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Dedicatória
Ao homem que sabe que, em primeiro lugar, vem a cafeina; em segundo, o chocolate;
em terceiro, o romance... e quando devem ser usados
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Capitulo 1
Puxei a alça de tecido grosso com qual eu segurava o recipiente com água
mais para cima e coloquei sobre o ombro, estiquei-me para alcançar com o bico a
planta pendurada. A luz do Sol penetrava na divisão, quente, através do macacão
azul que servia de uniforme. Do outro lado das estreitas janelas de vidro
laminado, abria-se um pequeno pátio rodeado pelos gabinetes VIP. Semicerrando
os olhos — por causa do sol — apertei a torneira da mangueira e um fino fio de
água libertou-se com um silvo.
— Si m , m i n h a se n h o ra — a c re sce n t e i , e r g u e n d o a vo z e s i b i l a n d o
ligeiramente. — Mas ele disse-me quais plantas regar — escondi as unhas,
vermelhas e bem tratadas, na palma da mão antes que ela as visse. Não
combinavam com a imagem de uma garota que trabalha com plantas. Devia ter
pensado nisso mais cedo. — Todas as deste piso e depois o arbóreo no telhado.
— Não, minha senhora — disse eu, puxando o horrível boné com o logotipo
da empresa e enterrando-o ainda mais na cabeça. — Acho que ele está tentando
tornar as coisas suficientemente duras para que eu não tente roubar-lhe o território
— sentindo o pulso mais rápido, empurrei o carrinho de Mark com as tesouras de
podar, o fertilizante granulado e o regador ao longo da fila de plantas. Eu sabia da
existência do elevador, também sabia qual a localização das seis saídas de
emergência e dos alarmes de incêndio, bem como onde guardavam os donuts.
— Estou farto das plantas ali dentro — disse, em voz alta, quando aterrou
na borda do vaso pendurado à minha frente. Pôs as mãos na cintura, transmitindo a
imagem de um "Peter Pan de meia-idade" que tinha crescido e se tornado o
homem do lixo com seu pequeno macacão azul. — Tudo o que precisam é de
água. Posso ajudar-te aqui fora com alguma coisa ou posso ir dormir no carro? —
acrescentou num tom azedo.
— Mas fede!
— Só preciso de cinco minutos — disse eu, começando a suar sob o sol que
entrava pela janela. O espaço cheirava a jardim — um jardim com um cão
molhado a ofegar sobre os ladrilhos frescos.
Senti a pulsação acelerar e avancei para outra planta. Estava atrás da mesa e a
mulher ficou rígida. Eu tinha invadido o seu território, mas ela tinha de suportar, eu
era a moça da água. Esperando que ela atribuísse o aumento da minha tensão ao
fato de me encontrar tão perto dela, continuei a trabalhar. Tinha uma mão
pousada na tampa do recipiente de água. Um simples movimento e, era uma vez!
— Sr. Ray, voltou a gritar com ele, não foi? Já lhe disse que os
computadores são como as mulheres. Se gritar com eles e lhes pedir que façam
muitas coisas ao mesmo tempo, apagam-se e não vai conseguir nada deles.
Vanessa suspirou.
Respirei fundo.
— Tome conta das portas, Jenks — disse eu, um lábio preso entre os dentes.
Quanto tempo podia eu demorar a apanhar um peixe? Empurrei uma pedra para
chegar ao peixe que se escondia atrás dela. Eles nadaram para o lado oposto.
— Gabinete do Sr. Ray. Por favor, aguarde — disse ele, num fingido tom de
falsete.
— Sr. Ray!
— Ela está atrás do peixe! — gritou o homem baixo, à medida que mais
pessoas se juntavam vindas do corredor. — Apanhem-na!
— Que raio vai fazer com meu peixe? — exigiu saber, o rosto vermelho de
raiva.
Ele voou rápido — como uma seta — através do pequeno pátio fechado.
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Senti uma explosão de dor ao aterrissar sobre o pavimento. Caí para frente,
arranhando as palmas das mãos. O recipiente onde se encontrava o peixe emitiu
um som metálico e caiu das minhas costas quando a alça rebentou. Rolei para
absorver o impacto.
Ouvi um ping no carro por cima de mim, depois outro. No chão, ao lado do
meu braço, abriu-se de súbito um buraco e fui atingida por finos estilhaços.
Estavam atirando em mim? Resmungando, enfiei-me debaixo do carro e puxei o
recipiente. Dobrada sobre o peixe, recuei.
— Ei! — gritei, tirando o cabelo dos olhos. — Que diabo é que estão
fazendo? Não passa de um peixe! E, nem sequer é seu!
Cinco mil, talvez. Da próxima vez, jurei enquanto corria atrás de Jenks, iria averiguar
os pormenores antes de cobrar o valor normal.
cabeça de um menininho que passou por mim. Ele olhou para o boné, depois
sorriu, acenando-me envergonhado enquanto a mãe se baixava para lhe perguntar
onde o tinha arranjado. Em paz com o mundo, avancei ao longo do passeio, os
saltos das botas batendo no chão enquanto ajeitava o cabelo e me dirigia em
direção à Fountain Square e à minha carona. Tinha deixado lá os meus óculos de
sol e, se tivesse sorte, ainda estariam lá. Deus me ajude, como gostava de ser
independente.
Tinham-se passado quase três meses, desde que me fartara das missões
mentirosas que o meu chefe da Segurança Inderlander me atribuía. Sentindo-me
usada e francamente subvalorizada, tinha quebrado a regra não escrita e deixado a
SI para abrir a minha própria agência. Na altura, parecia uma boa ideia e, ter
sobrevivido à ameaça de morte que se seguiu — quando não fui capaz de pagar o
suborno para me libertar do contrato — serviu para me abrir os olhos. Não teria
conseguido se não fossem Ivy e Jenks.
O que ganhei, ao provar que um raposomem tinha sido envenenado por uma
matilha rival, foi usado para renovar a minha licença de bruxa — algo que a SI
costumava pagar. Recuperei um familiar roubado de um mago e gastei-o na
franquia mensal do seguro de saúde. Não sabia que os agentes eram quase
impossíveis de segurar, a SI tinha me dado um cartão e eu o tinha usado. Depois,
tive de pagar a um cara qualquer para limpar as minhas coisas — que ainda
estavam num armazém — do feitiço letal que lhes tinha sido lançado, comprar um
robe de seda novo para a Ivy — para substituir o que lhe estragara — e arranjar
algumas roupas novas para mim — já que tinha uma reputação a manter.
Mas o pesado nas despesas eram os táxis. A maior parte dos motoristas de
ônibus de Cincinnati já me conhecia e recusava-se a parar para eu entrar. Não era
justo. Já se passara quase um ano desde que deixara careca quase todas as pessoas
que se encontravam dentro de um ônibus, enquanto tentava apanhar um
animalomem.
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Estava farta de estar quase falida, mas o dinheiro que iam me pagar por
recuperar a mascote dos Howlers ia garantir-me mais um mês. E, os animalomens
não viriam atrás de mim. O peixe não era deles. Se apresentassem queixa junto da
SI, teriam de explicar onde o tinham arranjado.
Ergui as sobrancelhas e olhei para ele pelo canto do olho, enquanto ele
voava ao meu lado a um ritmo exatamente igual ao do meu andar.
Enquanto Jenks voava através da água que jorrava da fonte — para se livrar
do "fedor de dinossauro morto" que ainda restava —, abri os óculos e coloquei-os
no rosto. A minha testa suavizou-se quando o brilho da tarde de setembro foi
filtrado. Esticando as pernas compridas, retirei num gesto casual, o amuleto de
cheiro que trazia em redor do pescoço e larguei-o na fonte. Os animalomens
caçavam pelo cheiro e se seguissem o meu, o trilho terminaria ali, mal eu entrasse
no carro de Ivy e me afastasse.
Hesitando, pesei o risco de ficar quieta e esperar por Ivy sem me mexer e o
de ser descoberta.
— Me n i n a Mo r g a n ? — d i s se o h o m e m m o r e n o , a vo z p r o f u n d a e
acentuada.
Pareceu incomodado.
— Falei com a menina Tamwood, mais cedo. Ela disse que podia encontrá-
la aqui.
O ar silvou ao passar pelo meu nariz. Olhei de relance para trás. O meu
olhar caiu sobre um dos animalomens. Vendo que eu o observava, uivou. Os outros
dois também, avançando com uma graça sem pressa. Engoli em seco. Eu ia ser
comida de cão. Era isso. Comida de cão. Game over. Podem carregar no botão de
reset.
— Não! Essa coisa anda ou você limita-se a ficar aqui sentado a brincando
consigo mesmo?
Sentindo que a pulsação abrandava, voltei-me para olhar para ele. Era mais
alto do que eu, o que dizia muito — tinha bons ombros, cabelo preto encaracolado,
cortado próximo do crânio, um maxilar quadrado e uma atitude rígida que estava
pedindo que lhe batesse. Confortavelmente musculoso, sem excessos, não tinha
sequer indícios de barriga. No seu terno preto, que lhe assentava com perfeição,
camisa branca e gravata preta, era o representante perfeito para o DFI. O bigode e
a barba estavam cortados no estilo mais recente — tão curtos que eram quase
inexistentes —, mas achei que talvez fosse boa ideia não exagerar tanto na loção
pós-barba. Olhei para a bolsa das algemas, presa ao cinto dele, desejando ainda ter
as minhas. Era propriedade da SI e eu sentia muito sua falta.
— Não. Ela só disse que ia estar aqui. O capitão Edden quer falar com você.
Algo sobre o vereador Trent Kalamack — acrescentou o agente do DFI num tom
indiferente.
— Kalamack! — guinchei, depois praguejei contra mim mesma por ter dito
alguma coisa. O sacana rico queria que eu trabalhasse para ele ou que morresse.
Dependia do seu estado de espírito e do "desempenho" da sua caderneta de ações. —
O Kalamack, huh? — emendei, movendo-me desconfortável sobre o assento de
couro. — Porque Edden o mandou vir buscar-me? Está na lista negra, esta
semana?
Ele não disse nada, mas as mãos grossas agarraram o volante com tanta
força que as unhas ficaram brancas. O silêncio cresceu. Passamos por um sinal
amarelo mudando para vermelho.
Fitei Jenks de sobrancelha franzida. O cara parecia muito novo para já ter
chegado a detetive. O DFI devia estar desesperado.
— Não sou seu motorista — disse ele, num tom soturno, obviamente
insatisfeito. — Sou o seu entregador.
Jenks pousou no meu brinco, praguejando sem parar. Tentei por diversas
vezes abrir o vidro, mas Glenn tinha-o trancado. Recostei-me ao banco, bufando.
Podia enfiar um dedo no olho de Glenn e atirá-lo para fora da estrada, mas para
quê? Sabia para onde estava indo. E, Edden garantiria que eu teria condução para
casa. Mas aquilo me irritava... Dar de cara com um humano com mais coragem
que eu. A que ponto estava chegando aquela cidade?
— Quando eu era garoto, vivia ao meu lado uma família de bruxos disse
ele, desconfiado. — Tinham uma filha da minha idade. Ela lançou-me quase tudo o
que se pode lançar a uma pessoa — um tênue sorriso atravessou-lhe o rosto
quadrado, dando-lhe um aspeto muito pouco digno do DFI. — O dia mais triste da
minha vida foi aquele em que ela partiu.
Eu fiz beicinho.
Odeio segundas-feiras.
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Capitulo 2
A pedra cinzenta da torre do DFI refletia o Sol do fim da tarde, enquanto
estacionávamos num dos lugares reservados, em frente ao edifício. A rua estava
apinhada e Glenn acompanhou a mim e ao meu peixe rapidamente através da
porta da frente. Na pele do pescoço — sob o colarinho — já começavam a aparecer
pequenas bolhas cor-de-rosa — de aspecto doloroso — que sobressaíam na sua
pele escura.
Mas pareceu-me ouvir um toque de culpa na sua voz e, além disso, não
estava cantarolando a sua canção de vitória sobre margaridas e aço brilhantes
vermelhos ao luar. Os meus passos tornaram-se hesitantes, mesmo antes de pisar
no emblema do DFI gravado no chão do átrio. Eu não era supersticiosa — exceto
nas situações em que isso me pudesse salvar a vida —, mas estava entrando num
território normalmente reservado a humanos. Eu não gostava de ser uma minoria.
as ruas. Que os pés fossem humanos ou Inderlanders era irrelevante, pelo menos,
para mim.
O DFI tinha sido criado para tomar o lugar tanto das autoridades locais
como das federais, depois da Viragem. No papel, o DFI tinha sido criado para
ajudar a proteger os humanos dos... Hum... Inderlanders mais agressivos —
normalmente vampiros e animalomens. A verdade é que a dissolução das antigas
estruturas legais era uma tentativa paranoica de afastar os Inderlanders das forças
da autoridade.
S i m . P o i s , o s a g e n te s f e d e r a i s e d a p o l í c i a — s a íd o s d o a r m á r i o e
desempregados — tinham se limitado a abrir a sua própria agência, a SI. Passados
quarenta anos, o DFI tinha sido completamente ultrapassado, vendo-se obrigado a
suportar constantes abusos da SI. Enquanto ambos tentavam controlar os variados
cidadãos de Cincinnati, a SI lidava com as questões sobrenaturais que o DFI não
conseguia tratar.
Glenn riu. E, ainda bem. Porque assim não consegui ouvir o que Jenks
continuava resmungando.
Edden era um antigo Navy Seal e mantinha aparência disso. O cabelo bem
curto, as calças cáqui bem vincadas e, o corpo sob a camisa branca e engomada,
mostrava-se firme. Embora o espesso tufo de cabelo fosse preto, o bigode era
completamente cinzento. Um sorriso convidativo cobria-lhe o rosto redondo
enquanto avançava — enfiando no bolso da camisa um par de óculos de leitura
com aros de plástico. O capitão da divisão de Cincinnati do DFI parou de repente,
lançando sobre mim o cheiro de café. Ele era praticamente da minha altura — o
que o tornava algo baixo para um homem —, mas compensava-o com a sua
presença.
— É bom vê-lo voar outra vez, Sr. Jenks — disse Edden, dirigindo ao pixy
uma pequena saudação de cabeça.
— Seja Jenks, então. Podemos arranjar-lhe alguma coisa? Água com açúcar,
manteiga de amendoim... — girou, sorrindo por trás do bigode. — Café, menina
Morgan? — disse, com a voz arrastada. — Parece cansada.
— Cale-se, Jenks — disse eu, mais por hábito do que outra coisa. Glenn
mencionara Trent Kalamack e isso me deixou em nervos.
— Sorte é algo que não existe — rosnou Jenks. A brisa das suas asas tocava-
me o rosto, enquanto ele pairava na altura dos meus olhos. Tinha as mãos nos
quadris e as asas tinham abandonado a sua habitual translucidez e assumido uma
leve tonalidade cor-de-rosa. — É uma armadilha.
Senti o estômago apertado. Cincinnati não era famosa pelos seus assassinos
em série, mas tínhamos mais homicídios para explicar nas últimas seis semanas do
que ao longo dos últimos três anos. A recente onda de violência deixara todos
perturbados, tanto Inderlanders como humanos.
— Seja como for, os meus agentes não sabem como interpretar as suas
respostas.
— Se prefere, sim.
Jenks pairou entre nós com as mãos nos quadris — sua melhor pose de Peter
Pan. — Muito bem, por isso quer que a Rache a interrogue. Qual é segunda
— Preciso que alguém volte à escola e, como não tenho nenhuma bruxa
entre os meus funcionários, será você,
Rachel.
— Desculpe?
O sorriso dele fazia com que se parecesse ainda mais com um troll
matreiro.
tendo ocupado o lugar de um dos nossos professores que tinha tirado licença aos
s á b a d o s . En s i n a va L i n h a s L e y p a r a a s B r u x a s d e T e r r a . É u ma i d i o t a
condescendente. Chumbou-me logo na terceira aula porque eu me recusava a
arranjar um parceiro.
Ele resmungou.
— Isto não tem nada a ver com os assassinatos — disse, sem convicção. —
Aceito o trabalho.
Inspirei fundo, sabendo que nunca seria capaz de me explicar. Sara Jane era
mais honesta do que metade dos agentes da SI com quem tinha trabalhado. Era
apenas uma garota do campo que lutava para encontrar seu caminho na cidade e,
ajudar a família presa por um contrato de servidão. Embora ela não me
reconhecesse, eu lhe devia aquilo. Foi a única pessoa que me mostrou alguma
gentileza durante os três dias que passei no purgatório — presa sob a forma de um
visom no gabinete de Trent Kalamack — na primavera anterior. Fisicamente,
éramos tão diferentes quanto duas pessoas poderiam ser.
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Enquanto Sara Jane permanecia sentada à mesa totalmente rígida com o seu
impecável uniforme de trabalho, todos os fios de cabelo loiro no lugar e a
maquiagem tão bem aplicada que era quase invisível, eu estava com umas calças
de couro roçadas e o meu cabelo ruivo ondulado, selvagem e indomável.
Enquanto ela era pequena — com um aspeto de boneca de porcelana, de pele clara
e feições delicadas —, eu era alta e tinha uma constituição atlética que me salvara a
vida mais vezes do que conseguiria contar com a ajuda das sardas que me cobriam
o nariz. Enquanto ela tinha curvas e carne nos lugares certos, eu possuía apenas
curvas, sendo os meus seios um pouco mais do que uma sugestão, mas sentia uma
afinidade com ela. Ambas tínhamos sido encurraladas por Trent Kalamack. E, o
mais certo era que, a esta altura, ela já soubesse.
— Não — disse ele. — Trent a está usando para chegar até você.
— Trent não me pode tocar. Edden, ainda tem aquela pasta cor-de-rosa que
lhe dei a primavera passada?
— Talvez, seja mais seguro do que tentar trazê-lo à justiça... Mas isto? —
apontou para Sara Jane. — Ele é muito esperto para isto.
Se tivesse sido outro que não Trent, teria de concordar. Trent Kalamack era
impecável no papel, tão encantador e atraente em público, como impiedoso e frio
atrás de portas fechadas. Eu o vi matar um homem no seu gabinete, fazendo com
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— Isto está cheirando pior do que esse peixe. Vá embora. Tem que ir
embora.
— Estou em dívida com ela, Jenks — sussurrei. — Quer ela saiba ou não.
— Morgan?
Jenks tinha razão. Sorte era algo que não existia — a menos que a
comprássemos — e, nada acontecia perto de Trent sem um motivo. Os meus olhos
estavam fixos em Sara Jane.
Capitulo 3
O meu olhar foi atraído pelas unhas de Sara Jane, enquanto ela se movia
irrequieta à minha frente. Da última vez que eu a vi estavam limpas, mas gastas
até o sabugo. Agora eram compridas, bem cuidadas e pintadas de um tom de
vermelho que revelava bom gosto.
Do outro lado da mesa, Sara Jane acenou. Quando Edden nos apresentou,
ela não mostrou o mínimo sinal de reconhecimento. Parte de mim ficou aliviada,
outra parte dececionada. O seu cheiro lilás trouxe consigo a recordação do
desamparo que senti — enquanto vison — presa no gabinete de Trent.
O lenço que Sara Jane tinha na mão era mais ou menos do tamanho de uma
noz, apertado numa bola com os dedos trementes.
Sara Jane limpou os olhos. Sem largar o lenço, afastou o cabelo para trás.
Tinha-o cortado e fazia-a parecer ainda mais profissional, caindo até aos ombros
numa lisa cortina loira.
— Dan é filho único — disse ela, limpando o nariz com o lenço amarrotado.
— Tanto a mãe como o pai já faleceram. Eram servos numa fazenda, no Norte. A
esperança de vida não é muito elevada para um agricultor.
— Oh! — não sabia o que mais dizer. — Tecnicamente, não podemos entrar
no apartamento dele, a não ser que seja declarado desaparecido. Por acaso não tem
chave, tem?
— Estive lá hoje, por volta das sete — disse ela, os olhos baixos. — Tudo
parecia bem.
— Há essa hora vocês... Vocês bruxas, quero dizer... Não estão enfiadas na
cama?
E , T r e n t K a l a m a c k e r a , d e fa to , u m p a tr ã o b e n e v o l e n te o fe r e c e n d o
ordenados elevados e regalias espantosas. Dava às pessoas aquilo que elas
desejavam desesperadamente, não pedindo nada em troca a não ser a sua
lealdade. Quando, por fim, compreendiam quão profunda era a exigência e
lealdade, sabiam demais para poderem se libertar.
Ela acenou.
Jenks fungou e virei os olhos, batendo na parte de baixo da mesa, para fazê-
lo saltar. Sara Jane mostrou alívio.
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Olhei de relance para Jenks que zumbia, chamando atenção. Tinha uma
expressão preocupada que dizia: eu te disse. Como era simpático da parte de Trent
permitir que a secretária demorasse todo o tempo que fosse preciso para encontrar o
namorado, quando o mais certo era que este estivesse enfiado num armário para
manter a boca fechada.
— Ah, vamos combinar para esta noite — disse eu, pensando no meu peixe.
— Preciso tratar de umas coisas.
— E u i n fo r m a r e i a s e n h o r i ta M o r g a n d a s u a l o c a l i z a ç ã o , s e n h o r i ta
Gradenko.
— Por favor, comunique-me ou ao DFI caso receba notícias dele — disse eu,
enquanto lhe entregava. Ivy tinha mandado fazer os cartões com um profissional e
eles tinham um excelente aspecto.
— Ela não estava mentindo — disse eu, de forma defensiva. Ele pousou as
mãos no quadril e eu o afastei do meu copo com um aceno para poder beber um
gole do café morno. — Não a conhece, Jenks. Ela odeia vermes, mas tentou
impedir que Jonathan me atormentasse ainda que isso pudesse ter custado seu
emprego.
— É isso que estou dizendo. Trent pode estar usando-a para te atingir e ela
nunca saberá.
Eu segui-o, bem de perto, sem prestar atenção aos olhares desconfiados que
eram lançados.
— Gostaria que agisse com discrição, neste caso — disse ele. — Enviar
Glenn sozinho para a pizzaria Piscary's não é prudente.
Edden sorriu.
Minha boca movia-se enquanto eu tentava encontrar algo para dizer que
não pudesse — de todo — ser considerado racista. Sendo bruxa, eu era sensível a
esse tipo de coisas. — Então, por que ele não usa seu sobrenome? — consegui
dizer.
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— Ele passou a usar o nome de solteira da mãe desde que se juntou ao DFI -
disse Edden, baixinho. — Não era correto ter ficado sob a minha direção, mas não
tinha mais ninguém disposto a aceitar o lugar.
Franzi o cenho, agora compreendia a fria recepção no DFI. Não tinha sido
apenas eu. Glenn era novo ali, tendo sido abrigado a aceitar um lugar que todos —
menos o pai — consideravam uma perda de tempo.
— Não vou fazer isso — disse eu. — Arranje outra pessoa para ser babá do
seu filho.
— Não está ouvindo — disse eu, em voz alta, frustrada. — Atribuiu-me este
serviço. Eu e os meus sócios agradecemos a sua oferta de ajuda, mas foi você quem
me chamou. Afaste-se do nosso caminho e deixe-nos trabalhar.
— É o filho do Edden?
— Tem aqui o seu horário — disse ele, entregando-me meia folha amarela
com furos dos lados. — Segunda, quarta e sexta. Glenn comprará todos os livros
que precisar.
— Sim, senhor! — bradou ele. Os nós dos dedos que agarravam o volante
revelavam uma pressão feroz. Manchas rosadas de pomada contra picadas e
alergias decoravam-lhe os pulsos e o pescoço. Não me interessava que tivesse
ouvido a maior parte da conversa. Ele não era bem vindo e quanto mais cedo
compreendesse, melhor.
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Capitulo 4
— À direita na próxima esquina — disse eu, pousando o braço na janela
aberta da viatura descaracterizada do DFI.
Em parte, isso se devia ao fato de as escolas não deixarem sair os alunos até perto
da meia-noite, mas na sua maioria, tratava-se de instinto de preservação.
Glenn coçou o maxilar com a barba curta, emitindo um som raspado sob as
unhas.
Alugar uma igreja abandonada não fora ideia minha, mas de Ivy. A
paisagem de lápides que se estendia em frente à janela de vitral do meu quarto
levou algum tempo para acostumar, mas a cozinha mais do que compensava o
fato de ter humanos mortos enterrados nos fundos.
Seu olhar fixou-se num ponto acima do meu ombro e ele ficou visivelmente
rígido. Eu o encarei esperando o pior e, relaxei ao ver uma nuvem de crianças
pixies que desciam do ar — num coro de diálogos agudos e muito rápidos para
que os conseguisse seguir. Tinham sentido a falta do papai Jenks, como sempre.
M e u m a u hu m o r de s a pa r e c e u en q u an t o a s f i gu r a s d a r de j a n t e s e
rodopiantes — vestidas de verde-claro e dourado — giravam em torno do pai,
como num pesadelo da Disney. Glenn tirou os óculos, os olhos castanhos muito
abertos e os lábios afastados.
— Ei, Rache — disse ele. — Estarei nos fundos se você precisar de mim.
— Adeus, menina Morgan — gritou, voando para se juntar aos irmãos, que
escoltavam o pai de volta à igreja e ao tronco de carvalho para onde Jenks levara a
sua família gigantesca.
recipiente, não era assim tão pesado. Começava a sentir-me culpada por ter
permitido que Jenks o pixasse. Mas, naquela hora, não sabia que ia ser a sua babá.
O som dos seus sapatos de sola dura batendo no chão da rua revelou sua
hesitação.
Semicerrei os olhos.
— Hã?
— Esqueça.
— Não tem de quê — acabou por dizer, mas a sua voz também não me deu
qualquer pista.
Guiei-o através do foyer vazio até ao santuário, ainda mais vazio. Antes de
termos alugado a igreja, esta tinha sido usada como jardim de infância. Os bancos
corridos e o altar tinham sido retirados para proporcionar uma área maior para as
crianças brincarem. Agora, tudo o que restava eram os vitrais e um palco l i
g e i r a me n t e e rg u i d o . A so mb r a d e u ma c ru z e n o r me — h á m u i t o t e m p o
desaparecida — espalhava-se sobre a parede como uma recordação. Olhei de
relance para o teto alto, encarando de forma diferente a divisão familiar, enquanto
Glenn a fitava. Era silenciosa. E, eu já tinha esquecido como era pacífica.
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Não tendo que esperar pela morte para que o vírus começasse a moldá-la,
Ivy nascera com um pouco de ambos os mundos — o dos vivos e o dos mortos —
presa num terreno intermediário até morrer e se tornar uma verdadeira morta-
viva. Dos vivos tinha a alma — que lhe permitia andar ao sol, rezar sem dor e
viver em solo sagrado se quisesse, algo que fazia para irritar a mãe — e, dos
mortos tinha os pequenos, mas afiados caninos, a capacidade de usar a sua aura e
de me assustar terrivelmente bem como o poder de enfeitiçar aqueles que o
permitissem. A sua força e velocidade sobrenaturais eram, sem sombra de dúvida,
inferiores às de um verdadeiro morto-vivo, mas ainda assim muito superiores às
minhas. E, embora não precisasse de sangue para manter a sanidade, tinha uma
perturbadora sede de sangue que estava constantemente lutando para suprimir, já
que ela era uma das poucas vampiras vivas a ter jurado manter-se limpa de
sangue. Imaginava que Ivy tivesse tido uma infância interessante, mas tinha medo
de perguntar.
Tirei os óculos quando passei pelo meu banheiro. Aquele fora, outrora, o
banheiro dos homens. As louças tradicionais substituídas por uma máquina de
lavar e secar, um pequeno lavatório e um chuveiro. O banheiro das senhoras, do
outro lado do corredor, tinha sido transformada num banheiro mais convencional,
com uma banheira. Esse era de Ivy. Banheiros separados tornavam as coisas muito
mais fáceis.
N ão ap r e c i a n d o a f o r m a c o m o G l e nn i a f a z e n d o o s s eu s j u l ga m e n t o s
silenciosos, fechei as portas tanto do quarto de Ivy como do meu, ao passar por
eles. Tinham sido, outrora, os gabinetes dos clérigos. Ele entrou na cozinha atrás
de mim, arrastando os pés, demorando alguns instantes a absorver tudo aquilo.
Era assim com a maior parte das pessoas.
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A cozinha era enorme e parte da razão pela qual eu aceitara viver numa
igreja com uma vampira. Tinha dois fogões, uma geladeira de tamanho gigante e
uma grande ilha central sobre a qual estava pendurada uma estrutura repleta de
utensílios brilhantes. O aço inoxidável brilhava e o espaço do balcão era extenso.
Com exceção do meu Beta no copo de brandy, pousado no parapeito da janela e da
enorme mesa antiga que Ivy usava como mesa para o computador, parecia o
cenário de um programa de culinária. Era a última coisa que se esperava encontrar
nos fundos de uma igreja e eu adorava-a.
A voz dele estava rígida com mais do que um toque de sarcasmo — o que
me deu vontade de lhe dar um açoite e de lhe dizer que se acalmasse. Lidaria com
a sua atitude mais tarde. Agora tinha que ligar para os Howlers.
Um sorriso fez tremer os cantos dos meus lábios, enquanto mexia com o
dedo na secretária. Ele era legal para um velhote. Claro que qualquer pessoa com
mais de trinta anos me parecia velha. A mensagem de Nick era a única e me
surpreendi ao andar de um lado para o outro, enquanto agarrava o telefone e
discava o número dos Howlers. Puxei a borda da camisa enquanto esperava que
atendessem. Depois de ter estado fugindo daqueles animalomens, tinha que tomar
um banho. Houve um clique e uma voz baixa quase rosnou.
Eu comecei.
— R e c u p e r e i o s e u p e i xe — d i s s e , a r r a n c a n d o - m e d a s m i n h a s
contemplações. — Quando é que podem vir buscá-lo?
Fiquei pálida.
— Não.
Ela? Pensei. O peixe era uma ela? Como é que eles sabiam? Depois fiquei
furiosa. Tinha entrado no escritório de um grupo de animalomens para nada?
Eu girei furiosa e fitei o jardim através das janelas que eram da altura do
meu ombro.
— Mas ela nunca esteve perdida — insistiu o treinador. — Não tem o nosso
peixe, lamento.
— Não, espere! — gritei, mas a chamada caiu. Fitei o telefone que zumbia.
Será que eles sabiam quem eu era? Será que eles sabiam que eu podia amaldiçoar
os tacos deles para que estalassem e as bolas curtas e altas para caírem fora? Será
que eles pensavam que eu ia sentar e não fazer nada enquanto estavam me
devendo o dinheiro do pagamento?!
— Pode sentar-se, detetive Edden. Vamos ficar aqui por algum tempo.
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— Jenks!
— Por aqui, Glenn — disse ele, voando para o corredor. Glenn seguiu-o,
mas era óbvio que não estava feliz. Ouvi o som da porta dos fundos fechando e
debrucei-me à janela.
— Jenks?
— O que foi? — O pixy voou para a janela, o rosto marcado pela irritação.
Debrucei-me ainda mais para ver Glenn que se erguia rígido sob o carvalho,
coçando o pescoço. Tinha um ar infeliz e, como Jenks nunca parava de me dizer,
eu adorava os desfavorecidos.
— Ei, Glenn — disse Jenks em voz alta. — Segue na direção daquelas flores
amarelas ali, atrás do anjo de pedra. Quero mostrar-te o resto dos meus filhos. Eles
nunca viram um agente do DFI.
DFI. O fato de Glenn ser filho de Edden também não ia ajudar. Ela estava disposta a
esquecer seu ressentimento, mas se sentisse que o escritório estava sendo
ameaçado, não hesitaria em agir e o seu estranho estatuto político como futuro
vampiro morto permitia-lhe fazer coisas que me atirariam para uma prisão da SI.
Não ia levá-lo de volta ao escritório do Sr. Ray, mas não o podia deixar ficar
no recipiente. Abri a tampa descobrindo que as suas guelras ainda se moviam,
mas que ele estava quase de lado. Pensei que talvez fosse melhor metê-lo na
banheira.
Uma ruga marcou-me a testa, enquanto fitava o fruto vermelho coberto pela
umidade do banho. Se eu fosse esperta, o colocaria na cozinha para ver como
reagiria Glenn no Piscary's. Levar um humano a um restaurante Inderlander não
era das melhores ideias. Se ele fizesse uma cena, além de não conseguirmos
qualquer informação, podíamos ser banidos, ou pior.
54
— Esse não.
Ele voou para trás, quando eu tentei pegá-lo. O sorriso dele abriu-se ainda
mais, enquanto olhava para a perna que eu revelara, acidentalmente. Rindo,
passou por mim voando e aterrissou em cima de um dos frasquinhos.
— Este funciona bem — disse. — E, vai precisar de toda a ajuda que puder
arranjar quando for contar à Ivy que vai outra vez atrás de Trent.
— Obrigada — disse eu, carrancuda, sabendo que o nariz dele era melhor
do que o meu. — Agora sai daqui. Não, espera — ele hesitou junto da pequena
janela de vitral e eu jurei costurar o pequeno buraco para pixies na rede
mosqueteira. — Quem está tomando conta do Glenn?
Fiquei tão surpreendida, que quase esqueci que o meu cabelo estava
pingando e que não tinha nada vestido para além de uma toalha.
— Mando-o para dentro, daqui a cinco minutos, está bem? — disse através
da rede mosqueteira.
Umas das poucas discussões que tivera com Nick, foram sobre a razão de
eu aturá-la e a ameaça constante que ela representava para o meu livre-arbítrio —
caso ela se esquecesse do seu voto de abstinência durante a noite e eu não
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Com exceção dos momentos em que nos encontrávamos sós e, ela se sentia
livre de recriminações, comportava-se com uma rigidez fria ou como uma vampira
clássica sexualmente dominante — algo que descobri ser uma forma de se
divorciar dos seus sentimentos, temendo perder o controle caso revelasse alguma
brandura. Acho que ela tinha tentado manter a sua sanidade vivendo através de
mim enquanto eu tropeçava pela vida, apreciando o entusiasmo com que eu
encarava tudo... Desde uns sapatos de salto vermelhos em liquidação à
aprendizagem de um feitiço capaz de deixar dormindo um cara grande e feio. E,
enquanto os meus dedos deslizavam sobre os perfumes que ela me comprara,
perguntei-me mais uma vez se Nick teria razão e se a nossa relação poderia estar
tomando uma direção que eu não queria.
meu caldeirão de cobre pequeno para feitiços e as colheres de cerâmica. Era raro
um humano aceitar um amuleto, mas se me visse a fazê-lo, quem sabe Glenn o
aceitasse. O pai aceitara um amuleto contra dores, certa vez.
Estava medindo a água da fonte com o meu cilindro graduado quando ouvi
passos arrastados nos degraus dos fundos.
Ooooh, pensei, vai ser uma tarde divertida. Irritada, agarrei nas folhas do círio-
do-rei. Atirando-as para o pilão manchado de verde, moí-as usando mais força do
que o necessário. Deixei a papa ensopar o creme por um instante. Porque é que eu
estava me dando ao trabalho de fazer um amuleto? Ele não ia usar.
— Estou fazendo algo para pôr um fim à coceira — disse. — Deus me ajude,
mas sinto pena de você.
Irada, inspirei fundo, preparando-me para dizer que por mim podia ir
atirar-se de uma vassoura, mas depois me contive. "Não preciso de ajuda" já foi o
meu mantra, mas os amigos tornavam as coisas muito mais fáceis. Franzi a
sobrancelha, pensativa. O que é que o Jenks fazia para me convencer de qualquer coisa?
Oh, sim. Praguejava e dizia-me que eu estava sendo idiota.
— Por mim pode se virar — disse, num tom agradável. — Mas Jenks pixou-o
e ele disse que você é alérgico ao pó de pixy. Está espalhando-se pelo seu sistema
l i n fá ti c o . Q u e r f i c a r c o m c o c e i r a d u r a n te u m a s e m a n a s ó p o r q u e é m u i to
orgulhoso para usar um mísero feitiço contra a coceira? Até uma criança
conseguiria fazer um feitiço destes — bati no caldeirão de cobre para feitiços com
uma unha e ele tiniu. — É como uma aspirina. Existem aos montes — não era
verdade, mas o mais certo era que Glenn não o aceitasse se soubesse o quanto
custava uma coisa dessas numa loja de magia. Era um feitiço medicinal de classe
dois. Provavelmente deveria ter entrado no interior de um círculo para fazê-lo,
mas fechá-lo implicava ligar-me à eternidade. E, ver-me sob a influência de uma
linha Ley faria, certamente, com que Glenn pirasse.
Aquele feitiço era, por norma, suficiente para sete porções e eu perguntei-
me se ele exigiria que eu desperdiçasse uma em mim antes de acreditar que não ia
transformá-lo num sapo. Ora, aí estava uma ideia. Podia colocá-lo no jardim
afastando as lesmas das hortas. Edden não daria pela falta dele senão dali a pelo
menos uma semana.
— É só isso.
Abanei a cabeça.
— Está pensando em magia das linhas Ley. E, é latim, não são palavras
mágicas. As bruxas das linhas Ley retiram o seu poder diretamente das linhas e
precisam do aparato da cerimônia para controlá-las. Eu sou uma bruxa de terra —
graças a Deus, pensei. — A minha magia também provém das linhas Ley, mas é
naturalmente filtrada através das plantas. Se eu fosse uma bruxa negra, a maior
parte da magia teria a sua origem nos animais.
que escapara da fita. — Toda magia requer que seja pago um preço em morte,
Detetive. A magia branca da terra exige o meu sangue e a morte das plantas. Se eu
quisesse realizar um feitiço negro para deixá-lo dormindo, para transformá-lo
num sapo ou mesmo para lhe dar soluços, teria de usar alguns ingredientes
nojentos que envolvem partes de animais. A magia verdadeiramente negra
exigiria não só o meu sangue, mas também um sacrifício animal. Ou humano ou
Inderlander.
A minha voz tinha assumido um tom mais rude do que era minha intenção e
eu mantive os olhos baixos enquanto media as doses e deixava que ensopassem
os discos de pau-brasil. Grande parte da minha curta carreira na SI tinha
envolvido a captura de fazedores de feitiços cinzentos — bruxas que pegavam em
feitiços brancos, como um feitiço para dormir e lhes davam um mau uso —, mas
também tinha capturado alguns fazedores de encantamentos negros. A maioria
eram bruxas das linhas Ley, já que os ingredientes necessários à confecção de um
feitiço negro eram suficientes para manter brancas, a maior parte das bruxas da
terra. Olho de tritão e dedo de sapo? Nem por sombras. Pensem antes em sangue
retirado do baço de um animal ainda vivo e língua arrancada no momento em que
solta o seu último grito para o éter. Horrível.
E, quando conseguisse aquilo que queria, ele teria o meu pé no seu estômago ou as
minhas algemas nos seus punhos.
— Tem sangue seu — disse ele, em tom de repulsa. — Faça outro e usarei o
meu.
— O seu? O seu não servirá de nada. Tem que ser sangue de bruxa. O seu
não tem as enzimas necessárias para ativação do feitiço — voltei a estender-lhe e
ele abanou a cabeça. Frustrada, rangi os dentes. — Seu pai já usou um, seu
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humanozinho chorão. Aceite-o para que todos nós possamos prosseguir com as
nossas vidas! — acenei com o amuleto na sua direção e ele agarrou-o, temeroso.
— Não tem de quê — respondi, feliz por ele parar, finalmente, de me tratar
por "minha senhora." — Não o deixe entrar em contato com o sal e deverá durar
um ano. Poderá tirá-lo e arrumá-lo, se quiser, quando as bolhas desaparecerem.
Também funciona para erva venenosa — comecei a limpar a confusão que tinha
feito. — Lamento ter deixado que Jenks o pixasse assim — disse lentamente. — Ele
não o teria feito se soubesse que era alérgico ao pó de pixy. Normalmente as bolhas
não se espalham.
— Não se preocupe com isso — ele levou a mão a um dos catálogos de Ivy,
na mesa de apoio, afastando a mão ao ver a fotografia das facas curvas de aço
inoxidável em promoção.
Guardei o meu livro de feitiços, por baixo do balcão da ilha, feliz por ele
começar a descontrair.
Capitulo 5
C o m o s o l h o s f i xo s n o c o r r e d o r va z i o , f i z si n a l a G l e n n p a r a q u e
permanecesse sentado. Não tinha tempo para explicar. Perguntei-me o quanto
Edden o havia informado ou se aquela seria uma das suas formas más e eficientes
de educar Glenn.
— Nunca pensei que você fosse capaz de apanhar o peixe — disse ela.
Ivy estacou junto à entrada quando viu Glenn. Suas feições meio orientais
ficaram inexpressivas de surpresa. Quase conseguia ver a parede ser erguida
quando ela percebeu que não estávamos sozinhas. A pele ao redor dos seus olhos
ficou tensa. O nariz pequeno ergueu-se, captando o cheiro dele, registrando o
medo dele e a minha preocupação num ápice. De lábios apertados, ela pousou o
saco de lona das compras no balcão e afastou o cabelo dos olhos. Este caía até o
meio das suas costas numa suave onda negra e eu sabia que era aborrecimento,
não os nervos, o que a levara a prendê-lo atrás da orelha.
Ivy já tivera muito dinheiro e ainda se vestia como se o tivesse, mas quase
toda sua herança fora gasta para pagar o seu contrato com a SI — quando ela se
demitiu comigo. Para dizer as coisas de forma simples, ela parecia uma modelo
assustadora: ágil e pálida, mas incrivelmente forte. Ao contrário de mim, não
usava esmalte, nem joias além do seu crucifixo e das duas pulseiras iguais ao
redor de um dos tornozelos e pouca maquiagem; não precisava. Mas... Como eu...
Estava praticamente sem grana, pelo menos até a mãe acabar de morrer e o que
ainda restava dos bens Tamwood passarem para ela. Pelos meus cálculos ainda
faltavam uns duzentos anos, no mínimo dos mínimos.
Inspirei fundo.
— Olá, Ivy. Este é o detetive Glenn. Falou com ele esta tarde? O mandou ir
buscar-me? — meu olhar fixou-se nela. Íamos falar daquilo mais tarde.
Tentando afastar com os dedos o fio do seu novo amuleto, puxou uma cruz
de dentro da camisa.
— Mas o Sol ainda brilha — disse, soando como se tivesse sido traído.
Glenn recuou.
Nem mesmo Glenn seria idiota ao ponto de antagonizar com uma vampira
na sua própria casa. A arma que trazia no coldre não lhe serviria de nada. Claro,
podia dar-lhe um tiro e matá-la, mas isso faria apenas com que ela passasse a ser
uma morta-viva e arrancasse a cabeça dele. E, não havia júri no mundo que a
condenasse por homicídio, tendo em conta que ele a matara primeiro.
Ivy ficou rígida e eu fiquei de boca aberta. Ele era assim tão idiota?!
uma lentidão provocante até fitá-lo por baixo da franja lisa. Só então inspirou,
lenta e deliberadamente. Os dedos pálidos e compridos brincavam com o
profundo decote em V da camisa de lycra, enfiada nas calças de couro.
Ela tinha perdido o controle. Era ainda pior do que da vez em que me
encontrara com o Nick — enrolados no seu sofá, ignorando o combate de
wrestling. Continuava sem saber o que a tinha feito perder o controle: tínhamos
deixado bem claro que eu não era namorada dela, nem brinquedo, amante,
espectro, ou seja lá qual for o mais recente termo para lacaio de vampiro usado por
estes dias.
— Hum — disse ela, inspirando através dos lábios apertados. — Muito alto.
Grandes pernas... Linda, linda pele negra. A Rachel te trouxe para mim.
Ela inclinou-se sobre ele, quase o tocando. Ele tinha apenas mais alguns
centímetros que ela. Ivy inclinou a cabeça como se estivesse prestes a beijá-lo. Uma
gota de suor deslizou pelo rosto e pelo pescoço dele. Ele não se mexeu, a tensão
enrijecendo cada músculo do corpo.
