Você está na página 1de 12

#interna

Do direito à participação na vida pública e política das pessoas com deficiência em São Paulo
Anderson Batista de Almeida1
Rui Francisco da Silva2
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar o arcabouço legal referente ao direito de a pessoa com
deficiência participar ativa e passivamente da vida política. Desejamos identificar iniciativas no
estado e no município de São Paulo que visem garantir condições de participação e cidadania,
conforme previsto no Estatuto da Pessoa com Deficiência. O método utilizado foi o documental,
para análise de leis, além de dados censitários sobre a população com deficiência e estatísticos
referente a participação nas eleições de 2020. Concluímos que a quantidade de eleitores e de
candidatos que se declararam pessoas com deficiência em São Paulo é considerável, mas a
quantidade de eleitos ainda é pequena. Por fim, ações afirmativas, a exemplo das que já existem
para outras minorias, complementadas por adaptações regimentais em relação aos processos
internos, facilitariam a participação e eleição das Pessoas com Deficiência, bem como as
condições de manterem-se produtivas ao longo do mandato representativo.

Palavras chaves: Política, Democracia, Representação, Pessoa com Deficiência.

Introdução
Durante séculos, dentre as várias barreiras que as pessoas com deficiência encontravam para
conseguir exercer sua cidadania plena estavam as barreiras legais, que somadas ao preconceito
relacionado às pessoas nessa condição, impossibilitaram sua participação política, privando-as do
direito de defenderem seus interesses na estrutura democrática. Para que as pessoas possam realizar
e desenvolver livremente as suas personalidades, o adequado reconhecimento do outro é vital. O ser
humano é ser relacional que depende das interações com outros seres humanos, pois:
Reconhecimento [que] marca, mais do que qualquer outra ação, a entrada do indivíduo na
existência especificamente humana. A falta de reconhecimento oprime, instaura
hierarquias, frustra a autonomia e causa sofrimento (SARMENTO, 2020, p. 270).
Uma mudança importante nessa estrutura ocorreu em 2006 com a Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), com a
participação e aderência de diversos países, inclusive o Brasil, que a utilizou como base para a Lei
Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), Lei 13.146/2015, também conhecida como
Estatuto da Pessoa com deficiência (EPD). A igualdade é a tônica da Lei 13.146/2015, inclusive no
tocante ao exercício dos direitos políticos de votar e ser votado. Não obstante, o ideal de igualdade
não se refere a mero tratamento formal a todas as pessoas desde início, de fruição dos direitos que
estão consubstanciados entre os objetivos fundamentais do Estado Brasileiro, a soberania, a
cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o
pluralismo político (SILVA, 2011). O Estado Brasileiro visa à construção de uma sociedade livre,
1
. Aluno da Especialização em Legislativo, Território e Gestão Democrática da Cidade, bacharel em Administração e
profissional no setor financeiro.
2
. Aluno da Especialização em Legislativo, Território e Gestão Democrática da Cidade, Diretor de Escola, Prefeitura
Municipal de São Paulo, Advogado.
#interna

justa e solidária de promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
de outras formas de discriminação, conforme estabelece o artigo 3º da Constituição da República
Federativa do Brasil (CF/1988). O pioneirismo da Carta Magna, não passou despercebido:
É a primeira vez que uma Constituição assinala, especificamente, objetivos do Estado
Brasileiro, não todos, que seria despropositado, mas os fundamentais, e, entre eles, uns que
valem como base das prestações positivas que venham a concretizar a democracia
econômica, social e cultural, a fim de efetivar na prática a dignidade da pessoa humana
(SILVA, 2011, p. 104).
Em que pese que todos somos concebidos como pessoa humana, entretanto temos para além
de nossas digitais, diferenças que nos desigualam e que nos colocam em condições de menor
fruição dos direitos, ou seja, visa o Estado Brasileiro amenizar as diferenças que nos impedem o
exercício da cidadania plena, o gozo dos direitos civis, políticos e sociais.
A cidadania compreende os direitos civis, políticos e sociais, que devem ser concebidos nas
acepções do contexto social e na sua incompletude, melhor dizendo, são complementares pois não
dão conta de toda a complexidade da vida em sociedade, em síntese, “os direitos civis garantem a
vida em sociedade, os direitos políticos garantem a participação no governo da sociedade, e os
direitos sociais garantem a participação na riqueza coletiva” (CARVALHO, 2020, p. 16).
Assim, a democracia econômica, social e cultural visa efetivar na prática a dignidade da
pessoa humana, identificada como sujeito de direito pela ação estatal. Dessa forma, a democracia
enlaça a liberdade e a igualdade do cidadão. Ela concretiza a ideia da dignidade da pessoa humana
no plano dos arranjos institucionais do Estado, pois “se trata do único regime político que enxerga
cada cidadão como autêntico sujeito, e não como mero objeto da política e da ação estatal”.
(SARMENTO, 2020, p. 166).
A Lei 13146/2015 (BRASIL, 2015) tem aderência à primeira convenção internacional de
direitos humanos do século XXI: a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de
dezembro de 2006, através do Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009 e a moderna concepção dos
direitos da pessoa humana que se destinam “a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o
exercício dos direitos e liberdades fundamentais por pessoa com deficiência. social e à cidadania.
(BRASIL, 2009).

