesmo nada a ver com isso.

O prato de Nick estava vazio e, depois de ter colocado o pão sobre a mesa,
recostou-se e começou a brincar com a faca, equilibrando-a sobre um guardanapo.

— Sei que não é a comida — disse ele. — O que houve? Praticamente não
disse uma palavra desde que... Hum... Você foi ao museu.

Escondi o sorriso com o guardanapo e limpei os cantos da boca. Tinha o


apanhado dormindo sentado — as pernas compridas erguidas, os pés pousados
na mesa de trabalho, a toalha de chá do século 18, que devia estar restaurando,
pousada sobre os olhos. Se não se tratasse de um livro, ele, realmente, não queria
saber.

— É assim tão óbvio? — disse eu, comendo uma garfada.

Seu familiar sorriso de esguelha estendeu-se sobre seu rosto.

— Nem parece você estando assim tão calada. Tem a ver com o fato de o Sr.
Kalamack não ter sido preso, depois de terem descoberto, hum, aquele... Corpo?

Afastei o prato num acesso de culpa. Ainda não tinha dito a Nick que
troquei de lado no que dizia respeito à questão do "Vamos apanhar o Trent". Não
tinha, mesmo, e era isso que estava me incomodando. Aquele homem não valia
nada.

— Vocês encontraram um corpo — disse ele enquanto se inclinava sobre a


mesa e pegava minha mão. — O resto se seguirá.
373

Encolhi-me, preocupada com a possibilidade de Nick me dizer que eu tinha


me vendido. Meu nervosismo deve ter sido visível porque ele apertou minha mão
até eu erguer os olhos.

— O que se passa, Ray-Ray?

O s o l h o s d e l e n ã o m o s t r a va m m a i s d o q u e e n co r a j a me n t o , s u a s
profundezas castanhas refletindo o brilho da pequena luz que pendia sobre a
minúscula mesa da cozinha/sala de jantar de Nick. Minha atenção voltou-se para a
pequena armação que se erguia à altura do peito — que a separava da sala de
estar — enquanto tentava decidir como abordar o assunto. Há meses que lhe dizia
que devia deixar os demônios sossegados e agora ali estava eu, querendo pedir
que chamasse Algaliarept. Tinha certeza de que a resposta ia custar mais do que o
que estava coberto pelo "contrato à experiência" de Nick e não queria correr o
risco de que ele tivesse de pagá-lo de outra forma. Nick tinha uma veia cavalheira
tão grande como o rio Ohio.

— Me diz... ? — pediu ele, inclinando a cabeça para tentar ver meus olhos.

Lambi os lábios e fitei os seus olhos.

— É sobre o Grande Al.

Não queria correr o risco de que Algaiarept presumisse, convenientemente,


que eu o estava chamando cada vez que pronunciava seu nome, por isso comecei a
referir-me ao demônio pelo pouco insultuoso apelido. Nick achava aquilo
divertido — que eu estivesse preocupada com o fato de que ele pudesse aparecer
sem ser invocado, se não lhe chamasse Al.

Os dedos de Nick deslizaram dos meus e afastou-se para pegar seu copo de
vinho.

— Não comece — disse ele, franzindo a sobrancelha, num primeiro sinal de


raiva. — Eu sei o que estou fazendo e vou continuar a fazê-lo, quer queira quer
não.

— Na verdade — comecei, hesitando —, queria saber se podia fazer uma


pergunta por mim.

O rosto comprido de Nick ficou frouxo.

— Desculpe?

Encolhi-me.
374

— Se não custar nada. Se custar, esquece. Arranjarei outra maneira.

Ele pousou o copo e inclinou-se para frente.

— Quer que eu o chame?

— Sabe, hoje falei com Trent — disse, rapidamente, para que ele não
pudesse me interromper. — E chegamos à conclusão que o demônio que nos
atacou na primavera passada é o mesmo que está cometendo os homicídios... Era
suposto eu ter sido a primeira vítima do caçador de bruxas, mas, como recusei a
oferta de Trent, ele deixou-me ir. Se eu conseguir descobrir quem o enviou para
nos matar, então conseguiremos pegar o assassino.

De lábios afastados, Nick olhava fixamente para mim. Quase conseguia ver
seus pensamentos organizarem-se: Trent era inocente e eu estava trabalhando para
ele, com o intuito de limpar seu nome de qualquer suspeita. Sentindo-me
desconfortável, deslizei o garfo pelo prato.

— Quanto ele está te pagando? — acabou Nick por perguntar, sem que sua
voz me desse qualquer sinal dos seus pensamentos.

— Dois mil agora — disse eu, sentindo o leve peso do envelope no meu
bolso, já que ainda não tinha ido para casa. — Outros dezoito quando lhe disser
quem é o caçador de bruxas.

Ei, tinha conseguido o dinheiro da renda. Iupi!

— Vinte mil dólares? — disse ele, os olhos castanhos muito abertos sob a
luz fluorescente. — Ele está pagando a você vinte mil dólares por um nome? Não
tem de matar nada nem ninguém?

Acenei, perguntando-me se Nick pensaria que eu tinha me vendido. Eu


sentia que sim. Nick manteve-se imóvel durante alguns segundos, depois se
levantou com a cadeira raspando no linóleo gasto.

— Vamos descobrir quanto é isso custa — disse ele, a meio caminho da


porta.

Fiquei a olhar, pestanejando, para a cadeira de plástico e arame. Meu


coração batia com força.

— Nick? — levantei-me, demorando algum tempo para levar nossos pratos


p a r a a pi a . — N ão t e i nc o m o da qu e e s t e j a t r a b al h an d o p a r a T r e n t ? A m i m
incomoda.
375

— Foi ele quem matou aquelas bruxas? — perguntou, sua voz fazendo-se
ouvir a partir do corredor que dava acesso ao quarto e eu a segui, atravessando a
sala de estar, até encontrá-lo tirando as roupas do armário e a empilhá-las em cima
da cama, com uma rapidez metódica.

— Não. Acho que não — Deus me proteja se li mal os sinais. Ele entregou-
me uma pilha de macias toalhas verdes, novinhas em folha.

— Então qual é o problema?

— O homem é um barão dos biomedicamentos e trafica enxofre — disse eu,


equilibrando as toalhas por forma de conseguir agarrar nas enormes botas de
jardinagem que ele me passava. Reconheci-as como as que estavam na torre do
sino da minha igreja e perguntei-me porque as teria guardado. — Trent está
tentando tomar conta do submundo de Cincinnati e eu estou trabalhando para ele.
O problema é esse.

Nick agarrou os lençóis extras e passou por mim, para colocá-los em cima
da cama.

— Não o estaria ajudando se acreditasse que ele o fez — disse ele, ao


regressar. — E por vinte mil dólares?! Vinte mil dólares pagam muitas sessões de
terapia caso esteja errada.

Fiz uma careta, não gostando da filosofia de Nick, segundo a qual "o
dinheiro justifica tudo". Suponho que o fato de ter crescido vendo a mãe lutar por
cada dólar tenha muito a ver com isso, mas, por vezes, questionava as prioridades
de Nick. No entanto, tinha de descobrir o que estava se acontecendo, ainda mais se
fosse para salvar minha própria pele e eu não iria limpar Trent de qualquer
suspeita gratuitamente.

Deixei-me ficar de lado no corredor, enquanto Nick ia para o quarto com


uma pilha de camisolas na mão. O armário estava vazio — não que houvesse
muita coisa no seu interior — e, depois de ter colocado tudo, pegou as toalhas e as
botas que eu tinha na mão, acrescentando-as ao monte sobre a cama, antes de
regressar ao armário. Minhas sobrancelhas ergueram-se quando ele levantou um
quadrado do carpete e revelou um círculo e um pentagrama desenhados no chão.

— Invoca Al para dentro de um armário? — disse eu, incrédula.

Nick ergueu os olhos do local onde se encontrava ajoelhado, o rosto


comprido com uma expressão marota.
376

— Descobri o círculo quando me mudei para cá — disse ele. — Não é legal?


Foi feito em prata. Verifiquei-o e é praticamente o único local do apartamento
onde não passam quaisquer fios de eletricidade ou condutas de gás. Há outro
círculo na cozinha, que se pode ver com a ajuda de uma luz negra, mas é maior e
não consigo fazer um círculo assim tão grande e que seja suficientemente forte
para contê-lo.

Observei enquanto ele tirava as prateleiras dos seus apoios, desferindo uma
pancada firme por baixo de cada uma delas, empilhando-as contra a parede no
corredor. Tendo terminado, entrou no armário e estendeu-me a mão para que me
juntasse a ele. Eu fitei-o, surpresa.

— Al disse que o demônio é que devia estar dentro do círculo, não o


invocador — disse eu.

Ele baixou a mão.

— Tem a ver com o fato de ser a experiência. Não estou invocando-o para
pedir uma audiência, ele pode dizer "não" e não aparecer completamente, embora
isso nunca tenha acontecido desde que me deste a ideia de me colocar dentro do
círculo em vez dele. Agora aparece só para rir — Nick voltou a estender a mão. —
Anda. Quero ter certeza que cabemos os dois.

Olhei para a parte da sala de estar que conseguia ver, sem qualquer vontade
de me enfiar dentro do armário com Nick. Bem, pelo menos não naquelas
circunstâncias.

— Vamos usar antes o círculo na cozinha — sugeri. — Não me importo de


fechá-lo.

— Quer arriscar que ele pense que foi você que o chamou? — perguntou
Nick, as sobrancelhas erguidas.

— Para de falar nele como se fosse uma pessoa, é uma coisa — disse eu,
mas, perante sua expressão exasperada, peguei sua mão e entrei no armário. Nick
largou de imediato minha mão e verificou, com o olhar, o local onde ficavam
nossos cotovelos. O armário era de bom tamanho e fundo. Agora parecia tudo
bem, mas se acrescentássemos um demônio tentando entrar, tornaria-se bastante
claustrofóbico. — Talvez isso não seja muito boa ideia - disse eu.

— Vai correr tudo bem.


377

Os movimentos de Nick eram rápidos e repentinos, enquanto saía do


armário e estendia o braço para a última prateleira, que ainda estava no seu lugar,
sobre as nossas cabeças. Dela retirou uma caixa de sapatos que chacoalhava. Nick
abriu-a, revelando o seu conteúdo: um saco de plástico com cinzas e cerca de meia
dúzia de velas compridas e afuniladas, de um verde leitoso, já queimadas. Fiquei
de boca aberta quando as reconheci como as velas que tínhamos acendido certa
noite em que estávamos... Hum... Utilizando a banheira de Ivy em todo seu
potencial. O que elas estavam fazendo numa caixa com cinzas?

— Essas velas são minhas — disse eu, só então compreendendo para onde
tinham ido.

Pousando a caixa na cama, Nick pegou o saco de plástico e a vela mais


comprida e dirigiu-se para a sala de estar. Ouvi um baque surdo e ele depressa
reapareceu, arrastando o banco sobre o qual eu tinha colocado a obrigatória planta
de boas-vindas. Mantendo o silêncio, pousou a vela no mesmo local onde antes se
encontrava o jarro.

— Compre suas próprias velas para invocar demônios — disse eu, chocada.

Ele franziu a sobrancelha, enquanto abria a gaveta do pufe e retirava do seu


interior uma caixa de fósforos.

— Têm de ser acesas pela primeira vez em solo sagrado, caso contrário não
funcionarão.

— Bem, parece que tem tudo planejado, não?

Perguntei-me, amargamente, se toda noite não teria sido uma desculpa para
acender aquelas velas. Há quanto tempo ele andava chamando aquele demônio?
Fazendo beicinho, observei-o acender a vela e a abanar o fósforo para apagá-lo,
mas só depois de vê-lo tirar uma mão-cheia de cinza do saco de plástico, que
comecei a ficar nervosa.

— O que é isso? — perguntei, preocupada.

— Não vai querer saber — a voz dele tinha uma surpreendente carga de
aviso.

Senti o rosto ficar quente, ao pensar que costumava prender pessoas como
ele por roubo de sepulturas.

— Quero, sim.
378

Ele ergueu os olhos, a testa franzida de irritação.

— Trata-se de um objeto focal, para que Algaiarept se materialize fora do


círculo e não dentro dele, conosco. E a vela serve para garantir que ele não se
concentre em mais nada a não ser na cinza sobre a mesa. Comprei-a, está bem?

M u r m u r a n d o u m r á p i d o " D e s c u l p a " r e c u e i .Ap a r e n te m e n te , t i n h


a
descoberto o único ponto sensível de Nick e havia pisado nele com toda a força.
Eu não estava atualizada dos métodos de invocação de demônios; era óbvio que
ele estava.

— Pensei que bastava fazer um círculo e chamá-lo — disse, sentindo-me


indisposta.

Alguém tinha vendido as cinzas da avó para que Nick pudesse chamar um
demônio com os seus restos mortais. Nick sacudiu as mãos e voltou a selar o saco.

— Talvez você consiga se safar só com isso, mas eu não. O cara da loja não
parava de tentar me vender um amuleto, chocantemente caro, para me ajudar a
criar um círculo de ligação como deve ser sem acreditar que um humano o
conseguisse fechar sozinho. Acabou me dando um desconto de dez por cento em
tudo aquilo que comprei, depois de tê-lo prendido num círculo que ele não foi
capaz de quebrar. Suponho que tivesse pensado que eu sabia o suficiente para
sobreviver e voltar para comprar mais coisas.

Sua irritação desapareceu mal eu parei de resmungar com ele.

Compreendi que aquela era a primeira vez — bem, a segunda — em que ele
tinha uma oportunidade de me mostrar suas capacidades, algo de que tinha,
obviamente, grande orgulho. Os humanos tinham de trabalhar com afinco para
manipularem as linhas Ley tão bem como os bruxos, razão pela qual se tornaram
conhecidos por se aliarem aos demônios, o que facilitava a tarefa. Claro que não
duravam muito tempo depois disso, acabando por cometer um erro, sendo
puxados para a eternidade. Aquilo era tão pouco seguro. E ali estava eu
encorajando-o.

Vendo minha expressão, ele aproximou-se de mim e colocou as mãos sobre


meus ombros. Podia sentir a cinza grossa entre suas mãos e a minha pele.

— Está tudo bem — disse ele, para me acalmar, o rosto estreito aberto num
sorriso. — Já fiz isso antes.
379

— É isso que me assusta — disse eu, recuando para lhe dar espaço.
Enquanto Nick atirava o saco de plástico cheio de cinzas para junto da caixa de
sapatos, eu tentava limpar a cinza dos ombros. Nick entrou no armário comigo e,
depois, resmungando ao lembrar-se de algo, enfiou um pedaço de madeira na
fenda das dobradiças.

— Uma vez a porta fechou— disse ele, encolhendo os ombros.

Isso não é nada bom — pensei, enquanto sentia o suor despontar no fundo
das minhas costas.

— Pronta?

Olhei de relance para a vela acesa e para o pequeno monte de cinzas.

— Não.

Senti um formigamento na ponta dos dedos, enquanto Nick fechava os


olhos e abria sua segunda visão. Uma estranha sensação — como se as minhas
entranhas estivessem sendo rearranjadas — começou na zona da barriga,
erguendo-se até à minha garganta. Meus olhos abriram-se.

— Uou, uou, uou! — gritei, quando a sensação se transformou num puxão


desconfortável. — O que é isso?

Nick abriu os olhos. Estavam vidrados e percebi que ele estava vendo tudo
naquela confusa mistura de realidade e eternidade.

— É sobre isso que tenho falado — disse ele com a voz oca. — Tem a ver
com o feitiço de ligação. Legal, não é?

Alternei o peso entre um pé e o outro, assegurando-me de que fiquei dentro


do círculo.

— É horrível — admiti. — Desculpa. Por que não me disse que era assim
tão ruim?

Ele encolheu os ombros, fechando os olhos.

O puxão que sentia atravessar-me tornou-se mais forte e lutei para


encontrar uma forma de lidar com ele. Podia sentir a energia da eternidade
acumulando-se, lentamente, dentro dele, numa sensação semelhante à que eu
própria experimentava quando me ligava a uma linha Ley. O poder cresceu e,
380

embora fosse apenas uma fração daquele que eu tinha canalizado no gabinete de
Trent — forçou-me a reagir.

Com uma lentidão dolorosa, a energia atingiu um nível utilizável. As


palmas das minhas mãos começaram a suar e senti o estômago apertado. Desejei
q u e e l e s e d e s p a c h a s s e e fe c h a s s e o c í r c u l o . Os r e d e m o i n h o s d e p o d e r
atravessavam-me profundamente, fazendo com que a necessidade de fazer
qualquer coisa crescesse.

— Posso ajudar? — acabei por perguntar, agarrando as mãos para que não
começassem a ter espasmos.

— Não.

O formigamento que sentia nas palmas das mãos aumentou de intensidade


até se tornar um comichão.

— Lamento — disse eu. — Não sabia que podia sentir tudo isso. É por isso
que não tem dormido? Tenho te mantido acordado?

— Não. Não se preocupe com isso.

Comecei a bater com o calcanhar; os choques que subiam pelas minhas


pernas eram como fogo.

— Temos que quebrar o feitiço — disse eu, nervosa. — Como pode suportar
isso?

— Cala-te, Rachel. Estou tentando concentrar-me.

— Desculpa.

Ele expirou num som lento e não fiquei surpresa quando ele saltou,
espelhando o súbito corte de energia da eternidade que podia sentir correndo
através dele. Através de nós.

— O círculo está erguido — disse ele, sem fôlego, e eu resisti ao impulso de


olhar para ele. Não queria insultá-lo e, tendo sentido sua construção, sabia que
estava bom. — Não tenho certeza, mas penso que, como tenho parte da sua aura,
você também pode quebrar o círculo.

— Terei cuidado — disse eu, de súbito bem mais nervosa. — Então o que
acontece agora? — perguntei, olhando para a vela sobre o pufe.
381

— Agora eu o chamo.

Reprimi um tremor quando Nick começou a falar em latim. Os cantos dos


meus lábios desceram, perante a estranheza da língua. Enquanto falava, Nick
parecia assumir uma aparência diferente. As sombras sob os seus olhos cresceram,
fazendo com que parecesse doente. Até sua voz mudava, tornando-se mais rouca e
ecoando, de alguma forma, na minha cabeça. Uma vez mais senti uma lenta
acumulação de energia da eternidade, erguendo-se até se tornar quase intolerável.
Estava inquieta e nervosa, sentindo-me quase aliviada quando Nick pronunciou o
nome de Algaiarept com uma precisão prolongada e cuidadosa.

Nick relaxou, inspirando profundamente. Podia sentir o cheiro do seu suor


sobrepondo-se ao do desodorizante, no espaço apertado. Os dedos dele
deslizaram para minha mão, apertando-a por breves instantes, antes de largá-la. O
relógio fazia seu tique-taque na sala de estar e o burburinho do trânsito do outro
lado da janela chegava até nós, abafado. Não acontecia nada.

— É suposto acontecer alguma coisa? — perguntei, começando a sentir-me


tola, ali, de pé, no armário de Nick.

— Pode demorar algum tempo. Como disse, trata-se de um contrato de


experiência, não da coisa verdadeira.

Inspirei lentamente, por três vezes, à escuta.

— Quanto tempo?

— Desde que comecei a me pôr no círculo em vez dele? Cinco, dez minutos.

O humor de Nick estava mais calmo e eu podia sentir o calor dos nossos
ombros que quase se tocavam. O som de uma ambulância fez-se ouvir ao longe,
tênue, desaparecendo de seguida.

Fitei a vela acesa.

— E se ele não aparecer? — perguntei. — Quanto tempo esperar até


podermos sair do armário?

Nick dirigiu-me um sorriso descomprometido, como aqueles que se trocam


entre estranhos num elevador.

— Hum, eu não sairia do círculo antes do nascer do Sol. Até que se revele e
possamos bani-lo adequadamente para a eternidade, pode aparecer a qualquer
hora.
382

— Quer dizer que, se ele não aparecer, vamos ficar presos neste armário até
de manhã?

Ele acenou, afastando o olhar, de súbito, no mesmo instante em que senti o


cheiro de âmbar queimado.

— Oh, que bom! Ele chegou — sussurrou Nick, endireitando-se.

Oh, que bom! Ele chegou — repeti mentalmente, num tom sarcástico. Deus
me proteja. Minha vida estava mesmo ferrada.

A pilha de cinzas no fundo do corredor estava coberta por um borrão de


eternidade. Este cresceu com a velocidade de um fluxo de água, erguendo-se e
estendendo-se até assumir a forma aproximada de um animal. Obriguei-me a
respirar, enquanto lhe apareciam olhos vermelhos e laranja, com pupilas verticais,
como as de uma cobra. Senti o estômago apertado, enquanto se formava um
focinho selvagem, a saliva pingando no carpete, mesmo antes de ter assumido por
completo a forma do cão gigante que recordava ter visto na biblioteca da
universidade: o medo que Nick sentia de cães tinha ganhado vida.

Ouviu-se um arfar rouco e o som puxou das profundezas da minha alma


um medo instintivo que eu nem sequer sabia que tinha. As patas que terminavam
em unhas afiadas e os poderosos quartos traseiros tomaram forma quando ele se
abanou e a névoa restante formou uma espessa juba de pelo amarelo. Ao meu
lado, Nick tremeu.

— Está bem? — perguntei, e ele acenou com o rosto pálido.

— Nicholas Gregory Sparagmos — disse o cão, com a voz arrastada,


sentando-se nas patas traseiras e dirigindo-nos um selvagem sorriso canino. — Já,
pequeno feiticeiro? Ainda agora estive aqui.

Gregory? — pensei enquanto Nick me dirigia um sorriso impertinente. O


nome do meio de Nick era Gregory? E o que tinha obtido em troca dessa
informação?

— Ou será que me chamou para impressionar Rachel Mariana Morgan? —


terminou ele, a língua vermelha pendurada, enquanto virava para mim seu sorriso
canino.

— Tenho algumas perguntas — disse Nick, a voz revelando mais coragem


do que sua linguagem corporal.
383

Nick segurou a respiração quando o cão se levantou e avançou pelo


corredor, os ombros quase tocando nas paredes. Fitei-o, horrorizada, enquanto ele
lambia o chão ao lado do círculo, testando-o. A película de eternidade silvou
quando ele passou a língua pela barreira invisível. O fumo cheirava a âmbar
queimado e observei, como que através de um vidro, enquanto a língua de
Algaiarept começava a chamuscar e queimar. Nick ficou rígido e pensei ter ouvido
um juramento ou uma oração sussurrada. Emitindo um rosnado aborrecido, a
forma do demônio tornou-se nebulosa.

Meu coração bateu, furioso, quando o cão se estendeu e ergueu, assumindo


a habitual imagem de um cavalheiro britânico.

— Rachel Mariana Morgan — disse ele, marcando cada sílaba acentuada


com uma precisão elegante. — Tenho que te dar os parabéns, querida, por ter
encontrado aquele cadáver. Foi a mais extraordinária realização de magia das
linhas Ley que vi nos últimos doze anos — ele aproximou-se e eu senti o cheiro de
lavanda. — Causou uma sensação e tanto, sabe? — sussurrou ele. — Fui
convidado para todas as festas. O feitiço da minha bruxa fez repicar os sinos da
praça da cidade. Todos puderam prová-lo, embora não tanto quanto eu.

Fechando os olhos, o demônio tremeu, os seus contornos vacilando como se


lhe tivesse faltado concentração. Engoli em seco.

— Não sou sua bruxa — disse eu.

Os dedos de Nick apertaram-me o cotovelo.

— Fique nessa forma — disse Nick, com a voz firme. — E pare de aborrecer
Rachel. Eu tenho umas perguntas e quero saber quanto vão custar antes de fazê-
las.

— Sua desconfiança vai te matar, se teu atrevimento não o fizer —


Algaiarept virou-se num movimento rápido, agitando a cauda do casaco, e
regressou à sala de estar. Do local onde me encontrava, podia vê-lo abrindo a
porta de vidro do armário onde Nick guardava os livros. Seus dedos envoltos
pelas luvas brancas estenderam-se e ele puxou um dos exemplares. — Oh, já me
tinha perguntado para onde tinha ido este — disse ele, de costas viradas para nós.
— Como é esplêndido que o tenha consigo. Da próxima vez, o leremos.

Nick olhou de relance para mim.


384

— Normalmente é isso que fazemos — sussurrou-me ele. — Ele decifra o


latim, deixando escapar todo tipo de coisas.

— E confia nele? — disse eu, franzindo a sobrancelha, nervosa. — Pergunte.

Algaiarept tinha voltado a guardar o livro e pegara outro; seu estado de


espírito tornara-se mais leve, enquanto cantarolava e se agitava como se tivesse
encontrado um velho amigo.

— Algaiarept — disse Nick, pronunciando a palavra lentamente, e o


demônio virou-se com o novo livro na mão. — Gostaria de saber se você é o
demônio que atacou Trent Kalamack na primavera passada.

O demônio não ergueu os olhos do livro que segurava nas mãos. Senti- me
indisposta quando compreendi que ele havia esticado os dedos para melhor
conseguir agarrá-lo.

— Essa pergunta fica no âmbito do nosso acordo — disse ele, com a voz
preocupada. — Tendo em conta que Rachel Mariana Morgan já adivinhou a
resposta — ergueu os olhos cobertos pelos óculos escuros vermelhos e de cor
alaranjada. — Oh, sim, provei Trenton Aloysius Kalamack nessa noite, tal como
provei a ti. Devia tê-lo matado logo, mas sua novidade era tão agradável; demorei-
me, até que ele foi capaz de me prender num círculo.

— Foi por isso que eu sobrevivi? — perguntei. — Cometeu um erro?

— Isso é uma pergunta vinda de você?

Lambi os lábios.

— Não.

Algaiarept fechou o livro.

— O seu sangue é comum, Rachel Mariana Morgan. Saboroso, com nuances


sutis e que não compreendo, mas comum. Não brinquei com você; tentei te matar.
Se soubesse, no momento, que era capaz de fazer repicar os sinos da torre, talvez
tivesse lidado com as coisas de outra forma — ele sorriu e eu senti seu olhar
derramar-se sobre mim como óleo. — Ou talvez não. Devia ter sabido que você
seria como seu pai. Ele também fez repicar os sinos. Uma vez. Antes de morrer.
Espero que não se trate de uma premonição.

Senti o estômago apertado e Nick agarrou meu braço antes que eu tocasse
no círculo.
385

— Tinha dito que não o conhecia — disse eu, com a raiva a tornando minha
voz áspera.

Ele fitou-me com um sorriso afetado.

— Outra pergunta?

Com o coração acelerado, abanei a cabeça, esperando que ele me dissesse


mais. Ele levou um dedo ao nariz.

— Então é melhor que Nicholas Gregory Sparagmos faça outra pergunta,


antes que eu seja chamado por alguém que esteja disposto a pagar pelos meus
serviços.

— Não passa de um porco informante, sabe disso — disse eu, tremendo.

O olhar de Algaiarept sobre meu pescoço fez-me recordar o chão da cova


da biblioteca e minha vida fugindo de mim.

— Só nos meus dias maus.

Nick endireitou-se.

— Quero saber quem te invocou para matar Rachel e se é essa mesma


pessoa que está te invocando para matar as bruxas das linhas Ley.

Deslocando-se de forma a ficar quase fora da minha linha de visão,


Algaiarept murmurou:

— I s s o é u m c o nj u n t o d e p e rg u n t a s m u i t o c a r a s ; a s d u a s ju n t a s
ultrapassam, de longe, o âmbito do nosso acordo.