Usei toda a minha força de vontade para não tremer quando ela voltou para
mim os fossos negros em que se tinham transformado os seus olhos. Eles
seguiram-me enquanto eu colocava a ilha entre nós. Ela estava imóvel, com
exceção de uma mão que percorria o ombro e o pescoço de Glenn, o dedo dela
exatamente um centímetro acima da pele dele.
— Hum, Ivy? — disse eu, hesitante. — Glenn é capaz de querer sair agora.
Deixe-o sair.
O me u p e d i d o p a re c e u ch e g a r a t é I vy e e l a i n sp i ro u ra p i d a me n t e .
Dobrando o cotovelo, empurrou o corpo, afastando-se da parede. Glenn saiu
rapidamente de debaixo dela. Armado, erguia-se na passagem para o corredor, os
pés afastados e a arma apontada para Ivy. A ponta de segurança foi desativada
com um clique e os olhos dele estavam muito abertos.
Os olhos dele viajaram até Ivy antes de guardar a arma. Ele deixou-se ficar
na passagem, respirando com dificuldade. Pensando que o pior já tinha passado,
abri a geladeira.
— Ei, Ivy — disse, num tom despreocupado, tentando fazer com que todos
regressassem à normalidade —, atira-me o pepperoni?
69
— Pepperoni — disse ela, com a voz mais rouca do que o normal. — Sim —
ela encostou as costas das mãos nas bochechas. Franzindo a sobrancelha a si
mesma, atravessou a cozinha com o que reconheci ser um andar deliberadamente
lento. — Obrigada por me trazer de volta — disse ela, suavemente, enquanto me
entregava o embrulho de carne cortada.
— O que ele está fazendo aqui? — perguntou ela, suficientemente alto para
que Glenn a ouvisse.
— Sou a babá.
Ela acenou esperando, claramente, por mais. Quando isso não aconteceu,
ela acrescentou:
Olhei para ela de relance, aliviada por ver que as suas pupilas estavam
quase de volta ao normal.
Ivy não fizera quase nada, a não ser procurar pessoas desaparecidas desde
que tínhamos deixado a SI, mas eu sabia que ela ficaria do lado de Jenks, achando
que se tratava de uma armadilha de Trent Kalamack — mal soubesse que se
tratava do namorado de Sara Jane. Contudo, adiar a revelação tornaria as coisas
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ainda piores. E, eu queria que ela fosse comigo ao Piscary's. Assim conseguiria
mais informações.
— Não vais aceitar este serviço — disse ela, a suavidade monótona da sua
voz lançando um arrepio gelado e negro através de mim.
— Vou aceitar o serviço — disse eu, ouvindo um fino fio de medo na minha
voz. — Trent não pode tocar-me e já disse ao Edden que aceitava.
— A última vez que enfrentou Trent, quase morreu — disse ela, o suor
deslizando pelo seu pescoço e desaparecendo para o interior do profundo decote
em V da sua camisa.
— Ivy — disse eu, com a voz calma, embora estivesse tremendo por dentro.
— Vou aceitar este serviço. Se quiseres vir comigo e com Glenn quando formos
falar com o Piscary...
Faltou-me o ar.
— Ivy! — consegui gritar antes de ela me ter erguido com uma mão e
prendido ali.
— Não vais falar com o Piscary — disse ela, o pânico era uma fita prateada
que envolvia a seda cinzenta da sua voz. — Não vai aceitar este serviço.
72
Ivy não me daria ouvidos se ele estivesse ali. Ela estava com medo. De que
diabo estava ela com medo? Trent não me podia tocar.
— Sai daqui! — exigi, sentindo a cabeça a latejar quando Ivy apertou o meu
pescoço com mais força.
A respiração de Ivy era como um gemido. Era tão suave como um primeiro
floco de neve, mas eu a ouvia. O cheiro da canela inundou-me os
sentidos.
— Rachel é
dominante?
— Ivy — disse, com a voz rouca, cruzando o meu olhar com o dela.
Fiquei rígida perante o seu terror negro. Conseguia ver o meu reflexo nas
suas profundezas, o meu cabelo selvagem e o meu rosto inchado. Senti, de súbito,
o meu pescoço a latejar sob os dedos dela, que pressionavam a cicatriz da dentada
do demônio. Deus me ajudasse, mas começava saber bem a recordação da euforia
que me tinha invadido — na primavera anterior — enquanto o demônio que tinha
sido enviado para me matar rasgava o meu pescoço e enchia a ferida com saliva de
vampiro.
— Se o queres — sussurrei —, vai atrás dele. Mas não quebre o teu jejum
por raiva — inspirei mais uma vez, rezando que não fosse a última vez que o fazia.
— A menos que seja por paixão, não valerá a pena, Ivy.
Fiquei surpreendida por ver que Ivy ainda se encontrava ali. Normalmente,
quando perdia o controle daquela maneira, corria para Piscary. Mas a verdade é
que ela nunca perdera o controle daquela forma. Ela tivera medo. Ela tinha me
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prendido contra a parede porque estava com medo. Medo por quê? Porque eu lhe
dissera que ela não podia rasgar a garganta de Glenn? Amiga ou não, eu partiria
se a visse tomar alguém na minha cozinha. O sangue me daria pesadelos para
sempre.
Ela não se mexeu, deixando-se ficar sentada à mesa, de costas viradas para
mim, com a cabeça entre as mãos.
Pouco depois de termos ido viver juntas, percebi que Ivy não gostava de
quem era. Odiava a violência, embora a instigasse. Lutava por se abster de ingerir
sangue, ainda que o desejasse. Mas ela era uma vampira. Não tinha outra escolha.
O vírus instalara-se nas profundezas do seu DNA e estava lá para ficar. Cada um é o
que é. O fato de ter perdido o controle e permitido que os seus instintos
levassem a melhor significava, para ela, um fracasso.
— Não — disse ela, quando a minha mão caiu. A voz dela estava abafada.
— Rachel, desculpa. Eu... Eu não consigo... — ela hesitou, inspirando roucamente.
— Não aceite este serviço. Se for pelo dinheiro...
— Não é pelo dinheiro — disse eu, antes que ela pudesse terminar. Ela
voltou-se para mim e a raiva que sentira por ela tentar me comprar desvaneceu-se.
Uma pequena fita de humidade marcava o local que ela tentara limpar. Nunca
antes a vira chorar e deixei-me cair numa cadeira ao lado dela.
— Então vou contigo ao Piscary's — disse ela, a voz nada mais que uma
leve recordação da sua força normal.
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— Tinha essa esperança — disse eu, enquanto obrigava a mão a descer. Ela
dirigiu-me um sorriso assustado e preocupado e afastou o olhar.
Capitulo 6
As crianças pixies voavam ao redor de Glenn — que se encontrava sentado
na mesa da cozinha, tão distante de Ivy quanto possível sem parecer demasiado
óbvio. Os filhos de Jenks pareciam ter simpatizado com o detetive do DFI de
forma inusitada e Ivy — sentada em frente ao computador — tentava ignorar o
ruído e as formas ondulantes. Ela fazia-me pensar num gato dormindo em frente a
um comedouro de pássaros — aparentando ignorar tudo, mas sempre atento a
qualquer pássaro que pudesse cometer um erro e aproximar-se demais. Todos se
esforçavam para ignorar o fato de quase termos tido um incidente e, os meus
sentimentos por me encontrar presa a Glenn tinham passado do franco desagrado a
uma ligeira irritação perante aquela nova e inesperada revelação de tato.
— Não devia ter uma arma assim à vista — disse, num tom de escárnio. —
Faz ideia de quantas crianças morrem todos os anos por causa de ideias idiotas
como essa?
— Ivy — disse e ela ergueu os olhos do monitor, o rosto perfeito e oval sem
qualquer expressão. — Apanhada.
Ivy não era o tipo de companheira de quarto que gostasse de jogar Ludo e a
única vez em que me sentei com ela no sofá — para assistirmos Hora de Ponta —,
eu tinha desencadeado, inadvertidamente, os seus instintos de vampira e quase
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Glenn passou a mão pela barba aparada, esperando. Era óbvio que ia
acontecer qualquer coisa, ele só não sabia o quê. Ignorando-o, pousei a arma no
balcão e comecei a limpar o caos em que deixara a pia. Minha pulsação acelerou e
a tensão fazia me doer os dedos. Ivy continuava fazendo compras na Internet, os
cliques do mouse bem audíveis. Ela levou a mão a um lápis, quando algo lhe
chamou a atenção.
Dei a Ivy o rolo de papel de cozinha, que mantinha sobre o balcão da ilha
precisamente por aquele motivo e ela limpou a mão, despreocupadamente,
continuando a fazer as suas compras.
De cabeça baixa, Glenn olhou para a arma de paintball. Eu sabia que ele
estava calculando o seu peso, percebendo que não se tratava de um brinquedo.
Avançou até mim e devolveu-me.
— Deviam obrigá-las a ter licença para estas coisas — disse ele, enquanto
me devolvia a arma.
— Vai assim?
Ivy deu uma fungada rude, ao computador. Glenn olhou de relance para
ela, depois para mim.
— Não — disse eu, colocando-me à sua frente. — Quero saber o que acha
que eu devia vestir. Um daqueles sacos de batatas de poliéster que obrigam as
agentes do DFI vestirem? Há uma razão para Rose ser tão tensa e não tem nada a
ver com o fato de não haver paredes divisórias ou de a cadeira dela ter uma roda
quebrada!
Sem dizer nada, Glenn enfiou a mão debaixo do banco e empurrou-o para
trás. Fechando os olhos, instalou-se como se fosse tirar um cochilo. O silêncio foi
se tornando mais pesado e eu deixei-me ficar a ouvir os estalos do motor do carro
no escuro. Levei a mão ao botão do rádio e Glenn murmurou.
Era Sara Jane e ela estacionou o carro no lugar logo atrás do nosso. Glenn
nada disse enquanto saíamos do carro e avançávamos para falar com ela.
— Vou lá em cima, para deixar entrar o Sarcófago — disse Sara Jane, en-
quanto se dirigia às escadas.
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Ergui as sobrancelhas.
— É o gato, certo?
Abanei o mouse e descobri que ele tinha uma linha só para Internet e estava
sempre ligado, tal como Ivy. Na verdade, eu não deveria estar fazendo aquilo, mas
desde que ninguém dissesse nada... Pelo canto do olho, vi Glenn percorrer com o
olhar o vestido de corte fino de Sara Jane — enquanto esta abria a embalagem de
comida de gato — e depois as minhas roupas, enquanto eu me inclinava sobre o
teclado. Podia ver nos seus olhos que ele achava que as minhas roupas não eram
profissionais e lutei contra uma careta.
Dan tinha várias mensagens não lidas — duas de Sara Jane e uma com um
endereço da universidade. As restantes eram de uma sala qualquer de chat
dedicada ao hard-rock. Até eu sabia que não podia abrir, adulterando as provas
caso ele aparecesse morto.
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Glenn passou uma mão pelo cabelo curto, parecendo decepcionado por não
encontrar nada de incomum. Calculei que isso se devesse, não ao fato de Dan estar
desaparecido, mas ao de ele ser um bruxo e, como tal, devia ter cabeças de burro
penduradas no teto. Dan parecia ser um normal jovem solteiro. Talvez fosse mais
arrumado do que a maioria, mas Sara Jane não andaria com um cara desleixado.
Sara Jane pousou uma tigela com comida no chão, ao lado de uma tigela
com água. Um gato preto desceu as escadas ao ouvir o bater da porcelana. Miou
para Sara Jane, não se aproximando da comida até ela ter saído da cozinha.
A magia das linhas Ley podia ser ligada à prata, tal como a magia de terra
podia impregnar a madeira e, as armações finas tinham sido enfeitiçadas para me
permitir ver através de feitiços invocados pela magia das linhas Ley. Sentia-me
vulgar ao usá-los — pensando que o fato de estar usando um amuleto que não
podia fazer, me atirava de volta ao reino dos magos. Mas, enquanto coçava o
queixo do Sarcófago — agora certa da ausência de qualquer mudança e que não se
tratava de Dan preso sob a forma de um gato — decidi que não me importava.
— São minhas.
"Olá, Dan. Esperei durante uma hora. Combinamos na Carew Tower, certo?"
Houve uma hesitação, depois um distante. "Bem, ligue-me. E, é melhor que me leve
uns chocolates". A voz dela tornou-se brincalhona. "Vais ter muito que implorar, moço
delavoura".
"Olá, Dan. Se está aí, atende". Mais uma vez uma pausa. "Hum, estava só
brincando quanto ao chocolate. Nos vemos amanhã. Te Amo. Tchau."
— Ele não estava aqui quando vim e não o vejo desde então — disse,
baixinho.
Ela mordeu o lábio e afastou o olhar. Impressionada com a sua falta de tato,
dirigi a Glenn um olhar assassino.
— Sara Jane — disse, hesitante. — Tenho de lhe fazer esta pergunta e peço
desde já me desculpe por isso. Sabe se alguém ameaçou o Dan?
— Ninguém.
— Não, claro que não — disse ela rapidamente, baixando os olhos e com o
rosto pálido ficando ainda mais branco.
— Sim, obrigada — os olhos dela pousavam em tudo menos nos meus e ela
tinha voltado a assumir um tom de voz profissional. — Agradeço por terem vindo.
Gostaria de poder ajudar mais.
O carro de Sara Jane piou alegremente antes de ela pousar a bolsa no seu
interior, entrar e arrancar. Deixei-me ficar de pé no escuro, ao lado da porta aberta
e observei as luzes traseiras dela desaparecerem ao dobrar numa esquina. Glenn
fitava-me, de pé, junto ao lugar do condutor com os braços pousados sobre o teto
do carro. Os seus olhos castanhos eram inexpressivos à luz do poste.
— O Kalamack deve pagar muito bem às suas secretárias para ela ter aquele
carro — disse ele, suavemente.
Eu fiquei rígida.
— Sei que o faz — disse, irada, não gostando daquilo que ele deixara nas
entrelinhas. — Ela é muito boa naquilo que faz. E, ainda sobra dinheiro para
mandar para casa, permitindo que os familiares vivam como verdadeiros reis
comparados com os restantes empregados da fazenda.
— Está levando isso de forma muito pessoal, não está? — perguntou Glenn,
ao ligar o carro.
— Acha que só porque ela é uma maga, não merece ajuda? — disse,
rudemente.
— Tenha calma. Não foi isso que quis dizer — Glenn olhou para mim de
relance, enquanto dava marcha ré. Ligou o aquecedor no máximo, antes de fazer a
mudança e uma madeixa de cabelo fez-me cócegas no rosto. — Só estou dizendo
que está agindo como se tivesse algo a ganhar com o resultado.
— Desculpe.
Ele parou no trânsito e, sob a luz de um poste, olhei para ele perguntando-
me se queria, de fato, ser sincera com ele.
87
— Não. Eu a conheço.
lutara durante toda a minha vida profissional. Ele ofereceu-me algo que se parecia
com a liberdade. Desejava-o tanto, que poderia ter dito que sim.
Glenn estava em silêncio, tendo a sensatez de não dizer nada. Não havia
um policial vivo que não se tivesse sentido tentado e eu tinha orgulho de ter
passado no teste.
— Acha mesmo que o desaparecimento de Dan não tem nada a ver com os
assassinatos do caçador de bruxas? — perguntou ele.
— Sim — mudei de posição, não me sentindo confortável por ter dito tanto.
— Só aceitei este serviço para poder ajudar Sara Jane e apanhar Trent. Agora vai
correr e contar ao papai?
Fitei-o, não querendo admitir que prometera a Ivy que não iria lá sem ela.
Bem, dah! — pensei. Era a essa hora que a maior parte dos Inderlanders
atingiam o pico de forma, em especial os mortos.
— Por que não vai para casa, dorme e vamos lá todos amanhã?
Capitulo 7
— Rache — disse Jenks do meu brinco. — Dá uma olhada naquele cara.
Está à procura de algo ou quê?
Olhei de relance para o papel amarelo que Edden me dera. Tinha as horas e
os dias em que a minha turma se reunia e no canto inferior direito estava o preço
de tudo: impostos, taxa de laboratório e propinas — o que perfazia uma soma
chocante. Só aquele lugar era quase tão dispendioso como um semestre onde eu
estudei. Sentindo-me nervosa, enfiei o papel no saco, quando reparei num
animalomem em um canto, observando-me. Eu parecia suficientemente deslocada
andando de um lado para o outro com um horário na mão. Mais valia ter
p e n d u r a d o u m l e t r e i r o a o r e d o r d o p e s co ç o d i z e n d o :Al u n o d a s N o va s
Oportunidades. Deus me ajudasse, sentia-me velha. Eles não eram muito mais
novos que eu, mas todos os seus movimentos gritavam inocência.
Nem sequer sabia o porquê de o pixy estar comigo. Edden devia tê-lo
obrigado a seguir-me para garantir que eu iria às aulas. Minhas botas feitas por
vampiros iam batendo ritmicamente no chão, enquanto eu avançava pela
passagem alta, repleta de janelas, que ligava o edifício de Administração e Artes à
Kantack Hall. Senti um arrepio quando compreendi que os meus pés avançavam
ao ritmo de "Shattered Sight" de Takata e, embora ainda não conseguisse ouvir a
música, a letra tinha se instalado suficientemente fundo, na minha mente, para me
deixar louca.
— Edden não quer que a Dra. Anders perceba que é suspeita. Eu acho que é
uma boa ideia.
92
— De quê?
— Bem — disse ele, com a voz arrastada —, agora que está frequentando a
faculdade, encaixa no perfil.
— Não há muitos alunos das linhas Ley. Não me lembro de te ver. Costuma
ter aulas à noite?
Ela sorriu, absolutamente maravilhada. Era óbvio que não tivera muito
contato com pixies. A maioria ficava fora da cidade, a não ser que trabalhasse
numa das poucas áreas em que os pixies e as fadas eram exímios: manutenção de
equipamento de vigilância, segurança ou o bom e velho mexerico. Mesmo assim,
as fadas eram empregadas com maior frequência, já que comiam insetos, em vez
de néctar, então, os seus mantimentos eram mais fáceis de arranjar.
— Hum, a Dra. Anders dá mesmo a aula ou tem um assistente que o faz por
ela? — perguntei.
quando a Dra. Anders nos disse que o assassino só andava atrás de bruxas das
linhas Ley e que deveríamos ter cuidado. E, depois, o Dan desistiu — ela voltou a
encostar-se à parede, suspirando.
— Acho que, em parte, foi por isso que Dan foi embora. E, pena que foi. O
homem era um espanto, era capaz de fazer faiscar um borrifador durante uma
tempestade. Tinha uma grande entrevista. Não quis me dizer mais nada. Acho que
tinha medo que eu também me candidatasse. Parece que conseguiu o emprego.
— Oh, não se preocupe, Rachel. O assassino não anda atrás de nós. Sério. A
Dra. Anders disse-nos para termos cuidado, mas ele só anda atrás de bruxas
experientes.
— Não sei quem é que anda matando meus alunos. Já estive em muitos
funerais este mês para ter de ouvir as suas acusações nojentas. E, processarei
vários daqui até a Viragem se mancharem o meu nome!
— O quê?
— Consigo sentir o cheiro dele — disse. — Ele está lá dentro com a Dra.
Anders.
Fitei a porta, como todos os presentes. Não sabia que era possível fazer um
círculo sem o desenhar. Também não gostava do fato de todos — com exceção de
Jenks e eu — terem sido capazes de perceber que ela o tinha feito. Sentindo que
aquilo era muito areia para o meu caminhão, peguei minha bolsa.
Anders. Um sorriso confiante e dominador curvou seus lábios quando seus olhos
pousaram em mim.
Eu tivera medo do homem e estava pronta e disposta a ter medo dele agora,
mas algo tinha mudado. Apesar de ainda se mover com a graça de um predador, o
porte atemporal que tivera antes desaparecera. A expressão esfomeada do seu
olhar — que ele não se dava ao trabalho de esconder — significava que continuava
a ser um vampiro praticante, mas calculei que perdera o favor de alguém e já não
se alimentava dos mortos-vivos, embora eles continuassem, provavelmente, a
alimentar-se dele.
— Olá, Sr. Denon — disse eu, sem afastar o olhar das suas pupilas negras e
dilatadas. — Foi despromovido a agente? — a luxúria esfomeada dos seus olhos
transformou-se em raiva e eu acrescentei: — Parece que está fazendo os serviços
que costumava me dar. Salvar familiares das árvores? Verificar a validade das
licenças? Já agora, como estão os trolls sem abrigo que vivem debaixo da ponte?
Ainda assim, aproximou-se de tal forma que eu não conseguia ver mais
nada para além dele. Eu tinha de levantar os olhos e isso me irritou. Sua respiração
era quente e eu conseguia sentir nele o cheiro de sangue. Minha pulsação acelerou
e odiei que ele soubesse que eu ainda tinha medo dele.
— Tem aqui mais alguém além de nós dois? — disse ele, a voz tão suave
como leite com chocolate.
Ele recuou.
Ivy tinha razão. Havia medo no fundo da sua alma. Medo de que um dia,
os vampiros mortos-vivos que se alimentavam dele perdessem o controle e o
matassem. Medo de que não o trouxessem de volta como um dos seus irmãos.
— Cão que ladra não morde — disse eu, sarcástica. — Estou aqui por causa
de uma pessoa desaparecida, não dos seus assassinatos.
— Sim, como queira — disse eu, ainda que uma centelha do meu antigo
medo tenha tentado vir à superfície.
Inspirei fundo para afastar a fraqueza dos meus joelhos. Ótimo. Agora,
provavelmente, ia entrar na aula, depois de terem começado. Pensando que o meu
dia não podia ficar pior, recuperei a compostura e avancei para a sala fortemente
iluminada pelas janelas que davam para o campus. Como Janine dissera, a sala
estava arrumada como um laboratório, com duas pessoas sentadas em bancos em
frente a cada uma das mesas altas. Janine estava sozinha conversando com Jenks
tendo, claramente, guardado um lugar para mim ao seu lado.
O cabelo dela estava preso num coque de aspecto sério, com fios cinzentos
traçando linhas pouco elogiosas por entre os pretos. Parecia mais velha do que a
minha mãe e, usava um par de calças castanhas de aspecto conservador e uma
100
blusa de bom gosto. Tentando não chamar atenção para mim, deslizei para as
primeiras duas filas de mesas e sentei-me ao lado de Janine.
— Obrigada — sussurrei.
— Pensei que não se podia desistir da SI — disse ela, o rosto ficando ainda
mais redondo de espanto.
— Não foi fácil — segui sua atenção para frente da sala quando a Dra.
Anders se levantou.
— Vejo — disse ela, a sua voz lançando-me um arrepio pela espinha —, que
temos aqui um rosto novo.
101
— Eu sei quem é — com os saltos baixos batendo, ela aproximou-se até ficar
à minha frente. Inclinando-se, olhou para Jenks.
— Sim, minha senhora — disse ele e, para minha grande surpresa, o pixy
normalmente arrogante saltou do meu brinco. — Desculpa, Rache — disse ele,
pairando à minha frente. — Estarei no átrio da faculdade ou na biblioteca. Pode
ser que o Nick ainda esteja trabalhando.
Ele curvou a cabeça à Dra. Anders e voou pela porta ainda aberta.
— Sério?
A Dra. Anders deixou cair os papéis na minha mesa com um estalo. O meu
nome estava marcado com um espesso círculo vermelho. Os seus finos lábios
apertaram-se de forma quase imperceptível.
— Por que está aqui? — perguntou ela. — Já passaram duas aulas desde o
início do semestre.
— Nem sequer sei como conseguiu ser aprovada para esta aula — disse ela,
em tom sarcástico. — Não cumpre qualquer dos pré-requisitos.
Era um fato, mas Edden era a verdadeira razão porque fora capaz de passar
diretamente para uma aula de nível quinhentos.
I n s p i r e i f u n d o p a ra me a ca l ma r , o l h a n d o d e r e l a n ce p a ra o s ro st o s
chocados. Era óbvio que nunca tinham visto aquele lado da sua amada professora.
— Preciso desta aula, Dra. Anders — disse eu, não sabendo o porquê de
estar tentando apelar ao seu raquítico sentido de compaixão. A não ser pelo fato
de, caso fosse corrida, Edden poder me obrigar a pagar a propina. — Estou aqui
para aprender.
Dito isto, a mulher irritadiça pegou nas suas folhas e colocou-se junto à
mesa vazia atrás dela. O seu olhar percorreu a turma antes de se fixar em mim.
— Não sou uma bruxa negra — disse baixinho, temendo começar a gritar,
caso erguesse a voz. Levantei a manga, revelando a marca do demônio e
recusando-me a ter vergonha dela. — Eu não invoquei o demônio que me fez isso.
Lutei contra ele.
Inspirei fundo, incapaz de olhar para quem quer que fosse, sobretudo para a
Janine — que tinha se afastado de mim, tanto quanto lhe era possível.
— Estou aqui para aprender como mantê-lo longe de mim, Dra. Anders.
Não vou tirar nenhuma cadeira de Demonologia. Tenho medo delas.
A última frase disse num sussurro, mas eu sabia que toda a turma tinha
ouvido. Dra. Anders parecia surpresa. Eu sentia-me embaraçada, mas se isso a
fizesse recuar, era um embaraço bem gasto. Os passos dela eram audíveis,
enquanto avançava para frente da sala.
— Vá para casa, menina Morgan — disse ela, virada para o quadro negro.
— Eu sei porque está aqui. Eu não matei os meus antigos alunos e a acusação
implícita ofende-me — com esse pensamento alegre, voltou-se, dirigindo à turma
u m s o r r i s o de l á b i o s ap e r t a do s . — E , o s r e s t a n t e s s e n ã o s e i m po r t a r e m ,
conservem as vossas cópias dos pentagramas do século XVIII. Vamos fazer um
104
teste sobre eles sexta-feira. Para a próxima semana quero que leiam os capítulos
seis, sete e oito dos vossos manuais e que resolvam os exercícios ímpares no final
de cada um. Janine?
Ao ouvir o seu nome, a jovem saltou. Tinha estado tentando ver bem o meu
pulso. Eu ainda estava tremendo e os meus dedos não paravam quietos, enquanto
anotava os trabalhos de casa.
Janine não hesitou. Ainda antes de a Dra. Anders ter terminado, Janine já
tinha agarrado a bolsa e o livro, passando para a mesa do lado. Eu fiquei sozinha,
sentindo-me mal. O giz que Janine me emprestara estava pousado ao lado do meu
livro como um biscoito roubado.
Capitulo 8
Felizmente não havia nenhuma fila quando chegamos à pizzaria Piscary's
— na viatura descaracterizada do DFI conduzida por Glenn. Ivy e eu saímos do
carro, mal ele parou. Não tinha sido uma viagem muito confortável para nenhum
de nós — com a recordação dela prendendo-me contra a parede da cozinha ainda
muito vívida. Seus modos tinham estado estranhos durante a tarde, compostos,
mas excitados. Eu sentia-me como se estivesse prestes a conhecer os pais dela. De
certa forma, suponho que fosse. Piscary era a origem ancestral da sua linhagem
familiar viva.
Estava vestida com sua calça de couro preta e uma camisa de seda que lhe
dava um aspecto alto, magro e predatório. A única cor no seu rosto era o vermelho
forte do batom. Uma corrente de ouro negro pendia ao redor do pescoço,
substituindo o crucifixo que normalmente usava e que se encontrava agora na
caixinha das joias, em casa. Combinava perfeitamente com as pulseiras que usava.
Além disso, tinha pintado as unhas com um esmalte transparente, o que lhes dava
um brilho sutil.
para esconder a marca do demônio. Sabia bem arrumar-me e eu até tentara fazer
qualquer coisa com o meu cabelo. O frisado ruivo com que acabei quase parecia
intencional.
B r i nq u e do s e ri a m a i s c o r r e t o . R e f e ri a - s e a u m h u m an o mo r d id o
recentemente, agora pouco mais do que uma fonte de sexo e alimento e,
mentalmente ligado a um vampiro. Eram mantidos submissos durante tanto
tempo quanto possível. Por vezes durante décadas. O meu antigo patrão, Denon,
tinha feito parte desse grupo até ter caído nas graças daquele que lhe dera uma
existência um pouco mais livre.
Estendi uma mão a Glenn para ajudá-lo a levantar, enquanto Ivy abria a
porta. Glenn recusou minha ajuda, enfiando o amuleto contra o comichão dentro
da camisa, enquanto lutava para recuperar o seu orgulho esmagado em algum
lugar sob as botas de Ivy. Jenks esvoaçou de mim para o ombro dele e Glenn
sobressaltou-se.
— Oh, não — disse Jenks alegremente. — Não sabe que um vampiro não te
tocará se tiver um pixy no ombro? É um fato bem conhecido.
— Iluminada — disse, antes que Ivy pudesse dizer o contrário. Não queria
ir para o piso de cima. Parecia caótico.
Ivy sorriu, revelando os dentes. Os seus caninos não eram maiores do que
os meus, mas eram afiados como os de um gato.
Parecendo quase elevado pelo sorriso dela, o host acenou. O peito, visível
através da camisa aberta, estava repleto de cicatrizes pálidas. Não era o tipo de
roupa que usavam os hosts do Denny's, mas quem era eu para me queixar? Havia
nele uma expressão doce que eu não apreciava nos meus homens, mas que
algumas mulheres gostavam.
110
— Não vai demorar muito — disse ele, fixando em mim os olhos quando
reparou na atenção que lhe estava dedicando. Os lábios afastaram-se sugestivos.
— Querem pedir?
Uma pizza passou por nós num tabuleiro e, enquanto eu afastava dele o
olhar, olhei de relance para Ivy e franzi as sobrancelhas. Não tínhamos ido ali pelo
jantar, mas porque não? Cheirava maravilhosamente.
Existiam clubes e discotecas sem LPM, mas não eram tão populares e não
faziam muito dinheiro. Os humanos gostavam dos espaços com LPM, já que
111
podiam namoricar sem que as más decisões de outros pudessem transformar o seu
companheiro num monstro descontrolado e sedento de sangue. Pelo menos até se
encontrarem na privacidade do seu próprio quarto, onde talvez conseguissem
sobreviver. E, os vampiros também gostavam, era mais fácil quebrar o gelo
quando o companheiro não estava preocupado com a possibilidade de ver a sua
pele rasgada.
O vampiro vivo era amigo de Ivy e eu não gostava dele. Isso se devia, em
parte, ao fato de Kist ser o delfim de Piscary — uma extensão do mestre vampiro
que fazia o seu trabalho durante o dia. O fato de Piscary ter usado Kist para me
enfeitiçar contra a minha vontade — algo que, na época, eu não sabia ser possível
— não ajudava. O que também não ajudava era o fato de ele ser muito, muito
bonito — o que o tornava, segundo os meus cálculos, muito, muito perigoso.
Se Ivy era uma diva da escuridão, Kist era o seu consorte e, Deus me
ajudasse, ele representava o papel com perfeição. Cabelo loiro curto, olhos azuis e
um queixo com pelos suficientes para dar às suas feições delicadas um ar mais
rude — e faziam dele um sensual pacote de prometida diversão. Estava vestido de
forma mais conservadora do que era costume, o couro e as correntes próprias de
um motard tinham dado lugar à uma camisa e umas calças de bom gosto. No
entanto, a sua atitude "devia preocupar-me com o que pensa, por quê?",
mantinha-se. A ausência das botas de motard3 faziam com que fosse ligeiramente
mais alto do que eu — mesmo com os sapatos de salto que tinha calçado — e, o ar
atemporal de um vampiro morto-vivo pairava sobre ele como uma promessa a ser
cumprida. Movia-se com uma confiança felina, tendo músculos suficientes para
desejarmos passar as pontas dos dedos sobre eles, mas não tantos que ficassem no
caminho.
— A sua pronúncia é uma droga. Vai embora até a aprender como deve ser.
Ele olhou de relance para Ivy, como que pedindo autorização, depois
lambeu os lábios, num gesto brincalhão, quando ela franziu a sobrancelha em
resposta. Eu fiquei de semblante carregado, pensando que não precisava da ajuda
dela para afastá-lo. Vendo-o, Ivy bufou exasperada e puxou Glenn para o bar,
levando Jenks a segui-los com a promessa de ponche de mel. O detetive do DFI
olhou de relance por cima do ombro, enquanto se afastava, sabendo que algo tinha
acontecido entre nós três, mas não entendendo o quê.
— Por fim, sós — Kist colocou-se ao meu lado, ombro com ombro e olhou
para o piso aberto. Podia sentir o cheiro de couro, embora ele não tivesse vestido
qualquer peça desse material. Pelo menos, que eu visse.
O ombro dele estava muito perto do meu, mas eu não ia me afastar e dar-
lhe a entender que isso estava me incomodando. Olhei-o de relance, enquanto ele
respirava com uma lentidão profunda; os olhos dele estavam analisando os
clientes, ao mesmo tempo em que inalava o meu cheiro para avaliar a dimensão
do meu desconforto. Numa das orelhas brilhavam dois brincos de diamante e eu
113
Os dedos moviam-se sem parar, atraindo para ele o meu olhar. Eu sabia que
ele estava emitindo feromônios vampíricos para me acalmar e relaxar — só para te
comer melhor, minha querida —, mas quanto mais bonitos são, mais defensiva me
torno. Meu rosto perdeu toda a expressão quando percebi que tinha sincronizado a
minha respiração com a dele.
— Para com isso — disse, enquanto me virava para olhar para ele, enojada.
— Tem uma série de mulheres te observando do bar. Vai chatear a elas.
— Para de se mexer — disse ele, apoiando uma mão no grosso pilar, ao lado
da minha cabeça e prendendo-me, embora tivesse deixado algum espaço entre
nós. — Quero dizer-te uma coisa e não quero que mais ninguém nos ouça.
114
— Alguém quer falar contigo — disse eu, olhando além dele, para o host,
que se movia nervoso.
— O que foi? — perguntou Kist, num tom neutro. Eu nunca ouvira a sua
voz com outra coisa que não petulância picante e o poder nela me fez arrepiar e, o
fato de não estar à espera tornava-a ainda mais poderosa.
— Eu disse a você que lhes dissesse que tinha acabado o acônito4 — disse
Kist. — Quando entraram, já perturbavam.
— O S a m .. . — d i s s e K i s t p o r e n tr e o s d e n te s c e r r a d o s . A e m o ç ã o
atravessou-o, os primeiros sintomas de pensamentos coerentes que não envolviam
sexo e sangue, surpreenderam-me. Com os lábios cheios apartados, percorreu a
sala com o olhar. — Muito bem. Reúna todos como se fosse uma festa e tirem-na
de lá, antes que ela os deixe loucos. Pare de servir acônito. Sobremesas de cortesia
para todos os que as quiserem.
humano.
116
Com os pêlos louros refletindo na luz, ele olhou de relance para cima, como
se pudesse ver através do teto, para a confusão do andar superior. A música
tocava alta, de novo, e podia-se ouvir a voz de Jess Beck... "Loser". De alguma
forma parecia adequado, quando todos começaram a cantar a letra em conjunto,
com as vozes embaraçadas. Os patronos mais ricos do piso inferior não pareceram
ficar preocupados.
— Na cozinha, senhor.
U m d o s o l h o s d e l e tr e m e u . K i s t o l h o u p a r a o e m p r e g a d o c o m o s e
p e r gu n t a s s e " De qu e é q ue e s t á à e s pe r a ?" e o ho m e m d e s ap a r e c eu
apressadamente. Com a garrafa de água na mão, Ivy apareceu por trás de Kist,
afastando-o mais de mim.
— E você achou que eu era idiota por ter feito o major em segurança, em vez
de gestão — disse ela. — Parece quase responsável, Kisten. Tem cuidado ou vai
dar cabo da tua reputação.
— As regalias são ótimas, Ivy, querida — disse ele, colocando uma mão nas
costas dela com uma familiaridade que ela tolerou durante um instante, antes de
lhe bater. — Se precisar de um emprego, vem falar comigo.
Ele riu, baixando a cabeça por um momento, antes de voltar a cruzar o seu
olhar maroto com o meu. Um grupo de empregados de ambos os sexos dirigia-se
para o piso de cima, batendo palmas e cantando uma música idiota qualquer.
Parecia irritante e inócuo, dando-lhes o aspecto de uma missão de salvamento — o
que era na verdade. Ergui uma sobrancelha. Kist era bom naquilo.
Afastei dele o olhar e descobri Ivy, que me fitava com uma expressão
curiosamente indescritível.
— Não — respondi, surpresa por descobrir que não tinha. — Acho que é
pelo fato de ele ser capaz de fazer outra coisa além de namorar.
— Kist é capaz de fazer muitas coisas. Ele diverte-se sendo dominado, mas
quando se trata de trabalho, é capaz de acabar contigo só com um olhar. O Piscary
não teria escolhido um idiota para delfim, por muito bom que fosse de sangrar —
ela apertou os lábios até estes ficarem brancos. — A mesa está pronta.
Segui o olhar dela para uma mesa vazia contra a parede mais distante das
janelas. Glenn e Jenks tinham-se juntado a nós, mal Kist partiu e, em grupo,
avançamos através das mesas, instalando-nos num banco em semicírculo, com as
costas voltadas para a parede — Inderlander, humano, Inderlander — e, esperamos
que o garçom viesse nos atender.
I v y n ã o d i s s e m a i s n a d a s o b r e K i s t, a l g o p e l o q u e f i q u e i g r a t a . E r a
embaraçosa a velocidade com que os feromônios vampíricos tinham se apoderado
de mim, transformando um "cai fora" num "chega mais". Graças à quantidade
excessiva de saliva de vampiro que o demônio tinha bombeado para a minha
c o r r e n te s a n g u ín e a e n q u a n to te n t a v a m e m a t a r , a m i n h a r e s i s tê n c i a a o
s feromônios vampíricos era quase nula.
Jenks riu.
— Fo i o i n f e r n o n a t e r r a . D u a s h o r a s d e i m p l i câ n ci a s e a g u l h a d a s
sucessivas.
Senti o rosto arder. Saber que Jenks tinha presenciado tudo tornava as
coisas piores.
— Nada?
Abanei a cabeça.
— Tudo o que fiquei sabendo é que Dan teve uma entrevista depois da aula
de sexta-feira. Estou pensando que essas eram as notícias que ia dar a Sara Jane.
— Como sabe?
— Durante o intervalo fiz uma visita à secretaria. Acha que o único motivo
para ter ido contigo era servir de adereço no seu ombro?
— Ivy, linda! — disse uma voz forte e todos ergueram os olhos. Um homem
baixo e robusto, com um avental de cozinheiro, avançava para nós aos
ziguezagues através do restaurante, contornando graciosamente as mesas. —
Minha linda Ivy! — chamou por cima do ruído. — Já de volta. E com amigos!
120
Olhei de relance para Ivy, surpresa por ver um toque avermelhado nas suas
faces pálidas. Ivy, linda?
A voz dele era profunda para uma estrutura tão pequena e parecia carregar
a força da areia e do vento. Os tênues resquícios do seu sotaque fizeram eu me
perguntar a quanto tempo falaria inglês.
Ivy tossiu para limpar a garganta, afastando minha atenção dos seus olhos
rápidos e negros. De alguma forma, a imagem dos seus dentes não instigara em
mim o normal alarme de fazer tremer os joelhos.
— Devia ter me dito que vinha — disse Piscary. — Teria reservado uma
— Hum, Ivy? —
perguntei.
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123
Minha mão ergueu-se para ela, sem que o desejasse. A esposa de Jenks
tinha-a costurado e os pequenos pontos eram quase invisíveis. Não me agradava
que ele tivesse reparado.
— Parece de um vampiro.
De boca aberta, não conseguia pensar em nada para dizer. Ele levantou-se
sem qualquer aviso.
Ivy baixou os olhos. Com a sua graça casual, Piscary os pratos de porcelana
de uma bandeja que ia passando.
Jenks soltou uma risada assumindo a sua pose de Peter Pan, de mãos nos
quadris, em cima do pimenteiro. Ivy encolheu os ombros, sentindo-se obviamente
culpada.
— Estou vendo.
Mas o que mais me incomodava, era o fato de ser por causa de sua
vergonha que deixara Piscary acreditar no que queria: vergonha por ter virado as
costas à sua herança. Ela não o desejava. Partilhando a casa com alguém, podia
mentir ao mundo, fingir que tinha uma vida de vampiro normal, com uma fonte de
sangue residente e, mesmo assim, continuar fiel ao seu segredo culpado. Disse a
mim mesma que não me importava que ela me protegesse de outros vampiros.
125
Mas, por vezes... Por vezes, irritava-me que todos partissem do princípio que eu
era o brinquedo de Ivy...
Não ia beber porque o enxofre que libertava tendia a gerar o caos dentro de
mim. Teria dito a Ivy, mas ela não tinha nada a ver com isso. Não tinha a ver com
o fato de eu ser bruxa, era uma particularidade pessoal — algo que me dava
enxaquecas tão grandes e me tornava de tal forma sensível à luz que, tinha de me
esconder no quarto, com um pano tapando os olhos.
— Como conseguiu olhá-lo nos olhos? — sussurrou, fazendo com que fosse
difícil ouvi-lo sobre o ruído ambiente. — Não teve medo que ele a enfeitiçasse?
Com o rosto ficando pálido por detrás da barba curta, Glenn afastou-se.
Deixando-o a pensar naquilo durante algum tempo, mexi a cabeça para chamar
atenção de Jenks.
126
— Jenks — disse baixinho. — Por que não dá uma olhada nos fundos? Dá
uma olhadela na sala dos empregados, vê o que se passa?
— O Piscary sabe que estamos aqui por uma razão — disse ela. — Ele dirá o
que precisarmos saber. A única coisa que Jenks vai conseguir é ser apanhado.
—Vai se ferrar, Tamwood — rosnou. — Por que eu vim, se não foi para
fazer uma vistoria? O dia em que não conseguir passar por um padeiro é o dia em
que... — calou-se, antes de acabar. — Hum... — continuou. — Volto já.
ansioso pairando no rosto; o seu desejo de ser reconhecido pelas suas aptidões
culinárias parecia estranho em alguém com tanto poder escondido.
— Oh, meu Deus! — exclamou Glenn, enojado, a sua voz límpida sobre os
sussurros. — Tem tomates!
Ivy deu-lhe uma cotovelada no estômago com força suficiente para deixa-lo
sem fôlego. A sala ficou em completo silêncio, com exceção do ruído que chegava
do andar de cima e eu fitei Glenn.
Acenei, depois me perguntei como é que ele sabia. Ivy olhou para a
cozinha.
— Onde é que está Jenks? Ele devia estar aqui para ver isso.
— Me u p e s s oa l e s t á br i n c an d o c o m e le — disse Piscary,
despreocupadamente. — Imagino que saia de lá em breve.
O homem suspirou.
— E começa pela ponta, não pela beira — avisei. Glenn lambeu os lábios.
— Mas tem tomate — disse ele, fazendo com que eu cerrasse os lábios. Era
precisamente aquilo que eu esperara evitar. Até parecia que estavam a pedindo
que comesse larvas vivas.
— Não seja idiota — disse Ivy, em tom frio. — Se acha mesmo que o vírus
T 4 A n j o s a l t o u q u a r e n ta g e r a ç õ e s d e to m a te s e a p a r e c e u n u m a e s p é c i e
completamente diferente só para te infectar, eu peço ao Piscary que te morda antes
de sair. Assim não morre, só se transforma em vampiro.
— Hum... — gemeu, com a boca ainda quase cheia. —É... Hum... Bom... —
parecia chocado. — É mesmo muito bom.
— Será sempre bem-vindo, agente do DFI — disse ele e Glenn ficou gelado,
claramente preocupado com o fato de ter sido identificado.
— Era isso que queríamos descobrir, Sr. Piscary. Trata-se de Dan Smather.
Minha atenção saltou para Glenn. Ele estava tirando o queijo da pizza.
Chocada, observei-o a empilhar, hesitante, o queijo num monte.
