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Pormenor da pintura São João Baptista e a Ordem de Malta.
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São Vicente de Fora – a título de exemplo, basta do cadeiral, se encontravam, do lado do Evan‐
TRANSITORIEDADE E PERMANÊNCIA ‐ A PINTURA DE SÃO VICENTE DE FORA
Nuno Saldanha
citar o caso dos famosos “Painéis de São Vicente”, gelho, “dous quoadros” dedicados a São Vicente
indubitavelmente o conjunto pictórico mais e, da Epístola, idêntico par, figurando passos
importante do país. da vida de São Sebastião, tal como sucede ain‐
Se a parte conventual se pauta pelo transitó‐ da hoje: “As cadeyras que se vem nos lados do coro
rio, a pintura na igreja, por seu lado, apresenta sam somente doze de cada parte, e sobre ellas ficam
uma inusitada permanência, atravessando as dous quoadros, pertencendo os da parte do Evange‐
vicissitudes do tempo, da natureza e dos lho ao glorioso martyr Sam Vicente, e no meyo do
homens, sem mudanças significativas. vam que ha entre elles se ve hum arco em forma de
Apesar da morosidade das obras de tribuna capaz de poder ter hum orgam como ja tem.
“decoração” do interior da igreja, no tocante à E o vam que fica da parte da Epistola entre os dous quoa‐
pintura, elas não se dilatam para além do espa‐ dros pertencentes ao valerosissimo soldado de Christo
ço de uma centúria, a de Setecentos, permane‐ Sam Sebastiam...” (História dos Mosteiros, I, 1704: 28)
cendo praticamente sem grandes alterações até Infelizmente, não sabemos nada mais sobre
ao presente, como veremos adiante. estas obras, para além da sua existência com‐
provada em 1704, e de uma provável execução
A IGREJA seiscentista. Mas o século XVII foi bastante pro‐
lífico, o que torna igualmente extenso o número
“magestade do resto da igreja”, expediente que de São Vicente, São Sebastião (seguindo o pro‐
servia, ao mesmo tempo, como “remendo” para grama original, talvez perdido no mega sismo),
ocultar a falta de pedra de cantaria de que era fei‐ Santo Agostinho e São Teotónio.
to o resto da abóbada. (Livro dos Assentos: 215) Apesar da passagem do tempo, o programa
Os problemas gerados pela decoração da iconográfico da capela‐mor manteve‐se coeren‐
abóbada da capela‐mor parecem ter desencora‐ te, dado que, eram precisamente estes 4 santos
jado os priores durante largos anos, e teríamos que ocupavam aquele espaço, antes do Terra‐
de esperar pelo reinado de D. José, para voltar‐ moto: “No altar mor estavão antigam.te as Images
mos a encontrar nova obra pictórica para o de S. Vicente. S. Seb.am N. P. S.to Ag.º e S. Theoto‐
espaço do coro dos cónegos, ou mesmo para nio e se tirarão quando se desmanchou a Cap.ª mor e
toda a igreja. se puzerão em outras Cap.as como abaixo se decla‐
Efectivamente, apenas em 1768 se voltaria a ra.” (Boa‐Morte, 1761: 6). De facto, em 1742, já
pensar em novos projectos decorativos, os sob a supervisão de João F. Ludovice, proce‐
quais, ainda hoje subsistem. Trata‐se de um deu‐se a uma remodelação do espaço, sendo
programa de 10 pinturas, com passos da vida desmontado o antigo retábulo provisório, de
Coro do cónegos.
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madeira pintada, a que se refere o autor da His‐ A única obra que dele se conhece, é precisa‐
tória dos Mosteiros: “ainda nam tem retabolo com‐ mente esta meia dúzia de telas feitas para São
coerência, e afinidade, tanto de formato, como No tocante a São Sebastião, temos São Sebas‐
de estilo. tião derruba os ídolos, e a Sagitação de São Sebas‐
Os episódios relativos a São Vicente, repre‐ tião2. Esta última, parece inspirar‐se (e não
sentam São Vicente e São Valério perante Daciano meramente copiar), numa gravura de Rafael de
(delegado imperial de Diocleciano, figurado na Sadeler I, segundo uma pintura do mesmo
estátua em segundo plano) e o Martírio de São tema de Maarten de Vos, e bastante próxima
Vicente na grelha, que lembra o Martírio de São das versões do alemão Hans von Aachen (1552‐
Lourenço, com o qual por vezes se confunde. 1615), ou do espanhol Juan van der Hamen
Aliás, como é sabido, este episódio vicentino (1596‐1631).