Voltou uma vez mais a atenção para o livro que tinha nas mãos e virou uma
página. Senti uma onda de preocupação abater-se sobre mim, enquanto Nick
inspirava.

— Não — disse eu. — Não vale a pena.

— O que você quer pelas respostas? — perguntou Nick, ignorando-me.

— Sua alma? — disse ele, descontraidamente.

Nick abanou a cabeça.

— Pense em algo mais razoável ou te mando de volta agora mesmo e você


não poderá continuar falando com Rachel.
386

Ele sorriu.

— Está ficando atrevido, pequeno feiticeiro. Metade de você já é minha —


fechou o livro que tinha na mão com um estalo. — Dá-me licença para levar meu
livro através das linhas e te direi quem me mandou atrás da Rachel Mariana
Morgan. Se se trata ou não da mesma pessoa que está me invocando para matar as
bruxas de Trenton Aloysius Kalamack... Isso fica para mim. Sua alma não é
suficiente para pagar isso. Talvez a da Rachel Mariana Morgan. É uma pena
quando os gostos de um jovem são muito caros para os seus meios, não é?

Franzi a sobrancelha, ao compreender que ele tinha admitido que estava


matando as bruxas. A sorte devia ter nos mantido vivos — Trent e eu — quando
todas as outras bruxas tinham morrido em suas mãos. Não, não foi sorte. Tinham
sido Quen e Nick.

— E para quê quer esse livro? — perguntei.

— O escrevi — disse ele, a voz dura parecendo gravar as palavras nas


pregas da minha mente.

Isso não é bom. Isso não é bom, não é bom, não é bom.

— Não lhe dê, Nick.

Ele virou-se, no espaço apertado, chocando contra mim.

— É só um livro.

— É o seu livro — concordei —, mas é a minha pergunta. Descobrirei de


outra forma.

Algaiarept riu, um dedo enluvado, desviando a cortina para poder olhar


para a rua.

— Antes que volte a ser enviado para te matar? Tem sido o tópico de
muitas conversas de ambos os lados das linhas Ley. É melhor que pergunte
depressa. Se for chamado subitamente, talvez seja melhor resolver quaisquer
assuntos que tenha pendente.

Os olhos de Nick abriram-se.

— Rachel! É a próxima?
387

— Não — protestei, querendo bater em Algaiarept. — Ele só está dizendo


isso para você lhe dar o livro.

— Usou as linhas Ley para encontrar o corpo de Dan — disse Nick,


rapidamente. — E agora está trabalhando para Trent? Está na lista, Rachel. Leva
seu livro, Al. Quem te mandou matar Rachel?

— Al? — o demônio sorriu, alegre. — Oh, gosto disso! Al. Sim, pode me
chamar de Al.

— Quem te mandou matar Rachel? — perguntou Nick. Algaiarept sorriu


uma vez mais.

— Ptah Ammon Fineas Horton Madison Parker Piscary.

Meus joelhos ameaçaram ceder e agarrei o braço de Nick.

— Piscary? — sussurrei. O tio de Ivy era o caçador de bruxas? E o homem


tinha sete nomes? Mas que idade tinha ele, afinal?

— Algaiarept, vá embora e não volte a nos incomodar esta noite — disse


Nick, de súbito.

O sorriso do demônio me fez arrepiar.

— N ã o p r o me t o n a d a — d i s s e e l e co m u m o l h a r i rô n i c o , d e p o i
s
desapareceu.

O livro que ele tinha nas mãos caiu sobre o tapete, seguido por um deslizar
invisível, vindo das prateleiras. Ouvi o bater do meu coração, abalada. O que é
que eu ia dizer à Ivy? Como poderia me proteger de Piscary? Já tinha me
escondido numa igreja. Não gostava daquilo.

— Espera — disse Nick, puxando-me para trás, antes que pudesse tocar no
círculo. Segui o olhar dele para a pilha de cinzas. — Ele ainda não foi embora.

Ouvi Algaiarept praguejar, depois as cinzas desapareceram. Nick suspirou,


depois tocou com o dedo do pé no círculo para quebrá-lo.

— Agora pode sair.

Talvez Nick fosse melhor naquilo do que eu pensava. Encurvado e com um


ar preocupado, foi apagar a vela e sentou-se na beira do sofá, com os cotovelos
pousados nos joelhos e a cabeça entre as mãos.
388

— Piscary — disse ele, fitando o carpete amassado. — Por que não posso ter
uma namorada normal, que só tem de se esconder do antigo par do baile de
finalistas?

— Você é que anda chamando demônios — disse eu, com os joelhos


tremendo. A noite tornou-se, de súbito, muito mais ameaçadora; o armário parecia
maior, agora que Nick não estava dentro dele e eu não queria sair. — Devia voltar
para minha igreja — disse eu, pensando que ia montar minha velha cama no
santuário e dormir no altar abandonado.

Logo depois de ligar para Trent, ele disse que resolveria a questão.
Resolveria a questão... Esperava que isso significasse transpassar Piscary com uma
estaca. Piscary não se importava com a lei, por que eu haveria de me importar?
Analisei minha consciência, não encontrando qualquer problema.

Agarrei o casaco e dirigi-me para a porta. Queria estar na minha igreja.


Queria envolver-me no cobertor EAF que roubei de Edden e sentar-me no meio da
minha igreja abençoada por Deus.

— Preciso fazer uma ligação — disse, dormente, estacando de repente, no


meio da sua sala de estar.

— Trent? — perguntou ele, desnecessariamente, entregando-me o telefone


sem fio.

Fechei o punho para esconder os dedos que tremiam, depois de ter marcado
o número. Quem me atendeu foi Jonathan que soava irado e mau. O fiz passar um
mau bocado até ele ter concordado em me deixar falar diretamente com Trent. Por
fim ouvi o clique de uma extensão e a voz de Trent, suave como um rio, saudou-
me com um profissional "Boa-tarde, senhorita Morgan".

— Foi o Piscary — disse eu, como forma de cumprimento.

Houve um longo silêncio e perguntei-me se ele teria desligado.

— O demônio disse que Piscary o tinha enviado para matar minhas bruxas?
— perguntou Trent, o som dos seus dedos batendo, intrometendo-se entre as
palavras.

Seguiu-se um arranhar distinto que indicava que ele estava escrevendo


qualquer coisa e perguntei-me se Quen estaria com ele. O cansaço que Trent
colocou na voz, para disfarçar a preocupação, não funcionou.
389

— Perguntei se tinha sido enviado para matá-lo na primavera passada e


quem o tinha invocado para cumprir a tarefa — disse eu, sentindo o estômago às
voltas, enquanto andava para trás e para frente. — Sugiro que permaneça em solo
s a g r ad o d e po i s d o p ô r - do - s o l . P o d e an d a r e m s o l o s ag r a d o , n ão po d e ? —
perguntei, sem saber ao certo como os elfos lidavam com esse tipo de coisas.

— Não seja rude — disse ele. — Tenho uma alma tal como você. E
obrigado. Assim que me trouxer a confirmação dessa informação; enviarei um
correio com o resto dos seus honorários.

Eu saltei, cruzando o olhar com o de Nick.

— Confirmação? — disse eu. — O que quer dizer com confirmação?

Não conseguia impedir que as minhas mãos tremessem.

— O que me deu foi um conselho — Trent disse. — Isso é o tipo de coisa


que pago ao meu corretor. Traga-me provas e Jonathan lhe dará o cheque.

— Acabei de lhe dar a prova! — levantei-me, com o coração batendo veloz.


— Acabei de falar com aquele maldito demônio e ele disse que estava matando
suas bruxas. De que outras provas precisa?

— Um mesmo demônio pode ser invocado por mais do que uma pessoa,
menina Morgan. Se não perguntou se Piscary o tinha invocado para matar aquelas
bruxas, tudo o que tem são especulações.

Fiquei sem fôlego e voltei-me de novo para Nick.

— Isso era muito caro — disse eu, baixando a voz e passando a mão pela
minha trança. — Mas foi ele que nos atacou, sob as ordens de Piscary e admitiu
que estava matando as bruxas.

— Não é o suficiente. Preciso de provas antes de espetar uma estaca num


mestre vampiro. Sugiro que arranje depressa.

— Vai me deixar pendurada — gritei, virando-me para a janela coberta pela


cortina, enquanto meu medo se transformava em frustração. — Por que não? —
gritei, com um tom sarcástico. — Os Howlers estão a fazê-lo. O DFI está a fazê-lo.
Por que você haveria de ser diferente?

— Não vou deixá-la pendurada — disse ele, a raiva transformando o


cinzento sedoso da sua voz em ferro frio. — Mas não vou pagar por um trabalho
390

mal feito. Tal como você disse, estou pagando pelo resultado, não pelo passo a
passo... Ou por uma especulação.

— A mim parece que não está me pagando por nada! Estou dizendo que foi
Piscary e não são uns míseros vinte mil dólares que me vão fazer entrar no covil
de um vampiro com mais de quatrocentos anos, para lhe perguntar se tem
mandado um demônio matar os cidadãos de Cincinnati.

— Se não quer o serviço, espero que me devolva o adiantamento que lhe


dei.

Desliguei o telefone na cara dele. Sentia o aparelho quente na minha mão e


pousei-o, suavemente, sobre a divisória entre a cozinha de Nick e a sala de estar,
antes que o atirasse contra alguma coisa.

— Leve-me para casa, por favor? — perguntei com a voz tensa.

Nick fitava a estante dos livros, percorrendo os títulos com os dedos.

— Nick — disse eu mais alto, furiosa e frustrada. — Quero mesmo ir para


casa.

— Espera um minuto — murmurou ele, com a atenção fixa nos livros.

— Nick! — exclamei, agarrando meus cotovelos. — Pode escolher um livro


para ler na cama mais tarde. Quero mesmo ir para casa!

Ele virou-se, com uma expressão doente no rosto longo.

— Ele o levou.

— Levou o quê?

— Eu pensei que ele estava falando do livro que tinha na mão, mas ele
levou aquele que você usou para me tornar seu familiar.

Fiz uma careta.

— Al escreveu o livro sobre como fazer de um humano um familiar? Bem


pode ficar com ele.

— Não — disse Nick, o rosto tenso e pálido. — Se ele o tem, como vamos
quebrar o feitiço?

Fiquei estupefata.
391

— Oh!

Não tinha pensado nisso.

Capitulo 25
O s o m b a i xo d e u m a m o t o m e f e z e r g u e r o s o l h o s d o m e u l i vr o .
Reconhecendo a cadência da moto de Kist, puxei os joelhos até o queixo,
aconcheguei os cobertores e apaguei o abajur da mesa de cabeceira. O vislumbre
392

negro do outro lado da janela de vitral aberta assumia uma tonalidade cinzenta,
mais clara. Ivy chegou em casa. Se Kist entrasse, eu ia fingir que estava dormindo
até ele ter saído. Mas a moto mal parou antes de voltar à estrada. Meus olhos
pousaram nos números verdes e brilhantes do meu relógio. Eram quatro da
manhã. Ela tinha chegado cedo.

Fechando o livro, mas mantendo o dedo no meio das páginas para marcá-
lo, fiquei à escuta dos seus passos no exterior. O frio ar noturno de setembro tinha
se acumulado no meu quarto. Se eu fosse esperta, levantaria e fecharia a janela,
Ivy de certo ligaria o aquecimento quando entrasse.

Agradecia tudo o que havia de mais sagrado por meu quarto fazer parte da
igreja original e cair sob a cláusula do solo sagrado: garantido para manter longe
vampiros mortos-vivos, demônios e sogras. Estaria segura na minha cama até o
Sol nascer. Ainda tinha de me preocupar com Kist. Mas ele não me tocaria
enquanto Ivy respirasse. Também não me tocaria se ela estivesse morta.

Um arrepio de inquietação me fez tirar o dedo do livro e pousá-lo na caixa


coberta com um pano que estava usando como mesa. Ivy ainda não tinha entrado.
Tinha sido a moto de Kist que ouvi no acesso. Fiquei à escuta durante mais uns
segundos, esperando pelos passos suaves de Ivy ou pelo fechar da porta da igreja.
Mas tudo o que ouvi foi o som de alguém vomitando, através da noite fria e
silenciosa.

— Ivy — sussurrei, descobrindo-me.

Gelada, saltei da cama, agarrei o roupão, enfiei os pés nos chinelos cor-de-
rosa felpudos e saí para o corredor. Parando, de repente, virei para trás. Erguendo-
me em frente à cômoda de madeira compensada, movi os dedos sobre as sombras
arredondadas dos frascos de perfume.

Escolhendo aquele que tinha encontrado entre os restantes no dia anterior,


apliquei-o num gesto impaciente. O aroma de citrinos ergueu-se, límpido e forte, e
eu pousei o frasco, derrubando cerca de metade dos restantes com um ruído seco.
Sentindo-me irreal e desorientada, quase corri através da igreja vazia, agarrando o
robe enquanto avançava. Esperava que aquele funcionasse melhor que o anterior.

O som forte de um bater de asas avisou-me que Jenks acabava de descer do


teto. Estanquei de repente enquanto ele parava à minha frente. Estava brilhando,
negro. Fiquei em choque. Ele estava brilhando negro.
393

— Não vá lá fora — disse ele, com um medo espesso na voz aguda. — Saia
pelos fundos. Suba num ônibus. Vai para a casa de Nick.

Meu olhar passou por ele, dirigindo-se para a porta, enquanto ouvia Ivy
vomitando de novo, o som dos vômitos horríveis misturando-se com pesados
soluços.

— O que aconteceu? — perguntei, assustada.

— Ivy teve um deslize.

Deixei-me ficar onde estava sem compreender.

— O quê?

— Ela teve um deslize — repetiu ele. — Esteve bebendo o sumo vermelho.


Esteve a provar o vinho. Voltou a praticar, Rachel. E está completamente perdida.
Vai. Minha família está à sua espera junto ao muro mais distante. Leve-os para
casa de Nick por mim. Eu vou ficar aqui e mantê-la vigiada. Para ter a certeza de
que ela... — olhou de relance para a porta. — Vou garantir que ela não vá atrás de
você.

O som de Ivy vomitando cessou. Deixei-me ficar, de pijama e robe, no meio


do santuário, à escuta. O medo entranhou-se em mim juntamente com a quietude,
instalando-se no meu estômago. Ouvi um pequeno ruído que cresceu até se
transformar num choro constante e suave.

— Dá licença — sussurrei, contornando Jenks. Meu coração batia com força


e os joelhos estavam fracos, enquanto empurrava um dos lados da pesada porta.

A luz do poste era suficiente para ver. Embrenhada nas sombras profundas
lançadas pelos carvalhos, Ivy jazia nas suas roupas de couro, meio deitada sobre
os dois primeiros degraus da igreja, abandonada à sua sorte. O vômito, gelatinoso
e escuro, estava espalhado pelos degraus, pingando para a calçada em pequenos
montes xaroposos e horríveis. O cheiro enjoativo de sangue era espesso,
sobrepondo-se ao meu perfume citrino.

Pegando na bainha do robe, desci os degraus com uma calma nascida do


medo.

— Rachel! — gritou Jenks, as asas batendo ruidosamente. — Não pode


ajudá-la. Vá embora!
394

Hesitei, enquanto me erguia sobre Ivy, suas longas pernas abertas e o


cabelo grudento com o vômito negro. Seus soluços tinham se tornado silencioso,
abanando os ombros. Deus me ajudasse a ultrapassar isso.

Prendendo a respiração, segurei-a pelas costas, agarrando-a por baixo dos


braços e tentando pô-la de pé. Ivy tremeu ao sentir o meu toque. Pareceu
recuperar a razão por breves momentos. Tentando concentrar-se, colocou os pés
sob o corpo para tentar ajudar.

— Eu disse que não — disse ela, a voz estalando. — Eu disse que não.

Senti o estômago apertado perante o som da sua voz, desconcertada e


confusa. O cheiro ácido do vômito ficou preso na minha garganta. Sobre ele
erguia-se o cheiro rico da terra revirada, misturado com seu normal cheiro de
cinza queimada. Jenks esvoaçava à nossa volta enquanto ela se levantava. O pó de
pixy caía dele, formando uma nuvem brilhante.

— Cuidado — sussurrou ele, primeiro do meu lado esquerdo e depois do


direito. — Tem cuidado. Não posso pará-la se ela te atacar.

— Ela vai não me atacar — disse eu, a raiva mesclando-se com o medo
numa mistura nauseante. — Ela não teve um deslize. Escute-a. Alguém a forçou.

Ivy gemeu quando chegamos ao último degrau. Sua mão tocou na porta
para se apoiar e ela saltou como se tivesse sido queimada. Como um animal,
afastou-se de mim, arranhando-me. Arquejando, caí para trás de olhos abertos. O
crucifixo dela tinha desaparecido.

Ivy erguia-se à minha frente, no patamar da igreja, com a tensão tornando-a


mais alta. Fitou-me e fiquei gelada. Seus olhos negros estavam vazios. Depois
brilharam com uma fome voraz e ela atacou-me. Eu não tive qualquer chance. Ivy
agarrou-me pelo pescoço, prendendo-me contra a porta da igreja.

Senti uma descarga de adrenalina que me percorreu num assalto doloroso.


A mão dela era como uma pedra quente sob meu queixo. Inspirei uma última vez,
emitindo um som horrível. Tinha os dedos dos pés roçando na pedra do degrau;
estava pendurada. Aterrorizada, tentei chutá-la para me libertar, mas ela
encostou-se a mim e eu podia sentir o calor do seu corpo através do meu robe.
Sentindo os olhos saltando das órbitas, puxei os dedos que me envolvia o pescoço.
Enquanto lutava para respirar, observei os olhos de Ivy. Estavam completamente
negros sob a luz do poste. Medo, desespero, fome... Tudo misturado. Nada
daquilo era ela. Nada de nada.
395

— Ele ordenou-me que o fizesse — disse ela, a voz suave como uma pena,
num contraste chocante com o rosto contorcido, aterrorizante na sua fome
absoluta. — Eu respondi que não o faria.

— Ivy — disse eu, com a voz rouca, conseguindo por fim inspirar. — Me
põe no chão.

Uma vez mais emiti aquele ruído horrível, quando ela me apertou com
mais força.

— Assim não! — guinchou Jenks. — Ivy! Você não quer fazer isto!

Os dedos no meu pescoço apertaram com mais força. Meus pulmões


lutavam para respirar, um fogo ardia no meu interior, enquanto tentavam se
encher de ar. O negrume nos olhos de Ivy cresceu à medida que meu corpo
começava a ceder. Em pânico, procurei pela minha linha Ley. A desorientação da
ligação atravessou o caos quase sem ser notada. Com a cabeça rodando devido à
f a l t a d e o xi g ê n io , d ei xe i qu e o po d e r e xp l o di s s e a t r a vé s d e m i m
descontroladamente.

Ivy foi atirada para trás. Caí de joelhos, no preciso momento em que a mão
que ela tinha ao redor do meu pescoço se afastou. Recuperei o fôlego num arquejo
rouco. Senti uma dor transpassar-me até ao crânio quando meus joelhos bateram
no pavimento de pedra. Tossi, levando a mão à garganta. Inspirei uma vez, depois
outra. Jenks era um borrão de verde e negro. As manchas pretas que dançavam à
minha frente encolheram e desapareceram.

Ergui os olhos e descobri Ivy, enroscada em posição fetal contra as portas


fechadas. Cobriu a cabeça com os braços, como se tivesse sido espancada e
embalava-se.

— Eu disse que não. Eu disse que não. Eu disse que não.

— Jenks — disse eu, com a voz rouca, observando-a através das mechas do
meu cabelo. — Vai buscar Nick.

O pixy parou, esvoaçando sobre mim, enquanto eu me erguia cambaleante.

— Não vou sair daqui.

Levei a mão ao pescoço, sentindo-o enquanto engolia.

— Vai buscá-lo, se ele já não estiver a caminho. Deve ter me sentido usando
aquela linha.
396

O rosto de Jenks estava sério.

— Devia fugir. Fugir enquanto pode.

Abanando a cabeça, observei Ivy, sua autoconfiança estilhaçada por


completo, enquanto se embalava e chorava. Não iria embora. Não podia virar as
costas só porque era mais seguro. Ela precisava de ajuda e eu era a única pessoa
que tinha chance de sobreviver a isso.

— Para o diabo com isso tudo! — gritou Jenks. — Ela vai te matar!

— Vamos ficar bem — disse eu, enquanto me dirigia à ela. — Vá buscar


Nick. Por favor. Preciso da ajuda dele.

A intensidade das suas asas aumentava e diminuía ao ritmo da sua


indecisão visível. Por fim acenou e partiu. O silêncio da sua ausência fez-me
pensar na quietude de um quarto imundo de um pequeno hospital, quando os
dois doentes que o partilham ficam reduzidos a um. Engolindo em seco, apertei o
cinto do robe.

— Ivy — sussurrei. — Vamos, Ivy, vou te levar para dentro.

Tentando acalmar-me, estendi um braço e pousei uma mão trêmula sobre o


seu ombro, afastando-me quando ela tremeu.

— Fuja — sussurrou ela, enquanto parava de se embalar, caindo numa


quietude tensa.

Meu coração saltou quando ela olhou para mim, os olhos vazios e o cabelo
desgrenhado.

— Fuja — repetiu ela. — Se fugir, saberei o que fazer.

Tremendo, obriguei-me a permanecer imóvel, não querendo despertar os


seus instintos. Seu rosto ficou flácido e, com um súbito enrugar da testa, um anel
de castanho surgiu nos seus olhos.

— Oh, Deus! Ajude-me, Rachel — chorou ela. Aquilo me assustou como o


diabo.

Minhas pernas tremiam. Eu queria fugir. Queria deixá-la nos degraus da


igreja e partir. Ninguém me censuraria se o fizesse. Mas, em vez disso, estendi o
braço e coloquei as mãos nas suas axilas, erguendo-a.
397

— Vamos — sussurrei enquanto a puxava para que se levantasse. Todos os


meus instintos gritavam que a largasse quando sua pele quente tocou na minha. —
Vamos te levar para dentro.

Ivy pendia, mole, em minhas mãos.

— Eu disse que não — disse ela, as palavras começando a soar arrastadas.


— Eu disse que não.

Ivy era mais alta do que eu, mas meu ombro cabia bem sob o dela e,
suportando quase todo seu peso, abri a porta.

— Ele não me deu ouvidos — disse Ivy; praticamente incoerente, enquanto


eu a arrastava para dentro e fechava a porta atrás de nós, deixando o vômito e o
sangue do outro lado, nos degraus exteriores.

O negrume do foyer era sufocante. Comecei a andar, cambaleante, e a luz foi


se tornando mais forte à medida que penetrávamos no santuário. Ivy dobrou-se ao
meio, arfando e gemendo ao mesmo tempo. No meu robe tinha uma mancha
escura de sangue fresco e olhei com mais atenção.

— Ivy — disse eu. — Está sangrando.

Fiquei gelada quando seu novo mantra de "Ele disse que ia ficar tudo bem"
se transformou num riso descontrolado. Era um riso profundo, que provocava
arrepios e a minha boca ficou seca.

— Sim — disse ela, a palavra deslizando de si com um calor sensual. —


Estou sangrando. Quer provar? — o horror instalou-se em mim quando seu riso se
transformou num gemido soluçado. — Todos deviam provar — chorou ela. — Já
não interessa.

Cerrei o maxilar e apertei-lhe os ombros com mais força. Senti uma raiva
misturada com medo. Alguém a tinha usado. Alguém a tinha forçado a beber
sangue contra sua vontade. Estava desvairada, um toxicodependente descendo de
um momento de êxtase.

— Rachel? — disse ela, tremendo e abrandando o passo. — Acho que vou


vomitar...

— Estamos quase lá — disse eu com a voz séria. — Aguenta. Aguenta mais


um pouco.
398

Por pouco não chegávamos a tempo e eu segurei o cabelo de Ivy, repleto de


vômito, enquanto ela vomitava no vaso de porcelana negra. Espreitei por uma vez
sob o brilho da lâmpada noturna em forma de concha marinha. Depois fechei os
olhos, enquanto ela continuava a vomitar sangue espesso e negro sem parar. Os
soluços agitavam-lhe os ombros e, quando terminou, puxei a descarga querendo
livrar-me de tanto horror quanto possível. Estendi um braço para acender a luz e
um brilho rosado encheu o banheiro. Ivy estava sentada no chão com a testa
encostada ao vaso, chorando. As calças de couro estavam brilhantes com o sangue
que se estendia até os joelhos. Por baixo do casaco, a blusa de seda estava rasgada.
O tecido estava colado ao seu corpo, grudento do sangue que lhe escorria do
pescoço. Ignorando o aviso que senti dentro de mim, afastei-lhe cuidadosamente o
cabelo para ver.

S e n t i u m a p e r to n o e s tô m a g o . O p e s c o ç o p e r fe i t o d e I v y t i n h a s i d o
violentado, um longo rasgão marcando a alvura da sua pele. Ainda sangrava e
tentei não respirar sobre ele, senão poderia despertar a saliva de vampiro que
ainda permanecia lá. Assustada, deixei o cabelo cair e recuei. Em termos
vampíricos, ela tinha sido violada.

— Eu disse que não — repetiu ela, os seus soluços abrandando ao


compreender que eu já não estava em cima ela. — Eu disse que não.

Meu reflexo no espelho parecia branco e assustado. Respirei fundo para me


acalmar. Queria que tudo aquilo desaparecesse. Queria que tudo aquilo,
simplesmente, desaparecesse. Mas tinha de limpar o sangue.

Tinha de metê-la na cama com uma almofada para chorar. Tinha de lhe
arranjar uma xícara de chocolate quente e um psiquiatra muito bom. Será que
existiam psiquiatras para vampiros maltratados? — perguntei-me enquanto
pousava a mão no ombro dela.

— Ivy — chamei, com voz suave. — Está na hora de te limpar — olhei para a
banheira dela onde o peixe idiota continuava nadando. Ela precisava de um
banho de chuveiro, não de um banho de imersão em que ficasse sentada na
mesma sujeira que tinha de tirar do corpo. — Vamos, Ivy — encorajei-a. — Um
banho rápido no meu banheiro. Vou buscar sua camisola. Vamos...

— Não — protestou ela, os olhos desfocados, incapaz de ajudar enquanto


eu a puxava para que se levantasse. — Não conseguiu parar. Eu disse que não. Por
que ele não parou?
399

— Não sei — murmurei, sentindo a raiva a crescer dentro de mim. Suportei


seu peso, atravessando o corredor até o meu banheiro. Acendendo a luz com o
cotovelo, deixei-a de pé, apoiada na máquina de lavar e secar, e fui abrir a
torneira.

O som da água pareceu reanimá-la.

— Cheiro mal — suspirou ela com um olhar vazio, fitando a si mesma.

Recusava-se a olhar para mim.

— Consegue tomar banho sozinha? — perguntei, esperando despertar


alguma emoção.

De rosto vazio e flácido, olhava para si própria, vendo-se coberta de sangue


coagulado e vomitado. Senti um aperto no estômago quando ela tocou no sangue
brilhante com um dedo cuidadoso e o lambeu. A tensão acumulou-se nos meus
ombros até doer. Ivy recomeçou a chorar.

— Três anos — disse ela, num suave suspiro, as lágrimas escorrendo pelo
seu rosto oval até ter passado as costas da mão pelo queixo, deixando uma
mancha de sangue. — Três anos...