— Pode dizer-nos quando foi a última vez que o viu, Sr. Piscary? —
perguntou a ele, claramente mais interessado em desnudar a pizza do que no
nosso interrogatório.
— Demitiu-se? — perguntei.
— Dan era um dos meus melhores entregadores — disse ele. — Vou sentir a
falta dele, mas desejo-lhe boa sorte. Ele disse que era por causa daquilo que estava
131
— Se eu soubesse que ele era um bom segurança, talvez tivesse feito uma
oferta melhor, embora fosse difícil oferecer mais do que o Sr. Kalamack. Afinal de
contas, sou apenas o dono de um restaurante.
Piscary acenou, enquanto Ivy ficava ainda mais rígida, a pizza intacta com
uma única dentada.
Eu sabia o que ele queria dizer, mas aparentemente Sara Jane não sabia.
Senti o coração bater mais depressa e comecei a suar. Eu sabia. Trent era o caçador
de bruxas. Atraíra Dan com a promessa de um emprego e, provavelmente, acabara
com ele, quando Dan tentou recuar, ao perceber de que lado da lei Trent
trabalhava. Era ele. Para a Viragem com ele, eu sabia!
— Obrigada, Sr. Piscary — disse eu, desejando partir para que pudesse
começar a fazer alguns feitiços nessa noite.
Ivy pousou o copo vazio sobre a mesa. Meu olhar cruzou-se com o dela. Em
triunfo, minha emoção prazerosa desvanecendo-se, enquanto ela observava a si
mesma enchendo de novo o copo. Ela nunca, nunca, bebia mais de um copo...
E st a va p re o cu p a d a e co m ra zã o , c o m a d i mi n u i ç ã o d a s i n i b i çõ e s. Me u s
pensamentos regressaram à forma como ela se descontrolara na cozinha, depois de
eu lhe ter dito que ia outra vez atrás de Trent.
— Rachel — disse Ivy, o seu olhar fixo no vinho. — Sei no que está
pensando. Deixa o DFI tratar disso. Ou passa o caso à SI.
A mesma onda de medo que eu vira nela, no dia anterior, voltou a invadi-
la. Estava se passando alguma coisa que eu desconhecia e não era nada bom. Ivy e
eu também íamos ter de conversar.
A sombra de Piscary caiu sobre mim e ergui os olhos. Senti o rosto gelado.
Ele estava perto e o cheiro a sangue sobrepôs-se ao odor ácido da polpa de tomate.
Os olhos negros fixaram-se nos meus; algo mudou, tão súbito e inesperado como o
gelo se partindo.
Capitulo 9
— Onde está o meu dinheiro, Bob? — sussurrei, enquanto colocava a
malcheirosa comida seca na banheira de Ivy.
136
— Não é por isso que estou à espera dele — disse, embora fosse.
fora feito para evitar que eu me deparasse com assassinos nas lojas e desse um
novo sentido à frase "pessoal da limpeza ao corredor dos frescos". Mas, agora, Ivy
não queria cozinhar e negava-se a renegociar. Paciência. Pelo rumo que as coisas
estavam tomando, eu não teria dinheiro sequer para uma lata de molho, antes do
fim da semana. E, o aluguel era pago no domingo.
Os meus olhos saltaram para o Sr. Peixe que nadava no seu copo de brandy,
pousado no parapeito da janela.
Furiosa por ela ter razão, enfiei duas waffles na tostadeira e apertei-as. Elas
inflamaram e eu voltei a apertá-las.
— A culpa não foi minha — disse eu. — O idiota do peixe afinal não tinha
desaparecido e ninguém se deu ao trabalho de me dizer. Mas eu terei o dinheiro
da renda na segunda-feira. Prometo.
— É o Glenn — disse eu, saindo da cozinha antes que ela pudesse dizer
mais alguma coisa. Com as botas a martelar o chão, percorri o corredor e entrei no
santuário. — Pode entrar, Glenn! — gritei, minha voz ecoando no teto distante. A
porta permaneceu fechada, por isso empurrei-a, parando, surpreendida. — Nick!
138
— Ei... Olá! — disse ele, sua estrutura alta e magra parecia estranha no
alpendre grande. O rosto comprido tinha estampado uma expressão interrogativa e
a s s o b r a n c e l h a s f i n a s e s t a va m e r g u i d a s .Af a s t a n d o a f r a n j a p re t a e
invejavelmente lisa dos olhos, perguntou: — Quem é Glenn?
— O filho de Edden.
— Oh!
— Hum... — ele desceu o olhar pelo meu corpo, voltando depois a subi-lo.
— Muita coisa — com os olhos quase negros na luz tênue, puxou-me para mais
perto dele, fazendo com que o cheiro de livros antigos e computadores novos me
enchesse os sentidos. Inclinei a cabeça para encontrar os seus lábios, sentindo um
calor que se espalhava a partir do centro do meu corpo. Oh, sim. Era assim que eu
gostava de começar o meu dia.
que um homem inteligente podia ser tanto sexy como musculoso. Era uma ideia
que ganhara força quando, depois de me ter perguntado galantemente se podia
me beijar, me deixara sem fôlego e agradavelmente chocada, ao dizer que sim.
Mas dizer que Nick não era um monte de músculo não equivalia a dizer
que ele era fraco. A sua constituição magra era surpreendentemente forte, como
fiquei sabendo da vez em que lutamos por uma última colherada de Chunky
Monkey5 e partimos o lustre de Ivy. E, era atlético de uma forma esguia, as pernas
compridas capazes de me acompanhar sempre que eu o convencia a levar-me ao
Jardim Zoológico, durante as primeiras horas, quando estava aberto apenas para
corredores — os montes eram verdadeiros assassinos das pernas.
— É uma bruxa muito, muito má — sussurrou ele. — Sabe disso, não sabe?
Vim para trazer os bilhetes e me deixa assim perturbado.
A franja dele era um suave suspiro contra a ponta dos meus dedos.
Sorvete.
5
140
— Sim — tinha jogado fora o perfume de canela, nessa manhã. Ivy não
dissera uma palavra quando descobriu o frasco de trinta dólares no caixote do
lixo, fazendo com que cheirasse como se fosse Natal. Tinha falhado e não tinha
coragem para voltar a usá-lo.
— Rachel...
O sentimento de culpa por não ter dito que ela tinha me prendido contra a
parede da cozinha obrigou-me a baixar os olhos. Ele suspirou, movendo o corpo
estreito.
do Nick, ainda por explorar, deliciosamente ousada. E, desde que não soubesse
com toda a certeza...
— Não, obrigado — ele avançou para a porta. Ivy e Nick não se entendiam.
Eu não fazia ideia do porquê. — Tenho de voltar para o trabalho. Estou no
intervalo de almoço.
— Está bem.
Ele virou-se para sair e eu o segui quando tive uma ideia súbita.
— Ei, ainda tens o meu caldeirão para feitiços grande, não tens? —tínhamos
usado para fazer chilli, três semanas antes, quando assistimos a uma maratona de
Dirty Harry na casa dele e eu nunca o trouxera de volta.
— Precisa dele?
— Edden obrigou-me a assistir a uma aula de linhas Ley — disse eu, não
querendo dizer que estava trabalhando nos assassinatos do caçador de bruxas.
Não ainda. Não estava disposta a arruinar aquele beijo com uma discussão. —
142
Levei uma mão ao quadril, a travessa das bebidas inclinando-se até ficar
perigosamente perto de entornar gelo e refrigerante. Era óbvio que o pai tinha
contado mais do que ele deixara transparecer.
— Está atrasado.
— Parei para comprar comida — disse ele, rígido. — Importa-se que entre?
casa e acabei rezando ao deus de porcelana durante duas horas sem parar —
acrescentou e Ivy e eu trocamos um olhar divertido.
— Obrigada pelo café da manhã — disse eu, comendo uma batata frita,
antes de desembrulhar o meu hambúrguer com um farfalhar de papel.
Sem hesitar, ela empurrou o frasco sobre a mesa. Glenn ficou gelado.
— Não.
Ela acenou, limpando uma gota de ketchup do canto da boca. Glenn pareceu
interessado, tendo se inclinado mais para ler as letras pequenas por cima da minha
unha pintada recentemente.
Relaxando os ombros, Glenn olhou para o relógio por cima da pia, depois
continuou a comer. Estava raspando o que restava do ketchup com uma batata frita
quando a voz exigente de Ivy se fez ouvir da rua.
— Força.
— Fazer feitiços? É o que eu faço. Não vou magoar ninguém. Pelo menos,
não com um feitiço.
— Não — disse. — Como é que pode viver com alguém assim? Prestes a
explodir sem aviso?
— Oh! — levei a mão à minha bebida. — Você a encontrou num mau dia,
mais nada. Ela não gosta do seu pai e descontou em você.
Além disso, estava pedindo, idiota. Bebi o resto do refrigerante e joguei fora o
copo.
— Ela quer qualquer coisa — disse ele. — Sempre que ela olha para você,
vejo culpa. Quer o queira fazer ou não, vai magoar-te e ela sabe disso.
Glenn estava perto, as solas duras dos seus sapatos batendo no chão logo
atrás de mim.
—Vai dizer que ontem foi a primeira vez que ela te atacou?
Apertei os lábios e o bater das minhas botas subiu-me pela espinha. Tinha
havido muitos "quase" até eu ter percebido o que a provocava e ter deixado de
fazer. Glenn não disse nada, sendo óbvio que tinha ouvido a resposta no meu
silêncio.
ele, bastando dizer o teu nome. Isso não pode ser normal. E, ele disse que era o
animal de estimação dela. É isso que é? É o que parece.
— Pode crer que não tem nada a ver com isso — murmurei, no espaço
fechado do carro. — Você a ouviu noite passada. Eu não sou o espectro dela. Ela
não estava mentindo quando disse aquilo.
— Também ouvi o Piscary dizer que se ela não te controlasse, ele o faria por
ela.
— Eu sou amiga dela — assegurei. — Tudo o que ela quer é uma amiga que
não esteja atrás do sangue dela. Já pensou nisso?
Eu não disse nada, batendo com os dedos no apoio do braço. Eu não era o
bichinho de estimação de Ivy. E, nem mesmo Piscary a podia obrigar a
transformar-me num.
150
Capitulo 10
O sol de fim de tarde daquele dia, no final de setembro, era quente através
do casaco de couro, enquanto eu deixava o braço apoiado na janela do carro. O
pequeno frasco de sal na pulseira de amuletos, agitava-se ao vento e batia contra a
cruz de madeira. Estendendo um braço, ajustei o espelho retrovisor para poder
observar o tráfego que se arrastava atrás de nós a uma distância segura. Era bom
ter um veículo ao meu dispor. Chegaríamos ao DFI em quinze minutos e não nos
quarenta que, normalmente, precisaria para chegar lá de ônibus, com o trânsito e
tudo o mais.
— Atalho.
S o r r i u . O s d e n t e s e s p a n to s a m e n te b r a n c o s . E r a o p r i m e i r o s o r r i s
o
verdadeiro que via e deixou-me espantada.
Virei a cabeça para seguir um letreiro familiar, num dos edifícios pelos
quais passamos.
Glenn olhou para trás e fez uma inversão de marcha ilegal. Agarrei-me ao
a l t o d a ja n e la qu a nd o e l e f e z o u t r a , pa r a nd o m e s m o e m f r e n t e à lo j a e
estacionando na calçada. Abri a porta e agarrei minha mala.
— Posso ajudá-la?
E rg u i o s o l h o s d e u m ra m o d e sa n g u i n á r i a , d e p a ra n d o - me co m u m
vendedor de aspecto limpo e entusiasmado, debruçado sobre o balcão. Pelo cheiro,
era um bruxo, embora fosse difícil perceber com todos aqueles odores.
Dei um sorriso fraco, enquanto o amuleto brilhava num pálido tom verde.
Feto= Samambaia. Ela não produz semente, então essa semente que ela procura é um pequeno 6
— As varinhas estão aqui — disse ele, seu tom uma clara indicação de que
desaprovava a minha escolha de companhia. — As guardamos numa caixa de
desidratação para mantermos frescas.
— Qualquer uma das menores serve — disse ele, o olhar saltando entre
Glenn e eu.
— Quanto custam?
153
— Novecentos e setenta e cinco — disse ele. — Mas para você, vendo por
novecentos.
Dólares?
— Cinco e cinquenta.
Isso eu tinha... Achava eu. De cabeça baixa, vasculhei na minha mala. Sabia
que as varinhas eram caras, mas não tão caras. Com o dinheiro na mão, ergui os
olhos, vendo Glenn fitando uma prateleira repleta de ratazanas empalhadas.
Enquanto o vendedor registrava minha compra, Glenn inclinou-se para mim, sem
tirar os olhos das ratazanas e sussurrou:
Peguei meu recibo e enfiei tudo na mala. Tentando recuperar nem que fosse
uma centelha de dignidade, avancei para a porta com Glenn atrás de mim. As
campainhas repicaram quando chegamos ao exterior. Mais uma vez ao sol,
inspirei uma golfada de ar purificante. Não ia gastar novecentos dólares para,
talvez, recuperar os quinhentos que me eram devidos.
Saiu pouco depois com um pequeno saco branco. Observei-o passar pela
frente do carro, curiosa. Coordenando os seus movimentos com a passagem do
trânsito, abriu a porta e deslizou para trás do volante.
Que diabos é que ele ia fazer com aquilo? Nem eu sabia para que serviam.
Passei o caminho até ao DFI mortinha de vontade de perguntar, mas consegui
manter a boca fechada, mesmo enquanto deslizávamos para a fria sombra do
parque de estacionamento subterrâneo.
— Está numa reunião. Quer que lhe diga que está aqui?
155
— Quando ele sair. Não há pressa. A menina Morgan vai ficar por aqui
durante algumas horas.
Horas? — pensei, não gostando que ele não me tivesse deixado falar com
Rose; eu queria descobrir qual era o modo de atuar deles. O DFI não podia ter
assim tanta informação. A SI tinha jurisdição sobre os crimes.
— Por que não põe a mesa ali? — perguntei, fitando a mesa repleta de
papéis que se encontrava no local onde, pela lógica, devia estar a sua mesa.
— Oh!
— Volto já.
Placa 8
Folhinhas para lembretes.
9
157
O som das rodas precedeu a chegada de Glenn que empurrava uma cadeira
para o gabinete. Dirigindo-me um olhar neutro, colocou-a ao lado da sua. Pousei a
mala na mesa estéril e sentei-me ao lado dele, inclinando-me para frente para ver.
— Muito bem — disse ele, puxando um bloco de notas com uma lista de
nomes e números de identificação.
Olhei de relance para o primeiro e de novo para a tela. Com uma lentidão
dolorosa, franziu a sobrancelha e começou a escrevê-los. Letra. Pausa. Letra, letra.
— Oh, dá-me isso — disse eu, puxando o teclado para mais perto.
G l e n n e m i ti u u m p e q u e n o r u íd o n o f u n d o d a g a r g a n t a . In tr o d u z i u
lentamente o nome seguinte, comparando-o com a lista antes de avançar para o
próximo. Eu esperava impaciente. Meus olhos saltaram para o saco amarrotado
sobre o armário de arquivos. Senti-me invadida por um desejo imbecil de tirar a
ratazana do saco. Aquela devia ser a razão porque ele dissera que iríamos ficar ali
durante horas. Teria sido mais rápido recortar as letras e colá-las num bilhete.
158
— Não é a mesma impressora — disse eu, vendo que ele as tinha trocado.
— Não sabia que querias ver tudo — disse ele, a voz preocupada enquanto
escolhia as letras no teclado. — Vou mandar o resto para a impressora da cave10.
— lentamente, escreveu a última fileira de números e carregou no ENTER. — Não
quero que me chateiem por ter entupido a impressora desse piso — acrescentou.
Lutei para esconder um sorriso. Não queria que o chateassem? Quanto mais
informação poderia haver?
Acenei, enquanto ele saía. Fazendo girar a cadeira de um lado para o outro,
esperei, ouvindo as conversas de fundo filtradas através da parede. Um sorriso
t o m o u c o n t a d o m e u r o s t o . N ã o t i n h a p e r c e b i d o a f a l t a q u e se n t i a d a
camaradagem dos meus colegas da SI. Sabia que, se saísse do gabinete de Glenn,
as conversas cessariam e os olhares tornariam-se gelados, mas se ficasse ali e as
escutasse, poderia fingir que, a qualquer momento, alguém poderia passar por ali
e dizer "olá", perguntar a minha opinião sobre um caso ou contar uma piada suja
para me ver rir.
— Minha senhora.
— Sou Rachel — disse. — Estou ajudando o detetive Glenn. Ele foi buscar
umas impressões.
— Rachel Morgan? — disse ele. — Pensei que fosse uma bruxa velha.
— Está bem.
— Não — garanti, quando ele tentou desligar o telefone. — Não faço parte
de nenhum serviço de acompanhantes. Encantamentos Vampíricos é uma empresa
de agentes independentes. Neste momento estou trabalhando com o DFI para
identificar a pessoa que atacou a sua esposa.
— Peço desculpas por ligar, Sr. Graylin — disse, num tom de voz o mais
profissional possível. — Só tenho uma pergunta. Por acaso a sua esposa falou com
o Sr. Trent Kalamack algum tempo antes da sua morte?
parecia com o Sr. Kalamack. Depois disso jantamos em Carew Tower e rimos
sobre isso. Ele não está em perigo, não?
— Sim!
— Nada.
— Não disse que podia telefonar para estas pessoas — o rosto dele estava
zangado e a sua postura tornou-se rígida. — Este homem está tentando deixar
tudo isso para trás. Não precisa que lhe traga tudo de volta.
— O Sr. e a Sra. Graylin jantaram com Trent um mês antes de ela ser
atacada.
Ele olhou para o telefone ao lado da minha mão, depois para o espaço
aberto. Com uma calma forçada, fechou a porta quase por completo.
— Fala baixo.
Agradada comigo mesma, puxei a pilha de papéis para mais perto. Glenn
regressou ao computador, escrevendo com uma lentidão irritante. O meu humor
depressa se tornou mais sério, enquanto eu analisava o relatório do médico-
legista, saltando a parte das imagens. Aparentemente o homem tinha sido comido
vivo, a começar pelas extremidades. Sabiam que se encontrava vivo, devido ao
padrão rasgado das feridas. E, estavam bastante confiantes de que tinha sido
comido devido à falta de partes do corpo.
A mulher que me atendeu era muito simpática, mas não sabia de nada,
dizendo-me apenas que a esposa do Sr. Seary se encontrava ausente numa "clínica
de recuperação" tentando reaprender a dormir. Ainda assim, verificou os seus
arquivos, dizendo-me que tinham sido contratados para instalar um cofre na
propriedade Kalamack.
Ele roncou, olhando para Glenn. Este respondeu com um olhar cansado,
acrescentando um encolher de ombros.
— Encantada — disse eu, não oferecendo a mão, iria ela voltar coberta de
óleo das batatas fritas.
Ele recuou, mas não foi embora indo antes ver o que Glenn estava fazendo.
Os céus me protegessem dos policiais no intervalo. Os dois conversaram sobre as
suspeitas de Glenn em relação à Dra. Anders, revelando-se calmante o ondular das
suas vozes.
Fora nesse momento que a media tinham compreendido que as três mortes
estavam relacionadas, apesar da variação dos métodos de morte, eles atribuíram
ao louco sádico o nome de "caçador de bruxas".
164
— Sim?
Engoli em seco.
— Obrigada.
Levei a mão ao quinto maço com uma sensação sinistra. Era Trent
— eu sabia que era Trent — mas o horror do que ele tinha feito estava
matando toda e qualquer alegria que eu poderia retirar de tal constatação.
Os m u r m ú r i o s d e fu n d o d o s h o m e n s e x c i ta d o s a u m e n ta r a m m i n h
a sensação de torpor. Com cuidado, escrevi o T maiúsculo, tendo o cuidado
de fazer as linhas claras e direitas. Colei-o ao lado de uma cópia da fotografia
do seu cartão de identificação do trabalho. Ela era jovem, de cabelo loiro e
liso
até os ombros e, um rosto belo e oval. Acabara de sair da faculdade. A
recordação da fotografia que vira, da primeira mulher deitada na maca,
veio-me de novo à mente. Senti o sangue fugir-me. Com a cabeça rodando,
levantei-me.
Não tinha tempo para agradecer. Com os saltos baixos batendo no chão, saí
bruscamente da sala. Não olhei nem para a esquerda, nem para a direita,
movendo-me ainda mais depressa quando vi a porta ao fundo da sala. Bati contra
ela, tendo a tempo ao sanitário.
Ergui os olhos. Rose afastou a mão e recuou. Depois da porta aberta, estava
uma fila de lavatórios e espelhos.
Voltei a acenar.
— Obrigada, Rose.
Ela sorriu, as rugas do seu rosto tornando sua expressão ainda mais
reconfortante.
Capitulo 11
Foi preciso mais coragem do que gostaria de admitir para sair do banheiro.
Perguntei-me se todos saberiam que eu tinha perdido a compostura. Rose
mostrara-se inesperadamente gentil e compreensiva, mas eu tinha certeza de que
os agentes do DFI usariam aquilo contra mim. A bruxinha linda é meiga demais para
brincar com os meninos crescidos? Glenn jamais esqueceria aquilo.
— Ainda bem. Liguei para sexto por você — os olhos de Dunlop pousaram-
se nos meus. Eram castanhos e eu parecia capaz de olhar diretamente para sua
alma, de tão claros. — Espero que não se importe. Estava morrendo de
curiosidade — passou uma mão pelo bigode, limpando dele a gordura, enquanto
o seu olhar percorria os seis relatórios colados por cima dos post-its de Glenn.
jogado fora as entranhas, mas pela falta de comentário, parecia que isso tinha
servido — de uma forma retorcida — para quebrar o gelo. Talvez o fato de ter
desabado tivesse provado para eles que eu era tão humana como eles... Por assim
dizer.
Glenn estava sentado à mesa com os braços cruzados, não dizendo nada,
enquanto observava as diferentes discussões. Dirigiu-me um olhar seco, de
sobrancelhas erguidas. Pelo que conseguia ouvir, a maior parte da sala queria
prender Trent, mas alguns se sentiam muito amedrontados pelo seu estatuto
político e queriam mais. Havia menos tensão na sala do que era de se esperar,
levando em conta que estavam todos gritando uns com os outros. Aparentemente,
os humanos gostavam de fazer as coisas em reuniões ruidosas.
— Ele está rindo de nós — disse uma mulher morena, endurecida pela vida
nas ruas, enquanto discutia com um agente magro, de aspecto nervoso.
— Srta. Morgan — disse o homem baixo; havia nele uma sugestão de raiva
quando apertou a mão que eu lhe estendi e ergueu as sobrancelhas perante as
minhas calças de couro. — Rose disse que estava aqui. Não estou surpreendido
por encontra-la no meio de uma discussão.
O l h o u pa r a G l e n n e o a l t o a ge n t e d o D F I en c o l he u o s om b r o s , s e m
aparentar qualquer arrependimento, quando se levantou.
— Não, não estavam — disse Edden e os meus olhos saltaram para os dele,
perante a raiva na sua voz. — Estavam falando mal do vereador Kalamack. Ele
não é suspeito.
— Morgan, por que Trent Kalamack estaria matando as bruxas das linhas
Ley? Ele não tem qualquer motivo.
— Tem o mesmo motivo que atribui à Dra. Anders — disse eu. — Ver-se
livre da concorrência. Talvez tenha oferecido emprego e, quando eles recusaram,
os tenha matado? Adequaria-se ao caso do namorado desaparecido da Sara Jane.
— O que me leva a perguntar por que ele teria deixado sua secretária vir ao
DFI?
Estava quase gritando. Sabia que isso não me levaria a lugar algum com
Edden, mas aquele tipo de burocracia era parte da razão porque deixara a SI. E o
fato de me encontrar, mais uma vez, tentando "convencer o patrão" dava cabo de
mim. De cabeça baixa e mão no queixo, Glenn recuou, deixando-me só. Eu não
queria saber.
— Não é contra a lei falar com Trent Kalamack — disse Edden, os olhos
fixos nos meus. — Metade da cidade o conhece.
— Vai ignorar o fato de ele ter falado com todas essas pessoas? — protestei.
O rosto dele estava vermelho atrás dos óculos, que pareciam muito
pequenos para o seu rosto redondo.
— Aquilo que sabe não vale uma bolinha de cocô de ganso, Rachel. É o que
posso provar. E não posso provar nada com isso — abanou a mão junto ao
relatório mais próximo, fazendo-o esvoaçar.
Frustrada, erguia-me mesmo à frente dele, capaz de fitá-lo, olhos nos olhos.
— Não sabia que tinha se tornado agente do DFI para melhorar a sua
reputação.
Edden avançou.
— Edden! — protestei.
Inspirei, preparando-me para dizer que não estaria até que eu o dissesse,
mas ele já tinha saído. Furiosa, saí atrás dele.
— Ed d e n — c h a me i , p e r s e g u i n d o su a so m b r a q u e d e s a p a r e c i a
rapidamente. Para um homem atarracado, movia-se depressa. Uma porta bateu.
— Edden!
— Agora saia daqui — quase rosnou Edden. — Tem aula amanhã e eu vou
descontar o valor da propina dos seus honorários, se não for.
— Sabe bem que ele matou aquelas pessoas — disse, com a voz tensa.
Afastando a adrenalina que não gastara, afastei-me. Passei pelos silenciosos
agentes do DFI sentados às suas mesas, a caminho da porta da frente.
Capitulo 12
Caí com força quando Ivy arrancou as minhas pernas de debaixo de mim.
Rolei, afastando-me, já com dores no local onde o meu quadril batera no chão.
Meu coração batia ao ritmo das dores que sentia na batata das pernas. Afastei dos
olhos uma madeixa de cabelo que tinha fugido da fita de ginástica que o segurava.
Com uma mão contra a parede do santuário, usei-a para me equilibrar, enquanto
me levantava. Com os pulmões pesados, passei a parte de trás da mão pela testa,
para limpar o suor que escorria.
Quase? Abanei a cabeça para tornar a minha visão mais clara. Eu nem a vira
mover-se, ela era tão rápida. Claro que podia não tê-la visto porque, na hora,
estava caindo de bunda.
Ivy deu três passos rápidos na minha direção. De olhos abertos, torci o
corpo num círculo apertado para a esquerda, lançando o meu pé para o centro do
corpo dela. Gemendo, ela agarrou o estômago e cambaleou para trás.
— Ai — queixou-se, recuando.
Da posição que assumi, olhei de relance para Ivy, que se erguia numa faixa
verde e dourada do sol da tarde que jorrava através das janelas do santuário. O
body de corpo inteiro e as sapatilhas que usava quando estávamos lutando uma
com a outra, faziam com que ela parecesse ainda mais predatória do que o normal.
O cabelo liso e negro estava preso num rabo-de-cavalo, acentuando a sua
178
O treino era mais para mim do que para ela. Ivy insistia que aumentaria a
minha esperança de vida, caso me deparasse com um cara grande, feio e mau, sem
os meus feitiços ou uma rota de fuga. Saía sempre dos nossos combates
machucada e dirigia-me diretamente para o armário dos amuletos. Como isso
podia aumentar minha esperança de vida era algo que estava fora do meu alcance.
Ganhando prática na preparação de amuletos contra as dores, talvez?
Ivy tinha chegado cedo em casa depois de passar a tarde com Kist,
surpreendendo-me com sua oferta para treinarmos. Eu ainda estava fervendo por
causa da recusa de Edden em deixar-me interrogar Trent e precisava queimar
parte daquela raiva, por isso concordei. Como de costume, passados quinze
minutos estava cheia de dores e respirando com dificuldade, ao passo que ela nem
sequer transpirava.
Dobrei a perna para trás, para alongar o músculo e puxar a bainha das
calças de treino para o tornozelo.
— E o Trent é o assassino.
179
— Pode provar?
— Eu disse Que era isso que ia fazer... — golpe, bloqueio, bloqueio, golpe — E
ele ameaçou me prender por assédio. Disse que eu devia me concentrar na Dra.
Anders — recua dois metros. Arqueja. Transpira. Por que eu estava a fazendo
aquilo?
U m s o r r i s o , v e r d a d e i r o e i n c o m u m , e s p a l h o u - s e p e l o r o s to d e l a e
desapareceu.
— Edden? — limpei o suor que pingava no nariz. — Ele é capaz de ser uma
refeição para crianças um pouco mais graúdas, não?
Fiz um gesto indicando que ela devia vir até mim. Com os olhos brilhando
d e d i v e r ti m e n t o , o b e d e c e u , a t a c a n d o c o m u m a b a r r a g e m d e g o l p e s q u
e culminaram num ataque ao meu peito e que me fez cambalear.
Eu previra, mas o meu braço estava ficando dormente e lento por ter sido
fustigado por demasiadas vezes.
180
Aquela era a primeira vez que eu a via a suar e não ia parar agora. Ergui-
me, com as pernas tremendo e levantei dois dedos, depois um. Minha mão desceu
e ela atirou-se com uma rapidez sobrenatural.
Ela pressentiu o golpe e deixou-se cair para trás. Eu sabia que era muito
rápida para permitir que o golpe lhe acertasse, mas fez com que saísse de cima de
mim e era o que eu queria.
— Nada mau — admitiu. — Mas não continuou. O Sr. Grande Feio e Mau
não se vai afastar e esperar que retome o equilíbrio e você deve fazer o mesmo.
Dei a ela um olhar cansado pelo meio dos meus cabelos ruivos ondulados.
Tentar acompanhá-la já era difícil, quanto mais superá-la. Até então nunca tivera
de pensar em tentar vencer um vampiro, já que a SI não mandava bruxas para
pegá-los. E, com todos os seus defeitos, a SI cuidava dos seus, no trabalho e fora
dele. A menos que nos quisessem mortos.
— Em relação ao Trent? — disse, sem fôlego. — Falar com ele sem que
Edden e Glenn saibam.
Meus olhos abriram-se mais quando o rosto de Ivy se tornou selvagem. Ela
ia mostrar algo novo. Maravilha. Ela gritou e girou. Eu me mantive imóvel
tolamente, enquanto o pé dela me acertava no peito, lançando-me contra a parede
da igreja.
I v y g r i to u d e s u r p r e s a q u a n d o a te r r e i s o b r e s u a s c o s t a s . S o r r i n d o
selvagemente, envolvi sua cintura com as pernas. Agarrei numa mão cheia dos
seus cabelos e puxei a cabeça sua para trás, deslizando um braço ao redor da
garganta para estrangulá-la.
para o outro com uma graciosidade irritante e fluida — o primeiro sinal de que seu
lado vampiro começava levar a melhor.
Seu rosto tornou-se mais sério. Avisada, preparei-me para o embate quando
ela saltou. Bloqueei seus punhos, afastando-a com um pé dirigido aos seus joelhos.
— Para com isso, Ivy! — gritei quando ela saltou para fora do meu alcance.
— Eu disse que já acabei!
— Não, não acabou — a voz cinzenta desceu sobre mim como seda. —
Estou tentando salvar tua vida, bruxinha. Um vampiro grande e mau não vai
parar porque você pediu. Vai continuar avançando até conseguir aquilo que quer
ou até que o afaste. Vou salvar tua vida, de uma forma ou de outra. Vai agradecer-
me quando tudo estiver terminado.
Descobri Ivy à espera, afastada de mim nos habituais dois metros e meio,
rondando. Um calor sutil impregnara seus movimentos. De cabeça baixa, fitava-
me através do cabelo. Tinha os lábios entreabertos e eu quase conseguia ver a
respiração dela atravessá-los. Recuei. Meu medo cresceu quando o anel castanho
dos seus olhos se tornou completamente preto. Maldição.
Engolindo em seco, passei uma mão sobre mim mesma, tentando limpar o
suor dela de cima de mim. Sabia que não devia tê-la atacado. Tinha de tirar o
cheiro dela de cima de mim e depressa. Meus dedos tocaram a cicatriz que o
demônio me deixara no pescoço e fiquei sem fôlego. Estava latejando, devido aos
feromônios que ela estava lançando no ar. Dupla maldição.
E l a s e gu r o u - m e c on t r a a pa r e d e , s o b a s o m b ra da c ru z há mu i t o
desaparecida. O sangue do lábio dela parecia uma joia vermelha presa no canto da
boca.
Com o coração esmagando meu peito, contorci-me sem sucesso para tentar
escapar.
— Larga, Ivy — arquejei. — Você não quer fazer isso — um enjoativo cheiro
de incenso invocou a memória da vez em que ela me prendera contra a cadeira, na
primavera anterior. — Se fizer isso — disse eu, histérica —, vou embora. Vai ficar
sozinha.
se desejar de verdade. O que acha que tenho estado te ensinando ao longo dos
últimos três meses? Quer escapar... Rachel?
Era minha cicatriz. Ela estava brincando com a cicatriz do demônio, tal
como Piscary fizera. Lambeu os lábios.
Com a respiração saindo de seu corpo num suspiro, Ivy observou meus
olhos, enquanto os seus dedos traçavam um rastro da minha orelha, através do
meu pescoço e ao longo da clavícula.
I v y e n c o s to u a te s t a à p a r e d e , a o l a d o d a m i n h a c a b e ç a , c o m o s e
recuperasse a determinação. O cabelo era uma cortina de seda entre nós. Senti o
calor que emanava dela, através do body de corpo inteiro. Não conseguia me
mexer, tensa de medo e desejo, perguntando-me se ela me tomaria ou se eu teria
força de vontade suficiente para afastá-la.
— Não sabe como tem sido viver ao seu lado, Rachel — disse ela, o
sussurro vindo de detrás do seu cabelo como se atravessasse a parede de um
confessionário. — Sabia que ficaria assustada se soubesse o quão vulnerável te
torna a cicatriz. Foi marcada para o prazer e, a menos que tenha um vampiro que
te reclame e proteja, todos se aproveitarão dela tomando o que quiserem e
passando-te para o seguinte até não ser mais que um fantoche que implora que o
sangrem. Esperava que fosse capaz de dizer não. Esperava que, se te ensinasse o
suficiente, fosse capaz de afastar-se de um vampiro esfomeado. Mas não consegue,
querida. As neurotoxinas entranharam-se demais. A culpa não é sua. Lamento...
— Piscary disse que essa era a única maneira de ficar com você. De te
manter viva. Serei gentil, Rachel. Não pediria nada que não estivesse disposta a
dar. Não seria como um desses espetros patéticos que vimos no Piscary's, mas
forte e igual. Ele mostrou-me, quando te enfeitiçou, que não seria doloroso — a
187
O medo correu através de mim, perante o tom duro e possessivo. Ela virou
a cabeça, o cabelo caindo para trás e revelando seu rosto, seus olhos negros com
uma fome antiga, perfeita na sua inocência.
— Vi o que te aconteceu sob o controle do Piscary; o que sentiu não foi mais
do que um dedo tocando tua pele.
— Imagina — sussurrou ela —, a sensação que te trará quando não for o teu
dedo, mas os meus dentes cortando através de ti, limpos e puros.
A ideia lançou uma onda de calor através de mim. Fiquei mole sob o seu
abraço, meu corpo revoltando-se contra os meus pensamentos lamurientos.
Lágrimas escorreram pelo meu rosto, quentes e caindo sobre a minha clavícula.
Não conseguia perceber se, se tratava de lágrimas de medo ou desejo.
— Não chore, Rachel — disse ela, inclinando a cabeça para tocar meu
pescoço com os lábios, ao ritmo das suas palavras. Quase desmaiei com a força do
desejo. — Também não queria que fosse assim. Mas, por você — sussurrou ela —,
quebrarei meu jejum.
Ela ouviu, afastando-se para olhar para mim. Ivy estava perdida num
nevoeiro de antecipação e êxtase. Um terror entorpecido atravessou-me
repentinamente.
188
Meus olhos fecharam-se nas ondas de êxtase que fluíam do meu pescoço,
enquanto as unhas dela continuavam a percorrer minhas cicatrizes, no local que os
seus lábios tinham abandonado.
Meus olhos abriram-se, quando ela apertou meu ombro com mais força.
Atrás dela erguia-se Nick com o meu maior caldeirão de cobre para feitiços.
Capitulo 13
Estava quente e abafado. Podia sentir o cheiro de café frio... Starbucks: dois
torrões de açúcar, sem natas. Abri os olhos e descobri um aglomerado fibroso de
cabelos vermelhos bloqueando-me a visão. Sentindo o braço dolorido, afastei-o do
caminho. Havia silêncio, só o som abafado do trânsito e o familiar zumbido do
relógio de Nick quebravam a quietude. Não fiquei surpreendida por me descobrir
no quarto dele, segura no lado da cama que ocupava ocasionalmente — de frente
tanto para a janela como para a porta. O guarda-roupa de Nick, sem maçaneta,
nunca me pareceu tão bom.
A luz que entrava através das cortinas era tênue. Calculei que estivéssemos
perto do pôr-do-sol. Um olhar de relance ao relógio revelou que eram 5:35 pm. Eu
sabia que ele estava certo. Nick adorava gadjets e o relógio recebia um sinal do
Colorado todos os dias à meia-noite, para acertá-lo pelo relógio atômico aí
existente. O mesmo ocorria com o relógio de pulso. Por que alguém precisava
estar assim tão certo, era algo que me deixava curiosa. Eu nem sequer usava
relógio de pulso.
A m a n ta d o u r a d a e a z u l q u e a m ã e d e N i c k f i z e r a p a r a e l e e s t a v a
aconchegada debaixo do meu queixo, libertando um suave cheiro de sabão branco.
O que reconheci ser um amuleto contra as dores estava pousado na mesa de
cabeceira, logo ao lado da pequena agulha. Nick pensava em tudo. Se ele o
pudesse invocar, teria feito.
Sentei-me procurando por ele, sabendo, pelo cheiro de café, que ele devia
estar por perto. A manta caiu rodeando-me quando pousei os pés no chão. Com os
músculos em protesto, levei a mão ao amuleto. Doíam-me as costelas e sentia as
costas doloridas. De cabeça curvada, piquei o dedo para obter as três gotas de
sangue que invocariam o amuleto. Mesmo antes de passar o fio pela cabeça, senti-
me relaxar num alívio imediato. Estava com os músculos doloridos e repleta de
manchas negras, mas nada que não sarasse.
190
— Olá, Ray-Ray — disse ele e a sua voz rodeou-me como uma poça de água
quente ao redor dos meus tornozelos. — Como está?
— Estou bem.
E s t a v a e n v e r g o n h a d a p o r e l e te r t e s te m u n h a d o o q u e a c o n t e c e r
a,
envergonhada por ele me ter salvado e, francamente feliz por ele lá estar para
ambos.
Ele veio sentar-se ao meu lado, seu peso fazendo-me deslizar. Expirei, num
som aliviado e satisfeito quando caí contra ele. Envolveu-me com um braço e
abraçou-me de lado. Pousei a cabeça no ombro dele, inspirando profundamente o
cheiro de livros antigos e enxofre. Lentamente, o bater do meu coração tornou-se
óbvio, enquanto eu me sentava sem fazer nada, ganhando coragem simplesmente
com a sua presença.
— Te m ce r t e z a q u e e st á b e m ? — p e r g u n t o u e l e , a m ã o e n t e r r a d a
profundamente no meu cabelo, enquanto me abraçava.
— Sim. Obrigada. Onde está Ivy? — ele não disse nada e o meu rosto ficou
flácido, em alarme. — Ela não te machucou, não?
— Merda — disse ele num sussurro. — Desculpa. Pensei que tinha dito não.
— o olhar dele caiu sobre o meu e afastou-se, o rosto comprido em sofrimento,
decepcionado e vermelho de vergonha. — Oh, merda, merda, merda —
murmurou. — Lamento muito. Sim. Sim, vamos. Eu te levo à sua casa. Talvez ela
ainda não tenha acordado. Lamento muito, sério. Pensei que tinha dito não. Oh,
Deus! Não devia ter interferido. Pensei que tinha dito não!
— Bem, sim. Ela é minha amiga — fiz um gesto incrédulo. — Não consigo
acreditar que a tenha deixado ali deitada!
— Mas eu vi o que ela tentou fazer — disse ele. — Ela quase te mordeu e
você quer voltar?
Aterrissei nas costas dela, puxei a cabeça para trás pelos cabelos e respirei em seu
pescoço.
— Deixa eu ver se entendi bem. Decidiu lutar com ela, estando zangada.
Esperou até ambas se encontrarem emocionalmente carregada e depois a atacou?
— exalou audivelmente, pelo nariz. — Tem certeza que não queria que ela te
mordesse?
— Ivy não teria sugado todo o sangue e a deixado como morta — disse ele,
com relutância. — Mesmo no frenesi em que a deixou. Ouvi o que ela te ofereceu.
Não se tratava de um caso passageiro. Era um compromisso para toda a vida.
Ele abraçou-me com mais força, ainda que seus olhos não se voltassem para
os meus.
— Tempo suficiente para ouvi-la perguntar se queria ser o delfim dela. Não
ia atravessar seu caminho, se fosse algo que você quisesse.
— Teria ido embora?! — exclamei, não querendo sair do seu colo com medo
que o orgulho me fizesse deixar o seu apartamento. — Não teria feito nada?
Ele cerrou o maxilar, mas não fez qualquer tentativa de me lançar ao chão.
— Não sou eu quem vive numa igreja com um vampiro! — disse ele. —
Não sei o que quer. Só posso agir com base no que me diz e no que vejo. Vive com
ela. Namora comigo. É suposto eu pensar o quê?
brinquedo. Não com Ivy. E ficaria em segurança com ela, intocável por
praticamente todas as coisas más que existem em Cincinnati.
— Não. Não é só sangue o que ela quer, embora a troca faça parte. Mas
tenho de ser sincero. Vocês complementam-se como nunca vi um vampiro e seu
delfim complementarem-se — uma centelha de emoção desconhecida ocupou e
desapareceu dos seus olhos. — É uma oportunidade de grandeza, se estiver
disposta a desistir dos seus sonhos e a unir-se aos dela. Ficaria sempre em
segundo lugar. Mas estaria em segundo lugar em relação a um vampiro destinado
a dominar Cincinnati — a mão de Nick parou de se mover sobre o meu cabelo. —
Se cometi um erro — disse ele, com cuidado, sem olhar para mim —, e quiser ser o
delfim dela, então ótimo. Levo você, bem como a sua escova de dente para casa e
afasto-me, deixando-lhes terminar aquilo que interrompi — a mão dele recomeçou
a mover-se. — Meu único arrependimento será o fato de não ter sido o suficiente
para te atrair para longe dela.
— E se não respeitar?
Ele deu uma gargalhada, mas me pareceu ouvir nela uma pitada de dor.
Senti que o divertimento dele desaparecia. O peito dele fazia com que a minha
cabeça se movesse quando respirava. O que aconteceu me marcou mais do que eu
queria admitir.
— Já não está sob uma ameaça de morte — sussurrou. — Por que não vai
embora?
Sorri, embora ele não conseguisse ver, sentindo meu rosto a roçar na camisa
de algodão dele. O apartamento era pequeno, mas não foi por isso que limitei
meus pernoites aos fins de semana. Ele tinha sua própria vida e eu atravessaria
seu caminho, caso ele tivesse de me aturar em doses maiores.
— Ela não quer ser. Vou ser mais cuidadosa. Vou ficar bem — apliquei um
tom confiante e persuasivo à minha voz, mas fiquei pensando se estava tentando
convencer a ele ou a mim.
— Sabe?
— Andei no liceu em Hollows. Não acha que consegui passar por isso sem
ser mordido pelo menos uma vez, não é?
— Foi uma paixonite de verão. E ela não estava morta, por isso não contraí
o vírus do vampirismo. Não foi usada muita saliva, por isso a cicatriz mantém-se
bastante calma, a menos que eu esteja numa situação em que tenham sido libertos
muitos feromônios vampíricos. É uma armadilha. Sabe disso, não sabe?
