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ORGANIZADORES
COMPORTAMENTO
EM FOCO
Vol. 15
Catalogação na publicação
Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166
C737
Livro em PDF
ISBN 978-65-87203-07-2
CDD 158.1
I. Avaliação do comportamento
II
Organização deste volume
Amilcar Rodrigues Fonseca Júnior (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)
Luziane de Fátima Kirchner (Universidade Católica Dom Bosco)
Instituição Organizadora
Associação Brasileira de Ciências do Comportamento
Pareceristas
César Antonio Alves da Rocha
Fernando Del Mando Lucchesi
Hernando Borges Neves Filho
Ítalo Siqueira de Castro Teixeira
Jaume Ferran Aran Cebria
Josiane Maria Donadeli
Maria de Nazaré Pereira da Costa
Maria Helena Leite Hunziker
Michelli Carrijo Cameoka
Patrícia Cristina Novaki Aoyama
Ramon Cardinali de Fernandes
Tataína Iara Moreno Pickart
III
Sobre a ABPMC
A Associação Brasileira de Ciências do Comportamento (ABPMC), como foi re-
nomeada a até então Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental,
é uma associação civil sem fins lucrativos, fundada em 1991, e tem por objetivos: (a)
Promover, na sociedade, a Análise do Comportamento como área de conhecimento e
como campo de atuação profissional por meio de sua divulgação e de procedimentos
para o contínuo aperfeiçoamento da área; e (b) Criar condições para o aperfeiçoa-
mento do conhecimento científico relacionado com análise do comportamento, de
seus processos de produção e de uso por parte dos analistas de comportamento no
Brasil, por meio de avaliação e crítica sistemáticas.
IV
Diretoria Executiva (2023-2024)
Presidente Giovana Veloso Munhoz da Rocha
Vice-Presidente Fernanda Calixto
Primeira Secretária Thiago Vinícius Sávio
Segunda Secretária Tatiany Honório Porto Aoki
Primeira Tesoureira Fernanda Chaves Pacheco Sorgatto Machado
Segunda Tesoureira Victoria Boni Albertazzi
V
Sobre a coleção Comportamento em Foco
www.abpmc.org.br
VI
Sobre os autores deste volume
VII
Carlos Eduardo Lopes
Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de São Carlos, Doutor em
Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos. Atua como professor no
Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá e como profes-
sor-orientador no Programa de Pós-Graduação em Análise do Comportamento da
Universidade Estadual de Londrina. Atualmente, desenvolve pesquisas em História
e Filosofia da Psicologia, principalmente sobre comportamentalismo radical.
E-mail: celopes@uem.br
Carolina Laurenti
Mestre e Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos. Atua como profes-
sora adjunta do Departamento de Psicologia na Universidade Estadual de Maringá e está
credenciada no Programa de Pós-Graduação em Análise do Comportamento da Universidade
Estadual de Londrina. Atualmente, desenvolve estudos/atividades sobre epistemologia da
psicologia comportamentalista, interpretação relacional de fenômenos sociais contempo-
râneos, interface entre análise do comportamento e outras ciências, e com o feminismo.
E-mail: claurenti@uem.br
VIII
Ellen Ferreira de Castro
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, graduanda em
Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Atua como estagiária de
psicologia no Ministério Público do Estado de Goiás. Atualmente auxilia no desenvol-
vimento de pesquisas sobre o autoestigma relacionado ao peso e sobre as intervenções
em ACT para o autoestigma do peso. Bolsista de Iniciação científica BIC PUC Goiás.
E-mail: castrofellen@gmail.com
IX
Gabriela Ribeiro Leão
Graduada em licenciatura em História, Pós-graduada em Análise do comportamento
aplicada para pessoas com TEA e transtornos do desenvolvimento, e pós graduanda em
Psicopedagogia com ênfase em ABA. Coordenadora e professora da Pós-graduação em
Aplicador ABA e AT pelo Grupo CEFAPP. Atua principalmente com avaliação comportamen-
tal, inclusão escolar e desenvolvimento de habilidades e treinamento de equipe de aplica-
dores ABA e terapeutas multidisciplinares como assistente de supervisão na clínica CEFAPP.
E-mail: gabrielaribleao@gmail.com
X
Herilckmans Belnis T. M. Isidro
Psicóloga (CRP 01/7270), Mestre em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB),
Especialista em Neuropsicologia Neuropsicóloga pelo CFP. Atualmente, exerce a função
de psicóloga hospitalar e neuropsicóloga na Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação
nos Programas de Reabilitação Pós-COVID e Neurorreabilitação em Lesão Medular.
E-mail: herilckmans@gmail.com, hbtmi.psico@gmail.com
Joshua Jessel
Board Certified Behavior Analyst – Doctoral Level (BCBA-D). New York State
Licensed Behavior Analyst. Ph.D. from Western New England University.
MA from University of Maryland, Baltimore County. Currently, assis-
tant professor at Queens College and directs a university-based outpa-
tient for children diagnosed with autism who exhibit problem behavior.
E-mail: joshua.jessel@qc.cuny.edu
XI
Laura Carvalho Ribeiro
Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Vale do São Francisco.
Atua como estagiária do Modelo ExerCiência. Atualmente, desenvolve estudos/
atividades sobre Psicologia do Esporte e do Exercício, Análise do Comportamento
Aplicada ao Transtorno do Espectro Autista (TEA) e à Educação Física Especial.
E-mail: lauracarvalhor@gmail.com
XII
Luciana Parisi Martins Yamaura
Psicóloga (CRP 06/136066). Doutoranda em Análise do Comportamento pela
Universidade Estadual de Londrina. Mestrado em Análise do Comportamento
pela Universidade Estadual de Londrina (2019). Especialista em Análise do
Comportamento Aplicada pelo Instituto de Educação e Análise do Comportamento
(2020). Especializada em Neuropsicologia pelo Instituto de Psicologia, Educação,
Comportamento e Saúde. Atua como docente do curso de Psicologia do Centro
Universitário de Adamantina, psicóloga clínica e supervisora de intervenções em
ABA. Atualmente desenvolve atividades na área do Transtorno do Espectro Autista.
E-mail: luciana.parisi@uel.br
XIII
Monalisa Dutra Matias de Oliveira
Psicóloga (CRP 06/167983), possui Qualificação Avançada em Clínica Analítico
Comportamental pelo Paradigma – Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento
e graduação em Psicologia e Administração, ambas pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. Atua como psicóloga clínica em consultório particular.
Atualmente, desenvolve estudos e oficinas sobre competências e habilidades clínicas.
E-mail: monalisa-o@hotmail.com
XIV
Rachel Metras
Board Certified Behavior Analyst - Doctoral Level (BCBA-D). Commonwealth
of Virginia Licensed Behavior Analyst. Ph.D. from Western New England
University, Springfield, MA. MS from the University of North Texas, Denton,
TX. Current employment: Assistant Director of Clinical Services at the
Virginia Institute of Autism; Adjunct Professor at the University of Virginia.
E-mail: rmetras@viacenters.org
XV
Sônia Maria Mello Neves
Graduação em Psicologia pelo Centro Universitário de Brasília (1983), mestra-
do em Psicologia Experimental pela Universidade de Brasília (1989), doutorado
em Psicologia Experimental pela University College of North Wales, Bangor, UK
(1994) e pós-doutorado na Universidade de Brasilia (2015-2017). Atualmente é
professora titular da Pontifícia Universidade Católica de Goiás atuando na gra-
duação e na pós-graduação Stricto Sensu em Psicologia. Tem experiência em pes-
quisa básica e aplicada, principalmente na análise do comportamento alimentar.
E-mail: soniamelloneves@gmail.com
XVI
Apresentação
Entre os dias 7 e 10 de setembro de 2022, aconteceu o XXXI Encontro da Associação
Brasileira de Ciências do Comportamento (ABPMC), em formato online. Nessa edição
do evento, as modalidades de apresentação foram reformuladas, levando a uma atu-
alização no escopo de trabalhos passíveis de publicação na coleção Comportamento
em Foco. Com o intuito de abarcar a variedade de formatos disponíveis, foram avalia-
dos manuscritos derivados de cursos, minicursos, palestras, conferências, primeiros
passos, “comecei e agora?” e simpósios. Como efeito, foram recebidas 12 propostas,
das quais 10 integram o presente volume, 15º exemplar da coleção.
XVII
das citações a B. F. Skinner, bem como uma síntese interpretativa dos achados.
XVIII
O oitavo capítulo é de autoria de Ednéia Aparecida P. Hayashi, Luciana P. M.
Yamaura e Verônica B. Haydu, e descreve os resultados da aplicação de um proce-
dimento de matching to sample (MTS), combinado ao arranjo de contingências, para
promover a aprendizagem de palavras com encontros consonantais para um ado-
lescente (12 anos) com dificuldades na leitura de palavras com sílabas complexas e
déficits de interação social. Além da aprendizagem, também foi verificado se houve
alteração no padrão de comportamentos de interação social ao final do procedimen-
to. As autoras citam a aplicação de 18 sessões de ensino de leitura e escrita e testes
das relações emergentes, e resultados que indicam que o procedimento foi eficaz
para promover aprendizagem da leitura, assim como para aumentar a frequência de
comportamentos de interação social. As autoras sugerem o desenvolvimento de novos
estudos, com ampliação da amostra, inclusão de avaliações da escrita e o ensino da
leitura de sentenças.
O capítulo nono, escrito por Felipe M. Lemos, Rachel Metras, Henrique C. Val e
Joshua Jessel, apresenta uma revisão de literatura sobre Interview-Informed Synthesized
Contingency Analysis (IISCA), um modelo de análise funcional de rápida aplicação,
caracterizado por duas condições (controle e teste). Tendo em vista que o modelo foi
adaptado para atender contextos clínicos diversos ao longo dos anos, o trabalho teve
como objetivo identificar e discutir modificações procedimentais em sua aplicação.
O organizador e a organizadora
XIX
Sumário
XX
Avaliação indireta do Transtorno Obsessivo-
Compulsivo em contexto clínico
Paola Esposito de Moraes Almeida
Capítulo 5 Lígia Campos Müller 84
Giulia Cândido Bruno
Lucas Akira Nakahara Guimarães
Monalisa Dutra Matias de Oliveira
Radharani Rodrigues Soares
XXI
Diferentes modificações da IISCA
Felipe Magalhães Lemos
Capítulo 9 Rachel Metras 145
Henrique Costa Val
Joshua Jessel
XXII
COMPORTAMENTO
EM FOCO VOL. 15 pp. 23—37
O método experimental
no âmbito da Psicologia
Verônica Bender Haydu (1)
haydu@uel.br
e da Análise do Comportamento1 Carlos Eduardo Costa (1)
The experimental method in the context of psychology caecosta@uel.br
and behavior analysis (1)
Universidade Estadual de Londrina
Resumo Abstract
Para situar a Análise Experimental do To place Experimental Behavior Analysis within
Comportamento no âmbito da Psicologia the scope of Psychology and Behavior Analysis,
e da Análise do Comportamento descreve- we describe the defining aspects of this discipli-
mos os aspectos definidores dessa disciplina. ne. We characterize the area of Psychology and
Caracterizamos a área da Psicologia e apre- present a flowchart of the relationships between
sentamos um fluxograma das relações entre its subareas. Furthermore, we raised research
suas subáreas. Além disso, levantamos temas topics related to the basic principles of Behavior
de pesquisa relacionados aos princípios bási- Analysis. Three studies were described, linked to
cos da Análise do Comportamento. Três estu- the research line “Experimental analysis of beha-
dos foram descritos, os quais estão vinculados vior and psychobiology”. The selected themes
à linha de pesquisa “Análise experimental do are examples that can give the reader an idea
comportamento e psicobiologia”. Os temas sele- of how the Experimental Analysis of Behavior
cionados são exemplos que podem dar ao leitor explores themes with different complexities,
uma noção de como a Análise Experimental do models/paradigms, and theories. The first study
Comportamento explora temáticas com dife- is about “behavioral history”, the second is about
rentes complexidades, modelos/paradigmas e “behavioral resistance to change” based on the
teorias. O primeiro estudo é sobre “história com- Theory of Behavioral Momentum, and the third
portamental”, o segundo sobre “resistência do is about the effect of pre-experimental history on
comportamento à mudança” baseado na Teoria the formation of equivalence classes (Conflicting
do Momentum Comportamental e o terceiro sobre Relations Paradigm). In conclusion, we highlight
efeito de história pré-experimental na formação that the relevance of an experiment is related to
de classes de equivalência (Conflicting Relations its internal and external validity.
Paradigm). Em conclusão, destacamos que a re-
levância de um experimento está relacionada
com sua validade interna e externa.
Palavras-chave Keywords
1 O presente capítulo é derivado de uma conferência apresentada no XXXI Encontro Anual da ABPMC, em setembro de 2022, sob o
título: O método experimental no âmbito da Psicologia e da Análise do Comportamento. O presente trabalho foi realizado com o apoio da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de financiamento 001. Carlos Eduardo Costa é
bolsista Produtividade em Pesquisa CNPq (PQ2, Processo: 306055/2022-8)
23
Psicologia e Análise do Comportamento
Verônica Bender Haydu & Carlos Eduardo Costa
2 Os termos “variável dependente” e “variável independente” são termos comuns ao método experimental das ciências naturais, como,
por exemplo, a Física. Matos (1990) chamou a atenção para o fato de que tais termos sugerem relações causais entre os eventos nos
moldes das relações de causa-efeito, próprio de uma visão mecanicista. A autora sugere a substituição desses termos por outros, tais como,
“variável sob observação”, em vez de variável dependente e “variáveis manipuladas”, em vez de variável independente. O que se busca na
Psicologia Experimental é conhecer como dois conjuntos de variáveis se relacionam uma com a outra e estas “relações” podem ser dar de
várias maneiras e não apenas como uma relação mecânica de causa-efeito (ou input-output ou ainda estímulo-resposta). Os autores deste
artigo concordam com a nomenclatura sugerida por Matos (1990), mas como a maioria dos livros didáticos e dos artigos científicos usam
as expressões “variável dependente” e “variável independente”, mantiveram essas designações no presente texto.
90
80
70
exemplo, a variável independente é o tempo
60 de permanência das mães ao lado de seus filhos
50
40 enfermos, ou seja, o comportamento das mães.