baseia‐se no de São Lourenço, embora acentua‐ Embora os temas sejam coincidentes com o
do com alguns requintes de maior crueldade, primitivo programa, referido nos inícios do
como os pormenores dos espigões na grelha, ou século XVIII, é provável que os quadros origi‐
o sal que é lançado sobre as feridas pelos carrascos. nais se tenham perdido no Terramoto, no todo
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século. Mesmo quando, em 1768, finalmente se XVIII, a mais importante foi seguramente o
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decide pela nova decoração do coro dos cóne‐ célebre tecto da portaria do convento, executa‐
gos, ou mesmo da importante Capela do San‐ do em 1710 pelo florentino Vicente Baccharelli,
tíssimo, as escolhas recaem sobre pintores des‐ como vimos. Citada, e elogiada por quase
conhecidos, sem grande experiência, obras de todos os autores, desde 1712 até ao presente,
qualidade mediana, ou mesmo medíocre. ela tornou‐se num ex‐líbris da obra pictórica do
Real Mosteiro.
O CONVENTO / PAÇO PATRIARCAL Logo em 1712, já Carvalho da Costa se refere
a ela, naquele que é o primeiro e único testemu‐
igreja do convento de São Francisco, em Lisboa: apenas lhe faltava pagar a quantia de 396$000
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“Era o seu Coro muito alegre, espaçoso, e nobilíssi‐ reis, perfazendo assim o total de 1 524$410 reis
mo, e tinha o tecto de abobada pintado de excellente do seu trabalho.
architectura pelo famoso Baccarelli” (Castro, 1763: Pelo que podemos entender, pouco ou nada
376). Este tecto terá sido pintado depois de terá sobrevivido do medalhão central, figuran‐
1708, e desaparecido em 1741, por ocasião do do a Apoteose de Santo Agostinho, refeito nos
incêndio que aí sucedeu nesse ano. finais de Setecentos pelo mediano pintor
Já no século XIX, Cirillo oferece‐nos a Manuel da Costa, a quem também se deverá o
melhor e mais completa descrição do mesmo, restauro da moldura arquitectónica e das deco‐
bem como pormenores desconhecidos ou ocul‐ rações florais de Vitorino Manuel da Serra.
tados pelos anteriores. Na sua biografia de Bac‐ O medalhão central, figurando a Glória ou
charelli, descreve o tecto da portaria como sen‐ Apoteose de Santo Agostinho, onde o santo é con‐
do “huma das melhores cousas, ou antes a melhor duzido aos céus por um grupo de anjos,
que deste género temos em Lisboa...”, acrescentan‐ enquanto que outros trespassam a figura da
do que ele o pintara na sua quase totalidade, Heresia ou queimam livros heréticos, alusivos
com excepção para as “festonadas de flores, que aos arianos e maniqueus, está rodeado por
forão feitas pelo Serra [...] e são primoro‐ diversos medalhões e cartelas, que completam
sas” (Machado, 1822: 181). o recorrentemente esquecido, embora bastante
Contudo, além de Cirillo nos relatar a cola‐ interessante, programa iconográfico do tecto.
boração do pintor Vitorino Manuel da Serra († Assim, em torno do painel central, a temáti‐
1747), de quem Manuel Ferreira Leonardo con‐ ca augustiniana é complementada por 4 carte‐
siderava que a “sua pintura imitou muito, senão las ovais seguradas por anjos, alusivas à vida
excedeo á de Vicente Bacarelli” (Andrade, 1748: de Santo Agostinho – Vocação de Santo Agostinho
15), também corrobora as afirmações de Boa‐ junto à figueira; Santo Agostinho e o anjo (ou
Morte, aludindo ao desaparecimento do meda‐ menino); Lava‐pés a Cristo Peregrino; e Baptismo
lhão central: “O painel era igualmente bello [...] de Santo Agostinho por Santo Ambrósio. Nos can‐
Pelo terremoto de 55 cahiu só o reboco, que continha tos, 4 escudos ostentam os símbolos tradicio‐
o painel”5. nais associados a Cristo, Seu Amor, Glória e
Refere‐se ainda à posterior intervenção de Ressurreição – a águia, o pelicano, o templo, o
Manuel da Costa, em 1796, desculpando o tra‐ sol, a Fénix.
