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RESENHA CRÍTICA 2023 - PROJETO MÁRIO TRAVASSOS

Escola de Comando e Estado-Maior do Exército

MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica e modernidade: geopolítica brasileira.


Bibliex, 2002.

Roberto Nunes da Cunha Neto*

DE INÍCIO, cabe uma pequena explanação sobre geopolítica: trata-se de


um campo de conhecimento que analisa relações entre poder e espaço
geográfico [...].
A geopolítica sempre se caracterizou pela presença de pressões de todo
tipo, intervenções no cenário internacional desde as mais brandas até
guerras e conquistas de territórios. Inicialmente, essas ações tinham como
sujeito fundamental o Estado, pois ele era entendido como a única fonte de
poder, a única representação da política, e as disputas eram analisadas
apenas entre os Estados. Hoje, esta geopolítica atua, sobretudo, por meio
do poder de influir na tomada de decisão dos Estados sobre o uso do
território, uma vez que a conquista de territórios e as colônias tornaram-se
muito caras. (BECKER, 2005)

A presente resenha tem por finalidade estabelecer um ponto de vista pessoal


do autor acerca da obra “Geopolítica e modernidade: geopolítica brasileira”, de
autoria do General de Divisão Carlos de Meira Mattos, publicado pela Biblioteca do
Exército (Bibliex) em sua 1ª edição no ano de 2002.
O general Meira Mattos foi um distinto oficial do Exército Brasileiro, nascido
na cidade de São Carlos em 23 de julho de 1913, veio a falecer em 2007, na cidade
de São Paulo e tornou-se um dos mais renomados formuladores do pensamento
geopolítico nacional.
Em 1933, assentou praça como cadete na Escola Militar do Realengo
(MATTOS, 2011a), tendo iniciado sua carreira como oficial em 1936, após a
conclusão do curso. Já no posto de capitão, participou das campanhas da Itália,
como membro da Força Expedicionária Brasileira (FEB), onde serviu como oficial de
ligação entre o IV Corpo de Exército Aliado e a Divisão de Infantaria Expedicionária
(DIE), sob comando do Marechal Mascarenhas de Moraes. Em razão de seus
esforços e atos de bravura, principalmente durante a tomada de Monte Castelo, foi
condecorado com a medalha Estrela de Bronze, alta honraria, cujo texto de
concessão foi assinado pelas mãos do próprio General Mark Clark, face à
consideração pelo oficial brasileiro (MATTOS, 2011a).
Militar da mais alta estirpe, vivenciou a inserção do país como importante

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Major do Exército Brasileiro, Oficial-Aluno do Curso de Comando e Estado -Maior do
Exército 2023/2024 da Escola de Comando e Estado Maior do Exército.
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ator global, ao longo do século XX, o que contribuiu para a formação de seu
pensamento sobre a geopolítica do Brasil, pensando o país de forma clara e
objetiva.
Exerceu importantes funções que corroboraram na construção de suas
características de líder militar, professor e pesquisador. Cursou a Escola de
Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) e a Escola Superior de Guerra
(ESG). Foi instrutor na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), como
Instrutor-Chefe do Curso de Infantaria, de 1950 a 1952. No exterior, comandou o
Destacamento Brasileiro da Força Interamericana da Organização dos Estados
Americanos (OEA), na República Dominicana, foi Adido Militar na Bolívia, nos idos
de 1957. Posteriormente, como Oficial General, comandou a AMAN, foi nomeado
Vice-Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, além de Vice-Diretor do Colégio
Interamericano de Defesa em Washington.
Em 1977, deixou o serviço ativo, já no posto de General-de-Divisão,
momento em que pode dedicar-se com mais afinco aos estudos de geopolítica,
vindo a ser diplomado como Doutor em Ciências Políticas pela Universidade
Mackenzie, em São Paulo - SP, com sua tese “Geopolítica e trópicos”, em 1984.
A obra “Geopolítica e modernidade” foi um de seus últimos escritos, na qual
o autor avalia os impactos das inovações tecnológicas, que deixam a estrutura do
Estado vulnerável em um mundo globalizado, sendo capazes de desestabilizar
economias inteiras. Com essa proposta o autor conduz o leitor a repensar a
definição da geopolítica baseada no poder estatal e sustentada por seu espaço
geográfico. (MATTOS, 2011c).
O autor estruturou seu livro em duas partes bastante distintas, sendo a
primeira denominada “Fundamentos e Modernização”, na qual os principais
pensadores geopolíticos são abordados, demonstrando a percepção quanto ao
modo como os fatores geográficos, políticos e da história moderna são capazes de
influenciar a Ordem Mundial e a disputa por poder global. Em sequência, na “Parte
II: Geopolítica brasileira – predecessores e geopolíticos”, o General Meira Mattos
conduz o leitor a uma visão panorâmica sobre o espaço territorial brasileiro e seu
processo de colonização e independência, fundamentais para a inserção geopolítica
brasileira no início do século XXI.
Inicialmente, são abordadas as raízes da geopolítica, onde o General Meira
Mattos desenvolve seu pensamento particular a cerca da geopolítica mundial,
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partindo da menção de Galileu e sua teoria do método experimental, que inspirou o


