Você está na página 1de 3

Vacinas e Programa Nacional de Vacinação (PNV)

Ganhos em saúde e questões atuais

Ana Leça Graça Freitas


Pediatra, Vice-Presidente da Comissão Técnica de Especialista em Saúde Pública, Sub-Diretora Geral
Vacinação da Saúde

Resumo das vacinas é uma história de suces- Para doenças de reservatório ambien- doença-alvo da vacinação, como é
A nível global, a história das va- so: a sua aplicação sistematizada, ao tal, como o tétano, a erradicação o caso das pneumonias bacterianas
cinas é uma história de sucesso. longo de décadas, sob a forma de nunca será possível e o controlo da associadas à gripe. A vacina conjuga-
Erradicou-se a varíola (1980) e es- programas e de campanhas de vaci- doença depende da proteção indivi- da contra Streptococcus pneumoniae
pera-se para breve a erradicação nação melhorou a saúde a nível glo- dual através da vacinação do maior tem o benefício adicional de diminuir
da poliomielite e a eliminação do bal com diminuição significativa da número possível de pessoas. a prevalência de estirpes resistentes
sarampo. Em Portugal, o PNV per- mortalidade, principalmente a mor- Está demonstrado o papel de agen- aos antibióticos.
mitiu erradicar, eliminar e controlar talidade infantil e da morbilidade por tes infeciosos na génese do cancro Elevadas coberturas vacinais (exceto
várias doenças sendo expectável o doença aguda, complicações e se-
controlo do cancro do colo do úte-
ro (HPV) e da doença invasiva por
quelas. Estima-se que as vacinas pre-
vinam cerca de seis milhões de óbitos
“As vacinas e a vacinação contri-
Streptococcus pneumoniae (DIP).
No entanto, os ganhos em saúde de-
anualmente (OMS).
A erradicação é o objetivo para al-
buíram para melhorar o panora-
correntes da vacinação podem ser gumas doenças de transmissão inter-
menos evidentes se houver mais pes- -humana exclusiva e para as quais ma da saúde a nível global”
soas com hesitação em vacinar e/ou existem vacinas efetivas. Até à data,
menor capacidade de oferta de va- só a varíola foi erradicada com inter- e a sua prevenção através da vaci- para a vacina contra o tétano) redu-
cinas e de vacinação. Menores taxas rupção da vacinação a nível global. A nação. A diminuição do carcinoma zem também a incidência da doen-
de vacinação podem ter efeitos na próxima doença a ser erradicada é a hepato-celular em consequência da ça nos não vacinados, através da
imunidade de grupo. poliomielite. vacinação contra a hepatite B já foi “imunidade de grupo”, protegendo
A hesitação em vacinar constitui um A eliminação do sarampo em todas demonstrada. A redução da incidên- os que não podem ser vacinados por
grande desafio para os profissionais as regiões do globo e posterior erradi- cia do carcinoma do colo do útero é não terem idade ou, em situações ra-
de saúde e exige um grande investi- cação é uma meta da OMS que im- expectável com a vacinação contra ras, por contraindicação absoluta à
mento na formação. plica 95% de cobertura vacinal com o vírus do papiloma humano (HPV). Em vacinação.
duas doses. Contudo, a eliminação Portugal, a substituição no PNV 2017 As questões da segurança das vacinas
Vacinação – aspetos gerais (nacional ou regional) não remove o da vacina HPV tetravalente pela vaci- são causa de hesitação em vacinar.
A vacinação é, provavelmente, a risco de reintrodução da doença, sen- na nonovalente aumentou o espetro Exige-se, e bem, elevados padrões de
medida de saúde pública com me- do crucial garantir coberturas vacinais da proteção. segurança porque as vacinas são apli-
lhor relação custo-efetividade e com elevadas e boa vigilância clínica, la- Algumas vacinas conferem prote- cadas a pessoas saudáveis para pre-
elevados ganhos em saúde. A história boratorial e epidemiológica. ção contra doenças associadas à venção de doenças e nestas circuns-
6
Jornal Médico de Família • n.º 8• IV Edição • 3º trimestre de 2017
tâncias a tolerância da sociedade às para o indivíduo e para a saúde públi- ral, os elevados níveis de imunização neonatal; controlar o tétano, a doen-
reações adversas, especialmente em ca, critérios principais de inclusão de da população. ça invasiva por N. meningitidis C e H.
crianças, é muito baixa. As vacinas uma vacina no PNV. No que se refere ao impacte global influenzae B, a hepatite B, parotidite
são submetidas a avaliações de efi- As vacinas aplicam-se segundo um do PNV, entre a década anterior ao epidémica, a tosse convulsa, e as for-