balho inferior, dizendo que ele não poderia ter
igualado a qualidade da pintura original, dado
não ser essa a sua actividade principal: “e se o
painel, que elle também fez, não fosse bom teria
alguma desculpa, visto não ser essa a sua profissão”.
(Machado, 1822: 182)6.
Para além da assinatura aposta por Manuel
da Costa no tecto da portaria, também a docu‐
mentação confirma estes dados, referida pela
informação ao Cabido no respectivo Livro dos
Assentos. Assim, a 20 de Maio de 1796, dá‐se
notícia que o pintor tinha a “Pintura da Portaria
V. Baccarelli, Santa Irene e São Sebastião; Vitorino Manuel
quazi acabada” e que, para liquidar a despesa, da Serra (Flores). Pormenor do tecto da portaria, 1710.
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No registo inferior, junto à sanca, por baixo nado de D. João V, são bastante escassas as
dos balcões de arquitecturas perspectivadas, informações sobre este período.
vindo de Roma e sérvio de modello ao Retabolo que ou das primeiras pinturas ovais em Santa
se fes de pedra e El Rey D. João 5º deu aos Padres da Maria de Via Lata, em Roma. É provável que o
três telas pintadas por André Gonçalves exis‐ quinto (1703‐1756), pintada por volta de 1745,
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tentes em Coimbra ‐ capela da Anunciação, no que esteve em São Vicente, embora desconhe‐
seminário Maior; Museu Nacional Machado de çamos em que parte do convento se encontra‐
Castro; sacristia da Misericórdia. As duas pri‐ va, ou em que data ali foi colocado. Possivel‐
meiras são bastante interessante, mormente no mente fazia parte do conjunto de obras da
que diz respeito à pintura de São Vicente, dado capela do Noviciado/Comunidade depois da
que figuram o Padre Eterno, na parte superior, sua reconstrução, pelo prior D. António de
testemunhando assim um contacto directo do Nossa Senhora da Boa‐Morte, pois, consoante
pintor com a obra vicentina13. refere D. Inácio, “Também acabou de todo a Cap.ª
Esta primeira versão do quadro de Masucci, da Comunid.e ornando a de singulares Pintu‐
foi eventualmente fruto de uma oferta de D. ras.” (Boa‐Morte, 1761: 38).
João V, que sabemos frequentava o convento, Esta era sem dúvida uma das melhores pin‐
pelo menos duas vezes por ano, pela Festa do turas executadas para a capela de São João Bap‐
Tríduo de Santa Engrácia, e pela Festa de Santo tista, apesar do soberano ter preferido a de
Agostinho. Ou então, do Cardeal D. João da Masucci, mais clássica, tanto no estilo como na
Mota, Protector que foi da Reforma, e irmão da iconografia. Giaquinto faz aqui uma inteligente
Ordem, que ali mandou erguer a sua capela integração da composição ao espaço, pela for‐
mortuária, como veremos. ma como a mesma é perspectivada, adaptando‐
Para além da pintura de Masucci, também se de forma particular à ilharga esquerda da
ornava a capela do Noviciado, um quadro de capela, criando assim um efeito cenográfico
São Tomé, o importante painel que tinha vindo bastante interessante. No entanto, o seu estilo
da antiga Capela Real (transformada em mais “napolitano”, reflectindo ainda a enorme
Patriarcal do Paço), por ordem de D. João V, o influência de Sebastiano Conca, seu mestre em
qual mandou aqui erguer um altar com aquela Roma, não se adequava ao gosto particular de
invocação: “Nesta Cap.ª havia tambem o Altar de D. João V.