Diante desse contexto, propomos analisar a efetividade do EPD nos ritos democráticos no
país, especialmente em São Paulo, a fim de identificar esforços e iniciativas que fomentam a
garantia do direito das pessoas com deficiência a participar ativa e passivamente da política, bem
como se os seus interesses vêm sendo defendidos, sob o entendimento que não apenas o tamanho
desse segmento da população é significativo, como tende a aumentar com a perspectiva de
envelhecimento da população brasileira e os dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), referentes
ao último pleito eleitoral, que mostram que, a despeito de diversas barreiras, as pessoas com
deficiência têm buscado participar da política.
#interna

Nas eleições de 2020 foram contabilizadas 6.657 candidaturas de pessoas com deficiência
no país (BRASIL, 2020), sendo que destas, 3.134 foram de pessoas que declararam possuir
deficiência física, 2.084 foram de pessoas que declararam possuir outro tipo de deficiência
(categoria genérica), 1.019 declararam possuir deficiência visual, 401 candidaturas declararam
possuir deficiência auditiva e 19 candidaturas que declararam possuir autismo. Entre os eleitores
com deficiência, foram contabilizados 1.2173.381, dentre os quais, 614.911 declararam possuir
deficiência do tipo “Outras”, 427.729 declararam possuir deficiência de locomoção, 186.647
declararam possuir deficiência visual e 111.813 declararam possuir deficiência auditiva. Diante do
tamanho estimado dessa população, que foi de 17,3 milhões de pessoas, o percentual de eleitores foi
baixo (menos de 10%), mas ainda assim significativo BRASIL, 2016). Entre os mesários, também
houve a participação de pessoas com deficiência, com um total de 2.407 mesários nessa condição,
sendo que destas, 1.476 declararam possuir deficiência do tipo “outras”, 655 declararam possuir
deficiência de locomoção, 245 declararam deficiência visual e 122 declararam deficiência auditiva.

O Estado Democrático de Direito e os valores da democracia


De acordo com a doutrina liberal, o Estado de Direito evoluiu a partir da concepção
individualista, abstencionista e de neutralidade dentro de uma concepção de Estado liberal e que por
via de consequência não dá conta das desigualdades sociais, mas apenas da igualdade formal
perante a lei para o Estado Social de Direito e, por fim, para o Estado Democrático de Direito.
Assim, o Estado de direito deixou de ser formal, neutro e individualista, para transformar-se em
Estado material de Direito, cuja pretensão é a realização da justiça social, cujos valores
democráticos da igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana são indissociáveis de uma
sociedade justa e igualitária. Nessa perspectiva de ampliação dos direitos e das garantias, o Estado
Democrático de Direito, tem como característica a participação popular, amparado no princípio da
soberania popular que se impõe pela participação efetiva do povo na gestão da coisa pública e visa à
realização do princípio democrático a garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana.
A configuração do Estado Democrático de Direito não significa apenas unir formalmente os
conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito. A democracia que o Estado
Democrático de Direito perpassa por um processo de convivência social numa sociedade
livre, justa e solidária (art.º, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em
proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos, participativa, porque envolve a
participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo,
pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, cultura, e etnias e pressupõe assim
diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de
formas de organização e interesses diferentes da sociedade[...] (SILVA, 2011, p. 119).
O regime democrático favorece a representatividade e facilita o desenvolvimento da
cidadania, bem como a participação popular no processo político, uma vez que todo poder emana
do povo, e que por meio de representantes eleitos ou diretamente de maneira candente estabelece a
Constituição, desde o parágrafo único do art. 1º, configurando-se os elementos básicos da
#interna

democracia representativa e da democracia participativa respetivamente. Os valores consignados na


Constituição da República Federativa do Brasil, de uma sociedade pluralista e fundamentada no
pluralismo político ensejam a participação das pessoas com deficiência em condições de igualdade
no sistema político partidário a ser atingido através de ações afirmativas que possibilitem às pessoas
com deficiência disputarem eleições e exercerem seus mandatos eletivos em condições de igualdade
de oportunidade plena.