Voltei a encostar-me nele, acenando. Nick estava seguro. Sua cicatriz era
antiga e feita por uma vampira viva acabada de sair da adolescência. A minha era
nova e de tal forma repleta de neurotoxinas que Piscary podia acionar apenas com
o peso dos seus olhos. Nick ficou imóvel e eu perguntei-me se sua cicatriz tinha
despertado quando ele entrou na igreja. Isso poderia explicar o fato de não ter
feito nada e ter se limitado a olhar. Quão bem funciona a cicatriz dele? — perguntei-
me, incapaz de o culpar por isso.
— É isso? — perguntei.
Ele sorriu.
— Não sei.
posição, para ficar sentada ao seu colo, com uma perna de cada lado. As mãos dele
deslizaram, para me segurar um pouco mais abaixo e, arqueando as sobrancelhas
perante a nossa nova posição, aproximei-me mais dele. Meus dedos deslizaram
para a parte de trás do pescoço dele; afastei o colarinho com o nariz e pousei os
lábios contra a cicatriz, deixando-a com um pop audível.
Dobrada sobre ele, deixei que o meu cabelo caísse sobre o peito, enquanto
passava a língua pela primeira e depois pela segunda cicatriz que lhe fizera
quando eu era um visom e pensava que ele era uma ratazana que estava tentando
me matar. Ele não disse nada e eu toquei, cuidadosamente, na cicatriz já com três
meses, com os dentes.
— Não — disse ele, a voz subitamente tensa. — Essa foi você que me fez.
Ele não disse nada, a mão livre provocando deliciosas sensações, enquanto
percorria a parte de baixo das minhas costas, testando-me. Afastei-me e as mãos
dele seguiram as curvas da minha cintura, por baixo da camisola, com uma
pressão crescente. Estava feliz por ser quase de noite. Estava tudo tão calmo e
quente. Seu olhar brilhava em ansiosa antecipação e, inclinando-me para frente
para tocar seu rosto com a ponta dos meus cabelos, sussurrei:
— Fecha os olhos.
199
Todo o seu corpo se agitou quando ele suspirou, fazendo o que eu pedia. O
toque de Nick tornou-se mais insistente e eu pousei a cabeça na curva entre o
pescoço e o ombro dele. De olhos fechados, tateei em busca dos botões da camisa,
apreciando o crescer de expectativa, enquanto cada um deles cedia. Lutei com o
último, puxando a camisa de dentro das calças jeans. As mãos dele largaram-me e
ele contorceu-se para soltar a camisa. Inclinei a cabeça e mordi de leve o lóbulo da
orelha.
Ergui os olhos para ele; ainda tinha a camisa vestida, mas esta estava aberta e
revelava os músculos secos que lhe cobriam o ventre que desaparecia sob a
cintura das calças. Eu tinha lançado um braço, com maestria, sobre a cabeça e
estiquei o outro, traçando uma linha descendente, ao longo do peito, acabando de
puxar as calças.
Quente e com uma mistura deliciosa de pressão suave e pele áspera, Nick
enfiou a mão inquisitiva por baixo da minha camisa. Passei a mão pelos ombros
dele, sentindo seus músculos retesarem-se e relaxarem. Ele deslizou mais para
baixo e eu arquejei de surpresa quando ele me tocou com o nariz na barriga e, com
os dentes, procurou a bainha da minha camisola.
Sentindo meu medo súbito, Nick abrandou, seu corpo tocando no meu uma
vez, duas, depois parando. Num movimento lento e calmo, tocou com os lábios na
minha cicatriz. Não conseguia me mexer, enquanto ondas de prometido prazer
corriam através de mim, instalando-se, profundas e insistentes, no meu corpo.
Meu coração acelerou enquanto comparava a sensação do êxtase induzido pelos
feromônios vampíricos em que Ivy me lançara e os achava idênticos. Era muito
bom para ser ignorado.
Deslizei as mãos pela sua camisa aberta até encontrar as calças jeans.
Respirando rapidamente, puxei a roupa dele até poder prender com o pé e despi-
lo por completo. Ardendo de desejo por ele, minhas mãos partiram inquisitivas,
tentando encontrar o que eu queria.
Estendi o braço para ele e ele ajustou o seu peso, tocando com o joelho na
parte de dentro da minha coxa. Uma vez mais ergui os quadris, procurando
202
encontrá-lo. Ele deixou-se cair sobre mim, seus lábios nos meus e começamos a
mover-nos um contra o outro.
— Meu pulso — arquejou ele ao meu ouvido. — Oh, Deus, Rachel. Ela
mordeu-me no pulso.
Senti uma dor lancinante no pescoço e gritei. Nick hesitou, depois voltou a
prender um pedaço de pele marcada entre os dentes. Eu fiz o mesmo no seu pulso,
para lhe dar a entender que estava tudo bem. Silenciosa, com um desejo
desesperado, a boca dele lançou-se esfomeada para mim. O desejo vinha de
dentro. Podia senti-lo inchar. Seduzi-o, chamando-o para mim, desejando a sua
realização. Agora — pensei, quase gritando. Oh, Deus! Que seja agora.
Com a respiração tornando-se mais lenta, não disse nada, pensando que
podia abdicar da minha corrida de cinco quilômetros. O bater do meu coração
acalmou-se, enchendo-me com uma lentidão relaxada. Puxei o pulso dele para
perto de mim, fitando a antiga cicatriz cuja cor branca contrastava com a pele
vermelha e maltratada. Senti um toque de vergonha ao ver que tinha feito um
chupão. Contudo, não senti culpa por tê-lo marcado. O mais certo era que ele
soubesse o que ia acontecer melhor do que eu e, meu pescoço estava, sem dúvida,
em estado semelhante.
Queria eu saber? Não naquele momento. Talvez mais tarde, quando minha
mãe o visse. Dei um beijo na pele macia e passei meu braço nele.
Tinha mordiscado boa parte do seu corpo durante os últimos dois meses e
nunca provocara nele aquela resposta. Não que estivesse me queixando.
Parecendo exausto, ele saiu de cima de mim e deixou-se cair gemendo, na cama.
— Deve ter sido porque Ivy pôs as coisas em andamento — disse ele, os
olhos fechados e o rosto virado para o teto. — Vou estar todo dolorido, amanhã.
Agarrei a manta e a puxei para me cobrir, com frio, agora que não tinha o
calor do corpo dele. Virando-me de lado, aproximei-me dele e sussurrei:
— Tem certeza que quer que eu saia da igreja? Acho que começo a perceber
porque os trios são tão populares entre os vampiros.
Capitulo 14
— Olá — a voz gravada de Nick fazia-se ouvir na minha secretária
eletrônica, num som suave e polido. — Ligou para Morgan, Tamwood e Jenks.
Agentes Privados de Encantamentos Vampíricos. No momento eles não podem
atender. Por favor, deixe uma mensagem e indique se prefere ser contatado de dia
ou de noite.
Agarrei com mais força o plástico preto do telefone de Nick e esperei pelo
bip. Pedir ao Nick que gravasse a mensagem foi ideia minha. Gostava da voz dele
e achava muito fino e profissional o fato de passarmos a imagem de ter um
homem como recepcionista. Claro que toda a imagem se desmoronava quando
viam a igreja.
Nick passou por mim vindo da cozinha, a mão tocando minha cintura,
enquanto se dirigia para a sala de estar. O telefone continuava silencioso e
apressei-me para falar antes que a máquina desligasse.
— Ei, estou na casa do Nick. Hum... Sobre lá atrás. Desculpa. A culpa foi
minha — olhei de relance para Nick que fazia a sua "arrumação de solteiro",
enquanto andava de um lado para o outro, escondendo coisas debaixo do sofá e
atrás das almofadas. — Nick pede desculpa por ter te acertado.
— Não peço nada — disse ele e eu tapei o telefone, pensando que a audição
de vampiro dela pudesse ouvi-lo.
— Ei, hum — continuei —, vou à minha mãe buscar umas coisas, mas
estarei de volta aí pelas dez horas. Se chegar em casa antes de mim, por que não
tira a lasanha para comermos hoje? Podíamos jantar por volta da meia-noite?
206
Jantamos cedo para que eu consiga fazer os trabalhos de casa — hesitei, querendo
dizer mais. — Espero que ouça isso — concluí, debilmente. — Tchau.
— Não tenho minha bolsa — murmurei, enquanto ele dava um forte puxão
na porta para trancá-la.
— Podemos?
E l e i n s p i r o u l e n ta m e n te e , c o m o r o s t o c o m p r i d o c o n to r c i d o n u m a
expressão estoica, acenou.
Sabia que ele não queria ir e o transtorno que isso provocava em mim quase
m e f e z f a l h a r n o d e g r a u d o e d i f í c i o q u e n o s l e va va a t é o p a r q u e d e
estacionamento. Estava frio. Não havia uma nuvem no céu, mas as estrelas
estavam perdidas atrás das luzes da cidade. Meus pés sentiam todas as brisas nos
chinelos e, quando envolvi o corpo com os braços, Nick passou-me o seu casaco.
E n c o l h i - m e d e n t r o d e l e , m i n h a r a i va p e r a n t e s u a r e l u t â n c i a e m ve r I v y
diminuindo por causa do calor e do cheiro dele no tecido grosso.
Icei-me e entrei, colocando os pés lado a lado no ofensivo tapete que o dono
anterior ali deixara, enquanto Nick fechava a porta batendo-a. A pickup balançou,
m a s e r a a ú n i c a fo r m a d e t e r c e r te z a q u e a p o r t a n ã o s e a b r i r i a q u a n d o
atravessássemos as trilhas dos caminhos-de-ferro.
Enquanto esperava que Nick desse a volta, uma sombra tremeluzente sobre o
capô chamou-me a atenção. Inclinei-me para frente, semicerrando os olhos. Algo
quase se chocou com o vidro e eu saltei.
— Quando diabos vocês vão comprar um telefone com viva voz? — rosnou
ele. — Pertenço a esta firma de treta tanto quanto vocês e não consigo usar o
telefone!
Ele veio da igreja? Eu não sabia que ele conseguia se mover assim tão
depressa.
— Ela está bem? — perguntei, depois olhei para Nick. — Leve-me pra casa.
— Está ótima... Dentro do possível para ela — disse Jenks, sua raiva
transformando-se em preocupação. — Não volte ainda.
Jenks esvoaçou, depois voltou a pousar, fitando Nick até ele colocar as
mãos no volante.
— Não — disse o pixy. — Estou falando sério. Dê algum tempo a ela. Ela
ouviu sua mensagem e está acalmando-se — Jenks voou para se sentar no painel à
minha frente. — Deus, o ela fez? Não parava de dizer que não conseguia te
proteger, que Piscary ia ficar zangado com ela e que ela não sabia o que faria se
você fosse embora — suas feições minúsculas assumiram uma expressão de
crescente preocupação. — Rache? Talvez você devesse se mudar. Isso é muito
esquisito, mesmo para você.
— Igreja? — perguntou.
Olhei de relance para Jenks e ele abanou a cabeça. Foi a pitada de medo que
vi nele que fez com que decidisse.
— Não — disse eu. Esperaria. Daria tempo a ela para que pudesse se
recompor. Nick parecia tão aliviado como Jenks. Saímos para o trânsito, dirigindo-
nos para a ponte.
Afastei os olhos da noite que passava e encarei Jenks, vendo, graças à luz do
carro atrás de nós, suas asas imobilizarem-se e depois agitarem-se até se tornarem
invisíveis e voltarem a parar. Jenks encarou o rosto embaraçado de Nick e depois
meu rosto preocupado.
— Belo carro.
210
— Obrigado.
— Clássico?
O olhar de Nick deslizou das luzes traseiras do carro à nossa frente para
Jenks. — Modificado.
— Duzentos e quarenta.
Abri a boca para perguntar, depois a fechei. Devia ser uma coisa
de
homens.
Eu acenei.
s
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p
ó
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n
p
211
Nick não disse nada enquanto parava junto à calçada, em frente a minha
casa. A luz da varanda estava acesa e podia jurar que tinha visto a cortina se
mexer. Já não ia lá há algumas semanas e a árvore que tinha plantado com as
cinzas do meu pai estava mudando de folha. O bordô crescera até quase cobrir a
garagem, nos doze anos desde que fora plantado.
Jenks já tinha saído pela porta aberta de Nick e, enquanto Nick se inclinava
para sair, toquei seu braço.
para os joelhos. — Hum, quero te pedir desculpas pela minha mãe... Antes de
conhecê-la — disse.
Ele sorriu, o rosto longo assumindo uma expressão calma. Inclinou-se sobre
o banco da frente e deu-me um beijo rápido.
— As mães são terríveis, não são? — saiu e eu esperei, impaciente, até ele
ter dado a volta e aberto a porta do meu lado com um puxão.
— Nick? — disse eu, enquanto ele tomava minha mão e avançávamos pela
calçada. — Estou falando sério. Ela é um bocado maluca. A morte do meu pai a
afetou mesmo. Não é uma psicopata nem nada disso, mas não pensa no que diz. O
que passa pela cabeça, sai pela boca.
— É por isso que ainda não a conheci? Pensei que era por causa de mim.
— Fico feliz por não ser por minha causa — disse Nick.
— Sim — disse Jenks, enquanto aterrava no meu ombro. — Sua mãe devia
conhecê-lo. Tendo em conta que ele anda saltando em cima da filha dela e isso
tudo.
Ela era mais baixa do que eu e isso parecia estranho. O cheiro de dela colou-
se à minha garganta, sobrepondo-se ao leve cheiro de pau-brasil. Sentia-me mal
por não ter dito toda a verdade sobre ter saído da SI e sobre as ameaças de morte a
que tinha sobrevivido. Não quis preocupá-la.
213
— Claro que lembro. É bom vê-lo novamente, Jenks — ela recuou para a
ombreira da porta, uma mão tocando por breves instantes no liso cabelo ruivo
desbotado e depois no vestido de malha que ficava no meio da canela. Senti que
um nó de preocupação se desfazia. Ela parecia bem. Melhor do que da última vez.
O brilho malandro regressara aos seus olhos e movia-se rapidamente, enquanto
nos incitava a entrar. — Entrem, entrem — disse, colocando uma das mãos
pequenas no ombro de Nick. — Antes que os insetos nos sigam.
A luz do hall estava acesa, mas fazia pouco para iluminar o corredor verde
envolto em sombras. O espaço apertado estava repleto de fotografias e senti um
pouco de claustrofobia quando ela me deu mais um abraço feroz, sorrindo,
enquanto se afastava.
— Fico tão feliz por terem vindo — disse, depois se virou para Nick.
— Olá, Sra. Morgan. Está bonita esta noite — disse ele, cauteloso e
baixando-a ligeiramente.
Não pude evitar um assobio enquanto ela nos guiava até à cozinha.
Lentamente, comecei a relaxar. Minha mãe parecia estar prestando mais atenção
214
ao que dizia do que o normal. Entramos na cozinha iluminada pela luz do teto e
respirei com mais facilidade. Parecia normal... Uma normalidade humana.
Minha mãe já não fazia muitos feitiços e, só a tigela de dissolução com água
salgada perto da geladeira e o caldeirão de cobre para feitiços no fogão, davam
qualquer indicação do que era. Estava no ensino médio quando se deu a Viragem e
a geração dela era muito discreta.
— Só viemos buscar minhas coisas das linhas Ley — disse eu, sabendo que a
minha ideia de chegar, pegar nas coisas e sair rapidamente seria impossível de
concretizar — já que o caldeirão de cobre para feitiços se encontrava cheio de água
fervente para o espaguete.
— Sim, Sra. Morgan — disse ele, apesar do meu olhar suplicante. Ela virou-
se para o fogão, satisfeita.
— E você, Jenks? Não tenho muita coisa no quintal, mas pode ficar com o
que conseguir encontrar. Ou posso misturar um pouco de água com açúcar, se
quiser.
Jenks cintilou.
— Por acaso não conhece nenhuma criança interessada num trabalho de fim
de verão? — perguntou, e o ar fugiu de mim num som aliviado.
215
Jenks aterrou na mão que ela oferecia, as asas brilhando num satisfeito tom
cor-de-rosa.
— Sim, minha senhora. Meu filho Jax ficaria maravilhado por trabalhar no
seu jardim. E, minhas duas filhas mais velhas seriam suficientes para manter as
fadas longe. Posso mandá-los amanhã antes do nascer do Sol, se quiser. Quando
estiver tomando sua primeira caneca de café, já não haverá uma fada à vista.
— Um café seria ótimo, Sra. Morgan — disse Nick, enquanto puxava uma
cadeira de debaixo da mesa e sentava nela.
Abri a geladeira em busca do café e minha mãe tirou-me das mãos o saco de
grãos, enxotando-me com suaves sons maternais até eu me sentar ao lado de Nick.
O raspar dos pés da minha cadeira foi sonoro e desejei que ela não estivesse
fazendo tanto alarde. Nick sorriu, apreciando claramente o meu desconforto.
— Não que haja algo de errado com isso — acrescentou, pegando os grãos e
enchendo o filtro.
Eu nem conseguia olhar para Nick e ouvindo a forma como tossiu, ele
estava se divertindo. Pousei os cotovelos na mesa e deixei cair a cabeça entre as
mãos.
— Rachel nasceu com uma estranha doença de sangue — disse ela. — Não
fazíamos ideia que estava lá, aguardando por um momento inoportuno para se
revelar.
— Bem, ela já não a tem — disse minha mãe. — Uma mulher simpática, na
clínica explicou tudo, dizendo que tivemos sorte com o irmão mais velho da
217
Rachel e que a probabilidade de o nosso próximo filho ser como a Rachel era de
um em quatro.
— Lamento.
Dirigi-lhe um sorriso.
— Ei, o que são dez anos? Eu nem sequer deveria ter chegado à puberdade.
Não tive coragem para lhe dizer que, mesmo com dez anos cortados à
minha expectativa de vida, ainda ia viver décadas depois da morte dele, mas ele já
devia sabê-lo.
Reprimi uma gargalhada, mas a minha mãe deixou que a dela fluísse
livremente. Meu coração pareceu saltar ao ouvir aquele som. Já não a ouvia rir de
prazer a muito tempo.
Minha boca abriu-se num "oh" silencioso e pensei que talvez Nick, com a
sua forma peculiar de ver o mundo, pudesse compreender minha mãe melhor do
que eu.
— Nick, querido — disse minha mãe, enquanto dava uma rápida mexida ao
molho, no sentido dos ponteiros do relógio —, não teve nenhuma doença celular
na vida, hum?
— Mãe! — exclamei.
Ela virou-se, uma mão no quadril, a outra segurando a colher que pingava.
220
— Rachel, se não queria que eu falasse nisso, devia ter escondido o chupão
com um feitiço.
— Ele parece um jovem tão simpático. Não quero que o afugente como fez
aos seus outros namorados. Eu amava tanto seu pai. Só queria que você fosse
assim tão feliz.
Senti-me mal quando o peso dessa simples afirmação se abateu sobre ela e
perguntei-me se isso mudaria sua opinião sobre Nick. Nunca poderíamos ter
filhos, Nick e eu. Os cromossomos não se alinhavam. Tê-lo descoberto com toda
certeza marcara o fim de uma controvérsia de longa data entre Inderlanders,
provando que as bruxas — ao contrário dos vampiros e dos animalomens — eram
uma espécie diferente dos humanos, tanto como os pixies e os trolls. Os vampiros e
os animalomens quer tivessem sido mordidos, quer tivessem nascido assim, não
passavam de humanos modificados. Embora os bruxos imitassem a humanidade
quase em perfeição, éramos tão diferentes como bananas e moscas da fruta ao
nível celular. Com Nick, eu seria estéril.
E u d i s s e i s so a N i c k d a p r i me i r a ve z q u e o s n o s s o s c a r i n h o s s e
transformaram em algo mais intenso, temendo que ele reparasse se algo não
estivesse bem no lugar. Tinha ficado quase doente com a ideia de que ele reagisse
com nojo ao fato de sermos espécies diferentes. Depois quase chorei, quando a sua
única pergunta, de olhos bem abertos, foi: "São parecidos e funcionam da mesma
maneira, certo?" Na época, sinceramente, não sabia. Tínhamos respondido juntos a
essa pergunta.
221
Ela deu-me uma palmadinha nas costas e separamo-nos. Sem cruzar seus
olhos com os meus, regressou à cozinha.
Ela inspirou e, com um rosto alegre, dirigiu-se para a cozinha com passos
rápidos e curtos. Fiquei à escuta por um instante, decidindo que nada mudara
quando ela começou a falar alegremente com Nick sobre o tempo, enquanto
guardava o molho de tomate. Aliviada, avancei pelo corredor escuro, batendo com
os chinelos.
— Era o melhor — virei a página e Jenks aterrou sobre ela, as mãos nos
quadris enquanto passeava por cima da minha vida, cuidadosamente organizada
em pequenas filas e colunas. — Essa é minha fotografia preferida dele — disse eu,
tocando com o dedo num grupo improvável de garotas de onze e doze anos, de
pé, em frente a um ônibus amarelo.
Meu humor tornou-se mais negro, enquanto meu olhar percorria os rostos e
eu percebia que, muito provavelmente, era a única da fotografia que ainda
continuava viva. Tentei recordar-me do nome da garota magra de cabelos negros
ao meu lado, não gostando do fato de não ser capaz. Ela tinha sido a minha
melhor amiga.
223
— Pediram à Rachel que não voltasse depois de ela ter perdido a calma —
disse a minha mãe —, não por estar ficando boa. Ela meteu na cabeça que havia de
castigar um garotinho por se meter com as meninas.
— Garotinho — disse eu, sarcástica. — Ele era mais velho que todos os
outros e um bruto.
Jenks deu uma risadinha e minha mãe raspou a colher na borda do pote de
molho.
— Não seja modesta. Rachel usou a linha Ley sobre a qual tinha sido
construído o acampamento e atirou-o nove metros pelo ar.
O meu pai teve de voar até lá e resolver as coisas. Foi a primeira vez que
usei as linhas Ley e, basicamente, a última até ter ido para a faculdade, já que meu
pai me tinha dado um sermão dos bons. Tive sorte em não terem me obrigado a
sair imediatamente.
— Mãe, posso ficar com essa fotografia? Perdi a minha essa primavera
quando... Um feitiço mal alinhado as apagou.
224
— O que foi?
Baixei os olhos para a fotografia que se encontrava por baixo daquela que
tinha na mão e senti meu rosto ficar branco. Foi tirada no mesmo dia, já que o
plano de fundo era o ônibus. Mas desta vez, em vez de estar rodeado por garotas
pré-adolescentes, meu pai estava ao lado de um homem que parecia mesmo Trent
Kalamack mais velho.
Não era Trent, mas a semelhança era assustadora. Tinha de ser o pai dele.
Meu pai conhecia o pai de Trent?
Q u a n to ? — p e r g u n t e i . O q u e o p a i d e T r e n t ti r o u d o m e u p a i c o m
o
pagamento pela vida da filha? Teria trocado pela sua?
— Oh, não a quero — disse ela e eu a tirei, os dedos tremendo. — Era por
isso que estava por baixo. Sabe que não consigo jogar fora nada que tenha sido do
seu pai.
— Obrigada — sussurrei.
226
Capitulo 15
Tirei um dos chinelos cor-de-rosa felpudos e, despreocupadamente, cocei a
batata da perna. Já passava da meia-noite, mas a cozinha estava iluminada —
feixes de luz fluorescente refletindo nos meus caldeirões de cobre e nos utensílios
pendurados. Erguendo-me junto à ilha de aço inoxidável, bati com o pilão
reduzindo o gerânio selvagem a uma pasta verde. Jenks tinha o encontrado num
lote vazio, trocando por ele um dos seus preciosos cogumelos. O clã pixy que
cuidava do lote tinha saído beneficiado do negócio, mas acho que Jenks tinha pena
deles.
Nick fizera sanduíches cerca de meia hora antes e a lasanha foi guardada na
geladeira ainda quente. Meu sanduíche de mortadela não tinha gosto de nada.
Acho que não podia pôr a culpa no fato de Nick não ter posto ketchup como eu
tinha pedido, dizendo que não o conseguia encontrar. Idiota fobia humana. Teria
achado fofo, se não me irritasse tanto.
Ivy ainda não tinha aparecido e eu não ia comer a lasanha sozinha na frente
do Nick. Queria falar com ela, mas teria de esperar até ela estar pronta. Ivy era a
pessoa mais reservada que eu conhecia, não dizendo sequer a si mesma quais
eram os seus sentimentos até descobrir uma forma lógica de justificá-los.
Bob, o peixe, nadava no caldeirão para feitiços ao meu lado, sobre o balcão.
Tinha decidido usá-lo como meu familiar. Precisava de um animal e os peixes
eram animais, certo? Além disso, Jenks teria um ataque de nervos se eu sequer
pensasse num gatinho e Ivy tinha levado as corujas para casa da irmã depois de
227
uma ter escapado por pouco quando apanhou a filha mais nova de Jenks. Jezebel
estava ótima. A coruja talvez voltasse a voar... Um dia.
— Meu pai morreu por minha causa — disse eu. — Se não fosse por mim e
da minha maldita doença de sangue, ele ainda estaria aqui. Eu sei.
Isso me fez sentir muito melhor e deixei-me ficar onde estava, abatida.
— Talvez eles fossem apenas amigos, como disse sua mãe — sugeriu Nick.
Nick esticou um braço comprido para agarrar a fotografia que ainda estava
sobre o balcão, onde eu a tinha deixado.
— Não sei — disse ele, a voz suave enquanto olhava para a foto. — Para
mim, parecem amigos.
Era a primeira vez que o dizia em voz alta e senti um aperto no estômago.
— Não deve. Isso foi entre seu pai e o de Trent, presumindo que aconteceu.
— as mãos dele eram quentes ao redor da minha cintura. Meus pés estavam entre
os dele e entrelacei os dedos atrás de suas costas, usando meu peso como
contrapeso ao seu. — Só porque seu pai e o de Trent se conheciam, não quer dizer
nada — disse ele.
— Estava à espera de ainda aqui estar quando Ivy chegasse. Por que não
passa a noite em minha casa?
— Vou ficar bem. Ela não regressará para casa enquanto não estiver calma.
Mas, se vai ficar durante algum tempo, que me diz de desenhar uns pentagramas
por mim?
O estalar do plástico parou. Nick olhou para meu papel negro e para o giz
prateado empilhado, suspeitamente sobre o balcão, depois para mim. Seus olhos
iluminaram-se de alegria e ele acabou de desenrolar as beiras do pacote.
— Luas novas desenhadas nas pontas e uma fita de Möbius no centro para
dar equilíbrio.
Planta apiácea.
12
230
— De invocação? — perguntou.
— Ambos.
— Vou fazê-los pouco cuidadosos para ela pensar que foi você — disse ele.
C o m c ui d a do pa r a m a n t e r a o l on g e m e u de d o e n s an g u en t a d o , po l i o
espelho de adivinhação com um lenço de veludo que pedira emprestado a Ivy. Fui
atravessada por um arrepio perante o frio que emanava dele. Odiava adivinhação.
Deixava-me com pés de galinha.
— Por causa dos frascos de geleia com pentagramas — disse. Nick ergueu
os olhos, a expressão perdida em seu rosto fez com que me sentisse bem, por
qualquer razão. — Sabe. Aqueles frascos de geleia que se podem usar como copos
depois de vazios? Havia uns com pentagramas no fundo e os seus usos escritos de
lado. Nesse ano vivi à base de sanduíches de manteiga de amendoim e geleia. Meu
estado de espírito tornou-se leve com a recordação do meu pai a interrogar-me
enquanto comíamos torradas.
— E eu que pensava que era ruim o fato de me atirar ao fundo das caixas de
cereais em busca do brinquedo.
Ele hesitou.
— Isso é um problema?
232
Sorri.
— Não sei. Perguntaria à Dra. Anders se ela não me fizesse sentir como
uma idiota. Acho que depende. Minha mãe também não consegue fazer um
círculo com mais de um metro. Então... Dentro ou fora?
— Dentro?
— Quer que faça os teus trabalhos de casa e que te ajude a prender o teu
familiar? — protestou.
Encolhi-me.
— O único feitiço que consegui encontrar nos meus livros estava em latim.
Suspirando, puxou o livro para ele. Eu sabia que ele não seria capaz de
resistir depois de ter começado e, certa disso, sua pequena irritação transformou-
se em apaixonado interesse, antes de ter lido mais de um parágrafo.
— Consigo ler os nomes das plantas e tenho certeza de ter feito bem o meio
de transferência, pois é básico, mas o encantamento é mais complicado.
233
A recordação de ter sido castigada por ter, sem saber, usado o poder de
uma linha Ley para fazer o brutamontes do acampamento voar contra uma árvore,
atravessou-me. Achava idiota que meu desagrado em relação às linhas Ley
pudesse ter sua origem num incidente de infância, mas eu sabia que era mais do
que isso. Não confiava na magia das linhas Ley. Era muito fácil perder a noção do
lado da magia em que nos encontrávamos.
Com a magia de terra, era fácil. Se é exigido que se mate cabras, é seguro
apostar que se trata de magia negra. A magia das linhas Ley também exigia um
pagamento de morte, mas era uma morte mais nebulosa, retirada da alma, muito
mais difícil de quantificar e muito mais fácil de ignorar até ser tarde demais.
O preço a pagar pela utilização de magia branca das linhas Ley era o
equivalente a arrancar algumas ervas e usá-las nos meus feitiços. Mas o poder cru,
disponível através das linhas Ley, era sedutor. Era preciso uma enorme força de
vontade para alguém se manter dentro de limites autoimpostos e continuar a
praticar magia branca das linhas Ley.
Eram essas que me faziam confusa, pessoas que, no fundo, eram boas, mas
que tinham sido tentadas por um poder maior do que a sua força de vontade.
Eram dignas de pena, suas almas lentamente comidas para pagar a magia negra
com que brincavam. Mas as bruxas negras profissionais é que me assustavam,
aquelas que eram suficientemente fortes para fazer com que fossem outros a pagar
pela magia, com a morte da alma. Contudo, a morte da alma acabava por
encontrar seu caminho de volta a casa, provavelmente arrastando consigo um
235
demônio. Tudo o que eu sabia era que havia gritos, sangue e uma grande explosão
que fazia balançar a cidade.
Tipo de flor.
13
236
até Carew Tower e olhar para a prostrada e brilhante cidade dos demônios, com
minha segunda visão. Senti um aperto no estômago. É claro que ia.
Meu olhar foi atraído para o cemitério pelas puras lápides brancas, quase
brilhantes. Elas e a Lua eram as únicas coisas que pareciam existir sem aquele
brilho branco, imutáveis em ambos os mundos, e reprimi um tremor. A linha Ley
era um borrão vermelho de aparência sólida e que corria para o norte à altura da
cabeça, por cima das lápides. Era pequena — não tinha, sequer, vinte metros, pelos
meus cálculos —, mas era tão pouco usada que parecia mais forte do que a enorme
linha Ley sobre a qual se encontrava a universidade.
Consciente de que Nick devia estar observando tudo aquilo com sua
segunda visão, estendi minha força de vontade e toquei na fita de poder.
Cambaleei, forçando os olhos a permanecerem fechados enquanto agarrava o
balcão com mais força. Minha pulsação tornou-se irregular e minha respiração
mais rápida.
— Maravilha — respirei, pensando que a força que fluía para o meu interior
parecia maior do que da última vez.
A aura dele tinha contornos negros. Isso não era necessariamente mau, mas
apontava numa direção desconfortável. Sua constituição esguia parecia doente e o
237
— Sim — disse ele suavemente. — Já, hum, alguém te disse que você fica
muito diferente quando está canalizando uma linha Ley?
— Não.
— Odeio quando faz isso — disse, enquanto olhava de relance para Nick,
mas ele fitava o círculo.
Segui o olhar dele até as velas e fiquei de queixo caído. Tinham se tornado
transparente. As chamas ainda tremeluziam, mas a cera verde brilhava com um
aspecto absolutamente surreal.
— Não! — gritei e ele afastou a mão, num gesto repentino. — Hum, acho
que passaram para a eternidade, juntamente com o sal. Não sei o que aconteceria
se tocássemos. Por isso... Não o faça. Está bem?
Embora a maior parte da força da linha Ley tivesse sido utilizada para selar o
círculo, já sentia um acumulo secundário começando dentro de mim. Era mais
lento, de forma quase insidiosa. Continuaria até eu quebrar o círculo e minha
l i g a ç ã o à l i n h a L e y . A s b ru xa s d a s l i n h a s L e y s a b i a m c o m o a c u mu l a r
adequadamente o poder, mas eu não sabia e, se ficasse ligada à linha durante
muito tempo, me levaria à loucura. Os cerca de sessenta minutos dos quais
necessitaria não seriam, de todo, tempo de mais.
239
— Eu sabia! — exclamou Nick. — Eu sabia que você tinha sarda. Era o anel,
não era?
— Feito — disse eu, dando uma pancada seca no caldeirão para feitiços
para ouvi-lo tinir. Isso não era assim tão mau.
— Em teoria. Foi por isso que fui tão esquisita com o círculo. Até conseguir
recuperar minha aura, ficarei vulnerável a todo o tipo de coisas — ele acenou, seu
olhar distante preso em pensamentos. — Importa-se de observar e de me dizer se
está funcionando? Não consigo ver minha própria aura.
Inspirando fundo, avancei para o espelho. Era tão frio como preto e reprimi
um arrepio, sentindo que podia cair através dele como se fosse um buraco.
— Ugh — disse eu, fazendo uma careta perante o puxão que senti sob os
pés.
— Por favor.
— Depois precisa ungir seu familiar com o meio de transferência, mas tem
de ter cuidado para não tocar nele — ele ergueu os olhos. — Como se unge um
peixe?
Nick afastou minhas mãos das páginas, quando uma delas se rasgou.
— Não. Vai meter o peixe no caldeirão dos feitiços. Se isso não resultar,
tentaremos outra coisa.
242
— Não quero que a minha aura fique cheirando a peixe — disse, enquanto
mergulhava uma mão no recipiente do Bob, e ele riu.
Bob não queria ir para o caldeirão de feitiços. Tentar apanhar sua forma
escorregadia no recipiente redondo era quase impossível. Tirá-lo da banheira foi
mais fácil — limitei-me a despejar a água —, mas agora, depois de um instante
frustrante de fracassos por pouco, estava pronta para atirá-lo ao chão. Por fim
apanhei-o e, pingando água sobre o balcão, atirei-o dentro. Olhei para o caldeirão
de feitiços, observando as guelras dele bombeando o líquido de cor âmbar.
— Pronto — disse eu, esperando que ele estivesse bem. — Está ungido. E o
resto?
— Encantamento — disse eu, pensando que a magia das linhas Ley era
idiota.
Ele levantou-se com o livro e eu arranjei espaço para ele, ao lado de Bob no
recipiente. Inclinei-me mais para ele, sobre o livro, pensando que ele cheirava
masculamente bem. Tocando-lhe intencionalmente, senti uma corrente quente,
provavelmente sua aura. Muito ocupado decifrando o texto, ele não percebeu.
Suspirando, voltei minha atenção para o livro.
— Não creio. A única razão porque fazem estas coisas com rima é para as
bruxas se lembrarem delas. É a intenção das palavras mais do que as palavras em
si que faz o serviço — ele voltou ao livro. — Dá-me um instante e eu traduzo isso.
Acho que até consigo fazê-lo rimar. O latim é muito dubio na sua interpretação.
— Está bem.
— "Pars tibi, toum mihi. Vinctus vinculis, prece factis — Nick ergueu os olhos.
— Hum... "Um pouco para ti, mas todo para mim. Preso por laços, por pedido
tornado assim".
Eu fiz eco das palavras dele, pensando que as bruxas das linhas Ley tinham
uma considerável falta de imaginação.
— "Mentem tegens, malum ferens. Semper servus, dum duret mundus". Hum, eu
diria: "Proteção chamada, possuidor de valor profundo. Preso antes do renascer
do mundo".
— Oh, Nick — queixei-me —, tem certeza que está traduzindo isso bem? É
terrível.
Ele suspirou.
Capitulo 16
— Nick! — gritei, recuando.
Minhas costas bateram contra o balcão. Eu tinha que correr. Eu tinha que
sair dali! Ele ia me matar! Desesperada para colocar o balcão entre nós, bati no
caldeirão de feitiços.
— Rachel! — exclamou Nick. — Pegue o peixe! Ele tem sua aura. Pode
quebrar o círculo!
— Rachel!
— Na água salgada não! — avisei quando Nick ergueu o peixe sobre minha
tigela de dissolução. — Aqui.
Segurei a respiração quando ele foi tomado por uma neblina de eternidade.
As roupas do demônio assumiram a forma de uma roupa moderna que eu
esperaria encontrar num executivo que fizesse parte dos Fortune 20.
— Isso é tão... Comum — disse ele, com seu reverberante sotaque britânico,
perfeito para o palco. — Mas eu não gostaria que dissessem que não sou amável.
Odiava o fato de o respeito que Nick sentia por eles não chegar sequer perto
do terror. Eles o fascinavam e eu temia que a sua procura de conhecimento o
levasse um dia a tomar uma decisão tola, deixando o tigre voltar-se e comê-lo.
medo das pessoas mais belas, Rachel Mariana Morgan. Gosto bastante de ser esta
— lambendo os lábios de forma sugestiva, pousou o olhar no meu pescoço,
demorando-se no local da cicatriz que me fez, enquanto eu jazia no chão do porão
da biblioteca da universidade, perdida numa névoa de êxtase induzida pela saliva
de vampiro, enquanto ele me matava.
A memória acelerou meu coração. Ergui a mão para tapar o pescoço. O peso
do seu olhar fixo fazia pressão sobre minha cicatriz, fazendo-a latejar.
— Já não tem medo desse — disse ele, a voz alterando-se, ficando mais
baixa e carregada de sotaque britânico. — Que pena. Gosto tanto de ser jovem e
cheio de testosterona. Mas eu sei o que te assusta. Manteremos em segredo, hã?
Não há necessidade de Nick Sparagmos ficar sabendo. Não ainda. Ele pode querer
comprar a informação.
O demônio não disse nada, olhando para a cozinha com uma curiosidade
indisfarçável. Revelando uma graça predatória, começou a contornar a sala
iluminada, as brilhantes botas de fivela silenciosas sobre o linóleo.
— Sei que tudo isso é novo para vocês — meditou em voz alta, enquanto
tocava no copo de brandy onde se encontrava o Sr. Peixe — pousado no parapeito
da janela e o peixe tremia. — Mas, em geral, o invocador está fora do círculo e o
invocado dentro — girou sobre os calcanhares lançando pelo ar as longas caudas
do casaco. — Vou deixar passar essa, Rachel Mariana Morgan. Porque me fez rir.
Já não ria desde a Viragem. Todos nós rimos disso.
249
Minha pulsação tinha abrandado, mas meus joelhos ainda estavam moles.
Queria me sentar, mas não me atrevi.
— Oh, sim, eu gosto desse acordo. Estar do lado de fora é muito mais
interessante. Acho que também vou responder a essa pergunta de graça.
— É m e l h o r q u e t e n h a a l g o q u e va l h a a p e n a o u vi r o u vo u f i c a r
francamente irritado.
O r o s t o d o d e m ô n i o p e r d e u s u a e xp r e s s ã o d i ve r t i d a e , d e r o s t o
mortalmente sério, virou sua atenção para sua linha de junção com o solo. Agarrei
o braço de Nick, enquanto ele murmurava qualquer coisa sobre estraçalhar os
invocadores membro a membro, chás interrompidos e a desconsideração de
arrancar alguém do seu jantar ou da frente da televisão na quarta-feira à noite. Um
choque de adrenalina percorreu meu corpo, quando o demônio se dissolveu numa
250
— Oh, que bom! Ele está de volta — murmurou Nick quando o demônio
reapareceu no exterior do círculo e eu reprimi uma gargalhada, sabendo que
soaria histérica. Que tipo de vida eu estava levando para que ver um demônio
fosse uma coisa boa?
O de m ô n i o er g u eu - s e à no s s a f r e n t e , pe g a nd o n u m a pi t a d a d o q ue ,
provavelmente não era tabaco, de um pequeno bolso no colete e cheirando o pó
preto com ambas as narinas.
— Só co n h e ço s u a re p u t a ç ã o . El e n ã o p e rt e n ci a a o me u ra m o d e
especialidade quando estava vivo. Agora que está morto, sinto-me interessado.
Minha especialidade são os segredos. Tal como Nick Sparagmos, ao que parece —
guardou a lata e puxou a cadeira de Ivy, que se encontrava em frente ao
computador. — Agora — disse ele, despreocupadamente, enquanto abanava o
mouse e entrava na Internet —, por muito divertido que isso seja, podemos
avançar? Seu círculo é vedado. Não vou te matar agora — os olhos vermelhos
tornaram-se marotos. — Mais tarde, talvez.
Segui seu olhar para o relógio sobre a pia. Era uma e quarenta. Esperei que
Ivy não chegasse, entretanto. Um vampiro morto-vivo era capaz de sobreviver ao
ataque de um demônio, mas um vivo teria tantas chances quanto eu. Inspirei
251
— Ele sabe seu apelido — disse eu, voltando-me para Nick. — Por que ele
sabe seu apelido?
— Hum...
— Por que ele sabe seu apelido? — exigi saber, as mãos nos quadris. Eu
estava farta de ter medo e Nick era um escape conveniente. — Tem chamado ele,
nãoé?
— Fala como se ele fosse uma pessoa, é uma coisa — disse eu. — E eu não
vou deixar que coloque a culpa no demônio.
252
— Nick! — gemi. — Sabe o que acontece quando fica com muitas linhas
dessas?
— Ele pode te puxar para a eternidade! — gritei, querendo dar-lhe uma boa
tapa.
— Rachel — disse ele. — Não vai acontecer nada. Eu tenho tido cuidado.
— Isso não vai acontecer — disse Nick, para me acalmar. — Posso chamá-lo
sempre que quiser, como se entregasse minha alma. E, ao fim de três anos, estou
livre, sem ligações ou compromissos.
— Parece um negócio bom demais, não está prestando atenção nas letras
miudinhas.
253
Ainda assim ele sorria. O rosto mostrando confiança em vez do terror que
devia estar sentindo.
Fechei os olhos.
— Nick. Sabia que sua aura tem contornos negros? No olho da minha
mente, você parece um fantasma.
Chocada, não fiz nada quando seus braços me envolveram. Minha aura
estava tão manchada como a dele? Eu não fiz nada a não ser permitir que ele me
salvasse a vida.
Contudo, ele não me enganava. Aquela coisa não podia ser influenciada por
pena, culpa ou remorso. Se tivesse encontrado uma forma de atravessar meu
c ír c u l o , te r i a n o s m a t a d o , a m b o s , p e l a a u d á c i a d e te r m o s o c h a m a d o d a
eternidade... Tivesse sido intencional ou não.
— Ainda que Átila pudesse ter ido mais longe se tivesse sido capaz de ver
além das aplicações militares — continuou, olhando para as unhas. — E é difícil
ser melhor que Leonardo di Ser Piero da Vinci, no que diz respeito à esperteza
sem rodeios.
Era mais do que óbvio que, se Nick tivesse o demônio às suas ordens
durante três anos, concordaria com qualquer coisa para mantê-lo ali. Que era
precisamente aquilo com que o demônio estava contando.
254
— O h , a c h a qu e é as s i m t ã o i m p o r t a n t e? — t r o ç o u . M a s s e u s o l h o s
seguiram a foto enquanto a colocava no balcão atrás de mim.
— Eu sei quem são os dois homens — disse o demônio, usando minha voz.
— Um é o seu pai, o outro é o pai de Trenton Aloysius Kalamack. Mas o ônibus do
255
Ele sabia o nome completo de Trent? Então fora o mesmo demônio que nos
atacou. Alguém quis matar aos dois. Por um instante, senti-me tentada a
perguntar ao demônio quem foi, depois deixei cair o olhar. Podia descobri-lo
sozinha e não me custaria a alma.
— Ficamos quites por ter me levado através das linhas Ley e parte para
sempre — disse eu e o demônio riu. Perguntei-me se meus dentes eram,
realmente, assim tão grandes quando abria a boca.