São Thome nelle estava hu grd.e Painel do S.to que Outra das obras setecentistas de origem ita‐
se tirou da Patr.al e era o orago da Cap.ª Real depois liana, documentada em São Vicente, era uma
se fes Patr.al El Rey D. João 5º mandou o Painel pª Sagrada Família, atribuída por Julieta Ferrão ao
este Mostr.º e lhe fes hu Altar nesta cap.ª dando pintor Vieira Lusitano (Ferrão, 1956: Est.15), e
tambem hua grande alampada de prata e ornamen‐ corroborada na exposição Roma Lusitana – Lis‐
tos p.ª o S.to”. (Boa‐Morte, 1761: 17). bona Romana (1990‐91: 143‐144). Embora tenha‐
Associada à Anunciação para São Roque, mos seguido esta atribuição em 1994 (Saldanha,
estavam outras duas pinturas, um Pentecostes e 1994: 226)14, temos hoje opinião bem contrária.
um Baptismo. Como se viu, o receio da incapaci‐ De facto, quando descobrimos uma versão
dade de Masucci levou à duplicação da enco‐ igual no mercado leiloeiro londrino, assumi‐
menda, agora dirigida a Batoni, Conca e Gia‐ mos que se tratava do original duma cópia feita
quinto. Dos dois primeiros quadros, não obs‐ por Vieira. Efectivamente, as duas obras são
tante os pagamentos documentados, não sabe‐ bastante idênticas, o que nos leva agora a crer
mos se de facto chegaram a ser feitos mas, rela‐ tratar‐se da mesma autoria, ou seja, de Giusep‐
tivamente ao Pentecostes, está comprovado que pe B. Chiari (1654‐1727), ou um dos colegas do
efectivamente chegou a ser executado e enviado estúdio de Carlo Maratta ‐ Andrea Procaccini
para Lisboa (Saldanha, 1994: 30). (1671‐1734), ou Giuseppe Passeri (1754‐1714),
É precisamente esta tela de Corrado Gia‐ senão mesmo dos discípulos destes.
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Das outras pinturas que comprovadamente te, o mesmo não se poderá dizer de Santo Ilde‐
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existiam nas outras capelas do convento, ape‐ fonso, São Luís Gonzaga, São Francisco de Bor‐
nas podemos assinalar mais duas, curiosamen‐ ja, Santa Margarida da Hungria (?) ou Santa
te, ambas do atelier de André Gonçalves, de Teresa. Ora, o facto de ali estar representado
quem já falámos, e que trabalhou para os cónegos São Francisco de Borja, justamente o Padroeiro
regrantes, quer em Lisboa quer em Coimbra. de Portugal contra os Terramotos, desde 1756,
Uma delas, já não se encontra no lugar original. aponta naturalmente para uma execução poste‐
Trata‐se de uma Santa Úrsula e as onze mil virgens, rior à ruína de que padeceu a sacristia quando
actualmente no Museu de Aveiro. Esta tela estava do cataclismo.
certamente colocada na capela chamada do Cardeal A autoria de Gonçalves, é no entanto certifi‐
(hoje designada de Santo António), mandada fazer cada por Cirillo que, como vimos, a ela se refe‐
pelo Cardeal D. João da Motta, com seu túmulo e pre‐ re na biografia do artista (Machado, 1822: 90).
cisamente dedicada a Santa Úrsula, como refere Boa‐ De qualquer modo, o estilo é bem característico
Morte: “He feita a moderna de pedras mármores de varias da produtiva oficina de André Gonçalves, de
cores. Nella estava hum grande e magestoso Tumulo para composição teatral e rico colorido, retórica fácil,
sepultura do Cardeal. Porem como em seu testamento se quase galante.
mandou sepultar no convento do Carmo de Lisboa se reti‐ Se bem que naturalmente existissem diver‐
rou depois de sua morte este tumulo. A Cap.ª he dedicada a sas outras pinturas no cenóbio setecentista,
Stª Úrsula e suas companheiras” (Boa‐Morte, 1761: 15). como comprova a afirmação de Boa‐Morte, a
A outra, é um dos raros exemplos da colec‐ propósito das que decoravam a Capela do
ção de pintura do século XVIII que permaneceu Noviciado, delas não se encontrou até agora
no local original ‐ o altar da sacristia da igreja, qualquer registo.