De cabeça baixa levou a mão ao zíper das calças e eu lancei-me para a porta.

— Vou te fazer uma xícara de chocolate quente — disse eu, sentindo-me


absolutamente incompetente. Hesitei. — Vai ficar bem durante alguns minutos?

— Sim — sussurrou ela, e eu fechei a porta, suavemente, atrás de mim.


Sentindo-me leve e irreal, dirigi-me à cozinha. Acendi a luz, envolvendo meu
corpo com os braços, ouvindo o vazio do cômodo. A mesa improvisada de Ivy —
com sua tecnologia prateada que cheirava levemente a ozônio — parecia
estranhamente certa ao lado dos meus brilhantes caldeirões de cobre, das minhas
colheres de cerâmica e das ervas que tinha penduradas numa armação sobre a
ilha. A cozinha estava cheia de nós duas, cuidadosamente separadas pelo espaço,
mas contida pelas mesmas paredes. Queria chamar alguém, gritar, resmungar,
pedir ajuda. Mas todos me diriam que a deixasse e fosse embora.

Meus dedos tremeram enquanto fui buscar, mecanicamente, o leite e o


chocolate e comecei a fazer uma bebida para Ivy. Chocolate quente — pensei
amargamente. Alguém tinha violado Ivy e tudo o que eu podia fazer era uma
maldita caneca de chocolate quente.
400

Só podia ter sido Piscary. Só Piscary era suficientemente forte ou arrojado


para violá-la. E tinha sido uma violação. Ela disse que parasse. Ele a tomou contra
sua vontade. Tinha sido uma violação.

O cronômetro do microondas apitou e eu apertei o laço do meu robe. Meu


rosto gelou quando vi o sangue sobre ele e sobre os meus chinelos, em parte negro
e coagulado, em parte fresco e vermelho, o do pescoço dela. O primeiro fumegava.
Era sangue de um vampiro morto-vivo. Não era de admirar que Ivy fedesse. Devia
estar ardendo dentro dela. Ignorando o cheiro fétido do sangue cauterizado,
preparei resolutamente o chocolate quente de Ivy, levando-lhe para o quarto
enquanto o chuveiro continuava ligado.

A luz da sua mesa de cabeceira encheu o quarto cor-de-rosa e branco de um


brilho suave. O quarto de Ivy estava tão distante de um covil de vampiro como seu
banheiro. As cortinas de couro usadas para bloquear a luz da manhã estavam
escondidas atrás de cortinas brancas. Molduras de metal com fotografias dela, da
mãe, do pai, da irmã e das suas vidas enchiam toda uma parede, dando a sensação
de um altar. Eram fotografias granuladas, tiradas junto à árvore de Natal, com
robes, sorrisos e cabelos despenteados. Férias em frente de montanhas-russas, com
narizes queimados pelo sol e chapéus de abas largas. O nascer do Sol numa praia,
os braços do pai em volta de Ivy e da irmã, protegendo-as do frio. As fotografias
mais recentes estavam mais focadas e tinham cores mais brilhantes, mas achei-as
menos belas. Os sorrisos tinham se tornado mecânicos. O pai dela parecia cansado.
Havia uma nova distância entre Ivy e a mãe. Nas mais recentes a mãe nem sequer
aparecia.

Virando as costas à parede, puxei para baixo a suave manta que cobria a
cama de Ivy, expondo o cetim negro que cheirava a cinza de madeira. O livro
sobre a sua mesa de cabeceira versava sobre a meditação profunda e a forma de
atingir estados alterados de consciência. Minha raiva aumentou. Ela tinha tentado
tão arduamente e, agora, tinha voltado à estaca zero. Por quê? Para que tinha sido
tudo aquilo?

Deixando a caneca de chocolate quente ao lado do livro, atravessei o


corredor para me livrar do robe ensanguentado. Com os movimentos acelerados
pela adrenalina, escovei o cabelo e vesti um par de calças jeans e o meu top preto
sem costas, a coisa limpa mais quente que tinha, pois ainda não tinha trazido as
roupas de inverno do armazém. Deixando o robe e os chinelos fumegantes, numa
horrenda pilha no chão, avancei descalça através da igreja indo buscar a camisola
na parte de trás da porta do banheiro dela.
401

— Ivy? — chamei, batendo, hesitante, à porta do meu banheiro, ouvindo


apenas água correndo. Não houve qualquer resposta e, por isso, voltando a bater,
empurrei a porta. Uma névoa pesada embaçava tudo, enchendo meus pulmões e
fazendo-os parecer pesados. — Ivy? — voltei a chamar, sentindo-me assolada pela
preocupação. — Ivy, está bem?

Descobri-a no chão do chuveiro, enrolada numa confusão de pernas e


braços compridos. A água caía sobre sua cabeça inclinada, o sangue do pescoço
desenhando um fino riacho até o ralo. Um reflexo vermelho mais claro coloria o
fundo do chuveiro, vindo das suas pernas. Fitei-o fixamente, incapaz de afastar o
olhar. A parte de dentro das suas coxas estava coberta de arranhões profundos.
Talvez também se tivesse tratado de violação no sentido tradicional.

Pensei que ia vomitar. O cabelo de Ivy estava colado a ela. A pele estava
branca e os braços e pernas abertos num ângulo estranho. As duas pulseiras que
usava no tornozelo brilhavam, negras, contra a alvura da sua pele, conferindo-lhes
o aspecto de correntes. Ela tremia, embora a água estivesse escaldando, os olhos
fechados e o rosto contorcido numa memória que a assombraria para o resto da
vida e da morte. Quem disse que o vampirismo era glamoroso? Tratava-se de uma
mentira, uma ilusão usada para esconder a feia realidade.

Inspirei fundo.

— Ivy?

Os olhos dela abriram-se de repente e saltei para trás.

— Não quero continuar pensando — disse ela suavemente, sem pestanejar,


embora a água jorrasse sobre o seu rosto. — Se te matar, não terei de fazê-lo.

Tentei engolir.

— Devo ir embora? — sussurrei, mas sabia que ela podia me ouvir.

Os olhos dela fecharam-se e seu rosto tornou-se tenso. Puxando os joelhos


até o queixo para cobrir o corpo, passou os braços ao redor das pernas e
recomeçou a chorar.

— Sim.

Tremendo por dentro, estiquei-me sobre ela e fechei a o chuveiro. Senti a


toalha de algodão áspera nas pontas dos meus dedos, enquanto a agarrava, e
hesitei.
402

— Ivy? — disse eu, assustada. — Não quero te tocar, por favor, levanta.

Com as lágrimas misturando-se silenciosamente com a água, levantou-se e


pegou a toalha. Depois de ter me prometido que se secaria e vestiria, peguei as
roupas dela ensopadas em sangue, bem como meus chinelos e meu robe, e
atravessei a igreja para largá-los nos fundos. O cheiro de sangue queimado fazia-
me revolver o estômago como incenso de má qualidade. Eu as enterraria no
cemitério, mais tarde.

Descobri-a enroscada na cama, quando regressei, o cabelo molhado


ensopando a almofada e a caneca de chocolate quente intacta sobre a mesa de
cabeceira. Tinha o rosto voltado para a parede e não se mexia. Cobri-a com a
manta que estava aos pés da cama e ela tremeu.

— Ivy? — disse eu, depois hesitei sem saber o que fazer.

— Eu disse que não — repetiu ela, a voz como um sussurro, como seda
cinzenta rasgada esvoaçando para cair sobre a neve.

Sentei-me sobre o baú forrado de tecido que se encontrava encostado à


parede. Piscary. Mas não pude dizer o nome dele com medo de despertar
qualquer reação.

— Kist levou-me até ele — disse ela, as palavras com a cadência de uma
memória repetida.

Tinha cruzado os braços sobre o peito, só os dedos eram visíveis, agarrando


os ombros. Fiquei branca ao ver aquilo que deveria ser carne sob suas unhas e
puxei o cobertor mais para cima, para escondê-lo.

— Kisten levou-me para vê-lo — repetiu ela, as palavras lentas e


deliberadas. — Ele estava zangado. Ele disse que estava causando problemas. Eu
disse que não ia machucá-lo, mas ele estava zangado. Ele estava tão zangado
comigo.

Aproximei-me mais, não gostando daquilo.

— Ele disse — sussurrou Ivy, a voz quase inaudível —, que se eu não


conseguisse te sujeitar, ele o faria. Eu tinha dito que te tornaria no meu delfim, que
você se portaria bem e que ele não teria de te matar, mas não consegui fazê-lo — a
voz dela tornou-se mais aguda, quase histérica. — Você não quis e é suposto ser
um presente. Lamento. Lamento muito. Tentei dizer — continuou ela, voltada
para a parede. — Eu tentei te manter viva, mas ele quer te ver. Ele quer falar
403

contigo. A menos que... — seus tremores cessaram. — Rachel? Ontem... Quando


você pediu desculpa, foi por ter pensado que tinha me levado longe demais ou foi
por ter dito que não?

Inspirei fundo para responder, chocada, quando senti as palavras presas na


garganta.

— Quer ser o meu delfim? — sussurrou ela, mais suavemente do que uma
oração culpada.

— Não — suspirei, absolutamente aterrorizada.

Ela começou a tremer e compreendi que estava chorando outra vez.

— Eu também disse que não — disse ela, por entre golfadas de ar. — Eu
disse que não, mas ele fez assim mesmo. Acho que estou morta, Rachel. Estou
morta? — perguntou ela, as lágrimas parando de correr com seu medo súbito.

Eu tinha a boca seca e envolvi o corpo com os braços.

— O que aconteceu?

A respiração de Ivy regressou, emitindo um som rápido, e ela prendeu-a


por um momento.

— Ele estava zangado. Ele disse que eu tinha falhado. Mas disse que ia ficar
tudo bem. Que eu era a filha do seu coração e que ele me amava, que me
perdoava. Ele disse-me que compreendia tudo sobre animais de estimação. Que já
os tinha tido, mas que eles tinham se virado sempre contra ele e que teve de matá-
los. Magoava-o quando eles o traíam. Disse que, se eu não conseguisse te colocar
em segurança, ele o faria por mim. Eu disse que o faria, mas ele sabia que estava
mentindo — emitiu um gemido assustado. — Ele sabia que eu estava mentindo.

Eu era um animal de estimação. Eu era um perigoso animal de estimação


que tinha de ser domado. Era isso que Piscary pensava de mim.

— Ele disse que compreendia minha necessidade de ter uma amiga em vez
de um animal de estimação, mas que não era seguro deixar-te como estava. Ele
disse que eu tinha perdido o controle e que as pessoas começavam a falar. Nessa
altura comecei a chorar, porque ele estava sendo tão bom para mim e eu o tinha
decepcionado — as palavras dela saíam em pequenos rompantes enquanto lutava
para pronunciá-las. — Fez-me sentar ao seu lado, abraçando-me enquanto
sussurrava o quanto estava orgulhoso de mim e me dizia que amou minha bisavó
404

quase tanto como me amava. Era tudo aquilo que eu queria — disse ela. — Que
ele tivesse orgulho em mim — emitiu uma gargalhada rouca e curta, dolorida. —
Ele disse que compreendia a necessidade de eu ter uma amiga — disse ela virada
para a parede, o rosto escondido atrás do cabelo. — Ele disse que tinha procurado,
durante séculos, alguém suficientemente forte para sobreviver com ele. Que minha
mãe, minha avó e minha bisavó tinham se revelado fracas, mas que eu tinha força
de vontade para sobreviver. Eu disse que não queria viver para sempre e ele
mandou eu me calar, dizendo-me que eu era sua escolhida, que ia ficar com ele
para sempre — os ombros dela tremeram sob a manta. — Ele abraçou-me,
acalmando meu receio do futuro. Ele disse que me amava e que estava orgulhoso
de mim. E, depois, pegou meu dedo e fez sangrar a si mesmo.

Senti os ácidos do meu estômago se erguerem e engoli-os. A voz dela tinha


se tornado apenas um sussurro e sua sede uma fita de aço escondido.

— Oh, Deus, Rachel! Ele é tão antigo. Era como eletricidade líquida,
acumulando-se dentro dele. Eu tentei partir. Eu desejava-o, mas ainda assim,
tentei partir mas ele não me deixou. Eu disse que não e depois corri. Mas ele
apanhou-me. Eu tentei lutar, mas não fez qualquer diferença. Depois implorei que
não o fizesse, mas ele segurou-me e obrigou-me a prová-lo.

A voz dela era rouca e, seu corpo tremia. Fui sentar-me na beira da cama,
horrorizada. Ivy ficou imóvel e eu esperei incapaz de olhar para seu rosto,
temendo fazê-lo.

— E depois eu já não podia pensar — disse ela, o som monótono da sua voz
chocando-me. — Acho que desmaiei por um momento. Eu desejava-o. O poder, a
paixão. Ele é tão antigo. Puxei-o para o chão e montei-o. Tomei tudo o que ele
tinha, enquanto ele se agarrava a mim, incitando-me a ir mais longe, a tirar mais. E
eu tirei, Rachel. Tirei mais do que devia ter tirado. Ele devia ter me impedido, mas
deixou-me tomá-lo todo.

Não conseguia me mexer, presa pelo terror de tudo aquilo.

— Kist tentou nos impedir. Tentou colocar-se entre nós, impedir que
Piscary me deixasse tirar muito, mas a cada gole eu perdia-me mais. Acho que...
Magoei Kist. Acho que o sujeitei. Tudo o que sei é que ele foi embora e Piscary... —
um som suave, repleto de prazer, enquanto ela repetia aquele nome. — Piscary
puxou-me de novo para cima dele — ela movia-se, langorosa, sob os lençóis
negros, de forma sugestiva. — Ele pressionou, suavemente, minha cabeça contra
405

ele e apertou-a mais, até eu ter certeza de que ele me queria e ter descoberto que
ele ainda tinha mais para dar.

Um suspiro rouco agitou-a e ela enroscou-se num nó apertado, a amante


saciada transformava-se numa criança maltratada.

— Tirei-lhe tudo. Ele deixou-me tirar tudo. Eu sabia o porquê de ele estar
me deixando fazê-lo e fiz assim mesmo.

Ela caiu em silêncio, mas eu sabia que ainda não tinha terminado. Não
queria ouvir mais, mas ela tinha de dizer ou isso a levaria lentamente à loucura.

— C o m c a d a g o l e , p o d i a se n t i r s u a f o m e cr e s ce n d o — d i sse e l a ,
sussurrando. — A cada vez que engolia, sua necessidade aumentava. Eu sabia o
que ia acontecer se não parasse, mas ele disse que não fazia mal e já tinha se
passado tanto tempo — ela quase gemeu. — Eu não queria parar. Eu sabia o que ia
acontecer e não quis parar. Foi por culpa minha. Culpa minha.

Reconheci a frase tão usada pelas vítimas de violação.

— A culpa não foi sua — disse eu, pousando a mão no seu ombro coberto.

— Foi sim — disse ela, e eu afastei-me quando sua voz se tornou baixa e
sensual. — Eu sabia o que ia acontecer e, quando eu lhe tirei tudo o que ele tinha,
Piscary pediu seu sangue de volta... Como eu sabia que ele ia fazer. E eu dei-lhe.
Eu queria fazê-lo e fiz. E foi fantástico.

Obriguei-me a respirar.

— Deus me ajude — sussurrou ela. — Eu estava viva. Há três anos que não
vivia. Eu era uma deusa. Eu podia dar a vida. Eu podia tirá-la. O vi pelo que ele
era e quis ser como ele. E, com seu sangue ardendo através de mim, como se fosse
meu, sua força inteiramente minha e, seu poder inteiramente meu, ardendo em
mim e arrastando-me para a verdade, feia e bela, da sua existência, ele pediu-me
que fosse seu delfim. Pediu-me que ficasse com o lugar de Kisten, disse que tinha
estado à espera da minha compreensão do que isso significava antes de me
oferecer e que, quando eu morresse, seria igual a ele.

Continuei a mover a mão sobre sua cabeça, em movimentos calmantes,


enquanto seus olhos se fechavam e seus tremores paravam. Ela estava ficando
sonolenta, o rosto perdendo a tensão e, a mente libertando-se do seu pesadelo,
descobrindo uma forma de lidar com ele. Perguntei-me se isso teria alguma coisa a
406

ver com o fato de o céu, do outro lado das cortinas, começar a iluminar-se com a
luz da madrugada que se aproximava.

— Eu fui com ele, Rachel — sussurrou ela, a cor começando a regressar aos
seus lábios. — Eu fui ter com ele e ele rasgou-me como um animal. Eu recebi a dor
de braços abertos. Seus dentes eram a verdade de Deus, cortando até à minha
alma. Ele violentou-me, descontrolado pela alegria de receber o seu poder de
volta, depois de ter dado de livre vontade. E eu regozijei-me com isso, mesmo
enquanto ele me machucava os braços e rasgava o pescoço.

Obriguei a minha mão a continuar seus movimentos.

— Doía — sussurrou ela, a sua voz como a de uma criança, enquanto suas
pálpebras se abriam e fechavam. — Ninguém tem saliva de vampiro suficiente
para transmutar tamanha dor e ele bebeu minha infelicidade e minha angústia
juntamente com meu sangue. Eu queria dar-lhe mais, provar minha lealdade,
provar que, embora tivesse falhado por não ter te domado, seria seu delfim. O
sangue tem gosto melhor durante o sexo — disse ela, com a voz fraca. — Os
hormônios tornam-no mais doce, por isso abri-me a ele. Ele disse que não, ainda
que gemesse por isso. Temia matar-me por engano. Mas eu provoquei-o até ele
n ã o co n se g u i r p a ra r. Eu q u e r i a a q u i l o . Eu q u e r i a a q u i l o , e m b o r a e l e me
machucasse. Ele tomou tudo, levando-nos ao clímax, no preciso momento em que
me matava — ela tremeu, fechando os olhos. — Oh, Deus, Rachel! Acho que ele
me matou.

— Não está morta — sussurrei, sentindo-me assustada porque não tinha


certeza. Ela não podia estar numa igreja se estivesse morta, certo? A menos que
ainda estivesse em transição. Aquele período de tempo em que os processos
químicos se alteram não tem regras fixas. Que raio estava eu fazendo?

— Acho que ele me matou — repetiu ela, a voz começando a arrastar-se,


enquanto adormecia. — Acho que me matei — a voz dela tornou-se ainda mais
infantil. As pálpebras abriam-se e fechavam-se. — Estou morta, Rachel? Tomará
conta de mim? Garantirá que o sol não me queime enquanto durmo? Me manterá
em segurança?

— Shh — sussurrei, assustada. — Dorme, Ivy.

— Não quero estar morta — murmurou ela. — Cometi um erro. Não quero
ser o delfim de Piscary. Quero ficar aqui contigo. Posso ficar aqui contigo? Toma
conta de mim?
407

— Calma — murmurei, passando a mão pelo cabelo dela. — Dorme.

— Cheira bem... Cheira a laranja — sussurrou ela, fazendo acelerar minha


pulsação, mas pelo menos não cheirava como ela.

Continuei a mexer a mão, até a respiração dela se tornar mais lenta e


profunda. Perguntei-me se, ao adormecer, esta cessaria. Não tinha certeza de que
Ivy ainda estivesse viva.

Meu olhar prendeu-se na janela de vitral, a madrugada começando a


revelar-se ao redor dos seus limites. Em breve, o Sol se ergueria nos céus e eu não
sabia nada sobre o momento em que os vampiros atravessavam para o outro lado
a não ser que tinham de se encontrar dois metros debaixo da terra ou numa
divisão vedada à luz. Isso, e que tinham fome no pôr-do-sol seguinte. Oh, Deus! E
se Ivy estiver morta?

Olhei para a caixinha de joias sobre a cômoda de mogno onde se encontrava a


pulseira "Em caso de morte" que ela se recusava a usar. Ivy tinha um bom
seguro. Se eu ligasse para o número gravado na pulseira de prata, passados
exatamente cinco minutos chegaria uma ambulância que a levaria para um bom
buraco debaixo da terra, permitindo que ela voltasse a emergir, quando caísse a
escuridão, como uma bela morta-viva renascida.

Senti o estômago rodar e levantei-me para ir ao meu quarto buscar minha


cruz pequenina. Se ela estivesse morta, haveria alguma reação, mesmo que
estivesse em transição. Desmaiar numa igreja era uma coisa; ter uma cruz
abençoada tocando na pele era outra.

Sentindo náuseas, regressei. Com os amuletos chocalhando, sustentei a


respiração e passei minha pulseira sobre Ivy. Não houve qualquer resposta.
Aproximei a cruz por trás do ouvido, respirando com mais facilidade quando
reparei que continuava não havendo qualquer reação. Pedindo silenciosamente
seu perdão caso estivesse errada, toquei com a cruz na pele dela. Não se mexeu; a
pulsação, visível no seu pescoço, mantinha-se lenta e calma. A pele dela, quando
afastei a cruz, estava branca e intacta.

Endireitei-me, dizendo uma oração silenciosa. Não pareceu que estivesse


morta. Lentamente, saí do quarto de Ivy, fechando a porta atrás de mim. Piscary
tinha violado Ivy por um motivo. Ele sabia que eu tinha percebido tudo. Ivy disse-
me que ele queria falar comigo. Se eu ficasse dentro da minha igreja, ele iria atrás
408

da minha mãe, depois de Nick e, provavelmente, ainda conseguiria encontrar meu


irmão.

Meus pensamentos regressaram a Ivy, enroscada sob suas cobertas, naquele


sono induzido pelo choque. Minha mãe seria a próxima. E morreria sem sequer
saber que estava sendo torturada. Tremendo por dentro, dirigi-me à sala de estar,
em busca do telefone. Meus dedos tremiam de tal forma que tive de marcar o
número duas vezes. Foram necessários três preciosos minutos de discussão para
conseguir falar com Rose.

— Lamento, senhorita Morgan — disse a mulher, a voz tão politicamente


correta que poderia congelar um ovo. — O capitão Edden não está disponível e o
detetive Glenn deixou ordens para que não o perturbassem.

— Não queria ser... — gaguejei. — Escute. Eu sei quem os matou. Temos de ir


lá agora. Antes que ele mande alguém atrás da minha mãe.

— Lamento, senhorita Morgan — disse a mulher educadamente. — Já não é


nossa consultora. Se quer apresentar queixa ou reportar uma ameaça de morte,
por favor, mantenha-se em linha que eu transfiro-a de novo para a recepção.

— Não! Espere! — implorei. — Não compreende. Deixe-me só falar com


Glenn.

— Não, Morgan — a voz calma e razoável de Rose tornara-se de súbito


espessa, carregada com uma raiva inesperada. — É você que não compreende.
Aqui ninguém quer falar com você.

— Mas eu sei quem é o caçador de bruxas! — exclamei e a ligação foi


interrompida. — São uns idiotas chapados! — gritei, atirando o telefone para o
outro lado da sala. Este bateu contra a parede, perdendo a parte de trás e lançando
as pilhas para o chão. Frustrada, entrei de bruscamente na cozinha, espalhando as
canetas de Ivy sobre a mesa, enquanto tentava agarrar uma. Com o coração
batendo descompassado, escrevi um bilhete que colaria na porta da igreja.

Nick vinha a caminho, Glenn falaria com Nick. Ele os convenceria de que
eu tinha razão, diria onde eu tinha ido. Eles iriam, nem que fosse para me prender
por ter interferido. Teria dito que ligasse para a SI, mas o mais certo era que
Piscary os tivesse no bolso. Embora os humanos tivessem quase tantas hipóteses
de vencer um mestre vampiro como eu, talvez a simples interrupção fosse
suficiente para salvar meu traseiro.
409

Virando-me, levei a mão ao armário, tirando os amuletos dos seus ganchos


e enfiando-os na minha bolsa. Abri uma gaveta com um puxão e tirei do seu
interior três estacas de madeira. Acrescentei o grande facão de açougueiro que
retirei do suporte das facas. Seguiu-se minha arma de bolas explosivas, carregada
com os feitiços mais fortes que uma bruxa branca podia ter: a poção "hora de
dormir". Do balcão da ilha tirei um frasco de água benta. Pensando por um
instante, tirei a tampa, dei um gole, voltei a fechá-lo e depois o enfiei na bolsa com
os restantes objetos. A água benta não valia muito, a não ser que fosse a única
coisa que se tivesse bebido durante os últimos três dias, mas eu aceitaria qualquer
ajuda que pudesse encontrar.

Sem abrandar, saí para o corredor em busca das minhas botas. Calcei-as e
dirigi-me para a porta da frente, com os cadarços batendo. Parando de repente no
corredor, dei meia-volta, regressando à cozinha. Agarrei uma mão-cheia de trocos
para o ônibus e parti. Piscary queria falar comigo? Ótimo. Eu queria falar com ele.

Capitulo 26
O ônibus estava lotado, às cinco da manhã. Na sua maioria, eram vampiros
vivos e humanos desejosos de serem vampiros, a caminho de casa, regressando às
410

suas tristes existências. Todos me olhavam de lado. Podia ser pelo fato de eu feder a
água benta. Podia ser pelo fato de eu estar com um péssimo aspecto, aquecendo-
me com meu horrível e pesado sobretudo de inverno — com pêlo falso ao redor
do colarinho — que eu vesti para que o motorista não me reconhecesse, o que faria
com que se recusasse a parar. Mas apostava que eram as estacas.

Com o rosto tenso, desci do ônibus em frente ao restaurante Piscary's.


Deixei-me ficar no mesmo local em que meus pés tocaram, na calçada, e esperei
e n q u a n to a p o r ta s e f e c h a v a e o ô n i b u s s e a fa s t a v a . L e n t a m e n t e , o s o m
desvaneceu-se, fundindo-se com o zumbido de fundo do trânsito matinal que
aumentava gradualmente. Com os olhos semicerrados, olhei diretamente para o
céu que começava a clarear. A névoa da minha respiração obscurecia o azul pálido
e instável. Perguntei-me se aquele seria o último céu que veria. Em breve seria de
madrugada. Se eu fosse inteligente, esperaria que o Sol se erguesse no céu, antes
de entrar.

Obriguei-me a andar. O edifício de Piscary tinha dois pisos e as janelas


estavam escuras. O iate ainda estava preso no cais e a água batia suavemente
c o n t r a e l e . H a vi a p o u c o s c a r r o s n o s l i m i t e s e x t e r i o r e s d o p a r q u e d e
estacionamento — provavelmente dos empregados. Enquanto andava, fiz rodar
minha sacola. Retirando as estacas do seu interior, joguei-as fora — o som rude
que emitiram ao bater no asfalto chocou meus ouvidos. Tê-las trazido tinha sido
idiotice. Como se eu conseguisse espetar uma estaca num vampiro morto-vivo. A
arma de bolas explosivas que tinha presa na cintura das calças, atrás das costas,
também era, provavelmente, um gesto fútil, já que tinha certeza de que seria
revistada antes que me levassem a Piscary. O mestre vampiro disse que queria
falar comigo, mas seria tola se pensasse que ele se ficaria ali. Se quisesse me
encontrar com ele na posse de todos os meus feitiços e encantamentos, teria de
entrar lutando. Se deixasse que levassem tudo aquilo que tinha, chegaria junto a
ele incólume, mas muito indefesa.

Abri o frasco de água benta e bebi-a, despejando as últimas gotas nas mãos e
salpicando com elas o pescoço. A garrafa vazia caiu no chão, matraqueando,
atrás das estacas. Avancei determinada, com minhas botas silenciosas — o medo
pela minha mãe e a raiva pelo que ele tinha feito à Ivy, mantendo meus pés em
movimento. Se fossem muitos, entraria sem quaisquer amuletos. Nick e o DFI
eram meu ás na manga.