— Oh, é uma querida — disse ele, com minha voz e a pronúncia dele. —
Ver essa fotografia é suficiente para comprar um nome de invocação, talvez, mas
não para te absolver da sua dívida, preciso de algo mais. Algo que poderia
significar tua morte, caso fosse sussurrado aos ouvidos certos.
A ideia de que poderia me ver livre dele para sempre encheu-me de uma
ousadia considerável.
O demônio riu.
Engoli em seco. Meu segredo era bom — e tudo o que eu queria era me ver
livre dele —, mas ele não acreditaria no seu valor a menos que eu lhe contasse
primeiro.
256
Duas da manhã — pensei, olhando de relance para o relógio. Por que isso era
importante?
— O quê?
O relógio por cima da pia dizia que faltavam dois minutos para as duas. Eu
não tinha certeza que estivesse muito certo.
Nick mexia frenético no seu relógio, os dedos longos puxando pela parte de
trás.
— Tem uma moeda? Preciso de uma moeda para abrir a parte de trás — os
olhos dele estavam assustados, quando se fixaram no relógio por cima da pia.
Enfiou a mão no bolso, procurando.
— Vê! — exclamei, fazendo cair o martelo, uma e outra vez. — Vê como ele
é esperto? — a adrenalina tornava meus movimentos bruscos, enquanto agitava o
martelo de madeira na direção dele. — Sabia que você tinha esse relógio. Só estava
à espera! Foi por isso que concordou em dar-me uma invocação segura!
— Pensei que ele queria me ensinar — sussurrou Nick — Todas essas vezes,
ele só estava tentando que eu o mantivesse comigo até o círculo ser quebrado.
Ele saltou quando toquei seu ombro, fitando-me com olhos assustados.
Finalmente estava assustado.
Capitulo 17
Eu estava sentada no banco alto do laboratório batendo com o tornozelo
contra a perna do banco.
— Durante quanto tempo acha que ela pode arrastar isso? — perguntei a
Janine, enquanto apontava para Dra. Anders com a cabeça. A mulher estava junto à
mesa, em frente ao quadro negro, testando um dos alunos.
Quase todos tinham gatos. Um tinha um furão. Eu pensei que isso era legal e o
garoto a quem pertencia disse que eram os melhores familiares.
Bob e eu éramos os únicos dois que ainda não tinham sido avaliados e a sala
estava quase vazia, mas Janine estava à espera de Paula, a aluna com a Dra.
Anders. Nervosa, puxei o recipiente onde estava Bob para mais perto e olhei de
relance pela janela, para as luzes que começavam a se acender no parque de
estacionamento.
Tinha a esperança de ver Ivy essa noite. Ainda não tínhamos nos cruzado
desde que Nick a pôs para dormir. Eu sabia que ela tinha estado na igreja. Nessa
tarde havia café na cafeteira e as mensagens tinham sido apagadas. Ela tinha se
levantado e saiu antes de eu acordar. Isso não parecia nada com ela, mas sabia que
não devia forçar uma conversa antes de ela estar pronta.
— Obrigada, mas não. Já fiz planos com meu namorado — Nick estava
trabalhando no edifício ao lado e como saía mais ou menos na mesma hora em que
minha aula devia terminar, íamos ao Micky-d's — ele para jantar e eu para
almoçar.
— Trás ele com você — disse Janine, o risco espesso de delineador azul
chocando com sua aparência, em todo o resto de bom gosto. — Ter um cara numa
mesa de garotas atrai sempre os caras mais gostosos e solteiros para a mesa.
Olhei para ela de lado, enquanto Paula deixava a Dra. Anders e se juntava a
nós.
262
Nossa conversa foi interrompida quando a Dra. Anders tossiu para limpar a
garganta. Janine agarrou a mala e deslizou do banco alto. Dirigindo às duas
mulheres um sorriso fraco, tirei o recipiente de manteiga de amendoim onde
e s t a v a B o b d e c i m a d e u m d o s b a n c o s e a v a n c e i p a r a fr e n te d a s a l a . Os
pentagramas de Nick estavam enfiados debaixo do meu braço e a Dra. Anders não
levantou os olhos enquanto eu deslizava o recipiente para o espaço vazio sobre
sua mesa.
Queria acabar com aquilo e sair dali. Nick ia levar-me ao DFI depois de
jantar para que eu pudesse falar com Sara Jane. Glenn tinha lhe pedido que fosse
lá para obter algumas informações sobre os padrões cotidianos de Dan e eu queria
perguntar sobre o paradeiro de Trent nos últimos dias. Glenn não estava muito
contente com o caminho que eu escolhi seguir na investigação, mas aquela missão
também era minha, porra.
apenas uma forma indireta de Trent me pegar. Uma coisa era certa, Dra. Anders
não era o caçador de bruxas. Ela era má, mas não era uma assassina.
— Pelo menos conhece os seus limites — disse ela. — Sendo uma bruxa de
terra, seria difícil controlar uma quantidade de eternidade suficiente para unir
uma ratazana a si, quanto mais o gato que, decerto, desejava.
Mantive a respiração controlada. Sabia que ela não teria se atrevido a dizer
aquilo se estivesse mais alguém na sala.
— Foi muita — meu humor alterou-se, ficando mais nervoso. Nick tinha
olhado para minha aura antes de sair na noite anterior, anunciando que estava
muito fina. Iria se repor lentamente, entretanto, sentia-me vulnerável.
A Dra. Anders manteve para si a sua opinião sobre a minha óbvia agitação.
Com o olhar ficando distante, mergulhou os dedos na água de Bob. A pele na parte
de trás do meu pescoço ficou tensa e pareceu-me que meu cabelo esvoaçou no
vento que soprava sempre na eternidade. Observei, fascinada, enquanto uma
mancha azul saía das suas mãos e envolvia Bob. Era poder das linhas Ley, tendo
passado de vermelho para azul, refletindo a cor dominante da aura da mulher.
Era pouco provável que a Dra. Anders estivesse usando a linha Ley da
universidade. O poder devia ter sido recolhido mais cedo e armazenado; permitia
realizar os feitiços mais depressa. Eu estava disposta a apostar que o fato de ter
uma esfera de eternidade no estômago era o que a fazia tão amarga. A névoa azul
ao redor de Bob desvaneceu-se, enquanto a Dra. Anders retirava os dedos da água.
Chocada, não podia fazer mais nada senão olhar fixamente para ela.
A Dra. Anders limpou os dedos num lenço de papel seco e atirou-o para a
lixeira, por baixo da mesa.
— Este peixe não está ligado a você. Se estivesse, a força das linhas Ley com
que o cobri teria assumido a cor da sua aura — o olhar dela tornou-se indistinto,
como se estivesse olhando através de mim, depois voltou a focá-lo. — Sua aura é
de um dourado enjoativo. O que andou fazendo, senhorita Morgan, para manchá-
lo com uma tão espessa névoa vermelha e preta?
Não era uma pergunta. Ergui o ombro esquerdo e deixei-o cair, num
encolher de ombros. O que é que eu podia dizer?
— Espelho de adivinhação?
E n t r e i e m p â n i c o , s e n ta d a à m e s a d a q u e l a m u l h e r te r r ív e l . E s t a v
a
assustadíssima e não me importava que ela soubesse. Algaliarept tinha minha
aura.
— Eu ia refazê-los mais tarde — disse eu. — Não tinha tempo para fazer
duas semanas de trabalho e apanhar um assassino ao mesmo tempo.
267
— Eu sei.
— Não gosto de linhas Ley, Dra. Anders. Onde está o resto da minha
aura?
— Hum, é com Rachel que preciso falar. Lamento muito por interromper
assim. Trabalho no edifício ao lado — virou-se para olhar para o corredor e depois
para o interior da sala. — Queria ver se ela estava bem. E saber quanto tempo
ainda irá demorar?
Um repente do que parecia ser horror passou pelo rosto da Dra. Anders. Ela
olhou de mim para Nick, depois se levantou. Batendo os calcanhares, puxou-o
para ela e fechou a porta atrás dele.
Nick tocou meu ombro num gesto de simpatia e eu desejei nunca o ter
envolvido naquilo.
Eu puxei o cabelo para trás, feliz por ela já não estar falando comigo num
tom ríspido.
— De circunferência?
— De diâmetro.
— No meio de transferência?
— Depois entornei o recipiente onde estava Bob. A minha aura estava sobre ele. Eu
tive medo que o círculo pudesse ser quebrado caso minha aura lhe tocasse.
— É por isso que me falta tanta aura? — perguntei. — Joguei fora com o
papel de cozinha?
Fiquei de queixo caído. Virei-me na cadeira e ergui os olhos para Nick. Sua
mão caiu do meu ombro e ele deu um passo atrás.
— O quê?! — exclamei.
mais poderosa a pessoa, mais poder o demônio consegue usar através dela. É por
isso que estão sempre tentando educar os tolos em magia negra. Os ensinam
apoderar-se das suas almas, depois os tornam seus familiares. Ao misturar a
magia de terra com a magia das linhas Ley, usou magia demoníaca.
— Foi um acidente.
— Como? — procurei pela mão dele. Estava fria na minha e ele apertou-me
de leve os dedos.
— Porque ele transporta com ele parte da sua aura. As bruxas das linhas
Ley dão aos seus familiares parte da sua aura para que eles possam funcionar
como uma âncora quando elas usam as linhas Ley. Se algo correr mal, o familiar é
puxado para a eternidade, não a bruxa. Mas o mais importante é que os familiares
impedem que a bruxa enlouqueça por canalizar muita força das linhas Ley. As
bruxas das linhas Ley não acumulam em si mesmas a energia que retiram de uma
linha. Acumulam-na nos seus familiares. Simon, o meu papagaio, acumula-a para
mim. E eu vou buscá-la à medida que vou precisando. Quando estamos juntos,
sou mais forte. Quando ele está doente, minhas capacidades diminuem. Se ele
estiver mais perto de uma linha Ley do que eu, posso chegar até ela através dele.
Se as coisas correrem mal, ele morrerá, não eu.
— É por isso que usamos animais como familiares — disse ela friamente. —
Não pessoas.
— Não sei como prender força das linhas Ley — admiti. Eu tinha feito do
Nick o meu familiar?
Abanei a cabeça.
— Conhecia meu pai? — perguntei. Por que não? Todo mundo parecia
conhecer.
Eu fiz de Nick meu familiar? Eu tinha usado magia demoníaca para prendê-
lo a mim? Tonta, pus a cabeça entre os joelhos, calculando que seria ligeiramente
mais digno do que desmaiar e cair no chão. Senti a mão de Nick nas minhas costas
e reprimi uma gargalhada histérica. O que eu tinha feito? A voz de Nick ergueu-se
na escuridão, enquanto eu fechava os olhos e lutava para não vomitar.
— Preciso ver esse livro — disse ela. — É provável que haja algo nele sobre
como libertar uma pessoa. Os demônios são famosos por agarrarem algo melhor
quando lhes aparece pela frente. Gostaria de saber como é que um livro de magia
demoníaca foi parar no seu sótão, para começar?
A Dra. Anders tinha perdido todo seu torpor. Agora parecia simplesmente
cansada.
274
— Não posso fazer nada esta noite — disse ela, olhando para Nick de
r e l a n ce . — Ma s d e i xe q u e l h e d ê o m e u e n d e r e ço — p e g o u u m a ca n e t a ,
escrevendo na folha dobrada onde tinha feito a avaliação do meu familiar. — Pode
deixar o livro com o guarda no portão e o verei durante o fim de semana.
— Estou ocupada esta noite. Vou fazer uma apresentação amanhã e tenho
de preparar uma declaração de sucessos e fracassos atualizada.
— Sr. Kalamack.
— Não seja tola, senhorita Morgan. O Sr. Kalamack não é mais assassino do
que eu.
— Falei com ele na primavera passada depois do fim do curso e ainda estou
viva. Ele está interessado em falar sobre minha investigação. Se conseguir chamar
sua atenção, ele me financiará e eu poderei fazer aquilo que desejo de verdade.
Estou trabalhando há seis anos nisso e não vou perder a oportunidade de arranjar
um benfeitor por causa de uma coincidência tola.
— Dra. Anders, por favor — disse, olhando de relance para Nick. Eu sei que
pensa que sou uma cabeça de vento. Mas não faça isso. Eu vi os relatórios das
pessoas que foram mortas. Todos morreram aterrorizados. E Trent falou com
todos eles.
— Ah, Rachel? — interrompeu Nick. — Não sabe disso com toda certeza.
— Não! — protestei, vendo que ela estava a pôr um fim à nossa conversa.
— Ele vai matá-la, sem lhe dedicar mais consideração do que ao ato de matar uma
mosca — meu maxilar rangeu, quando ela fez um gesto na direção da porta. —
Então me deixe acompanhá-la — disse, enquanto me levantava. — Já acompanhei
humanos em visita a Hollows. Sei como ficar calada, limitando-me a protegê-la.
— Sou doutorada em magia das linhas Ley. Acha que pode me proteger
melhor do que eu posso proteger a mim mesma?
— Tem razão — disse eu, pensando que seria mais fácil segui-la sem que
ela soubesse. — Pode dizer ao menos quando vai encontrar com ele? Sentiria-me
melhor se pudesse ligar na hora em que deverá chegar em casa.
Um copo de água custava três dólares e uma mísera salada doze... Ou pelo
menos foi o que ouvi dizer. Também não me parecia que tivesse um vestido
suficientemente bom. Mas não ia permitir que ela se encontrasse com Trent sem
proteção.
— Sim. Obrigada.
Capitulo 18
O sol do início da tarde quase já não incidia sobre a cozinha, uma última
faixa deixava sua marca sobre a pia e o balcão. Estava sentada à mesa antiga de
Ivy, folheando os catálogos dela e terminando de fazer o café para tomarmos o
café da manhã. Só estava acordada há cerca de uma hora, segurando minha caneca
e esperando por Ivy. Tinha feito uma cafeteira cheia, esperando atraí-la a falar
comigo. Ela ainda não estava pronta, tendo fugido de mim usando como desculpa o
fato de ter de fazer uma investigação para seu mais recente trabalho. Não
parecia possível que desse tanta importância ao incidente. Já tivera um deslize
antes e tínhamos superado.
Edden tinha ficado encantado quando eu lhe disse que ia seguir a mulher...
Até ter admitido, tolamente, que ela se ia encontrar com Trent. Quase tínhamos
trocado golpes por causa disso, deixando chocados todos os agentes do piso. A
essa altura não queria saber se Edden ia me atirar para na prisão. Teria de esperar
que eu fizesse qualquer coisa e, por essa altura, já teria aquilo de que precisava.
277
Glenn também não estava muito contente comigo. Tinha usado a cartada do
menino do papai para que ele mantivesse a boca fechada e fosse comigo nessa
noite. Não queria saber. Trent estava matando pessoas.
Inspirando, puxei o livro para mais perto. Avancei para o final, para os
apêndices parando no encantamento para prender um familiar. Era inteiramente
ritualista, com notas referindo técnicas que eu desconhecia. O encantamento
estava em inglês e não envolvia a utilização de poções ou plantas. Era tão estranho
como geometria e, eu não gostava de me sentir estúpida.
Era suposto usar-se a energia acumulada das linhas Ley para manipular
objetos pequenos e recorrer diretamente a uma linha se se tratasse de objetos de
278
grande massa ou que se movessem muito depressa. A única coisa física de que eu
necessitava era de um objeto que servisse de ponto focal.
— Acabei de regressar da casa da sua mãe. Ela é ótima, sabe? — voou para
o balcão da ilha, aterrando nele de forma a ficar à altura dos meus olhos. — Jax
está se saindo bem. Se a sua mãe achar legal, vou deixar que ele tente fazer um
jardim suficientemente grande para sustentá-lo.
— Não.
Minha frustração era óbvia na palavra curta. Jenks hesitou, depois com um
bater das asas, voou em arco até aterrissar no meu ombro.
— Lamento.
— Eu também.
Jenks riu, o vento das suas asas fazendo meu cabelo voar ao redor
do meu rosto.
Jenks voou para debaixo da mesa. Não confiando nele, espreitei para
ver o
que ele estava fazendo.
— Pensei que não gostava das linhas Ley — disse ele, esvoaçando
na
vertical e voltando a descer, aterrando no local onde esteve antes. — Em
especial
agora que não pode usá-la sem pôr Nick em
perigo.
— N ã o se i — d i s se e u , d e se j a n d o n ã o t e r l h e co n t a d o q u e t i n h a ,
acidentalmente, tornado Nick meu familiar. — Mas olha, isso é uma coisa
básica.
— Vai
experimentar?
endo — Jenks virou-se de lado para poder me ver, bem como ao texto
—impresso. — Diz aqui que não precisa usar a
N
ão —
re
sp on di , ra
pi
da m
en te. —Ni
ck va
i
fic ar
be m
se pu xa ra
en er gi a
dire tam ent
e
das linh as.
Ne m
seq uer
ficar
á
sab
280
energia acumulada, que pode retirá-la diretamente da linha. Vê? Está aqui mesmo,
preto no branco.
— Si-i-i-im — arrisquei.
Semicerrei os olhos.
Debruçando-me sobre o livro, atirei o cabelo para um dos lados, para que
ele também pudesse ver.
— Quer experimentar?
— Sim.
281
Com a cabeça inclinada sobre o livro, acenei. A energia fluía através de mim
mais depressa do que antes, equilibrando rapidamente as forças. Era como se as
anteriores tentativas tivessem aberto os canais. Preocupada com a possibilidade de
estar usando muita energia, tentei empurrar um pouco através do meu corpo em
direção aos pés.
— Que tal isso? — perguntou Jenks, voando para o meu estoque de bolas
explosivas cheias de água. A esfera vermelha era tão grande como a cabeça dele e
claramente pesada, mas ele conseguiu segurá-la sem problemas.
Pensando que aquilo era mais fácil do que moer plantas e ferver água, disse o
encantamento e desenhei no ar o arco de uma figura usando uma das mãos,
imaginando que aquilo era como escrever meu nome com foguetes para bolos no 4
de Julho. Disse as últimas palavras enquanto Jenks atirava a bola ao ar.
— Uou! — gritei, quando uma onda de força das linhas Ley me queimou a
mão esquerda. Olhei espantada para Jenks, enquanto ele ria. — O que eu fiz de
errado?
Ele esvoaçou para mais perto com a bola vermelha presa debaixo do braço,
tendo a apanhado quando ela voltou a descer na sua direção.
u s a va m e n o s , c o mo o l i vr o i n d i c a va . S e n t i n d o s u a f r i a m a c i e z , d i s s e o
encantamento e desenhei a figura no ar, com a mão direita.
Jenks atirou uma segunda bola com um assobio das asas. Sobressaltada,
soltei uma onda de poder. Desta vez funcionou. Reprimi um gritinho quando a
energia das linhas Ley me percorreu a mão, seguindo minha atenção diretamente
para a bola. Acertou nela, lançando-a contra a parede e deixando uma mancha
molhada.
Desta vez, foi mais fácil. Descobri que conseguia dizer o encantamento e
fazer o gesto em simultâneo, segurando a energia das linhas Ley com a força de
vontade até querer libertá-la. Com isso advinha uma grande dose de controle e,
em breve, já não lhes estava acertando com tanta força que arrebentavam contra a
parede. Minha pontaria também estava ficando melhor e a pia estava repleta com
as bolas que eu atirava contra a rede. O Sr. Peixe, sobre o parapeito, não estava
contente.
Olhei para trás de mim, para a mancha escura na parede amarela, depois
para eles. Fiquei de boca aberta. No instante em que afastei os olhos, todos eles
tinham agarrado bolas explosivas.
283
— Jenks! — disse eu, rindo, enquanto conseguia desviar uma das bolas. As
três em que eu não acertei rolaram inofensivas pelo chão. O pixy menor apanhou-
as do linóleo e atirou-as para cima e as irmãs apanharam-nas. — Quatro contra um
não é justo! — gritei, quando eles voltaram a fazer pontaria.
— Olá, Nick — fiz uma pausa para desenhar com os lábios o encantamento.
Segurei a energia até Jenks lançar a bola na minha direção. Estava ficando melhor,
quase acertando ele com a bola desviada. — Jenks. Pára — protestei. — Estou no
telefone.
Ele sorriu, depois saiu correndo. Deixei-me cair sobre uma das almofadas
de Ivy que combinavam com as cadeiras de veludo, sabendo que ele não se
arriscaria a molhá-las ou Ivy iria atrás dele.
— Hum, talvez — disse ele. — Está puxando energia das linhas Ley?
Fiz um gesto a Jenks para que parasse quando ele entrou rompendo à sala.
Jenks aterrou numa moldura. Eu tinha certeza de que ele era capaz de ouvir
Nick, embora o pixy estivesse do outro lado da divisão.
— Não — disse ele, um toque pequeno de riso na sua voz. — Creio que
seria capaz de perceber. Mas é estranho. Estava aqui sentado lendo, e, de repente,
parecia que estava bem aqui. A melhor forma de descrevê-lo é quando você está
284
Depois de ter cancelado minha ida ao DFI porque estava com os nervos
mais emaranhados que o meu cabelo, Nick levara-me para casa. Pensei que ele
tinha se oferecido para levar o livro devido à minha recente e saudável fobia,
literalmente maldita. Obviamente, Nick tinha outros planos e não fora longe.
Vou chamá-lo. Por favor, não me obrigue a fazer isso nas suas costas. Sentiria-me
melhor se alguém soubesse.
— Por quê? Para que possa dizer à sua mãe o que te matou? — disse, irada,
depois me controlei. Fechando os olhos, apertei a bola vermelha entre os dedos.
Ele permanecia em silêncio, esperando. Odiava o fato de não ter o direito de
impedi-lo. Mesmo enquanto sua namorada. Invocar demônios não era ilegal. Só
era muito, muito idiota. — Promete que me ligará quando tiver terminado? —
perguntei, sentindo um tremor no estômago. — Estou acordada até cerca das
cinco.
Se sobreviverer.
— Vocês dois vão acabar como dois borrões escuros em círculos de linhas
Ley — disse ele e eu atirei-lhe a bola explosiva que tinha na mão. Ele apanhou-a
com uma mão, recuando alguns metros antes de conseguir parar o movimento.
Atirou-a para mim e eu desviei-me. A bola bateu no cadeirão de Ivy sem
arrebentar-se. Grata por estas pequenas bênçãos, levantei-me e regressei à cozinha.
Eu gritei perante a alegre ferocidade dos filhos dele, que voavam como um
enxame na minha direção. Rindo com os meus protestos, desviei algumas bolas
vermelhas. Aquelas que falhavam, acertavam-me com pequenos baques.
Arquejando para respirar, lancei-me rebolando para debaixo da mesa. Eles
seguiram-me, bombardeando-me.
— Uau! — bufei, ainda rindo enquanto passava a mão por baixo de um dos
olhos.
287
Não era de admirar que as fadas assassinas que tinham sido enviadas para
me matar, no ano anterior, não tivessem tido a menor oportunidade. Os filhos de
Jenks eram espertos, rápidos... E agressivos.
— Nick — disse de imediato, antes que ele conseguisse dizer o que quer
que fosse. — Desculpa. Os filhos de Jenks me encurralaram debaixo da mesa da
cozinha e estavam atirando bolas explosivas contra mim. Deus me proteja, mas era
divertido. Agora estão no jardim, traçando anéis ao redor do freixo e a entoar uma
canção sobre aço frio.
— Rachel?
— O que foi? — perguntei, olhando para as árvores através das janelas que
ficavam à altura do meu ombro. As manchas de água que me cobriam pareciam
subitamente geladas e envolvi o corpo com um dos braços.
— Como? — perguntei, não acreditando que Edden tivesse cedido. Não que
esteja me queixando!
Capitulo 19
Meu pé tremia, enquanto eu me erguia impaciente ao lado de uma pilha de
manuais e copos de papel vazios pousados no parapeito da guarita do guarda de
Trent. Jenks estava pousado no meu brinco, murmurando soturnamente enquanto
observava Quen carregando o botão do telefone. Eu só vi Quen uma vez, talvez
duas. Da primeira estava vestido de jardineiro, tendo conseguido capturar Jenks
numa bola de vidro. Tinha uma crescente suspeita de que Quen era o terceiro
cavaleiro que tentou me apanhar, perseguindo-me a cavalo na noite em que roubei
o disco de Trent — e que usava para chantageá-lo. Tratava-se de uma sensação
que se tornara ainda mais forte quando Jenks me disse que Quen tinha o mesmo
cheiro de Trent e Jonathan.
Quen estendeu uma mão à minha frente para agarrar numa caneta e eu
saltei para trás, não querendo que ele me tocasse. Sem largar o telefone sorriu
cuidadosamente, revelando dentes extremamente brancos e direitos. Este sabia do
que eu era capaz — pensei. Este não me ia subestimar como Jonathan fazia
continuamente. E, embora fosse agradável ser levada a sério ao menos uma vez,
desejei que Quen fosse tão egoísta e chauvinista como Jonathan.
Trent dissera-me, certa vez, que Quen estava disposto a aceitar-me como
aluna, isso depois de o chefe de segurança ter conseguido ultrapassar o desejo de
me matar por ter conseguido infiltrar-me no complexo de Kalamack. Perguntei-me
se teria sobrevivido, caso tivesse aceitado tê-lo como professor.
289
Quen parecia ter a mesma idade que meu pai teria se ainda fosse vivo.
Tinha cabelo muito escuro, com caracóis que lhe caíam sobre as orelhas, olhos
verdes que pareciam não parar de me observar e a graça de um bailarino, que eu
sabia ter a sua origem numa vida inteira de prática de artes marciais. Envergando
um uniforme de segurança preto, sem qualquer insígnia, parecia pertencer à noite.
Era pouco mais alto do que eu de saltos e a força do seu corpo ligeiramente
enrugado deixava-me nervosa. A única fraqueza que identifiquei nele foi um
ligeiro coxear. E, ao contrário de todos os outros que se encontravam na sala, além
de mim, não tinha nenhuma arma, que eu visse.
O capitão Edden erguia-se ao meu lado, com o seu aspecto atarracado, mas
capaz — usava de calça cáqui e camisa branca. Glenn envergava outro dos seus
vestuários pretos, tentando parecer controlado apesar do seu óbvio nervosismo.
Edden também parecia preocupado com a possibilidade de ser publicamente
envergonhado caso não encontrássemos nada.
Ajustei a bolsa — puxando a alça mais para cima sobre o ombro — e fiz
uma careta. Estava repleta de amuletos que me ajudariam a encontrar a Dra.
Anders, morta ou viva. Tinha obrigado Glenn a esperar enquanto os carregava,
usando o papel onde ela escrevera o endereço como objeto focal. Se houvesse nem
que fosse um pedaço dela que coubesse numa caixa de sapatos, os amuletos
brilhariam vermelhos. Ia aproveitar a oportunidade para ver se ele usava um
amuleto para disfarçar sua aparência, enquanto falava com ele. Ninguém tinha
assim tão bom aspecto sem ajuda.
— Oh, sim — murmurou o pixy. — Ele está falando com o Jonathan. Quen
está dizendo que está na guarita com você e com o Edden e, que trazem um
mandado para fazer uma busca à propriedade e que é melhor que ele vá acordá-lo.
— Por que está sendo tão simpático? — murmurei, enquanto Quen nos
guiava através das pesadas portas de vidro e metal, de novo para o sol forte.
branco lançava raios de luz do Sol que se acumulavam contra as árvores como um
nascer do Sol de oeste. Os grandes pilares e os degraus baixos e compridos
criavam um acesso convidativo. Rodeado por árvores e jardins, o edifício de
escritórios criava uma imagem de permanência que os edifícios da cidade não
tinham. Vários edifícios menores germinavam do principal, ligados por passagens
cobertas. Os famosos jardins murados de Trent ocupavam grande parte da parte
lateral e dos fundos. Os hectares de plantas eram bem cuidados, rodeados por
relvados e, depois, a sua floresta fantasmagoricamente planejada.
Por uma vez, gostaria de poder subir aqueles degraus sem ter os olhos
arrogantes dele sobre mim.
Meus lábios apertaram-se e, de súbito, senti-me feliz por ter vestido meu
melhor terno apesar do calor fora de estação. A roupa de Jonathan era requintada.
Tinha de ter sido feito por medida, pois ele era muito alto para poder arranjar
qualquer coisa num mostruário. O cabelo escuro começava a ficar branco junto às
têmporas e as rugas ao redor dos olhos eram profundas, como se tivessem sido
f e i t a s c o m á c i d o e m m e t a l . E l e e ra u m a c r i a n ça d u r a n t e a V i r a g e m e ,
aparentemente, seu medo deixara para sempre uma marca no seu corpo magro
quase malnutrido.
perpétuo franzir de sobrancelha a não ser à custa dos outros. Tinha sorrido
durante os três dias em que eu estivera presa numa gaiola no gabinete de Trent,
sob a forma de um visom — os seus vívidos olhos azuis brilhantes e ansiosos
enquanto me atormentavam.
Quen subiu rapidamente as escadas para passar à minha frente. Meu olho
começou a tremer, quando os dois homens aproximaram as cabeças. Viraram-se, o
sorriso profissional de Jonathan marcado por uma irritação profissional.
Boa.
Ele limitou-se a sussurrar, mas tanto Quen como Jonathan ficaram rígidos.
Fingi estar verificando a trança em que prendera o cabelo — ameaçando,
sutilmente, espancar Jenks —, depois pus as mãos atrás das costas para evitar ter
de apertar a mão de Jonathan. Não ia tocá-lo. A menos que fosse para lhe dar um
murro no estômago. Inferno, como sentia a falta das minhas algemas.
— Claro, vai — disse eu, pensando que ele seria capaz de vasculhar melhor o
jardim do que uma matilha de cães.
Edden chegou ao meu lado, seu olhar irritado dando lugar ao choque,
quando viu os meus óculos. Nervosa, toquei no chapéu e endireitei o casaco com
um puxão. Talvez devesse ter pedido um empréstimo a Ivy e optado pelos mais
bonitos. O som de água caindo sobre pedras emergia do gabinete de Trent e eu
entrei, logo atrás de Jonathan.
Trent levantou-se de trás da sua mesa quando eu entrei. Inspirei fundo para
lhe dirigir um cumprimento sarcástico, mas sincero. Queria dizer-lhe que ele tinha
matado a Dra. Anders. Queria dizer-lhe que era um cretino. Queria pôr-me à
frente dele e gritar que eu era melhor que ele e que ele nunca conseguiria me
quebrar. Que era um sacana manipulador e que eu ia acabar com ele... Mas não fiz
nada disso, chocada pela sua calma força interior. Aquele era o homem mais
composto que eu alguma vez conheci e fiquei em silêncio, enquanto os
pensamentos dele abandonavam visivelmente, outros assuntos, para se
concentrarem em mim. E não, ele não usava nenhum amuleto das linhas Ley para
lhe dar aquele aspecto. Era tudo dele.
manipulava o último botão. Na mão direita tinha um único anel e, como eu, não
usava relógio.
Trent devia ter apenas mais três anos do que eu — fazendo com que fosse
um dos solteirões mais ricos da face do planeta —, mas o terno fazia com que
parecesse mais velho. Ainda assim, a linha do maxilar bem definida, bem como as
faces macias e o nariz pequeno, faziam com que parecesse mais adequado à praia
do que a uma sala de administração.
Fiquei rígida enquanto ele me percorria com o olhar, parando por breves
instantes no anel que eu usava no mindinho e que ele me roubou e devolveu, para
provar que podia fazê-lo, pousando, por fim, no meu pescoço e na quase invisível
cicatriz do ataque do demônio.
— Senhorita Morgan, não sabia que podia trabalhar para o DFI — disse ele,
como forma de cumprimento, não fazendo qualquer movimento para me apertar a
mão.
— Sou consultora — disse eu, ignorando a forma como a sua voz líquida
me prendia a respiração. Tinha me esquecido da sua voz, toda ela âmbar e mel, se é
que a cor e o sabor podem descrever um som, ressonante e profundo, cada sílaba
clara e precisa e, no entanto, misturando-se como se fossem um líquido. Era
enfeitiçante, encontrando igual apenas na dos antigos vampiros. E incomodava-
me gostar dela.
— Sr. Kalamack — disse, recusando limpar a mão na saia. — Está com bom
aspecto.
Com o sorriso a repuxar os cantos da boca, Trent voltou sua atenção para
Edden. Enquanto os dois profissionais trocavam cumprimentos educados,
politicamente corretos e hipócritas, percorri o gabinete de Trent com os olhos. Sua
janela ainda mostrava uma imagem animada de uma das pastagens dos seus
potros. A luz artificial jorrava através da tela de vídeo, criando uma faixa quente
que brilhava sobre o carpete. No aquário — suficientemente grande para pertencer
a um jardim zoológico — encontrava-se um novo grupo de peixes pretos e brancos
e, o aquário tinha sido embutido na parede atrás da sua mesa. No local onde antes
se encontrava minha gaiola, estava agora uma laranjeira num vaso e a recordação
do cheiro da comida seca apertou-me o estômago. A câmera, num dos cantos do
teto, piscava sua pequena luz vermelha.
Jonathan entregou o mandado a Trent, que olhou para ele por breves
instantes, antes de devolvê-lo.
Lentamente, Trent olhou para Jonathan que fez o mais subtil encolher de
ombros que eu alguma vez vira. Lentamente, Trent recuou para a mesa,
entrelaçando os dedos das mãos compridas e bronzeadas pelo sol à frente do
corpo.
Meu coração deu um salto, quando Edden agarrou meu braço, em sinal de
aviso.
ao lado dela, parecendo assumir uma posição defensiva. Sentei-me na cadeira que
sobrara, sob o sol artificial, obrigando-me a encostar as costas ao encosto.
Tentando mostrar um ar despreocupado, pousei a bolsa no colo e procurei a
agulha que guardara no bolso do casaco. O picar da lâmina lançou um arrepio
através de mim. Levei o dedo sangrando ao interior da bolsa, procurando
cuidadosamente o amuleto. Agora vamos ver se Trent consegue mentir e safar-se.
O cabelo liso e leve de Trent agitava-se na brisa vinda dos condutores de ar.
Vendo meu olhar preso nele, passou a mão pela cabeça, dando um sinal de
irritação.
— Não, está tudo bem — disse Trent, unindo os dedos e inclinando-se para
frente para pousá-los sobre a mesa. — Se isso servir para diminuir a crença da
senhorita Morgan de que sou capaz de crimes tão monstruosos, terei todo o prazer
em revelar o tema da nossa conversa da noite passada — embora estivesse falando
com Edden, seu olhar não se afastou do meu.
— Foi o que tentou fazer comigo. Por que seria diferente com a Dra.
Anders?
O rosto de Edden ficou vermelho por trás dos seus pequenos óculos
redondos. Cerrei o maxilar, pronta para responder. Ele inspirou furioso, expirando
em seguida ao ouvir baterem à porta. Jonathan abriu, recuando quando Glenn
entrou, com uma ligeira inclinação da cabeça na direção de Trent em sinal de
cumprimento. Podia ver, na sua expressão fechada e furtiva, que a busca não
estava correndo bem.
Olhei de relance para Trent, vendo sua satisfação diminuir perante a súbita
expressão inquisitiva que eu sabia ter estampada no rosto. Trent ergueu um dedo
na direção de Jonathan, fazendo sinal ao homem alto para que ficasse em silêncio,
enquanto me fitava, claramente tentando descobrir em quê eu estava pensando.
Não conhecia o encantamento, mas Nick talvez o tivesse nos seus livros. E
se Trent tinha usado magia das linhas Ley para esconder seu rastro, teria de haver
uma linha suficientemente perto para ser usada. Interessante.
— Preciso fazer uma ligação — disse, ouvindo minha voz como se estivesse
fora da minha cabeça.
Trent parecia sem palavras. Era uma emoção que gostava de ver nele.
Podia ter ido às compras. Podia estar lavando a roupa, tirando um cochilo
ou tomando banho, mas eu estava disposta a apostar meu salário não existente em
como ainda estava lendo o maldito livro. Meus ombros relaxaram um pouco
quando ele atendeu. Estava em casa. Adorava um homem previsível.
A preocupação envolvia sua voz, deixando, mais uma vez, meus ombros
tensos.
— Não — raspei o esmalte das unhas observando Trent, cuja atenção estava
fixa em mim, enquanto falava com Edden.
Nunca vira essa informação escrita em livro algum. Meu pai meu contara
quando eu tinha oito anos.
— E eu não gosto que você invoque demônios. Além disso, é uma coisa, não
uma pessoa.
— Sim — disse Nick —, mas ele tem dois terços da minha alma e um terço
da tua. E se...
303
— As almas não se somam como números, Nick — disse eu, minha voz
rouca de preocupação. — É uma questão de tudo ou nada. Não tem o suficiente de
mim. Não tem o suficiente de ti. Não vou sair daqui sem provar que Trent matou
aquela mulher. Qual é o encantamento?
— Muito bem. Não é muito longo. Vou traduzir tudo menos a palavra da
invocação, isso só porque não temos uma palavra que signifique as cinzas
brilhantes dos mortos e acho que é importante que essa esteja absolutamente
correta. Dá-me um momento e posso fazer com que rime.
— Não. Não atua fisicamente sobre nada, por isso não precisa de um gesto
nem de um objeto focal. Quer que o repita?
— Pergunta mais tarde — disse eu, olhando de relance para Edden, depois
para Trent. Não tive de dizer mais nada. Ele era um homem esperto.
Engoli em seco, tentando dar a impressão de que fazia aquilo todos os dias.
Corredor? Não seria arrastada para o corredor como uma criança mal-
educada. Voltei-me para Trent.
— O Sr. Kalamack não se vai importar. Ele não tem nada a esconder, certo?
O rosto de Trent parecia gelado. Seu olhar saltou para o meu pulso,
marcado pelo demônio e recostou-se na cadeira, sob a proteção de Jonathan.
Arqueei as sobrancelhas, embora sentisse um nó no estômago. Se ele protestasse,
pareceria culpado. Suas mãos moviam-se com uma rapidez nervosa, enquanto
pegava nos óculos de armação fina e batia com eles na mesa.
— Por favor — disse ele, como se tivesse voto na matéria. — Invoque o seu
encantamento. Gostaria de saber o que uma bruxa de terra como a senhorita sabe
sobre a magia das linhas Ley.
— Vamos ter de mudar de lugar — disse eu, quase para mim mesma. —
Preciso encontrar uma linha Ley sobre a qual possa me colocar.
Os óculos de armação fina, que tinha voltado a colocar no rosto, faziam com
que parecesse menos sofisticado, conferindo-lhe um aspecto mais suave, quase
inofensivo. Achei que ele também parecia um pouco pálido.
306
Capitulo 20
De boca aberta, olhei para o outro lado do gabinete, para Trent. O rosto
estava tenso e fechado e estava sentado com Jonathan ao seu lado. Nenhum deles
parecia feliz. Senti minha pulsação acelerar. Trent sabia que ela estava ali. Ele
podia usar as linhas Ley. Isso significava que era um humano ou um bruxo. Os
vampiros não eram capazes de usá-las e os humanos — que o podiam fazer e eram
posteriormente infetados pelo vírus do vampirismo — perdiam essa capacidade.
Não sabia o que me assustava mais, se era o fato de Trent ser capaz de usar as
linhas Ley ou se o fato de ele saber que eu sabia. Deus me ajudasse. Estava a meio
caminho de descobrir o segredo mais precioso de Trent, que diabo era ele.
Os olhos verdes do homem estavam presos nos meus. Meu coração batia
forte. Nossas posturas defensivas suavizaram-se e ajeitei a saia, puxando-a para o
307
A a u ra d e T re n t e ra d e u m a ma r e l o s o l a r , ra i a d a d e u m ve r me l h o
fortemente definido. As riscas carmesins indicavam que, no passado, tinha tido
mais do que a sua quota normal de tragédias capazes de perturbar a alma. Esta
ficava inusitadamente próxima do seu corpo e estava envolta em centelhas
prateadas, como a de Ivy. Pareceram arrebentar e flutuar em seu redor, quando ele
ergueu uma mão e a passou pela cabeça para alisar o cabelo. Estava à procura de
algo: a forma como as centelhas se misturavam com a aura indicava que tinha
dedicado a sua vida a essa busca. O dinheiro, o poder, a ambição, tudo isso servia
um propósito maior. De quê estaria à procura? — perguntei-me.
desagradável, nem que a minha aura tinha aquelas horríveis marcas vermelhas ou
que, excluindo as centelhas, as nossas auras eram quase idênticas.
— Tem uma linha Ley atravessando o seu gabinete? — disse eu, sentindo-
me tonta.
— A senhorita tem uma no jardim dos fundos — respondeu Trent com uma
voz monótona.
De maxilar cerrado, olhou para Edden. Seu desejo de que o capitão do DFI
não estivesse ali era quase visível. Sua expressão estava envolta num aviso
ameaçador. Não era público que só os humanos e os bruxos fossem capazes de
manipular as linhas Ley, mas qualquer um podia chegar a essa conclusão e eu
sabia que ele queria que eu mantivesse esse fato em silêncio. Eu estava mais do
que disposta a fazê-lo, consciente de que ter tal informação era como segurar uma
cobra pela cauda.
ele disparava perguntas sussurradas a Nick deixei cair a cabeça e não fiz nada,
cavalgando nas ondas de poder que se erguiam através de mim em pulsações cada
vez mais fortes. Estas tocavam nas minhas extremidades e voltavam para trás,
minha cabeça latejando de dor, enquanto recuavam e chocavam contra a energia
que não parava de fluir. Senti um momento de pânico quando a energia cresceu,
cresceu e continuou a crescer. Que força tinha, exatamente, aquela coisa?
— Meu Deus... — ouvi Edden sussurrar e esperei que não tivesse perdido
sua confiança. Não creio que tivesse compreendido o quanto éramos diferentes até
àquele momento, até ver meu cabelo mover-se numa brisa que só eu conseguia
sentir.
— Não seria, se estivesse ascendendo à linha como a maior parte das pes-
soas — disse Quen num sussurro rouco e esforcei-me para ouvir. — Ela não está
usando um familiar, Sa'han. Está canalizando na íntegra a linha.
O som de alarme que ouvi de Jonathan fez com que me sentisse vingada,
até que ele o seguiu com uma frase carregada de urgência:
Com os olhos ainda fechados, olhei para a eternidade pensando que, sob o
sol dos demônios, a sua luminosidade era ainda mais estranha. As paredes do
gabinete de Trent tinham desaparecido e só a conversa sussurrada de Edden com
Nick me mantinha presa à terra, dizendo à minha mente esgotada que não, não
tinha atravessado para a eternidade, que estava num alçapão, vendo parte dela.
Sabendo que Trent estava me observando, embora não pudesse vê-lo, virei
de costas para que não pudesse ler meus lábios enquanto murmurava a primeira
parte do encantamento. Felizmente ainda me lembrava da curta frase traduzida, já
que não desejava abrir os olhos para ler na palma da mão.
Corpos. Estavam por todo o lado. Ao meu lado conseguia ver os menores,
alguns não eram maiores do que a unha do meu mindinho. Mais ao longe só era
capaz de discernir os maiores. A minha primeira reação esmoreceu quando
compreendi que o encantamento estava a assinalar todas as coisas mortas:
roedores, pássaros, insetos, tudo. Um grande número de corpos maiores estendia-
se para oeste, em filas e colunas ordenadas e perfeitas. Senti um momento de
pânico até ter percebido que se encontravam no local onde, no mundo real,
estavam situados os estábulos de Trent e se tratava, provavelmente, dos corpos
dos seus antigos cavalos de corrida premiados.
— Oh, se não é um prazer — disse uma voz rica e culta, atrás de mim.
Esperei que alguém me dissesse quem tinha acabado de entrar no gabinete de
Trent, mas ninguém disse nada. Os pêlos da parte de trás do meu pescoço
levantaram-se. Antecipando o pior, mantive os olhos fechados, minha segunda
visão aberta e virei-me. Levei a mão à boca e estanquei. Era um demônio, de robe e
chinelos.