situada entre os dois claustros do convento. Bem diferente será a situação do convento
Esta tela também não é mencionada pelo cro‐ no século XIX, que em pouco tempo verá a sua
nista vicentino, pelo que provavelmente se colecção aumentar de forma significativa (não
deve tratar de uma das últimas obras do pintor, obstante as saídas de 1834), tanto em quantida‐
que falece no ano seguinte. Claro que poderia de como sobretudo em qualidade, graças à
colocar‐se a hipótese de ter sido executada incorporação sucessiva do espólio da Mitra
anteriormente, e que tenha sido retirada quan‐ Patriarcal, quer vindas do Paço da Junqueira,
do das obras de restauro da sacristia, ainda em do Tojal ou de Marvila. Para além destes, che‐
reparação, por causa dos estragos sofridos pelo gam também obras de outras procedências,
Terramoto. De facto, em 1761, ainda se proce‐ como do Seminário de Santarém. O cenóbio
diam aos trabalhos de recuperação, como o agostinho inicia novo capítulo da sua existên‐
atesta Boa‐Morte: “ja se tem em parte reparado cia, com a partida definitiva dos seus cónegos
estes dannos e brevem.te se pora em seu antigo regulares.
ser.” (Boa‐Morte, 1761: 16). Entramos assim na fase da transitoriedade,
Mas estas dúvidas podem facilmente ser com a entrada e saída de obras ao longo dos
esclarecidas pela iconografia. Esta, algo com‐ séculos seguintes. Algumas delas permanecem
plexa e ambígua, parece estranha no contexto mesmo pouco tempo, voltando a sair quase tão
do espaço dos cónegos regulares. Se bem que rapidamente como chegaram, para enriquecer
as figuras de São Teotónio ou Santo António as colecções do Estado, primeiro em 1834, e
(vestido como crúzio) em torno da Virgem com depois em 1910.
o Menino e São José se compreendem facilmen‐
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Francesco Solimena (atrib.), São João Baptista e a Ordem de Malta, óleo s/ tela, c. 1700‐1725.
outras 64, sendo 42 em tela, 19 em madeira e depois a Horácio Perry), assim como da Jun‐
duas em papel, ao que se acrescem outras 12 queira – 27 de Maio e 8 de Julho (o palácio
que estavam em depósito em diversos lugares ‐ sofrerá o mesmo destino), ou de outros locais,
uma santa em tela (sala do Arcebispo de Lace‐ como o Seminário de Santarém, e muitos
demónia), um Cristo e os Apóstolos (Junta da outros conventos extintos em 1834. Será preci‐
Bulla da Cuzada), e um retrato de Fr. Gaspar samente este conjunto de novas obras, que se
da Encarnação (cartório). irão acumular ao longo da centúria, que irá
Provavelmente, saíram bastantes mais obras promover a ideia, em 1905, de criar o Museu do
do que as ali referidas, visto num aviso de 10 Patriarcado.
de Setembro de 1838, se denuncie o extravio de Naturalmente não compete aqui, desenvol‐
vários quadros de São Vicente de Fora para São ver demasiado a questão da origem das diver‐
Francisco, e que pareciam estar escondidos sas peças entretanto incorporadas na colecção
numa casa, “para o sitio da Graça”17. vicentina, mormente porque o texto já se vai
No entanto, nem tudo seria mau, dado que, estendendo por demasiado, assunto que daria
para além da saída destas obras, outras tantas azo a um longuíssimo estudo. No entanto, pela
seriam ali incorporadas. Efectivamente, come‐ sua importância, não podemos deixar de
çam a chegar diversas pinturas procedentes de salientar alguns exemplares que integraram, ou
Marvila (cujo Paço seria vendido a particulares integram ainda, o considerável espólio pictó‐
a partir de 1864 – Marquês de Salamanca e rico de São Vicente.
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Ao percorrer o (extenso) inventário dos Bens resulte apenas da liberdade criativa do pintor.
da Mitra, de 1821‐27, torna‐se bastante interes‐ Neste caso, da eventual alusão ao cerco de
João de Sousa, D. António de Mendonça, D. dali regressariam finalmente a São Vicente de Fora.