filósofo Francis Bacon em 1620, consagrando cientificamente as ciências sociais. O
final do século XIX e início do século XX foram de elevada importância para o estudo
da geografia aplicada à história, com Friedrich Ratzel e Rudof Kjellén, que a tornam
um “cenário vivo, movimentado e prospectivo”, preponderando, principalmente o
fator geográfico no processo civilizatório (MATTOS, 2011c).
A influência do Almirante Alfred Mahan, com sua Teoria do Poder Marítimo,
bem como de Halford Mackinder, por meio do Poder Continental, foram igualmente
importantes na construção geopolítica do século XX. Posteriormente, a geopolítica
alemã, foi inspirada pelo general Karl von Haushofer que motivou o comportamento
expansionista de Hitler e do Partido Nazista, levando-o a provocar a II Guerra
Mundial.
O fim da Grande Guerra traz consigo o surgimento de novos estudiosos,
como Huntington e Nicholas Spykman, que conduziram a busca do equilíbrio de
poder que pautou os passos das grandes potências durante a Guerra Fria. O autor
esboça a estruturação de um mundo já multipolar, com uma “geopolítica globalista”,
em razão da estruturação do G-7.
Cabe destaque a abordagem feita sobre a Rússia, que, então, buscava sua
inserção nesse ambiente global, após o fim da União Soviética, já sob a presidência
de Vladimir Putin, na busca de implementar a criação de um centro de poder
eurasiático, deslocando a área pivô, proposta por Mackinder, para uma porção mais
oriental, em uma faixa territorial centro-asiática.
As projeções do autor mostram-se precisas, em razão do crescimento da
China, como importante ator geopolítico global, contestando o poderio hegemônico
norte-americano. Ao passo que a Rússia, desencadeia uma desgastante campanha
militar contra a Ucrânia, no intuito de ampliar sua influência sobre o leste europeu e
impedir a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Outra consideração importante refere-se aos argumentos do autor sobre a
contribuição do fator geográfico para a formulação da geopolítica. A abordagem
consiste em uma explanação sobre como o os instrumentos artificiais
implementados pelo homem são capazes de exercer influência sobre o espaço
geográfico de uma nação.
Nesse contexto, a obra discorre desde modificações elementares como
ponte e túneis, a fim de superar os obstáculos naturais, passando pela eletricidade,
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máquinas a vapor, ferrovias e comunicação por meio fio, até expor seu enfoque a
respeito de como o fator tempo foi alterado pelo homem por meio dos avanços
tecnológicos, que permitem o controle do espaço aéreo, estratosférico e,
atualmente, a exploração do sideral, estabelecendo o conceito dos “lugares em
rede”, que o fluxo de informações, interligam territórios descontínuos, verticalizando
o conceito geográfico de território.
O General Meira Mattos deixa explícita a transformação ocorrida sobre o
conceito de espaço, em razão da globalização que se apresentava à época. Assim,
cabe aos especialistas entenderem as novas formas de aplicação de poder sobre o
espaço geográfico, que agora, passou a ser potencializado pela verticalização
informacional.
A discussão mostrou-se sobremaneira pertinente nos anos vindouros, haja
vista o processo de produção estratificada que passou a ser adotado por empresas
multinacionais, separando as diversas plantas industriais. Os mais diversos bens,
tanto de baixo, quanto de alto valor agregado, passaram a ser produzidos em partes
diferentes do mundo, reduzindo custos e aumentando lucros.
O fator político também contribuiu para a formulação da geopolítica
contemporânea, marcando o século XX pela significativa capacidade de intervenção
na soberania por meio da avançada tecnologia dos sistemas informacionais. As
nações mais poderosas tornaram-se aptas a interferir verticalmente sobre outros
Estados, projetando sua cultura, economia e política.
A relativização do conceito de soberania também ganhou vulto no século
passado. A autodeterminação dos povos sempre pautou a narrativa geopolítica das
nações. O autor discorre que esse princípio fundamental, impedia que tropas
militares estrangeiras estacionassem em outro país, exceto em caso de um conflito
armado. Tal realidade foi totalmente modificada ao longo da Guerra Fria e dos anos
que se seguiram, com nações poderosas como os EUA firmando alianças, a fim de
projetar poder e estabelecer bases militares em praticamente, todos os demais
continentes do mundo.
Partindo da preocupação francesa expressa com a publicação de seu Livre
blanche sur la defense em 1994, sobre a preservação da identidade nacional, o
autor induz o leitor a perceber que a tese de Samuel Huntington, pautaria os
conflitos vindouros, uma vez que a globalização permitiu a aproximação de diversas
culturas e permeou as fronteiras, conduzindo ao choque de civilizações.
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A respeito do processo histórico, o General Meira Mattos evidencia a