Minha respiração tornou-se mais rápida e agitei uma mão atrás de mim,
tentando encontrar o limite da linha.
— Não sei — respondeu Jenks. — Mas não vou entrar naquela linha para
descobrir.
Enquanto Algaiarept passava a mão pela relva e lambia dos dedos o borrão
amarelo de linha Ley que o meu encantamento deixara sobre ela, observei a
paisagem que nos rodeava. Meus ombros tornaram-se tensos de preocupação.
Todos os borrões brilhantes que marcavam a morte tinham desaparecido.
Algaiarept parecia suficientemente contente em procurar os restos do meu feitiço
na relva, pelo que dei uma rápida espreitadela para trás de mim, meu movimento
rápido parando subitamente.
Uma das sepulturas dos cavalos brilhava num vermelho forte. Não era um
cavalo, era uma pessoa. Trent a matou — pensei, minha atenção voltando-se para
uma nova forma que se materializava dentro da linha Ley.
Era Trent que tinha entrado nela para ver o que eu estava vendo. Seus olhos
dirigiram-se para o ponto vermelho, abrindo-se, mas o choque desse momento
314
não era nada comparado com o que sentiu quando o demônio se transformou
numa cópia de mim, envergando um body de corpo inteiro, justo e perigoso.
Capitulo 21
Meus saltos matraqueavam no chão com mais autoridade do que aquela
que eu sentia, enquanto percorria o longo alpendre de madeira do estábulo dos
cavalos de Trent, à frente dele e de Quen. A fila de cocheiras vazias estava virada
para sul e para o Sol da tarde. Sobre elas situavam-se os aposentos do veterinário.
Estavam vazios, pois era outono. Embora os cavalos pudessem ter as crias em
q u al q ue r al t u r a d o a no , a m a i o r pa r t e do s e s t á b ul o s es t a b e l e c i a u m r í g i do
programa de procriação — para que todas as éguas parissem ao mesmo tempo,
ultrapassando de uma só vez o período mais difícil.
Sentindo frio, saí da passagem coberta, para o sol. Com as mãos segurando
os cotovelos, parei no parque de estacionamento coberto de serragem observando,
fraudulentamente, Trent, com o rosto escondido por uma madeixa de cabelo que
escapou da minha trança. Ele colocou um chapéu leve, de cor creme, para se
proteger do sol e trocou os sapatos por botas em deferência à nossa visita aos
estábulos. De alguma forma a mistura parecia perfeita nele. Não era justo que
pudesse parecer tão calmo e relaxado. Mas, depois, saltou ao ouvir a porta de um
carro bater. Estava tão tenso como eu, só era melhor em escondê-lo.
através do edifício em si. Não pude deixar de reparar que o tratador que ficara
encarregado dos estábulos também estava usando suas capacidades, em vez de
depender apenas do nariz do cão, erguendo os olhos para as vigas e abrindo os
armários fechados. O capitão Edden tocou no ombro do filho e dirigiu-se para
mim, agitando os braços curtos.
— Se não for neste edifício, é perto daqui. Seus homens podem não ter
usado adequadamente os meus amuletos.
— Sou uma agente, não uma detetive — disse eu, amargamente. — A maior
parte das pessoas que prendi já tinham sido acusadas antes de eu buscá-las.
Minha atenção foi para Trent. Seus olhos verdes estavam fixos em mim,
embora estivesse falando com Edden e eu endireitei o chapéu e prendi uma
madeixa de cabelo atrás da orelha. Recusando-me a permitir que ele me abalasse,
fitei-o igualmente. O olhar dele saltou para trás de mim e virei-me enquanto o
carro vermelho de Sara Jane parava no meio de uma nuvem de serragem, atrás
dos veículos do DFI.
Fiquei branca.
— Hã?
— Sara Jane — disse Trent, com voz calma, antes de chegar junto de nós. —
Está tudo bem.
— Sara Jane — disse, em tom calmo, baixando a cabeça para tentar ver os
seus olhos. — Não pense que te culpo por isso. As acusações da senhorita Morgan
não têm nada a ver com o fato de ter ido ao DFI por causa do Dan — a voz
maravilhosa dele erguia-se e caía em poças de seda.
— M-mas ela pensa que o senhor matou aquelas pessoas — gaguejou ela,
fungando, enquanto tirava as mãos do rosto e borrava o rímel numa mancha
castanha por baixo dos olhos.
320
Trent puxou para cima o olhar de Sara Jane com um ligeiro gesto de
encorajamento. Perguntei-me qual seria a sensação de ouvir sua bela voz a
acalmar-me, dizendo-me que ia ficar tudo bem. Depois me perguntei se haveria a
mínima hipótese de Sara Jane escapar dele com a vida intacta.
Cão vadio? — pensei, dividida entre o meu desejo de levá-lo para almoçar
para que pudéssemos ter uma conversa franca e a necessidade de lhe meter algum
juízo na cabeça.
A adrenalina correu veloz através de mim. Olhei para Trent. Seu rosto não
revelava nada. Quen e um homem pequeno avançaram, acompanhados por um
agente do DFI. O homem baixo era, obviamente, um antigo jóquei que trabalhava
agora como responsável pelos estábulos. Seu rosto estava curtido pelo sol e
enrugado, com ele trazia um molho de chaves. Estas tilintaram quando ele tirou
uma delas e a entregou a Quen. Com o corpo tenso com aquela enervante ameaça
líquida, Quen entregou-a a Edden.
— Está bem. São besteiras. Mas você vai ficar aqui. Se descobrirmos o corpo
da Dra. Anders, quero esta cena do crime mais vedada do que...
— Jenks pode fazer isso — disse ele. — E não precisa pôr os pés no chão.
Frustrada, levei a mão ao quadril e bufei. Podia perceber que, sob o seu
verniz oficial, Glenn estava preocupado e excitado ao mesmo tempo. Só tinha sido
promovido a detetive há pouco tempo e calculei que aquele fosse o caso mais
importante em que tivesse trabalhado. Os policiais podiam passar todas as suas
vidas profissionais sem que lhes fosse atribuído um caso com tantas possíveis
ramificações políticas. Mais uma razão para que eu estivesse lá.
Mais depressa do que o fedor numa cobra? Ele devia estar falando muito
sério, para misturar as metáforas daquela maneira.
— Não — respondi.
— Me conta o que descobrir, Jenks — pedi, feliz pelo fato de, pelo menos,
um representante da nossa pequena firma estar presente.
— Pode crer, Rache — disse ele, depois saiu disparado atrás de Glenn.
Edden juntou-se a mim, em silêncio e senti-me como se fôssemos as únicas duas
pessoas do lugar que não tinham sido convidadas para uma grande festa à beira
da piscina, ficando do outro lado da rua, olhando. Ficamos à espera, com um Trent
nervoso, uma Sara Jane indignada e um Quen de lábios apertados, enquanto
Glenn batia na porta, anunciava a presença do DFI — como se esta não fosse óbvia
— e a abria.
Jenks foi o primeiro a entrar. Saiu quase de imediato, o seu voo um pouco
irregular, aterrissando no corrimão. Glenn inclinou-se para o interior da negra
abertura retangular, saindo logo de seguida.
A minha respiração tornou-se rápida. Ele descobriu alguma coisa. E não era
um cão. Com uma mão tapando a boca, uma agente do DFI estendeu uma máscara
cirúrgica a Glenn. O fedor horrendo sobrepunha-se ligeiramente ao aroma
reconfortante do feno e do estrume. Torci o nariz e olhei de relance para Trent,
vendo seu rosto vazio. O parque de estacionamento ficou em silêncio. Um inseto
guinchou e outro lhe respondeu. Junto à porta, no piso de cima, Peúgas gania e
tocava com as patas nas pernas do tratador, em busca de conforto. Senti-me
doente. Como é que era possível não terem reparado naquele cheiro antes? Eu
tinha razão. Tinha de ter sido usado um feitiço para contê-lo na divisão.
Sara Jane agarrou-se a Trent. O medo, real e forte a fez abrir os olhos e
trouxe cor ao seu rosto pálido. Trent não parecia reparar na força com que ela o
agarrava, o rosto sério e inexpressivo enquanto olhava para Quen. Com os joelhos
fracos, vi Trent inspirar fundo, como que para se controlar.
Edden e Quen foram com eles, o rosto redondo do capitão leve de alívio.
Devia ter arriscado sua reputação ainda mais do que eu julgava. Sara Jane afastou-
se de Trent e virou-se para mim.
— Sua cadela — disse ela, o medo e o ódio audíveis na sua voz aguda e
infantil. — Não faz ideia do que fez.
Chocada, não disse nada, enquanto Trent lhe segurava no cotovelo com o
que parecia ser a força de um aviso. Minhas mãos começaram a tremer e senti o
estômago apertado. Glenn estava nas escadas. Nas mãos tinha um guardanapo
descartável e estava passando-o pelos dedos, enquanto avançava na minha
direção. Apontou para o carro da investigação criminal, depois para o retângulo
preto formado pela porta. Dois homens avançaram. Com uma tensão calma, em-
purravam à sua frente uma bolsa preta, dura.
— Será? — murmurei.
— Ainda vai demorar algum tempo até que você possa entrar — disse ele,
pegando num terceiro guardanapo e limpando a parte de trás do pescoço. Parecia
um bocado cinzento. — Talvez só amanhã. Quer carona para casa?
— Vou ficar — sentia o estômago leve. Ocorreu-me que talvez devesse ligar
para Ivy e dizer o que estava acontecendo. Se ela falasse comigo. — É ruim? —
perguntei.
326
Os agentes do DFI que não tinham nada para fazer já tinham se reunido à
sua volta. Acenei e Glenn dirigiu-se de novo para as escadas, suas pernas
compridas subindo os degraus dois a dois. Só por uma vez, olhei de relance para
Trent, na divisão aberta entre as cocheiras. Estava falando com um agente, tendo,
ao que parecia, abdicado do seu direito à presença de um advogado. Para dar a
impressão de que era inocente? — perguntei-me. Ou pensaria ele que era mais
esperto do que todos os outros?
Eventualmente, dei por mim nas abas do grupo, ouvindo três conversas
distintas, enquanto o Sol se movia e uma brisa fria se apoderava do ar. O ruído do
aspirador era tênue, mas o som que emitia ao ligar e desligar deixava-me nervosa.
Por fim parou e não mais recomeçou. Ninguém pareceu reparar. Meus olhos
ergueram-se para as divisões do piso de cima e apertei mais o casaco ao redor do
corpo. Glenn tinha descido apenas alguns instantes antes e desapareceu no
interior do carro de investigação criminal. Senti a respiração entrar e sair do meu
corpo, com a mesma facilidade do dia em que nasci. Dando a mim mesma um
pequeno empurrão, dei por mim a mover-me em direção às escadas.
327
J e n k s a p a r e c e u d e i m e d i a t o n o m e u o m b r o , fa z e n d o c o m q u e m e
perguntasse se estava de olho em mim.
— Tenho que ver — sentia-me irreal, o corrimão áspero sob a minha mão
ainda quente do sol.
— Ei! — gritou ele. Surpresa, alarme e por fim, raiva abateu-se sobre ele. —
Como queira! — disse, rispidamente. — Vá ver. Não sou seu pai.
O cheiro era pior ali. Meus pensamentos saltaram para as fotografias que vi
no gabinete de Glenn e quase perdi o controle. A Dra. Anders não podia estar
morta senão há algumas horas. Como é que podia ter ficado tão mau, tão
depressa?
328
— Oh, hum, Rachel Morgan — disse eu, com a voz fraca. — Consultora
especial Inderlander.
— Sim, obrigada.
Minha atenção recaiu sobre a mulher esbelta e elegante, com cabelo escuro
preso num rabo-de-cavalo despretensioso. Tinha uma câmera na mão e estava
colocando um rolo numa bolsa preta que tinha presa à cintura.
M e u s o l h o s s a l t a r a m p a r a G we n , c h o c a d a c o m a s u a e x p r e s s ã o
despreocupada.
— Não toque em nada. Ainda não acabei, está bem? — murmurou ela,
quando voltou às suas fotografias. — Deus santo. Será que não posso ter cinco
minutos antes que entrem todos aqui adentro?
Senti-me quente, depois fria. Meu estômago ficou leve e pensei que ia
desmaiar. Segurei a respiração, quando compreendi que estava hiperventilando.
Estava disposta a apostar que ela estava viva enquanto tudo aquilo acontecia.
Saí para o sol que se punha. Atingiu-me como uma agulhada e eu inspirei
uma enorme golfada de ar, saindo do meu torpor. Não se tratava da Dra. Anders.
O corpo era muito antigo e o anel era de homem. Pareceu-me ter visto nele o
logotipo da universidade. Acho que tinha acabado de encontrar o namorado de
Sara Jane.
Teria caído não fosse a força com que ele me segurava. Outro veículo do
DFI chegava ao parque de estacionamento. Desta vez tratava-se de um necrotério
móvel. Glenn, sem querer correr qualquer risco, estava trazendo tudo para ali.
O rosto redondo de Edden assumiu uma expressão inquisitiva por trás dos
óculos. Glenn olhou para mim.
332
— Queria dizer num dos carros? Pensei que o Sr. Kalamack ficaria mais
confortável aqui.
Olhando de relance para Edden, dirigiu-se para Trent e Sara Jane com uma
expressão assustada, o que fazia parecer muito novo. Eu não tinha tempo para
sentir pena dele. Ainda furioso, Glenn colocou-se junto ao pai, introduzindo sua
própria senha com o dedo rígido. Meu estômago saltou e depois se recompôs.
Fechei a tampa do computador nas mãos dele. Glenn cerrou o maxilar quando os
dois olharam para mim. Voltei-me para Trent e Sara Jane que estavam de saída,
esperando que o olhar de Edden e Glenn seguisse o meu até eles, antes de dizer:
— Não posso dizer com toda a certeza, mas acho que é o Dan.
Edden franziu os lábios, pensativo, o que fez com que o seu bigode cinzento
se espetasse enquanto trocávamos um olhar sagaz. Sara Jane não conhecia Dan tão
bem como queria que os outros pensassem. Por que Trent fizera Sara Jane ir ao
DFI com uma queixa falsa, relatando o desaparecimento do namorado, quando
sabia que acabaríamos por descobrir o corpo nos seus terrenos? A menos que não
soubesse? Como podia não saber?
333
— Porra, Rachel — silvou, enquanto Sara Jane era levada em soluços para
um dos carros. — Eu disse para se calar! Vá embora daqui. Agora. Esse teu
pequeno número pode ser o suficiente para permitir que Kalamack saia em
liberdade.
— Eu sei. Vai para casa — disse ele, estendendo a mão para o crachá
temporário do DFI. — Agradeço a sua ajuda para encontrar o corpo, mas como
você mesma disse, não é um detetive. Cada vez que abre a boca, está tornando
mais fácil para os advogados de Trent convencerem o júri. Limita-se... A ir para
casa. Ligo amanhã.
— Glenn — disse eu, enquanto tirava o colar, baixando-me, antes que ele
me arrancasse do pescoço. — Trent assassinou aquele bruxo, é tão certo como se
tivesse sido ele a empunhar a faca.
Ele segurou meu crachá com força, a raiva abrandando o suficiente para
revelar sua frustração.
— Posso falar com ele, até posso detê-lo para interrogatório, mas não posso
prendê-lo.
— Mas foi ele! — protestei. — Têm o corpo. Têm a arma. Têm o motivo.
334
— Tenho um corpo que foi movido — disse ele, a voz monótona sob o peso
das emoções reprimidas. — O motivo não passa de conjectura. Tenho uma arma
que seiscentos empregados podiam ter deixado ali. Ainda não tenho nada que
ligue Trent ao homicídio. Se prendê-lo agora, ele pode safar-se, mesmo que
confesse mais tarde. Já vi acontecer. O Sr. Kalamack pode ter feito isso de
propósito, ter colocado o corpo aqui, garantindo que nada o ligasse a ele. Se este
não pegar, será duas vezes mais difícil atribuir-lhe qualquer outro cadáver, mesmo
que ele venha cometer algum erro.
Sem olhar para trás, avançou em direção aos estábulos, os passos pesados
silenciosos sobre a serragem. Fiquei olhando para ele, sem saber o que fazer. A
minha atenção saltou para Trent, que estava entrando no carro do DFI, o terno
dispendioso fazendo com que a imagem parecesse errada. Ele dirigiu-me um olhar
imperscrutável antes da porta se fechar com um ruído metálico. Com as luzes
apagadas, em marcha lenta, os dois carros arrancaram.
Meu sangue zumbia e a cabeça latejava. Trent não ia sair incólume. Mais
cedo ou mais tarde, eu acabaria por conseguir ligar a ele todos os homicídios. Ter
descoberto o corpo de Dan na sua propriedade daria ao capitão Edden a desculpa
para conseguir todos os mandados que eu quisesse. Trent ia fritar. Eu podia levar
as coisas com calma. Eu era uma agente. Eu sabia como perseguir uma presa.
— Sim, Rache? Ei, ouvi dizer que Glenn te pôs para correr. Eu te disse para
não ir lá em cima. Mas será que você me deu ouvido? Nã-ã-ã-ão. Ninguém me dá
ouvidos. Tenho trinta e tantos filhos e só a minha libélula é que me dá ouvidos.
Com olhos verdes fixos em mim com uma intensidade chocante, Quen
agarrou num ramo baixo e içou-se com a facilidade de quem apanha uma flor,
desaparecendo no meio do antigo carvalho como se nunca tivesse existido.
Capitulo 22
Edden conduziu o carro para o minúsculo parque de estacionamento
repleto de ervas daninhas da igreja. Não disse grande coisa no caminho — os nós
dos dedos brancos e o pescoço vermelho — indicando o que pensava do livre
fluxo de consciência que eu vinha debitando desde que me confessou o verdadeiro
motivo de estar servindo de motorista.
P o u c o d e p o i s d e te r m o s d e s c o b e r t o o c o r p o , ti n h a m r e c e b i d o u m a
informação via rádio de que eu deveria ser "retirada" da lista de pagamentos do
DFI. Aparentemente tinham ficado sabendo que estavam sendo ajudados por uma
bruxa e, a SI considerou que se tratava de engano. Talvez tivesse sido possível
contornar a coisa se Glenn tivesse se dado ao trabalho de explicar que eu não
passava de uma consultora, mas ele não disse uma palavra, aparentemente ainda
amuado por eu ter contaminado sua preciosa cena do crime. E, nem sequer haveria
uma cena do crime se não fosse eu, mas não parecia ter grande importância.
337
Deixando cair os ombros, não me mexi. Se saísse, significava que tudo tinha
terminado e eu não queria que fosse assim. Além disso, manter um monólogo de
vinte minutos era cansativo e provavelmente devia-lhe, no mínimo, um pedido de
desculpas. Meu braço pendia da janela aberta e consegui ouvir um piano tocando
uma música qualquer elaborada e complicada — daquelas que os compositores
inventam para exibir sua destreza, mais do que qualquer expressão artística.
Inspirei fundo.
— Não.
— Não.
— Como é que esperam que eu faça meu trabalho, se não me deixam fazê-
lo?
— Já não é seu trabalho — disse Edden. O toque de raiva na sua voz me fez
erguer a cabeça. Segui seu olhar para as crianças pixies que deslizavam pelos
pequenos quadrados de papel encerado que eu cortei para eles no dia anterior.
Com o pescoço rígido, Edden mudou de posição no assento para tirar a carteira do
bolso de trás. Abrindo-a, entregou-me algumas notas. — Disseram-me que lhe
pagasse em dinheiro. Não o ponha na sua declaração de renda — disse,
inexpressivo.
Fodida outra vez. Sem qualquer vontade de dizer a Ivy que não tinha o
dinheiro todo para o aluguel, abri a porta e saí. Se não soubesse melhor, diria que o
som do piano vinha da igreja.
— Cresça, Rachel — disse ele, fazendo-me virar para trás. O rosto redondo
estava tenso e ele inclinara-se sobre o banco para falar comigo através da janela. —
Se tivesse sido comigo, teria te prendido e entregado a SI para que pudessem
brincar contigo. Ele disse para esperar e você passou por cima da autoridade dele.
Enquanto puxava a alça da bolsa mais para cima, sobre o ombro, senti a
tensão na minha testa diminuir. Não pensei nas coisas assim.
— Rachel?
Sim. Devia uma desculpa ao Glenn. Virei-me para Edden, deixando escapar
um suspiro deprimido e frustrado.
ter recusado sua oferta para me tornar seu delfim podia ser um insulto indescritível
no mundo dos vampiros. Mas não pensava que fosse assim. O pouco que vi dela
revelava culpa, não raiva.
Maldição, ela ia fugir. Depois ergui as sobrancelhas. Não era uma gravação.
Nós tínhamos um piano?
— Dó central — disse ela, enquanto a paz relaxava seu rosto pálido e oval.
340
Escolhi outra, prendendo a tecla como forma de ouvir seu eco entre as
vigas. Soava maravilhosa no espaço aberto de paredes duras. Em especial agora,
que os colchões de ginástica tinham desaparecido.
— Não sabia que você tocava — disse eu, puxando a bolsa mais para cima,
no ombro.
Não ouvi seus passos. Ivy percebeu minha surpresa e uma onda de dor
interior pairou sobre ela. A triste tentativa de compensação de Edden estava na
mão dela e eu odiava tudo. Absolutamente tudo.
Outra vez — terminei silenciosamente por ela. Para o inferno com tudo
aquilo. Eu devia ser capaz de pagar minhas próprias contas.
341
Não era o local mais seguro para guardar o dinheiro que juntávamos para
pagar as contas, mas quem é que ia roubar uma vampira Tamwood? Sem dizer
uma palavra, deslizou para a cadeira à minha frente, deixando a mesa entre nós. O
cooler do computador começou a girar quando ela mexeu no mouse. Meu mau
humor melhorou. Ela não partiu. Estava trabalhando no computador. Eu estava na
mesma sala que ela. Talvez se sentisse suficientemente segura para poder, pelo
menos, ouvir.
— Ivy... — comecei.
Como alguém tão forte e poderoso podia ter tanto medo de si próprio? A
mulher era uma massa conflituosa de força e vulnerabilidade que eu não
compreendia. Seus olhos fixavam-se em tudo, menos em mim. Lentamente sua
postura tensa relaxou.
— Lamento, Ivy — disse eu, puxando seus olhos para os meus por um
breve instante. Estavam castanhos como chocolate, sem qualquer toque de preto a
rodeá-los. — É que...
— Pára — disse ela, pousando o olhar na sua própria mão que agarrava a
mesa, as unhas ainda brilhando por causa do esmalte transparente que passou
para irmos ao Piscary's. Obrigou-se, visivelmente, a relaxar. — Eu... Não voltarei a
pedir que seja meu delfim se não disser mais nada.
342
E não queria ter de dizer: "Não podemos ser só amigas?" Era vulgar e
degradante, mesmo que ser sua amiga fosse tudo o que eu queria. Ela tomaria as
palavras com o mesmo sentido que a maior parte das pessoas as usava. E eu
percebia que sua promessa não tinha sua origem numa amargura residual. Ela não
voltaria a me pedir para ser seu delfim porque não queria voltar a sentir a dor de
ser rejeitada. Eu não compreendia os vampiros. Mas era neste ponto que Ivy e eu
nos encontrávamos.
Seu olhar cruzou-se com o meu com uma insegurança que se fortaleceu
quando viu meu acordo silencioso para ignorar o que tinha acontecido. Os ombros
dela acalmaram-se e reconquistou uma pitada da sua confiança usual. Mas,
enquanto estava sentada na nossa cozinha, com os pés ao sol, percebi como eu a
estava usando. Ela oferecia-me, de livre vontade sua proteção contra os muitos
vampiros que se aproveitariam da minha cicatriz — no fundo, estava garantindo
minha livre vontade — e, estava disposta a ignorar o fato de eu não pagar do
modo usual entre vampiros. Deus me ajudasse, era o suficiente para eu odiar a
mim mesma. Ela queria algo que não podia dar e contentava-se em aceitar minha
amizade, esperando que, um dia, eu lhe pudesse dar mais.
Inspirei, lentamente, observando-a fingir que não percebia meus olhos fixos
nela, enquanto deixava que as peças se encaixassem nos seus lugares. Eu não
podia partir. Era mais do que uma questão de não querer perder a única amiga de
verdade que tive nos últimos oito anos, ou meu desejo de ajudá-la a lutar contra si
mesma. Era o medo de ser transformada num brinquedo pelo primeiro vampiro
que encontrasse num momento de fraqueza. Eu estava encurralada pela
conveniência e o tigre preso comigo estava disposto a deitar-se no meu colo e a
ronronar, apostando que acabaria encontrando uma forma de me fazer mudar de
ideia. Fantástico. Esta noite ia ter problemas para dormir.
O olhar de Ivy cruzou-se com o meu, sua respiração hesitou apenas por um
segundo quando compreendeu que eu tinha, por fim, percebido.
O olhar dela cruzaou-se com o meu sobre a tela entre nós, as finas
sobrancelhas erguidas.
— Tenho quase certeza de que era Dan Smather, mas não interessa. Glenn é
mais teimoso que um pixy numa sala cheia de sapos, mas Trent vai safar-se —
meus pensamentos saltaram das considerações sobre o que ia fazer em relação a
Ivy, para a memória do corpo mutilado de Dan. — Trent é muito esperto para
deixar para trás algo que o ligue ao corpo — disse eu. — Nem sequer imagino o
porquê de estar na sua propriedade.
— É o que Glenn pensa. Que Trent é o assassino, mas que queria que o
descobríssemos, sabendo que não o podemos ligar a ele e, como tal, tornando
ainda mais difícil apanhá-lo, caso cometa um erro mais tarde. Corresponde à
reação da Sara Jane. Ela não conhece Dan Smather melhor do que conhece o
entregador da UPS, mas há alguma coisa... — hesitei, tentando passar meus
sentimentos para palavras. — Há alguma coisa que não está certa.
Voltei a pensar na fotografia que ela me deu. Era igual à que tinha visto
sobre a televisão dele. Eu devia ter percebido que o namoro deles era falso.
344
Olhei de relance para Ivy, sentindo culpa e alívio ao mesmo tempo. Não era
de admirar que ela pensasse que eu queria partilhar mais do que a casa com ela.
Era, em parte, culpa minha. Talvez na maior parte.
Olhei pela janela, para o jardim iluminado pelo sol e para o brilho das asas
dos pixies enquanto os filhos de Jenks afugentavam um colibri em migração da
última das lobélias. Tinha de estar em migração. Jenks o mataria antes de permitir
que qualquer tipo de competição pusesse uma pata naquele jardim.
Cortando o mal pela raiz, fechei as cortinas e deixei-me ficar junto à janela,
onde podia ver a sombra das asas dos pixies, fosse algum aproximar-se o suficiente
para ouvir.
— Trent tem uma linha Ley no gabinete — disse eu, a voz baixa.
— Oh , e u d i r i a q u e s a b e — f u i b u s c a r o u tr a b o l a c h a p a r a c o l o c a r ,
sutilmente, algum espaço entre nós. — Levando em consideração que tive de usar a
linha para encontrar o corpo.
— Se estivesse assim tão preocupado com isso, não teria corrido o risco de
colocar o gabinete sobre a linha — protestei, esperando que estivesse certa. —
Qualquer um que estivesse à procura poderia encontrá-la. Ele tanto pode ser
Inderlander como humano. Estamos em segurança, em especial se não dissermos
nada sobre a linha Ley.
346
— Jenks pode descobrir — insistiu ela. — Sabe que vai meter a boca no
trombone. Ele adoraria o prestígio de descobrir o que Trent é.
— O que eu faço? Se lhe disser para manter a boca fechada quanto à linha
Ley, ele vai tentar perceber.
Teria sido por aquilo que eu tinha ficado? Sua lógica, Sua intuição. Apesar
dos nossos problemas, trabalhávamos bem em conjunto. Sempre foi assim. Ivy
abanou a cabeça, suas feições desfocadas sob a luz do entardecer filtrada pela
cortina azul, mas podia sentir sua tensão aumentar.
— São as únicas escolhas que temos. Eliminou todo o resto e o que ficar, por
muito improvável que seja, é a resposta.
— Be m , s e q u i s e r c o n s i d e r a r o i m p ro vá ve l — m u r m u re i — , p o d
e acrescentar os demônios à lista de possibilidades.
— E l e é u m e l fo — s u s s u r r e i , s e n t i n d o a e x c i ta ç ã o d a d e s c o b e r t a
borbulhando, fazendo minha pulsação acelerar. — Eles não morreram todos na
Viragem. Ele é um elfo. Trent é um maldito elfo!
— Eles morreram. Todos eles. E o que é que teriam a ganhar ao deixar que
até os Inderlanders pensassem que tinham desaparecido, se não tivessem? Sabe
bem como gostamos de atirar dinheiro às espécies em extinção. Em especial às
inteligentes.
349
Ivy emitiu um ruído de dúvida com o fundo da garganta, mas podia ver que
começava a ceder.
— Pensei que pudesse ter sido por causa das drogas que ele me tinha dado
— disse, não gostando do fato de a referência ao sangue tê-la posto a se mexer.
O castanho das suas íris estava diminuindo, escondido pelo negro das
pupilas dilatadas. Eu tinha certeza de que se prendia com o fato de termos
descoberto a origem de Trent e não com o fato de eu me encontrar no meio da sua
cozinha, com o sangue pulsando e as palmas das mãos suadas. Mesmo assim...
Não gostava daquilo. Com a mente em turbilhão, ela dirigiu-me um olhar de aviso e
colocou a ilha entre nós.
Está bem, então eu sabia a história de Trent. Dizer-lhe isso garantiria, de certo,
uma audiência com ele, mas como se diz a um assassino em série que conhecemos
o segredo dele, sem acabarmos mortos?
— Não vai dizer a ele que sabe — disse Ivy, com um olhar de desculpas,
antes de encostar as costas ao balcão, mantendo a distância de forma evidente.
— Eu tenho de falar com Trent. Ele falará comigo se eu lhe disser o que sei.
Vou ficar bem. Tenho aquele material sobre ele.
350
— Edden te dará logo um processo por assédio se sequer ligar para ele —
avisou Ivy.
— Acho que sei como chamar a atenção dele — disse, mordendo a cabeça
da bolacha coberta de chocolate e limpando as migalhas dos lábios. Mas, no fundo
da minha mente, erguia-se uma nova pergunta, incitada pelas constantes
preocupações de Nick. Seria a excitação que eu sentia erguer-se através de mim
causada pela conversa com Trent... Ou o ligeiro vislumbre de dentes brancos?
Pequeno painel de duas placas, com as referências de cada cena filmada, para facilitar a montagem
15
posterior.
351
Capitulo 23
O clamor do motor a gasolina do ônibus era horrendo, quando este
arrancou e tentou encontrar força para prosseguir monte acima. Eu encontrava-me
de pé — na calçada repleta de ervas daninhas — e esperei que ele passasse antes
de atravessar a rua. Os sons suaves do passar dos carros eram um confortável
pano de fundo para os pássaros, insetos e o ocasional grasnar de um pato. Virei-
me, sentindo os olhos de alguém pousados em mim.
Meu pai gostava de me levar ali aos sábados de manhã, para comer donuts e
dar migalhas aos patos. Meu humor tornou-se mais pesado quando me recordei
da ocasião em que ele me levou até lá — depois de uma das suas raras discussões
com minha mãe. Era de noite e tínhamos visto as luzes de Hollows tremeluzindo
sobre o rio, parecendo que o mundo continuava à nossa volta, enquanto nós
ficávamos presos numa gota de tempo pendurada no lábio do presente —
relutante em cair e dar lugar à seguinte. Suspirando, apertei melhor o curto casaco
de couro e prestei atenção ao lugar onde colocava os pés.
Fui acordada nessa manhã pelo toque do telefone. Que voltou a tocar
quando a secretária eletrônica se desligou. E tocou outra vez. E outra vez. E outra
vez. Às oito horas da manhã não era uma boa hora para as bruxas — eu só estava
dormindo há quatro horas —, mas Jenks era incapaz de atender ao telefone e
acordar Ivy não era boa ideia. Resumindo e concluindo, Trent convidou-me para
tomar chá no seu jardim. Disse a Jonathan que me encontraria com Trent em Eden
Park, mais precisamente em Twin Lakes Bridge, às quatro da tarde, logo depois do
cochilo do patrão.
Twin Lakes Bridge era um nome muito grandioso para a pequena ponte de
pedreste de concreto, mas eu conhecia o troll que vivia debaixo dela e sentia que
353
podia confiar nele em caso de necessidade. A água que corria pelas curvas
artificiais distorceria qualquer feitiço de escuta. Além disso, sendo domingo de
jogo, o parque devia estar quase deserto, dando-nos privacidade suficiente para
falar, tendo, contudo, um número suficiente de pessoas para impedir que Trent
pudesse optar por caminhos idiotas, como matar-me.
Tinha feito questão de não levar comigo quaisquer feitiços além do normal
anel que usava no mindinho. Também não levava a bolsa grande. Apenas minha
carteira de motorista gasta e o passe do ônibus. Havia duas razões para a ausência
de artigos pessoais. Não só podia correr mais depressa — caso Trent tentasse
alguma coisa — como não lhe dava qualquer oportunidade de dizer que eu tinha
feito um encantamento contra ele.
Acalmei, fitando a água do lago verde com sulfato de cobre e a relva viçosa.
As árvores estavam cobertas de cor, ainda não apressadas pelo gelo. O cobertor
vermelho de Trent era uma mancha contrastante no chão. Ele estava sozinho e
fingia ler. Perguntei-me onde estaria Glenn, pensando que, se não estava naquelas
últimas árvores grandes ou nos pequenos apartamentos do outro lado da rua, o
mais certo era estar rondando o banheiro.
Para banheiros, eram elegantes — com a pedra coberta de hera e suas telhas
de cedro. As persianas e portas de metal integravam-se na permanente estrutura,
tanto quanto os materiais perecíveis que a abafavam. Sem duvidar, encontrei
Glenn no banheiro dos homens, as costas voltadas para mim, enquanto se erguia
sobre o vaso, observando Trent com um par de binóculos através do vidro
quebrado. A ponte ficava no seu campo de visão e senti-me melhor por saber que
ele estaria observando.
— E bom dia para você também — disse eu, educadamente, querendo dar-
lhe uma tapa e perguntar-lhe por que não tinha me defendido no dia anterior e
mantido na missão.
— Ouça, desculpa — disse eu. — Cometi um erro. Devia ter ficado quieta
até você dizer que eu podia entrar na cena do crime, mas Trent me pediu que eu
viesse encontrar com ele aqui, por isso pode ir se danar!
— Este serviço já não é seu. Saia daqui antes que eu mande te prender.
As mãos dele estavam pousadas no rádio de duas vias que tinha preso à
cintura, mesmo ao lado da arma. Seus olhos castanhos estavam furiosos, devido a
um incidente passado que não me incluía.
— Já pedi desculpas. E não haveria caso nenhum, se não fosse por mim —
exclamei.
Frustrada, pousei uma mão no quadril e ergui a outra num gesto furioso,
p a r a n d o d e r e p e n te q u a n d o a l g u é m e n t r o u . E r a u m h o m e m d e a s p e c t
o
desmazelado com um casaco de aspecto desmazelado. Ficou imóvel, chocado,
durante alguns segundos, percorrendo Glenn com o olhar — com o seu terno caro,
de pé em cima do vaso, e eu, de calças e casaco de couro.
— Rachel...
Semicerrei os olhos.
— Não entende mesmo, não é? — disse eu. — Eu não sou humana, isso é
um assunto Inderlander e é muita areia para o seu caminhão.
Eu sorri.
Olhei de relance para Trent, vendo que ele se preparava para avançar na
minha direção.
— Andou alguém pela tua ponte, esta manhã? Será que alguém deixou para
trás um feitiço ou amuleto?
A poça de água oleosa deslizou para o lado oposto da ponte, para uma
sombra onde deixei de vê-lo.
— Seis crianças atiraram rochas da ponte, um cão fez xixi na sua base, três
humanos adultos, dois vadios, um animalomem e cinco bruxas. Antes do nascer do
Sol, houve dois vampiros. Alguém foi mordido. Senti o cheiro do sangue que caiu
no canto sudoeste.
— Não. Posso ter de sair com pressa, mas ficarei enquanto puder.
Trent cobriu o cabelo loiro com um chapéu leve que lhe deixava o rosto
descoberto. Era a primeira vez que o via com outra coisa que não um terno de
negócios e seria fácil esquecer que ele era um assassino e um barão da droga. A
confiança que mostrava nas salas de administração ainda estava presente, mas a
cintura esguia, os ombros largos e o rosto suave davam-lhe agora a aparência de
um pai com uma forma particularmente invejável.
tinha medo de mim, ou por ainda pensar, erroneamente, que eu lancei Agaliarept
atrás dele por ter conseguido entrar no seu gabinete por três vezes, ou por eu
saber o que ele era.
Fitei-o, sua voz líquida fundindo-se com o som da água que nos rodeava.
— E também não sou capaz de ler sua mente, apenas seu rosto.
Minha respiração regressou, num som suave, e fechei a boca. Como tinha
perdido o controle assim tão depressa?
— O nome dele é Jenks e está em outro lugar. Ele não sabe e eu prefiro que
assim continue, levando em consideração sua boca grande.
posição que era o exato reflexo da minha. Éramos duas pessoas que tinham se
cruzado por acaso e que partilhavam algumas palavras, ao sol.
Ce-e-e-e-erto.
— Como soube? — perguntei, pensando que meu segredo era mais mortal
que o dele.
Com os olhos fixos nos meus, ele puxou a manga da camisa, revelando um
braço musculoso. Os pêlos estavam brancos do sol e a pele bronzeada. Uma
cicatriz irregular manchava sua suavidade regular. Meus olhos ergueram-se para
os dele, lendo uma raiva antiga.
Com emoções curtas e bruscas, ele voltou a puxar a manga para baixo,
escondendo a cicatriz.
— A culpa é sua. Eu pedi que parasse de se meter com ela! — disse, não
querendo saber se a minha voz se erguia acima do som da água que nos rodeava.
— Jasmim estava doente. Ela chorou até adormecer durante três semanas por sua
causa.
Eu fitei-o, incrédula.
— Por que quer saber o nome dela? Ela já tinha problemas demais sem você
para perturbá-la.
— O nome dela! — disse Trent, apalpando os bolsos até ter encontrado uma
caneta. — Qual era o nome dela?
Ele parecia irritado, enquanto puxava o cabelo mais para baixo, sobre os
olhos.
— Quer saber se ela sobreviveu — terminei por ele, sabendo que tinha
acertado quando o olhar dele se afastou. — Por que você estava lá? — perguntei,
quase com medo que ele me respondesse.
A cadência de sua voz e a ligeira tensão em sua testa, disseram-me que era
mais do que isso. Senti um arrepio de satisfação, tinha descoberto a forma de
perceber quando estava mentindo. Agora tudo o que precisava era descobrir uma
forma de dizer quando estava dizendo a verdade e ele nunca mais seria capaz de
mentir para mim com sucesso.
362
— É tão porco como seu pai — disse eu, enojada —, chantageando pessoas
com uma cura, colocando-a ao alcance delas e depois transformando-as em
marionetes. A fortuna dos seus pais foi construída sobre a miséria de centenas,
talvez milhares, Sr. Kalamack. E você não é diferente.
— Não justificarei minhas ações perante você — disse ele. — Além disso,
tornou-se uma grande adepta da arte da chantagem. Não vou perder tempo numa
discussão infantil sobre quem feriu os sentimentos de quem há mais de uma
década. Quero contratar seus serviços.
Ele riu, o chapéu lançando uma sombra sobre o rosto, enquanto ele baixava
a cabeça e ria.
— Seu filho da... — de lábios apertados, fechei a mão num punho. A alegria
de Trent desapareceu e inclinou a cabeça em sinal de aviso, ao mesmo tempo em
que recuava um passo.
vou trabalhar para você. Vou acabar contigo. Vou descobrir como relacioná-lo a
todos estes homicídios.
— Oh, por favor — disse ele e perguntei-me como é que tínhamos passado
tão depressa de um homem de negócios dos Fortune 20 e de uma habilidosa
agente independente para duas pessoas discutindo por causa de injustiças
passadas. — Continua a bater nessa tecla? Até o capitão Edden já percebeu que o
corpo de Dan Smather foi colocado nos meus estábulos, razão pela qual mandou o
filho vigiar-me em vez de apresentar queixa. E, quanto a ter estabelecido contatos
com as vítimas, sim, falei com todas elas, tentando contratá-las, não matá-las. Tem
um excelente conjunto de habilidades, senhorita Morgan, mas ser detetive não está
entre elas. É muito impaciente, deixa-se guiar pelas suas capacidades intuitivas
que parecem só funcionar num sentido.
Ofendida, levei as mãos aos quadris e emiti um som incrédulo. Quem ele
pensava que era para me dar sermões?
Estava zangada e frustrada. Tinha ido ali com uma informação tão boa que
estava certa de conseguir uma confissão. O que conseguira fora ser ameaçada,
insultada e, depois, subornada. Parecendo imperturbado, ele abaixou-se para
apanhar o envelope, batendo com ele na palma da mão por várias vezes para
sacudir a terra, antes de guardá-lo.
revelado tão hábil no uso da magia das linhas Ley e se, depois, somarmos a isso
esse nosso pequeno encontro...
— Agora — disse Trent, a voz mais macia do que água. — Aceite o dinheiro
para que eu possa lhe dizer o que consegui descobrir.
C o m o e s t ô m a g o à s vo l t a s , f i t e i s e u s o l h o s t r o c i s t a s . E u i a f a z e r
precisamente aquilo que ele queria. Tinha me manipulado, levando-me a ajudá-lo.
Maldição, maldição e dupla maldição. Atravessando a ponte para o lado dele,
coloquei os cotovelos sobre a mureta grossa, as costas voltadas para Glenn. Sharps
estava no fundo da água, só a ausência de patos mostrando qualquer sinal da sua
presença. Ao meu lado estava Trent.
— Mandou Sara Jane ao DFI com a única intenção de fazer com que Edden
me chamasse? — perguntei, amargamente.
— Algumas saídas para tirar a fotografia, mas não. Era quase uma certeza
matemática que ele seria assassinado depois de ter concordado em trabalhar para
mim, embora eu tivesse tentado protegê-lo. Quen está muito perturbado — disse
ele, levemente, o olhar preso nas ondas de Sharps. — O fato de o Sr. Smather ter
aparecido nos meus estábulos significa que o assassino está ficando arrojado.
bruxas. Foi outra pessoa a fazê-lo. Podia aceitar o dinheiro e ajudar Trent a
resolver aquele problema de trabalho ou não aceitar o dinheiro e ele o conseguiria
de graça. Ia aceitar o dinheiro.
— É um cretino, sabia?
Vendo que eu compreendera, Trent sorriu. Tive de usar toda minha força
de vontade para não lhe cuspir na cara. As mãos compridas pairavam sobre a
beira da mureta. O sol concedia à sua pele bronzeada, uma quente cor dourada
que quase brilhava contra a camisa branca e o rosto obscurecido. Alguns fios do
seu cabelo agitavam-se com a brisa, quase tocando minhas madeixas caprichosas.
— Vá se ferrar, Kalamack.
— Aposto que sim — disse eu, amarga. — Por que não matá-los todos?
Arrumar a questão?
Ri disfarçadamente.
— Oh, e não podemos permitir uma coisa dessas, não é? — Trent suspirou.
366
— Usar o sarcasmo para esconder seu medo faz com que pareça muito
jovem.
— E fazer girar o lápis entre os dedos faz com que pareça nervoso — rebati.
Sabia bem como era discutir com alguém que não me morderia se as coisas
saíssem de controle. Os olhos dele tremeram. Com os lábios brancos, virou-se de
novo para o grande lago à nossa frente.
Achava interessante a rapidez com que caí para a diferença "eles" e "nós".