Do direito à participação na vida pública e política


O Estatuto da Pessoa com Deficiência é uma lei principiológica conforme já identificamos
acima, objetiva promover a igualdade, o exercício dos direitos e liberdades fundamentais da pessoa
com deficiência, visa garantir a inclusão e a cidadania (BRASIL, 2015, art. 1º). A Lei Brasileira de
Inclusão não especificou de antemão, o prazo e o rol de pessoas com deficiência, deixando sob
responsabilidade de equipes multiprofissionais e interdisciplinares a avaliação biopsicossocial da
deficiência física, mental, intelectual ou sensorial que, em interação com uma ou mais barreiras,
pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as
demais pessoas. Podemos identificar na LBI, que não houve o cuidado em especificar o tempo para
caracterizar a pessoa com deficiência.
De acordo com o art. 2º da Lei 13.146/2015 (BRASIL, 2015), considera-se pessoa com
deficiência aquela que tem impedimento de longo de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, portanto, identificar as pessoas com deficiência não é tarefa fácil, pois exige
conhecimento tanto de natureza clínica e de fatores sociológicos de como a sociedade identifica as
pessoas com alguma limitação, visto que a ocorrência de obstruções à participação social outrora
justificadas, em tempos atuais podem ser caracterizados como discriminatórias. Nesse sentido, a
LBI alterou o Código Civil Brasileiro revogando a incapacidade absoluta das pessoas que
estabelecia que as pessoas que não tinham o necessário discernimento para a prática de atos da vida
civil, em razão de doença ou deficiência mental, eram consideradas absolutamente incapazes.
O Artigo 76 do EPD estabelece que “o poder público deve garantir à pessoa com deficiência
todos os direitos políticos e a oportunidade de exercê-los em igualdade de condições com as demais
pessoas” (BRASIL, 2015). Na mesma linha de garantia de igualdade de oportunidades de exercício
dos direitos políticos das pessoas com deficiência, estabelecida no Decreto n. 6 949/2009 (BRASIL,
2009), que promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
(CDPD).
Primeiramente, vale ressaltar que a Convenção Internacional sobre os direitos das Pessoas
com Deficiência tem status dentro do território nacional de Norma Constitucional (importante
porque não pode ser alterada ou revogada como a legislação ordinária, depende de quórum
#interna