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Jorge da Costa, D. Miguel de Castro, D. Jorge Actualmente existem 20 retratos, sendo que
de Almeida, Cardeal D. Henrique, e Cardeal alguns correspondem a duas ou três versões do
Infante D. Afonso (esta última, adquirida mesmo patriarca, mormente os executados nos
recentemente). finais do século XIX e no séc. XX. A série a que
Das séries de retratos, destaque ainda para a Elviro dos Santos se refere, era naturalmente
colecção de retratos dos Patriarcas, da qual constituída por apenas 11 ou 12 retratos, dado
temos notícia da sua existência em São Vicente que o do Patriarca José Neto, de quem era
desde 1905, sobre os quais Elviro dos Santos secretário, só seria executado postumamente
considerava “Os quadros da sala dos patriarchas por Albino Cunha, em 1940, autor também do
não tem merecimento artístico” (Vasconcelos, retrato do patriarca seguinte, D. António Men‐
1905: 327). Depois de 1910, os retratos, então 13, des Belo. Deste, existem ainda outros dois
foram levados para o Museu Nacional de Arte retratos, de corpo inteiro. Um deles pintado por
Antiga (inv.º 1442 a 1454) e dali para a Torre do Luís Ortigão Burnay, em 1922, versão extraor‐
Tombo. Passariam depois para as escadarias do dinária e inédita com um fundo natural algo
Palácio do Patriarcado no Campo Santana, e sinistro; e outro, executado pelo pintor espa‐
Uma das mais importantes obras que estive‐ de sua eminência é adornada com o apostolado em
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ram a decorar as paredes de São Vicente de doze grandes e bellos quadros pintados a
Fora, foi o famoso Apostolado de Francisco de óleo” (Barbosa, 1863: 228).
Zurbarán (1598‐1664). Apesar de conhecermos Alguns anos depois, João Maria Baptista,
a data de execução do conjunto, pouco mais se repete a descrição de Vilhena Barbosa, uma vez
sabe acerca da história da sua entrada em Por‐ mais, sem identificar o seu autor: “Tem boas
tugal. Graças à assinatura firmada no painel de salas, e uma d’ellas adornada com 12 belos quadros a
São Pedro (Fran.co de Zurbaran faciebat, 1633), óleo, representando o apostolado” (Baptista, 1876:
sabemos que os mesmos foram pintados em 512). O mesmo sucede em 1882, com Pinho
1633, uma das décadas mais fecundas e felizes Leal: “12 formosos quadros a óleo representando o
da sua carreira, período em que o artista se apostolado” (Leal, 1882, X).
encontra em Sevilha (1629‐1634), com sua É natural que outros autores a eles se refi‐
mulher, Beatriz de Morales, e os filhos, em vés‐ ram, mas só em 1905, o referido Monsenhor
peras da sua partida para Madrid. O conjunto Elviro dos Santos, menciona a respectiva auto‐
dos quadros é bastante desequilibrado, no que ria: “ha outros [quadros] dignos de menção... o dos
toca à qualidade, pelo que podemos inferir tra‐ apóstolos de Zurbaran.” (Vasconcelos, 1905: 327).
tar‐se de obra oficinal. De facto, Zurbarán esta‐ Tal como sucedeu com muitas outras obras,
va ainda ocupado com a grande encomenda a primeira hipótese que se colocou acerca da
dos 22 painéis para o Convento de la Merced, sua proveniência, foi a dos bens da Mitra. O
iniciado em 1628, e começara a trabalhar para o que se viria a confirmar, dado que, segundo
Mosteiro da Cartuxa de Jerez, na série da Vida indicação de Celina Bastos, presentemente a
de São Bruno. É de crer que o pintor tenha con‐ desenvolver uma investigação com Joaquim
tado com a habitual colaboração dos seus discí‐ Caetano, existe uma referência que, em 1809, o
pulos e colaboradores, mormente Francisco Apostolado terá sido levado do Paço da Jun‐
Reina, que trabalhou com ele para as Mercedes, queira para o de Marvila, ao tempo do Patriar‐
ou Juan Luís Zambrano. Se, na verdade o Santo ca Mendonça. No entanto, o conjunto foi nova‐
André é superior ao pintado em 1631, actual‐ mente dali retirado, para parte incerta (S.
mente no Museu de Belas Artes, em Budapeste, Vicente?), uma vez que em 1821, já não consta
com excepção para o São Pedro e o São João, as do inventário dos bens de nenhum dos paços
figuras são de qualidade inferior, mormente em da Mitra Patriarcal.
comparação com outras obras do mesmo perío‐ Por fim, em 1913, quando o Patriarcado se
do, como a Santa Ágata (Museu Fabre em Mont‐ muda para o Campo dos Mártires da Pátria, o
pellier) ou o Fr. Francisco Zumel (Academia de Apostolado entra na posse do Estado, indo para o
San Fernando em Madrid). Museu das Janelas Verdes.