Aparentemente eu não era a única a conhecer as origens de Trent e não gostava do
grau de intimidade que isso estabelecia entre nós.
Ele não estava se gabando — tratava-se de um fato, ainda que de mau gosto
— e os meus lábios contorceram-se ao pensar que estava aceitando dinheiro de um
homem que lidava com o submundo como se fosse um tabuleiro de xadrez. Pela
primeira vez na vida, senti-me feliz por meu pai estar morto e não poder me
p e r gu n t a r " P o r q uê ? " . A i m a g e m do s no s s o s p a i s e m f r e n t e a o ô ni b u s d o
acampamento de férias intrometeu-se e tive de me recordar que não podia confiar
em Trent. Meu pai fizera o mesmo e isso o matou.
— Pobre bebê — trocei. — Por que não usa a sua própria magia? A
linhagem está muito poluída com esses terríveis genes humanos para conseguir
fazer magias mais elaboradas?
Os nós dos dedos dele ficaram brancos, quando agarrou a mureta, depois
relaxou.
367
— Eu irei arranjar uma bruxa das linhas Ley. Preferiria contratar alguém
voluntariamente que mandá-la raptar, mas se todas as bruxas com quem falo
acabam mortas, eu roubarei uma.
— Sim — disse eu, num tom arrastado e cáustico. — Os elfos são conhecidos
por isso, não são?
— Tenha cuidado.
— Tenho sempre cuidado — disse eu, sabendo que não era uma bruxa
suficientemente boa para ter de me preocupar com a possibilidade de ele me
"roubar".
— Pode parar com o blefe. Não mandou aquele demônio atrás de mim na
primavera passada.
A ligeira brisa que se levantou era fria e apertei mais o casaco contra o
corpo, enquanto me virava.
368
— Como é que...
— Depois de ter ouvido a conversa que teve com seu namorado no meu
gabinete e de ter visto sua reação àquele demônio, soube que tinha sido outra
pessoa, embora tenha de admitir que tê-la visto esmurrada e azul, depois de ter
libertado o demônio para matar seu invocador, quase me convenceu.
Não gostava do fato de ele ter ouvido minha conversa com Nick. Ou que
tivesse respondido exatamente da mesma maneira que eu, depois de ter
conseguido controlar Algaiarept. Os sapatos de Trent rasparam na ponte e uma
pergunta cuidadosa chegou aos seus olhos.
— Tinha sangrado tanto que... — parei, os lábios apertados. Por que estava
lhe contando aquilo? — Sim. Foi.
— Ainda bem — disse ele, o olhar ainda sobre o lago. — Fico feliz por
saber.
Idiota — pensei, considerando que quem quer que tenha enviado Algaiarept
atrás de nós, nessa noite, tinha sofrido uma dose dupla de dor.
— Parece mesmo que alguém não gostou nada que tivéssemos conversado,
hã? — disse eu, depois parei. Meu rosto ficou gelado e sustentei a respiração. E se
o s a t a q u e s c o n t ra n o s sa vi d a e a r e ce n t e o n d a d e vi o l ê n ci a e st i ve s se m
relacionados? Talvez eu estivesse destinada a ser a primeira vítima do caçador de
bruxas?
Pousando a cabeça nas mãos em concha, usei toda minha força de vontade
para não desmaiar. Glenn chamaria alguém e seria o fim. Trent afastou-se da
mureta.
Engoli em seco.
— Eu? Já estou lhe devendo um favor. Não pode me pagar o suficiente para
me enterrar ainda mais. Mas fazemos assim: eu o chamo e você pergunta. Tenho
certeza que os dois podem chegar a um acordo quanto ao pagamento.
— Não.
— Não me chame de covarde, a menos que seja algo que esteja disposto a
fazer. Sou irrefletida. Não sou idiota — mas depois hesitei. Nick o faria.
— V a i c h a m á - l o ? — a s u r p r e s a s ú b i ta e fr a n c a d e l e a p a n h o u - m e
desprevenida e mantive o rosto impassível, pensando que conseguir sobressaltá-lo
era um encorajamento ao meu ego de que precisava terrivelmente. A rapidez com
que o escondeu fez-me sentir duplamente feliz. — Acabou de dizer...
— Está pagando pelo resultado, não pelo passo a passo. Entrarei em contato
quando descobrir alguma coisa.
Trent saltou para trás. Eu fitei, pestanejando, o local onde ele estivera. Tinha
desaparecido. Encontrei-o a mais de um metro de distância, completamente fora
da ponte. Já tinha visto gatos moverem-se assim. Ele parecia assustado quando se
371
endireitou, depois furioso por eu ter visto nele aquela emoção. O sol brilhava nos
seus cabelos finos; o chapéu estava na água, assumindo um doentio tom verde.
Meu coração acelerou quando ninguém se mexeu. Não devia ter lhe tocado.
Não devia ter lhe tocado. Lambendo os lábios, puxei o casaco para endireitá-lo,
feliz por Quen ter o bom senso de perceber que eu não estava tentando machucar
Trent.
Capitulo 24
— Pela terceira vez, Rachel. Quer outra fatia de pão?
Ergui os olhos da luz que brilhava sobre a superfície do meu copo de vinho,
deparando-me com Nick que esperava, com uma expressão curiosa e divertida.
372
Estendi o prato do pão. Levando em conta sua expressão inquisitiva, calculei que o
estava segurando já há algum tempo.
— Hum, não. Não, obrigada — disse eu, olhando de relance para baixo e
descobrindo o jantar — que Nick preparou para mim — praticamente intacto.
O prato de Nick estava vazio e, depois de ter colocado o pão sobre a mesa,
recostou-se e começou a brincar com a faca, equilibrando-a sobre um guardanapo.
— Sei que não é a comida — disse ele. — O que houve? Praticamente não
disse uma palavra desde que... Hum... Você foi ao museu.
— Nem parece você estando assim tão calada. Tem a ver com o fato de o Sr.
Kalamack não ter sido preso, depois de terem descoberto, hum, aquele... Corpo?
Afastei o prato num acesso de culpa. Ainda não tinha dito a Nick que
troquei de lado no que dizia respeito à questão do "Vamos apanhar o Trent". Não
tinha, mesmo, e era isso que estava me incomodando. Aquele homem não valia
nada.
O s o l h o s d e l e n ã o m o s t r a va m m a i s d o q u e e n co r a j a me n t o , s u a s
profundezas castanhas refletindo o brilho da pequena luz que pendia sobre a
minúscula mesa da cozinha/sala de jantar de Nick. Minha atenção voltou-se para a
pequena armação que se erguia à altura do peito — que a separava da sala de
estar — enquanto tentava decidir como abordar o assunto. Há meses que lhe dizia
que devia deixar os demônios sossegados e agora ali estava eu, querendo pedir
que chamasse Algaliarept. Tinha certeza de que a resposta ia custar mais do que o
que estava coberto pelo "contrato à experiência" de Nick e não queria correr o
risco de que ele tivesse de pagá-lo de outra forma. Nick tinha uma veia cavalheira
tão grande como o rio Ohio.
— Me diz... ? — pediu ele, inclinando a cabeça para tentar ver meus olhos.
Os dedos de Nick deslizaram dos meus e afastou-se para pegar seu copo de
vinho.
— Desculpe?
Encolhi-me.
374
— Sabe, hoje falei com Trent — disse, rapidamente, para que ele não
pudesse me interromper. — E chegamos à conclusão que o demônio que nos
atacou na primavera passada é o mesmo que está cometendo os homicídios... Era
suposto eu ter sido a primeira vítima do caçador de bruxas, mas, como recusei a
oferta de Trent, ele deixou-me ir. Se eu conseguir descobrir quem o enviou para
nos matar, então conseguiremos pegar o assassino.
De lábios afastados, Nick olhava fixamente para mim. Quase conseguia ver
seus pensamentos organizarem-se: Trent era inocente e eu estava trabalhando para
ele, com o intuito de limpar seu nome de qualquer suspeita. Sentindo-me
desconfortável, deslizei o garfo pelo prato.
— Quanto ele está te pagando? — acabou Nick por perguntar, sem que sua
voz me desse qualquer sinal dos seus pensamentos.
— Dois mil agora — disse eu, sentindo o leve peso do envelope no meu
bolso, já que ainda não tinha ido para casa. — Outros dezoito quando lhe disser
quem é o caçador de bruxas.
— Vinte mil dólares? — disse ele, os olhos castanhos muito abertos sob a
luz fluorescente. — Ele está pagando a você vinte mil dólares por um nome? Não
tem de matar nada nem ninguém?
— Foi ele quem matou aquelas bruxas? — perguntou, sua voz fazendo-se
ouvir a partir do corredor que dava acesso ao quarto e eu a segui, atravessando a
sala de estar, até encontrá-lo tirando as roupas do armário e a empilhá-las em cima
da cama, com uma rapidez metódica.
— Não. Acho que não — Deus me proteja se li mal os sinais. Ele entregou-
me uma pilha de macias toalhas verdes, novinhas em folha.
Nick agarrou os lençóis extras e passou por mim, para colocá-los em cima
da cama.
Fiz uma careta, não gostando da filosofia de Nick, segundo a qual "o
dinheiro justifica tudo". Suponho que o fato de ter crescido vendo a mãe lutar por
cada dólar tenha muito a ver com isso, mas, por vezes, questionava as prioridades
de Nick. No entanto, tinha de descobrir o que estava se acontecendo, ainda mais se
fosse para salvar minha própria pele e eu não iria limpar Trent de qualquer
suspeita gratuitamente.
Observei enquanto ele tirava as prateleiras dos seus apoios, desferindo uma
pancada firme por baixo de cada uma delas, empilhando-as contra a parede no
corredor. Tendo terminado, entrou no armário e estendeu-me a mão para que me
juntasse a ele. Eu fitei-o, surpresa.
— Tem a ver com o fato de ser a experiência. Não estou invocando-o para
pedir uma audiência, ele pode dizer "não" e não aparecer completamente, embora
isso nunca tenha acontecido desde que me deste a ideia de me colocar dentro do
círculo em vez dele. Agora aparece só para rir — Nick voltou a estender a mão. —
Anda. Quero ter certeza que cabemos os dois.
Olhei para a parte da sala de estar que conseguia ver, sem qualquer vontade
de me enfiar dentro do armário com Nick. Bem, pelo menos não naquelas
circunstâncias.
— Quer arriscar que ele pense que foi você que o chamou? — perguntou
Nick, as sobrancelhas erguidas.
— Para de falar nele como se fosse uma pessoa, é uma coisa — disse eu,
mas, perante sua expressão exasperada, peguei sua mão e entrei no armário. Nick
largou de imediato minha mão e verificou, com o olhar, o local onde ficavam
nossos cotovelos. O armário era de bom tamanho e fundo. Agora parecia tudo
bem, mas se acrescentássemos um demônio tentando entrar, tornaria-se bastante
claustrofóbico. — Talvez isso não seja muito boa ideia - disse eu.
— Essas velas são minhas — disse eu, só então compreendendo para onde
tinham ido.
— Compre suas próprias velas para invocar demônios — disse eu, chocada.
— Têm de ser acesas pela primeira vez em solo sagrado, caso contrário não
funcionarão.
Perguntei-me, amargamente, se toda noite não teria sido uma desculpa para
acender aquelas velas. Há quanto tempo ele andava chamando aquele demônio?
Fazendo beicinho, observei-o acender a vela e a abanar o fósforo para apagá-lo,
mas só depois de vê-lo tirar uma mão-cheia de cinza do saco de plástico, que
comecei a ficar nervosa.
— Não vai querer saber — a voz dele tinha uma surpreendente carga de
aviso.
Senti o rosto ficar quente, ao pensar que costumava prender pessoas como
ele por roubo de sepulturas.
— Quero, sim.
378
Alguém tinha vendido as cinzas da avó para que Nick pudesse chamar um
demônio com os seus restos mortais. Nick sacudiu as mãos e voltou a selar o saco.
— Talvez você consiga se safar só com isso, mas eu não. O cara da loja não
parava de tentar me vender um amuleto, chocantemente caro, para me ajudar a
criar um círculo de ligação como deve ser sem acreditar que um humano o
conseguisse fechar sozinho. Acabou me dando um desconto de dez por cento em
tudo aquilo que comprei, depois de tê-lo prendido num círculo que ele não foi
capaz de quebrar. Suponho que tivesse pensado que eu sabia o suficiente para
sobreviver e voltar para comprar mais coisas.
Compreendi que aquela era a primeira vez — bem, a segunda — em que ele
tinha uma oportunidade de me mostrar suas capacidades, algo de que tinha,
obviamente, grande orgulho. Os humanos tinham de trabalhar com afinco para
manipularem as linhas Ley tão bem como os bruxos, razão pela qual se tornaram
conhecidos por se aliarem aos demônios, o que facilitava a tarefa. Claro que não
duravam muito tempo depois disso, acabando por cometer um erro, sendo
puxados para a eternidade. Aquilo era tão pouco seguro. E ali estava eu
encorajando-o.
— Está tudo bem — disse ele, para me acalmar, o rosto estreito aberto num
sorriso. — Já fiz isso antes.
379
— É isso que me assusta — disse eu, recuando para lhe dar espaço.
Enquanto Nick atirava o saco de plástico cheio de cinzas para junto da caixa de
sapatos, eu tentava limpar a cinza dos ombros. Nick entrou no armário comigo e,
depois, resmungando ao lembrar-se de algo, enfiou um pedaço de madeira na
fenda das dobradiças.
Isso não é nada bom — pensei, enquanto sentia o suor despontar no fundo
das minhas costas.
— Pronta?
— Não.
Nick abriu os olhos. Estavam vidrados e percebi que ele estava vendo tudo
naquela confusa mistura de realidade e eternidade.
— É sobre isso que tenho falado — disse ele com a voz oca. — Tem a ver
com o feitiço de ligação. Legal, não é?
— É horrível — admiti. — Desculpa. Por que não me disse que era assim
tão ruim?
embora fosse apenas uma fração daquele que eu tinha canalizado no gabinete de
Trent — forçou-me a reagir.
— Posso ajudar? — acabei por perguntar, agarrando as mãos para que não
começassem a ter espasmos.
— Não.
— Lamento — disse eu. — Não sabia que podia sentir tudo isso. É por isso
que não tem dormido? Tenho te mantido acordado?
— Temos que quebrar o feitiço — disse eu, nervosa. — Como pode suportar
isso?
— Desculpa.
Ele expirou num som lento e não fiquei surpresa quando ele saltou,
espelhando o súbito corte de energia da eternidade que podia sentir correndo
através dele. Através de nós.
— Terei cuidado — disse eu, de súbito bem mais nervosa. — Então o que
acontece agora? — perguntei, olhando para a vela sobre o pufe.
381
— Agora eu o chamo.
— Quanto tempo?
— Desde que comecei a me pôr no círculo em vez dele? Cinco, dez minutos.
O humor de Nick estava mais calmo e eu podia sentir o calor dos nossos
ombros que quase se tocavam. O som de uma ambulância fez-se ouvir ao longe,
tênue, desaparecendo de seguida.
— Hum, eu não sairia do círculo antes do nascer do Sol. Até que se revele e
possamos bani-lo adequadamente para a eternidade, pode aparecer a qualquer
hora.
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— Quer dizer que, se ele não aparecer, vamos ficar presos neste armário até
de manhã?
Oh, que bom! Ele chegou — repeti mentalmente, num tom sarcástico. Deus
me proteja. Minha vida estava mesmo ferrada.
— Fique nessa forma — disse Nick, com a voz firme. — E pare de aborrecer
Rachel. Eu tenho umas perguntas e quero saber quanto vão custar antes de fazê-
las.
O demônio não ergueu os olhos do livro que segurava nas mãos. Senti- me
indisposta quando compreendi que ele havia esticado os dedos para melhor
conseguir agarrá-lo.
— Essa pergunta fica no âmbito do nosso acordo — disse ele, com a voz
preocupada. — Tendo em conta que Rachel Mariana Morgan já adivinhou a
resposta — ergueu os olhos cobertos pelos óculos escuros vermelhos e de cor
alaranjada. — Oh, sim, provei Trenton Aloysius Kalamack nessa noite, tal como
provei a ti. Devia tê-lo matado logo, mas sua novidade era tão agradável; demorei-
me, até que ele foi capaz de me prender num círculo.
Lambi os lábios.
— Não.
Senti o estômago apertado e Nick agarrou meu braço antes que eu tocasse
no círculo.
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— Tinha dito que não o conhecia — disse eu, com a raiva a tornando minha
voz áspera.
— Outra pergunta?
Nick endireitou-se.
— I s s o é u m c o nj u n t o d e p e rg u n t a s m u i t o c a r a s ; a s d u a s ju n t a s
ultrapassam, de longe, o âmbito do nosso acordo.
Voltou uma vez mais a atenção para o livro que tinha nas mãos e virou uma
página. Senti uma onda de preocupação abater-se sobre mim, enquanto Nick
inspirava.
Ele sorriu.
Isso não é bom. Isso não é bom, não é bom, não é bom.
— É só um livro.
— Antes que volte a ser enviado para te matar? Tem sido o tópico de
muitas conversas de ambos os lados das linhas Ley. É melhor que pergunte
depressa. Se for chamado subitamente, talvez seja melhor resolver quaisquer
assuntos que tenha pendente.
— Rachel! É a próxima?
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— Al? — o demônio sorriu, alegre. — Oh, gosto disso! Al. Sim, pode me
chamar de Al.
— N ã o p r o me t o n a d a — d i s s e e l e co m u m o l h a r i rô n i c o , d e p o i
s
desapareceu.
O livro que ele tinha nas mãos caiu sobre o tapete, seguido por um deslizar
invisível, vindo das prateleiras. Ouvi o bater do meu coração, abalada. O que é
que eu ia dizer à Ivy? Como poderia me proteger de Piscary? Já tinha me
escondido numa igreja. Não gostava daquilo.
— Espera — disse Nick, puxando-me para trás, antes que pudesse tocar no
círculo. Segui o olhar dele para a pilha de cinzas. — Ele ainda não foi embora.
— Piscary — disse ele, fitando o carpete amassado. — Por que não posso ter
uma namorada normal, que só tem de se esconder do antigo par do baile de
finalistas?
Logo depois de ligar para Trent, ele disse que resolveria a questão.
Resolveria a questão... Esperava que isso significasse transpassar Piscary com uma
estaca. Piscary não se importava com a lei, por que eu haveria de me importar?
Analisei minha consciência, não encontrando qualquer problema.
Fechei o punho para esconder os dedos que tremiam, depois de ter marcado
o número. Quem me atendeu foi Jonathan que soava irado e mau. O fiz passar um
mau bocado até ele ter concordado em me deixar falar diretamente com Trent. Por
fim ouvi o clique de uma extensão e a voz de Trent, suave como um rio, saudou-
me com um profissional "Boa-tarde, senhorita Morgan".
— O demônio disse que Piscary o tinha enviado para matar minhas bruxas?
— perguntou Trent, o som dos seus dedos batendo, intrometendo-se entre as
palavras.
— Não seja rude — disse ele. — Tenho uma alma tal como você. E
obrigado. Assim que me trouxer a confirmação dessa informação; enviarei um
correio com o resto dos seus honorários.
— Um mesmo demônio pode ser invocado por mais do que uma pessoa,
menina Morgan. Se não perguntou se Piscary o tinha invocado para matar aquelas
bruxas, tudo o que tem são especulações.
— Isso era muito caro — disse eu, baixando a voz e passando a mão pela
minha trança. — Mas foi ele que nos atacou, sob as ordens de Piscary e admitiu
que estava matando as bruxas.
mal feito. Tal como você disse, estou pagando pelo resultado, não pelo passo a
passo... Ou por uma especulação.
— A mim parece que não está me pagando por nada! Estou dizendo que foi
Piscary e não são uns míseros vinte mil dólares que me vão fazer entrar no covil
de um vampiro com mais de quatrocentos anos, para lhe perguntar se tem
mandado um demônio matar os cidadãos de Cincinnati.
— Ele o levou.
— Levou o quê?
— Eu pensei que ele estava falando do livro que tinha na mão, mas ele
levou aquele que você usou para me tornar seu familiar.
— Não — disse Nick, o rosto tenso e pálido. — Se ele o tem, como vamos
quebrar o feitiço?
Fiquei estupefata.
391
— Oh!
Capitulo 25
O s o m b a i xo d e u m a m o t o m e f e z e r g u e r o s o l h o s d o m e u l i vr o .
Reconhecendo a cadência da moto de Kist, puxei os joelhos até o queixo,
aconcheguei os cobertores e apaguei o abajur da mesa de cabeceira. O vislumbre
392
negro do outro lado da janela de vitral aberta assumia uma tonalidade cinzenta,
mais clara. Ivy chegou em casa. Se Kist entrasse, eu ia fingir que estava dormindo
até ele ter saído. Mas a moto mal parou antes de voltar à estrada. Meus olhos
pousaram nos números verdes e brilhantes do meu relógio. Eram quatro da
manhã. Ela tinha chegado cedo.
Fechando o livro, mas mantendo o dedo no meio das páginas para marcá-
lo, fiquei à escuta dos seus passos no exterior. O frio ar noturno de setembro tinha
se acumulado no meu quarto. Se eu fosse esperta, levantaria e fecharia a janela,
Ivy de certo ligaria o aquecimento quando entrasse.
Agradecia tudo o que havia de mais sagrado por meu quarto fazer parte da
igreja original e cair sob a cláusula do solo sagrado: garantido para manter longe
vampiros mortos-vivos, demônios e sogras. Estaria segura na minha cama até o
Sol nascer. Ainda tinha de me preocupar com Kist. Mas ele não me tocaria
enquanto Ivy respirasse. Também não me tocaria se ela estivesse morta.
Gelada, saltei da cama, agarrei o roupão, enfiei os pés nos chinelos cor-de-
rosa felpudos e saí para o corredor. Parando, de repente, virei para trás. Erguendo-
me em frente à cômoda de madeira compensada, movi os dedos sobre as sombras
arredondadas dos frascos de perfume.
— Não vá lá fora — disse ele, com um medo espesso na voz aguda. — Saia
pelos fundos. Suba num ônibus. Vai para a casa de Nick.
Meu olhar passou por ele, dirigindo-se para a porta, enquanto ouvia Ivy
vomitando de novo, o som dos vômitos horríveis misturando-se com pesados
soluços.
— O quê?
A luz do poste era suficiente para ver. Embrenhada nas sombras profundas
lançadas pelos carvalhos, Ivy jazia nas suas roupas de couro, meio deitada sobre
os dois primeiros degraus da igreja, abandonada à sua sorte. O vômito, gelatinoso
e escuro, estava espalhado pelos degraus, pingando para a calçada em pequenos
montes xaroposos e horríveis. O cheiro enjoativo de sangue era espesso,
sobrepondo-se ao meu perfume citrino.
— Eu disse que não — disse ela, a voz estalando. — Eu disse que não.
— Ela vai não me atacar — disse eu, a raiva mesclando-se com o medo
numa mistura nauseante. — Ela não teve um deslize. Escute-a. Alguém a forçou.
Ivy gemeu quando chegamos ao último degrau. Sua mão tocou na porta
para se apoiar e ela saltou como se tivesse sido queimada. Como um animal,
afastou-se de mim, arranhando-me. Arquejando, caí para trás de olhos abertos. O
crucifixo dela tinha desaparecido.
— Ele ordenou-me que o fizesse — disse ela, a voz suave como uma pena,
num contraste chocante com o rosto contorcido, aterrorizante na sua fome
absoluta. — Eu respondi que não o faria.
— Ivy — disse eu, com a voz rouca, conseguindo por fim inspirar. — Me
põe no chão.
Uma vez mais emiti aquele ruído horrível, quando ela me apertou com
mais força.
— Assim não! — guinchou Jenks. — Ivy! Você não quer fazer isto!
Ivy foi atirada para trás. Caí de joelhos, no preciso momento em que a mão
que ela tinha ao redor do meu pescoço se afastou. Recuperei o fôlego num arquejo
rouco. Senti uma dor transpassar-me até ao crânio quando meus joelhos bateram
no pavimento de pedra. Tossi, levando a mão à garganta. Inspirei uma vez, depois
outra. Jenks era um borrão de verde e negro. As manchas pretas que dançavam à
minha frente encolheram e desapareceram.
— Jenks — disse eu, com a voz rouca, observando-a através das mechas do
meu cabelo. — Vai buscar Nick.
— Vai buscá-lo, se ele já não estiver a caminho. Deve ter me sentido usando
aquela linha.
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— Para o diabo com isso tudo! — gritou Jenks. — Ela vai te matar!
Meu coração saltou quando ela olhou para mim, os olhos vazios e o cabelo
desgrenhado.
Ivy era mais alta do que eu, mas meu ombro cabia bem sob o dela e,
suportando quase todo seu peso, abri a porta.
Fiquei gelada quando seu novo mantra de "Ele disse que ia ficar tudo bem"
se transformou num riso descontrolado. Era um riso profundo, que provocava
arrepios e a minha boca ficou seca.
Cerrei o maxilar e apertei-lhe os ombros com mais força. Senti uma raiva
misturada com medo. Alguém a tinha usado. Alguém a tinha forçado a beber
sangue contra sua vontade. Estava desvairada, um toxicodependente descendo de
um momento de êxtase.
S e n t i u m a p e r to n o e s tô m a g o . O p e s c o ç o p e r fe i t o d e I v y t i n h a s i d o
violentado, um longo rasgão marcando a alvura da sua pele. Ainda sangrava e
tentei não respirar sobre ele, senão poderia despertar a saliva de vampiro que
ainda permanecia lá. Assustada, deixei o cabelo cair e recuei. Em termos
vampíricos, ela tinha sido violada.
Tinha de metê-la na cama com uma almofada para chorar. Tinha de lhe
arranjar uma xícara de chocolate quente e um psiquiatra muito bom. Será que
existiam psiquiatras para vampiros maltratados? — perguntei-me enquanto
pousava a mão no ombro dela.
— Ivy — chamei, com voz suave. — Está na hora de te limpar — olhei para a
banheira dela onde o peixe idiota continuava nadando. Ela precisava de um
banho de chuveiro, não de um banho de imersão em que ficasse sentada na
mesma sujeira que tinha de tirar do corpo. — Vamos, Ivy — encorajei-a. — Um
banho rápido no meu banheiro. Vou buscar sua camisola. Vamos...
— Três anos — disse ela, num suave suspiro, as lágrimas escorrendo pelo
seu rosto oval até ter passado as costas da mão pelo queixo, deixando uma
mancha de sangue. — Três anos...
De cabeça baixa levou a mão ao zíper das calças e eu lancei-me para a porta.
Virando as costas à parede, puxei para baixo a suave manta que cobria a
cama de Ivy, expondo o cetim negro que cheirava a cinza de madeira. O livro
sobre a sua mesa de cabeceira versava sobre a meditação profunda e a forma de
atingir estados alterados de consciência. Minha raiva aumentou. Ela tinha tentado
tão arduamente e, agora, tinha voltado à estaca zero. Por quê? Para que tinha sido
tudo aquilo?
Pensei que ia vomitar. O cabelo de Ivy estava colado a ela. A pele estava
branca e os braços e pernas abertos num ângulo estranho. As duas pulseiras que
usava no tornozelo brilhavam, negras, contra a alvura da sua pele, conferindo-lhes
o aspecto de correntes. Ela tremia, embora a água estivesse escaldando, os olhos
fechados e o rosto contorcido numa memória que a assombraria para o resto da
vida e da morte. Quem disse que o vampirismo era glamoroso? Tratava-se de uma
mentira, uma ilusão usada para esconder a feia realidade.
Inspirei fundo.
— Ivy?
Tentei engolir.
— Sim.
— Ivy? — disse eu, assustada. — Não quero te tocar, por favor, levanta.
— Eu disse que não — repetiu ela, a voz como um sussurro, como seda
cinzenta rasgada esvoaçando para cair sobre a neve.
— Kist levou-me até ele — disse ela, as palavras com a cadência de uma
memória repetida.
— Quer ser o meu delfim? — sussurrou ela, mais suavemente do que uma
oração culpada.
— Eu também disse que não — disse ela, por entre golfadas de ar. — Eu
disse que não, mas ele fez assim mesmo. Acho que estou morta, Rachel. Estou
morta? — perguntou ela, as lágrimas parando de correr com seu medo súbito.
— O que aconteceu?
— Ele estava zangado. Ele disse que eu tinha falhado. Mas disse que ia ficar
tudo bem. Que eu era a filha do seu coração e que ele me amava, que me
perdoava. Ele disse-me que compreendia tudo sobre animais de estimação. Que já
os tinha tido, mas que eles tinham se virado sempre contra ele e que teve de matá-
los. Magoava-o quando eles o traíam. Disse que, se eu não conseguisse te colocar
em segurança, ele o faria por mim. Eu disse que o faria, mas ele sabia que estava
mentindo — emitiu um gemido assustado. — Ele sabia que eu estava mentindo.
— Ele disse que compreendia minha necessidade de ter uma amiga em vez
de um animal de estimação, mas que não era seguro deixar-te como estava. Ele
disse que eu tinha perdido o controle e que as pessoas começavam a falar. Nessa
altura comecei a chorar, porque ele estava sendo tão bom para mim e eu o tinha
decepcionado — as palavras dela saíam em pequenos rompantes enquanto lutava
para pronunciá-las. — Fez-me sentar ao seu lado, abraçando-me enquanto
sussurrava o quanto estava orgulhoso de mim e me dizia que amou minha bisavó
404
quase tanto como me amava. Era tudo aquilo que eu queria — disse ela. — Que
ele tivesse orgulho em mim — emitiu uma gargalhada rouca e curta, dolorida. —
Ele disse que compreendia a necessidade de eu ter uma amiga — disse ela virada
para a parede, o rosto escondido atrás do cabelo. — Ele disse que tinha procurado,
durante séculos, alguém suficientemente forte para sobreviver com ele. Que minha
mãe, minha avó e minha bisavó tinham se revelado fracas, mas que eu tinha força
de vontade para sobreviver. Eu disse que não queria viver para sempre e ele
mandou eu me calar, dizendo-me que eu era sua escolhida, que ia ficar com ele
para sempre — os ombros dela tremeram sob a manta. — Ele abraçou-me,
acalmando meu receio do futuro. Ele disse que me amava e que estava orgulhoso
de mim. E, depois, pegou meu dedo e fez sangrar a si mesmo.
— Oh, Deus, Rachel! Ele é tão antigo. Era como eletricidade líquida,
acumulando-se dentro dele. Eu tentei partir. Eu desejava-o, mas ainda assim,
tentei partir mas ele não me deixou. Eu disse que não e depois corri. Mas ele
apanhou-me. Eu tentei lutar, mas não fez qualquer diferença. Depois implorei que
não o fizesse, mas ele segurou-me e obrigou-me a prová-lo.
A voz dela era rouca e, seu corpo tremia. Fui sentar-me na beira da cama,
horrorizada. Ivy ficou imóvel e eu esperei incapaz de olhar para seu rosto,
temendo fazê-lo.
— E depois eu já não podia pensar — disse ela, o som monótono da sua voz
chocando-me. — Acho que desmaiei por um momento. Eu desejava-o. O poder, a
paixão. Ele é tão antigo. Puxei-o para o chão e montei-o. Tomei tudo o que ele
tinha, enquanto ele se agarrava a mim, incitando-me a ir mais longe, a tirar mais. E
eu tirei, Rachel. Tirei mais do que devia ter tirado. Ele devia ter me impedido, mas
deixou-me tomá-lo todo.
— Kist tentou nos impedir. Tentou colocar-se entre nós, impedir que
Piscary me deixasse tirar muito, mas a cada gole eu perdia-me mais. Acho que...
Magoei Kist. Acho que o sujeitei. Tudo o que sei é que ele foi embora e Piscary... —
um som suave, repleto de prazer, enquanto ela repetia aquele nome. — Piscary
puxou-me de novo para cima dele — ela movia-se, langorosa, sob os lençóis
negros, de forma sugestiva. — Ele pressionou, suavemente, minha cabeça contra
405
ele e apertou-a mais, até eu ter certeza de que ele me queria e ter descoberto que
ele ainda tinha mais para dar.
— Tirei-lhe tudo. Ele deixou-me tirar tudo. Eu sabia o porquê de ele estar
me deixando fazê-lo e fiz assim mesmo.
Ela caiu em silêncio, mas eu sabia que ainda não tinha terminado. Não
queria ouvir mais, mas ela tinha de dizer ou isso a levaria lentamente à loucura.
— C o m c a d a g o l e , p o d i a se n t i r s u a f o m e cr e s ce n d o — d i sse e l a ,
sussurrando. — A cada vez que engolia, sua necessidade aumentava. Eu sabia o
que ia acontecer se não parasse, mas ele disse que não fazia mal e já tinha se
passado tanto tempo — ela quase gemeu. — Eu não queria parar. Eu sabia o que ia
acontecer e não quis parar. Foi por culpa minha. Culpa minha.
— A culpa não foi sua — disse eu, pousando a mão no seu ombro coberto.
— Foi sim — disse ela, e eu afastei-me quando sua voz se tornou baixa e
sensual. — Eu sabia o que ia acontecer e, quando eu lhe tirei tudo o que ele tinha,
Piscary pediu seu sangue de volta... Como eu sabia que ele ia fazer. E eu dei-lhe.
Eu queria fazê-lo e fiz. E foi fantástico.
Obriguei-me a respirar.
— Deus me ajude — sussurrou ela. — Eu estava viva. Há três anos que não
vivia. Eu era uma deusa. Eu podia dar a vida. Eu podia tirá-la. O vi pelo que ele
era e quis ser como ele. E, com seu sangue ardendo através de mim, como se fosse
meu, sua força inteiramente minha e, seu poder inteiramente meu, ardendo em
mim e arrastando-me para a verdade, feia e bela, da sua existência, ele pediu-me
que fosse seu delfim. Pediu-me que ficasse com o lugar de Kisten, disse que tinha
estado à espera da minha compreensão do que isso significava antes de me
oferecer e que, quando eu morresse, seria igual a ele.
ver com o fato de o céu, do outro lado das cortinas, começar a iluminar-se com a
luz da madrugada que se aproximava.
— Eu fui com ele, Rachel — sussurrou ela, a cor começando a regressar aos
seus lábios. — Eu fui ter com ele e ele rasgou-me como um animal. Eu recebi a dor
de braços abertos. Seus dentes eram a verdade de Deus, cortando até à minha
alma. Ele violentou-me, descontrolado pela alegria de receber o seu poder de
volta, depois de ter dado de livre vontade. E eu regozijei-me com isso, mesmo
enquanto ele me machucava os braços e rasgava o pescoço.
— Doía — sussurrou ela, a sua voz como a de uma criança, enquanto suas
pálpebras se abriam e fechavam. — Ninguém tem saliva de vampiro suficiente
para transmutar tamanha dor e ele bebeu minha infelicidade e minha angústia
juntamente com meu sangue. Eu queria dar-lhe mais, provar minha lealdade,
provar que, embora tivesse falhado por não ter te domado, seria seu delfim. O
sangue tem gosto melhor durante o sexo — disse ela, com a voz fraca. — Os
hormônios tornam-no mais doce, por isso abri-me a ele. Ele disse que não, ainda
que gemesse por isso. Temia matar-me por engano. Mas eu provoquei-o até ele
n ã o co n se g u i r p a ra r. Eu q u e r i a a q u i l o . Eu q u e r i a a q u i l o , e m b o r a e l e me
machucasse. Ele tomou tudo, levando-nos ao clímax, no preciso momento em que
me matava — ela tremeu, fechando os olhos. — Oh, Deus, Rachel! Acho que ele
me matou.
— Não quero estar morta — murmurou ela. — Cometi um erro. Não quero
ser o delfim de Piscary. Quero ficar aqui contigo. Posso ficar aqui contigo? Toma
conta de mim?
407
Nick vinha a caminho, Glenn falaria com Nick. Ele os convenceria de que
eu tinha razão, diria onde eu tinha ido. Eles iriam, nem que fosse para me prender
por ter interferido. Teria dito que ligasse para a SI, mas o mais certo era que
Piscary os tivesse no bolso. Embora os humanos tivessem quase tantas hipóteses
de vencer um mestre vampiro como eu, talvez a simples interrupção fosse
suficiente para salvar meu traseiro.
409
Sem abrandar, saí para o corredor em busca das minhas botas. Calcei-as e
dirigi-me para a porta da frente, com os cadarços batendo. Parando de repente no
corredor, dei meia-volta, regressando à cozinha. Agarrei uma mão-cheia de trocos
para o ônibus e parti. Piscary queria falar comigo? Ótimo. Eu queria falar com ele.
Capitulo 26
O ônibus estava lotado, às cinco da manhã. Na sua maioria, eram vampiros
vivos e humanos desejosos de serem vampiros, a caminho de casa, regressando às
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suas tristes existências. Todos me olhavam de lado. Podia ser pelo fato de eu feder a
água benta. Podia ser pelo fato de eu estar com um péssimo aspecto, aquecendo-
me com meu horrível e pesado sobretudo de inverno — com pêlo falso ao redor
do colarinho — que eu vesti para que o motorista não me reconhecesse, o que faria
com que se recusasse a parar. Mas apostava que eram as estacas.
Abri o frasco de água benta e bebi-a, despejando as últimas gotas nas mãos e
salpicando com elas o pescoço. A garrafa vazia caiu no chão, matraqueando,
atrás das estacas. Avancei determinada, com minhas botas silenciosas — o medo
pela minha mãe e a raiva pelo que ele tinha feito à Ivy, mantendo meus pés em
movimento. Se fossem muitos, entraria sem quaisquer amuletos. Nick e o DFI
eram meu ás na manga.
quando meia dúzia de pessoas ergueram os olhos do seu trabalho, todas elas
vampiros vivos. O pessoal humano já tinha partido. Estava disposta a apostar que
os belos humanos aduladores — repletos de cicatrizes — tinham ido para casa
com seus clientes preferidos.
Pelo menos Ivy tinha lutado — pensei, compreendendo que a maior parte dos
vampiros tinha uma cicatriz ou uma ferida e que todos eles, com exceção do
vampiro sentado junto ao bar, estavam de mau humor. Um deles tinha sido
mordido, o pescoço aberto e o uniforme rasgado junto ao colarinho. Sob a luz forte
da manhã, seu glamour e a sua tensão sensual tinham desaparecido, deixando
apenas uma deformidade cansada. Meus lábios contorceram-se numa careta de
desagrado. Vendo-os assim, eram repugnantes. No entanto, a cicatriz no meu
pescoço começou a pulsar.
— Ora, veja quem apareceu — disse o vampiro sentado no bar, com a voz
arrastada. Seu uniforme era mais elaborado do que o dos restantes e tirou o crachá
com o nome quando viu os meus olhos presos nele. Dizia SAMUEL — aquele era o
vampiro que tinha deixado Tarra servir no andar de cima na noite em que
tínhamos ido ali. Samuel levantou-se, inclinando-se para tocar num botão atrás do
balcão. O sinal de ABERTO atrás de mim apagou-se. — É Rachel Morgan? —
perguntou ele, sua confiante voz de vampiro, lenta e paternalista.
Agarrando minha bolsa, avancei, arrojada, para além do sinal que dizia
AGUARDE POR UM EMPREGADO. Sim, eu era a garota má.
— É com isso que Piscary está preocupado? — disse Samuel, o rosto lindo,
sorrindo cínico. — Que coisinha tão magra. Não é grande coisa na parte de cima
— dirigiu-me um olhar lascivo. — Ou na de baixo. Pensei que fosse mais alta.
— E eu pensei que fosse mais esperto — disse eu, recuando enquanto ele se
contorcia no chão, arquejando.
um ar mais sofisticado do que sua normal roupa de couro. Uma mancha negra
alastrava pelo rosto, onde a barba loura começava a despontar, terminando perto
do olho. Pela sua posição, calculei que lhe doessem as costelas, mas supus que o
maior dano tivesse sido ao seu orgulho. Ele tinha perdido seu estatuto de delfim
para Ivy.
— Ela precisa ser revistada — ele lambeu os lábios, olhando para mim de
uma forma que me fez acelerar a pulsação. — Eu faço.
Maravilha.
Com os olhos fixos nos dele, levei devagar a mão atrás das costas e
entreguei-lhe, lentamente, minha arma de bolas explosivas. Os vampiros que nos
rodeavam não emitiram qualquer som. Talvez devessem mostrar algum respeito
pela minha pequena arma de paintball vermelha? Eles não sabiam o que tinha no
414
s e u i n te r i o r . E u t i n h a s a b i a , m a l a ti n h a p r e n d i d o n a c i n tu r a , q u e n u n c a
conseguiria usá-la e franzi a sobrancelha, perante as oportunidades perdidas que
nunca tinham realmente existido.
Sem dizer uma palavra, ele pousou-a, bem como a minha arma, sobre a
mesa atrás dele. Avançando, abriu os braços. Eu imitei-o, obedientemente, e ele
aproximou-se para me revistar.
Com o maxilar apertado, senti suas mãos percorrerem meu corpo. Onde ele
tocava, eu sentia um palpitar quente que avançava para o meio do meu corpo. A
cicatriz não, a cicatriz não — pensei, desesperada, sabendo o que aconteceria se ele
tocasse. Os feromônios vampíricos eram quase tão espessos que os podia ver e o
simples movimento do ventilador fazia com que a sensação de prazer se
precipitasse do meu pescoço para minha virilha.
Eu não disse nada, deixando que acreditasse no que quisesse, e ele encolheu
os ombros.
Com a visão mais nítida, ele levou a mão atrás de si e arrastou o minha
bolsa da mesa. Os vampiros tinham começado a conversar entre si, tecendo
especulações descontraídas e irritantes sobre quanto tempo eu ia durar. Kist
retirou do interior do minha bolsa a faca de açougueiro e um riso uivante
percorreu-os. Meu olhar percorreu a destruição no Piscary's, enquanto Kist
pousava uma mão cheia de amuletos sobre a mesa com um ruído seco.
— Foi Ivy quem fez isso? — perguntei, tentando encontrar nem que fosse
uma centelha da minha confiança.
— Por assim dizer — ele olhou para Kist e eu pensei ter visto o maxilar do
vampiro loiro cerrar-se. — Sua companheira de casa é boa de transa — disse
Samuel, tornando-se mais arrogante quando a respiração de Kist acelerou e seus
dedos, vasculhando o interior da minha mala, se tornaram brutos. — Sim —
continuou Samuel, arrastando as palavras. — Ela e Piscary puseram todo o
restaurante sob o efeito dos feromônios vampíricos. Acabamos com três combates e
um par de dentadas — ele apoiou-se na mesa, cruzou os braços e sorriu, trocista. —
Alguém morreu e foi transportado para as catacumbas temporárias da cidade. Está
vendo? Ele teve direito a uma fotografia na parede e um cupom para um
jantar grátis. Tivemos uma sorte do inferno por termos percebido a tempo o estava
acontecendo e ter tirado todos os que não eram vampiros daqui para fora antes
que se estalasse o caos. Deus nos ajudasse se Piscary perdesse o seu LPM e tivesse
de se recandidatar. Da última vez demorou quase um ano.
Kist ficou rígido. Ele não disse a ninguém que Piscary já o tinha feito. Meus
olhos saltaram para ele, sua raiva mantendo minha boca fechada.
— Eu disse que se calasse — avisou Kist, o calor que emanava do seu corpo
quase visível.
agarrou Samuel pela camisa e atirou ele contra o grosso poste. A madeira gemeu e
ouvi algo estalar no peito de Samuel. O rosto do homem maior mostrou uma
expressão de surpresa, os olhos esbugalhados e a boca aberta com a dor que não
teve tempo de sentir.
Eu arranquei-lhe das mãos e Kist fez um gesto para que eu avançasse à sua
frente. Abriu-se uma abertura no círculo, os vampiros que nos rodeavam
parecendo adequadamente submissos. Ninguém tinha ido ajudar Samuel e as suas
tentativas roucas para respirar, enquanto jazia no chão, sem se mover, tocaram no
fundo de mim.