qualificado para qualquer alteração) de norma constitucional após a Emenda 45/2204, que
acrescentou o §3 ao artigo 5º da CF/88, nos seguintes termos:
os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em
cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros, serão equivalentes às emendas constitucionais (BRASIL, 1988)
O Professor constitucionalista Pedro Lenza, comenta nos nestes termos:
[...] que o Decreto n. 6949, de 25.08.2209, que promulga a Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de
março de 2007, que já havia sido aprovada pelo Decreto Legislativo n. 186/2008, tendo sido
incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com status de norma constitucional após a
Emenda Constitucional. (LENZA, 2017, p. 681)
A garantia do exercício ao voto universal das pessoas com deficiência, sem preconceito ou
discriminação foram fixadas por meio da Resolução n. 21.008/2002 (BRASIL, 2002b), os critérios
de acessibilidade das seções destinadas aos “portadores de necessidades especiais” (ao invés de
pessoas com deficiências) “[...] §2º As seções especiais eleitorais deverão estar em local de fácil
acesso, com estacionamento próximo e instalações, inclusive sanitárias, que atendam às normas da
ABNT NBR 9050” (BRASIL, 2002).
Na resolução 23.381/2012 (BRASIL, 2012), que institui o Programa de Acessibilidade da
Justiça Eleitoral, há uma nítida preocupação das resoluções de ampliação do escopo de proteção e
de garantia de condições ao eleitor com deficiência ou mobilidade reduzida, contudo muito aquém
das normas que foram implementadas na década seguinte sob os auspícios da Lei Brasileira de
Inclusão, destacamos parte da constante evolução e ampliação das condições de igualdade ainda
sem falar em oportunidade, igualdade plena e da oportunidade de representação da pessoa com
deficiência e ou mobilidade reduzida, assim lemos:
Art. 1º Fica instituído, na Justiça Eleitoral, o Programa de Acessibilidade destinado ao
eleitor com deficiência ou mobilidade reduzida.
Parágrafo único. Para os efeitos desta Resolução, considera-se: I – pessoa com deficiência:
aquela com impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, os quais podem obstruir ou diminuir sua participação plena e efetiva na sociedade
em igualdade de condições com as outras pessoas; Art. 2º O Programa de Acessibilidade
destina-se à implementação gradual de medidas para a remoção de barreiras físicas,
arquitetônicas, de comunicação e de atitudes, a fim de promover o acesso, amplo e
irrestrito, com segurança e autonomia de pessoas portadoras de deficiência ou com
mobilidade reduzida no processo eleitoral. (BRASIL, 2012)
Por seu turno, a Resolução n. 23.659/2021 (BRASIL, 2021) dispõe sobre a gestão do
Cadastro Eleitoral e sobre os serviços eleitorais que lhe são correlatos. Existe no preâmbulo da lei a
nítida preocupação de adequação a Lei Geral de Proteção de Dados (BRASIL, 2018), também faz a
atualizada referência da relativa incapacidade da pessoa com deficiência pelo Estatuto da Pessoa
com Deficiência que alterou o Código Civil Brasileiro deixando a condição outrora de incapacidade
absoluta imposta.

Art. 14. É direito fundamental da pessoa com deficiência, inclusive a que for declarada
relativamente incapaz para a prática de atos da vida civil, estiver excepcionalmente sob
curatela ou tiver optado pela tomada de decisão apoiada, a implementação de medidas
#interna

destinadas a promover seu alistamento e o exercício de seus direitos políticos em igualdade


de condições com as demais pessoas. (BRASIL, 2021).

Origem do termo Pessoa com deficiência (PCD)


Ao longo dos anos, a busca pelo termo mais adequado para referir-se às pessoas com
deficiência passou por diversas ressignificações. Segundo Silva e Keske (2021), a primeira
referência oficial a esse grupo no Brasil deu-se com a Constituição Federal de 1934, em que eram
referidos através de termos como: inválido, incapacitado, aleijado, defeituoso e desvalido. Em 1937
surgiu o termo excepcional para referir-se a essas pessoas, mas devido ao termo ter sido adotado
também para designar pessoas com capacidades acima da média, o termo para referir-se às pessoas
com deficiência foi substituído por “pessoa deficiente” de 1978 até a Constituição de 1988, quando
se adotou o termo “portadores de deficiência”. O novo termo foi adotado até 1993, pois no ano
seguinte, “surgiu o termo pessoa com necessidades especiais e a sigla (PNE)” (SILVA, KESKE,
2021, p. 7). Apesar dos dois últimos termos criados parecerem inofensivos e serem utilizados com
frequência até os dias atuais, houve o entendimento que excluem, rotulam e classificam essas
pessoas, por isso, no ano de 2009 a Organização das Nações Unidas (ONU) criou o termo adotado
atualmente, pessoa com deficiência.
Além dos termos oficialmente definidos, outros termos derivados foram criados e continuam
sendo utilizados com frequência na sociedade para referir-se às pessoas com deficiência, por
exemplo o termo “especial”, derivado de “necessidades especiais” (SILVA, KESKE, 2021).
Relacionado a esse fato, a própria utilização da abreviação “PCD”, embora utilizada nesse texto
com objetivo de economia de palavras, não é recomendada no uso cotidiano, pois seu uso frequente
gera o risco de que seja adotado em substituição ao nome correto.
Essas alterações na terminologia geraram, além de dúvidas e desconhecimento por parte da
sociedade do termo mais adequado, a desatualização de documentos oficiais, inclusive a própria
Constituição Federal continua utilizando o termo “portadores de deficiência”, mesmo termo adotado
no Regimento da Câmara Municipal de São Paulo. Em relação à Constituição Federal, há uma
Proposta de Emenda Constitucional de número 25/2017, de autoria da ex-senadora e atual
governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra, filiada ao Partido dos Trabalhadores
(PT/RN), que dentre outras medidas, propõe a correção da nomenclatura adotada em 10 artigos da
Constituição.
Não obstante, o preâmbulo da Convenção da Pessoa com Deficiência menciona de maneira
cautelar a fluidez e o caráter dinâmico do conceito de deficiência, pois caso contrário emperraria
todo o conhecimento e desenvolvimento científico, não descuidando inclusive do papel primordial
da interatividade e das relações entre as pessoas, fugindo da capitulação estanque da pessoa com
deficiência ao longo dos tempos, assim:
#interna

Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da


interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que
impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de
oportunidades com as demais pessoas. (BRASIL, 2009).