Diversamente do que tem sido habitual
apontar‐se, quer em Portugal como lá fora, o Os Painéis de São Vicente do Paço de Marvila
Apostolado não foi fruto de encomenda, ou mes‐
mo de oferta, ao convento de São Vicente de
Fora. Efectivamente, não conhecemos qualquer
referência que mencione a sua presença naque‐
E ntramos agora em terreno mais movediço,
ao falarmos na questão dos célebres Pai‐
néis de São Vicente. Naturalmente que, dadas
le convento, antes de 1863. Esta deve‐se a as dimensões deste estudo, não iremos apro‐
Vilhena Barbosa que, no Archivo Pittoresco, sem fundar o assunto, mas sobretudo trazer a lume
mencionar autoria, relata que “Huma das salas novos dados, suficientemente importantes para
181
Francisco de Zurbarán, Apostolado, óleo s/ tela, 1633. De cima para baixo, da esquerda para a direita:
S. Pedro, S. Judas Tadeu, S. Tiago Maior, S. João, S. Paulo, Sto. André,
S. Bartolomeu, S. Tiago Menor, S. Tomé, S. Simão, S. Filipe, S. Mateus
Museu Nacional de Arte Antiga, Inv. N.os 1368-1370; 1373-1374; 1377-1383 Pint
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Imagem com a disposição original do Painéis em Nuno Gonçalves (atrib.), Painéis de São Vicente, pintura s/ madeira,
São Vicente de Fora antes do restauro, c. 1909. c. 1450-1490. Museu Nacional de Arte Antiga, Inv. N.os 1361-1366 Pint
os referir, que possam contribuir para um Fora, como é sabido, remonta a 1883, data em
desenvolvimento posterior, bem como elucidar que o referido Monsenhor Alfredo Elviro dos
alguns aspectos da sua história (embora, ao Santos é nomeado secretário do Patriarca D.
mesmo tempo, possam suscitar novos problemas)21. José Neto (Vasconcelos, 1905: 326). Terá sido
Pelo que se pode perceber, os painéis que ele quem “descobriu” e expôs os quadros no 3º
foram parar a São Vicente de Fora, na segunda piso do convento, e que os terá mostrado ao
metade do século XIX, não correspondem exac‐ Visconde de Castilho. Mais tarde, em 1895,
tamente aos que existiam no antigo Palácio da seriam também vistos por Ramalho Ortigão,
Mitra em Marvila, nos inícios de Oitocentos, ali José Queiroz e Joaquim de Vasconcelos, que
colocados desde 1742, pelo Patriarca D. Tomás deles daria notícia em artigo publicado em O
e Almeida, no intuito de os resgatar do estado Comércio do Porto, a 28 de Julho desse ano.
de abandono em que se encontravam na Sé de A tradição “montada” por José de Figueire‐
Lisboa. do, de ter sido Columbano a descobrir os pai‐
O registo dos painéis em São Vicente de néis em 1882, foi já devidamente desmentida
183
por Rafael Moreira em 199422. Como era óbvio, Se consultarmos a descrição da capela‐mor
estava a delinear‐se uma intriga para tomar da Sé por D. Rodrigo da Cunha, na sua Historia
te, em 1768, a propósito dos que estavam já em Sé lisboeta não parece levantar quaisquer dúvi‐
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Marvila. Embora os dois autores discordem das. Ele é referido por quase todos os cronistas
acerca do ramo dos agostinhos, e do número, que falaram do assunto – André de Resende (“e
que ali estavam representados ‐ eremitas ou a sua vida explicada em belas figuras”); D. Rodrigo
regulares, dois ou quatro – eles são coinciden‐ da Cunha (“vários milagres do santo com os passos
tes no que diz respeito às diferenças existentes principais de sua vida e martyrio”), Inácio Boa
com o quadro do Museu de Arte Antiga. Frei Morte (“vários painéis de milagres de S. Vicente”),
António diz que nesse painel se divisam dois etc. Repare‐se que a indicação Milagre/
venerandos monges, nos seus hábitos, a acom‐ Martyrio, é frequentemente usada como sinóni‐
panhando o cofre das relíquias; Frei Inácio, mo, pelo que deve ser entendida como tal, evi‐
refere “hum Cofre posto no chão, e hum clérigo ves‐ tando assim alguns equívocos frequentes.