cácia e de segurança muito rigorosas esquema recomendado que constitui seu início (1956-1965) e a década de mas graves de tuberculose. No futuro
incluindo os componentes antigénicos uma receita universal, não necessitan- 2006-2015 e comparando apenas é expectável o controlo do cancro do
e os componentes não antigénicos do de prescrição médica (há exce- quatro doenças (tétano, difteria, tosse colo do útero (HPV) e da doença inva-
(fluídos, preservativos, estabilizado- ções relativas a grupos de risco) que convulsa e poliomielite), houve menos siva por S. pneumoniae.
res, antimicrobianos e adjuvantes). As permite obter, para as doenças elegí- cerca de 40.000 casos notificados de
vacinas utilizadas nos programas de veis, a melhor proteção o mais preco- doença e menos 5 200 óbitos com O problema da adesão à vacinação
vacinação de países desenvolvidos cemente possível, principalmente no impacte determinante na redução da As dinâmicas subjacentes à hesitação
deixaram de conter como preserva- primeiro ano de vida. Os esquemas taxa de mortalidade infantil, atualmen- em vacinar estão intimamente ligadas
tivo, por medida de precaução, um cronológicos de recurso destinam- te uma das mais baixas da Europa. às estruturas sociais, às representações
composto mercurial, mesmo não es- -se a crianças e jovens sem qualquer - A redução da incidência das doen- e às mentalidades. Apesar de termos
tando demonstrado qualquer risco de dose de uma ou mais vacinas ou com ças evitáveis pela vacinação verificou- vacinas mais seguras e efetivas, os ar-
toxicidade com as doses utilizadas. Os doses em falta. -se rapidamente, como aconteceu gumentos anti vacinação mantêm-se
adjuvantes são incorporados em algu- O PNV é um programa dinâmico. Des- com a poliomielite, cujo último caso desde há 2 séculos. Devido ao contro-
mas vacinas para otimizar a resposta de 1965 foi progressivamente atualiza- em Portugal, por vírus selvagem, ocor- lo das doenças, decorrente do suces-
imunológica; os mais utilizados, desde do, devido a fatores epidemiológicos reu em 1986; so da vacinação, esta não é perce-
há mais de 80 anos, são os sais de alu- e à evolução tecnológica, com intro- - O paradigma do sucesso do PNV é o bida como uma medida preventiva
mínio. A quase totalidade das reações dução de novas vacinas e revisão dos caso do tétano, doença que não se necessária e a sua segurança é ques-
adversas associadas às vacinas é mi- esquemas vacinais. A introdução de transmite de pessoa a pessoa e que tionada. Surgem mitos e inversão da
nor, predominando reações locais e algumas vacinas no PNV fez-se simul- não confere imunidade. O seu con- perceção de risco com mais medo
autolimitadas. No entanto, muito rara- taneamente com campanhas para trolo depende única e exclusivamen- das vacinas do que das doenças.
mente há referência a eventos graves. controlar mais rapidamente as doen- te da vacinação de cada um. Os 2 Também o risco de disseminação
O Sistema Nacional de Farmacovigi- ças alvo. últimos casos de tétano neonatal fo- das ideias anti vacinais é muito maior
lancia (SNF), coordenado pelo INFAR- A vacina contra a varíola foi a única ram notificados em 1996 e nos últimos uma vez que existe uma estratégia de
MED, é responsável pela monitoriza- retirada do PNV, após a erradicação anos, ocorreram apenas casos espo- marketing muito eficaz através da In-
ção contínua da segurança das vaci- da doença em 1980. A vacina BCG rádicos em adultos não vacinados (0 ternet em que os grupos anti vacinais
nas, sendo fundamental a notificação previne as formas graves mas não tem a 3 casos por ano, desde 2010); assumem não serem contra as vaci-
das reações adversas. impacte no controlo e eliminação da - A vacinação organizada contra o sa- nas, mas a favor de “vacinas seguras”,
tuberculose. Atendendo à epidemiolo- rampo iniciou-se em 1973, com uma “decisão informada”, “vacinas verdes”
Programa Nacional de Vacinação gia da doença no país, desde 2016 a campanha até 1977. A estratégia de e utilizam nomes neutros, como “The
Em Portugal, na primeira metade do BCG deixou de ser recomendada de vacinação foi sendo atualizada, resul- Association of American Physicians
século XX, apesar de algum êxito forma universal, passando para uma tando no seu controlo/eliminação. Em and Surgeons” ou “National Vaccine