30
Assim, para conduzir um experimento desse
20
10 tipo, o experimentador expõe diferentes grupos
de crianças enfermas a diferentes períodos de
0
1 2 3 4
Magnitude da consequência
permanência das suas mães junto a eles. O
Figura 3. Relação entre a magnitude da con- tempo de permanência das mães com os filhos
sequência e o desempenho de estudantes na é a variável independente e o grau de recupe-
resolução de problemas (dados hipotéticos). ração das crianças é a variável dependente. Na
medida em que os dados demonstrarem que
os grupos de crianças que ficaram mais tempo
Estas condições podem ser atingidas com o exibe a tela de computador rodando o software
emprego de um programa de reforço múltiplo ProgRef. Durante as sessões experimentais, o
intervalo variável (VI) VI. fundo da tela do computador, que possui uma
Em um programa de reforço múltiplo, dois cor (e.g., cinza), contém um retângulo no centro
ou mais programas de reforço se alternam com inferior (botão de respostas) que pode ter cores
um estímulo diferente correlacionado com cada diferentes, conforme o programa de reforço em
programa de reforço (chamados de "componen- vigor. Um quadrado no centro superior exibe a
tes"). Os componentes do programa múltiplo quantidade de pontos obtidos na sessão (conta-
podem se alternar de forma simples ou randô- dor de pontos); no canto superior direito há um
mica (Catania, 1998; Ferster & Skinner, 1957; retângulo (botão de resposta de consumação) e,
Lattal, 1991). Por exemplo, em um programa quando os critérios de um dado programa de
múltiplo de reforço VI 60 s VI 180 s, na presença reforço são cumpridos, uma figura comumente
de um estímulo (S1) um programa de reforço denominada smile aparece abaixo do botão de
em VI 60 s estaria em vigor (Componente 1 do resposta de consumação. Ao clicar no botão de
programa múltiplo) e durante outro estímulo resposta de consumação o smile desaparece e
(S2) o programa de reforço em VI 180 s estaria pontos são creditados no contador. Quando um
em vigor (Componente 2 do programa múltiplo). programa de reforço múltiplo é programado
O programa de reforço em VI permite con- cada componente tem, necessariamente, uma
trolar a taxa de reforços em cada componente e cor de botão de respostas diferente.
mantém a taxa de reforços razoavelmente cons-
tante apesar das variações na taxa de respostas.
Além disso, o mesmo evento perturbador pode
ser aplicado a várias situações de estímulos na
mesma sessão, permitindo um controle experi-
mental intra sessão e intra sujeito (Craig, Nevin
& Odum, 2014). Além disso, Nevin (1974, 1979,
2015) propôs que a medida da resistência do
comportamento à mudança deveria ser relativa
e não absoluta. A essa medida relativa deu-se o Figura 4. Layout da tela de computador ro-
nome de proporção de mudança, que é calcu- dando o software ProgRef durante uma sessão
lada dividindo-se a taxa de respostas em cada experimental.
sessão de teste (nas quais o evento perturbador
está presente) pela média da taxa de respostas Diversas pesquisas foram realizadas em
na linha de base (i.e., nas sessões que antece- nosso laboratório estudando a resistência do
dem a introdução do evento perturbador – para comportamento à mudança com humanos
mais detalhes do procedimento e da medida de utilizando o ProgRef. Até o momento reali-
proporção de mudança, ver Aló & Costa, 2019 zamos e publicamos alguns estudos sobre a
e Luiz et al., 2019). resistência do comportamento à mudança
No Laboratório de Análise Experimental (e.g., Lacerda et al., 2017; Luiz et al., 2022;
do Comportamento Humano (LAECH) temos Luiz et al., 2020, ver também Lacerda et al., 2022
realizado pesquisa com participantes humanos sobre o aparato que utilizamos para alterar a
utilizando o software ProgRef v4. A Figura 4 exigência da força para emissão da resposta).
Com o objetivo de avaliar se diferentes físico; ver também Soares et al., 2017 sobre a
distribuições dos intervalos entre reforços (in- definição e revisão de pesquisas sobre o tema
tervalos sobrepostos vs. não sobrepostos) e a “custo da resposta”).
diferença proporcional da taxa de reforços entre Qual a importância de se avaliar a dife-
os componentes em um programa múltiplo VI VI rença proporcional da taxa de reforços entre
(5:1 vs. 10:1) afetariam resistência do compor- componentes e as diferentes distribuições dos
tamento à mudança, Lacerda et al. (2017) dis- intervalos do VI sobre a resistência à mudança
tribuíram 20 universitários em quatro grupos. com humanos? Fundamentalmente, esse é um
A tarefa era pressionar o botão do mouse com o exemplo de pesquisa básica (cf. Baer et al., 1968).
cursor sobre um botão de respostas na tela de Seu interesse não está diretamente ligado com a
um computador e acumular pontos, que depois aplicação. Antes, o experimento busca avaliar a
eram trocados por dinheiro. Durante a linha de generalidade entre espécies (i.e., organismos não
base (LB), os participantes de Grupo 1 (G1) e humanos vs. humanos) acerca do efeito da taxa
G3 foram expostos a um múltiplo VI 10 s VI 50 de reforço sobre a resistência à mudança, além
s (proporção de reforço de 5:1) e os do G2 e G4 de verificar se aspectos particulares do proce-
foram expostos a um múltiplo VI 10 s VI 100 s dimento experimental (i.e., a diferença propor-
(proporção de reforço de 10:1). Para os partici- cional da taxa de reforço entre os componentes
pantes do G1 e do G2 os intervalos dos compo- e a forma de se programar os intervalos do VI)
nentes do VI se sobrepunham e para os do G3 e poderiam estar envolvidos em possíveis diferen-
do G4 os intervalos do VI não se sobrepunham ças nos resultados entre pesquisas. Pesquisas
(i.e., o maior intervalo do VI 10 s era menor que como a descrita anteriormente, servem de base
o menor intervalo do VI 50 ou 100 s). Na fase para decisões acerca da programação experi-
de teste, todos os participantes foram expostos mental (i.e., decisões metodológicas) de futuras
a cinco sessões em um múltiplo Extinção (EXT) pesquisas, sejam elas básicas ou aplicadas.
EXT na presença dos estímulos previamente cor- Outras pesquisas em nosso laboratório têm
relacionados ao múltiplo VI VI. Os resultados avaliado o papel do esforço físico na resistência
sugeriram que, nem a diferença proporcional à mudança, pois esta é uma questão controversa
na taxa de reforço, nem a distribuição dos in- na bibliografia. Enquanto alguns estudos (e.g.,
tervalos no múltiplo VI VI, contribuíram para Luiz et al., 2020, 2022) apontam que o esfor-
(1) a diferenciação nas taxas de respostas entre ço físico afeta a resistência à mudança, outros
componentes do programa de reforço múltiplo não relataram esse efeito (e.g., Pinkston & Foss,
VI VI e (2) para a maior resistência à extinção. No 2018). Luiz et al. (2020) avaliaram os efeitos de
artigo, os autores discutiram o uso da Extinção diferentes requisitos exigência para a força da
como evento perturbador e sugeriam a investi- resposta na resistência do comportamento à mu-
gação do papel do custo da resposta na diferen- dança. Na LB, pressionar um botão foi mantido
ciação das taxas de respostas e na resistência do em um programa de reforço múltiplo VI 45 s
comportamento à mudança. Costa e colaborado- VI 45 s com dois requisitos de força: 10 N no
res, recentemente, submeteram um artigo sobre componente de baixa força e 50 N no compo-
a resistência do comportamento à mudança, em nente de alta força para emissão da resposta.
universitários, em função de diferentes taxas No teste, sete participantes foram submetidos
de reforços utilizando custo da resposta como a um programa de reforço múltiplo EXT EXT.
DO (i.e., perda de pontos e aumento do esforço Para cinco dos sete participantes havia também
a exigência de resolução de anagramas como Note que ainda há poucas pesquisas experi-
uma tarefa simultânea. As condições de linha mentais sobre o tema e, portanto, é necessária
de base e de teste foram replicadas em um de- cautela para afirmações contundentes. Vista
lineamento ABAB. A resistência à mudança foi de forma rápida a questão subjacente poderia
maior na presença de estímulos discriminativos parecer facilmente respondida com intuição. A
associados ao componente que exigia 10 N de pergunta seria: é mais provável que alguém per-
força para seis participantes no primeiro teste e sista mais em um comportamento com menor
para quatro participantes no segundo teste. Os “custo” ou que continue a persistir em um com-
resultados sugeriram que diferenças na força portamento com maior “custo”? Intuitivamente,
física para emissão das respostas podem contri- poderíamos responder que as pessoas aban-
buir para diferenças na resistência à mudança. donarão mais facilmente a situação em que
Os efeitos de diferentes requisitos de força a emissão do comportamento é mais custosa.
física na resistência à extinção foram examina- Pode ser! Todavia, poderia ser o oposto! Estudos
dos por Luiz et al. (2022) em uma replicação sis- em Economia Comportamental apontam para
temática do experimento citado anteriormente. o efeito sunk-cost: em linhas gerais trata-se da
Cinco estudantes de graduação pressionaram tendência de um organismo persistir em um
dois botões de mola em um esquema múltiplo curso de ação devido a investimentos prévios de
VI VI durante a BL. Cada resposta que cumpriu esforço, dinheiro ou tempo, quando tais custos
a contingência VI e a exigência de esforço físico não são “recuperáveis”. De modo mais simples,
(50 ou 10 N) rendeu 100 pontos. Os participan- é a tendência de continuar se comportamento
tes trocaram o total de pontos ganhos por di- em uma situação depois de ter investido muito
nheiro ao final de cada sessão experimental. esforço (dinheiro ou tempo) em uma linha de
Durante o Teste, os participantes responderam ação, apesar dessa persistência não recuperar os
em um programa de reforço múltiplo EXT EXT. custos investidos (e.g., Devoto & DeFulio, 2022;
Diferentemente do estudo anterior, o delinea- Magalhães & White, 2016). Ou seja, tanto o orga-
mento experimental foi um AB. Os resultados nismo poderia persistir mais no comportamento
apontaram para uma maior resistência à extin- menos custoso, porque ele é menos custoso; ou
ção no componente com menor exigência de poderia persistir mais no mais custoso, porque
força física (ou seja, 10 N) durante a maioria investiu mais (esforço) nessa condição. A res-
das sessões de teste para três participantes. Em posta a essa questão é empírica e, portanto, de-
geral, estes resultados replicaram o do estudo vemos nos debruçar mais sobre o tema e tentar
anterior. Para um dos outros dois participantes, compreendê-lo o máximo possível.
a resistência à extinção foi semelhante entre os
componentes e para o outro participante a taxa Conflicting Relations Paradigm
de respostas aumentou durante todas as sessões Essa expressão, Conflicting Relations
de extinção. O artigo discute diferenças indivi- Paradigm, foi proposta por Mizael et al. (2016)
duais em termos de extinção como processo e para designar os resultados de estudos sobre
como procedimento. formação de classes de estímulos equivalentes
A questão do papel do esforço físico na re- em que a maioria dos participantes falhou em
sistência do comportamento à mudança ainda responder de acordo com as classes estabeleci-
requer mais pesquisas para que a questão possa das pelos experimentadores. Isso foi observado
ser respondida com algum grau de segurança. em procedimentos nos quais as relações a serem
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Resumo Abstract
Ainda que Skinner não tenha reconhecido isso, Even if Skinner did not recognize this, Walden
Walden two pode ser considerado um texto po- Two can be considered a political text, insofar
lítico, na medida em que discute soluções para as it discusses solutions to society’s problems. In
os problemas da sociedade. Nessas discussões, these discussions, Skinner approaches the aris-
Skinner aproxima-se da forma de governo aris- tocratic form of government, defended by Plato
tocrática, defendida por Platão na República. in The Republic. At other moments, however,
Em outros momentos, no entanto, Skinner tece Skinner makes harsh towards the Platonic philo-
duras críticas à filosofia platônica. Considerando sophy. Considering these points, the objective of
esses pontos, o objetivo deste capítulo é discutir this chapter is to discuss some philosophical in-
algumas incoerências filosóficas que parecem consistencies that seem to result from Skinner’s
decorrer da aproximação de Skinner à forma approximation of the Platonic form of govern-
de governo platônica em Walden two. Na defesa ment in Walden Two. In defense of aristocracy,
de sua aristocracia, Skinner parece lançar mão Skinner seems to use mentalistic explanations
de explicações mentalistas para justificar o de- to justify the population’s political disinterest
sinteresse político da população, e promete que and promises that Walden Two will turn into a
Walden two se transformará em uma sociedade democratic society, even without presenting any
democrática, sem apresentar qualquer plane- planning. Finally, the dangers to which behavior
jamento para que isso aconteça. Por fim, são analysts may be subject are discussed if they
discutidos os perigos a que analistas do com- do not observe radical behaviorist theses with
portamento podem estar sujeitos, caso não ob- caution.
servem as teses comportamentalistas radicais
com cautela.
Palavras-chave Keywords
Walden two; República; Incoerência filosófica; Walden two; Republic; Philosophical incon-
Política; Aristocracia. sistency; Politics; Aristocracy.
1 O presente capítulo é derivado de um simpósio apresentado no XXXI Encontro Anual da ABPMC, em setembro de 2022, sob o título:
Inconsistências filosóficas no Comportamentalismo Radical e na Análise do Comportamento.
38
Walden two é Comportamentalista Radical?
Marcos Muryan Nobuhara & Carlos Eduardo Lopes
A palavra ‘utopia’ foi utilizada no campo para criticar algumas práticas culturais atuais
literário pela primeira vez em 1516 por Thomas e enaltecer outras (Frye, 1965).