Sentia o estômago apertado quando empurrei a pesada porta da frente. A


tênue esperança de que não estivesse ninguém no seu interior desvaneceu-se
411

quando meia dúzia de pessoas ergueram os olhos do seu trabalho, todas elas
vampiros vivos. O pessoal humano já tinha partido. Estava disposta a apostar que
os belos humanos aduladores — repletos de cicatrizes — tinham ido para casa
com seus clientes preferidos.

As luzes estavam no máximo, enquanto o pessoal limpava — a sala grande


com suas paredes forradas de troncos imitando uma cabana, tinha parecido
misteriosa e excitante, mas parecia, agora, simplesmente suja e cansada. Mais ou
menos como eu. A parede de vidro fosco que me chegava ao ombro e que dividia a
sala estava partida. Uma mulher pequena, cujo cabelo lhe chegava à cintura,
estava varrendo os pedaços de verde e dourado em direção à parede. Ela parou e
apoiou-se na vassoura quando eu entrei. Sentia um sabor estranho no fundo da
garganta, rico e enjoativo. Meus pés hesitaram quando compreendi que os
feromônios vampíricos eram tão espessos que os podia saborear.

Pelo menos Ivy tinha lutado — pensei, compreendendo que a maior parte dos
vampiros tinha uma cicatriz ou uma ferida e que todos eles, com exceção do
vampiro sentado junto ao bar, estavam de mau humor. Um deles tinha sido
mordido, o pescoço aberto e o uniforme rasgado junto ao colarinho. Sob a luz forte
da manhã, seu glamour e a sua tensão sensual tinham desaparecido, deixando
apenas uma deformidade cansada. Meus lábios contorceram-se numa careta de
desagrado. Vendo-os assim, eram repugnantes. No entanto, a cicatriz no meu
pescoço começou a pulsar.

— Ora, veja quem apareceu — disse o vampiro sentado no bar, com a voz
arrastada. Seu uniforme era mais elaborado do que o dos restantes e tirou o crachá
com o nome quando viu os meus olhos presos nele. Dizia SAMUEL — aquele era o
vampiro que tinha deixado Tarra servir no andar de cima na noite em que
tínhamos ido ali. Samuel levantou-se, inclinando-se para tocar num botão atrás do
balcão. O sinal de ABERTO atrás de mim apagou-se. — É Rachel Morgan? —
perguntou ele, sua confiante voz de vampiro, lenta e paternalista.

Agarrando minha bolsa, avancei, arrojada, para além do sinal que dizia
AGUARDE POR UM EMPREGADO. Sim, eu era a garota má.

— Sou — disse, desejando que houvesse menos mesas.

Meus passos abrandaram, enquanto a cautela ultrapassava a raiva. Tinha


quebrado a regra número um: tinha entrado ali zangada. As coisas até podiam
correr bem, se não tivesse quebrado a segunda regra mais importante: nunca
confrontar um vampiro morto-vivo no seu próprio território.
412

Os empregados estavam nos observando e minha pulsação acelerou


quando Samuel se dirigiu à porta e a trancou. Voltando-se, atirou o molho de
chaves para o outro lado da sala, num gesto casual. Uma figura que se encontrava
junto à lareira apagada ergueu o braço e eu reconheci Kisten, invisível nas
sombras até ter se movido. As chaves bateram, tilintando, na palma da mão de
Kisten e desapareceram. Não sabia se devia estar zangada com ele ou não. Ele
tinha largado Ivy e tinha ido embora, mas também tentou fazê-los parar.

— É com isso que Piscary está preocupado? — disse Samuel, o rosto lindo,
sorrindo cínico. — Que coisinha tão magra. Não é grande coisa na parte de cima
— dirigiu-me um olhar lascivo. — Ou na de baixo. Pensei que fosse mais alta.

Estendeu um braço na minha direção. Movendo-me, de repente, desferi um


golpe sentindo meu pulso bater contra a palma da sua mão aberta. Torcendo meu
pulso, agarrei no dele. Puxei-o para frente na direção do meu pé erguido. A
respiração fugiu-lhe quando lhe acertei no estômago, fazendo-o cair para trás.
Segui-o até ao chão, dando-lhe um murro na virilha antes de me levantar.

— E eu pensei que fosse mais esperto — disse eu, recuando enquanto ele se
contorcia no chão, arquejando.

Provavelmente aquela não tinha sido a coisa mais inteligente. Largando


seus panos e as suas vassouras, os empregados convergiram na minha direção
com um passo enervante e lento. Minha respiração acelerou e tirei o casaco com
um movimento dos ombros, afastando uma das mesas com um pé para ter espaço
para me mexer. Tinha sete bolas explosivas na minha arma, havia nove vampiros.
Nunca conseguiria apanhar a todos. Fiquei de rosto gelado e tremi, com a corrente
de ar que me tocava os ombros nus.

— Não — disse Kist do seu canto e eles hesitaram. — Eu disse não! —


gritou ele, enquanto se levantava e avançava na minha direção, seu passo rápido
tornando-se lento para esconder um novo coxear.

Com os rostos contorcidos numa promessa horrenda, eles pararam,


rodeando-me, mas mantendo-se a cerca de dois metros e meio de distância. Dois
metros e meio — pensei, sentindo-me mal ao recordar meus treinos com Ivy. Era o
alcance de um vampiro vivo.

O vampiro que eu golpeei na virilha levantou-se, os ombros curvados e o


rosto dolorido. Kist atravessou o círculo, colocando-se ao seu lado, as mãos nos
quadris e os pés afastados. A camisa de seda preta e as calças de terno davam-lhe
413

um ar mais sofisticado do que sua normal roupa de couro. Uma mancha negra
alastrava pelo rosto, onde a barba loura começava a despontar, terminando perto
do olho. Pela sua posição, calculei que lhe doessem as costelas, mas supus que o
maior dano tivesse sido ao seu orgulho. Ele tinha perdido seu estatuto de delfim
para Ivy.

— Ele pediu que a levássemos para baixo, não que a espancássemos —


disse Kist, os lábios brancos quando meu olhar se pousou na unhada atrás da
franja.

Embora Samuel fosse maior, Kist exigia obediência de uma forma


inigualável. Um temperamento duro e mal tinha substituído sua normal postura
sensual e casual, conferindo-lhe um ar rude que eu sempre achei atraente nos
homens. Como todos os gerentes, Kist tinha problemas com seus empregados e,
de alguma forma, o fato de ter de lidar com aquele tipo de porcarias, tornava-o
mais apelativo. Meu olhar percorreu-o e meus pensamentos seguiram meus
olhos. Malditos feromônios vampíricos.

Ainda arquejando, o vampiro maior dirigiu para mim o olhar, voltando, em


seguida, a pousá-lo em Kist.

— Ela precisa ser revistada — ele lambeu os lábios, olhando para mim de
uma forma que me fez acelerar a pulsação. — Eu faço.

Fiquei rígida, meus pensamentos voando para a arma de bolas explosivas.


Eles eram muitos.

— Eu faço — disse Kist, o azul dos seus olhos começando a desaparecer


atrás do crescente círculo negro.

Maravilha.

Samuel recuou, contrariado, e Kist estendeu uma mão, exigindo minha


bolsa. Hesitei, depois, vendo-o arquear as sobrancelhas como que para dizer "Dê-
me uma razão", estendi-lhe. Ele pegou, pousando-a rudemente sobre a mesa mais
próxima.

— Dá-me o que tem contigo — disse ele, lentamente.

Com os olhos fixos nos dele, levei devagar a mão atrás das costas e
entreguei-lhe, lentamente, minha arma de bolas explosivas. Os vampiros que nos
rodeavam não emitiram qualquer som. Talvez devessem mostrar algum respeito
pela minha pequena arma de paintball vermelha? Eles não sabiam o que tinha no
414

s e u i n te r i o r . E u t i n h a s a b i a , m a l a ti n h a p r e n d i d o n a c i n tu r a , q u e n u n c a
conseguiria usá-la e franzi a sobrancelha, perante as oportunidades perdidas que
nunca tinham realmente existido.

— A cruz? — perguntou ele e eu abri o fecho da minha pulseira de


amuletos, pousando-a na sua mão aberta.

Sem dizer uma palavra, ele pousou-a, bem como a minha arma, sobre a
mesa atrás dele. Avançando, abriu os braços. Eu imitei-o, obedientemente, e ele
aproximou-se para me revistar.

Com o maxilar apertado, senti suas mãos percorrerem meu corpo. Onde ele
tocava, eu sentia um palpitar quente que avançava para o meio do meu corpo. A
cicatriz não, a cicatriz não — pensei, desesperada, sabendo o que aconteceria se ele
tocasse. Os feromônios vampíricos eram quase tão espessos que os podia ver e o
simples movimento do ventilador fazia com que a sensação de prazer se
precipitasse do meu pescoço para minha virilha.

Tremi de alívio quando suas mãos se afastaram.

— O amuleto que tem no mindinho — exigiu ele e eu tirei-o, pousando-o


rudemente na palma da sua mão aberta. Ele pousou-o ao lado da minha arma.
Uma expressão tensa apoderou-se dos seus olhos quando se colocou à minha
frente. — Se você se mexer, morre — disse.

Eu fitei-o sem compreender.

Kist aproximou-se mais e a minha respiração silvou. Podia sentir o cheiro


da sua tensão, suas reações dependendo do meu próximo movimento. Ele expirou
sobre a minha clavícula e seus pensamentos regressaram aos seus lábios tocando
na minha orelha quatro dias antes. De cabeça inclinada, ele olhou para mim,
hesitando, um olhar vazio nos seus olhos azuis, sua fome bem escondida.

Erguendo um braço, passou um dedo pela minha orelha, descendo pelo


pescoço e tocando nos altos da minha cicatriz. Meus joelhos cederam. Inspirando,
endireitei-me e, com ondas de desejo que exigiam ser saciadas, ergui uma mão
para lhe bater. Ele apanhou meu pulso antes que eu lhe conseguisse acertar,
puxando-me para ele. Contorcendo-me, tentei chutá-lo. Ele apanhou-me o pé. Kist
fez-me desequilibrar e largou-me.
415

Caí de bunda, machucando-me no chão de madeira. Fitei-o enquanto os


vampiros riam. No entanto, o rosto de Kist estava vazio. Não havia raiva, não
havia especulação. Nada.

— Tem o cheiro da Ivy — disse ele, enquanto eu me levantava, com o


coração batendo velozmente. — No entanto, não está presa a ela — um toque de
satisfação marcou sua expressão estoica. — Ela não conseguiu fazer.

— Do que está falando? — rosnei eu, envergonhada e furiosa, enquanto me


sacudia.

Ele semicerrou os olhos.

— Sentiu bem, não sentiu? Eu tocando sua cicatriz? Quando um vampiro te


prende pelo seu sangue, só ele pode arrancar de você esse tipo de resposta. Quem
te mordeu e não se deu ao trabalho de te reclamar? — seu rosto tornou-se
pensativo e pensei ter visto nele um brilho de luxúria. — Ou será que matou seu
atacante para impedir que ele completasse a união? É uma menina marota.

Eu não disse nada, deixando que acreditasse no que quisesse, e ele encolheu
os ombros.

— Como não está presa a ninguém, qualquer vampiro pode arrancar de ti


esse tipo de reação — ele ergueu as sobrancelhas. — Qualquer vampiro — repetiu, e
senti-me atravessar por um arrepio ao pensar em Piscary à minha espera. — Vai ter
uma manhã interessante — acrescentou ele.

Com a visão mais nítida, ele levou a mão atrás de si e arrastou o minha
bolsa da mesa. Os vampiros tinham começado a conversar entre si, tecendo
especulações descontraídas e irritantes sobre quanto tempo eu ia durar. Kist
retirou do interior do minha bolsa a faca de açougueiro e um riso uivante
percorreu-os. Meu olhar percorreu a destruição no Piscary's, enquanto Kist
pousava uma mão cheia de amuletos sobre a mesa com um ruído seco.

— Foi Ivy quem fez isso? — perguntei, tentando encontrar nem que fosse
uma centelha da minha confiança.

Quanto mais tempo os mantivesse falando, mais chances de Nick levar o


DFI até ali a tempo.

O vampiro a quem eu tinha chutado a virilha deu uma risada irônica.


416

— Por assim dizer — ele olhou para Kist e eu pensei ter visto o maxilar do
vampiro loiro cerrar-se. — Sua companheira de casa é boa de transa — disse
Samuel, tornando-se mais arrogante quando a respiração de Kist acelerou e seus
dedos, vasculhando o interior da minha mala, se tornaram brutos. — Sim —
continuou Samuel, arrastando as palavras. — Ela e Piscary puseram todo o
restaurante sob o efeito dos feromônios vampíricos. Acabamos com três combates e
um par de dentadas — ele apoiou-se na mesa, cruzou os braços e sorriu, trocista. —
Alguém morreu e foi transportado para as catacumbas temporárias da cidade. Está
vendo? Ele teve direito a uma fotografia na parede e um cupom para um
jantar grátis. Tivemos uma sorte do inferno por termos percebido a tempo o estava
acontecendo e ter tirado todos os que não eram vampiros daqui para fora antes
que se estalasse o caos. Deus nos ajudasse se Piscary perdesse o seu LPM e tivesse
de se recandidatar. Da última vez demorou quase um ano.

Samuel tirou um amendoim de uma tigela e atirou-o para o ar, apanhando-


o com a boca e sorrindo, enquanto mastigava. O rosto de Kist estava vermelho de
raiva.

— Cale-se — disse ele, puxando os cordões da minha bolsa para fechá-la.

— O que se passa? — troçou Samuel. — Só porque nunca conseguiu deixar


Piscary naquele estado, não significa que ele vá torna-la seu delfim.

Kist ficou rígido. Ele não disse a ninguém que Piscary já o tinha feito. Meus
olhos saltaram para ele, sua raiva mantendo minha boca fechada.

— Eu disse que se calasse — avisou Kist, o calor que emanava do seu corpo
quase visível.

Os vampiros que nos rodeavam iam se afastando lentamente. Samuel riu,


desejando claramente levar Kist tão perto do limite quanto possível.

— Kist tem ciúmes — disse-me ele, com o único propósito de irritá-lo. — O


que aconteceu quando ele e Piscary estavam a fazê-lo foi uma pequena briga de
bar — seus lábios cheios abriram-se num sorriso horrendo e ele olhou de relance,
arrogante, para os vampiros que nos rodeavam. — Não se preocupe, velhote —
disse para Kist. — Piscary vai se cansar dela assim que ela morrer e, você voltará a
ficar por cima... Ou por baixo... Ou pelo meio, se tiver sorte. Talvez eles te deixem
assistir e Ivy possa te ensinar um truque ou dois.

Os dedos de Kist tremiam. No espaço entre uma palpitação e a seguinte,


moveu-se. Muito rápido para que eu o conseguisse seguir, atravessou o círculo,
417

agarrou Samuel pela camisa e atirou ele contra o grosso poste. A madeira gemeu e
ouvi algo estalar no peito de Samuel. O rosto do homem maior mostrou uma
expressão de surpresa, os olhos esbugalhados e a boca aberta com a dor que não
teve tempo de sentir.

— Cale-se — disse Kist suavemente.

Tinha o maxilar cerrado e os olhos tremiam. Largando Samuel, Kist deu-lhe


um empurrão, torcendo-lhe um braço num ângulo que não era natural, enquanto o
homem caía de joelhos. Perdi o fôlego quando ouvi o estalo audível do seu
ombro se deslocando. Os olhos de Samuel abriram-se. A boca fez o mesmo, num
grito silencioso. Ele ajoelhou-se, o braço ainda dobrado atrás de si, pois Kist não
largou seu pulso. Kist soltou-o e Samuel arquejou, tentando respirar.

Eu permaneci onde estava — incapaz de me mover —, assustada com a


velocidade com que tudo aquilo tinha ocorrido. De repente, Kist estava à minha
frente e eu saltei.

— Toma tua bolsa — disse ele, entregando-me.

Eu arranquei-lhe das mãos e Kist fez um gesto para que eu avançasse à sua
frente. Abriu-se uma abertura no círculo, os vampiros que nos rodeavam
parecendo adequadamente submissos. Ninguém tinha ido ajudar Samuel e as suas
tentativas roucas para respirar, enquanto jazia no chão, sem se mover, tocaram no
fundo de mim.

— Não me toque — disse eu ao passar por Kist. — E é melhor que nenhum


de vocês mexa nas minhas coisas enquanto eu estiver ausente — acrescentei,
tremendo por dentro.

Meus passos hesitaram quando passei uma última vez os olhos pelos meus
amuletos e compreendi que só estavam sobre a mesa cerca de metade daqueles
que tinha trazido. Kist segurou-me no cotovelo e obrigou-me a andar.

— Larga-me — disse eu, a memória dele deslocando o braço de Samuel


impedindo-me de puxar o braço.

— Cale-se — disse ele, a tensão na sua voz fazendo-me hesitar.

Com a mente em turbilhão, segui suas direções nada sutis, avançando por
entre as mesas, passando por um conjunto de portas de saloon que se abriam para
a cozinha. Atrás de nós, os empregados voltaram ao trabalho, as especulações
voando, enquanto ignoravam Samuel.
418

Não pude deixar de reparar que, embora fosse menor, minha cozinha era
melhor do que a de Piscary. Kist guiou-me até uma porta de incêndio metálica, de
aspecto institucional. Abriu-a e acendeu a luz, revelando uma pequena sala branca
com chão de carvalho. As portas prateadas de um elevador estavam escondidas
fora do caminho. Uma escada em espiral, de abertura larga, que seguia para os
pisos inferiores, ocupava a maior parte de uma das paredes. A escadaria era
elegante e um modesto candelabro sobre ela tilintava suavemente por causa da
brisa que percorria a sala. Um relógio de madeira, do tamanho de uma mesa,
estava pendurado na parede oposta à da escadaria, o seu tique-taque ruidoso.

— Para baixo? — disse eu, tentando não parecer assustada.

Se Nick não descobrisse meu bilhete, não teria qualquer hipótese de subir
viva naquelas escadas. A porta de incêndio fechou-se com um estalo atrás de mim
e senti uma alteração na pressão do ar. A brisa não cheirava a nada, quase um
vazio em si mesmo.

— Vamos de elevador — disse Kist, a voz inesperadamente suave. Toda sua


p o s t u r a t i n h a mu d a d o , e n q u a n t o e l e s e c o n c e n t r a va n u m p e n sa m e n t o
desconhecido. Ele tinha-me deixado alguns dos amuletos...

As portas do elevador abriram-se mal ele carregou no botão e eu entrei. Kist


entrou logo atrás de mim e ficamos virados para as portas quando elas se
fecharam. Com um suave puxão no meu estômago, o elevador começou a descer.
Puxei de imediato pela bolsa e a abri.

— Idiota! — silvou Kist.

Um pequeno guincho escapou de mim, quando ele deslizou encurralando-


me contra o canto. Senti o espaço rodando e estanquei pronta para agir. Os dentes
dele estavam a centímetros de mim. A cicatriz que o demônio me fez pulsava e
segurei a respiração. Os feromônios eram mais fracos ali, mas isso não parecia
importar. Se começasse a ouvir música de elevador, eu ia gritar.

— Não seja idiota. Acha que não temos câmeras aqui?

Minha respiração regressou num arquejo suave.

— Afaste-se de mim.

— Não é o que quer, querida — sussurrou ele, sua respiração lançando


arrepios através do meu pescoço e fazendo meu sangue ferver. — Vou ver até
419

onde a cicatriz no teu pescoço pode te levar... E quando tiver terminado, vai
descobrir um frasco na sua bolsa.

Fiquei rígida quando ele se aproximou ainda mais. O cheiro de couro e seda
era um ataque agradável. Eu não consegui respirar enquanto ele me afastava o
cabelo com o nariz.

— É um líquido de embalsamar egípcio — disse ele e eu senti-me tensa


quando os seus lábios me tocaram no pescoço juntamente com suas palavras. Não
me atrevi a mexer e, para ser sincera, tenho de admitir que não queria fazê-lo —
sentindo os arrepios de promessa que fluíam através da minha cicatriz. — Atira
nos olhos e ele ficará inconsciente.

Não conseguia evitá-lo. Meu corpo exigia que eu fizesse alguma coisa.
Relaxando os ombros, fechei os olhos e passei as mãos pelas suas costas suaves.
Ele parou, surpreendido, depois suas mãos deslizaram pelos meus ombros, para
me agarrar pela cintura. Os músculos sob a seda da sua camisa tornaram-se tensos
sob os meus dedos. Erguendo as mãos, minhas unhas brincaram com os cabelos na
base da nuca de Kist. As madeixas suaves tinham uma cor uniforme que só se
pode encontrar numa caixa e compreendi que ele pintava o cabelo.

— Por que está me ajudando? — sussurrei, tocando com os dedos no colar


negro ao redor do seu pescoço. Os elos aquecidos pelo corpo tinham o mesmo
padrão das pulseiras que Ivy usava nos tornozelos.

Senti uma alteração nos músculos dele, tensos de dor e não de desejo.

— Ele disse que eu era o seu delfim — disse Kist, enterrando o rosto no meu
cabelo para esconder o movimento dos lábios da câmera invisível, pelo menos foi
isso que disse a mim mesma. — Ele disse que eu ficaria com ele para sempre e
traiu-me por causa da Ivy. Ela não o merece — sua voz estava manchada pela dor.
— Ela nem sequer o ama.

Fechei os olhos. Nunca compreenderia os vampiros. Sem saber por que o


fazia, deixei que meus dedos se embrenhassem suavemente no seu cabelo,
reconfortando-o enquanto sua respiração acariciava minha cicatriz — que
libertava impulsos cada vez mais fortes e que exigiam resposta. O senso comum
dizia-me que parasse, mas ele estava magoado e eu também já fui traída daquela
forma.

A respiração de Kist tornou-se irregular, quando eu passei as unhas sob a


orelha dele. Emitindo um som baixo e gutural, ele aproximou-se ainda mais, seu
420

calor óbvio através do material fino do meu top. Sua tensão tornou-se mais
profunda, mais perigosa.

— Meu Deus — sussurrou ele, sua voz nada mais que um fio rouco. — Ivy
tinha razão. Deixar-te livre, sem estar ligada a um vampiro seria como foder um
tigre.

— Cuidado com a língua — disse eu, sem fôlego, seu cabelo fazendo-me
cócegas no rosto. — Não gosto desse tipo de linguagem.

Eu já estava morta. Por que não apreciar meus últimos momentos?

— Sim, minha senhora — disse ele, obediente, sua voz chocando-me com a
sua submissão, ainda que ele forçasse seus lábios contra os meus.

Bati com a cabeça no elevador tal foi a força do seu beijo. Afastei-o, sem
medo.

— Não me chame disso — murmurei, com os lábios sobre os dele,


recordando-me do que Ivy dissera sobre o fato de ele gostar de desempenhar o
papel de subordinado. Talvez eu pudesse sobreviver a um vampiro submisso.

Com seu peso a exercer ainda mais pressão sobre mim, ele afastou os lábios
dos meus. Fitei os seus olhos — seus impecáveis olhos azuis —, estudando-os com
entendimento de que não sabia o que ia acontecer a seguir, mas rezando para que
acontecesse depressa.

— Deixa-me fazer isso — disse ele, sua voz rouca perto de um rosnado.
Suas mãos estavam livres e ele pegou no meu queixo, segurando minha cabeça.
Vislumbrei um pouco dos seus dentes, depois ele ficou muito perto para que eu
conseguisse ver qualquer coisa. Não senti qualquer pitada de medo quando ele
voltou a me beijar, tendo compreendido algo subitamente.

Ele não estava atrás de sangue. Ivy queria sangue, Kist queria sexo. E o
risco de que seu desejo se pudesse transformar em sangue catapultou-me para
além dos limites do razoável e lançou-me numa espiral de atrevimento arrojado.
Seus lábios eram suaves e tinham um calor úmido. Sua barba loira fazia um
contraste chocante que aumentava meu fervor. Com o coração acelerado, passei
um pé por trás da perna dele e puxei-o mais para mim. Ao senti-lo, sua respiração
ergueu-se e suavizou-se num arfar. Um som suave de verdadeiro prazer escapou-
se de mim. Minha língua encontrou a suavidade dos seus dentes e os músculos
sob minhas mãos tornaram-se tensos. Afastei a língua, provocando-o.
421

Nossas bocas afastaram-se. Seus olhos estavam quentes, negros e repletos


de desejo ardente e sem vergonha. Ainda assim, não havia medo.

— Dá-me isso... — murmurou ele. — Não rasgarei sua pele se... — ele
inspirou fundo. — Se me der isso.

— Cale-se, Kisten — sussurrei, fechando os olhos para bloquear aquilo que


podia das tensões que se erguiam, confusas.

— Sim, senhorita Morgan.

Foi apenas o mais suave dos sussurros. Eu nem sequer tinha a certeza de tê-
lo ouvido. O desejo dentro de mim cresceu, levando-me longe da sanidade. Sabia
que não o devia fazer, mas com o coração batendo mais depressa, passei as unhas
em seu pescoço, deixando para trás leves marcas vermelhas da pressão. Kisten
estremeceu, as mãos caindo até à base das minhas costas, num toque firme e
inquisitivo. Um fogo líquido correu do meu pescoço, enquanto ele inclinava a
cabeça e encontrava minha cicatriz. Sua respiração era forte e entrecortada e eu
sentia onda atrás de onda de prazer, simplesmente devido ao toque dos seus
lábios.

— Não o farei... Não o farei — arquejou ele e eu compreendi que ele estava
à beira de desejar algo mais. Um tremor atravessou-me enquanto ele passava os
dentes suavemente pelo meu pescoço. Um sussurro de palavras que não reconheci
atravessou-me os pensamentos, fazendo repicar meus sinos de alarme. — Diz que
sim... — pediu ele, um toque de promessa urgente na sua voz baixa. — Diz,
querida. Por favor... Dá-me isso, também.

Meus joelhos tremeram quando seus dentes frios voltaram a tocar-me,


testando-me, provocando-me. Suas mãos sobre os meus ombros, seguravam-me
firmemente. Eu queria isso? Com os olhos quentes com as lágrimas por derramar,
admiti que já não sabia. Ainda que Ivy não conseguisse, Kist conseguiria. Rezei
para que Kisten não o sentisse na forma como meus dedos lhe agarravam os
braços, como se fosse, naquele instante, a única coisa que me mantinha sã.

— Precisa me ouvir dizer que sim? — murmurei, reconhecendo a paixão na


minha voz. Preferiria morrer ali, com Kisten, do que de medo, com Piscary.

O toque do elevador intrometeu-se e as portas abriram-se. Uma corrente de


ar frio envolveu-me os cotovelos. Voltei para a realidade num movimento súbito e
doloroso. Era tarde demais. Eu tinha esperado tempo demais.
422

— Tenho o frasco comigo? — perguntei, sem fôlego, enquanto meus dedos


brincavam com seus cabelos curtos, na base da nuca.

O peso dele era forte contra mim e o cheiro de couro e seda significaria para
sempre Kisten. Eu não queria me mexer. Não queria sair daquele elevador. Senti o
bater do coração de Kist e o ouvi engolir em seco.

— Está na sua bolsa — murmurou ele.