no controlo da varíola, as estatísticas estratégia de vacinação de grupos de 2015, a OMS Europa emitiu os certifi- Information Center”. Também os arti-
mostravam o insucesso da vacinação risco, como em países europeus com cados da eliminação do sarampo e gos científicos se tornaram acessíveis
em vigor. A mortalidade infantil era epidemiologia semelhante. da rubéola em Portugal. a todos, possibilitando interpretações
das mais elevadas da Europa, muito descontextualizadas e conclusões
devido a doenças evitáveis por vaci- “anti vacinais”.
nação, como o tétano e a difteria. Im- Há propensão para atribuir qual-
punha-se um Programa Nacional de quer evento após a vacinação à(s)
Vacinação (PNV), que foi possível con- vacina(s) recebida(s), como por exem-
cretizar a partir de Outubro de 1965. plo a morte súbita ou doenças neuro-
O PNV é um programa universal e des- lógicas que se manifestam no 1º ano
de janeiro de 2017 começa “in útero”, de vida em que o timing da primova-
com a recomendação da vacinação cinação permite a coincidência tem-
da grávida contra a tosse convulsa, poral. Nos sites anti vacinais apela-se
com o objetivo de reduzir a carga da à emoção, com narrativas poderosas
doença em lactentes de idade inferior que causam sensação de ameaça
a 2 meses, através da passagem trans- pelas vacinas e referem-se alianças
placentária de anticorpos maternos. ocultas entre companhias farmacêuti-
Esta estratégia surge na sequência cas e estados (teoria da conspiração).
da reemergência da doença apesar Por outro lado, há uma alteração das
das elevadas coberturas vacinais: 677 relações de poder médico-doente: os
casos entre 2012 e 2015 com 8 óbitos O PNV é um programa transparente Em 2017, ocorreram 2 surtos de sa- médicos deixaram de ser os únicos a
que ocorreram em lactentes de idade submetido a avaliação interna regio- rampo em Portugal, no Algarve e na tomar decisões e os doentes querem,
inferior a 2 meses, ainda sem idade nal e nacional, e a avaliação externa Região de Lisboa e Vale do Tejo, sem e bem, ser sujeitos ativos e participar
para iniciar a primovacinação. internacional anual (OMS). Esta avalia- aparente relação, totalizando cerca das decisões em saúde.
O PNV é gratuito para o utilizador, ção é feita pela análise das cobertu- de 30 casos. Cada caso terá origi- É cada vez maior o problema da con-
gerido a nível nacional mas descen- ras vacinais, dos dados serológicos e nado um máximo de dois casos, de- fiança no sistema que disponibiliza as
tralizado. É aplicado sobretudo pela do impacte nas doenças-alvo. monstrando que a imunidade da po- vacinas, na competência dos serviços
rede pública de serviços, com grande Em relação às coberturas vacinais pulação é elevada. Em populações e profissionais e nas motivações dos
envolvimento de médicos e de enfer- o desempenho do PNV tem sido no- insuficientemente vacinadas cada decisores sobre as vacinas que são
meiros. Estas características, que se tável, tanto na vacinação de rotina caso de sarampo pode gerar até 18 necessárias. Todos os estudos apon-
mantêm desde 1965, garantem-lhe como nas campanhas de vacina- casos secundários. tam para que os profissionais de saú-
uma grande acessibilidade e equi- ção. Anualmente verificam-se valores O PNV é pois um programa efetivo de representam ainda a maior fonte
dade. As vacinas que integram o PNV nacionais ≥ 95% para as vacinas em que contribuiu para a erradicação da de aconselhamento sobre vacinas,
são eficazes e seguras e da sua apli- geral e ≥ 85% para a vacina HPV. Os varíola e permitiu: eliminar a poliomie- mas que o seu papel vem diminuindo
cação obtêm-se ganhos em saúde dados serológicos corroboram, no ge- lite, difteria, sarampo, rubéola e tétano em favor de familiares, amigos e Inter-
7
Jornal Médico de Família • n.º 8• IV Edição • 3º trimestre de 2017
net. A qualidade dos serviços, a aces- maioria em pessoas não vacinadas. recomendou medidas simples de mi- os filhos têm dúvidas e medos, o que
sibilidade à vacinação e a capacida- Na Europa, os objetivos de eliminação nimização da dor numa perspetiva de significa que as coberturas vacinais
de do cidadão, como a literacia ou o do sarampo têm sido sucessivamente diminuir a hesitação em vacinar. não são um indicador direto do nível
entendimento da língua, influenciam adiados, havendo muitos países em - O esquema vacinal, com a admi- de hesitação.
positiva ou negativamente a adesão. que a doença ainda é endémica, nistração simultânea de múltiplas va- Poucas ou nenhumas estratégias de