More como título de seu livro. A obra conta a Se utopias podem ser entendidas como
história de uma comunidade fictícia, descrita propostas de um mundo melhor, radicalmen-
como “a melhor forma com que se constitui te diferente do mundo real, e que, como tal,
uma república” (More, 1516/2017, p. 27). A resolveria todos os problemas da sociedade
etimologia da palavra ‘utopia’ — sintetizada da época, é possível concluir que a literatura
pelo próprio More — vem dos termos gregos utópica se inicia bem antes do uso da palavra
“ou” que significa não e “topos” que significa proposta por More. No ocidente, Platão parece
lugar (Gouvêa, 2017). Portanto, utopia signifi- ter sido o precursor do gênero utópico, com
caria, literalmente, um não lugar, algo que não sua República.
existe no mundo real. Essa definição de utopia À semelhança de outras utopias, a pro-
é também apresentada por Bobbio (1976/2017): posta de Platão está contextualizada em um
período político bastante conturbado. Depois
a construção da ótima república pode ser
de adotar um sistema democrático até o ano
confiada à pura construção intelectual,
404 A.E.C., Atenas foi derrotada por Esparta,
completamente abstraída da realidade
que instaurou um governo oligárquico conhe-
histórica, ou diretamente à imaginação,
cido como Tirania dos Trinta. Esses trinta go-
à visão poética, que se compraz em deli-
vernantes foram considerados por Platão maus
near estados ideais que jamais existiram
administradores, na medida em que adotaram
e jamais existirão. Trata-se do pensamen-
práticas violentas contra a população. Quando
to utópico, que teve em todos os tempos,
o governo oligárquico começou a entrar em
mas especialmente em tempos de grande
falência e a democracia foi restaurada, Platão
crise social, seus apaixonados e inspira-
sentiu-se aliviado. Esse episódio mostrou a ele
dos criadores. (p. 15)
que o poder político pode corromper os indi-
Além de reiterar o caráter “idealista” das víduos, e que talvez seria melhor confiar em
utopias, Bobbio (1976/2017) indica uma ca- instituições governamentais sólidas (Annas,
racterística comum dos contextos em que elas 1981). As decepções políticas de Platão viriam
são propostas: são momentos de crises sociais, a aumentar quando “em 399 a.C. Sócrates foi
nos quais os autores julgam necessário uma julgado e condenado a morte, ostensivamente
mudança radical na sociedade em que vivem. por corromper os jovens com seus ensinamen-
Esse é o caso da própria Utopia de More: “antes tos, mas realmente por ter sido associado com
de iniciar a descrição da maravilhosa ilha de alguns dos mais notórios inimigos da democra-
Utopia, Thomas traça um quadro sombrio da cia” (Annas, 1981, p. 6). A morte de seu mentor
situação econômica e social da Inglaterra, des- marcou Platão profundamente, levando-o a
gastada pelos impostos, pela miséria e pelos concluir que, não só os indivíduos, mas ins-
ladrões” (Petitfils, 1977, p. 17). Desse modo, a tituições também podem ser corruptas. Com
literatura utópica pode ser caracterizada como isso, Platão concluiu que a democracia usava
uma forma de imaginar um mundo melhor do métodos para fazer cúmplices e os que não se
que o mundo real, fantasiando sobre possíveis aliavam a ela acabavam sofrendo o mesmo des-
organizações sociais, mesmo que inexequíveis, tino de Sócrates: “a recusa da cumplicidade tem
um preço muito alto a pagar: foi precisamente
o que aconteceu a Sócrates e muitos que tal desolador, com o mundo saindo da Segunda
como ele, não aceitaram obedecer ao que ele Guerra Mundial, com resultados que supera-
chama e caracteriza de ignóbil jogo político” vam as previsões mais pessimistas. Skinner
(Valentim, 2012, p. 61). (1976/2005b) também não tinha boas pers-
Considerando esse contexto, é possível pectivas diante das alternativas colocadas pelo
compreender as mudanças de opinião de pós-guerra, sobretudo, aquelas da sociedade
Platão no que diz respeito à política. Quando estadunidense da época. Comentando a moti-
mais jovem, ele tinha interesse em participar vação para escrever Walden two, Skinner lem-
ativamente da vida política, porém, após viven- brou, em sua autobiografia, de uma conversa
ciar tantas conturbações políticas, concluiu que com uma amiga, na qual discutiam o destino
seria muito difícil para ele exercer uma boa dos jovens que estavam voltando da Segunda
política: Guerra:
Ao observar estas coisas e ao ver os Mas que pena, que eles [jovens soldados]
homens que conduziam a política, assim deverão abandonar seus espíritos de
como as leis e os costumes, quanto mais campanha e voltar apenas para cair na
atentamente estudava a política e quanto velha vida americana — conseguir um
mais avançada se fazia a minha idade, emprego, casar, alugar um apartamento,
tanto mais difícil me parecia administrar fazer um pagamento de um carro, e ter
bem os assuntos públicos. (Platão, ca. 360 um filho ou dois. (Skinner, 1979, p. 292)
A.E.C/2013, p. 51)
Como contraponto a essa “vida ameri-
Por volta de 380 A.E.C., Platão escreveu cana”, respondendo à sugestão de sua amiga
a República, onde descreveu o que lhe pare- de que ele deveria mostrar uma alternativa,
cia ser a organização política mais adequada Skinner começou a pensar em uma comuni-
para uma cidade (Annas, 1981). Depois disso, dade que “tivesse resolvido os problemas de
realizou duas viagens — 367 e 362 A.E.C. — suas vidas diárias com a ajuda da engenharia
para tentar colocar em prática o projeto de uma comportamental” (Skinner, 1976/2005b, p. vi),
cidade ideal que tinha sido descrita em seu e que, indiretamente, seria uma solução para
livro. Platão acreditava que, na administração problemas que vinham tornando-se mais evi-
pública ideal, a vida intelectual (logos) deve- dentes desde o período da Segunda Guerra
ria ser posta na ação política (érgon); por isso, Mundial – como a participação da ciência na
somente um verdadeiro filósofo, que possuía produção bélica, o consumismo estadunidense
essas duas capacidades, seria capaz de fazer e a crescente poluição devido à alta produção
uma boa política (Valentim, 2012). Contudo, em industrial. Porém, a solução desses problemas
suas viagens, Platão não teria encontrado um “só ocorreria se o comportamento humano
rei que apreciava a vida filosófica, acarretando mudasse; e a forma como poderia ser mudado
no fracasso da realização de seu projeto de uma ainda era uma questão sem resposta” (Skinner,
cidade ideal (Annas, 1981). 1976/2005b, p. vii). A resposta de Skinner
Mais de vinte séculos depois, com Walden (1976/2005b) era baseada na sua, ainda recen-
Two Skinner retomou a tradição utópica ini- te, teoria do comportamento operante:
ciada por Platão, com notáveis semelhanças.
Desde o início, a aplicação de uma análi-
O contexto que Skinner vivia também era
se experimental do comportamento era
Comportamento em Foco, v. 15, cap. 2 | 40
Walden two é Comportamentalista Radical?
Marcos Muryan Nobuhara & Carlos Eduardo Lopes
2 O termo “controle” da Análise do Comportamento causou problemas para Skinner, dado o seu uso na linguagem ordinária, sinônimo de
restrição ou perda de liberdade. Entretanto, a palavra ‘controle’ para Skinner não tem o mesmo uso que o do senso comum, ele apropriou-se
do termo para criar um conceito técnico na teoria comportamental. Essa diferença entre o uso comportamental e ordinário de controle
também precisa estar no horizonte em uma comparação entre as propostas de Skinner e Platão. De um ponto de vista comportamental,
todas as respostas de um organismo (e práticas culturais) são controladas, no sentido de estarem inseridas em relações de contingência
com o ambiente, logo, nessa perspectiva, não faz sentido dizer que alguém perdeu a sua liberdade ao ser controlado (Skinner, 1971/2002).
Em contrapartida, o termo ‘liberdade’ ganha, aqui, outro sentido: para Skinner é o tipo de controle que cria liberdade, ou pelo menos a
sensação de liberdade: “Com planejamento hábil, com uma escolha sábia de técnicas, nós aumentamos a sensação de liberdade . . . Não é o
planejamento que restringe a liberdade, mas o planejamento que usa força” (Skinner, 1948/2005a, p. 248). Sendo assim, é responsabilidade
dos planejadores controlar o funcionamento da comunidade para criar liberdade e felicidade. Já na República, o povo deveria abdicar de
sua liberdade voluntariamente, pois sabem que o controle dos Reis-filósofos iria trazer o bem comum (justiça) para toda a cidade (ver Platão,
ca. 370 A.E.C/2014, 489b-c, 586e-587a).
O que os excertos acima parecem reve- por não querer estudar política, criando a ne-
lar é que, ao tentar justificar a aristocracia em cessidade de uma aristocracia tecnocientífica.
Walden two, Skinner acaba se comprometendo Frazier poderia ainda tecer uma segunda
com uma lógica mentalista, ao mesmo tempo em contestação: Ok, a tecnologia comportamental
que se afasta do contextualismo que caracteriza conseguiria criar uma população politicamente
o comportamentalismo radical (Carrara, 2004; ativa, porém esse é o melhor plano para agora?
Morris, 1988).3 De acordo com essa filosofia do Não foi escolhido a aristocracia “eterna”, Walden
comportamento, criar interesses não seria um two é apenas temporariamente uma aristocra-
problema, o que é reiterado em outro momento cia. Isso tudo faz parte de um plano político de
no próprio Walden two: “Me dê as especifica- longo prazo. Sendo assim, Frazier concordaria
ções e eu lhe darei o homem! O que você diria que o interesse das pessoas pode ser moldado,
sobre o controle da motivação, criando interesses mas é necessário tempo para que um sistema
os quais irão tornar o homem mais produtivo e de governo democrático seja adequado em
mais bem-sucedido?” (Skinner, 1948/2005a, p. Walden two. Frazier poderia dizer que no início
274, grifo nosso). Desse modo, se a população de uma utopia a concentração de poder é van-
não se interessa pela política, isso quer dizer tajosa, porque: (i) ensinar política para poucas
que Frazier não incluiu no planejamento o con- pessoas é mais fácil; (ii) pessoas de fora entram
trole deliberado sobre esse interesse. em Walden two, logo, sem treinamento, elas po-
Frazier poderia contestar essas afirma- deriam atrapalhar o governo da comunidade,
ções dizendo: Walden two é sim contextualista, caso um sistema democrático fosse adotado;
mas nós só não queremos obrigar as crianças a ou (iii) tomar decisões em um grupo menor é
estudar determinadas matérias, porque isso po- mais fácil e poupa recursos. Em suma, Frazier
deria diminuir a felicidade delas (ver Skinner, poderia dizer que uma aristocracia é a melhor
1948/2005a, pp. 109–116). Não obstante, esse estratégia para começar uma utopia, mas no
argumento é facilmente rebatido: Frazier impõe futuro outra configuração mais democrática
algumas matérias tidas como obrigatórias (e.g. poderia surgir em Walden two. Isso marcaria,
Lógica, Estatística, Método Científico, Psicologia então, um definitivo afastamento em relação à
e Matemática) e reitera que é possível criar uma República? Vejamos.
sociedade feliz sob muitas condições de vida
com a tecnologia comportamental (ver p. 193). É desejável mudança na estrutura aristocrática?
Por que, então, não tornar a educação política
uma obrigação e capacitar a população a tomar A resposta de Platão é categoricamente
as suas próprias decisões políticas, assim como negativa. Para o filósofo não faria sentido es-
é incentivado que as crianças aprendam a resol- colher uma cidade diferente daquela que foi
ver seus próprios problemas em outras áreas? pensada para se assemelhar às formas ideais.
Skinner parece, então, culpabilizar a população Consequentemente, somente com os filósofos
3 Morris (1988) descreve uma concepção contextualista de comportamento da seguinte forma: “No contextualismo, o comportamento
ocorre em contexto e deve ser estudado como tal, pois o contexto que dá o seu significado (i.e. sua função) . . . o significado do comportamento
emerge de um contexto histórico que sempre está em evolução (i.e. por meio da causalidade histórica) e é instanciado no contexto atual,
enquanto o presente se torna o passado para comportamentos subsequentes — logo a origem da metáfora do ‘evento histórico’ para as
constantes ações-em-contextos” (p. 299). Aplicando a definição de Morris (1988) ao assunto tratado neste capítulo, do contextualismo decorre
que: i) rearranjando novos contextos é possível criar novos comportamentos (interesses), e ii) é preciso planejar contingências (contextos)
para mudar comportamentos.
no poder que uma cidade poderia ser justa (ver 275). Por exemplo, apesar de existirem códi-
Platão, ca. 370 A.E.C/2014, 420b–421c, 501e). gos de conduta em Walden two, é impossível
Qualquer outro tipo de governo seria um re- criar códigos para todas as ações antissociais.
gresso (exceto a monarquia de um filósofo). Portanto, a solução proposta por Frazier foi en-
A desesperança de Platão, retratada no livro oito sinar autocontrole como uma ação preventiva,
da República, é que a corrupção política, apesar seguindo a sua própria máxima de que não há
de ser indesejável, parece ser inevitável (Platão, virtude no acaso.
ca. 370 A.E.C/2014, 544c–d, 546a). Relembrando Realmente, não é possível conhecer todas
o contexto em que Platão escreveu a República, as mudanças que serão necessárias no futuro,
não é difícil entender a sua desesperança em mas preparar-se para uma possível corrupção
relação a outras formas de governo e o destino da aristocracia skinneriana com uma educação
de qualquer governo. De acordo com Platão, política seria um bom modo de promover a so-
poucas pessoas nascem aptas a serem filosófi- brevivência da cultura de Walden two. Embora
cas: “Que a maioria seja filosófica [tenham uma Skinner não tenha planejado uma educação po-
alma de ouro] é impossível” (494a). Portanto, lítica generalizada em Walden two, é importan-
a maioria e, por extensão, o ideal democrático te ressaltar que ele não acreditava na bondade
precisa ser definitivamente afastado das dis- inata dos seres humanos, governantes ou não, e
cussões e decisões políticas. por isso criou obstáculos para evitar o despotis-
Diferente da República, Skinner consi- mo. O principal recurso para evitar uma possí-
dera que as mudanças, incluindo a mudança vel corrupção, segundo Skinner (1948/2005a), é
na estrutura política, são uma necessidade em a ausência de poder coercitivo em Walden two
Walden two, pois para além da felicidade dos para ser usurpado; o único modo de controle
membros, é preciso acompanhar as mudanças seria é por meio de reforçamento positivo5 (ver
das práticas culturais com uma atitude expe- pp. 255–256). Contudo, controlar a comunidade
rimental, a fim de evitar a extinção da cultura para que sempre existam Planejadores, e que
(ver Skinner, 1948/2005a, p. 193). O argumento certos reforçadores naturais (governar) sejam
de Skinner (1948/2005a) é que seria impossível exclusivos aos Planejadores, pode ser conside-
prever de antemão todas as necessidades futu- rado um privilégio. Em Walden two, Skinner
ras4 (ver pp. 95–96, p. 150), mas, ainda assim, não parece estar preocupado com esse tipo de
ele ainda defende que não há virtude no acaso: despotismo.
“Não há virtude no acidente. Deixe-nos con- Mas o surpreendente é que em Walden
trolar as vidas de nossas crianças e ver o que two há uma promessa de que no futuro a co-
podemos fazer delas” (Skinner, 1948/2005a, p. munidade será mais democrática: “conforme
4 A questão de eventuais problemas na adoção da sobrevivência da cultura como um valor, tem sido debatida por analistas do comporta-
mento há algum tempo (e.g., Dittrich, 2006; Staddon, 2003). Staddon (2003), por exemplo, assenta seu argumento crítico justamente na impre-
visibilidade das mudanças de uma sociedade. Segundo esse autor, foi um equívoco da parte de Skinner elencar a sobrevivência da cultura
como um valor ético capaz de guiar quais práticas são boas e devem ser estabelecidas, pois não há como saber de antemão se uma prática
irá beneficiar a cultura. Uma prática que a curto prazo beneficie a cultura pode, a longo prazo, diminuir as chances de sua sobrevivência.
Curiosamente, Frazier parece responder a esse questionamento, indicando que é preciso ficar sob controle de falhas em uma cultura atual
que indicam uma possível extinção futura, como a “incapacidade de expandir na competição com outras formas de sociedade” (Skinner,
1948/2005a, p. 194). O principal problema é que essas falhas tendem a ser apagadas pela propaganda política, bem como por práticas nas
quais “o intelecto é estupidificado ou desviado para meditações hipnóticas, encantamentos ritualísticos etc.” (p. 194).