Meus passos hesitaram quando passei uma última vez os olhos pelos meus
amuletos e compreendi que só estavam sobre a mesa cerca de metade daqueles
que tinha trazido. Kist segurou-me no cotovelo e obrigou-me a andar.
Com a mente em turbilhão, segui suas direções nada sutis, avançando por
entre as mesas, passando por um conjunto de portas de saloon que se abriam para
a cozinha. Atrás de nós, os empregados voltaram ao trabalho, as especulações
voando, enquanto ignoravam Samuel.
418
Não pude deixar de reparar que, embora fosse menor, minha cozinha era
melhor do que a de Piscary. Kist guiou-me até uma porta de incêndio metálica, de
aspecto institucional. Abriu-a e acendeu a luz, revelando uma pequena sala branca
com chão de carvalho. As portas prateadas de um elevador estavam escondidas
fora do caminho. Uma escada em espiral, de abertura larga, que seguia para os
pisos inferiores, ocupava a maior parte de uma das paredes. A escadaria era
elegante e um modesto candelabro sobre ela tilintava suavemente por causa da
brisa que percorria a sala. Um relógio de madeira, do tamanho de uma mesa,
estava pendurado na parede oposta à da escadaria, o seu tique-taque ruidoso.
Se Nick não descobrisse meu bilhete, não teria qualquer hipótese de subir
viva naquelas escadas. A porta de incêndio fechou-se com um estalo atrás de mim
e senti uma alteração na pressão do ar. A brisa não cheirava a nada, quase um
vazio em si mesmo.
— Afaste-se de mim.
onde a cicatriz no teu pescoço pode te levar... E quando tiver terminado, vai
descobrir um frasco na sua bolsa.
Fiquei rígida quando ele se aproximou ainda mais. O cheiro de couro e seda
era um ataque agradável. Eu não consegui respirar enquanto ele me afastava o
cabelo com o nariz.
Não conseguia evitá-lo. Meu corpo exigia que eu fizesse alguma coisa.
Relaxando os ombros, fechei os olhos e passei as mãos pelas suas costas suaves.
Ele parou, surpreendido, depois suas mãos deslizaram pelos meus ombros, para
me agarrar pela cintura. Os músculos sob a seda da sua camisa tornaram-se tensos
sob os meus dedos. Erguendo as mãos, minhas unhas brincaram com os cabelos na
base da nuca de Kist. As madeixas suaves tinham uma cor uniforme que só se
pode encontrar numa caixa e compreendi que ele pintava o cabelo.
Senti uma alteração nos músculos dele, tensos de dor e não de desejo.
— Ele disse que eu era o seu delfim — disse Kist, enterrando o rosto no meu
cabelo para esconder o movimento dos lábios da câmera invisível, pelo menos foi
isso que disse a mim mesma. — Ele disse que eu ficaria com ele para sempre e
traiu-me por causa da Ivy. Ela não o merece — sua voz estava manchada pela dor.
— Ela nem sequer o ama.
calor óbvio através do material fino do meu top. Sua tensão tornou-se mais
profunda, mais perigosa.
— Meu Deus — sussurrou ele, sua voz nada mais que um fio rouco. — Ivy
tinha razão. Deixar-te livre, sem estar ligada a um vampiro seria como foder um
tigre.
— Cuidado com a língua — disse eu, sem fôlego, seu cabelo fazendo-me
cócegas no rosto. — Não gosto desse tipo de linguagem.
— Sim, minha senhora — disse ele, obediente, sua voz chocando-me com a
sua submissão, ainda que ele forçasse seus lábios contra os meus.
Bati com a cabeça no elevador tal foi a força do seu beijo. Afastei-o, sem
medo.
Com seu peso a exercer ainda mais pressão sobre mim, ele afastou os lábios
dos meus. Fitei os seus olhos — seus impecáveis olhos azuis —, estudando-os com
entendimento de que não sabia o que ia acontecer a seguir, mas rezando para que
acontecesse depressa.
— Deixa-me fazer isso — disse ele, sua voz rouca perto de um rosnado.
Suas mãos estavam livres e ele pegou no meu queixo, segurando minha cabeça.
Vislumbrei um pouco dos seus dentes, depois ele ficou muito perto para que eu
conseguisse ver qualquer coisa. Não senti qualquer pitada de medo quando ele
voltou a me beijar, tendo compreendido algo subitamente.
Ele não estava atrás de sangue. Ivy queria sangue, Kist queria sexo. E o
risco de que seu desejo se pudesse transformar em sangue catapultou-me para
além dos limites do razoável e lançou-me numa espiral de atrevimento arrojado.
Seus lábios eram suaves e tinham um calor úmido. Sua barba loira fazia um
contraste chocante que aumentava meu fervor. Com o coração acelerado, passei
um pé por trás da perna dele e puxei-o mais para mim. Ao senti-lo, sua respiração
ergueu-se e suavizou-se num arfar. Um som suave de verdadeiro prazer escapou-
se de mim. Minha língua encontrou a suavidade dos seus dentes e os músculos
sob minhas mãos tornaram-se tensos. Afastei a língua, provocando-o.
421
— Dá-me isso... — murmurou ele. — Não rasgarei sua pele se... — ele
inspirou fundo. — Se me der isso.
Foi apenas o mais suave dos sussurros. Eu nem sequer tinha a certeza de tê-
lo ouvido. O desejo dentro de mim cresceu, levando-me longe da sanidade. Sabia
que não o devia fazer, mas com o coração batendo mais depressa, passei as unhas
em seu pescoço, deixando para trás leves marcas vermelhas da pressão. Kisten
estremeceu, as mãos caindo até à base das minhas costas, num toque firme e
inquisitivo. Um fogo líquido correu do meu pescoço, enquanto ele inclinava a
cabeça e encontrava minha cicatriz. Sua respiração era forte e entrecortada e eu
sentia onda atrás de onda de prazer, simplesmente devido ao toque dos seus
lábios.
— Não o farei... Não o farei — arquejou ele e eu compreendi que ele estava
à beira de desejar algo mais. Um tremor atravessou-me enquanto ele passava os
dentes suavemente pelo meu pescoço. Um sussurro de palavras que não reconheci
atravessou-me os pensamentos, fazendo repicar meus sinos de alarme. — Diz que
sim... — pediu ele, um toque de promessa urgente na sua voz baixa. — Diz,
querida. Por favor... Dá-me isso, também.
O peso dele era forte contra mim e o cheiro de couro e seda significaria para
sempre Kisten. Eu não queria me mexer. Não queria sair daquele elevador. Senti o
bater do coração de Kist e o ouvi engolir em seco.
Kist lançou-se para longe de mim. O elevador balançou quando ele bateu
na parede do lado oposto. Não tinha lhe acertado. Maldição. Sem fôlego e
desgrenhado, ele endireitou-se e tateou as costelas.
Afastando o cabelo dos olhos, fez-me um gesto para que saísse antes dele.
Sentindo os joelhos fluídos e soltos, recompus-me e saí do elevador.
Capitulo 27
Os aposentos onde Piscary passava o dia não eram, de todo, aquilo que eu
esperava. Saí do elevador, virando a cabeça de um lado para o outro, assimilando
tudo aquilo. Os tetos eram altos — calculei que tivessem cerca de três metros — e
estavam pintados de branco nos locais onde não estavam cobertos por cortinas de
423
tecido de cores quentes e primárias que caíam com pregas suaves. Enormes
arcadas indiciavam a existência de divisões igualmente espaçosas mais recuadas.
Tinha o conforto suave da mansão de um playboy, misturado com o ar de um
museu. Tentei encontrar uma linha Ley, não ficando surpreendida por descobrir
que estava muito distante.
— Desculpe?
— Estão sujas — eu tinha a atenção presa nos meus pés. Ainda estava
vermelha. — Tire-as.
Olhei para a extensão do tapete branco. Ele queria que eu matasse Piscary,
no entanto estava preocupado com minhas botas no carpete? Com um sorriso,
tirei-as e deixei-as junto ao elevador. Nem conseguia acreditar naquilo. Ia morrer
descalça.
Mas o carpete era agradável debaixo dos meus pés enquanto seguia Kisten,
obrigando-me a não tatear o exterior da bolsa em busca do que ele me prometeu
estar no seu interior. Kist estava tenso, mais uma vez, o maxilar apertado e os
modos taciturnos, longe do vampiro dominante que quase me fizera ceder. Parecia
ciumento e injustiçado. Era aquilo o de se esperar de um amante traído.
sabendo que lhe estava pedindo sangue. E perguntei-me se, para Kisten, o tomar
de sangue não passava de um comprometimento casual ou se seria algo mais.
Piscary sorriu.
Minha tensão recuou. Piscary parecia relaxado, sentado numa das duas
cadeiras junto à mesa, usando um robe de seda leve, azul-escuro. O jornal
matutino estava pousado junto à sua mão. A cor profunda do seu robe combinava
perfeitamente com sua pele cor de âmbar. Os pés descalços eram visíveis sob a
mesa. Eram longos e magros, com o mesmo tom mel do seu escalpe careca. Minha
425
— Bela janela — disse eu, pensando que era melhor do que a de Trent, o
sapo. Ele poderia ter tratado de tudo aquilo se tivesse agido quando eu lhe disse
que Piscary era o assassino. Os homens eram todos iguais: ficam com aquilo que
podem sem ter de pagar por isso, mentem quanto ao resto.
— Café? — perguntei eu. — Pensei que era contra o código dos gangsters
tomar café com alguém antes de matá-lo.
Piscary dirigiu um aceno a Kisten e ele afastou-se sem emitir qualquer som.
Puxei a segunda cadeira, em frente a Piscary; sentando-me com a bolsa sobre o
colo. Olhei de relance para a janela falsa, em silêncio.
— Não precisava violá-la para fazer com que viesse vê-lo — disse eu,
decidindo mostrar-me irada em vez de temerosa. — A cabeça de um cavalo morto
na minha cama teria sido suficiente.
— Eu quis fazê-lo — disse ele, a voz baixa e carregada com a força do vento.
— Por muito que me custe pensar o contrário, isso não é tudo sobre você, Rachel.
Parte é, mas não tudo.
a d e q u a d a c o m p a n h e i r a , s u fi c i e n t e m e n t e v a r i a d a e s o fi s t i c a d a n o s s e u
s
pensamentos para que eu não me aborreça com ela e ela comigo. Sabe, Rachel, não é
verdade que seja a falta de sangue que leva um vampiro a enlouquecer e a sair
para a luz do Sol. É o aborrecimento que traz consigo, a falta de apetite que leva à
insanidade. Trabalhar para educar Ivy ajudou a afastar essa possibilidade. Agora
que ela assumiu seu potencial, vai impedir-me de enlouquecer — inclinou
graciosamente a cabeça. — E eu farei o mesmo por ela.
Sua atenção prendeu-se num ponto sobre meu ombro e os pelos na parte de
trás do meu pescoço ergueram-se. Era Kisten. O sussurro da sua passagem tocou-
me e reprimi um tremor. O vampiro ferido e abatido pousou silenciosamente a
xícara e o pires à minha frente e partiu. Seus olhos nunca se encontraram com os
meus, seus modos escondendo uma dor submissa. O vapor da xícara de porcelana
ergueu-se mais de sete centímetros antes de ser apanhado pelo vento artificial e
afastado para longe. Não levei a mão à xícara. O cansaço pesava sobre mim e a
adrenalina fazia-me sentir indisposta. Pensei nos amuletos na minha bolsa. Do quê
Piscary estava à espera?
Chocada, olhei para Kisten. Ele tinha visto tudo. Tinha se escondido nas
sombras enquanto eu segurava o cabelo de Ivy e ela vomitava, assistiu enquanto
eu fazia o chocolate quente e ouviu enquanto eu me sentei ao lado de Ivy e ela me
contou seu pesadelo. Enquanto eu apanhava o ônibus lento, Kisten arrancou meu
bilhete da porta. Não viria ninguém. Absolutamente ninguém.
Sem cruzar o olhar com o meu, ele afastou-se. Ao longe, fez-se ouvir o som
distante de uma porta a fechar-se. Meu olhar prendeu-se em Piscary e a minha
respiração gelou. Os olhos dele estavam completamente negros. Merda.
Senti o rosto gelado e minhas pernas tremeram. Sua amizade tinha sido
uma mentira? Um esquema para me manter sob vigilância? Nem podia acreditar.
Recordando o som perdido da sua voz, enquanto me pedia que impedisse o sol de
matá-la, não pude acreditar que sua amizade tivesse sido uma mentira.
— Ela sabe que foi você quem assassinou aquelas bruxas? — sussurrei,
sentindo o coração apertado com a possibilidade de que ela soubesse e nunca
tivesse me dito.
— Não — disse Piscary. — Estou certo que desconfia, mas meu interesse
por você tem origem em motivos mais antigos, que nada têm a ver com a atual
busca do Graal sagrado por Trent, recorrendo à magia das linhas Ley.
Mantive os olhos longe das mãos que agarravam com força minha bolsa,
aberta sobre o meu colo. Não podia agarrar ainda no frasco. Se não era por causa
disso, por que Piscary me queria morta?
— Deve ter sido muitíssimo difícil para seu orgulho ter vindo encontrar
comigo, implorando clemência, quando sobreviveu ao ataque do demônio. Ela
estava tão perturbada! É tão difícil ser jovem. Eu compreendia mais do que ela
sabia o que significa desejar um igual. E cedi à tentação de mimá-la um pouco
mais, depois de ter compreendido que ela tinha me usado sem que eu percebesse.
Por isso, deixei-te viver, desde que ela quebrasse o seu jejum e te tomasse por
inteiro. Você ser o espectro dela tinha uma ironia que me agradava. Ela prometeu
fazê-lo, mas eu sabia que estava mentindo. Ainda assim, não me importei desde
que ela te mantivesse longe de Kalamack.
— Mas eu não sou uma bruxa das linhas Ley — disse eu, mantendo a voz
baixa para que não tremesse. Podia ter sussurrado as palavras e ele as teria
ouvido. — Por quê?
Ele não tinha respirado desde que parara de falar. Tinha os calcanhares
pressionando o chão. As panturrilhas tensas. Quase — pensei, movendo os dedos
até à abertura da minha bolsa. Ele estava quase pronto. De quê ele estava à espera?
— Você é a filha do seu pai — disse ele, a pele ao redor dos olhos
apertando-se. — Trent é o filho do pai dele. Separados são irritantes. Juntos... Têm o
potencial para ser um problema.
Meu olhar tornou-se distante, depois mais focado quando se cruzou com o
dele, sabendo que meu rosto tinha assumido uma expressão horrorizada. A
fotografia do meu pai e do de Trent junto a um ônibus amarelo do acampamento
de férias. Piscary os tinha matado. Tinha sido Piscary. Meu sangue batia, com uma
força rude, contra as minhas têmporas. O sangue exigia que eu fizesse alguma
coisa, mas fiquei sentada sabendo que, se me mexesse, ele se mexeria. Piscary
430
encolheu os ombros, num movimento calculado que puxou meus olhos para um
vislumbre da sua pele âmbar sob o robe.
Meu olhar saltou para o dele, sentindo o medo no meu estômago. Lá estava.
A pergunta que ele queria ver respondida, aquela que escondia entre as outras
para que eu não a reconhecesse. Mal a respondesse, morreria.
— Não tenho por hábito quebrar o sigilo profissional — disse eu, com a
boca seca. Sua aparente calma estalou quando inspirou. Foi sutil, mas estava lá.
— Não! — gritei.
E l e d e u - m e u m a p a n c a d a n a c a b e ç a q u e m e fe z v e r e s t r e l a s . C a í.
Arquejando, fiquei deitada a seus pés, enquanto ele se erguia sobre mim, com um
amuleto na mão. Esfregou meu sangue sobre ele e o disco brilhou vermelho. Sua
mão estava envolta num brilho vermelho enquanto ele empurrava para mais longe
a cadeira caída sobre o tapete. Ergui a cabeça, vendo através do meu cabelo que o
padrão no chão de azulejos à nossa frente formava um círculo perfeito. Ao redor
do grande círculo branco havia outro azul, não se tratava de um simples pedaço
de mármore. Era um círculo de invocação.
Capitulo 28
Piscary levou a mão à boca para lamber o que restava do meu sangue,
encolhendo-se.
433
— D á - l he . . . — a r qu e j ei , c a í da a s eu s pé s , en q u an t o m eu s ol h o s s e
recordavam de como focar um objeto.
— Já te disse para não aparecer à minha frente com essa forma — disse ele,
com voz tensa.
A máscara de morte sorriu, fascinante pelo fato de ser viva e fazer parte
dele.
434
— Esq u e c i - me — re s p o n d e u , co m a vo z a rra st a d a e i n c ri ve l me n t e
profunda, que parecia ressoar nas minhas entranhas.
— Dou-te ela. Não quero saber o que fará, desde que não volte a atravessar
para este lado das linhas Ley. Em troca, fará com que ela me diga a que ponto
chegou Trent Kalamack na sua investigação. Antes de levá-la. Concorda?
— Não pode fazer isso! — protestei, com o coração batendo, veloz. Olhei
para Piscary. — Não pode fazer isso. Eu não concordo — virei-me para
Algaliarept. — Ele não é dono da minha alma. Ele não pode me entregar a você!
O demônio fitou-me.
Senti a respiração presa e tentei abrir os dedos dourados. Tinha três anéis
com pedras azuis e todos eles me beliscavam a pele. Balancei para chutá-lo e
Algaiarept ergueu-me ainda mais para evitar o meu ataque. Deixei escapar um
som agudo.
Ai m a g e m d e K i s te n v i r o u - s e p a r a P i s c a r y m o s tr a n d o - l h e u m d e d o
espetado, num gesto beligerante.
437
Olhando para trás, fazia sentido. Ele era um demônio. Vivia na eternidade.
Claro que saberia como fazê-lo.
Abanei a cabeça.
Ergui a cabeça. Três minutos? O Sol estava assim tão perto de se erguer?
Furioso, Piscary atirou a perna da cadeira, que deslizou e rebolou sobre o carpete.
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Seus olhos eram poças negras e ele começou a traçar círculos lentos e cuidadosos à
nossa volta, em antecipação. Mas, por agora, estava segura dentro do círculo de
Algaiarept. O que é que havia de errado com essa imagem?
— Não. Ainda que matar Ptah Ammon Fineas Horton Madison Parker
Piscary esteja na minha lista de coisas a fazer, não deixa de ser um pedido e te
custaria, não te absolveria da sua dívida. Além disso, se me mandar atrás dele, o
mais certo é que ele volte a me invocar, tal como você fez, e acabaria exatamente
onde começou. A única razão porque não pode me invocar agora é o fato de ainda
não termos chegado a um acordo e nos encontrarmos numa espécie de limbo da
invocação, por assim dizer — sorriu e eu afastei os olhos. Piscary mantinha-se por
perto e escutava, claramente pensando.
— Através das linhas Ley, sim. Mas dessa vez te custará a alma — ele
lambeu os lábios. — E, depois, será minha.
— O que há de fazer?
A imagem de Kist olhou para o pulso onde surgiu um relógio igual àquele
que eu esmaguei com o martelo de carne.
— Um minuto e trinta.
Algaiarept sorriu.
— O que quer? — gritei, olhando para o Sol que se insinuava pelos lados
dos edifícios.
A minha alma. Não podia fazê-lo, mesmo que isso satisfizesse Algaiarept e,
em última instância, salvasse Nick de perder a alma e ser puxado para a
eternidade, para ser o familiar do demônio. Senti o rosto flácido e fitei Algaiarept
440
com tamanha intensidade que ele pestanejou, surpreendido. Tive uma ideia. Era
tola e arriscada, mas talvez fosse suficientemente louca para funcionar.
— Feito — disse ele, tão depressa que pensei que, de certo, tinha cometido
um erro.
Tentei puxar o braço, mas ele era mais forte do que eu. Estava farta de
sangue, de tudo. Ele largou-me e eu caí para trás, deslizando pelo arco da sua
barreira, sentindo um formigamento nas costas. Olhei de imediato para o pulso.
Onde outrora estava apenas uma linha, estavam agora duas. A nova parecia tão
antiga como a primeira.
— Dessa vez não doeu — disse eu, muito tensa para me sentir chocada.
— Também não teria doído da primeira vez, se não tivesse tentado costurá-
la. O que sentiu foi a fibra desaparecendo. Sou um demônio, não um sádico.
— Bruxa — silvou ele, agarrando-me pelo ombro. — Terei aquilo que quero
e, depois, morrerá.
Engoli em seco.
— É inofensivo, não é?
442
— Acha que teria sobrevivido tanto tempo, se dissesse aos meus filhos o
que pode realmente me matar?
Sem deixar de me segurar contra o chão, ele apertou meu braço partido. Eu
contorci-me enquanto a agonia me percorria. Todas as minhas extremidades
nervosas pulsavam, ardendo. Um som gutural escapou-se de mim, dor e
determinação. Eu não ia dizer nada. Eu nem sequer sabia a resposta.
Ele depositou todo seu peso sobre meu braço e eu gritei, uma vez mais,
para não enlouquecer. O medo fazia com que me doesse a cabeça enquanto os
olhos de Piscary me fitavam, esfomeados. Seu desejo instintivo erguera-se
incomensuravelmente, pela minha luta. O negrume dos seus olhos aumentava.
Ouvi meus gemidos de dor como se estivesse fora da minha cabeça. Centelhas
prateadas, provocadas pelo choque, erguiam-se entre mim e os olhos de Piscary e
443
Ele afastou-se um pouco para fitar meu rosto. Sentia calor nos pontos onde
o robe se abriu e sua pele tocou a minha.
— Começarei por aqui — disse ele, puxando meu braço pingando para
onde eu o conseguisse ver.
— Deus, não! Deus, não! — gritei, redobrando meus esforços, enquanto ele
inclinava a cabeça, passando a língua pelo meu cotovelo, gemendo enquanto o
limpava, a língua movendo-se lentamente para o local de onde o sangue fluía
livremente. Se a saliva chegasse às minhas veias, seria sua. Para sempre.
— Oh, para o diabo com tudo isso — disse ele, a sua voz fluida cortando
através de mim. — Vou beber todo seu sangue. Poderei descobrir de uma forma
ou de outra. Posso estar morto, mas ainda sou um homem.
me tirou o fôlego. O som de homens gritando chegava até mim, filtrado pela
névoa da náusea.
— Não teria sido obrigada a fazê-lo se o seu patrão não fosse tão idiota! —
gritei; depois inspirei, tentando não tossir por causa do pó.
446
Kisten tinha tirado meu bilhete. Como é que o DFI tinha chegado ali, se
Quen não os tinha trazido? Piscary voltou a levantar-se. Olhou para nós,
revelando as presas num sorriso aberto.
— E agora sangue elfo? Não me alimentava assim tão bem desde a Viragem.
Numa das mãos tinha uma estaca de madeira do tamanho do meu braço, na
outra tinha uma bola de eternidade que crescia. Palavras em latim derramavam-se
dele, palavras de um encantamento negro que se gravaram na minha mente.
Furioso, ele largou Quen. Se tivesse fome, nada o teria afastado da presa
caída. O braço de Quen ergueu-se, débil. Ele não se levantou. Eu sabia o porquê...
Sabia bem de mais.
— Não sabe quando deixar as coisas como estão — disse Piscary, vindo em
minha direção.
447
Com o medo, algo quebrou. Uma onda de eternidade fluiu através de mim,
ouvi meu grito perante o choque do influxo de poder inesperado. Das minhas
mãos jorrou um fluxo de eternidade dourada, envolta em preto e vermelho.
Piscary foi projetado de cima de mim. Chocou contra a parede, fazendo tremer as
luzes. Ergui-me, enquanto ele caía ao chão, compreendendo de onde veio a
energia.
Eu tinha puxado uma linha através dele. Tinha puxado a energia através
dele como se ele fosse um familiar qualquer. Ela tinha corrido através dele como
através de mim. Eu tinha puxado mais do que ele conseguia suportar. O eu fiz?
Piscary estava caído, no ponto onde a parede se encontra com o chão. Seus
pés mexiam-se e ele ergueu a cabeça. Os olhos estavam desfocados, mas negros de
ódio. Não podia deixar que ele se levantasse. Sentindo-me transpassada pela dor,
agarrei a perna da cadeira que Piscary tinha arrancado, e cambaleei ao longo da
sala.
— Isso foi por ter violado Ivy — gritei, a raiva que sentia por ele ter
magoado tão forte e vulnerável, dando-me novas forças. Ergui a barra, rosnando
de esforço.
— E isso — disse eu, sentindo meus olhos ficarem quentes, a visão turva
das lágrimas —, é por ter matado meu pai — sussurrei.
Com a respiração soando como soluços, olhei para ele e limpei o rosto com
as costas da mão. Ele não se mexia. Olhei, por entre as mechas do meu cabelo, para
a j a ne l a f a l s a . O S ol já t i n h a s e e r gu i do , b r il h an d o s o b r e o s ed i f í c i o s .
Provavelmente ele ficaria inconsciente até o anoitecer. Provavelmente.
— Mata-o agora.
— Mate-o você, então — sussurrei, sabendo que ele podia me ouvir. Quen
moveu-se, com passos irregulares, até o saco que deixou junto ao buraco irregular
na parede.
Ele parecia cansado, sua estatura alta e esguia dobrada de dor. O pescoço
não estava com muito mau aspecto, mas eu preferia passar seis meses de braço
engessado do que ter uma dentada repleta de saliva de Piscary. Quen era um
Inderlander, e não se podia transformar em vampiro, mas pela expressão de medo
que tingia sua normal confiança, ele sabia que podia ficar preso a Piscary. Com um
vampiro assim tão antigo, a ligação podia durar uma vida inteira. Só o tempo diria
quanta saliva, se alguma, Piscary introduziu na dentada.
Como minha vida se tornou tão feia? Mais cansada do que era possível
imaginar, ergui-me enquanto Edden e uma corrente de agentes do DFI passavam
pelo buraco feito por Quen.
— Sou eu! — grasnei, erguendo a mão boa, já que podia ouvir o som de um
número assustador de pastilhas de segurança sendo destravadas. — Não me
matem!
Ele soava surpreso; dobrada de dor, percorri meu corpo com os olhos, meu
braço quebrado agarrado junto ao corpo.
450
— Piscary está ali — disse eu, olhando para esse lado. — Deve ficar
dormindo até o pôr-do-sol. Acho.
— Não — sussurrei, para que minha garganta não doesse tanto. — Estava
tentando matar-me — meu olhar cruzou-se com o dele e acrescentei: — Anda por
aí um vampiro vivo chamado Kisten. É loiro e está zangado. Por favor, não o
matem. Além dele e do Quen, não vi mais ninguém senão os oito vampiros vivos
que se encontram no andar de cima. Podem disparar contra eles, se quiserem.
— E está — disse eu, afastando-me quando ele tentou me tocar. Por que as
pessoas fazem isso? — E sim, ele veio até aqui. Porque vocês não fizeram o
mesmo? — subitamente furiosa, espetei um dedo contra o peito dele. — Se voltar a
recusar uma chamada minha, juro que mando Jenks pixá-lo todas as noites durante
um mês.
— Não recusei sua chamada. Estava dormindo. Ser acordado por um pixy
histérico e um namorado em pânico dizendo que tinha saído para matar o mestre
dos vampiros de Cincinnati não é a minha forma preferida de acordar. E quem é
que lhe deu meu número particular?
Oh, Deus, Nick! A recordação da energia das linhas Ley puxada através dele
fez-me gelar.
Espreitando para mim e para o meu rosto gelado, agarrou num agente que
ia passando.
— O pobre desmaiou, estava tão preocupado com você. Não deixei que ele e
Jenks saíssem do carro — com os olhos iluminados por um súbito pensamento,
levou a mão ao rádio que tinha no cinto. — Diga ao Sr. Sparagmos e a Jenks que a
encontramos e que ela está bem — disse ele, recebendo uma resposta truncada.
Segurando-me pelo cotovelo, murmurou: — Por favor, diga-me que não deixou
realmente um bilhete colado à sua porta, dizendo que ia espetar uma estaca em
Piscary?
Meus olhos estavam fixos na minha bolsa do outro lado da sala, com os
amuletos contra a dor, mas minha cabeça virou-se ao ouvir aquelas palavras.
— Kisten? — perguntou Edden. — Esse é o vampiro vivo que não quer que
eu mate, certo? — ele pegou no cobertor azul do DFI que alguém lhe entregava e
envolveu com ele meus ombros. — Venha. Quero levá-la lá para cima, podemos
tentar entender tudo isso mais tarde.
deixada pelo feitiço negro que Quen me ensinou. Inspirei lentamente. O que
interessava que soubesse encantamentos negros? Eu ia ser o familiar de um
demônio.
Meu estado de espírito tornou-se ainda mais sombria quando uma mulher,
num uniforme do DFI, parou ao nosso lado, abanando uma arma à frente de
Edden. Encontrava-se num saco de provas e eu não consegui evitar que minha
mão se estendesse para ela.
Ali havia mais pó e engoli em seco, para não tossir, o que me faria
desmaiar.
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— Por agressão, por difamação, por ter entrado ilegalmente em casa dele,
por destruição danosa de propriedade privada ou o que quer que seja que o
advogado pré-Viragem dele seja capaz de inventar. O que pensou que estava
fazendo quando veio aqui para tentar matá-lo?
— Eu não o matei, embora Deus saiba que ele merecia. Ele violou Ivy para
me atrair até aqui e me matar porque eu descobri que ele era o caçador de bruxas!
— ergui a mão boa, como se fosse possível aliviar a dor na minha garganta pelo
lado de fora. — E tenho uma testemunha disposta a depor em como Piscary o
contratou para matar as vítimas. É suficiente para você?
— Ei, Gwen! Para com isso — disse em voz alta, enquanto me agarrava no
cotovelo e ajudava a subir as escadas. — Isso não é a cena de um crime. É uma
detenção.
Capitulo 29
— Ei! Aqui! — gritei, sentada no banco duro do estádio, acenando para
chamar a atenção do vendedor ambulante.
455
Como que para provar que nada mudou, insistiu para que eu dormisse na
casa dele na noite anterior, como era hábito nos nossos fins de semana. Foi um
erro. A conversa ao jantar foi, na melhor das hipóteses, afetada: Como foi teu dia,
querido? Ótimo, obrigado; como foi o seu? Seguimos com várias horas de
televisão, eu sentada no sofá e ele na cadeira do outro lado da sala. Esperei que
melhorasse depois de me retirar terrivelmente cedo — à uma da manhã —, mas
ele fingiu adormecer de imediato, fazendo com que me desfizesse em lágrimas
quando se afastou do toque do meu pé. A noite teve sua confirmação brilhante, às
quatro da manhã, quando Nick acordou com um pesadelo. Quase entrou em
pânico quando me descobriu na cama com ele.
tarde. Ele não me impediu. Sentou-se na beira da cama com a cabeça entre as mãos
e não me impediu.
Edden seguiu o olhar de Jenks até mim, os olhos escondidos atrás dos
óculos redondos, fitando-me desconfiado. Jenks distraiu-o enaltecendo, em alto e
bom som, as características de um trio de mulheres que se dirigia para os degraus
de cimento. A cara do homem atarracado ficou vermelha, mas ele sorriu. Grata,
virei-me para Glenn, descobrindo que já tinha terminado seu cachorro-quente.
Devia ter pedido dois para ele.
Acenando, fiz com que uma bola alta ressaltasse mal. Os jogadores ficaram
mais lentos e tensos quando esta bateu na parede e rebolou numa direção
estranha. Glenn nem fazia ideia da quantidade de problemas que aquilo ia trazer.
Ivy era o delfim de Piscary. Pela lei não escrita vampírica, era ela quem mandava,
quer quisesse quer não. Isso colocava a ex-agente da SI num enorme dilema moral,
encurralada entre suas responsabilidades de vampira e sua necessidade em ser
verdadeira consigo própria. Ela ignorava os pedidos de Piscary para que o
visitasse na sua cela, bem como muitas outras coisas que se iam acumulando
lentamente.
— Está se aguentando — disse com a boca cheia. — Ela teria vindo hoje,
mas o Sol anda mesmo a incomodá-la... Ultimamente.
pegou, saiu pelos fundos e o fritou para aumentar os níveis de proteínas dos filhos
antes da hibernação de outono. Tinha ficado muitíssimo doente, depois de assistir
à missa da meia-noite, mas não ia deixar de ir. Disse-me que isso a ajudava a
manter-se distante de Piscary. Tratava-se, aparentemente, de uma distância
mental. O tempo e a distância era suficiente para quebrar o elo que um vampiro
menor estabelecia com outro através de uma dentada, mas Piscary era um mestre
vampiro. O elo duraria enquanto Piscary o desejasse.
Ele recostou-se, enquanto eu lhe dirigia um sorriso triste. Piscary tinha sido
transferido para a custódia da SI, encontrando-se são e salvo, numa cela para
vampiros. A audiência preliminar tinha corrido bem, tendo o sensacionalismo da
situação originado uma vaga inesperada no calendário do tribunal. Algaliarept
mostrou-se uma testemunha confiável. O demônio representou todos os papéis,
assumindo toda a espécie de aparências e assustando terrivelmente todos os que
se encontravam na sala do tribunal. O que mais me perturbou foi o fato de o juiz
ter tido medo de uma garota loira e coxa que mostrava. O demônio pareceu gostar
disso.
— Não — disse ele. — Tínhamos um acordo. Não tem culpa que a aula
tenha sido cancelada.
— G le n n , po s s o f i c a r c o m s e u k e t c h up ? — di s s e , b r u s c a me n t e ,
interrompendo Edden. — Não sei como vocês conseguem comer os cachorros-
quentes sem ele. Por que Viragem aquele cara não me deu ketchup?
— Eu pago — suplicou. — Tudo o que quiser, mas não diga a meu pai. Oh,
meu Deus, Rachel! Isso daria cabo dele.
Por um momento fiquei pasmada. Ele tinha levado nosso ketchup. Tinha o
tirado da nossa mesa.
— Segunda-feira.
— Por mim, tudo bem — minhas palavras soaram calmas, mas por dentro
estava cantando. Ia voltar a ter umas algemas! Seria um belo dia.
Jenks voou do capitão Edden para mim. Estava todo vestido de vermelho e
branco em honra à equipe; o brilho fazia-me doer os olhos.
— Sim.
— Sou Matt Ingle. Segurança das linhas Ley do estádio. Pode acompanhar-
me, por favor?
— Não, senhor. O dono dos Howlers ouviu falar dos esforços da senhorita
Morgan para recuperar a mascote do clube e gostaria de falar com ela.
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— Terei todo o prazer em falar com ele — disse eu, e Jenks riu bem alto, as
asas a assumirem um vermelho vivo.
Apesar de o capitão Edden ter mantido meu nome fora dos registos, toda a
Cincinnati, incluindo Hollows, sabia quem tinha resolvido os assassinatos do
caçador de bruxas, feito a captura e invocado o demônio para a sala de audiências.
Meu telefone não parou de tocar com pedidos de ajuda. De um dia para o outro,
tinha passado de empreendedora em dificuldades a agente dos diabos. Por que
teria receio do dono do Howlers?
— Eu sei, mas quero falar contigo e parece-me que vão te pôr fora do
estádio.
— Sim, minha senhora. Se me permitir, vou buscar uma bebida para cada
uma.
— Seria maravilhoso.
— Senhorita Morgan — disse ela, —, foi trazido à minha atenção que foi
contratada para recuperar nossa mascote. Uma mascote que nunca chegou a
desaparecer.
— Sim, minha senhora — disse eu, admirada pela facilidade com que o
título respeitoso fluíra dos meus lábios. — Quando me informaram desse fato,
esqueceram por completo o tempo e a energia desperdiçados.
— Talvez, mas mantém-se que o peixe não desapareceu. Não tenho por
hábito pagar quando sou chantageada. Vai parar.
— E eu não tenho por hábito fazê-lo — disse eu, não tendo qualquer
dificuldade em conter meu temperamento, enquanto sua matilha me rodeava. —
Mas ficaria mal se não lhe revelasse meus sentimentos quanto ao assunto. Dou-lhe
minha palavra de que não interferirei no jogo. Não será preciso. Até que me
paguem, cada vez que uma bola se perder ou um taco se rachar, os seus jogadores
ficarão pensando que fui eu — sorri, sem mostrar os dentes. — Quinhentos
dólares é um pequeno preço a pagar pela paz de espírito dos seus jogadores.
Uns míseros quinhentos dólares. Devia ter multiplicado o valor por dez.
Por que os capangas de Ray desperdiçaram as balas sobre mim, era algo que eu
continuava sem entender. Seus lábios apartaram-se e eu podia jurar que tinha
ouvido um rosnado no seu suspiro. Os atletas eram famosos pela sua superstição.
Ela pagaria.
O som do cheque rasgando foi sonoro. Não sabia ao certo se ela estava me
dando um conselho ou fazendo uma ameaça.
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— Para toda a vida — disse ela, sorrindo como se fosse o diabo em pessoa.
— Eu também não sou boba.
O s s a p a to s d e G l e n n b a ti a m r u i d o s a m e n t e n o c o n c r e to , e n q u a n t o
regressávamos ao portão da frente, sem a ajuda de Matt e do seu carrinho de golfe.
— Claro — os olhos dele estavam fixos nos enormes sinais, com suas letras
e setas indicando as saídas. O sol estava quente, quando emergimos para ele, e eu
relaxei quando nos abrigamos no ponto do ônibus. Glenn parou ao meu lado e
devolveu-me o boné. — Em relação aos seus honorários... — começou ele.
— Glenn — disse eu, enquanto punha o boné —, como disse ao seu pai, não
se preocupe com isso. Estou grata por terem saldado meu contrato junto da SI e,
com os dois mil que Trent me deu, tenho o suficiente para me aguentar até o braço
ficar curado.
Meu olhar caiu para a chave que ele tinha na mão e, depois, erguendo-se
para seus olhos.
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Glenn sorriu e entregou-me uma chave listrada, num chaveiro que era uma
pata de coelho.
— O dinheiro que o DFI teve de gastar foi quase o mesmo que estava te
devendo. Levo-te em casa. É um carro de câmbio manual e não sei se conseguirá
passar as marchas com esse braço.
— Qual é?
Glenn apontou e o som dos saltos dos meus sapatos batendo no pavimento
cessou, quando vi o conversível vermelho e o reconheci.
— Obrigada — sussurrei, sem acreditar que era mesmo meu. Era meu?
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Com passos leves, dirigi-me à frente do carro, depois à traseira. Tinha uma
nova placa personalizada: EM AÇÃO. Era perfeito.
Abri a porta. O banco em pele estava quente devido ao sol da tarde e era tão
suave como leite com chocolate. O som suave da porta sendo aberta era divino.
Enfiei a chave, verifiquei se estava em ponto-morto, pisei na embreagem e o
coloquei para trabalhar. O roncar do motor era a liberdade em si. Fechei a porta e
sorri para Glenn.
— Não pus isso aí — disse Glenn, sua voz carregada com uma nova
preocupação.
— É de Trent.
Glenn endireitou-se.
— Saia do carro — disse ele, numa voz grossa e ríspida, todas as sílabas
carregadas de autoridade.
— Não seja idiota — disse eu. — Se ele me quisesse morta, não teria
enviado Quen para me ajudar.
— Calculo que sejam dezoito mil dólares — tentei levar a coisa na boa,
arruinando tudo com os meus dedos trêmulos. — Foi o que ele me ofereceu para
limpar o nome dele.
Afastando o cabelo dos olhos, ergui a cabeça. Fiquei sem fôlego. Visível no
espelho retrovisor estava a limusine Gray Ghost de Trent, parada no acesso para
os bombeiros. Não estava ali há instantes. Pelo menos eu não a vi. Trent e
Jonathan estavam de pé, ao seu lado. Glenn viu para onde eu estava olhando e
virou-se.
Parou, lentamente, ao meu lado, os olhos sem nunca largar os meus e sem
se pousarem sobre o carro. Arrastando os pés, virou-se para olhar para Jonathan.
Deixava-me puta o fato de ter ajudado a limpar o nome dele. Ele tinha matado,
pelo menos, duas pessoas nos últimos seis meses... Sendo uma delas Francis. E ali
estava eu, sentada no carro do bruxo morto.
Não disse nada, agarrando o volante com a mão boa, o braço quebrado
pousado no colo, enquanto me recordava que Trent tinha medo de mim. No rádio, a
voz de um locutor tomou conta da emissão com sua voz rápida e eu baixei o rádio
até quase desligar.
Eu fitei-o.
Surpreendida, pestanejei.
— Não muito. Foi uma fratura limpa — toquei no amuleto contra a dor que
tinha ao pescoço. — Contudo, o músculo sofreu alguns danos, razão pela qual
ainda não posso usá-lo, mas dizem que não será preciso fisioterapia. Estarei de
volta às ruas dentro de seis semanas.
Tinha sido um comentário rápido, que foi seguido por um longo silêncio.
Deixei-me ficar sentada no meu carro, perguntando-me o que ele queria. Tinha um
aspecto nervoso, as sobrancelhas um pouco claras demais. Não estava com medo e
não estava preocupado. Não conseguia perceber o que ele queria.
— Piscary disse que os nossos pais tinham trabalhado juntos — disse eu. —
Estava mentindo?
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— Não.
— É u m l a d rã o , u m m a n i p u l a d o r , u m a s sa s si n o e u m h o me m n a d a
simpático — disse eu calmamente. — Não gosto de você.
— Então faça uma festa e convide o Papa. Meu pai pode ter trabalhado para
o seu, mas você não passa de escória, a única razão porque não lhe atiro o dinheiro
na cara é que: a) mereci e b) preciso de algo para viver enquanto me recupero dos
ferimentos que sofri enquanto mantinha o seu traseiro fora da prisão!
E l e i a t o c a r no c a r ro , pa r a n do qu a n do eu e m i t i u m s o m r u d e de
desencorajamento. Ele transformou o movimento numa tentativa de ver se
Jonathan tinha se mexido. Não tinha. Glenn também estava nos observando.
— Esqueça, está bem? — disse eu. — Fui atrás de Piscary para salvar a vida
da minha mãe, não sua.
Inclinei a cabeça para vê-lo, afastando do rosto o cabelo batido pelo vento.
— E acha que isso significa alguma coisa para mim? — disse eu, tensa.
Depois semicerrei os olhos. Ele estava quase rindo. O que acontecia com ele?
— Chega para o lado — acabou por dizer, olhando para o lugar vazio ao
meu lado.
Eu fitei-o.
— O quê?
Ele olhou longe de mim, para Jonathan, depois de novo para mim.
— Quero conduzir seu carro. Chegue para lá. Jon nunca me deixa conduzir.
Diz que é uma tarefa menor — ele olhou para Glenn, amuado, junto de um pilar.
— A menos que prefira que um detetive do DFI te leve para casa sempre dentro
dos limites de velocidade.
Trent voltou a enfiar as mãos nos bolsos e balançou-se para trás e para
frente, sobre os calcanhares, pensando. Arrancando sua atenção do céu azul,
acenou.
O semáforo passou de verde para amarelo e ele lançou o carro para o outro
lado do cruzamento, passando em frente do trânsito que se aproximava, entre
pneus guinchando e buzinadas. Com os dentes cerrados, jurei que, se ele me
destruísse o carro antes que eu tivesse chance de conduzi-lo, o processaria.
— Não voltarei a trabalhar para você — disse eu, enquanto ele acenava,
amigavelmente, para os motoristas irados que seguiam atrás dele e se fundia com
o trânsito.
Mi nha raiva dim inui u quan do co mp reen di que ele s e dem oro u
propositadamente no sinal verde para que Jonathan fosse obrigado a esperar que
aquele voltasse a mudar. Olhei para Trent, incrédula. Vendo que eu tinha
percebido, ele acelerou. Senti um arrepio de excitação, quando me dirigiu um
sorriso rápido, o vento agitando seu cabelo curto, de forma a esconder os olhos
verdes.
Fim
A série The Hollows continua em Every Which Way But Dead
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