— Ótimo — cerrei o maxilar e agarrei com mais força seus cabelos;


puxando-lhe a cabeça para trás, ergui um joelho.

Kist lançou-se para longe de mim. O elevador balançou quando ele bateu
na parede do lado oposto. Não tinha lhe acertado. Maldição. Sem fôlego e
desgrenhado, ele endireitou-se e tateou as costelas.

— Tem que se mexer mais depressa do que isso, bruxa.

Afastando o cabelo dos olhos, fez-me um gesto para que saísse antes dele.
Sentindo os joelhos fluídos e soltos, recompus-me e saí do elevador.

Capitulo 27
Os aposentos onde Piscary passava o dia não eram, de todo, aquilo que eu
esperava. Saí do elevador, virando a cabeça de um lado para o outro, assimilando
tudo aquilo. Os tetos eram altos — calculei que tivessem cerca de três metros — e
estavam pintados de branco nos locais onde não estavam cobertos por cortinas de
423

tecido de cores quentes e primárias que caíam com pregas suaves. Enormes
arcadas indiciavam a existência de divisões igualmente espaçosas mais recuadas.
Tinha o conforto suave da mansão de um playboy, misturado com o ar de um
museu. Tentei encontrar uma linha Ley, não ficando surpreendida por descobrir
que estava muito distante.

Minhas botas pisavam o carpete branco e fofo. O mobiliário era de bom


gosto e, sob focos de luz, encontrava-se a ocasional obra de arte. Cortinas do chão
ao teto, em intervalos regulares, davam a ilusão da existência de janelas atrás
delas. Entre elas encontravam-se estantes de portas de vidro cheias de livros, mais
a n ti g o s q u e a V i r a g e m . N i c k te r i a a d o r a d o a q u i l o — m e u s p e n s a m e n t o
s
afastaram-se por um instante enquanto desejava, esperançosamente, que ele
tivesse encontrado meu bilhete. As primeiras indicações de um possível sucesso
fizeram-me andar com mais confiança do que eu devia. Entre o frasquinho de
Kisten e o bilhete para Nick, talvez conseguisse escapar com vida.

As portas do elevador fecharam-se. Virei-me, reparando que não havia


botão para voltar a abri-las. A escadaria também não estava ali. Devia desembocar
num qualquer outro ponto. Meu coração saltou e, depois, sossegou. Escapar com
vida? Talvez.

— Tire as botas — disse Kist e eu ergui a cabeça, incrédula.

— Desculpe?

— Estão sujas — eu tinha a atenção presa nos meus pés. Ainda estava
vermelha. — Tire-as.

Olhei para a extensão do tapete branco. Ele queria que eu matasse Piscary,
no entanto estava preocupado com minhas botas no carpete? Com um sorriso,
tirei-as e deixei-as junto ao elevador. Nem conseguia acreditar naquilo. Ia morrer
descalça.

Mas o carpete era agradável debaixo dos meus pés enquanto seguia Kisten,
obrigando-me a não tatear o exterior da bolsa em busca do que ele me prometeu
estar no seu interior. Kist estava tenso, mais uma vez, o maxilar apertado e os
modos taciturnos, longe do vampiro dominante que quase me fizera ceder. Parecia
ciumento e injustiçado. Era aquilo o de se esperar de um amante traído.

Dá-me isso... Ecoou minha memória, lançando um arrepio incontrolável


através de mim. Perguntei-me se ele teria implorado a Piscary da mesma forma,
424

sabendo que lhe estava pedindo sangue. E perguntei-me se, para Kisten, o tomar
de sangue não passava de um comprometimento casual ou se seria algo mais.

O som abafado do trânsito afastou aminha atenção da fotografia do que


parecia ser Piscary e Lindbergh partilhando uma cerveja num bar britânico. Com
passos lentos para esconder seu coxear, Kisten guiou-me para uma sala de estar
funda. Na extremidade oposta encontrava-se um recanto com o chão de azulejos,
em frente ao que parecia ser, entre todas as coisas possíveis, uma janela que dava
para o rio a partir do segundo piso. Piscary estava recostado perto de uma
pequena mesa de metal trançado, no meio do pequeno espaço circular de azulejos,
rodeado pelo carpete. Sabia que estava debaixo do chão e que aquilo só poderia
ser uma imagem de vídeo, mas parecia mesmo uma janela.

O céu estava tornando-se mais claro graças ao nascer do dia, conferindo ao


rio cinzento um brilho suave. Os edifícios mais altos de Cincinnati eram silhuetas
escuras contra o céu mais claro. A fumaça erguia-se dos barcos com rodas
propulsoras laterais enquanto testavam suas caldeiras preparando-se para a
primeira viagem de turistas. O trânsito de domingo era leve e o som das viaturas
individuais perdia-se no meio dos milhares de ruídos secos, metálicos e invisíveis
que constituem o pano de fundo de uma cidade. Observei as ondas de água sob a
brisa e meu cabelo ergueu-se ao ritmo de um vento suave. Chocada com o
pormenor, procurei, no teto e no chão, até encontrar um ventilador. Ao longe
soava uma buzina.

— Divertiu-se, Kist? — perguntou Piscary, afastando minha atenção do


corredor que, com seu cão, percorria o caminho de pedestre ao longo do rio.

O pescoço de Kist ficou vermelho e ele baixou a cabeça.

— Queria saber do que Ivy estava falando — murmurou, parecendo uma


criança apanhada beijando a filha do vizinho.

Piscary sorriu.

— Excitante, não é? Deixá-la assim solta é muitíssimo divertido até ela


tentar te matar. Mas, afinal, é daí que vem a excitação, não é?

Minha tensão recuou. Piscary parecia relaxado, sentado numa das duas
cadeiras junto à mesa, usando um robe de seda leve, azul-escuro. O jornal
matutino estava pousado junto à sua mão. A cor profunda do seu robe combinava
perfeitamente com sua pele cor de âmbar. Os pés descalços eram visíveis sob a
mesa. Eram longos e magros, com o mesmo tom mel do seu escalpe careca. Minha
425

ansiedade aumentou perante a sua aparência descontraída e íntima. Ótimo. Era


mesmo disso que eu precisava.

— Bela janela — disse eu, pensando que era melhor do que a de Trent, o
sapo. Ele poderia ter tratado de tudo aquilo se tivesse agido quando eu lhe disse
que Piscary era o assassino. Os homens eram todos iguais: ficam com aquilo que
podem sem ter de pagar por isso, mentem quanto ao resto.

Piscary mexeu-se na cadeira e o robe afastou-se, revelando o joelho. Afastei


rapidamente o olhar.

— Obrigado — disse ele. — Odiava o nascer do sol quando estava vivo.


Agora é a minha parte do dia preferida — sorri, trocista, e ele fez um gesto,
apontando para a mesa. — Quer uma xícara de café?

— Café? — perguntei eu. — Pensei que era contra o código dos gangsters
tomar café com alguém antes de matá-lo.

Suas finas sobrancelhas pretas ergueram-se. Compreendi que devia querer


algo de mim, caso contrário teria se limitado a enviar Algaliarept para me matar no
ônibus.

— Simples — disse eu. — Sem açúcar.

Piscary dirigiu um aceno a Kisten e ele afastou-se sem emitir qualquer som.
Puxei a segunda cadeira, em frente a Piscary; sentando-me com a bolsa sobre o
colo. Olhei de relance para a janela falsa, em silêncio.

— Gosto do seu covil — disse eu em tom sarcástico.

Piscary ergueu uma sobrancelha. Gostaria de ser capaz de fazer aquilo.


Agora era muito tarde para aprender.

— Originalmente fazia parte do caminho de ferro subterrâneo — disse ele.


— Um buraco imundo no chão, sobre a doca de carga de alguém. Irônico, não é?
— eu não disse nada e ele acrescentou: — Esta costumava ser uma porta de acesso
ao mundo livre. E ainda é, ocasionalmente. Não há nada como a morte para
libertar uma pessoa.

Deixei escapar um pequeno suspiro e voltei-me para a janela, perguntando


quanto mais besteiras de velho sábio ele ia me obrigar a ouvir antes de me matar.
Piscary tossiu para limpar a garganta e eu voltei a olhar para ele. O decote em V
do seu robe revelava alguns pêlos negros e suas pernas, visíveis através do
426

entrançado da mesa, eram duras e musculosas. Recordei-me da luxúria que senti


— quente e rápida, no elevador — com Kisten, sabendo que tinha sido provocada,
acima de tudo, pelos feromônios vampíricos. Mentirosa. Que Piscary pudesse
fazer aquilo e muito mais com apenas um som fez revolver-se o meu estômago.

Incapaz de me impedir, ergui a mão em frente ao pescoço, fingindo afastar


o cabelo dos olhos. Queria esconder a cicatriz, embora Piscary estivesse, muito
provavelmente, mais consciente dela do que do meu nariz.

— Não precisava violá-la para fazer com que viesse vê-lo — disse eu,
decidindo mostrar-me irada em vez de temerosa. — A cabeça de um cavalo morto
na minha cama teria sido suficiente.

— Eu quis fazê-lo — disse ele, a voz baixa e carregada com a força do vento.
— Por muito que me custe pensar o contrário, isso não é tudo sobre você, Rachel.
Parte é, mas não tudo.

— Pode tratar-me por senhorita Morgan.

Ele respondeu-me com um silêncio trocista de três segundos.

— Tenho estado mimando Ivy. As pessoas começam a falar. Já estava na


hora de trazê-la de volta para nosso seio. E foi um prazer... Para ambos — um
sorriso de recordação espalhou-se sobre seu rosto, o brilho de uma presa e um
suspiro suave, gutural, quase subliminar. — Ela surpreendeu-me, indo muito mais
longe do que aquilo que eu a induzi. Há, pelo menos, trezentos anos que não
perdia assim o controle.

Meu estômago contorceu-se quando um impulso do desejo induzido pelo


vampiro me atravessou e desapareceu. Sua força deixou-me sem fôlego e dei por
mim tentando apanhá-lo.

— Cretino — disse eu, de olhos bem abertos enquanto o sangue bombeava


dentro de mim.

— Aduladora — disse ele em resposta, de sobrancelhas erguidas.

— Ela mudou de ideia — prossegui, enquanto seu desejo morria por


completo em mim. — Ela não quer ser seu delfim. Deixe-a em paz.

— É muito tarde. E ela o quer. Eu não a forcei, de qualquer forma, quando


ela tomou a sua decisão. Não precisei fazê-lo. Ela foi criada e educada para
assumir o lugar e, quando morrer, terá uma complexidade suficiente para ser uma
427

a d e q u a d a c o m p a n h e i r a , s u fi c i e n t e m e n t e v a r i a d a e s o fi s t i c a d a n o s s e u
s
pensamentos para que eu não me aborreça com ela e ela comigo. Sabe, Rachel, não é
verdade que seja a falta de sangue que leva um vampiro a enlouquecer e a sair
para a luz do Sol. É o aborrecimento que traz consigo, a falta de apetite que leva à
insanidade. Trabalhar para educar Ivy ajudou a afastar essa possibilidade. Agora
que ela assumiu seu potencial, vai impedir-me de enlouquecer — inclinou
graciosamente a cabeça. — E eu farei o mesmo por ela.

Sua atenção prendeu-se num ponto sobre meu ombro e os pelos na parte de
trás do meu pescoço ergueram-se. Era Kisten. O sussurro da sua passagem tocou-
me e reprimi um tremor. O vampiro ferido e abatido pousou silenciosamente a
xícara e o pires à minha frente e partiu. Seus olhos nunca se encontraram com os
meus, seus modos escondendo uma dor submissa. O vapor da xícara de porcelana
ergueu-se mais de sete centímetros antes de ser apanhado pelo vento artificial e
afastado para longe. Não levei a mão à xícara. O cansaço pesava sobre mim e a
adrenalina fazia-me sentir indisposta. Pensei nos amuletos na minha bolsa. Do quê
Piscary estava à espera?

— Kist? — disse, suavemente, o vampiro morto-vivo e Kisten virou-se. —


Dá-me.

Piscary estendeu a mão e Kisten largou um papel amarrotado na sua palma.


Meu rosto ficou marcado pelo pânico. Era meu bilhete para Nick.

— Ela ligou para alguém? — perguntou Piscary a Kist e o jovem vampiro


baixou a cabeça.

— Ligou para o DFI. Eles desligaram o telefone.

Chocada, olhei para Kisten. Ele tinha visto tudo. Tinha se escondido nas
sombras enquanto eu segurava o cabelo de Ivy e ela vomitava, assistiu enquanto
eu fazia o chocolate quente e ouviu enquanto eu me sentei ao lado de Ivy e ela me
contou seu pesadelo. Enquanto eu apanhava o ônibus lento, Kisten arrancou meu
bilhete da porta. Não viria ninguém. Absolutamente ninguém.

Sem cruzar o olhar com o meu, ele afastou-se. Ao longe, fez-se ouvir o som
distante de uma porta a fechar-se. Meu olhar prendeu-se em Piscary e a minha
respiração gelou. Os olhos dele estavam completamente negros. Merda.

As órbitas obsidianas que não pestanejavam fizeram as palmas das minhas


mãos suar. Com a atenção fixa de um predador, reclinou-se à minha frente no seu
roupão azul-escuro com aquele vento falso agitando os pelos dos seus braços nus,
428

bronzeados e de aspecto saudável. A bainha do robe oscilava com seus


movimentos sutis. O peito movia-se enquanto ele respirava, num esforço para
acalmar meu subconsciente. Enquanto me encontrava ali, sentada à sua frente, a
enormidade do que ia acontecer abateu-se sobre mim.

Minha respiração ia e vinha e eu a prendi. Vendo que eu reconhecia a


mi nha mor te , el e pe st anej ou l en ta men te e so rri u co m um bri l h o de
reconhecimento. Ainda não, mas em breve. Quando ele já não pudesse esperar
mais.

— É divertido que você se preocupe tão profundamente com ela — disse


ele, o poder deslizando pela sua voz e apertando-se ao redor do meu coração. —
Ela traiu-te de forma tão absoluta... Minha bela e perigosa filha esforçada. Enviei-a
para te observar, há quatro anos e ela juntou-se à SI. Comprei a igreja e disse que
se mudasse para lá, e ela fez. Pedi que fizesse uma cozinha própria para uma
bruxa e a abastecesse com os livros adequados, ela foi ao ponto de preparar um
jardim que seria irresistível.

Senti o rosto gelado e minhas pernas tremeram. Sua amizade tinha sido
uma mentira? Um esquema para me manter sob vigilância? Nem podia acreditar.
Recordando o som perdido da sua voz, enquanto me pedia que impedisse o sol de
matá-la, não pude acreditar que sua amizade tivesse sido uma mentira.

— Eu disse que te seguisse quando você se demitiu — disse Piscary, o


negrume dos seus olhos assumindo a tensão de uma paixão recordada. — Foi
nossa primeira discussão e pensei que ela estava pronta para se tornar meu delfim,
que ia revelar sua força e provar que podia manter sua vontade contra a minha.
Mas ela cedeu. Por um momento, pensei que talvez tivesse cometido um erro e
que lhe faltava força de vontade para sobreviver ao infinito comigo, que teria de
esperar mais uma geração e tentar de novo com uma filha nascida dela e de
Kisten. Estava tão decepcionado. Imagina meu prazer quando compreendi que ela
tinha sua própria agenda e que estava me usando — ele sorriu, os dentes um
pouco maiores, revelando-se um pouco mais compridos. — Ela tinha se agarrado a
você como se fosse uma saída para o futuro que eu via para ela. Pensava que
poderia descobrir uma forma de impedi-la de perder a alma quando morresse —
abanou a cabeça num movimento controlado, a luz brilhando sobre o seu escalpe
macio. — Não pode ser feito, mas ela recusa-se a acreditar.

Engoli em seco, fechando as mãos num punho, enquanto meus sentimentos


sobre sua traição se embaralhavam. Ela tinha estado a usá-lo, não seguindo as suas
orientações.
429

— Ela sabe que foi você quem assassinou aquelas bruxas? — sussurrei,
sentindo o coração apertado com a possibilidade de que ela soubesse e nunca
tivesse me dito.

— Não — disse Piscary. — Estou certo que desconfia, mas meu interesse
por você tem origem em motivos mais antigos, que nada têm a ver com a atual
busca do Graal sagrado por Trent, recorrendo à magia das linhas Ley.

Mantive os olhos longe das mãos que agarravam com força minha bolsa,
aberta sobre o meu colo. Não podia agarrar ainda no frasco. Se não era por causa
disso, por que Piscary me queria morta?

— Deve ter sido muitíssimo difícil para seu orgulho ter vindo encontrar
comigo, implorando clemência, quando sobreviveu ao ataque do demônio. Ela
estava tão perturbada! É tão difícil ser jovem. Eu compreendia mais do que ela
sabia o que significa desejar um igual. E cedi à tentação de mimá-la um pouco
mais, depois de ter compreendido que ela tinha me usado sem que eu percebesse.
Por isso, deixei-te viver, desde que ela quebrasse o seu jejum e te tomasse por
inteiro. Você ser o espectro dela tinha uma ironia que me agradava. Ela prometeu
fazê-lo, mas eu sabia que estava mentindo. Ainda assim, não me importei desde
que ela te mantivesse longe de Kalamack.

— Mas eu não sou uma bruxa das linhas Ley — disse eu, mantendo a voz
baixa para que não tremesse. Podia ter sussurrado as palavras e ele as teria
ouvido. — Por quê?

Ele não tinha respirado desde que parara de falar. Tinha os calcanhares
pressionando o chão. As panturrilhas tensas. Quase — pensei, movendo os dedos
até à abertura da minha bolsa. Ele estava quase pronto. De quê ele estava à espera?

— Você é a filha do seu pai — disse ele, a pele ao redor dos olhos
apertando-se. — Trent é o filho do pai dele. Separados são irritantes. Juntos... Têm o
potencial para ser um problema.

Meu olhar tornou-se distante, depois mais focado quando se cruzou com o
dele, sabendo que meu rosto tinha assumido uma expressão horrorizada. A
fotografia do meu pai e do de Trent junto a um ônibus amarelo do acampamento
de férias. Piscary os tinha matado. Tinha sido Piscary. Meu sangue batia, com uma
força rude, contra as minhas têmporas. O sangue exigia que eu fizesse alguma
coisa, mas fiquei sentada sabendo que, se me mexesse, ele se mexeria. Piscary
430

encolheu os ombros, num movimento calculado que puxou meus olhos para um
vislumbre da sua pele âmbar sob o robe.

— Estavam chegando muito perto de resolverem o enigma dos elfos — disse


ele, observando minha reação.

Mantive o rosto impassível enquanto ele revelava o segredo mais precioso


de Trent, mostrando-lhe que também o conhecia. Aparentemente era a coisa certa a
fazer.

— Não permitiria que vocês continuassem de onde eles pararam —


acrescentou, sondando-me.

Não disse nada, o estômago às voltas. Piscary tinha-os matado. O pai de


Trent e o meu tinham sido amigos. Tinham estado trabalhando juntos. Tinham
estado trabalhando juntos contra Piscary. Piscary ficou completamente imóvel.

— Ele já te mandou para a eternidade?

Meu olhar saltou para o dele, sentindo o medo no meu estômago. Lá estava.
A pergunta que ele queria ver respondida, aquela que escondia entre as outras
para que eu não a reconhecesse. Mal a respondesse, morreria.

— Não tenho por hábito quebrar o sigilo profissional — disse eu, com a
boca seca. Sua aparente calma estalou quando inspirou. Foi sutil, mas estava lá.

— Já o fez. Encontrou um? — perguntou ele, controlando-se antes de se


inclinar sobre a mesa. — Estava suficientemente bom para ser lido?

Hum? Ler o quê? Não disse nada, desejando desesperadamente esconder


minha pulsação que batia sob a pele do meu pescoço, mas embora seus olhos
estivessem negros, não estavam interessados no meu sangue. Era quase
inexplicavelmente assustador para acreditar. Não sabia como responder. O sim
salvaria-me a vida ou a condenaria?

Franzindo a sobrancelha, ele estudou-me durante um longo momento,


enquanto eu ouvia meu coração batendo e o suor começar correndo pelos meus
braços.

— Não consigo interpretar seu silêncio — disse ele, parecendo irritado.

Inspirei. Piscary moveu-se. A adrenalina era dolorosa. Afastei-me da mesa


num pânico cego. Minha cadeira caiu para trás, comigo ainda sobre ela. Piscary
atirou a mesa para longe do caminho. Esta caiu de lado, meu café intacto
431

desenhando um padrão fantástico sobre o carpete branco. Arrastei-me para trás,


meus pés nus gemendo contra o círculo de azulejos. Meus dedos encontraram o
tapete e eu agarrei-me a ele, rebolando e puxando-me para frente. Deixei escapar
um guincho quando ele me agarrou pelo pulso. Arranhei-o em pânico. Ele
suportou tudo. Com uma expressão desapaixonada, passou uma unha pelo meu
braço direito, seguindo o azul de uma veia. O fogo marcou o caminho da sua
unha, enquanto ele me rasgava a pele, depois foi o êxtase. Silenciosamente,
selvagemente, lutei para me libertar enquanto ele me segurava pelo pulso, tão
imóvel como uma árvore. Meu sangue acumulava-se e senti o borbulhar da
insanidade crescendo dentro de mim. Outra vez, não. Não podia ser violentada
por um vampiro outra vez! Ele olhou para o meu sangue, depois, para meus olhos.
Com a mão livre, limpou-me o braço.

— Não! — gritei.

Ele soltou-me o pulso e caí no tapete. Com a respiração rouca e arfante,


arrastei-me pelo chão. Consegui levantar-me, a adrenalina pulsando através de
mim, enquanto me dirigia para o elevador. Piscary puxou-me para trás.

— Seu filho da mãe! — gritei. — Deixe-me em paz!

E l e d e u - m e u m a p a n c a d a n a c a b e ç a q u e m e fe z v e r e s t r e l a s . C a í.
Arquejando, fiquei deitada a seus pés, enquanto ele se erguia sobre mim, com um
amuleto na mão. Esfregou meu sangue sobre ele e o disco brilhou vermelho. Sua
mão estava envolta num brilho vermelho enquanto ele empurrava para mais longe
a cadeira caída sobre o tapete. Ergui a cabeça, vendo através do meu cabelo que o
padrão no chão de azulejos à nossa frente formava um círculo perfeito. Ao redor
do grande círculo branco havia outro azul, não se tratava de um simples pedaço
de mármore. Era um círculo de invocação.

— Deus me ajude — sussurrei, sabendo o que ia acontecer quando Piscary


lançasse o amuleto para o centro do círculo. Observei enquanto a energia da
eternidade se expandia formando uma bolha protetora. Minha pele estalou com o
poder de outro bruxo, trazido para a vida com meu sangue enquanto Piscary se
preparava para chamar o seu demônio.
432

Capitulo 28
Piscary levou a mão à boca para lamber o que restava do meu sangue,
encolhendo-se.
433

— Água benta? — disse ele, o rosto contorcido revelando um brilho de


desagrado. Pegando na bainha do robe, limpou meu sangue, deixando na palma
da mão apenas uma ligeira vermelhidão. — Necessita de mais do que isso para
conseguir mais do que irritar-me. Não ia te morder. Nem sequer gosto de você,
mas você teria apreciado. Em vez disso, morrerá lentamente e em sofrimento.

— D á - l he . . . — a r qu e j ei , c a í da a s eu s pé s , en q u an t o m eu s ol h o s s e
recordavam de como focar um objeto.

Ele afastou-se aqueles hediondos dois metros e meio, deixando-se ficar


entre mim e o elevador. As palavras em latim cuidadosamente pronunciadas
jorravam dos seus lábios. Reconheci algumas das palavras da invocação de Nick.
Minha pulsação acelerou e olhei frenética em volta da sala branca, espaçosa e
luxuosa, em busca de qualquer coisa. Era muito subterrânea para que pudesse
aceder a uma linha Ley. Algaiarept vinha a caminho. Piscary ia entregar-me a ele.
Gelei quando Piscary disse seu nome. O cheiro de âmbar queimado cobriu minha
língua e uma névoa de eternidade vermelha surgiu no interior do círculo de
invocação.

— Oh, olha! Um demônio! — sussurrei, arrastando-me para a mesa caída e


levantando-me com a ajuda dela. — Isso não para de ficar melhor.

Balançando, observei enquanto a névoa aumentava e assumia a forma de


uma figura de um metro e oitenta. A névoa de eternidade vermelha parecia ser
puxada para dentro, ganhando consistência na forma de um corpo atlético de pele
âmbar, envergando apenas um pano decorado com pedras e fitas de cores, preso à
c i n t u r a .Al g a i a r e p t e xi b i a a s p e r n a s n u a s e m u s cu l o s a s , u m a c i n t u ra
impossivelmente fina e um peito magnificamente esculpido que teria feito chorar
Schwarzenegger. E, sobre tudo isso, uma cabeça de um chacal animada, com
orelhas pontiagudas e um focinho comprido e selvagem.

Fiquei de boca aberta e desviei o olhar da imagem do deus da morte egípcio


para Piscary, encarando as feições do vampiro com um novo significado. Piscary
era egípcio? Piscary ficou rígido.

— Já te disse para não aparecer à minha frente com essa forma — disse ele,
com voz tensa.

A máscara de morte sorriu, fascinante pelo fato de ser viva e fazer parte
dele.
434

— Esq u e c i - me — re s p o n d e u , co m a vo z a rra st a d a e i n c ri ve l me n t e
profunda, que parecia ressoar nas minhas entranhas.

Uma língua vermelha e fina deslizou pelos dentes do chacal, acariciando


seu focinho. Em seguida ouviu-se o estalo dos dentes e dos lábios. Meu coração
bateu mais depressa e, como se o tivesse ouvido, Algaiarept voltou-se lentamente
para mim.

— Rachel Mariana Morgan — disse ele, as orelhas espetadas. — Não para


mesmo quieta.

— Cale-se — disse Piscary e os olhos de Algaiarept semicerraram-se até não


serem mais do que pequenas fendas. — Que quer em troca de obrigá-la a dizer-me
o que sabe sobre os progressos de Kalamack?

— Seis segundos contigo, no exterior do círculo — o desejo de matar


Piscary, que pude ouvir na sua voz, era como gelo a descer pelas minhas costas.

Piscary abanou a cabeça, a sua aparência calma, inalterada.

— Dou-te ela. Não quero saber o que fará, desde que não volte a atravessar
para este lado das linhas Ley. Em troca, fará com que ela me diga a que ponto
chegou Trent Kalamack na sua investigação. Antes de levá-la. Concorda?

Não para a eternidade. Não com Agaiarept. O sorriso canino de Algaiarept


parecia agradado.

— Rachel Mariana Morgan como pagamento? Hum, concordo.

O deus egípcio juntou as mãos e deu um passo em frente, parando nos


limites do círculo. Suas orelhas de chacal espetaram-se e as sobrancelhas caninas
ergueram-se.

— Não pode fazer isso! — protestei, com o coração batendo, veloz. Olhei
para Piscary. — Não pode fazer isso. Eu não concordo — virei-me para
Algaliarept. — Ele não é dono da minha alma. Ele não pode me entregar a você!

O demônio fitou-me.

— Ele tem teu corpo. Controla o corpo, controla a alma.

— Isso não é justo! — gritei, ignorada.


435

Piscary aproximou-se do círculo. Colocou as mãos nos quadris, assumindo


uma postura agressiva.

— Não tentará matar-me ou tocar-me de qualquer forma — entoou ele. — E


quando eu disser, partirá, regressando diretamente à eternidade.