5 Há controvérsias sobre essa afirmação e alguns autores têm indicado a presença de controle aversivo no funcionamento da comunidade
descrita em Walden Two (para essa discussão, ver Martins et al., 2017; Sá, 1979).
a tecnologia governamental avança, cada vez em Walden two: Skinner parece afastar-se do
menos é deixado às decisões dos governan- próprio comportamentalismo radical quando,
tes, de qualquer forma. Ao final, nós não tere- pela voz de Frazier, tenta justificar uma aristo-
mos qualquer utilidade para os Planejadores. cracia tecnocientífica. Duas alternativas desa-
Administradores serão suficientes” (Skinner, gradáveis decorrem dessa incoerência filosófica
1948/2005a, p. 256, grifo nosso); porém, não há de Walden two: o mentalismo, ou a demagogia.
nenhum plano ou preparação descrita no livro Skinner parece aproximar-se do mentalis-
para que essa mudança política ocorra. mo quando abandona o contextualismo e recor-
Resumindo, o seguinte argumento pode re ao “desinteresse” da população por política
ser construído para ressaltar a incoerência com para apoiar o sistema aristocrático de Walden
as teses comportamentalistas radicais criada two. Já quando promete uma forma de governo
pela promessa de um futuro mais democrático mais democrática em Walden two, sem planejar
em Walden two: Se não há virtude no acaso e qualquer contexto para essa mudança política,
não há estratégias para uma mudança política Skinner parece incorrer em demagogia.
diferente da aristocrática, não faz sentido, de Seria possível imaginar um Walden two
acordo com o próprio comportamentalismo defendido de forma coerente com os princí-
radical, esperar que uma mudança política pios comportamentalistas e mesmo assim ser
democrática surja espontaneamente. Mesmo aristocrático? A resposta é sim, se o comporta-
sendo otimista e deixando o destino político mentalismo radical for considerado de modo
ao acaso, uma análise comportamental mostra restrito, ou seja, apenas como uma epistemolo-
que o comportamento de governar é controla- gia; seus pressupostos epistemológicos não são
do por reforçadores naturais, o que diminui a necessariamente incompatíveis com governos
probabilidade de os Planejadores simplesmen- aristocráticos. Em outras palavras, com a tecno-
te abrirem mão desses reforçadores (ver Lopes, logia comportamental, é possível criar vários
2020)6. Logo, predizer uma mudança política modos de vida, inclusive uma aristocracia (ver
sem planejamento parece incoerente com as Skinner, 1948/2005a, p. 193). Mas nesse caso,
teses do comportamentalismo radical. não caberia sequer tentativa de justificação
dessa forma de governo: o comportamentalis-
Um dilema comportamental mo estaria preocupado unicamente em descre-
ver como fazer, e não por que fazer.
A despeito de ser elitista na construção Todavia, se o comportamentalismo radical
da República, Platão é coerente com sua pró- for tomado em um sentido mais amplo, como
pria filosofia. No fim, a aristocracia filosófica é uma filosofia do comportamento humano, que,
a única solução para criar uma boa cidade na como tal, participa de discussões sobre “a ciên-
República. No entanto, o mesmo não acontece cia, linguagem, subjetividade, educação, ética,
6 Os perigos dos reforçadores naturais presentes no controle governamental foram sinalizados na fala de um personagem, O’Brien, no
livro 1984 de Orwell: “Nós [Partido interno] sabemos que ninguém toma o poder com a intenção de devolvê-lo. Poder não é um meio, mas
um fim. Não se estabelece uma ditadura para salvaguardar uma revolução; se faz uma revolução para estabelecer a ditadura” (1949/2017,
p. 240). Embora em 1984 o poder seja exercido sobre a população e em Walden two o poder é exercido para a população, certos tipos de
controle reside nas mãos desses dois governos e reforçadores naturais que são consequências desses controles mantém eles governando.
Em relação à República, Platão acreditava que os Reis-filósofos governam por obrigação e por isso não tirariam nenhum benefício no ato em
si; mesmo se eles tivessem prazer em governar, sua própria natureza filosófica não iriam deixar que seus desejos e prazeres “governassem”
a parte racional de suas almas. Logo, o poder governamental não chega a ser um problema para Platão, por conta da sua visão tripartida
da alma e do tipo de prazer que os Reis-filósofos realmente desfrutam (o prazer intelectual).
política e cultura” (Abib, 2001, p. 20), a questão Um exemplo dessa ampliação é justamente a
torna-se mais complexa. A pergunta sobre a jus- discussão sobre a justificação de formas de go-
tificação de um sistema político ganha sentido verno, um assunto fundamental na política, e
e desloca o comportamentalismo radical para que o comportamentalismo radical tem condi-
o campo francamente político. O antimentalis- ções de debater.
mo dessa filosofia impede uma justificação com Em segundo lugar, considerando algumas
base no desinteresse pela política por parte da teses fundamentais do comportamentalismo
população; o contextualismo questiona uma radical, como o antimentalismo e o contextu-
justificação “evolucionista”, na qual a mera alismo, é possível identificar com clareza sua
passagem do tempo garantiria uma mudança incompatibilidade com teorias e ideologias que
para um sistema de governo mais democrático; se apoiam em concepções opostas. O que, nova-
e uma análise de contingências indica que se mente, reforça a possibilidade de inclusão do
os governantes têm privilégios (reforçadores), comportamentalismo radical no campo político.
nem que seja apenas o privilégio de governar Por fim, assumindo a inserção do com-
os outros, eles lutarão para se manter no poder portamentalismo radical no campo político, a
(e, eventualmente para ampliar esse poder). questão do autoritarismo, presente em Walden
Desse modo, a escolha por uma aristocracia tec- two, deveria ser alvo de debate explícito na
nocrática em Walden two parece ser mais uma área. O caso de Walden two mostra que quando
preferência de Skinner ao elitismo do que uma Skinner defendeu uma aristocracia, ele acabou
decorrência do comportamentalismo radical. afastando-se do comportamentalismo radical.
Resta aos analistas do comportamento de hoje
Considerações finais aprender com esse erro, mantendo no hori-
zonte as teses do comportamentalismo radical
Skinner conseguiu avançar novas pro- como forma de evitar o autoritarismo em suas
postas que desafiam as ideias encontradas na diferentes áreas de atuação.
utopia platônica, principalmente propostas
sobre o processo de educação e a necessidade Referências
de mudanças para a sobrevivência de cultu-
ras. Porém, as aproximações políticas entre os Abib, J. A. D. (1999). Behaviorismo radical e
autores mostraram incoerências nas justifica- discurso pós-moderno. Psicologia: Teoria
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com a sua teoria quando utiliza justificativas rismo radical e o conceito de mente. Em
mentalistas e promete mudanças sem planejar H. J. Guilhardi et al. (Orgs.), Sobre compor-
condições para que essas mudanças ocorram. tamento e cognição (Volume 7, pp. 20–35).
Há algumas consequências que decorrem Esetec.
da identificação dessa incoerência de Skinner Annas, J. (1981). Introduction. Em J. Annas, An
em Walden two. Em primeiro lugar, ela chama introduction to Plato's Republic (pp. 1–15).
a atenção para a necessidade de ampliar o Oxford University Press.
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além de questões estritamente epistemológicas.
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Resumo Abstract
Um dos princípios epistemológicos do One of the epistemological tenets of Radical
Comportamentalismo Radical é o selecionismo, Behaviorism is selectionism, which describes
que descreve a influência darwinista na explica- the darwinian influence in behavior explana-
ção do comportamento, rompendo com a tradi- tion, breaking with the mechanistic tradition
ção mecanicista na Análise do Comportamento. in Behavior Analysis. A concept that allows
Um conceito que permite avaliar compromissos evaluating behavioral-analytical commitments
analítico-comportamentais com o selecionismo to selectionism is that of creativity, in view of the
é o de criatividade, tendo em vista o tratamento selectionist treatment that Skinner dedicated to
selecionista que Skinner dedicou ao conceito. the concept. Therefore, a bibliographic resear-
Realizou-se, portanto, uma pesquisa bibliográ- ch was carried out with objective of evaluating
fica com o objetivo de avaliar o uso de citações the use of selectionist quotations by Skinner in
selecionistas de Skinner nos estudos analítico- the analytical-behavioral studies on creativity,
-comportamentais da criatividade, tendo como having as source 32 articles retrieved from the
fonte 32 artigos recuperados das bases de dados PyscINFO, IndexPsi, Scielo and from the “Especial
PyscINFO, IndexPsi, Scielo e do número “Especial Criatividade” issue of the RBTCC. The procedure
Criatividade” da RBTCC. O procedimento envol- involved: defining keywords and inclusion and
veu: definição de palavras-chave e de critérios exclusion criteria; selection of retrieved publi-
de inclusão e exclusão; seleção das publicações cations; systematization of data, considering a
recuperadas; sistematização dos dados, conside- systematization of citations of studies to Skinner;
rando uma sistematização das citações dos estu- systematization of selectionist characteristics;
dos a Skinner; sistematização de características and an interpretive synthesis of the data. In the
selecionistas; e uma síntese interpretativa dos list of the 32 articles selected, 21,9% presented
dados. Dos 32 artigos selecionados, apenas 21,9% characteristics of Skinnerian selectionism when
apresentaram características do selecionismo citing Skinner.
skinneriano ao citarem Skinner.
Palavras-chave Keywords
1 O presente capítulo é derivado de um simpósio apresentado no XXXI Encontro Anual da ABPMC, em setembro de 2022, sob o título:
Inconsistências filosóficas no Comportamentalismo Radical e na Análise do Comportamento.
51
O selecionismo skinneriano nos estudos de criatividade
Felipe Boldo-Martins & Carolina Laurenti
2 A despeito da noção de variação randômica ser inserida no Comportamentalismo Radical por Skinner (e.g., 1968, 1970/1999a, 1972/1999b,
1974), isso não significa ausência de controle ambiental. Existem, atualmente, discussões que buscam avançar uma concepção neodarwi-
nista das variações, as quais ocorreriam apenas de maneira randômica, sendo o ambiente um mero cenário onde variações ocorreriam
(Lopes & Laurenti, 2016). Com base nessa discussão, pode-se considerar que nem todas as variações são randômicas, o que aproxima o
exame skinneriano da criatividade a uma posição neolamarckista ao invés de neodarwinista (Lopes & Laurenti, 2016). Sob a perspectiva
neolamarckista, o ambiente deixa de ser um mero cenário e passa a ser um “indutor” (Lopes & Laurenti, 2016, p. 260) de algumas variações,
ou até indutor de criatividade. Essa aproximação da obra skinneriana com o neolamarckismo permite salientar que o exame da criativi-
dade por Skinner (1968, 1970/1999a, 1972/1999b) não desconsidera o controle ambiental na ocorrência de variações. Ao mesmo tempo, a
influência do darwinismo no Comportamentalismo Radical abre espaço para ocorrência de variações randômicas (Laurenti, 2009b), para
o acaso (e.g. Reis, 2020) e, portanto, para a criatividade (Laurenti, 2009a).
1999). Um caso emblemático é a forma como ensejo para o mentalismo, que é rejeitado por
Skinner (1968, 1970/1999a, 1972/1999b) condu- uma perspectiva analítico-comportamental
ziu um tema bastante controverso no âmbito (Skinner, 1968).
do Comportamentalismo: a criatividade (ver Skinner (1968, 1974, 1981, 1970/1999a,
Skinner, 1974, p. 4). 1972/1999b) encontrou no darwinismo uma
De uma ótica mecanicista, a criatividade alternativa para esse impasse. Estendendo o ra-
não encontraria guarida em uma explicação ciocínio darwinista à explicação da origem de
científica, pois os eventos estariam conectados novos comportamentos, se um novo compor-
uns aos outros de forma que não haveria espaço tamento é explicado pela seleção de variações
para variação e imprevisibilidade (Laurenti, ao longo do tempo (história de vida do indiví-
2009b). Assim, no mecanicismo, o termo cria- duo), então, a variação comportamental é tida
tividade descreveria fenômenos cujas causas como condição necessária para a ocorrência de
não puderam ser completamente divisadas comportamentos criativos. Da mesma maneira
em razão de limitações cognitivas. Uma vez que mutações orgânicas ocorrem ao acaso (e.g.,
conhecidas essas causas, a criatividade seria Mayr, 2002, p. 147), algumas variações com-
um fenômeno espúrio, pois, em princípio, não portamentais também podem acontecer dessa
haveria novidade, uma vez que a ocorrência forma: “Novas respostas são geradas por arran-
do fenômeno seria completamente prevista jos acidentais de variáveis tão imprevisíveis
mediante a identificação das causas antece- quanto os arranjos acidentais de moléculas ou
dentes (Laurenti, 2009b). genes” (Skinner, 1968, p. 180).
Contrapondo-se a uma concepção meca- Se já não se pode ensinar um compor-
nicista, Skinner (1968) parecia ter admitido a tamento original, uma vez que “não seria ori-
ocorrência de novidade quando declarou que ginal se ensinado” (Skinner, 1968, p. 180), é
“certamente novas formas de comportamento possível, então, mimetizar o acaso, arranjando
humano passaram a existir” (Skinner, 1968, condições que aumentem a probabilidade de
p. 179). Ele justificou essa possibilidade ponde- ocorrência de variação comportamental (e.g.,
rando que “muito pouco do repertório extra- Skinner, 1970/1999a, 1972/1999b). Nesse senti-
ordinário do homem moderno era exibido por do, um ambiente “facilitador de acidentes”, ou
seus ancestrais, digamos, há 25.000 anos atrás” que favoreça a ocorrência de variações com-
e que “cada uma das respostas que compõem portamentais, é uma condição necessária para
esse repertório deve ter ocorrido pelo menos o surgimento de um comportamento criativo
uma vez quando não estava sendo transmitida – embora não seja uma condição suficiente.
como parte de uma cultura” (p. 179). Para ser considerada criativa, uma resposta
Admitindo a ocorrência de novidade, precisa ser nova e trazer alguma contribuição
a explicação skinneriana da criatividade já considerada, pela comunidade verbal, como
não poderia ser mecanicista. Por outro lado, positiva e funcional para o indivíduo e para a
Skinner (1968) já antecipou a possibilidade cultura (Fernandes, Perallis, & Pezzato, 2015;
de explicações mentalistas serem invocadas Kubina, Morrison, & Lee, 2006; Skinner, 1968).
para explicar uma nova resposta: “De onde Considerando essa interpretação se-
poderia ter vindo, senão de uma mente cria- lecionista de Skinner, é possível indagar:
tiva?” (p. 179). Ao afastar-se do mecanicismo, os estudos analítico-comportamentais esta-
Skinner não poderia, sub-repticiamente, dar riam seguindo a mesma chave de análise
Tabela 1
Estudos analisáveis em relação à estratégia investigativa e presença de citações a Skinner.