relevância da obra do consagrado historiador inglês Arnold Toynbee. Nessa parte de
seu trabalho, ele discorre sobre a teoria do desafio-resposta, em que o sucesso ou
fracasso de uma civilização, depende da habilidade de responder aos desafios
geográficos e de coesão interna de forma apropriada.
No segundo momento do livro, passa-se a trabalhar a geopolítica brasileira,
iniciando com uma abordagem sobre a importância do Tratado de Tordesilhas como
primeiro marco na configuração da política externa brasileira e predecessores do
pensamento geopolítico nacional. O autor discorre sobre o trabalho de figuras como
Gabriel Soares de Sousa, que nos idos de 1587, já havia previsto que um poderoso
Império seria construído; Alexandre Gusmão, inspirador do Tratado de Madri de
1750 e, posteriormente, José Bonifácio.
Ressalta-se no texto a extraordinária percepção de José Bonifácio, ainda em
1821, expressando quanto seria importante a interiorização da capital do país.
Naquela oportunidade, sugeriu-se que o novo local do centro de poder político
deveria ser próximo da latitude 15º, em “sítio sadio, ameno e fértil, e regado por
algum rio navegável”, que hoje seria nas proximidades da cidade de Paracatu, a
menos de 200 km ao sul do atual Distrito Federal.
No século XX, a geopolítica nacional foi marcada pela teoria do capitão
Mário Travassos que estabeleceu os passos necessários para que o Brasil viesse a
impor-se como maior potência do subcontinente da América do Sul. Para tanto seria
necessário implementar projetos de ocupação do oeste do país e estabelecer
infraestruturas na porção centro-sul, de modo a opor-se à influência platina.
O general Meira Mattos mostra ainda a diferença entre o pensamento
geopolítico de Mário Travassos e do General Golbery do Couto e Silva. Explicando
em outras palavras, o primeiro defendia que seria necessário adotar um sistema de
“tamponagem” entre a fronteira oeste do Brasil com seus vizinhos de modo a ampliar
a projeção brasileira, ao passo que o segundo, defendeu arduamente a necessidade
de um intercâmbio entre os diferentes Estados de formar a direcionar o projeto de
desenvolvimento nacional.
Outra árdua defensora da geopolítica nacional, foi a professora Therezinha
de Castro. Importante escritora, estabeleceu a necessidade de que o Brasil deveria
voltar sua atenção para a Antártica e participar ativamente da ocupação estratégica
daquele território declarado como internacional. Defendia também a geoestratégia
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do Atlântico Sul e apontou algumas soluções para problemas amazônicos.


Concluindo a obra, o General Meira Mattos mostra ao leitor a relevância dos
pensadores nacionais, uma vez que se observou a materialização de diversas
prospecções realizadas. O Brasil inaugurou em 1983 a Base Comandante Ferraz, na
Antártica e a criação do MERCOSUL. Referente à região amazônica, o Projeto
Calha Norte contribui, ainda hoje, para a ocupação da faixa de fronteira e a
cooperação econômica e social com os países vizinhos.
Há de se ressaltar também a estratégia da dissuasão proposta por Meira
Mattos, no intuito de manter-se uma força adestrada para o combate na selva.
Nesse contexto, o Brasil obteve êxito, projetando poder nacional ao enviar
sucessivos contingentes de oficiais e praças para a Missão das Nações Unidas na
República Democrática do Congo (MONUSCO), com o objetivo de preparar as
tropas daquele país africano para atuar em combate na selva.
A principal contribuição do livro encontra-se em trazer a geopolítica brasileira
para um contexto mais abrangente, considerando, além da geografia e dos recursos
naturais, as relações internacionais imediatas e a influência das características
culturais na política do país. Esse enfoque holístico é de grande valia para
compreender de forma mais elucidativa as motivações que deveriam impulsionar as
decisões estratégicas do Brasil, tanto na área da segurança, quanto da economia.
Uma das notáveis forças da obra é o enfoque multidisciplinar que foi trazido
pelo General Meira Mattos. Abordando elementos como economia, cultura e história,
o autor vai além da política, proporcionando uma visão mais adequada dos fatores
que delinearam a geopolítica brasileira. Tal forma de análise é relevante em um
diversificado país como o Brasil, no qual influências variadas são capazes de
interferir no processo de tomada de decisão.
Por fim, "Geopolítica e Modernidade: Geopolítica Brasileira," daquilo que se
é inferido de seu título e conceito, mostra-se como uma obra de leitura promissora
para quem almeja entender a complexa conexão entre as estratégias geopolíticas do
Brasil na era da modernidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECKER, Bertha K. Geopolítica da amazônia. Estudos avançados, v. 19, p. 71-86,


2005.
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MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica, v.I. Ed. Fundação Getúlio Vargas (FGV) em
coedição com a Bibliex. 316p. Rio de Janeiro, 2011a.

MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica, v.II. Ed. Fundação Getúlio Vargas (FGV) em
coedição com a Bibliex. 416p. Rio de Janeiro, 2011b.

MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica, v.III. Ed. Fundação Getúlio Vargas (FGV)
em coedição com a Bibliex. 424p. Rio de Janeiro, 2011c.

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