— De acordo — disse a cabeça de chacal. Uma gota de saliva pingou de


uma presa, silvando enquanto deslizava pela eternidade entre eles.

Sem nunca afastar o olhar do demônio, Piscary passou o dedo grande do pé


pelo círculo, para quebra-lo. Algaiarept saltou para fora do círculo. Arquejando,
recuei, sentindo uma mão poderosa estender-se na minha direção e agarrar-me
pela garganta.

— Pára! — gritou Piscary.

Senti a respiração presa e tentei abrir os dedos dourados. Tinha três anéis
com pedras azuis e todos eles me beliscavam a pele. Balancei para chutá-lo e
Algaiarept ergueu-me ainda mais para evitar o meu ataque. Deixei escapar um
som agudo.

— Largue-a! — exigiu Piscary. — Não pode tê-la até eu conseguir aquilo


que quero!

— Conseguirá sua informação, de uma forma ou de outra — disse o chacal, o


som das suas palavras unindo-se ao som do meu sangue correndo. Minha cabeça
parecia prestes a explodir.

— Chamei-te para lhe arrancar informações — disse Piscary. — Se matá-la


agora, violará sua invocação. Quero-a agora, não na próxima semana ou no
próximo ano.

Os dedos ao redor da minha garganta dissolveram-se. Caí sobre o tapete,


arquejando. Suas sandálias eram feitas de couro, com fitas grossas. Lentamente,
ergui a cabeça, tateando e apalpando minha garganta.

— Trata-se apenas de uma pausa, Rachel Mariana Morgan — disse a cabeça


de chacal, a língua movendo-se em padrões fantásticos enquanto falava. — Esta
noite irá aquecer minha cama.

Ajoelhei-me à frente dele, inspirando enquanto tentava perceber como lhe


poderia aquecer a cama se estivesse morta.
436

— Sabe — disse, num sussurro —, começo a ficar mesmo cansada disso —


com o coração batendo acelerado, levantei-me. Ele tinha concordado em realizar o
trabalho. Podia voltar a ser invocado. — Algaiarept — disse eu, num tom de voz
claro. — Invoco-te, seu assassino filho da mãe, com focinho de cão.

O rosto de Piscary ficou pálido de surpresa e podia jurar que Algaiarept me


piscou o olho.

— Oh, deixa-me ser o cara vestido de couro? — perguntou a cabeça de


chacal. — Tem medo dele. Eu gosto de assumir a forma dele.

— Claro, como queira — disse eu, com os joelhos tremendo.

Umas luvas de condução em couro apareceram do nada sobre as suas mãos


cor de âmbar e a estrutura do deus egípcio com cabeça de chacal derreteu-se,
perdendo sua rigidez e assumindo uma postura confiante e relaxada. Kisten
tomou forma, vestido de couro da cabeça aos pés e com espessos saltos. Ouvi o
tilintar da corrente e senti o cheiro de gasolina.

— Isso é bom — disse o demônio, revelando uma ponta da presa, enquanto


puxava para trás o cabelo loiro, a passagem da mão deixando-o molhado e
cheirando a xampu.

Eu também achava que ele tinha bom aspecto. Infelizmente. Exalando,


lentamente, a imagem de Kist mordeu o lábio inferior até o deixar vermelho e
percorreu-o com a língua, para deixá-lo com um brilho úmido. Senti-me atravessar
por um arrepio quando recordei a suavidade dos lábios de Kist. Como se estivesse
lendo a minha mente, o demônio suspirou, os dedos fortes deslizando sobre as
calças de couro para levar até lá meus olhos. Sobre um olho apareceu um
arranhão, espelhando os mais recentes ferimentos de Kist.

— Malditos feromônios vampíricos — sussurrei, afastando a recordação do


elevador.

— Dessa vez não — disse Algaiarept, sorrindo. Piscary fitava-nos confuso.

— Eu te invoquei. Faz aquilo que te digo!

Ai m a g e m d e K i s te n v i r o u - s e p a r a P i s c a r y m o s tr a n d o - l h e u m d e d o
espetado, num gesto beligerante.
437

— E Rachel Mariana Morgan também me invocou. Eu e a bruxa temos uma


dívida preexistente a resolver. E se ela tem força suficiente para me arrancar uma
invocação sem círculo, então eu me manterei fiel à minha palavra.

Piscary cerrou os dentes e saltou na nossa direção. Arquejei, desviando-me.


Senti uma sensação terrível e olhei, estarrecida, enquanto Piscary embatia contra
uma parede de eternidade e caía num emaranhado chocado de braços e pernas.
Fiquei gelada ao compreender que Algaiarept nos tinha colocado no interior de
um círculo da sua própria construção.

A espessa névoa vermelha pulsou e zumbiu, exercendo pressão contra


minha pele, embora eu me encontrasse a mais de meio metro de distância.
Enquanto Piscary se levantava e alisava o robe, estendi um dedo e toquei na
barreira. Uma faísca de gelo crepitou através de mim, enquanto sua superfície
ondulava. Aquele era o lençol de eternidade mais forte e espesso que eu alguma
vez testemunhei. Sentindo os olhos de Algaiarept sobre mim, afastei a mão e
limpei-a nas calças jeans.

— Não sabia que podia fazer isso — disse, e ele riu.

Olhando para trás, fazia sentido. Ele era um demônio. Vivia na eternidade.
Claro que saberia como fazê-lo.

— E estou disposto a te ensinar a manipular assim tanta eternidade, Rachel


Mariana Morgan — disse ele, como se lesse minha mente. — Por um preço.

Abanei a cabeça.

— Talvez mais tarde?

Com um grito de raiva frustrada, Piscary pegou na cadeira de ferro


entrelaçado e atirou-a contra a barreira. Saltei, sentindo a boca ficar seca.
Algaiarept dirigiu ao vampiro irado um olhar de esguelha, enquanto Piscary
arrancava a perna da cadeira e, usando-a como uma espada, tentava furar a
barreira. O demônio assumiu uma postura beligerante, nos limites do círculo,
revelando-me seu traseiro firme, envolto nas calças de couro.

— Põe-te a andar, velhote — troçou o demônio, usando o sotaque falso de


Kist, o que deixou Piscary ainda mais furioso. — O Sol nascerá em breve. Poderá
atacá-la outra vez dentro de cerca de três minutos.

Ergui a cabeça. Três minutos? O Sol estava assim tão perto de se erguer?
Furioso, Piscary atirou a perna da cadeira, que deslizou e rebolou sobre o carpete.
438

Seus olhos eram poças negras e ele começou a traçar círculos lentos e cuidadosos à
nossa volta, em antecipação. Mas, por agora, estava segura dentro do círculo de
Algaiarept. O que é que havia de errado com essa imagem?

Obrigando meus braços a descer e a soltar meu corpo — que apertavam


com força — olhei de relance para a janela falsa de Piscary, vendo o reflexo do Sol
nos edifícios mais altos. Três minutos. Pressionei os dedos contra a testa.

— Se te pedir que mate Piscary, ficamos quites? — perguntei, ao mesmo


tempo em que erguia os olhos.

Ele virou-se de lado.

— Não. Ainda que matar Ptah Ammon Fineas Horton Madison Parker
Piscary esteja na minha lista de coisas a fazer, não deixa de ser um pedido e te
custaria, não te absolveria da sua dívida. Além disso, se me mandar atrás dele, o
mais certo é que ele volte a me invocar, tal como você fez, e acabaria exatamente
onde começou. A única razão porque não pode me invocar agora é o fato de ainda
não termos chegado a um acordo e nos encontrarmos numa espécie de limbo da
invocação, por assim dizer — sorriu e eu afastei os olhos. Piscary mantinha-se por
perto e escutava, claramente pensando.

— Consegue levar-me daqui? — perguntei, pensando em escapar.

— Através das linhas Ley, sim. Mas dessa vez te custará a alma — ele
lambeu os lábios. — E, depois, será minha.

Tantas escolhas felizes.

— Pode me dar algo com que me proteger? — implorei, começando a ficar


desesperada.

— Igualmente dispendioso... — ele aconchegou as luvas ao redor dos


dedos. — E já tem o que precisa. Tique-taque, Rachel Mariana Morgan. Qualquer
coisa que possa salvar sua vida exigirá como pagamento sua alma.

Piscary sorria e o meu estômago revolvia-se enquanto ele se imobilizava a


dois metros e meio de distância. Meus olhos saltaram para minha bolsa, com o
frasquinho que Kist me dera. Encontrava-se fora do meu alcance, do lado errado
da barreira.

— O que vou de pedir, então? — gritei desesperada.


439

— Se te responder à pergunta, não te sobrará nada com que pagar o pedido,


querida — sussurrou, inclinando-se na minha direção e fazendo voar meus cachos.
Eu recuei, ao sentir o cheiro de enxofre. — E é uma bruxa cheia de recursos —
acrescentou. — Qualquer pessoa capaz de fazer repicar os sinos da cidade pode
sobreviver a um vampiro. Mesmo um tão antigo como Ptah Ammon Pineas
Horton Madison Parker Piscary.

— Mas estou a três andares de profundidade! — protestei. — Não consigo


chegar a uma linha Ley a partir daqui.

O couro estalou, enquanto ele me contornava, as mãos entrelaçadas atrás


das costas.

— O que há de fazer?

Praguejei num sussurro. Além do nosso círculo, Piscary aguardava. Mesmo


que eu conseguisse escapar, Piscary sairia em liberdade. Não podia, propriamente,
pedir a Algaiarept que testemunhasse. De olhos muito abertos, ergui a cabeça.

— Quanto tempo? — perguntei.

A imagem de Kist olhou para o pulso onde surgiu um relógio igual àquele
que eu esmaguei com o martelo de carne.

— Um minuto e trinta.

Senti o rosto gelado.

— O que quer em troca do seu testemunho, numa sala de audiências da SI


ou do DFI, dizendo que Piscary é o assassino em série das bruxas?

Algaiarept sorriu.

— Gosto da forma como pensa Rachel Mariana Morgan.

— O que quer? — gritei, olhando para o Sol que se insinuava pelos lados
dos edifícios.

— Meu preço não mudou. Preciso de um novo familiar e estou demorando


muito tempo para conseguir a alma de Nicholas Gregory Sparagmos.

A minha alma. Não podia fazê-lo, mesmo que isso satisfizesse Algaiarept e,
em última instância, salvasse Nick de perder a alma e ser puxado para a
eternidade, para ser o familiar do demônio. Senti o rosto flácido e fitei Algaiarept
440

com tamanha intensidade que ele pestanejou, surpreendido. Tive uma ideia. Era
tola e arriscada, mas talvez fosse suficientemente louca para funcionar.

— Serei voluntariamente teu familiar — não sabendo se seria capaz de


sobreviver à energia que ele pudesse puxar através de mim ou que me pudesse
forçar a guardar por ele. — Serei livremente seu familiar, mas manterei minha
alma — talvez se eu mantivesse a alma, ele não pudesse me puxar para a
eternidade. Poderia ficar deste lado das linhas Ley e ele poderia usar-me depois do
pôr-do-sol. Talvez. A pergunta era se Algaiarept ia se dar ao trabalho de
considerar essa hipótese. — E quero que testemunhe antes que eu seja obrigada a
c u m p r i r m i n h a p a r t e d o a c o r d o — a c r e s c e n te i , p a r a o c a s o d e c o n s e g u i
r sobreviver.

— Voluntariamente? — disse ele, sua forma tornando-se difusa nas pontas.


Até Piscary parecia chocado. — Não é assim que as coisas funcionam. Nunca
ninguém se tornou um familiar de livre vontade. Não sei o que isso significa.

— Significa que serei o seu familiar, porra! — gritei, sabendo que, se


pensasse nisso, ele acabaria por compreender que só ficaria com metade de mim.
— Ou diz que sim agora ou nos próximos trinta segundos, ou um de nós, Piscary
ou eu, morrerá e ficará sem nada. Nada! Estamos de acordo ou não?

A imagem de Kist inclinou-se para frente e eu desviei-me. Ele olhou para o


relógio.

— Voluntariamente? — tinha os olhos muito abertos, numa mescla de


espanto e cobiça.

Num assomo de pânico, acenei. Me preocuparia com aquilo mais tarde. Se


tivesse um mais tarde.

— Feito — disse ele, tão depressa que pensei que, de certo, tinha cometido
um erro.

O alívio fluiu através de mim, depois a realidade instalou-se como uma


pancada capaz de fazer balançar minha alma. Deus me ajudasse. Eu ia ser o
familiar de um demônio. Recuei, de repente, quando ele levou a mão ao meu
pulso.

— Concordamos — disse ele, agarrando-me no braço com a rapidez de um


vampiro.
441

Dei-lhe um pontapé no estômago. Ele não fez nada, absorvendo o impacto


sem outro movimento. Deixei escapar um suspiro quando ele traçou uma linha
sobre a minha marca de demônio. O sangue correu. Eu saltei e, dizendo-me que
silenciasse, o demônio dobrou a cabeça sobre o meu pulso e soprou.

Tentei puxar o braço, mas ele era mais forte do que eu. Estava farta de
sangue, de tudo. Ele largou-me e eu caí para trás, deslizando pelo arco da sua
barreira, sentindo um formigamento nas costas. Olhei de imediato para o pulso.
Onde outrora estava apenas uma linha, estavam agora duas. A nova parecia tão
antiga como a primeira.

— Dessa vez não doeu — disse eu, muito tensa para me sentir chocada.

— Também não teria doído da primeira vez, se não tivesse tentado costurá-
la. O que sentiu foi a fibra desaparecendo. Sou um demônio, não um sádico.

— Algaiarept! — gritou Piscary, enquanto o nosso acordo era selado.

— Muito tarde — disse o demônio, sorrindo, e desapareceu.

Eu caí de costas quando a barreira desapareceu, guinchando quando


P i s c a r y s al t o u . A po i a nd o - m e c o n t r a o c h ão , e r gu i a s p e r na s pa r a l h e ba t e r ,
projetando-o por cima de mim. Lancei-me em busca da minha bolsa e do
frasco. Minha mão mergulhou no seu interior e Piscary puxou-me para trás.

— Bruxa — silvou ele, agarrando-me pelo ombro. — Terei aquilo que quero
e, depois, morrerá.

— Vá para o inferno, Piscary — rosnei, abrindo o frasco com um suave pop e


atirando seu conteúdo para o rosto do vampiro.

Gritando, Piscary afastou-se de mim repentinamente. Ainda no chão,


observei enquanto ele se afastava, limpando o rosto com movimentos frenéticos.
Com o coração preso na garganta, esperei que ele caísse, esperei que ele
desmaiasse. Não fez nem uma coisa nem outra. Senti o estômago apertado de
medo, enquanto via Piscary limpar o rosto e levar os dedos ao nariz.

— Kisten — disse ele, seu nojo transformando-se numa decepção cansada.


— Oh, Kisten! Você não!

Engoli em seco.

— É inofensivo, não é?
442

O seu olhar cruzou-se com o meu.

— Acha que teria sobrevivido tanto tempo, se dissesse aos meus filhos o
que pode realmente me matar?

Já não me restava nada. Durante alguns segundos fitei-o, imóvel. Seus


lábios curvaram-se num sorriso ansioso. Comecei a mover-me, de repente. Piscary
estendeu um braço, num gesto casual e agarrou-me pelo tornozelo, enquanto eu
tentava me levantar. Eu caí, chutando, tendo conseguido acertar-lhe no rosto por
duas vezes, antes de ele me puxar até ele e me imobilizar sob seu peso.

A cicatriz no meu pescoço começou a pulsar e o medo lançou-se através


dela, numa mistura nauseante.

— Não — disse Piscary suavemente, prendendo-me ao chão. — Dessa vez


sentirá dor.

Suas presas estavam expostas e a saliva pingava delas. Lutei, tentando


respirar, procurando sair de debaixo dele. Ele mudou de posição, segurando meu
braço esquerdo por cima da minha cabeça. Tinha o braço direito livre. Com os
dentes cerrados, tentei feri-lo nos olhos.

Piscary recuou. Com a força de um vampiro, agarrou no meu braço direito e


quebrou. Meu grito ecoou contra os tetos altos. Minhas costas arquearam-se e eu
arquejei tentando respirar. Os olhos de Piscary tornaram-se negros.

— Diz-me se Kalamack tem uma amostra viável — perguntou ele. Sentindo


os pulmões pesados, tentei respirar. A onda de dor erguia-se do meu braço e
ecoava na minha cabeça.

— Vai para o inferno... — disse eu, com a voz rouca.

Sem deixar de me segurar contra o chão, ele apertou meu braço partido. Eu
contorci-me enquanto a agonia me percorria. Todas as minhas extremidades
nervosas pulsavam, ardendo. Um som gutural escapou-se de mim, dor e
determinação. Eu não ia dizer nada. Eu nem sequer sabia a resposta.

Ele depositou todo seu peso sobre meu braço e eu gritei, uma vez mais,
para não enlouquecer. O medo fazia com que me doesse a cabeça enquanto os
olhos de Piscary me fitavam, esfomeados. Seu desejo instintivo erguera-se
incomensuravelmente, pela minha luta. O negrume dos seus olhos aumentava.
Ouvi meus gemidos de dor como se estivesse fora da minha cabeça. Centelhas
prateadas, provocadas pelo choque, erguiam-se entre mim e os olhos de Piscary e
443

meus gritos assumiram uma expressão de alívio. Eu ia desmaiar. Obrigada, meu


Deus. Piscary também o viu.

— Não — sussurrou, a língua passando rapidamente pelos dentes, para


segurar a saliva antes que pingasse. — Sou melhor do que isso.

O vampiro tirou o peso de cima do meu braço. Soltei um gemido enquanto a


agonia esmorecia e se transformava num latejar. Ele inclinou-se e colocou o rosto
a p o u co s ce n t í m e t r o s d o m e u , o b se r va n d o a s mi n h a s p u p i l a s co m u m
desprendimento frio, enquanto as centelhas desapareciam e meus olhos voltavam
a se focar. Sob sua impassibilidade escondia-se uma excitação crescente. Se não
tivesse saciado sua fome com Ivy, não teria conseguido se refrear de beber o meu
sangue. Ele percebeu mal minha força de vontade e regressou, sorrindo de
antecipação. Inspirando, cuspi-lhe no rosto, as lágrimas misturando-se com minha
saliva.

Piscary fechou os olhos, sua expressão revelando uma irritação cansada.


Largou meu pulso esquerdo para limpar o rosto. Ergui a base da mão, projetando-
a contra o seu nariz. Ele apanhou meu pulso antes que conseguisse bater. Com as
presas brilhando, segurou meu braço. Meus olhos desceram ao longo do arranhão
que ele me fez para invocar o amuleto. Meu coração bateu veloz. Um fio de sangue
deslizava, lentamente, ao longo do meu cotovelo. Uma gota de sangue inchou,
estremeceu e caiu sobre meu peito, quente e macia.

Minha respiração tremia e fitei-o, esperando. Sua tensão aumentou, os


músculos apertados enquanto ele se mantinha sobre mim. Seu olhar estava fixo no
meu peito. Caiu mais uma gota e eu a senti, pesada, contra mim.

— Não! — guinchei, quando ele deixou escapar um gemido carnal.

— Agora percebo — disse ele, a voz terrivelmente suave, o desejo contido


pulsando sob ela. — Não é de admirar que Algaiarept tenha demorado tanto
tempo a descobrir quais são teus medos — prendendo-me o braço ao chão, ele
inclinou-se ainda mais sobre mim, até os nossos narizes se encontrarem lado a
lado. Eu não conseguia me mexer. Não conseguia respirar. — Tem medo do desejo
— sussurrou ele. — Diz-me o que quero saber, bruxinha, ou encherei suas veias
comigo, tornando-te meu brinquedo, mas deixarei que recorde sua liberdade... E
então será minha para sempre.

— Vai para o inferno... — disse eu, aterrorizada.


444

Ele afastou-se um pouco para fitar meu rosto. Sentia calor nos pontos onde
o robe se abriu e sua pele tocou a minha.

— Começarei por aqui — disse ele, puxando meu braço pingando para
onde eu o conseguisse ver.

— Não... — protestei. Minha voz era baixa e assustada. Não conseguia


evitá-lo. Tentei trazer o braço para mais perto, mas Piscary segurava-o com força.
Puxou-me o braço, num movimento lento e controlado, enquanto eu lutava por
mantê-lo imóvel. Meu braço partido lançava ondas de náusea através de mim,
enquanto eu o tentava usar, empurrando Piscary com a força de um gatinho.

— Deus, não! Deus, não! — gritei, redobrando meus esforços, enquanto ele
inclinava a cabeça, passando a língua pelo meu cotovelo, gemendo enquanto o
limpava, a língua movendo-se lentamente para o local de onde o sangue fluía
livremente. Se a saliva chegasse às minhas veias, seria sua. Para sempre.

Contorci-me. Debati-me. O calor úmido da sua língua foi substituído pelo


frio afiado dos seus dentes, arranhando, mas não cortando.

— Diz-me — sussurrou ele, inclinando a cabeça para ver meus olhos — e


matarei você agora em vez de dentro de cem anos.

A náusea aumentava, misturando-se com a escuridão da insanidade. Eu me


mexi sob ele. Os dedos do meu braço quebrado ergueram-se até à orelha dele.
Rasguei-a, tentando acertar também nos olhos. Lutei como um animal, o instinto
uma mistura nebulosa entre mim e a loucura. A respiração de Piscary era rouca e
arfava enquanto a minha luta e a minha dor o lançavam num frenesi contido, que
já vi em Ivy muitas vezes.

— Oh, para o diabo com tudo isso — disse ele, a sua voz fluida cortando
através de mim. — Vou beber todo seu sangue. Poderei descobrir de uma forma
ou de outra. Posso estar morto, mas ainda sou um homem.

— Não! — guinchei, mas era tarde de mais.

Os lábios de Piscary afastaram-se. Forçando meu braço a sangrar contra o


chão, inclinou a cabeça para chegar ao pescoço. A névoa da dor inchou,
transformando-se em êxtase, enquanto ele passava com os dedos pelo meu braço
partido. Meu grito misturou-se com o seu gemido de antecipação.

Senti-me atravessar por um estrondo distante e o chão tremeu. Tive um


espasmo, o enlevo quente do meu braço chocando com uma sensação de dor que
445

me tirou o fôlego. O som de homens gritando chegava até mim, filtrado pela
névoa da náusea.

— Não chegarão a tempo — murmurou Piscary. — É muito tarde para


você.

Assim não — pensei, louca de medo e praguejando perante a idiotice de


tudo aquilo. Não queria morrer assim. Ele inclinou-se sobre mim, o rosto selvagem
contorcendo-se, esfomeado. Eu inspirei uma última vez.

A respiração explodiu de mim, quando uma bola verde de eternidade


embateu em Piscary. Estremeci perante a minúscula alteração de peso. Sem me
largar, Piscary rosnou e ergueu os olhos. Meu braço estava livre e enfiei os joelhos
entre nós. As lágrimas toldavam-me a visão, enquanto eu lutava com um
desespero renovado. Alguém estava ali. Alguém estava ali para me ajudar.

Um novo projétil verde acertou Piscary, fazendo-o recuar ligeiramente.


Consegui colocar uma perna debaixo do corpo e levantei-me, projetando o
vampiro de cima de mim. Levantando-me atrapalhadamente, agarrei numa
cadeira e levantei-a. Bati-lhe com ela, a onda de choque alastrando pelo meu
braço. Piscary voltou-se, o rosto selvagem. Estava tenso, preparando-se para
atacar. Eu recuei, o braço quebrado firmemente encostado ao corpo.

Uma terceira explosão de eternidade verde silvou além de mim, acertando


em Piscary e fazendo-o voar contra uma parede. Virei-me para o elevador
distante. Quen. O homem erguia-se, junto a um enorme buraco na parede ao lado
do elevador, no meio de uma nuvem de pó; uma bola de eternidade crescia-lhe na
mão ainda vermelha, mas assumindo os tons da sua aura. Ele devia ter a energia
acumulada no seu chi, já que nos encontrávamos muito fundo para ter acesso a
uma linha. A seus pés estava uma sacola preta: várias estacas de madeira, com o
aspecto de espadas emergiam através do zíper aberto. Do outro lado do buraco
estava a escadaria.

— Já não era sem tempo — arquejei, cambaleando.

— Fiquei preso atrás de um comboio — disse ele, as mãos movendo-se com


a magia das linhas Ley. — Ter arrastado o DFI para isso foi um erro.

— Não teria sido obrigada a fazê-lo se o seu patrão não fosse tão idiota! —
gritei; depois inspirei, tentando não tossir por causa do pó.
446

Kisten tinha tirado meu bilhete. Como é que o DFI tinha chegado ali, se
Quen não os tinha trazido? Piscary voltou a levantar-se. Olhou para nós,
revelando as presas num sorriso aberto.

— E agora sangue elfo? Não me alimentava assim tão bem desde a Viragem.

Com a velocidade de um vampiro, correu através da grande divisão, na


direção de Quen, batendo-me com as costas da mão ao passar. Fui atirada para
trás. Minhas costas chocaram contra a parede e deslizei para o chão. Atordoada e
pairando no limite da consciência, observei Quen, que se desviava de Piscary,
parecendo uma sombra no seu terno negro.

Numa das mãos tinha uma estaca de madeira do tamanho do meu braço, na
outra tinha uma bola de eternidade que crescia. Palavras em latim derramavam-se
dele, palavras de um encantamento negro que se gravaram na minha mente.

Senti a cabeça latejar. Fui inundada pela náusea, enquanto eu tocava na


origem da agonia, mas não descobria qualquer sangue. As manchas negras
desvaneceram-se, enquanto me levantava. Atordoada, procurei minha bolsa,
repleta de amuletos, através do nevoeiro formado pelo pó da parede.

Um grito masculino, de agonia, chamou minha atenção para Quen. Meu


coração pareceu parar. Piscary tinha o apanhado. Segurando-o como um amante,
Piscary mordia-lhe o pescoço, ao mesmo tempo em que suportava o peso de
ambos. Quen ficou mole e a espada de madeira caiu para o chão. Seu grito de dor
cresceu, transformando-se num gemido de êxtase. Usando a parede para me
apoiar, levantei-me.

— Piscary! — gritei, e ele virou-se, a boca vermelha com o sangue de Quen.

— Espera pela sua vez — rosnou, mostrando-me os dentes manchados de


vermelho.

— Eu estava aqui primeiro — disse eu.

Furioso, ele largou Quen. Se tivesse fome, nada o teria afastado da presa
caída. O braço de Quen ergueu-se, débil. Ele não se levantou. Eu sabia o porquê...
Sabia bem de mais.

— Não sabe quando deixar as coisas como estão — disse Piscary, vindo em
minha direção.
447

As palavras latinas jorraram de mim, gravadas na minha mente, durante o


ataque de Quen. Minhas mãos moveram-se, desenhando magia negra. Senti a
língua inchar com o sabor de papel de estanho. Procurei uma linha Ley, sem
sucesso. Piscary se chocou contra mim. Eu arquejei, incapaz de respirar. Ele estava
outra vez em cima de mim, procurando agarrar-me.

Com o medo, algo quebrou. Uma onda de eternidade fluiu através de mim,
ouvi meu grito perante o choque do influxo de poder inesperado. Das minhas
mãos jorrou um fluxo de eternidade dourada, envolta em preto e vermelho.
Piscary foi projetado de cima de mim. Chocou contra a parede, fazendo tremer as
luzes. Ergui-me, enquanto ele caía ao chão, compreendendo de onde veio a
energia.