Texto Natureza do estudo Citações a Skinner
Adams, 2012 Teórico Sim
Amezquita, 2021 Teórico Sim
Barbosa, 2003 Teórico Sim
Boles, 1990 Teórico Sim
Campbell & Willis, 1978 Aplicado Não
Costa Leite & Micheletto, 2019 Teórico Sim
Dracobly, 2019 Teórico Sim
Epstein, 1991 Teórico Sim
Fernandes, Perallis, & Pezzato, 2015 Teórico Sim
Glover & Gary, 1976 Aplicado Não
Glover, 1980 Aplicado Não
Goddard, 2021 Teórico Sim
Goetz & Baer, 1973 Aplicado Não
Keenan, Porter, & Gallagher, 2015 Básico Sim
Kubina, Morrison, & Lee, 2006 Teórico Sim
Laurenti, 2009a Teórico Sim
Magalhães, 2019 Teórico Sim
Maloney & Hopkins, 1973 Aplicado Não
Marr & Tech, 2003 Teórico Sim
Marr, 2020 Teórico Não
Matos & Passos, 2010 Teórico Sim
Morgan, Morgan, & Toth, 1992 Teórico Sim
Murari & Henklain, 2013 Teórico Sim
Neuringer, 2004 Teórico Sim
Neves Filho, Leite, Araripe, & Picanço, 2019 Teórico Sim
Pryor, Haag, & O’Reilly, 1969 Básico Sim
Ryan & Winston, 1978 Aplicado Não
Santana & Garcia-Mijares, 2021 Teórico Sim
Schusterman & Reichmuth, 2008 Básico Sim
Sidman, 2018 Teórico Sim
Whittemore, & Heimann, 1966 Aplicado Sim
Williams, 2020 Teórico Não
Total de estudos: 32
Tabela 2
Obras de Skinner citadas nos estudos analisáveis.
Quantidade de
Textos de Skinner
citações
Verbal behavior (1957) 15
Science and human behavior (1953) 11
About behaviorism (1974) 9
The technology of teaching (1968) 9
Selection by consequences (1981) 7
Beyond freedom and dignity (1971) 7
Creating the creative artist (1970) 6
The behavior of organisms (1938) 6
Contingencies of reinforcement (1969) 6
An operant analysis of problem solving – Contingencies of reinforcements:
6
A theoretical analysis (1969)
A lecture on “having" a poem (1972) 6
The generic nature of concepts of stimulus and response (1935) 4
Recent issues in the Analysis of Behavior (1989) 4
How to discover what you have to say: A talk to students (1981) 4
A case history in scientific method (1956) 3
Walden two (1948) 3
Particulars of my life (1976) 2
The alliteration in Shakespeare’s sonnets (1939) 2
The concept of the reflex in the description of behavior (1931) 2
The evolution of behavior (1984) 2
Upon further reflection (1987) 2
What is wrong with daily life in western world? (1986) 2
The operational analysis of psychological terms (1945) 2
A behavioral analysis of value judgments (1972) 1
An operant analysis of problem solving (1966). 1
Answers for my critics: Beyond the punitive society (1973) 1
Are theories of learning necessary (1950) 1
Baby in a box (1945) 1
Behaviorism at fifty (1963) 1
Can psychology be a science of mind (1990) 1
Drive and reflex strength (1941) 1
Drive and reflex strength: II (1932) 1
Freedom and the Control of Men (1955-56) 1
Human behavior and democracy (1978) 1
Humanism and Behaviorism (1972/1978) 1
News from nowhere (1987) 1
Operant behavior (1963) 1
Pigeons in a pelican (1960) 1
The psychology of design (1941) 1
The shaping of a behaviorist (1979) 1
Two synthetic social relations (1962) 1
Why we are not acting to save the world (1987) 1
Total de
Total de obras: 42
citações: 139
duas maneiras: (i) citações não-selecionistas de Kubina, Morrison e Lee (2006) para destacar que
Skinner; e (ii) citações selecionistas de Skinner. Skinner tem uma posição selecionista de compor-
Em relação ao primeiro ponto (i), 43,7% (14) são tamento “Skinner e sua posição selecionista. . .”
estudos teóricos que citaram o autor norte-ameri- (Kubina, Morrison, & Lee, 2006, p. 229), apre-
cano, no entanto, tais citações não apresentaram sentando, na sequência uma citação skinneriana
características selecionistas na explicação da cria- da mesma obra em que ele destaca o papel das
tividade. O comportamento criativo para esses variações comportamentais, análogas às muta-
estudos foi examinado com base na resolução ções darwinistas (Kubina, Morrison, & Lee, 2006,
criativa de problemas (Amezquita, 2021; Boles, p. 229). Outro exemplo é o de Murari e Henklain
1990; Epstein, 1991; Magalhães, 2019; Neves Filho, (2013) que cita Selection by consequences (1981)
Leite, Araripe & Picanço, 2019; Santana & Garcia- para destacar que gradualmente Skinner vai as-
Mijares, 2021), relações de emergência (Matos & sumindo o modelo de seleção por consequências
Passos, 2010; Sidman, 2018), e variação e seleção até se oficializar em 1981 (Murari & Henklain,
do comportamento (Adams, 2012; Dracobly, 2019; 2013, p. 21).
Epstein, 1991; Goddard, 2021; Neuringer, 2004). Outra característica relevante para identi-
Entre esses estudos, apenas Neuringer (2004) ficação do selecionismo é a sinalização de que o
apresentou uma perspectiva selecionista da cria- modelo de seleção por consequências representa
tividade que não esteve relacionada às citações um rompimento com perspectivas mecanicistas,
a Skinner. Neuringer (2004) mencionou que o como a psicologia estímulo-resposta. Laurenti
comportamento criativo é um processo probabi- (2009a) e Murari e Henklain (2013) são os únicos
lístico de variação e seleção que pode ocorrer ao estudos que sinalizam tal aspecto. No caso de
acaso. Ao demonstrar sua interpretação científica Laurenti (2009a), a autora apresentou algumas
da criatividade, o autor afirma: “As leis científicas críticas de Skinner em relação à psicologia estímu-
descrevem classes, ou conjuntos dentro dos quais lo-resposta: “Skinner argumenta que a psicologia
reina o acaso ou a probabilidade” (Neuringer, estímulo-resposta padecia de uma séria omis-
2004, p. 892). são: desconsiderava a ação do ambiente depois
No caso (ii) em que a menção a Skinner das respostas do organismo” (Laurenti, 2009a,
também esteve associada à apresentação de ca- p. 255) e aproveitou para sinalizar o rompimento
racterísticas selecionistas, o primeiro ponto que se realizado por Skinner do Comportamentalismo
destaca é a retomada das analogias skinnerianas Radical com o modelo reflexo (Laurenti, 2009a,
entre evolução das espécies e do comportamento p. 256). Tanto Laurenti (2009a) quanto Murari
ou a menção direta de que o Comportamentalismo e Henklain (2013) citaram uma obra da década
Radical tem como um de seus princípios o sele- de 1930, The conception of the reflex in the des-
cionismo. Por exemplo, Kubina, Morrison e Lee cription of behavior (1931), para contrastar essa
(2006) parafrasearam a analogia darwinista que obra com as posições selecionistas que Skinner
Skinner apresenta na obra Selection by conse- desenvolveria posteriormente. Com o mesmo ob-
quences (1981): “Contingências de sobrevivência jetivo de sinalizar esse afastamento da psicologia
governam a seleção natural de uma espécie. As estímulo-resposta, Murari e Henklain (2013) cita-
contingências de reforçamento impulsionam ram Recent issues in analysis of behavior (1889) e
[impel] os repertórios que os membros adqui- Selection by consequences (1981) para apresentar
rem” (Kubina, Morrison, & Lee, 2006, p. 227). a alternativa de Skinner: o modelo de seleção por
O livro About behaviorism (1974) foi utilizado por consequências.
Morrison, & Lee, 2006), e Upon further reflection O conceito de probabilidade abre margem
(1987) (Fernandes, Perallis, & Pezzato, 2015). para explicações que consideram acidentes,
Essa história do comportamento criativo desvios e possibilidades. Esse conceito, portan-
deve ser entendida em termos de relações pro- to, parece ensejar a discussão sobre variações
babilísticas (Laurenti, 2009b; Neuringer, 2004). randômicas, cuja ocorrência pode ser ao acaso,
A probabilidade foi apresentada por alguns es- sendo este um aspecto relevante para a episte-
tudos como uma característica constitutiva de mologia selecionista, tendo em vista que explica,
relação do indivíduo com o mundo. Nesta pers- em partes, a origem de novos comportamentos.
pectiva, probabilidade seria compreendida em O reconhecimento de que algumas das varia-
termos de possibilidade, tendência ou propensão, ções são randômicas permite identificar que o
ou que a relação entre organismo e mundo seria controle necessário para a ocorrência de criati-
descrita em termos probabilísticos sem que isso vidade menos preciso entre antecedentes, ações
incorresse em uma limitação ao método científi- e consequentes. O resultado disso pode ser um
co, mas que sinalizasse a natureza probabilística comportamento novo, que tem a possibilidade
do comportamento (Barbosa, 2003; Costa Leite de ser adjetivado como original, criativo ou,
& Micheletto, 2019; Laurenti, 2009a). Os estudos simplesmente, medíocre (Laurenti, 2009a), ou,
que mais se destacam sob esse aspecto são Costa como afirmam Costa Leite e Micheletto (2019), o
Leite e Micheletto (2019) e Laurenti (2009a). No comportamento criativo pode ser caracterizado
caso do primeiro, o comportamento criativo só por sua imprevisibilidade: “. . . não há especifi-
pode ser descrito em termos de probabilidade, cações das respostas e consequências a serem
tendo em vista que é um comportamento, por geradas, nem das respostas precorrentes ma-
definição, imprevisível. Nesse sentido, é possí- nipulativas do ambiente que permitirão a sua
vel aumentar a probabilidade da ocorrência de geração” (Costa Leite & Micheletto, 2019, p. 386),
comportamentos criativos, mas nunca o prever. além de ser um comportamento que pode ser
No segundo caso, Laurenti (2009a) se aprofunda gerado em condições acidentais ou casuísticas e
nesse aspecto, ao afirmar que, no modelo refle- selecionado ao acaso (Costa Leite & Micheletto,
xo, o comportamento deveria ser descrito em 2019, p. 383). No entanto, tal aspecto foi citado
termos de suficiência causal. Por outro lado, no por apenas dois (6,2%) artigos (Costa Leite &
modelo de seleção por consequências as relações Micheletto, 2019; Laurenti, 2009a). As obras
entre antecedentes, respostas e consequências citadas para a menção de variações randômi-
são descritas em termos probabilísticos. cas como uma característica selecionista foram
As obras skinnerianas utilizadas para des- The technology of teaching (1968) (Costa Leite &
tacar o papel da probabilidade de uma maneira Micheletto, 2019; Laurenti, 2009a) e Creating the
selecionista foram About behaviorism (Barbosa, creative artist (1970) (Laurenti, 2009a).
2003), Answers for my critics – Beyond the punitive Pode-se destacar, portanto, que no caso
society (1973) (Laurenti, 2009a), Beyond freedom dos estudos teóricos, quando foram encontra-
and dignity (1971) (Laurenti, 2009a), A lecture on das citações selecionistas de Skinner, esteve
“having” a poem (1973) (Laurenti, 2009a), Science presente também uma concepção selecionista
and human behavior (1953) (Barbosa, 2003; Costa de criatividade.
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Resumo Abstract
A pandemia da Covid-19, que assola o mundo desde The Covid-19 pandemic, which has ravaged the world
2020, já teve e terá sequelas psicossociais importantes, since 2020, has already had and will have important
para as quais es analistes do comportamento, como psychosocial sequelae, for which behavioral analysts,
quaisquer outres profissionais de saúde, precisarão like any other health professionals, will need to be
estar atentes. Há, mundialmente, grande preocupa- aware. There is, worldwide, great concern about the
ção com a saúde mental da população. O termo saúde mental health of the population. The term mental
mental pode envolver aspectos emocionais e espiritu- health can involve emotional and spiritual aspects, of
ais, de relação de indivídue consigue mesme e com o the relationship of individual consigue mesme and with
mundo físico e social. Em outras palavras, refere-se à the physical and social world. In other words, it refers
grande parte do que e organisme faz, pensa e sente em to much of what it does, thinks, and feels in its relation
sua relação com o ambiente. Por sua vez, o ambiente to the environment. In turn, the environment invol-
envolve todes es pessoes (modelos, regras/instruções, ves all the people (models, rules/instructions, direct
interações diretas) com quem esse organisme teve e interactions) with whom this organism has had and
tem contato, seu próprio corpo, vírus e bactérias, dentre has contact, its own body, viruses and bacteria, among
outros eventos. Entender o impacto de uma pandemia other things. Understanding the impact of a pandemic
sobre es pessoes passa, necessariamente, por estudo on people necessarily involves multiprofessional study
e intervenção multiprofissional – de preferência, and intervention – preferably transdisciplinary. This
transdisciplinar. O presente artigo apresenta algumas article presents some possibilities of psychological
possibilidades de atuação psicológica que ajudem es action that help patients, families and other members
pacientes, familiares e demais membres de equipes de of health teams to predict and control possible damages
saúde a preverem e controlarem possíveis danos ou or sequelae of all this physical, psychological and social
sequelas de todo esse adoecimento físico, psicológico illness.
e social.
Palavras-chave Keywords
COVID-19; pandemia; equipe multiprofissional; saúde technology, applied behavior analysis, experimental beha-
mental; Análise do Comportamento. vior analysis, scientific communication.
1 O presente capítulo é derivado de uma palestra apresentada no XXXI Encontro Anual da ABPMC, em setembro de 2022, sob o título:
Cuidados paliativos: contribuições da Análise do Comportamento. Todes es autores participaram de um grupo de estudos realizados, de forma
online, pelo CaMtos – Centro de Atenção Multiprofissional, Brasília-DF. Não houve recebimento de financiamentos por parte des autores.