Representação das PCD´s no município e estado de São Paulo


A teoria clássica da democracia representativa indica como virtude desse sistema sua
aptidão para representar a diversidade, ideia já defendida no século XVIII, quando “admitia-se, em
geral, que as assembleias representativas deveriam refletir essa diversidade” (MANIN, 1995, p. 6),
mas no Brasil, a sub-representação de grupos não hegemônicos tem sido apontada com um dos
pilares da crise na democracia contemporânea. Segundo Manin (1995) esse fenômeno tem causado
aprofundamento na distância entre governo e sociedade e na sensação dos cidadãos de não serem
adequadamente representados. Quando analisamos a situação das PCD´s, o tamanho dessa
população em relação ao número de políticos eleitos, podemos concluir que é um grupo bastante
sub representado.
No município de São Paulo, na atual legislatura (décima oitava) não foi identificado
parlamentar que tenha se declarado pessoa com deficiência e diferente de alguns outros municípios
do Estado, não há comissão exclusivamente dedicada a promover a causa da pessoa com
deficiência.
A situação de poucas pessoas com deficiência estarem presentes no poder legislativo nos
municípios e estado não surpreende, inclusive essa é uma característica da própria democracia, “a
representação não garante, pelo método de tomada de decisão por maioria, que identidades
minoritárias irão ter a expressão adequada no parlamento” (ARVITZER; SANTOS, 2002, p. 49).
Conforme regimento interno da câmara municipal de São Paulo, em sua seção III, artigo 47,
item VII, compete exclusivamente à Comissão de Saúde, Promoção Social, Trabalho e Mulher,
dentre outras atribuições, opinar sobre proposições e matérias relativas a programas de proteção a
“portadores de deficiência” (SÃO PAULO, 1991). Essa comissão é permanente e composta por 7
membros, dos quais, na atual legislatura, nenhum é identificado como pessoa com deficiência.
Referente a eventuais adequações físicas e processuais a fim de viabilizar a participação
política ativa de pessoas com deficiência, nada foi identificado no regimento. Uma das dificuldades
da democracia representativa apontada por Arvitzer e Santos (2009) é a representação de múltiplas
identidades, sendo esse um limite da teoria democrática clássica: dificuldade em representar
agendas e identidades especificas. Diante da pequena representatividade de pessoas com deficiência
na política estadual e municipal, no ano de 2021 foram idealizadas duas frentes parlamentares que
unem vereadores de diferentes municípios do Estado.
A Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência e Doenças Raras
foi oficializada em 07/03/2022, através da resolução n o 15, de 16 de dezembro de 2021 (SÃO
#interna