tido de preto”, assim como mais quatro cónegos A questão do retábulo do altar‐mor levanta
Regrantes da Congregação de Santa Cruz de bastantes mais problemas, quer no tocante à
Coimbra (Markl, 1988: 247‐248). Evidentemen‐ composição, como no da sua ordenação, isto só
te, trata‐se de uma repetição de temas, nas para não falar no labirinto de suposições da sua
séries do altar‐mor e do coro, dado não haver identificação, mas que não constitui aqui o
qualquer correspondência com as descrições acima motivo ou interesse deste trabalho.
indicadas. O ponto de partida para o nosso estudo, é o
Além do mais, não existe no inventário refe‐ referido inventário dos Bens da Mitra, que
rido da Mitra, qualquer alusão a estes painéis, pode dar‐nos algumas informações importan‐
tendo em conta as suas medidas – 214 x 138 cm. tes acerca da possível reconstituição do antigo
O painel que lhe corresponderia, “Hum painel retábulo de São Vicente, no que apelidaríamos
de sinco palmos de largo e mais de oito de Alto pin‐ de os Painéis do Paço de Marvila, não obstante a
tado em taboa e representando o Cofre das Relíquias sua origem.
do ditto Santo assistido de hum Rei e vários religio‐ A série dos Painéis de Marvila era constituí‐
sos e outras pessoas com Moldura dourada”, colo‐ da por 14 tábuas, na sua maioria agrupadas aos
cado na 2ª sala do Andar Nobre do Paço de pares, das quais, apenas 4 viriam e integrar a
Marvila, tinha apenas 176 x 110 cm, e não nos colecção de São Vicente de Fora. Fundamental‐
parece que tenha sido acrescentado. Este últi‐ mente, podiam dividir‐se em dois grandes gru‐
mo, existente no Paço da Mitra, é bem mais pos temáticos, os da Vida de São Vicente, e os dos
conforme às referências de Fr. António da Pie‐ Milagres de São Vicente. O interessante deste
dade, ou de Frei Inácio, naquele que constitui‐ inventário, para além de identificar os temas,
ria assim o “Painel da Trasladação” ou da embora quase nunca os descreva, ou especifi‐
“Disputa”, segundo a designação de Dagoberto que, é o de apontar as respectivas medidas, o
Markl (Markl, 1988: 250‐253). que se reveste de grande utilidade, mormente
Fica assim esclarecida a presença, na capela‐ no confronto com o conjunto existente.
mor da Sé, de dois conjuntos distintos. O do As pinturas sobre a Vida eram fundamental‐
cadeiral, constituído por 16 painéis (dos quais mente quatro, agrupadas em dois, com moldu‐
se conhecem apenas dois, como em 1905) sobre ras douradas, que estavam colocadas na pri‐
os Milagres do Santo. E a série da capela‐mor, de meira sala do piso térreo, e na primeira sala do
contornos ainda bastante indefinidos, era dedi‐ andar nobre25. As medidas eram praticamente
cada à Vida e Martírio de São Vicente. Esta ques‐ semelhantes, com cerca de 176 cm de altura e
tão do programa iconográfico da cabeceira da 88 cm de largura. Estes painéis parecem ter
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desaparecido, uma vez que as medidas não gres de Sam Vicente, encontravam‐se espalhadas
equivalem (sobretudo por serem inferiores) a por esta 2ª sala, pela 5ª e 6ª salas do mesmo
Epílogo
TRANSITORIEDADE E PERMANÊNCIA ‐ A PINTURA DE SÃO VICENTE DE FORA
Nuno Saldanha