68
Saúde Mental no mundo pós-pandemia
de-Farias, Isidro, Pereira, Oliveira, Lacerda, Mesquita, Silva, Siqueira, Souza, & Moreira
Quase certamente, es pessoes que Para abordar o termo “saúde mental”, vale
terão acesso a esse texto nunca viram um a pena ressaltar diferenças teórico-conceituais
fenômeno como esses acontecer. Em 11 de em Psicologia, deixando clara a abordagem na
março de 2020, um surto de pneumonia de qual este artigo se baseará. Não há um con-
causa desconhecida, a partir de um Mercado senso quanto ao conceito de mente, proces-
Atacadista de Frutos do Mar de Wuhan, na sos cognitivos ou processos comportamentais
China, foi declarado como uma pandemia, (Todorov, 1989). Como algo que é físico poderia
pela Organização Mundial de Saúde (OMS). determinar algo não-físico e ser, por sua vez,
A infecção respiratória provocada pelo Novo explicado por este? (Baum, 1994/2006; Skinner,
Coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda 1974/1982). Para a Análise do Comportamento
Grave 2 (SARS-CoV-2) assumiu proporções as- (AC), por exemplo, tudo o que o senso comum
sustadoras, devido à sua alta taxa de transmis- ou as outras abordagens denominam como
são e ao fato de ter se espalhado rapidamente mente ou cognição é, também, definido como
pelo mundo, colapsando os sistemas de saúde comportamento. Há, aqui, uma reinterpreta-
e matando rapidamente milhares de pessoes ção (ampliação) do conceito de comportamento
(Pereira, Oliveira, Costa, Bezerra, & Pereira, para toda e qualquer interação de um orga-
2020; Schmidt, Crepaldi, Bolze, Neiva-Silva, & nismo com seu ambiente (respondente/reflexa
Demenech, 2020). ou operante, pública ou privada, consciente ou
Diversos foram e serão os impactos dessa inconsciente2). O organismo é, necessariamen-
pandemia em vários contextos. O presente te, biológico, fruto da história de evolução da es-
artigo abordará alguns dos possíveis efeitos pécie a que pertence (filogenia). Nesse sentido,
sobre a saúde mental (emocional, psicológi- todo comportamento tem uma base biológica,
ca, comportamental) da população e algumas fisiológica, que não deve ser descartada para
formas de equipes multiprofissionais atuarem sua explicação (Fernandes, 2000; Marçal, 2010;
para minimizar danos em longo prazo. Espera- Skinner, 1981/2007).
se que fique clara a necessidade de atuação Quanto ao ambiente, podem-se citar tudo
de equipes multi ou interdisciplinares, para o que possa se relacionar a ou controlar (in-
um olhar mais integral e humanizado, aos fluenciar) um comportamento. Então, temos o
pacientes e suas famílias (de-Farias, 2019; de- ambiente físico, o biológico, o social e o próprio
-Farias, Souza, Jaime, Prado & Córdova, 2022; organismo como parte do que afeta os com-
Marcolini, Sahão, Kienen, 2022; Kanaut, Silva, portamentos (um comportamento, verbal ou
& Reis 2022). não, pode passar a controlar outros compor-
tamentos). Nesse sentido, para a AC, as causas
do comportamento devem ser buscadas na
2 O comportamento é uma ação. Por isso, as contingências S-S, S-R (respondentes), R-S, S:R-S (operantes) podem ser conscientes ou incons-
cientes. Não existe o inconsciente como substantivo, nome, e sim como adjetivo ou advérbio. Ou seja, ume menine não é inconsciente das
razões de seu comportamento. Ele é/está inconsciente dessas razões. Da mesma maneira, ume menine não é inteligente; ele age de maneira
inteligente.
3 Contingências referem-se à relação de dependência entre eventos ambientais (S-S) ou entre eventos ambientais e eventos comporta-
mentais (S-R, R-S, S:R-S).
4 Consequências são mudanças no ambiente (interno ou externo ao comportamento) produzidas pelo comportamento do organisme.
5 A área de desamparo aprendido estuda os efeitos da exposição a evento incontroláveis (ausência de relações entre respostas e consequ-
ências sobre o comportamento operante de organimes). Em outras palavras, respostas que, anteriormente, tinham função nas contingências,
deixam de tê-lo) (Hunziker, 2005; Maier & Seligman, 1976). Verifica-se que essa exposição, geralmente, tem como efeito a diminuição da
sensibilidade ao reforçamento e, assim como já apontado, a dificuldade de aprendizagem de novos repertórios (Hunziker, 2005; Maier &
Seligman, 1976). Desse modo, para a AC, o desamparo é uma VD, enquanto a história de exposição seria uma VI, diferenciando-se de uma
abordagem cognitivista (que utiliza a expectativa de falta de controle como explicação). O “desamparo aprendido) foi e é considerado, por
muitos (e.g., Seligman, 1975), como um modelo animal para o estudo de organismes humanes, o que ainda é controverso. Vale ressaltar que
a área de estudos tem demonstrado que tanto sujeitos não-humanes quanto humanes demonstram a diminuição de sua atividade após a
exposição à incontrolabilidade, em diferentes tipos de testes (Hunziker, 2005).
de sua cidade, das consequências que essas O distanciamento social visa diminuir a inte-
agências de controle (no caso, autoridades go- ração social geral entre pessoes de um mesmo
vernamentais e sanitárias) liberaram ou não local, evitando assim a proliferação do vírus
para o seguimento das regras, do quão rápido (independentemente de infecção de qualquer
a vacinação foi ofertada à população daquele pessoe). Por fim, o isolamento social é mais
território específico, do seu tipo individual de amplo, e tem a finalidade de separar pessoes
trabalho, e de seu compromisso com sua saúde que possam estar contaminadas, mesmo que
e com a das demais pessoes. Para detectar e assintomáticas, de indivídues não contamina-
intervir sobre o impacto da pandemia em ume des, enquanto houver o risco (Danzmann, et al.,
determinade cliente ou usuárie do sistema de 2020; Oliveira, 2020). O isolamento envolve o
saúde, é necessário avaliar todas as variáveis que denominamos lockdown, com fechamento
mencionadas até o momento, levando-se em de estabelecimentos comerciais, por exemplo,
consideração os três níveis de variação e sele- Essas medidas, apesar de impopulares,
ção pelas consequências mencionados. são necessárias para prevenir a disseminação
do vírus, evitando, assim, a superlotação e
Medidas de quarentena, a falta de atendimento no sistema de saúde.
distanciamento ou isolamento social Entretanto, observam-se alguns aspectos nega-
Alguns países adotaram, mais ou menos tivos no que se refere à saúde mental, tais como
imediatamente, medidas de restrição social, estresse crônico, tristeza, desamparo, aumento
isolamento de casos suspeitos, fechamento de no nível de cortisol (podendo, por sua vez, de-
escolas e universidades, distanciamento social senvolver sintomas de ansiedade, depressão e
de pessoas idosas (e) e outros grupos de risco, problemas de memória), dependendo de sua
bem como quarentena de toda a população duração e do quanto os indivíduos realmente
(Brooks et al., 2020; Pereira et al., 2020). entenderam a importância das medidas restri-
É importante distinguir entre os termos tivas (Danzam et al., 2020).
para que gestores/as e população em geral A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz,
saibam o que é necessário em determinado 2020) atenta para o fato de que pessoes que
momento. A quarentena caracteriza-se como o frequentemente ficam em estado de alerta
período em que pessoes sadias ou assintomá- frente a uma situação imprevisível podem vir
ticas são distanciadas ou, no caso deste vírus a desencadear sintomas psíquicos: nervosismo,
específico, se refere ao fato de isolar pessoes preocupação, estresse, incerteza, ansiedade e
que não apresentam sintomas por 14 dias de o medo que deriva da falta de controle. É pos-
outras que os apresentam ou não, indistinta- sível que 1/3 ou metade da população tenha
mente (como é o caso de alguém que chega sofrido ou esteja sofrendo com esses sintomas.
de outro país e espera 14 dias para poder en- Entretanto, a maioria dos casos que os apre-
contrar sua família), pois este é o período de sentarem será classificada como tendo tido re-
incubação do SARS-CoV-2 – isto é, o tempo para ações (de sofrimento) esperadas diante de um
o vírus manifestar-se no corpo de indivídue. evento (aversivo) considerado como inespera-
A quarentena é respeitada para garantir que do. Ainda assim, o sofrimento não poderá ser
aquela pessoe não estava infectada com o vírus negligenciado, sendo papel de todo e qualquer
em seu corpo, sendo capaz de transmiti-lo, a profissional da saúde realizar o acolhimento
despeito da ausência de sintomas da doença. de verbalizações de angústia (manifestando-se
(Duan & Zhu, 2020). Psicólogues, mesmo que de morrer, de infectar outres pessoes, de se
indiretamente, mostram-se de grande impor- afastar ou sofrer abandono nas relações com
tância neste momento, treinando os demais familiares e amigos, estigmatização social,
profissionais, apontando para possíveis riscos, medo de contrair a doença e, ainda, transmi-
sugerindo a seleção de casos mais graves para ti-la a seus familiares, sofrimento por estarem
acompanhamento psicológico mais imediato afastados de seus lares, estresse, sensação de
ou continuado, e fornecendo, na medida do perda de controle e de desvalorização, além
possível, suporte emocional para es própries de preocupação com o tempo de duração da
membres da equipe, que estarão diretamente Pandemia (Hall, Hall, & Chapman, 2008, citado
expostos a riscos de infecção e a sofrimento por Schmidt et al., 2020).
mental (Chen et al., 2020; Zhang et al., 2020a). Ressalta-se, então, que a rápida dissemi-
Profissionais de saúde, principalmente da me- nação do novo coronavírus, as incertezas sobre
dicina e enfermagem, são treinades, ao longo de como controlar a doença e sobre sua gravidade,
seu curso e de seu trabalho, a salvarem vidas. a imprevisibilidade acerca do tempo de dura-
Em meio a esse caos, à incontrolabilidade e à ção da pandemia e dos seus desdobramentos,
imprevisibilidade, ao colapso dos sistemas de a difusão de mitos e informações equivocadas
saúde, esses profissionais perderão muitos de sobre a infecção e as medidas de prevenção, e a
seus pacientes e terão que dar muitas más no- dificuldade da população geral em compreen-
tícias aos familiares (sendo que, muitas vezes, der as orientações das autoridades sanitárias
não são bem treinados para esse último tipo de são fatores de grande preocupação para as au-
trabalho). Devemos também, estimulá-los a se toridades e para equipes multiprofissionais de
forçarem a períodos de descanso e ao fortale- saúde. Nesse sentido, torna-se de suma impor-
cimento de sua rede de apoio da maneira que tância a realização de palestras em pequenos
for possível: telefonemas, mensagens, vídeos grupos, em escolas e empresas, a elaboração de
(Banerjee, 2020; Chen et al., 2020; Taylor, 2019). videoclipes e cartilhas com figuras que facili-
Como mencionado anteriormente, no en- tem seu entendimento, respeitando as orienta-
tanto, as implicações psicológicas podem ser ções de autoridades sanitárias e minimizando
mais duradouras e prevalentes que o próprio os efeitos da doença. Um exemplo de cartilha
acometimento pela COVID-19, com ressonância ou material em áudio pode ser denominado
em diferentes setores da sociedade (Faro et al., “A etiqueta da Covid-19”, que se encontra na
2020; Fiocruz, 2020; Schmidt et al., 2020). Figura 1.
Estudos sobre implicações na saúde Dado o montante de trabalho a ser reali-
mental em decorrência da pandemia do novo zado por profissionais de Psicologia, em relação
coronavírus ainda são escassos, por se tratar a esses profissionais de saúde e à população em
de fenômeno recente, mas apontam para re- geral, o atendimento psicológico remoto tor-
percussões negativas importantes (CFP, 2020; nou-se rapidamente um mecanismo importan-
Schmidt, 2020; Zhang et al., 2020). Além disso, te para acolhimento a queixas relativas à saúde
pesquisas anteriores sobre outros surtos in- mental. Em 26 de março de 2020, foi publicada
fecciosos, como o Ebola, revelaram desdo- a Resolução do Conselho Federal de Psicologia
bramentos desadaptativos, em curto, médio (CFP, 2020) nº 4/2020, que permite a prestação
e longo prazo, para a população geral e para de serviços psicológicos por meios de tecno-
es profissionais da saúde (Taylor, 2019). Medo logia da informação e da comunicação após
A “etiqueta da covid-19”
Apesar de tantos meses em distanciamento social, ainda é necessário ou, ao menos, gentil,
tomar algumas precauções. Não visite pessoes que não o convidaram, a menos que haja muita
intimidade entre vocês e que você saiba que essa pessoe ou família está recebendo visitas
normalmente. De qualquer maneira, não custa telefonar ou enviar uma mensagem antes,
avisando sobre sua ida.
Até que as autoridades internacionais sancionem as medidas de retomada de nossa rotina,
concordando com nossos governantes, procure respeitar as medidas de segurança (máscara
tampando nariz e boca, álcool em gel, lavar as mãos) que, mesmo não mais obrigatórias, podem
poupar você ou outrem de um constrangimento ou, pior, de uma infecção por covid e suas
variantes, ou por outras gripes. É melhor pecar pelo excesso do que pela falta de cuidados,
num contexto com este.
Ao ser convidado para um evento, tente saber se o local é aberto ou fechado, se há bom
espaço entre mesas, quantes pessoes estarão lá e se são apenas conhecidas ou não, avalie
se você – nos 14 dias anteriores – seguiu as medidas de segurança, avalie suas condições de
imunidade/segurança.
Na medida do possível, tente também saber se es pessoes que você encontrará já estão
dando beijinhos, semi-abraços ou abraços; se aceitam só o toquinho como se fosse um soquinho
entre as mãos (virou nosso grande modo de tocar es pessoes neste momento); ou se você deve
acenar só de longe, com um belo sorriso. Mesmo de máscara, os olhos se espremendo quando
sorrimos pode ter um alto valor reforçador, demonstrando carinho e alegria, e promovendo
alento, com segurança para todos os envolvidos. Tente, também, avaliar suas preocupações,
necessidades, comorbidades, imunidade e deixe claro para es pessoes até onde podem ir na
sua presença.
Figura 1. “A Etiqueta da covid-19”: exemplo de material para ser escrito ou lido para a população
em geral.
realização do “Cadastro e-Psi” (Danzam et al., apresenta e descreve suas principais emoções
2020; Schmidt et al., 2020). e queixas, além das possíveis razões para elas;
Esse atendimento remoto, em conjunto atendimentos individuais ou em grupo psicoló-
com propostas psicoeducativas (cartilhas e gicos online (Duan & Zhu, 2020; Li et al., 2020b)
outros materiais informativos) (Enumo, Weide, ou, quando comprovadamente necessários,
Vicentini, Araujo, Machado, 2020; Wang et al., presenciais.