O grau de adesão à vacinação de- como a Suíça e o Reino Unido. cinas, tem sido problemático nalguns saúde pública tiveram sucesso no
pende muito de influências de contex- Nas influências individuais e de grupo: países, levando a recorrer a esquemas combate às posições anti vacinais.
to, de influências individuais e de gru- - Nos países desenvolvidos, as atitu- alternativos, o que pode adiar a prote- Antes pelo contrário, a hesitação em
po e de especificidades da vacina ou des anti vacinais estão habitualmente ção e comprometer a imunidade de vacinar foi aumentando tornando
da vacinação. associadas a um maior nível econó- grupo. cada vez maior o contingente dos
Nas influências de contexto: mico. Mas, mais educação e cultura que aceitam mas duvidam e dos que
- Sem grande relevo em Portugal, podem estar associados a níveis ele- As intervenções para diminuir a recusam.
mas com expressão a nível europeu, vados ou baixos de aceitação. hesitação em vacinar Há que evoluir para modelos inovado-
referem-se as razões religiosas ou as - Há grupos com uma visão particular Para uma abordagem global sobre o res, de abordagem individual em fun-
razões filosóficas; no que refere à saúde, que preferem problema da adesão à vacinação há ção dos determinantes da hesitação,
- Em relação à influência dos líderes a “imunidade natural” conferida pe- que ter presente o conceito de hesita- de modo a consolidar ou promover
de opinião, refere-se o caso Wake- los alimentos, defendem que a boa ção em vacinar. As pessoas com he- a confiança nas vacinas e motivar a
field, que publicou na Lancet em 1998 higiene e os hábitos de vida tornam sitação em vacinar representam um adesão.
um artigo associando a VASPR a colite a vacinação desnecessária ou que grupo heterogéneo que se posiciona Os profissionais de saúde são ainda
e autismo. Em consequência, a co- contrair doenças evitáveis pela vaci- num continuum em que, num extre- aqueles em que os pais mais confiam
bertura vacinal no Reino Unido desceu nação é importante para um sistema mo estão as pessoas que aceitam to- para receber informações sobre vaci-
e em 2003 começaram a registar-se imunitário forte. das as vacinas sem dúvidas e no outro nas e de quem esperam respostas es-
surtos de sarampo que rapidamente - Mesmo nas pessoas que aderem à as pessoas que recusam todas as va- clarecedoras. Os profissionais têm de
se estenderam a outros países da Eu- vacinação uma dúvida frequente é a cinas sem dúvidas, militando mesmo ser capacitados para saber responder
ropa. Em 2004 demonstrou-se que o sobrecarga do sistema imunitário. No em movimentos anti vacinação. Inclui às dúvidas e aconselhar, permitindo
artigo tinha erros metodológicos gra- PNV, entre 1965 e 1980, eram inocu- as pessoas que aceitam mas duvi- uma decisão informada e consciente,
ves e que existiam grandes conflitos lados cerca de 3.200 antigénios, car- dam, que aceitam algumas vacinas mantendo a relação com o seu uten-
de interesse. Muitos estudos posterio- ga substancialmente superior à atual, recusando outras, que atrasam as va- te, mesmo em situação de desacor-
res não demonstraram a associação. apesar de agora estarem incluídas cinas num calendário vacinal próprio do, que poderá ser modificada com
Em 2004, a Lancet retirou o artigo dos mais vacinas. ou que recusam sem convicção. capacidade de diálogo.
arquivos. Em 2010, Wakefield foi ex- Nas especificidades da vacina ou da Em Portugal, as coberturas vacinais Deverá haver um grande empenho
cluído do General Medical Council. vacinação: elevadas indicam que a vacinação é na formação nesta área específica e
Em 2013, na região europeia da OMS - Uma dúvida crescente refere-se à uma medida muito bem aceite, mas no debate do tema no seio da comu-
houve 29.000 casos de sarampo, a dor na vacinação. Em 2015, a OMS mesmo alguns dos pais que vacinam nidade científica.

5th Vasco da Gama


Movement Forum
Stronger Together: Charting the Course to Navigate the Future
26 e 27 de Janeiro de 2018 - Porto
• Inscrições e submissões de abstracts abertas desde 3 de julho de 2017
• Submissão de abstracts até 15 de setembro de 2017
• Valor preferencial de inscrição (early bird fee), de 90€, até 31 de outubro de 2017

Para mais informações, por favor aceda ao nosso site através do Código QR:

Uma organização:

8
Jornal Médico de Família • n.º 8• IV Edição • 3º trimestre de 2017

Você também pode gostar