PAULO, 2022). No município, a frente parlamentar foi proposta pela vereadora Sonaira Fernandes,
com apoio de mais 16 vereadores. Entretanto, a idealização de Frentes Parlamentares municipais
para agirem em conjunto em todos os níveis (municipal, estadual e federal) foi proposta e
incentivada pela Deputada Estadual Valeria Bolsonaro, presidente da frente parlamentar homônima
da Assembleia Legislativa, a pedido da Ministra de Estado da Mulher, Família e Direitos Humanos,
Damares Alves (SÃO PAULO, 2022), que afirmou desejar que em todos os municípios do Estado
exista ao menos um vereador cuidando dessa pauta. Até o mês de março de 2022, a frente
parlamentar já contava com a adesão de mais de 100 municípios do Estado, que possui 645.
Apesar da grandiosidade da iniciativa no Estado, em seus objetivos declarados, não se
encontra menção a direitos políticos desse grupo e não há exigência que seus membros sejam
pessoas com deficiência, o que tecnicamente não confronta princípios democráticos, “um sistema
eletivo não requer que os governantes sejam semelhantes àqueles que eles governam.” (MANIN,
1995, p. 2), entretanto, há o contraponto levantado por Arvitzer e Santos (2002), que indicam como
um dos problemas da atual democracia representativa a dificuldade encontrada pelos grupos mais
vulneráveis socialmente de terem seus interesses representados na política pelos grupos
hegemônicos, que priorizam pautas do interesse do grupo ao qual pertencem, incorrendo inclusive
no chamado risco de cooptação, caracterizado pelo:
[...] processo das elites dominarem pautas das quais não são legítimos interessados e as
manipularem para seus fins, perversão trata-se da criação de barreiras (burocratização,
clientelismo, instrumentalização partidária e silenciamento ou manipulação de instituições
participativas) para a participação popular (ARVITZER; SANTOS, 2002, p. 74)
No município de São Paulo é previsto que a adesão a essa Frente Parlamentar “fica facultada
a todos os vereadores da câmara municipal de São Paulo” (SÃO PAULO, 2021, p. 1) e que também
será permitida a participação, na condição de membros colaboradores, representantes de entidades
públicas ou privadas. A resolução prevê ainda que o regimento interno da frente parlamentar deverá
ser aprovado em sua primeira reunião e que seu funcionamento não poderá ser superior ao período
da legislatura em que foi criada a frente (SÃO PAULO, 2021).
Como já citado, a Deputada Estadual Valéria Bolsonaro é também presidente de uma frente
Parlamentar homônima criada em 2019, na Assembleia Legislativa (ALESP), que possui
característica distinta das municipais, pois, conforme resolução interna da casa:
considera-se frente parlamentar a associação de deputados, de caráter suprapartidário,
destinada a promover, em conjunto com representantes da sociedade civil e de órgãos
públicos afins, a discussão e o aprimoramento da legislação e de políticas públicas para o
Estado de São Paulo referentes a um determinado setor (SÃO PAULO, 2011).
A criação ocorreu através do ato do presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo
(ALESP) no 129, de 06/05/2019 e atualmente a Frente Parlamentar possui um membro efetivo,
Deputado Major Mecca e 19 membros apoiadores, além de sua coordenadora, Valéria Bolsonaro
(SÃO PAULO, 2019).
#interna

Voltando ao nível municipal, além da frente já citada, em 16 de dezembro de 2021 ocorreu a


formação da Frente Parlamentar de vereadores com deficiência do Estado de São Paulo, composta
por vereadores de diferentes municípios, entretanto, essa frente possui como característica o fato de
ser formada exclusivamente por vereadores com deficiência, esse fato aproxima essa iniciativa a
ideia proposta de autodeterminação, a qual “alude à capacidade que tem um coletivo social de se
emancipar de poderes hegemônicos, percebidos por eles como opressivos, discriminatórios e
injustos” (ARVITZER; SANTOS, 2002 , p. 222), pois em primeira análise, essa aliança não possui
poder real de mudança diante das regras democráticas, uma vez que une parlamentares de diferentes
casas, logo, sem capacidade de influenciarem em conjunto nas decisões locais, entretanto, diante da
sub representação de seu grupo, essa união, que extrapola os limites de partidos políticos e casas
legislativas demonstra a disposição desse grupo em participar e buscar ter suas pautas atendidas,
ainda que não sejam de interesse dos grupos hegemônicos que dominam as diferentes casas
legislativas, um ato significativo, considerando que na democracia de partidos “os representantes
não são mais indivíduos livres para votar segundo sua consciência e julgamento: eles estão presos à
disciplina partidária e dependem do partido que os elegeu.” (MANIN, 1995, p. 10). Essa tendencia
da chamada democracia partidária revela-se como mais uma barreira às pessoas com deficiência na
política, pois impõem também os interesses de seus partidos políticos acima dos interesses de seu
grupo de representação. Além disso, Manin (1995) aponta outra dificuldade para representar
interesses no sistema representativo eleitoral, na prática, as assembleias tornaram-se um campo de
decisões previsíveis e tendenciosas, onde os Partidos identificados como oposição tendem a votar
contra os interesses do governo e os partidos de base aliada ao governo tendem a votar em favor de
suas pautas, gerando mais uma barreira para se legislar a favor das pessoas com deficiência, a
indisposição dos parlamentares em analisarem propostas além dos interesses partidários. Em relação
a essa barreira, o caráter multipartidário das duas frentes parlamentares surge como uma possível
solução.
A Frente foi idealizada pelo vereador André Bandeira de Piracicaba e “propõe a criação de
'pontes' entre o município, o estado e a federação, para que seja possível trabalhar em prol da
inclusão” (PIRACICABA, 2021). A frente é atualmente composta por 14 vereadores e somente o
município de São Manuel possui mais de um parlamentar como representante, todos os demais
representam um município cada e muitos declaram serem os únicos parlamentares com deficiência
em seus municípios. Embora não citem foco direto em direitos políticos, a Frente afirma
compromisso com a inclusão e cidadania dessa população (PIRACICABA, SP, 2021). Entre seus
integrantes, há o caso da vereadora Leticia Sader, presidente da câmara de Penápolis em seu
primeiro mandato e que relata ter encontrado barreiras físicas por falta de acessibilidade nas
dependências internas da câmara (PIRACICABA, 2021), fato esse que desrespeita o próprio
#interna