2020) consiste em oferta de canais para escuta A progressão da doença ou a ocorrência
psicológica (via ligação telefônica ou atendi- de fatos relacionados a ela pode modificar a
mento em plataformas online); atendimentos necessidade des usuáries e, sempre que ne-
psicológicos por meio de cartas estruturadas, cessário, devem-se fazer encaminhamentos
em que inicialmente e usuárie do serviço se
Comportamento em Foco, v. 15, cap. 4 | 75
Saúde Mental no mundo pós-pandemia
de-Farias, Isidro, Pereira, Oliveira, Lacerda, Mesquita, Silva, Siqueira, Souza, & Moreira
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Resumo Abstract
O trabalho pretendeu identificar contingências de- The work intended to identify contingencies of ob-
terminantes de obsessões, compulsões e escoria- sessions, compulsions and excoriations of two par-
ções de duas participantes, a partir de avaliação ticipants, based on indirect evaluation strategies.
funcional indireta. Na Fase 1, tais contingências In Phase 1, the evaluation was conducted through
foram avaliadas via monitoramento familiar e pelo family monitoring and the use of the Questions
Questions About Behavioral Function (QABF). Na About Behavioral Function (QABF). In Phase 2, in-
Fase 2, intervenções baseadas nos dados da Fase 1 terventions based on Phase 1 data were applied,
foram aplicadas, sendo acompanhados, mas não tes- and their effects on behaviors of interest and family
tados, seus efeitos sobre os comportamentos de inte- functioning were followed, but not tested. Partially
resse e sobre o funcionamento familiar. Resultados convergent results between functional hypotheses
parcialmente convergentes entre hipóteses funcio- raised by QABF and by family monitoring were
nais levantadas pela QABF e pelo monitoramento found. The treatment indicated by the monitoring
familiar foram encontrados. O tratamento indicado was implemented and seemed effective for one of
pelo monitoramento foi implementado e pareceu the participants while, for the second, the irregular
efetivo para uma das participantes enquanto, para follow-up of the guidelines prevented evaluating
segunda, o seguimento irregular das orientações the hypotheses raised by the different methods. The
impediu avaliar as hipóteses levantadas pelos di- data suggest that, although costly, the monitoring
ferentes métodos. Os dados sugerem que, embora was effective in indicating the probable function of
custoso, o monitoramento foi efetivo em indicar a the behavior of one of the participants, not indica-
provável função do comportamento de uma das ted by the QABF. Further QABF studies needed for
participantes, não indicada pelo QABF. Novos es- typical populations.
tudos sobre o uso do QABF em populações típicas
devem ser conduzidos.
Palavras-chave Keywords
avaliação funcional indireta; Questions About indirect functional assessment; Questions About
Behavioral Function; transtorno obsessivo-com- Behavioral Function; obsessive-compulsive disor-
pulsivo; monitoramento familiar, acomodação der; family monitoring; family accommodation.
familiar.
1 O presente capítulo é derivado de um simpósio apresentado no XXXI Encontro Anual da ABPMC, em setembro de 2022, sob o título:
Avanços e desafios da aplicação de estratégias de avaliação e análise funcional experimental do comportamento.
84
Avaliação indireta do transtorno obsessivo-compulsivo
Almeida, Müller, Bruno, Guimarães, Oliveira, & Soares
sobre comportamentos de interesse e sobre o como colocar o xampu e a roupa. Esses com-
cotidiano familiar. portamentos interferiam no cotidiano familiar,
tornando os gritos e a dificuldade em executar
Método atividades os alvos da investigação.
Participantes Ambiente
O estudo foi realizado inteiramente de
Participaram do estudo duas díades indi-
forma remota através de videochamadas pela
cadas pela equipe de psiquiatras de um ambula-
plataforma Google Meet, devido às limitações
tório público de atendimento ao TOC do Estado
impostas pela pandemia de covid-19.
de São Paulo.
Díade 1: AP-B. A Díade 1 era composta de
Materiais
uma adolescente (AP), 15 anos, e sua mãe (B).
Os materiais utilizados foram: Termo
Segundo a mãe, as compulsões de AP envolviam
de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE);
excesso de higienização (banho, lavagem de
Questionário QABF (Questions About Behavioral
mãos e limpeza da casa ou objetos), aversão a
Function), traduzido e adaptado para o portu-
tocar objetos compartilhados (principalmente
guês pelos pesquisadores, tendo sido preferido
após o banho), evitar receber pessoas em casa,
ao QABF-IM pelo maior número de estudos que
checar se precisava tomar banho. As obsessões
o utilizaram, indicando sua validade; Escala de
envolviam pensamentos sobre perder a mãe e
Acomodação Familiar (FAS-IR) (Gomes et al.,
estar contaminada. A mãe relatou que os com-
2010), utilizada para avaliar a participação dos
portamentos se complicaram durante a pan-
familiares na facilitação e manutenção dos com-
demia de covid-19. Era frequente o comporta-
portamentos obsessivo-compulsivos; Registro
mento de provocar escoriações na pele do rosto,
semanal dos episódios de obsessões, compulsões
dedos e couro cabeludo ao cutucar essas regiões
e escoriações, em que eram descritos as condi-
com as mãos/unhas. Por conta da severidade e
ções antecedentes e subsequentes às respostas
impacto emocional e social negativos provoca-
de interesse, além da própria resposta; Registro
dos pelas escoriações, esse comportamento foi
semanal das orientações familiares, de seu se-
selecionado para avaliação pelo QABF. No mo-
guimento e de mudanças no comportamento do
nitoramento, além das escoriações, foram cole-
cliente, durante a fase de orientação familiar;
tados dados sobre comportamentos de lavagem/
Aplicativo de troca de mensagens eletrônicas;
descontaminação.
Tabela (em excel) com campos para análise dos
Díade 2: D-F. A Díade 2 foi composta de
antecedentes, respostas e consequências relata-
uma adolescente de 13 anos (D) e sua mãe (F). De
das dos comportamentos de interesse, de cada
acordo com a mãe, D apresentava pensamentos
díade, conforme descrito: (a) respostas de “fuga/
intrusivos negativos acerca de eventos ruins que
esquiva de contaminação”, caso envolvessem a
poderiam acontecer com sua mãe, e gritos fre-
evitação ou fuga do contato com estimulações
quentes que, segundo ela, permitiam afugentar
potencialmente “sujas” ou “contaminadas”
as obsessões. Em situações relacionadas a esses
(Díade 1); (b) respostas de escoriação, como
pensamentos, ela realizava comportamentos
beliscar/cutucar/ferir a pele das mãos, rosto e
como abrir e fechar repetidamente portas e
couro cabeludo (Díade1); (c) respostas obsessi-
armários, permanecer no banheiro por longos
vas, caso envolvesse pensamentos intrusivos e
períodos e solicitar ajuda para tarefas simples,
Comportamento em Foco, v. 15, cap. 5 | 87
Avaliação indireta do transtorno obsessivo-compulsivo
Almeida, Müller, Bruno, Guimarães, Oliveira, & Soares
Duas pesquisadoras solicitavam diariamente água ou comer fora de casa; evitar comer, beber,
os registros, através de mensagens de texto ins- tocar ou pegar objetos após tomar banho; comer
tantâneas. Caso não tivessem sido entregues, os em local afastado de outras pessoas; pedir que
pesquisadores salientaram aos familiares sua a mãe realizasse tarefas de limpeza para des-
importância. contaminar seus objetos; dentre outros; (b)
Fase 2: Planejamento e Implementação respostas de escoriação (9 episódios): cutucar
de Intervenções Comportamentais a pele com as unhas provocando feridas; e (c)
Funcionalmente Orientadas pelas Hipóteses respostas desejadas de exposição/enfrentamen-
Funcionais Levantadas na Fase 1. Com base to ou respostas sociais positivas (26 episódios):
nos dados das entrevistas iniciais, QABF e mo- deixar de lavar os objetos ou realizar compor-
nitoramento familiar, foram formuladas hipó- tamentos de limpeza sem ajuda da mãe; sair
teses e propostas de orientações para corrigir com amigas ou familiares.
as contingências mantenedoras dos compor- O monitoramento familiar da Díade 2, por
tamentos das adolescentes. Folhas de registro sua vez, foi solicitado ao longo de seis semanas,
foram elaboradas para acompanhar as orien- dadas as dificuldades da mãe em realizar e en-
tações e mudanças nos comportamentos. Após tregar os registros, o que resultou na análise
as intervenções, a escala FAS-IR foi reaplicada de apenas seis dias e um total de 17 episódios
para avaliar possíveis mudanças no funciona- dos comportamentos de interesse. Os registros
mento familiar. foram classificados como episódios que envol-
Fase de Follow-Up: Avaliação da viam: (a) respostas de gritar (9 episódios): au-
Permanência Dos Comportamentos Após 30 mentar o volume da voz enquanto pronunciava
Dias. Após 30 dias do encerramento das in- palavras como “Não”, “Sai, seu miserável”, “Sou
tervenções, a escala FAS-IR foi reaplicada pela feliz”; (b) descrição de pensamentos obsessivos
mesma pesquisadora que conduziu a aplicação (3 episódios), relatados como medo de que algo
inicial e os familiares voltaram a registrar, por acontecesse aos pais ou a ela própria; descri-
uma semana, comportamentos de interesse ção de que tudo o que fazia estava errado; (c)
das adolescentes e suas reações diante desses comportamento lentificado (3 episódios), como
comportamentos. dificuldades para se arrumar ao acordar, soli-
citar assistência para se vestir, colocar pasta
Resultados de dente ou xampu, passar manteiga no pão,
sendo tais dificuldades justificadas por conta de
Fase 1: Avaliação Funcional Indireta seus pensamentos obsessivos; e (d) comporta-
das Contingências Mantenedoras do mentos desejáveis, como relato de ausência de
Comportamento Obsessivo-Compulsivo. Para pensamentos ruins e observação de respostas
análise dos resultados obtidos, serão primeiro de autonomia (2 episódios).
apresentados os dados obtidos pelo monitora- Como se pode notar, para ambas as par-
mento familiar, posteriormente comparados ticipantes os registros de monitoramento indi-
aos dados obtidos pelo QABF. caram que um amplo conjunto de respostas foi
No caso da Díade 1, o monitoramento foi observado e relatado pelas familiares, sendo
inicialmente realizado por 10 dias e classificado descritas tanto respostas desejáveis quanto
como envolvendo: (a) respostas compulsivas de indesejáveis. Diferente do monitoramento,
limpeza e evitação (25 episódios): evitar tomar a aplicação da QABF exigiu que apenas um
comportamento de interesse fosse selecionado tal consequência descrita em quatro dos nove
para avaliação que, como antes mencionado, episódios em que a resposta de escoriação foi
foi o de escoriação no caso da Díade 1 e de com- observada. Como quatro dos cinco episódios
pulsões/gritos no caso da Díade 2. A Figura 1 restantes foram descritos como indetermina-
ilustra a comparação das hipóteses funcionais dos, menor foi o número de dados a fortalecer
indicadas pelo QABF e pelo monitoramento quaisquer das hipóteses sugeridas, sendo re-
familiar para esses comportamentos. levante lembrar que classificação do episódio
como “indeterminado” poderia tanto indicar re-
latos imprecisos motivados pela falta de treino
em observar as consequências relevantes,
quanto que os comportamentos eram mantidos
por consequências encobertas, que não pode-
riam ser diretamente observadas pelo familiar.
Uma análise dos quatro episódios classificados
como indeterminados indicou, no entanto, que
em três deles a resposta ocorreu diante de con-
textos sociais (na presença da mãe, da médica
psiquiatra ou na escola), o que sugere que tais
condições teriam se tornado evocativas para
respostas de escoriação devido, talvez, a um
histórico em que consequências socialmente
mediadas teriam ocorrido nesses contextos.
A análise dos contextos antecedentes para as
respostas de escoriação indica, ainda, que das
nove respostas relatadas, seis ocorreram em
contextos sociais, uma diante de demanda e
não foi possível identificar os antecedentes em
Figura 1. Pontuação obtida para cada prová- duas ocorrências. Acerca da fuga de deman-
vel função do comportamento de escoriação das também se destaca que enquanto o QABF
(Díade1) e gritar (Díade2) na escala QABF (eixo registrou elevada pontuação em questões que
à esquerda) e monitoramento familiar (eixo à indicam essa função, apenas um episódio de es-
direita). coriação foi assim indicado no monitoramento.
Ainda assim, pode-se indicar que, no caso da
Uma análise do painel superior da Figura 1 Díade 1, houve uma convergência parcial entre
revela que, para a participante AP (Díade 1), o as duas estratégias de avaliação indireta, uma
QABF indicou que o comportamento de esco- vez que fuga de demandas foi apontada como
riação seria mantido por reforçadores não-so- hipóteses funcional tanto pelo QABF quanto
ciais (automáticos) e fuga/esquiva de tarefas. pelo monitoramento. Reforçamento tangível,
O monitoramento, por outro lado, indicou que por sua vez, não foi indicado pelas estratégias,
atenção, na forma de censura ou oferta de ajuda enquanto reforçamento não-social e atenção
pelos familiares, seria a consequência relevante foram sugeridas por uma delas, mas não con-
para manutenção desse comportamento, sendo firmada pela outra.
dessas respostas também avaliadas. Nesse caso, positivos do dia), o que buscava caracterizar
contingências de fuga/esquiva pareceram im- uma contingência de liberação de atenção ba-
portantes no controle das obsessões e da lentifi- seada no tempo e independente das respostas
cação, que ocorriam frequentemente diante de de escoriação ou de limpeza/descontaminação.
contextos antecedentes de demandas (cinco, das Na terceira orientação, foi proposto aumentar a
dez situações relatadas, sendo as outras cinco atenção positiva da mãe para comportamentos
insuficientes para identificar antecedentes). O incompatíveis com a resposta de escoriação,
rearranjo dessas contingências foi proposto como a realização de atividades manuais de
como intervenção. escrita ou artesanato. Na quarta, a familiar foi
Fase 2: Resultados da Implementação orientada a estimular e liberar atenção social
de Intervenções Comportamentais contingente para comportamentos da filha de
Funcionalmente Orientadas. Os dados agora buscar contato com outras fontes de reforço
apresentados referem-se aos resultados das social, como procurar por amigos e outros
intervenções orientadas pelas avaliações indi- familiares.
retas, conduzidas na fase anterior. No caso da
Díade 2, a ausência de registros e a irregulari-
dade no seguimento das instruções impediu o
acompanhamento dos resultados da interven-
ção, que serão considerados apenas a partir das
mudanças no funcionamento familiar, indica-
das pela escala FAS-IR. Para a Díade 1, além da
escala, serão também considerados os registros
familiares solicitados durante a intervenção e
o follow-up.