— Nick! — gritei de medo. — Oh, Deus! Nick! Lamento!

Eu tinha puxado uma linha através dele. Tinha puxado a energia através
dele como se ele fosse um familiar qualquer. Ela tinha corrido através dele como
através de mim. Eu tinha puxado mais do que ele conseguia suportar. O eu fiz?

Piscary estava caído, no ponto onde a parede se encontra com o chão. Seus
pés mexiam-se e ele ergueu a cabeça. Os olhos estavam desfocados, mas negros de
ódio. Não podia deixar que ele se levantasse. Sentindo-me transpassada pela dor,
agarrei a perna da cadeira que Piscary tinha arrancado, e cambaleei ao longo da
sala.

Ele levantou-se, suportando seu peso encostando uma mão à parede. O


robe estava quase todo aberto. Os olhos focaram-se de súbito. Segurei a perna de
metal da cadeira na mão, como um bastão, puxando-a para trás enquanto corria.

— Isso foi por ter tentado me matar — disse eu, agitando-a.

A barra de metal bateu-lhe atrás do ouvido com um estalo repentino.


Piscary cambaleou, mas não caiu. Minha respiração libertou-se, num som furioso.

— Isso foi por ter violado Ivy — gritei, a raiva que sentia por ele ter
magoado tão forte e vulnerável, dando-me novas forças. Ergui a barra, rosnando
de esforço.

A barra metálica bateu-lhe contra a nuca, emitindo um som semelhante a


um melão. Cambaleei para recuperar o equilíbrio. Piscary caiu de joelhos. O san-
gue escorria.
448

— E isso — disse eu, sentindo meus olhos ficarem quentes, a visão turva
das lágrimas —, é por ter matado meu pai — sussurrei.

Com um grito de angústia, atingi-o uma terceira vez. A perna da cadeira


acertou a cabeça de Piscary. Girando com o impulso, caí de joelhos. Doíam-me as
mãos e a perna da cadeira deslizou dos meus dedos insensíveis. Os olhos de
Piscary reviraram-se e ele caiu.

Com a respiração soando como soluços, olhei para ele e limpei o rosto com
as costas da mão. Ele não se mexia. Olhei, por entre as mechas do meu cabelo, para
a j a ne l a f a l s a . O S ol já t i n h a s e e r gu i do , b r il h an d o s o b r e o s ed i f í c i o s .
Provavelmente ele ficaria inconsciente até o anoitecer. Provavelmente.

— Mata-o — grasnou Quen.

Eu ergui a cabeça, tinha me esquecido de que ele estava ali.

Quen tinha se levantado, a mão apertando o próprio pescoço. O sangue


escorria por entre seus dedos formando um feio padrão no carpete branco. Lançou
uma segunda espada na minha direção.

— Mata-o agora.

Apanhei-a como se toda minha vida tivesse apanhado espadas. Tremendo,


virei sua ponta afiada para o carpete e usei-a para me levantar. Através do buraco
na parede podia ouvir gritos e chamamentos. O DFI tinha chegado. Tarde, como
sempre.

— Sou uma agente — disse eu, a garganta dolorida e as palavras roucas.

— Não mato os meus alvos. Apanho-os vivos.

—Então você é tola.

Lancei-me para uma cadeira excessivamente almofadada, antes que caísse


ao chão. Largando a espada, coloquei a cabeça entre os joelhos e fitei o tapete.

— Mate-o você, então — sussurrei, sabendo que ele podia me ouvir. Quen
moveu-se, com passos irregulares, até o saco que deixou junto ao buraco irregular
na parede.

— Não posso. Não estou aqui.


449

A golfada de ar que se escapou de mim provocou-me dor. Ergui os olhos


enquanto ele atravessava a sala até mim, os passos lentos e cuidadosos. Ele
apanhou a espada do chão, enfiando-a no saco com uma mão ensanguentada.
Pensei ver no seu interior um explosivo, quadrado e cinzento, dizendo-me como é
que ele tinha arrebentado o buraco na parede.

Ele parecia cansado, sua estatura alta e esguia dobrada de dor. O pescoço
não estava com muito mau aspecto, mas eu preferia passar seis meses de braço
engessado do que ter uma dentada repleta de saliva de Piscary. Quen era um
Inderlander, e não se podia transformar em vampiro, mas pela expressão de medo
que tingia sua normal confiança, ele sabia que podia ficar preso a Piscary. Com um
vampiro assim tão antigo, a ligação podia durar uma vida inteira. Só o tempo diria
quanta saliva, se alguma, Piscary introduziu na dentada.

— Sa'han está errado em relação a você — disse ele, cansado. — Se não


consegue sobreviver a um vampiro sem ajuda, seu valor é questionável. Seu
caráter imprevisível torna-te pouco confiável e, como tal, perigosa.

Quen acenou com a cabeça antes de dar meia-volta e se dirigir para as


escadas. Vi-o partir, de boca aberta. Sa'han está errado em relação a mim — pensei
sarcasticamente. Ora que bom para Trent.

Doíam-me as mãos e tinha as palmas vermelhas com o que pareciam ser


queimaduras de primeiro grau. A voz de Edden na escadaria fazia-se ouvir,
potente. O DFI podia tratar de Piscary. Eu podia ir para casa... Para casa encontrar
com Ivy — pensei, fechando os olhos por breves instantes.

Como minha vida se tornou tão feia? Mais cansada do que era possível
imaginar, ergui-me enquanto Edden e uma corrente de agentes do DFI passavam
pelo buraco feito por Quen.

— Sou eu! — grasnei, erguendo a mão boa, já que podia ouvir o som de um
número assustador de pastilhas de segurança sendo destravadas. — Não me
matem!

— Morgan! — Edden espreitou pelo meio do pó que sentava e baixou a


arma. Só metade dos agentes do DFI fez o mesmo. Era um número melhor do que
o esperado. — Está viva?

Ele soava surpreso; dobrada de dor, percorri meu corpo com os olhos, meu
braço quebrado agarrado junto ao corpo.
450

— Sim. Acho que sim — comecei a tremer, sentindo-me gelada. Alguém


soltou uma risada e as restantes armas baixaram-se. Edden fez um gesto e os
agentes dispersaram.

— Piscary está ali — disse eu, olhando para esse lado. — Deve ficar
dormindo até o pôr-do-sol. Acho.

Aproximando-se, Edden fitou Piscary, o robe aberto revelando uma boa


parte da sua coxa musculosa.

— O que é que ele estava tentando fazer, seduzi-la?

— Não — sussurrei, para que minha garganta não doesse tanto. — Estava
tentando matar-me — meu olhar cruzou-se com o dele e acrescentei: — Anda por
aí um vampiro vivo chamado Kisten. É loiro e está zangado. Por favor, não o
matem. Além dele e do Quen, não vi mais ninguém senão os oito vampiros vivos
que se encontram no andar de cima. Podem disparar contra eles, se quiserem.

— O responsável pela segurança do Sr. Kalamack? — o olhar de Edden


percorreu-me, catalogando as minhas feridas. — Ele veio com você? — pousou
uma mão no meu ombro, para me acalmar. — Parece que seu braço está partido.

— E está — disse eu, afastando-me quando ele tentou me tocar. Por que as
pessoas fazem isso? — E sim, ele veio até aqui. Porque vocês não fizeram o
mesmo? — subitamente furiosa, espetei um dedo contra o peito dele. — Se voltar a
recusar uma chamada minha, juro que mando Jenks pixá-lo todas as noites durante
um mês.

Uma expressão arrogante atravessou o rosto de Edden e ele olhou de


relance para os agentes do DFI que rodeavam Piscary, temerosos. Alguém chamou
uma ambulância da SI.

— Não recusei sua chamada. Estava dormindo. Ser acordado por um pixy
histérico e um namorado em pânico dizendo que tinha saído para matar o mestre
dos vampiros de Cincinnati não é a minha forma preferida de acordar. E quem é
que lhe deu meu número particular?

Oh, Deus, Nick! A recordação da energia das linhas Ley puxada através dele
fez-me gelar.

— Nick — gaguejei. — Tenho de ligar para Nick.


451

Mas, enquanto olhava para a sala, em busca da minha bolsa e do celular no


seu interior, hesitei. O sangue de Quen tinha desaparecido. Todo ele. Calculei que
Quen estava falando sério quando disse que não queria ali quaisquer provas da
sua presença. Como é que ele tinha feito aquilo? Talvez um pouco de magia élfica?

— O Sr. Sparagmos está no parque de estacionamento — disse Edden.

Espreitando para mim e para o meu rosto gelado, agarrou num agente que
ia passando.

— Arranje-me um cobertor. Ela está entrando em choque.

Dormente, permiti que ele me ajudasse a atravessar a sala e o buraco na


parede.

— O pobre desmaiou, estava tão preocupado com você. Não deixei que ele e
Jenks saíssem do carro — com os olhos iluminados por um súbito pensamento,
levou a mão ao rádio que tinha no cinto. — Diga ao Sr. Sparagmos e a Jenks que a
encontramos e que ela está bem — disse ele, recebendo uma resposta truncada.
Segurando-me pelo cotovelo, murmurou: — Por favor, diga-me que não deixou
realmente um bilhete colado à sua porta, dizendo que ia espetar uma estaca em
Piscary?

Meus olhos estavam fixos na minha bolsa do outro lado da sala, com os
amuletos contra a dor, mas minha cabeça virou-se ao ouvir aquelas palavras.

— Não! — protestei, enquanto sentia a cabeça rodar, devido ao movimento


rápido. — Eu disse que ia falar com ele e que ele era o caçador de bruxas. Deve ter
sido Kisten a escrevê-lo, porque o meu anda por aí em algum lugar. Eu o vi!

Kisten tinha substituído meu bilhete? Cambaleei, confusa, enquanto Edden


me puxava para frente. Kisten tinha substituído meu bilhete, dando a Nick o único
número que levaria o DFI até ali. Por quê? Teria sido para me ajudar ou apenas
para esconder o fato de ter traído Piscary?

— Kisten? — perguntou Edden. — Esse é o vampiro vivo que não quer que
eu mate, certo? — ele pegou no cobertor azul do DFI que alguém lhe entregava e
envolveu com ele meus ombros. — Venha. Quero levá-la lá para cima, podemos
tentar entender tudo isso mais tarde.

Apoiando-me pesadamente nele, apertei o cobertor ao redor de mim,


encolhendo-me quando a lã grossa me magoou as mãos. Não queria olhar para
elas, pensando que não seria nada comparado com a mancha na minha alma
452

deixada pelo feitiço negro que Quen me ensinou. Inspirei lentamente. O que
interessava que soubesse encantamentos negros? Eu ia ser o familiar de um
demônio.

— Meu Deus, Morgan — disse Edden enquanto voltava a prender o rádio


de duas vias no cinto. — Era mesmo preciso abrir um buraco na parede?

— Não abri — disse eu, concentrando-me no tapete um metro à minha


frente. — Foi Quen.

Os agentes continuavam a descer ruidosamente as escadas e a penetrar na


sala, um enxame de presenças oficiais que, de súbito, me fizeram sentir deslocada.

— Rachel, Quen não está aqui.

— Sim — disse eu, tremendo violentamente, olhando por cima do ombro


para o tapete imaculado.

A adrenalina tinha desaparecido e a fadiga e a náusea puxavam por mim.


As pessoas moviam-se rapidamente à nossa volta, deixando-me tonta. Queria
minha bolsa e o amuleto contra a dor que se encontrava no seu interior, mas
estávamos avançando na direção errada e parecia que alguém tinha deixado um
cartão de prova junto a ela. Maravilha.

Meu estado de espírito tornou-se ainda mais sombria quando uma mulher,
num uniforme do DFI, parou ao nosso lado, abanando uma arma à frente de
Edden. Encontrava-se num saco de provas e eu não consegui evitar que minha
mão se estendesse para ela.

— Ei — voltei a protestar e Edden impediu-me de agarrá-la.

— Lamento, Rachel. São provas — ele passou um olhar rápido pelos


agentes que nos rodeavam antes de sussurrar: — Mas obrigado por tê-la deixado
onde a pudéssemos encontrar. Glenn não poderia ter derrubado aqueles vampiros
sem ela.

— Mas... — gaguejei, vendo a mulher desaparecer para o piso superior com


minha arma de bolas explosivas.

Ali havia mais pó e engoli em seco, para não tossir, o que me faria
desmaiar.
453

— Vamos — disse Edden, parecendo cansado enquanto tentava me puxar.


— Odeio fazer isso, mas é melhor que recolha um depoimento seu antes que
Piscary acorde e apresente queixa.

— Apresente queixa? Por quê? — libertei-me dele, com um movimento


abrupto, recusando mexer-me. Que raio estava acontecendo? Eu tinha acabado de
apanhar o caçador de bruxas e era eu quem ia ser presa?

Os agentes que se encontravam por perto nos escutavam com atenção e o


rosto redondo de Edden pareceu ainda mais culpado.

— Por agressão, por difamação, por ter entrado ilegalmente em casa dele,
por destruição danosa de propriedade privada ou o que quer que seja que o
advogado pré-Viragem dele seja capaz de inventar. O que pensou que estava
fazendo quando veio aqui para tentar matá-lo?

Lutei por falar, sentindo-me ultrajada.

— Eu não o matei, embora Deus saiba que ele merecia. Ele violou Ivy para
me atrair até aqui e me matar porque eu descobri que ele era o caçador de bruxas!
— ergui a mão boa, como se fosse possível aliviar a dor na minha garganta pelo
lado de fora. — E tenho uma testemunha disposta a depor em como Piscary o
contratou para matar as vítimas. É suficiente para você?

Edden ergueu uma sobrancelha.

— Testemunha? — voltou-se para olhar para Piscary, rodeado pelos


nervosos agentes do DFI que aguardavam a chegada da ambulância da SI. — De
que testemunha é que está falando?

— Não quer saber.

Fechei os olhos. Eu ia ser o familiar de um demônio. Mas estava viva. Não


tinha perdido a minha alma. Tinha de me concentrar nos aspectos positivos.

— Posso ir? — perguntei, quando vi o primeiro degrau das escadas, do


outro lado do buraco. Não fazia ideia como ia subir todos aqueles degraus. Talvez
se deixasse que Edden me prendesse, eles me levassem no colo. Sem esperar pela
sua autorização, afastei-me e segurei o braço junto ao corpo, enquanto cambaleava
até ao buraco irregular, na parede. Tinha acabado de apanhar o vampiro mais
poderoso de Cincinnati, um assassino em série, e tudo o que queria era vomitar.

Edden deu um passo em frente para me alcançar, ainda sem me responder.


454

— Posso, pelo menos, ficar com as botas? — perguntei, quando vi Gwen


fotografá-las, avançando cuidadosamente através da sala, a câmera de vídeo
gravando tudo.

O capitão do DFI estancou, baixando os olhos para os meus pés.

— Vai sempre atrás dos mestres vampiros descalça?

— Só quando eles estão de pijama — apertei o cobertor ao redor do corpo,


sentindo-me miserável. — Quero manter o desportismo, sabe?

O rosto redondo de Edden abriu-se num sorriso.

— Ei, Gwen! Para com isso — disse em voz alta, enquanto me agarrava no
cotovelo e ajudava a subir as escadas. — Isso não é a cena de um crime. É uma
detenção.

Capitulo 29
— Ei! Aqui! — gritei, sentada no banco duro do estádio, acenando para
chamar a atenção do vendedor ambulante.
455

Faltavam uns bons quarenta minutos para o início do jogo e, embora as


arquibancadas estivessem cheias, os vendedores não prestavam muita atenção.
Semicerrei os olhos e levantei quatro dedos, enquanto ele se virava, erguendo oito,
em resposta. Estremeci. Oito dólares por quatro cachorros-quentes? — pensei,
entregando o dinheiro. Oh, bem! Afinal de contas não tinha sido eu a pagar os
bilhetes.

— Obrigado, Rachel — disse Glenn ao meu lado, enquanto pegava o


embrulho atirado pelo vendedor. Colocou-o no colo e apanhou os restantes, visto
que meu braço estava engessado e, obviamente, inoperante. Passou um para o pai
e para Jenks à sua esquerda. Deu-me o seguinte e eu passei-o para Nick, do outro
lado. Nick esboçou um sorriso tímido, olhando imediatamente para baixo, onde os
Howlers estavam aquecendo.

Meus ombros envergaram-se, subitamente, e Glenn aproximou-se mais,


com a desculpa de desembrulhar meu cachorro quente e me passar.

— Dê-lhe algum tempo.

Não respondi, fixando o olhar no estádio ornamentado. Embora Nick não o


admitisse, um novo medo tinha se interposto entre nós. Tivemos uma discussão
penosa na semana anterior, durante a qual pedi imensa desculpa por ter puxado
tão grande quantidade de energia das linhas Ley através dele e lhe disse que tinha
sido um acidente. Ele insistiu que estava tudo bem, que compreendia e que estava
feliz por eu o ter feito, já que isso salvou minha vida. Suas palavras foram sinceras
e eu sabia, no fundo da minha alma, que ele acreditava nelas. Mas, agora,
raramente me olhava nos olhos e tentava, por todos os meios, não me tocar.

Como que para provar que nada mudou, insistiu para que eu dormisse na
casa dele na noite anterior, como era hábito nos nossos fins de semana. Foi um
erro. A conversa ao jantar foi, na melhor das hipóteses, afetada: Como foi teu dia,
querido? Ótimo, obrigado; como foi o seu? Seguimos com várias horas de
televisão, eu sentada no sofá e ele na cadeira do outro lado da sala. Esperei que
melhorasse depois de me retirar terrivelmente cedo — à uma da manhã —, mas
ele fingiu adormecer de imediato, fazendo com que me desfizesse em lágrimas
quando se afastou do toque do meu pé. A noite teve sua confirmação brilhante, às
quatro da manhã, quando Nick acordou com um pesadelo. Quase entrou em
pânico quando me descobriu na cama com ele.

Desculpei-me, serenamente, e apanhei o ônibus para casa, dizendo que, já


que estava acordada, ia me certificar que a Ivy chegou bem e que o veria mais
456

tarde. Ele não me impediu. Sentou-se na beira da cama com a cabeça entre as mãos
e não me impediu.

Franzi os olhos sob o sol ardente da tarde, retendo qualquer sinal de


lágrimas. Era o Sol. Apenas isso. Dei uma dentada no cachorro-quente. Mastigá-lo
parecia exigir um enorme esforço e caiu-me de forma pesada no estômago
quando, por fim, o engoli. Lá no fundo, os Howlers gritavam e atiravam a bola de
um lado para o outro.

Pousando o cachorro-quente no papel sobre meu colo, agarrei uma bola de


basebol com a mão aleijada. Meus lábios moveram-se numa muda invocação em
latim, ao mesmo tempo em que esboçava uma figura complexa com a mão
esquerda saudável. Os dedos sobre a bola tremeram quando proferi a última
palavra do encantamento. Uma satisfação melancólica apoderou-se de mim
quando o lançamento do pitcher deu errado. Catcher pôs-se de pé para apanhar a
bola, hesitando, confuso, antes de voltar a pôr-se de cócoras.

Jenks esfregou as asas uma na outra para me chamar a atenção, espetando


alegremente um polegar no ar, em sinal de aprovação da magia das linhas Ley.
Devolvi-lhe o sorriso aberto com um mais fraco. O pixy estava sentado no ombro
do capitão Edden para poder ver melhor. Os dois tinham feito as pazes com uma
conversa sobre cantores de country western e uma saída à noite a um bar de
karaokê. Não queria saber... Sério.

Edden seguiu o olhar de Jenks até mim, os olhos escondidos atrás dos
óculos redondos, fitando-me desconfiado. Jenks distraiu-o enaltecendo, em alto e
bom som, as características de um trio de mulheres que se dirigia para os degraus
de cimento. A cara do homem atarracado ficou vermelha, mas ele sorriu. Grata,
virei-me para Glenn, descobrindo que já tinha terminado seu cachorro-quente.
Devia ter pedido dois para ele.

— Como está o caso Piscary? — perguntei.

O homem alto mudou de posição no assento com um pulo de excitação,


enquanto limpava os dedos em suas calças jeans. Sem o terno e a gravata, parecia
outra pessoa; a t-shirt com o logotipo dos Howlers fazia com que parecesse
confortável e seguro.

— Com o testemunho do teu demônio, acho que está praticamente ganho


— disse ele. — Estava à espera que houvesse uma escalada dos crimes violentos,
mas estes diminuíram — olhou de relance para o pai. — Creio que as casas
457

menores estão à espera do encarceramento oficial do Piscary, antes de começarem a


lutar pelo seu território.

— Não o farão — meus dedos e minhas palavras atiraram outra bola


diretamente para fora do estádio com um impulso extra de energia da eternidade.
Era difícil puxar a força da linha próxima. As medidas de segurança do estádio
estavam a repudiá-la. — Kisten ficou à frente dos negócios de Piscary — disse com
azedume. — O trabalho prossegue, como sempre.

— Kisten? — ele aproximou-se mais. — Ele não é um mestre vampiro. Isso


não causará problemas?

Acenando, fiz com que uma bola alta ressaltasse mal. Os jogadores ficaram
mais lentos e tensos quando esta bateu na parede e rebolou numa direção
estranha. Glenn nem fazia ideia da quantidade de problemas que aquilo ia trazer.
Ivy era o delfim de Piscary. Pela lei não escrita vampírica, era ela quem mandava,
quer quisesse quer não. Isso colocava a ex-agente da SI num enorme dilema moral,
encurralada entre suas responsabilidades de vampira e sua necessidade em ser
verdadeira consigo própria. Ela ignorava os pedidos de Piscary para que o
visitasse na sua cela, bem como muitas outras coisas que se iam acumulando
lentamente.

Escondendo-se atrás da desculpa de que todo o pessoal pensava que Kist


ainda era o delfim de Piscary, não fazia nada, afirmando que Kisten tinha o poder
e, até mesmo a presença física para manter tudo intacto. Não me parecia nada
bem, mas não era eu que ia aconselhá-la a tratar dos assuntos de Piscary. Não só
tinha dedicado sua vida para apanhar aqueles que infringiam a lei, como lutaria
p a r a t e n ta r s u p e r a r a a t r a ç ã o p e l o s a n g u e e p e l o p o d e r q u e t a l p o s i ç ã o
intensificaria. Não ouvindo qualquer outro comentário, Glenn amarrotou o papel
do cachorro-quente e deixou-o cair no bolso do seu casaco.

— Então, Rachel — disse, olhando de relance para o lugar vazio ao lado de


Nick. — Como está sua companheira de casa? Melhor?

Dei outra dentada.

— Está se aguentando — disse com a boca cheia. — Ela teria vindo hoje,
mas o Sol anda mesmo a incomodá-la... Ultimamente.

Muitas coisas a andavam a incomodar desde que se empanturrara com o


sangue do Piscary: o Sol, muito barulho, pouco barulho, a falta de velocidade do
seu computador, a polpa no sumo de laranja e o peixe na banheira, até que Jenks o
458

pegou, saiu pelos fundos e o fritou para aumentar os níveis de proteínas dos filhos
antes da hibernação de outono. Tinha ficado muitíssimo doente, depois de assistir
à missa da meia-noite, mas não ia deixar de ir. Disse-me que isso a ajudava a
manter-se distante de Piscary. Tratava-se, aparentemente, de uma distância
mental. O tempo e a distância era suficiente para quebrar o elo que um vampiro
menor estabelecia com outro através de uma dentada, mas Piscary era um mestre
vampiro. O elo duraria enquanto Piscary o desejasse.

Devagar, Ivy e eu começamos a encontrar um novo equilíbrio. Quando o


Sol estava alto e brilhante, ela era Ivy, minha amiga e parceira, satisfeita com o seu
humor seco e sarcástico, enquanto pensávamos em peças para pregar em Jenks ou
debatíamos os possíveis melhoramentos que poderiam tornar a igreja habitável.
Depois do pôr-do-sol, ela partia, para que eu não visse o efeito que a noite tinha
agora sobre ela. Sob a luz do Sol ela era forte; depois de este se pôr, tornava-se
uma deusa cruel, tentando equilibrar-se no limite do desespero, enquanto travava
uma batalha consigo mesma.

Sentindo-me desconfortável com meus pensamentos, puxei a linha Ley e


atirei uma bola desgovernada, que foi bater na parede atrás do catcher.

— Rachel? — disse o capitão Edden, lançando-me um olhar duro por trás


dos óculos, enquanto se inclinava, do outro lado do filho, para olhar para mim. —
Diga-me se ela quiser falar com o Piscary. Terei todo o prazer em olhar para o
outro lado se ela quiser lhe dar umas tapas.

Ele recostou-se, enquanto eu lhe dirigia um sorriso triste. Piscary tinha sido
transferido para a custódia da SI, encontrando-se são e salvo, numa cela para
vampiros. A audiência preliminar tinha corrido bem, tendo o sensacionalismo da
situação originado uma vaga inesperada no calendário do tribunal. Algaliarept
mostrou-se uma testemunha confiável. O demônio representou todos os papéis,
assumindo toda a espécie de aparências e assustando terrivelmente todos os que
se encontravam na sala do tribunal. O que mais me perturbou foi o fato de o juiz
ter tido medo de uma garota loira e coxa que mostrava. O demônio pareceu gostar
disso.

Ajeitei meu boné vermelho dos Howlers, na mesma hora em que um


batedor subia para o monte central para atirar algumas bolas para o campo. Com o
cachorro-quente no colo, agitei os dedos e balbuciei o encantamento. As defesas do
parque tinham sido aumentadas e tive de abrir uma brecha através delas para
alcançar a linha. Um súbito fluxo de energia da eternidade atingiu-me e Nick ficou
ereto. Pedindo desculpa, passou por mim, balbuciando algo sobre o banheiro. Sua
459

figura magra apressou-se a descer as escadas e desapareceu. Sentindo-me


infelicíssima, lancei a energia da eternidade na direção do pitcher. Ouviu-se um
estalido agudo e o taco partiu-se. O batedor atirou os bocados para o chão,
praguejando tão alto que consegui ouvir. Voltou-se para lançar um olhar de acu-
sação aos espectadores. O pitcher encostou a luva ao quadril. O catcher estacou.
Meus olhos semicerraram-se de satisfação quando o treinador apitou, chamando-
os a todos.

— Boa, Rache — disse Jenks e o capitão Edden dirigiu-me um olhar


inquisitivo.

— Foi você? — perguntou e eu encolhi os ombros. — Vai fazer com que a


expulsem.

— Talvez eles devessem ter pago o que me deviam — estava tendo


cuidado. Ninguém estava se machucando. Se quisesse, podia fazer com que os
corredores torcessem os tornozelos e os lançamentos desgovernados atingissem
jogadores. Não queria. Só estava me metendo com o aquecimento deles. Tateei o
guardanapo que embrulhava o cachorro-quente. Onde está o pacote de ketchup?
Esse cachorro-quente não tem absolutamente sabor nenhum.

O capitão do DFI remexeu-se, desconfortável.

— Hum, acerca do seu pagamento, Morgan...

— Esqueça — disse, rapidamente. — Suponho que ainda esteja lhe devendo


por ter pago meu contrato com a SI.

— Não — disse ele. — Tínhamos um acordo. Não tem culpa que a aula
tenha sido cancelada.