estatuto, que, em seu artigo 76, sobre direito a participação passiva na política, indica o “incentivo à
pessoa com deficiência a candidatar-se e a desempenhar quaisquer funções públicas em todos os
níveis de governo, inclusive por meio do uso de novas tecnologias assistivas, quando apropriado”
(BRASIL, 2015).
A legislação que versa sobre os direitos das pessoas com deficiência no Estado de São Paulo
é a lei no 12.907, de 15 de abril de 2008, criada com base no projeto de lei n o 1063/07, da Deputada
Célia Leão e Deputado Rafael Silva. Apesar de abrangente em relação à garantia de direitos às
pessoas com deficiência, essa lei não prevê nada especificamente relacionado aos direitos políticos,
focando mais em garantias de acesso específico aos serviços de saúde, reabilitação, inclusão social e
locomoção e acesso aos bens e serviços públicos (SÃO PAULO, 2008).

Considerações finais
O Estatuto da pessoa com deficiência tornou-se uma lei bastante abrangente em pautas,
visando garantir amplos direitos às PCD´s, dos quais destacamos à garantia de autonomia para suas
decisões, representada pela retirada desse grupo dos considerados incapazes e, portanto, tutelados.
Todavia, é necessário dizer que a lei foi aprovada tardiamente, com absorção de diversas
legislações anteriores que estavam pendentes de análise das quais, algumas foram pouco debatidas
com o principal grupo de interesse, como destacado por parlamentares ao longo da tramitação e que
em relação a direitos políticos, embora declare ter como objetivo garantir todos os direitos de
cidadania das PCD´s, a lei é vaga em relação a como garantir esse direito e viabilizar essa
participação, diante das necessidades específicas desse grupo.
Ao remeter as especificidades da implantação para as legislações estaduais e municipais, o
Estatuto da Pessoa com Deficiência deixou essa lacuna aberta, e analisando o que vem sendo feito
no estado e município de São Paulo, é possível concluir que estamos longe de uma participação
plena desse grupo, especialmente entre legisladores eleitos, sendo que em muitos municípios, não
há vereadores identificados como PCD, inclusive na capital paulista e entre os deputados, também
não foi identificado nenhum, ficando a representação de suas pautas sob responsabilidade de
pessoas que não vivem essa realidade.
Indício de consequência desse problema está na existência de legislação específica apenas
em nível estadual, a qual foca majoritariamente em remoção de barreiras físicas (arquitetônicas) em
órgãos públicos e privados, enquanto relatos de parlamentares PCD´s no Estado indicam existência
dessas barreiras nos próprios parlamentos.
Por fim, identificamos como necessárias ações afirmativas, a exemplo das que já existem
para outras minorias na política, complementadas por adaptações regimentais em relação aos
processos internos, não apenas para que as PCD´s consigam ser eleitas, mas para que tenham
#interna

condições de manterem-se produtivas ao longo do mandato a exemplo do que já é feito em países


que flexibilizaram algumas regras para viabilizar a ação de parlamentares PCD´s.
Embora não seja o escopo da atual pesquisa, diante do perfil diverso da população brasileira,
surge como pauta relevante para pesquisas complementares, analisar a importância das
interseccional idades na criação de políticas públicas para pessoas com deficiência, diante da
perspectiva que embora algumas barreiras enfrentadas por essas pessoas sejam comuns a seus
pares, há indícios que algumas questões são mais sensíveis a uns do que a outros, há como exemplo,
diversos casos registrados de abuso sexual contra mulheres com deficiência mental, assim como há
indícios de que homens negros com deficiência mental estejam mais sujeitos a violência policial,
portanto, mesmo dentro do grupo das PCD´s, a diversidade entre os representantes torna-se
necessária.

