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CULTURA

“Não devemos ter medo de não fazer nada produtivo”


A escritora alemã Andrea Köhler defende as vantagens da espera em um
ensaio literário-filosófico
CARLES GELI

Barcelona - 22 JUL 2018 - 18:15 BRT

Andrea Köhler em Barcelona JUAN BARBOSA

Quando criança, a escritora e jornalista alemã Andrea Köhler (Bad


MAIS INFORMAÇÕES
Pyrmont, 1957) olhava o interior de algumas caixas de seus avós com
fotos holográficas de pessoas; se esperasse e as movesse, pareciam
fantasmas. Algo de fantasmagórico também havia no fato de
aguardar pela revelação do papel fotográfico: “O que não aparecia,
com a espera aparecia”. Isso acabou com a chegada da foto digital:
Viver na era da
impaciência “É puro imediatismo: você dispara e vê; o tempo de espera pela
revelação se perdeu, um lapso em que outras coisas podiam
'Exaustos-e-
correndo-e-dopados', acontecer em relação à paisagem, às pessoas ali retratadas ou a
por Eliane Brum você mesmo; com o digital, essas coisas deixam de acontecer”. E aí
nasceu a ideia de Die geschenkte Zeit ('O tempo dado: um ensaio
sobre a espera', em tradução livre), uma refinada reflexão literário-
filosófica sobre a espera, trançada a partir das leituras de 42 livros,
dos irmãos Grimm a Sloterdijk, passando pelos picos de Beckett e
seu Esperando Godot ou do Heidegger de Os Conceitos
Fundamentais da Metafísica.

Köhler só vê virtudes no “aborrecimento de esperar” uma (in)ação


A vida sem pausa que hoje é um anátema ou suposto estado de imbecilidade
improdutiva nesta sociedade do yoctosegundo e do
turbocapitalismo. Mas essa aceleração não deteve o sofrimento da
espera; pelo contrário, a Internet e o Twitter tornam todos mais impulsivos e
impacientes. “Podemos reduzir e tornar mais intensos os intervalos, mas eles continuam
aí, com a obsessão de usá-los para algo produtivo, enquanto eliminar os tempos de
espera nos deixa menos tempo para pensar e nos conectar com nós mesmos”. Até
recentemente correspondente nos Estados Unidos, lá ela detectou a última
consequência: “Querer encurtar os tempos de espera só fez crescer exponencialmente a
ansiedade e a necessidade de tratamento médico nas pessoas”.

Baseando-se no Nabokov de Fala, Memória, a autora desenvolve a tese de que a vida não
deixa de ser uma longa espera para morrer, ou um clarão entre dois negros infinitos. “O
berço balança no abismo”, escreve o autor de Lolita. “Não é uma ideia tão terrível: a vida
é algo que acontece entre dois momentos de vazio; o homem é o único animal que sabe
que sua vida termina e é isso que o leva a criar arte; que haja um princípio e um fim e
uma direção lhe dê sentido; é um paradoxo existencial”, acredita Köhler. Todo criador,
argumenta, deve suportar a espera: que os pensamentos cheguem e sejam organizados.
É o que Kafka chamou de “hesitação antes do nascimento” porque, como ela diz, “não se
deve forçar a musa, mas é preciso preparar o terreno para ela, esperar”. Trata-se,
portanto, de entender toda espera “como tempo concedido e não perdido”, longe da
adjetivação que o Romantismo XVIII associou a “dor” e “sofrimento”, e assim ver que
adoecer é “um compasso de espera, uma pausa que o corpo pede” e que parte do
encanto e da razão de ser da viagem consiste em que “alguém espere e dê fé de nossa
ausência”.

Köhler pratica o que escreve: após uma primeira resposta, aproveita a pausa da
transcrição feita por seu interlocutor para pensar e acrescentar argumentos, como em
sua asseveração de que, mesmo que tenhamos adaptado nosso equipamento sensorial
ao tempo acelerado, os sentimentos conservam sua lentidão. “Não deixamos de ser
humanos: nossos sentimentos mantêm um certo anacronismo, geramos defesas contra
a angústia da rapidez, por isso não podemos nos libertar da lentidão, o que explica o
auge de fenômenos como a meditação, a slow food, a yoga...”, diz. Mas o que acontece
quando não fazemos nada? “Muitas coisas, chega o inexplicável e o inaudito, por
exemplo: precisamos abrir espaço para que o maravilhoso passe; a questão hoje é não
ter medo de não fazer algo produtivo”.

E, após a pausa, outro argumento: “O ser humano procura, por natureza, segurança,
enquanto que na espera tudo pode acontecer; mas se eliminamos a possibilidade de que
possam ocorrer coisas, no fundo perdemos liberdade e pode ser que também memória”.
Outra pausa e continua: “Pensar, escrever requer tempo e a natureza, também: da
gestação, da puberdade e do casulo de um inseto, que são estágios de espera, surgirá
uma criatura diferente... A fruta também precisa de tempo para amadurecer e tem suas
estações; a memória humana está associada a isso e aos odores dessa fruta em sua
temporada. O que acontecerá com a memória se existem frutas o ano inteiro e se essas
já não cheiram como antes porque não amadureceram o suficiente na árvore?”.

Magra, sentada bem reta sem tocar o encosto da cadeira, Köhler parece prestar atenção
em tudo. Agora terminou um ensaio parecido sobre a vergonha e está em plena
produção de outro sobre os rostos: “Cada face, claro, é diferente, mas às vezes existem
reflexos de umas em outras”. Assuntos, de qualquer forma, bem afastados. “Não
acredite: são essenciais na conformação do ser humano, para se conhecer e conhecer os
demais”. Pelo menos, pouco abordados: “Sim, na Filosofia existem muitos livros sobre o
tempo, mas poucos sobre a espera”. Talvez o problema da espera seja fazer com que a
pessoa converse com ela mesma. E isso sempre dá medo.

A ESPERA MACHISTA
Em Madame Bovary e em Anna Karenina a ensaísta se fixa no fato de que a rebelião contra a
espera feminina significa a perdição, o que contrasta, afirma, com a espera positiva quando
se trata do idealizado homem perfeito. A espera é machista? “Durante muitos períodos da
Humanidade, sempre foi a mulher a esperar que o homem voltasse, por exemplo, de longas
viagens exploratórias e de guerras, e assim se associou; Penélope, a mulher de Ulisses, é o
primeiro personagem literário em que a espera é unida à narração... E tudo isso, por sua
vez, é ligado a uma eterna pergunta do ser humano: existirá, em algum lugar, alguém
esperando por mim?”.

ARQUIVADO EM:

Martín Heidegger · Franz Kafka · Samuel Beckett · Vladimir Nabokov · Filosofia · Escritores · Literatura
· Cultura

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