— G le n n , po s s o f i c a r c o m s e u k e t c h up ? — di s s e , b r u s c a me n t e ,
interrompendo Edden. — Não sei como vocês conseguem comer os cachorros-
quentes sem ele. Por que Viragem aquele cara não me deu ketchup?

Edden recostou-se com um suspiro. Glenn tateou obedientemente seu


guardanapo machucado até encontrar o pacote branco. De rosto sério, olhou para
o meu braço quebrado e hesitou.

— Eu... Hum... Eu abro — ofereceu.

— Obrigada — murmurei, não gostando de me sentir impotente. Tentando


não fazer uma expressão carrancuda, observei enquanto o detetive tentava, com
460

cuidado, rasgar o pacote. Entregou-me e, com o cachorro-quente balançando no


meu colo, tentei, desajeitadamente, espremer o ketchup do pacote. Estava tão
compenetrada que quase não reparei que Glenn levantava a mão e, furtivamente,
lambia uma mancha vermelha dos dedos.

Glenn? — pensei. Meu rosto contorcia-se à medida que ia me lembrando do


nosso ketchup desaparecido e as peças iam se encaixando.

— Você... — sussurrei. Glenn tinha roubado nosso ketchup?

Com o rosto em pânico, o homem estendeu um braço e quase me tapou a


boca, antes de recuar.

— Não — suplicou, inclinando-se sobre mim. — Não diga nada.

— Ficou com o nosso ketchup! — sussurrei, chocada.

Atrás de Glenn, vi Jenks, que conseguia ouvir nossos sussurros e, ao mesmo


tempo, continuar a conversar com o capitão do DFI para distrai-lo, a balançar-se
de regozijo sobre o ombro de Edden.

Glenn lançou um olhar culpado ao pai.

— Eu pago — suplicou. — Tudo o que quiser, mas não diga a meu pai. Oh,
meu Deus, Rachel! Isso daria cabo dele.

Por um momento fiquei pasmada. Ele tinha levado nosso ketchup. Tinha o
tirado da nossa mesa.

— Quero suas algemas — disse, de repente. — Não consigo encontrar


nenhuma verdadeira que não esteja enfeitada com imitação de pele vermelha.

A sua expressão de pânico começou a desvanecer-se e ele recostou-se na


cadeira.

— Segunda-feira.

— Por mim, tudo bem — minhas palavras soaram calmas, mas por dentro
estava cantando. Ia voltar a ter umas algemas! Seria um belo dia.

Glenn lançou um olhar culpado em direção ao pai.

— Pode arranjar-me... Um frasco de picante?

Meus olhos foram atraídos pelos dele.


461

— E que tal molho de churrasco?

Fechei a boca antes que entrasse alguma mosca.

— Claro! — Não podia acreditar. Estava contrabandeando ketchup para o


filho do capitão do DFI.

Levantei os olhos e vi um funcionário do estádio, a farda vermelha de


poliéster, subindo lentamente as escadas na nossa direção, observando o rosto dos
espectadores. Um sorriso abriu-se no meu rosto quando fixou meus olhos.
Enquanto ele se dirigia para nós, pela arquibancada relativamente vazia,
embrulhei o resto do cachorro-quente, sentei-me no lugar de Nick e escondi a bola
na minha bolsa. Tinha sido engraçado enquanto durou. Não tinha qualquer
intenção de interferir durante o jogo, mas eles não sabiam disso.

Jenks voou do capitão Edden para mim. Estava todo vestido de vermelho e
branco em honra à equipe; o brilho fazia-me doer os olhos.

— Oooooh! — troçou. — Agora está em apuros.

Edden lançou-me um último olhar de aviso antes de dedicar toda sua


a te n ç ã o a o c a m p o , c l a r a m e n t e t e n t a n d o d i s ta n c i a r - s e d e m i m a n te s q u e
expulsassem também com ele.

— Senhorita Rachel Morgan? — perguntou o jovem de terno vermelho


quando chegou perto de nós.

Pus-me de pé com a bolsa.

— Sim.

— Sou Matt Ingle. Segurança das linhas Ley do estádio. Pode acompanhar-
me, por favor?

Glenn levantou-se, as pernas abertas e as mãos nos quadris.

— Há algum problema? — perguntou, adotando em força sua postura de


jovem negro. Eu estava muito extasiada pela ideia de ele gostar de ketchup para me
zangar com a ideia de ele querer me proteger.

Matt abanou a cabeça, nada intimidado.

— Não, senhor. O dono dos Howlers ouviu falar dos esforços da senhorita
Morgan para recuperar a mascote do clube e gostaria de falar com ela.
462

— Terei todo o prazer em falar com ele — disse eu, e Jenks riu bem alto, as
asas a assumirem um vermelho vivo.

Apesar de o capitão Edden ter mantido meu nome fora dos registos, toda a
Cincinnati, incluindo Hollows, sabia quem tinha resolvido os assassinatos do
caçador de bruxas, feito a captura e invocado o demônio para a sala de audiências.
Meu telefone não parou de tocar com pedidos de ajuda. De um dia para o outro,
tinha passado de empreendedora em dificuldades a agente dos diabos. Por que
teria receio do dono do Howlers?

— Vou contigo — disse Glenn.

— Eu trato do assunto — respondi, sentindo-me insultada.

— Eu sei, mas quero falar contigo e parece-me que vão te pôr fora do
estádio.

Edden riu, afundando seu corpo atarracado no banco. Tirando um chaveiro


do bolso, entregou-o a Glenn.

— Acha que sim? — disse eu, acenando a Jenks em despedida e dizendo-


lhe, com um aceno do dedo e da cabeça, que o veria na igreja. O pixy acenou,
instalando-se no ombro do capitão Edden, gritando e uivando, estando a divertir-
se demais para ir embora.

Glenn e eu seguimos o agente de segurança das linhas Ley até um carrinho


de golfe que nos esperava e levou-nos até às profundezas do estádio. Ia ficando
cada vez mais fresco e silencioso; o ribombar dos milhares de espectadores
invisíveis que nos rodeavam, uma tempestade quase subliminar. No fundo da
zona de acesso restrito, no meio de ternos de gala e de champanhe, Matt parou o
carrinho. Glenn ajudou-me a descer e eu tirei o boné, entregando-lhe, enquanto
ajeitava o cabelo. Tinha vestido umas boas calças jeans e uma camiseta branca,
mas todos os que vi nos últimos cinco minutos usavam gravata ou brincos de
diamantes. Alguns usavam as duas coisas.

Matt parecia nervoso enquanto nos acompanhava num elevador e nos


deixava numa sala luxuosa com vista para o campo. Estava confortavelmente
repleta de conversas e pessoas agradavelmente vestidas. O suave aroma
almiscarado fez-me cócegas no nariz. Glenn tentou devolver-me o boné e eu fiz-
lhe sinal que o guardasse.
463

— Senhorita Morgan — disse uma mulher baixa, que se afastou de um


grupo de homens. — Fico muito feliz por conhecê-la. Sou a Sra. Sarong — disse
ela, enquanto se aproximava de mãos estendidas.

Ela era mais baixa do que eu e, sem dúvida, um animalomem. O cabelo


escuro começava a ficar cinzento, com madeixas leves que lhe ficavam bem, e as
mãos eram pequenas e poderosas. Movia-se com uma graça predatória que
chamava a atenção, os olhos vendo tudo. Os machos animalomens tinham de se
esforçar para esconder sua rudeza. As fêmeas adquiriam um aspecto mais
perigoso.

— É um prazer conhecê-la — disse eu, quando ela me tocou no ombro por


breves instantes, cumprimentando-me, visto que o meu braço direito estava preso
ao peito. — Este é o detetive Glenn do DFI.

— Minha senhora — disse ele e a pequena mulher sorriu, revelando os


dentes impecáveis e alinhados.

— Encantada — disse ela, agradavelmente. — Se nos der licença, Detetive?


A Senhorita Morgan e eu precisamos conversar um pouco antes do início do jogo.

Glenn acenou com a cabeça.

— Sim, minha senhora. Se me permitir, vou buscar uma bebida para cada
uma.

— Seria maravilhoso.

Revirei os olhos perante os cumprimentos de circunstância, aliviada


quando a Sra. Sarong pousou uma mão no meu ombro e me guiou para longe. Ela
cheirava a feno e musgo. Todos os homens nos observavam, enquanto
avançávamos juntas e nos colocávamos perto de uma janela com uma espantosa
vista do campo. Estávamos em grande altura, o que me deixou ligeiramente tonta.

— Senhorita Morgan — disse ela, —, foi trazido à minha atenção que foi
contratada para recuperar nossa mascote. Uma mascote que nunca chegou a
desaparecer.

— Sim, minha senhora — disse eu, admirada pela facilidade com que o
título respeitoso fluíra dos meus lábios. — Quando me informaram desse fato,
esqueceram por completo o tempo e a energia desperdiçados.

Ela exalou suavemente.


464

— Detesto rodeios. Tem andado a usar magia sobre o campo?

Contente com sua sinceridade, eu optei por fazer o mesmo.

— Passei três dias planejando a entrada no gabinete do Sr. Ray, um tempo


que podia ter utilizado para outros casos — disse eu. — E ainda que admita que a
culpa não é sua, alguém devia ter me informado.

— Talvez, mas mantém-se que o peixe não desapareceu. Não tenho por
hábito pagar quando sou chantageada. Vai parar.

— E eu não tenho por hábito fazê-lo — disse eu, não tendo qualquer
dificuldade em conter meu temperamento, enquanto sua matilha me rodeava. —
Mas ficaria mal se não lhe revelasse meus sentimentos quanto ao assunto. Dou-lhe
minha palavra de que não interferirei no jogo. Não será preciso. Até que me
paguem, cada vez que uma bola se perder ou um taco se rachar, os seus jogadores
ficarão pensando que fui eu — sorri, sem mostrar os dentes. — Quinhentos
dólares é um pequeno preço a pagar pela paz de espírito dos seus jogadores.

Uns míseros quinhentos dólares. Devia ter multiplicado o valor por dez.
Por que os capangas de Ray desperdiçaram as balas sobre mim, era algo que eu
continuava sem entender. Seus lábios apartaram-se e eu podia jurar que tinha
ouvido um rosnado no seu suspiro. Os atletas eram famosos pela sua superstição.
Ela pagaria.

— Não é uma questão de dinheiro, Sra. Sarong — disse eu, embora a


princípio tivesse sido. — Mas se eu deixar que uma matilha me trate como uma
boba, eu passarei a sê-lo. E não sou boba.

Ela ergueu o olhar do campo.

— Não é boba — concordou. — É um lobo solitário — com um movimento


gracioso, fez sinal a um animalomem que se encontrava por perto e que, na
verdade, me parecia estranhamente familiar. Ele apressou-se a avançar, trazendo
consigo um livro de cheques numa pasta de couro do tamanho de uma Bíblia —
que tinha de ser manuseado com as duas mãos. — O lobo solitário é o mais
perigoso — disse ela, enquanto escrevia. — É também aquele que tem uma
expectativa de vida mais curta. Arranje uma matilha, senhorita Morgan.

O som do cheque rasgando foi sonoro. Não sabia ao certo se ela estava me
dando um conselho ou fazendo uma ameaça.
465

— Obrigada, já tenho uma — disse, sem olhar para a quantia, enquanto


enfiava o cheque na bolsa. A forma suave da bola de basebol tocou-me nos nós
dos dedos e eu tirei-a da mala. Pousei-a na mão aberta dela. — Partirei antes do
início do jogo — disse, sabendo que ela jamais me deixaria regressar às
arquibancadas. — Durante quanto tempo vou ser banida?

— Para toda a vida — disse ela, sorrindo como se fosse o diabo em pessoa.
— Eu também não sou boba.

Devolvi-lhe o sorriso, gostando genuinamente da mulher mais velha. Glenn


aproximou-se. Peguei o champanhe que ele me entregava e pousei-o no parapeito
da janela.

— Adeus, Sra. Sarong.

Ela inclinou a cabeça, indicando que eu estava dispensada, com a segunda


flute de champanhe que Glenn trouxe segura, gentilmente, entre os seus dedos.
Três jovens aproximaram-se dela por trás, amuados e bem cuidados. Senti-me feliz
por não ter o trabalho dela, embora as regalias parecessem excelentes.

O s s a p a to s d e G l e n n b a ti a m r u i d o s a m e n t e n o c o n c r e to , e n q u a n t o
regressávamos ao portão da frente, sem a ajuda de Matt e do seu carrinho de golfe.

— Despede-se de todos por mim? — perguntei, referindo-me a Nick.

— Claro — os olhos dele estavam fixos nos enormes sinais, com suas letras
e setas indicando as saídas. O sol estava quente, quando emergimos para ele, e eu
relaxei quando nos abrigamos no ponto do ônibus. Glenn parou ao meu lado e
devolveu-me o boné. — Em relação aos seus honorários... — começou ele.

— Glenn — disse eu, enquanto punha o boné —, como disse ao seu pai, não
se preocupe com isso. Estou grata por terem saldado meu contrato junto da SI e,
com os dois mil que Trent me deu, tenho o suficiente para me aguentar até o braço
ficar curado.

— Importa-se de se calar? — perguntou ele, vasculhando o bolso. —


Pensamos numa coisa.

Meu olhar caiu para a chave que ele tinha na mão e, depois, erguendo-se
para seus olhos.
466

— Não conseguimos fazer aprovar o reembolso pela aula cancelada, mas


havia um carro apreendido. A agência de seguros ficou com o título de
propriedade, por isso não podíamos leiloá-lo.

Um carro? O Edden estava me dando um carro? Os olhos castanhos de


Glenn brilhavam.

— Reparamos a embreagem e a transmissão. Também havia algo errado


c o m o s i s te m a e l é tr i c o , m a s o s c a r a s d a g a r a g e m d o D FI a r r a n j a r a m - n o ,
gratuitamente. Teríamos te dado mais cedo, mas a DGV não percebia o que eu
estava tentando fazer, pelo que foram precisas três viagens à sede para conseguir
que fosse transferido para o seu nome.

— Vocês compraram-me um carro? — disse eu, a excitação perceptível na


minha voz.

Glenn sorriu e entregou-me uma chave listrada, num chaveiro que era uma
pata de coelho.

— O dinheiro que o DFI teve de gastar foi quase o mesmo que estava te
devendo. Levo-te em casa. É um carro de câmbio manual e não sei se conseguirá
passar as marchas com esse braço.

Com o coração batendo, veloz, comecei a andar ao seu lado, percorrendo o


parque com os olhos.

— Qual é?

Glenn apontou e o som dos saltos dos meus sapatos batendo no pavimento
cessou, quando vi o conversível vermelho e o reconheci.

— É o carro de Francis — disse eu, não sabendo ao certo o que estava


sentindo.

— Não faz mal, não é? — perguntou Glenn, subitamente preocupado. — Ia


ser destruído. Não é supersticiosa, é?

— Hum... — hesitei, atraída pela tinta vermelha e brilhante. Toquei-lhe,


sentindo sua textura suave. A capota estava descida e virei-me, sorrindo. A
sobrancelha franzida de preocupação de Glenn suavizou-se em sinal de alívio.

— Obrigada — sussurrei, sem acreditar que era mesmo meu. Era meu?
467

Com passos leves, dirigi-me à frente do carro, depois à traseira. Tinha uma
nova placa personalizada: EM AÇÃO. Era perfeito.

— É meu? — repeti, com o coração batendo veloz.

— Vamos, entra — disse Glenn, o rosto transformado pelo entusiasmo.

— É maravilhoso — disse eu, recusando-me a chorar. Acabaram-se os


passes expirados. Acabaram-se as esperas no frio. Acabaram-se os amuletos de
disfarce para que parassem o ônibus.

Abri a porta. O banco em pele estava quente devido ao sol da tarde e era tão
suave como leite com chocolate. O som suave da porta sendo aberta era divino.
Enfiei a chave, verifiquei se estava em ponto-morto, pisei na embreagem e o
coloquei para trabalhar. O roncar do motor era a liberdade em si. Fechei a porta e
sorri para Glenn.

— Sério? — perguntei, a voz embargada.

Ele acenou, sorrindo.

Estava maravilhada, com o braço quebrado não conseguia passar as


marchas, mas podia experimentar todos os botões. Liguei o rádio, pensando que
devia ser um presságio quando a voz da Madonna se fez ouvir. Baixei o som de
"Material Girl" e abri o porta-luvas, só para ver meu nome no documento. Do seu
interior escorregou um envelope amarelo e apanhei-o do chão.

— Não pus isso aí — disse Glenn, sua voz carregada com uma nova
preocupação.

Levei-o ao nariz, ficando de queixo caído ao reconhecer o cheiro de pinho.

— É de Trent.

Glenn endireitou-se.

— Saia do carro — disse ele, numa voz grossa e ríspida, todas as sílabas
carregadas de autoridade.

— Não seja idiota — disse eu. — Se ele me quisesse morta, não teria
enviado Quen para me ajudar.

De maxilar cerrado, Glenn abriu a porta. O carro começou a apitar.

— Saia. Vou pedir que o analisem e levo amanhã.


468

— Glenn... — disse eu, em tom de censura, enquanto abria o envelope e os


meus protestos se silenciavam. — Hum... — gaguejei. — Ele não está tentando me
matar, está me pagando.

Glenn inclinou-se para ver e virei o envelope para ele. Um palavrão


murmurado soltou-se dele.

— Quanto acha que isso é? — perguntou ele, enquanto eu fechava o


envelope e o enfiava na bolsa.

— Calculo que sejam dezoito mil dólares — tentei levar a coisa na boa,
arruinando tudo com os meus dedos trêmulos. — Foi o que ele me ofereceu para
limpar o nome dele.

Afastando o cabelo dos olhos, ergui a cabeça. Fiquei sem fôlego. Visível no
espelho retrovisor estava a limusine Gray Ghost de Trent, parada no acesso para
os bombeiros. Não estava ali há instantes. Pelo menos eu não a vi. Trent e
Jonathan estavam de pé, ao seu lado. Glenn viu para onde eu estava olhando e
virou-se.

— Oh — disse ele, com uma desconfiança preocupada apertando os cantos


dos seus olhos. — Rachel, vou até à bilheteira, logo ali... — apontou. — E falar com
a senhora sobre a possibilidade de comprar alguns lugares para o piquenique do
DFI do próximo ano — ele hesitou, fechando a porta com um baque seco. Os
dedos escuros sobressaíam contra a tinta vermelha viva. — Ficará bem?

— Sim — afastei os olhos de Trent. — Obrigada, Glenn. Se ele me matar, diz


ao seu pai que adorei o carro.

Um leve sorriso atravessou-lhe o rosto e ele afastou-se.

Mantive os olhos fixos no retrovisor, enquanto seus passos se tornavam


mais distantes. Atrás de mim, erguia-se o rugido dos adeptos enquanto o jogo
começava. Observei Trent, que tinha uma conversa intensa com Jonathan. Ele
deixou o homem alto e zangado e aproximou-se lentamente de mim. Tinha as
mãos nos bolsos e estava com ótimo aspecto. Melhor do que isso, na verdade, com
umas calças largas, sapatos confortáveis e camiseta de malha para se proteger da
brisa fria. O colarinho de uma camisa de seda de um profundo azul-escuro
emergia da camiseta, contrastando maravilhosamente com o seu bronzeado. Um
boné de tweed protegia-lhe os olhos verdes e mantinha o cabelo fino sob controle.
469

Parou, lentamente, ao meu lado, os olhos sem nunca largar os meus e sem
se pousarem sobre o carro. Arrastando os pés, virou-se para olhar para Jonathan.
Deixava-me puta o fato de ter ajudado a limpar o nome dele. Ele tinha matado,
pelo menos, duas pessoas nos últimos seis meses... Sendo uma delas Francis. E ali
estava eu, sentada no carro do bruxo morto.

Não disse nada, agarrando o volante com a mão boa, o braço quebrado
pousado no colo, enquanto me recordava que Trent tinha medo de mim. No rádio, a
voz de um locutor tomou conta da emissão com sua voz rápida e eu baixei o rádio
até quase desligar.

— Encontrei o dinheiro — disse eu, como forma de cumprimento.

Ele semicerrou os olhos, depois se colocou ao lado do retrovisor, de forma a


ficar com o rosto à sombra.

— Não tem de quê.

Eu fitei-o.

— Não lhe agradeci.

— De qualquer forma, não tem de quê.

Apertei os lábios. Idiota. Os olhos de Trent desceram para meu braço.

— Quanto tempo vai demorar a sarar?

Surpreendida, pestanejei.

— Não muito. Foi uma fratura limpa — toquei no amuleto contra a dor que
tinha ao pescoço. — Contudo, o músculo sofreu alguns danos, razão pela qual
ainda não posso usá-lo, mas dizem que não será preciso fisioterapia. Estarei de
volta às ruas dentro de seis semanas.

— Ótimo. Isso é ótimo.

Tinha sido um comentário rápido, que foi seguido por um longo silêncio.
Deixei-me ficar sentada no meu carro, perguntando-me o que ele queria. Tinha um
aspecto nervoso, as sobrancelhas um pouco claras demais. Não estava com medo e
não estava preocupado. Não conseguia perceber o que ele queria.

— Piscary disse que os nossos pais tinham trabalhado juntos — disse eu. —
Estava mentindo?
470

O sol brilhou no cabelo branco de Trent, quando ele abanou a cabeça.

— Não.

Senti um arrepio gelado correr-me a espinha. Lambi os lábios e sacudi um


grão de pó do volante.

— Fazendo o quê? — perguntei, num tom descontraído.

— Venha trabalhar para mim e lhe direi.

Meus olhos saltaram para os dele.

— É u m l a d rã o , u m m a n i p u l a d o r , u m a s sa s si n o e u m h o me m n a d a
simpático — disse eu calmamente. — Não gosto de você.

Ele encolheu os ombros, o movimento fazendo com que parecesse


absolutamente inofensivo.

— Não sou um ladrão — disse ele. — E não me importo de te manipular


para levá-la a trabalhar para mim quando preciso — sorriu, mostrando-me os
dentes perfeitos. — Na verdade, agrada-me.

Senti o rosto aquecer.

— É tão convencido, Trent — disse eu, desejando ser capaz de meter a


marcha ré e passar-lhe por cima do pé.

O sorriso dele aumentou.

— O que foi? — perguntei.

— Chamou-me pelo meu nome próprio. Gosto disso.

Abri a boca, depois a fechei.

— Então faça uma festa e convide o Papa. Meu pai pode ter trabalhado para
o seu, mas você não passa de escória, a única razão porque não lhe atiro o dinheiro
na cara é que: a) mereci e b) preciso de algo para viver enquanto me recupero dos
ferimentos que sofri enquanto mantinha o seu traseiro fora da prisão!

Os olhos dele brilhavam, divertidos e isso me deixava furiosa.

— Obrigado por ter limpado o meu nome — disse ele.


471

E l e i a t o c a r no c a r ro , pa r a n do qu a n do eu e m i t i u m s o m r u d e de
desencorajamento. Ele transformou o movimento numa tentativa de ver se
Jonathan tinha se mexido. Não tinha. Glenn também estava nos observando.

— Esqueça, está bem? — disse eu. — Fui atrás de Piscary para salvar a vida
da minha mãe, não sua.

— De qualquer forma, obrigado. Se servir de alguma coisa, lamento tê-la


colocado na arena das ratazanas.

Inclinei a cabeça para vê-lo, afastando do rosto o cabelo batido pelo vento.

— E acha que isso significa alguma coisa para mim? — disse eu, tensa.
Depois semicerrei os olhos. Ele estava quase rindo. O que acontecia com ele?

— Chega para o lado — acabou por dizer, olhando para o lugar vazio ao
meu lado.

Eu fitei-o.

— O quê?

Ele olhou longe de mim, para Jonathan, depois de novo para mim.

— Quero conduzir seu carro. Chegue para lá. Jon nunca me deixa conduzir.
Diz que é uma tarefa menor — ele olhou para Glenn, amuado, junto de um pilar.
— A menos que prefira que um detetive do DFI te leve para casa sempre dentro
dos limites de velocidade.

A surpresa manteve a raiva longe da minha voz.

— Consegue conduzir um carro com marchas?

— Melhor do que você.

Olhei para Glenn, depois para Trent. Lentamente afundei-me no assento.

— Façamos assim — disse eu, erguendo as sobrancelhas. — Pode levar-me


para casa, se nos mantivermos no tópico do dia.

— Seu pai? — adivinhou e eu acenei. Estava começando a habituar-me a


esta coisa de fazer negócios com demônios.
472

Trent voltou a enfiar as mãos nos bolsos e balançou-se para trás e para
frente, sobre os calcanhares, pensando. Arrancando sua atenção do céu azul,
acenou.

— Nem acredito que estou fazendo isso — murmurei, enquanto atirava a


bolsa para a parte de trás e saltava desajeitadamente, por cima do câmbio das
marchas para o lugar do lado. Tirando o boné vermelho dos Howlers, enrolei o
cabelo e voltei a enfiar o boné, para me proteger contra o vento.

Glenn começou a aproximar-se, abrandando quando lhe acenei, em


despedida. Abanando a cabeça, incrédulo, virou-se e regressou ao estádio. Apertei
o cinto, enquanto Trent abria a porta e deslizava para o interior. Ele ajustou os
espelhos e fez ronronar o motor duas vezes, antes de carregar na embreagem e
meter a primeira marcha. Agarrei-me ao tablier, mas o carro arrancou tão
suavemente como se ele estacionasse carros para ganhar a vida.

Enquanto Jonathan entrava apressadamente na limusine, olhei de relance


para Trent. Meus olhos semicerraram-se enquanto ele se dedicava a mexer no
rádio, quando paramos num semáforo sem arrancar quando este mudou para
verde. Estava prestes a bater-lhe por estar mexendo no rádio quando ele
encontrou um posto que estava tocando Takata e aumentou o volume. Irritada,
toquei no botão para memorizar o ponto.

O semáforo passou de verde para amarelo e ele lançou o carro para o outro
lado do cruzamento, passando em frente do trânsito que se aproximava, entre
pneus guinchando e buzinadas. Com os dentes cerrados, jurei que, se ele me
destruísse o carro antes que eu tivesse chance de conduzi-lo, o processaria.

— Não voltarei a trabalhar para você — disse eu, enquanto ele acenava,
amigavelmente, para os motoristas irados que seguiam atrás dele e se fundia com
o trânsito.

Mi nha raiva dim inui u quan do co mp reen di que ele s e dem oro u
propositadamente no sinal verde para que Jonathan fosse obrigado a esperar que
aquele voltasse a mudar. Olhei para Trent, incrédula. Vendo que eu tinha
percebido, ele acelerou. Senti um arrepio de excitação, quando me dirigiu um
sorriso rápido, o vento agitando seu cabelo curto, de forma a esconder os olhos
verdes.

— Se ajudá-la a dormir de noite, senhorita Morgan, por favor, continue a


acreditar nisso.
473

O vento batia contra mim e eu fechei os olhos ao sol, sentindo o estremecer


do chão até os ossos. Amanhã começaria a pensar no que ia fazer para me libertar
do acordo que tinha com Algaiarept, remover a marca do demônio, libertar Nick do
peso de ser meu familiar e viver com uma vampira que estava tentando
esconder o fato de ter voltado a praticar. Mas, agora, estava sentada ao lado do
solteirão mais poderoso de Cincinnati, com dezoito mil, seis dólares e cinquenta e
sete centavos no bolso. E ninguém ia nos impedir de acelerar.

Pensando bem, não foi uma má semana de trabalho.

Fim
A série The Hollows continua em Every Which Way But Dead
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