Referências
ARVITZER, Leonardo. SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução para ampliar o cânone
democrático. Democratizar a democracia: Os caminhos da democracia participativa. Editora
Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2002.

BRAGA, Mariana Moron Saes. SCHUMACHER, Aluisio Almeida. Direito e inclusão da pessoa
com deficiência: uma análise orientada pela teoria do reconhecimento social de Axel Honneth.
Unesp. São Paulo, 2013.

BRASIL, Estatuto da pessoa com deficiência. Brasília, 2015. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm> Acesso em:
11/07/2022.

BRASIL. Decreto 6949 de 25 de agosto de 2009. Decreto da Pessoa com deficiência. Brasília,
2009. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/
d6949.htm.>Acesso em: 13/08/2022.

BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. Resolução no 21.008/2002. Brasília, 2002. Disponível em:
<https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2002/resolucao-no-21-008-de-5-de-marco-de-
2002>Acesso em 13/08/2022.

BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. Resolução no 23.659/2021. Brasília, 2021. Disponível em:
<https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2021/resolucao-no-23-659-de-26-de-outubro-de-
2021> Acesso em: 13/08/2022.

BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. Resolução no 23.381/2012. Brasília, 2012. Disponível em


<https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2012/resolucao-no-23-381-de-19-de-junho-de-
2012> Acesso em: 13/08/2022.

BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. Estatísticas de Eleição. Brasília, 2020. Disponível em:
<https://sig.tse.jus.br/ords/dwapr/seai/r/sig-eleicao/home?session=16110839180891> Acesso em:
19/07/2022.
#interna

BRASIL, Ministério da Saúde. Plano Nacional de Saúde (PNS 2016-2019). Brasília, 2015.
Disponível em:
<https://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2016/docs/PlanoNacionalSaude_2016_2019.pdf>
Acesso em: 19/07/2022

MANIN, Bernard. As metamorfoses do governo representativo. 1995. Disponível em:


<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4418905/mod_resource/content/1/Manin%20-
%20Metamorfoses%20do%20governo%20representativo%20%28artigo%29.pdf> Acesso em:
15/07/2022

PICOLLO, Gustavo Martins, MENDES, Eniceia Gonçalves. Pessoas com deficiência e


participação eleitoral: Uma relação para além do direito ao voto. 2021. Scielo Pre Print, Disponível
em: <https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.3169>

PIRACICABA, SP, Câmara Municipal. 2021. Live apresenta Frente Parlamentar dos Vereadores
com Deficiência de SP. Disponível em: <https://m.camarapiracicaba.sp.gov.br/live-apresenta-frente-
parlamentar-dos-vereadores-com-deficiencia-de-sp-55478> Acesso em: 15/07/2022.

ROSENO, Marcelo. Estatuto da Pessoa com Deficiência e Exercício de direitos políticos:


Elementos para uma abordagem garantista. Disponível em: <https://doi.org/10.20499/2236-
3645.RJP2017v18e116-1315> Acesso em: 08/07/2022.

SARMENTO, Daniel. Dignidade da Pessoa Humana. Conteúdo, Trajetórias e Metodologia. 3. ed.


Belo Horizonte: Fórum, 2020.

SÃO PAULO, Assembleia Legislativa. 2011. Resolução no 870 de 08 de abril de 2011. Disponível
em: <https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/resolucao.alesp/2011/resolucao.alesp-870-
08.04.2011.html >. Acesso em: 18/07/2022.

SÃO PAULO, Assembleia Legislativa. 2021. Implantação da Frente Parlamentar das Pessoas com
Deficiência e Doenças Raras é um sucesso! Disponível em: <https://www.al.sp.gov.br/noticia/?
id=427722> Acesso em: 15/07/2022.

SÃO PAULO, SP, Câmara Municipal. 2021. Resolução no 15 de 16 de dezembro de 2021


Disponível em: <https://splegisconsulta.saopaulo.sp.leg.br/Home/AbrirDocumento?pID=347730>
Acesso em: 15/07/2022.

SILVA, Antonio Janiel Ienerich da. KESKE, Henrique Alexander Grazzi. As transformações da
nomenclatura de referência à pessoa com deficiência e o impacto social para a inclusão. Paraná.
Editora Brazilian Journal of Development, 2021.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo. Malheiros, 2011.

Você também pode gostar