A Figura 2 ilustra os resultados da inter-
venção da Díade 1. A intervenção buscou alterar
as contingências de atenção, a partir da apre-
sentação de quatro orientações. Na primeira,
os terapeutas propuseram que a mãe dispen-
sasse atenção positiva para comportamentos
de aproximação da adolescente (como sair do
quarto, assistir TV com a mãe, etc) e reduzisse
atenção contingente à escoriação e compulsões
de limpeza/descontaminação de objetos, evi-
tando comentar, criticar ou participar da re- Figura 2. Seguimento diário da orientação fami-
alização desses comportamentos. Na segunda liar (B) e o comportamento da adolescente (AP)
orientação, foi proposto que a familiar evitasse de fazer atividades sociais com a mãe (painel
cumprir com as solicitações para que pegas- superior), escoriação (painel médio) e limpar
se e levasse objetos para filha após o banho e sozinha ou não limpar o celular (painel infe-
passasse a oferecer atenção social não contin- rior) ao longo das quatro orientações e na fase
gente à menina (propondo um momento da de follow-up.
noite para agradecerem pelos acontecimentos
A Figura 2 reúne três painéis que ilustram O painel médio da Figura 2 ilustra, por
o comportamento da mãe de seguir as orien- sua vez, mudanças na intensidade do compor-
tações (linha contínua) e o comportamento da tamento de escoriação ao longo do estudo. Para
filha de interagir positivamente com a mãe análise desses dados, foram somados um, dois
(painel superior), engajar-se em escoriações ou três pontos para intensidades fracas, médias
(painel médio) e realizar comportamentos de ou fortes de comportamento de escoriação. Os
limpeza/descontaminação de objetos (painel in- critérios de intensidade foram estabelecidos
ferior). Nos três painéis, a linha que representa junto a familiar sendo: (a) fraca: coçar o rosto
o comportamento da mãe foi produzida a partir sem causar vermelhidão; (b) média: cutucar o
do acréscimo de um ponto a cada dia em que rosto causando vermelhidão e (c) fortes: cutu-
a mãe cumpriu com as orientações apresenta- car o rosto até causar sangramento. O registro
das até o período, e nenhum ponto nos casos da intensidade foi realizado diariamente em
em que ao menos uma dessas orientações não cada um dos três períodos do dia (manhã/tarde/
tivesse sido cumprida. Uma análise da Figura 2 noite), de modo que, a cada dia, um total de até
permite assim acompanhar que a mãe relatou 9 pontos fosse possível, caso a mãe tivesse a
ter seguido as orientações na grande maioria oportunidade de observar a filha em todos os
dos dias avaliados, sendo maior o seguimen- períodos. Nos casos em que pudesse observar
to das duas primeiras orientações do que das apenas um ou dois períodos, o total de pontos
últimas. Nos dias 16/02, 17/02, 02/05 e 03/05 é possíveis era alterado para 3 ou 6, respectiva-
possível observar que os dados sobre o segui- mente. Assim, a intensidade da escoriação era
mento não foram coletados, ocasiões em que a identificada, a cada dia, a partir do cálculo da
familiar relatou não ter tido tempo para impri- porcentagem do total de pontos registrados pela
mir as folhas de monitoramento. mãe sobre o total de pontos possível em um dia,
Os dados acerca do comportamento da multiplicado por 100. É possível identificar que,
filha de aproximar-se da mãe, apresentados durante a primeira orientação, a intensidade do
no painel superior da Figura 2, foram plota- comportamento de escoriação ficou entre 33,4%
dos de forma que cada marca “X” indicasse e 66,6% (média) em dois registros e entre 66,7%
o total de interações positivas relatado entre e 100% (forte) em 14 dos 16 registros coletados.
as duas, sendo 0 a 3 pontos computados para Os dados sugerem que, após 36 dias da orienta-
cada período (nenhum, manhã, tarde e noite) ção 1 e 2, houve uma diminuição da intensida-
em que houvesse registro dessa interação. Os de da escoriação, visto que, entre os dias 18/02
resultados permitem reconhecer que a apro- e 26/03, foram registrados 30 comportamentos
ximação social positiva com a mãe era pouco de forte intensidade e sete de média; após esse
frequente durante a primeira orientação (dos período e até o início da orientação 3, houve 12
17 registros, 14 ficaram entre 0 e 1 pontos) e registros de média intensidade e três de forte.
passou a aumentar gradativamente (nas orien- Após a terceira orientação, a escoriação volta a
tações 1 e 2, 40 dos 52 registros ficaram entre ficar menos intensa, visto que 22 registros são
2 e 3 pontos; nas orientações 1 a 3, 34 dos 38 de baixa intensidade (até 33,3%), 17 de média e
estavam 2 e 3 pontos; nas orientações 1 a 4, 38 nenhuma escoriação forte foi registrada. Após
dos 41 registros ficaram entre 2 e 3 pontos), o a quarta orientação, houve 14 registros de
que se manteve no follow-up (4 dos 7 registros baixa, 13 de média e cinco de forte intensidade.
ficaram entre 2 e 3 pontos). No follow up os sete registros foram de baixa
enquanto o QABF exige avaliar um único com- papel funcional da atenuação de estados emo-
portamento. O monitoramento, por outro lado, cionais aversivos como condição mantenedora
exige um alto custo de resposta para o preen- das respostas (Miltenberger, 2005). Mesmo o
chimento, o que impediu a adesão da Díade QABF-MI, indicado para população com ansie-
2. Tais questões indicam não haver ainda um dade e depressão, não avalia diretamente essa
único método de avaliação indireta que produ- condição, interrogando apenas sobre o efeito
za os resultados desejados, sendo relevante a de estados emocionais positivos como exem-
iniciativa de Romani et al. (2023) de aprimorar plos de reforçamento automático (Singh et al.,
tais avaliações a partir de sua combinação com 2006). Por outro lado, as perguntas do QABF
estratégias descritivas e indiretas. favorecem a observação de condições públicas
Outro questionamento acerca da conver- que possam desencadear comportamentos in-
gência parcial observada entre os instrumentos desejados, favorecendo hipóteses alternativas à
trata dos motivos pelos quais o QABF não teria interpretação exclusiva da função evocativa ou
indicado a função de atenção como relevante reforçadora de pensamentos e estados emocio-
para manutenção das respostas de escoriação nais desconfortáveis, cuja ocorrência deveria,
da participante da Díade 1, se conta com per- também, ser explicada. Aponta-se ainda que
guntas específicas sobre essa condição, como mesmo que reforçamento automático tenha
“Se engaja no comportamento para conseguir sido indicado prioritariamente pelo QABF
atenção?” ou “Se engaja no comportamento como mantenedor da respostas indesejadas das
porque gosta de ser repreendido?”. Interpreta- duas participantes, as questões do instrumento
se, nesses casos, que as perguntas formuladas tratam da produção de consequências senso-
não deixam claro que consequências como riais positivas nas condições em que o parti-
ofertas de ajuda, censura e aconselhamento cipante estaria em contexto de pouca estimu-
poderiam ser interpretadas como formas de lação para respostas concorrentes, a partir de
atenção social pelo familiar, que pode mesmo perguntas “O comportamento ocorre quando
não ser capaz de observar ou descrever seus o cliente está sozinho?” ou “quando não tem
comportamentos diante das escoriações da ninguém olhando”?. No entanto, o monitora-
filha como exemplos dessa categoria. Assim mento indicou, para a Díade 1, que respostas
como Dracobly et al. (2018) sugerem, a confia- de escoriação e compulsão ocorriam diante de
bilidade e a validade dos resultados obtidos via contextos sociais, seguidas frequentemente pela
avaliação indireta dependem de habilidades do oferta de ajuda e atenção. Como a hipótese do
avaliador e do conhecimento do indivíduo que QABF não foi diretamente avaliada, limita-se,
responde aos instrumentos. no entanto, conclusões acerca dessa hipótese.
Além disso, a avaliação da função de Por fim, embora a reorganização de con-
reforçamento negativo proposta pelo instru- tingências de atenção tenham sido planejadas
mento se concentra na descrição de condições em função dos dados de monitoramento no
em que o comportamento seria mantido pela caso da Díade 1, as alterações promovidas pelas
retirada de demandas ou fuga de estimulação intervenções podem ter determinado, também,
sensorial produzida por incômodos físicos, mudanças em variáveis não planejadas. Por
como doenças ou mal-estar. As perguntas exemplo, na medida em que a mãe passou a
formuladas não permitem avaliar a hipótese, estimular o contato social com a filha e seu
usualmente colocada na literatura, acerca do envolvimento em respostas concorrentes com
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Resumo Abstract
Objetivo: propor interpretação analítico comporta- Objective: to propose an interpretation of the weight
mental, pautada na Teoria das Molduras Relacionais self-stigma based on the Relational Frame Theory
(RFT), do autoestigma do peso. Método: relatos (RFT). Method: it was analyzed standard reports in-
padrão indicativos de autoestigma e história de dicative of self-stigma and life history of two women
vida de duas mulheres (P1 e P2) foram analisados. (P1 and P2). Results: within the framework of the
Resultados: no âmbito do HDML, através do ROE, HDML and the ROE, people's gazes when P1 goes
olhares de pessoas quando P1 vai ao Burger Kings to Burger King have an orienting function in rela-
tem função de orientação, ou seja, essa situação tional networking involving the deictic- “I”- “fat”/
participa das redes relacionais envolvendo o eu- “I”- “disgusting”, evoking aversive properties, like
-dêitico “eu-gorda/nojenta”, evocando propriedades “disgust” and “shame”, and appetitive ones, like
aversivas como nojo e vergonha e apetitivas como a “guilt”. Reports given by P2 suggest that eating nuts,
culpa. Relatos de P2 sugerem que comer castanhas, carbohydrates, and the concern about eating “cor-
carboidrato e a preocupação com comer “correto” rectly” have an orienting function, participating
tem função de orientação, participando das redes in relational networking involving the deictic- “I”-
relacionais envolvendo o eu-dêitico “eu-culpada”, “guilty”, evoking aversive (S-: guilt, unhappiness)
evocando propriedades aversivas (S-: culpa, infe- and appetitive properties (S+: compulsion, treats).
licidade) e apetitivas (S+:compulsão, comer gulo- Participants' beliefs of inadequacy can be described
seimas). Crenças de inadequação das participantes as highly coherent, of relatively low complexity, de-
podem ser descritas como altamente coerentes, de rivation and flexibility. Discussion: data suggest re-
complexidade, derivação e flexibilidade relativa- levant contributions of RFT to the analysis of social
mente baixas. Discussão: dados sugerem contribui- phenomena with clinical implications.
ções relevantes da RFT para análise dos fenômenos
sociais com implicações clínicas.
Palavras-chave Keywords
Autoestigma do peso; teoria das molduras relacio- Weight self-stigma; relational frame theory; HDML;
nais; HDML; ROE; relatos verbais. ROE; verbal reports.
1 O presente capítulo é derivado de um simpósio apresentado no XXXI Encontro Anual da ABPMC, em setembro de 2022, sob o título: A
construção do ‘eu’ e o autoestigma do peso no behaviorismo radical, RFT e ACT. Agradecemos ao Me. Raul Vaz Manzione por sua valiosa
contribuição nas interpretações dos casos clínicos. Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES)
mediante bolsa de mestrado (Nerjana Milena Miotto Zorzetti, Luciana Pacheco Miranda Rochael e Ana Caroline Marcelo Rodrigues); PUC
Goiás mediante Bolsa de Incentivo à Cultura (BIC) para Iniciação Científica (Ellen Ferreira de Castro e Evellyn Silva Barbosa).
99
Autoestigma do peso: interpretação analítico comportamental
Neves, Zorzetti, Rochael, Rodrigues, Castro, & Barbosa
alguns autores, esse novo paradigma “pode ofe- com excesso de peso (“corpo grande”). O RRAA
recer uma descrição e análise mais completa combina estímulos de forma arbitrária e não-
dos elementos verbais envolvidos nos estereó- -arbitrária, conforme bem nos explica Mizael e
tipos sociais” (Kohlenberg et al., 1991, p. 517). de Rose (2017):
O RRAA deriva das pesquisas em equivalência
Interessante notar que, de acordo com
de estímulos (Sidman & Tailby, 1982; Sidman,
Hayes et al. (2002), seres humanos verbal-
1994) e tem lançado luz ao entendimento do
mente competentes categorizam, avaliam
comportamento simbólico. O grande fulcro que
e comparam estímulos de maneira arbitrá-
subjaz a esse paradigma e suas três proprie-
ria (i.e., sem se pautar nas características
dades fundamentais está na demonstração de
físicas dos estímulos), ao passo que, por
que relações não treinadas podem se seguir de
um processo de aprendizagem, utilizam
relações diretamente aprendidas, conforme
critérios “não-arbitrários” (baseados em
descrição abaixo:
características físicas) para justificar tais
1. implicação mútua por treino direto
relações (p.369).
(A=B) e por derivação (B=A).
2. implicação combinatória por treino Uma importante conceituação sobre o
direto (se A=B e B=C), então por deri- RRAA é que ele é contextualmente controlado
vação, (A=C). a partir do momento em que estímulos estão
3. transformação de função (a modifi- verbalmente relacionados, podendo-se dizer
cação das funções de uma das partes que eles fazem parte de uma moldura relacio-
da relação acarretará transformações nal. Essa elucidação a respeito das relações que
das funções das outras partes a ela fazemos a partir de determinados estímulos nos
relacionadas). revela que cada indivíduo poderá criar relações
O modelo acima, proposto pela RFT, pode a partir dos estímulos “corpo”, “magro”, “gordo”,
nos ajudar a compreender a internalização de “belo”, “feio”, criando assim molduras ou redes
estigmas relacionados ao peso, uma vez que exi- de molduras a partir do treino de múltiplos
gências oriundas das interações sociais, forçam exemplares com os estímulos disponíveis na
indivíduos a se adequarem a rígidos padrões infância e depois que é adquirido não depen-
corporais que no âmago de uma comunidade de mais das relações concretas aprendidas e
verbal assumem conotações que se relacionam pode, por tanto, ser aplicado de forma arbitrá-
com “belo”, “correto” e “saudável”, enquanto, ria a quaisquer outros estímulos. À uma classe
por outro lado, a não adequação a esses padrões particular de RRAA, controlada pelo contexto
refere-se, naturalmente, aos seus respectivos específico que evoca a sua ocorrência, dá-se o
contrários (“feio”, “errado”, “doente”). nome de Crel (i.e., dica ou contexto relacional)
A partir do exposto acima podemos inferir que é o estímulo que evoca os tipos de relações
que do aprendizado de relações treinadas como envolvidas. As principais molduras relacionais
“corpo grande/ volumoso” é igual a “gordo” são: Coordenação (é igual a, o mesmo que, equi-
(A=B) e que “gordo” é igual a “feio” (B=C), se se- valente a, etc.); distinção (é diferente de, não é o
guirá por derivação que “corpo grande” é igual mesmo que.); oposição (oposto, a contrário de...);
a “feio” (A=C). No que se refere à transformação espacial (aqui, lá, próxima a, distante de…); com-
de estímulos, por sua vez, se seguirá, por exem- paração (maior/menor que, melhor/pior que);
plo, o sentimento de desvalor referente ao corpo hierarquia (pertence a, está incluso em, etc.);
temporalidade (agora, depois, antes); causali- formavam classes. As linhas horizontais foram
dade (se, então…). Para facilitar nossa compre- relacionadas a “gordas” enquanto as verticais
ensão, podemos pensar em uma frase do tipo eram relacionadas a “magras”. Esse estudo cor-
“ser magro é melhor que ser gordo”, o Crel está roborou a ideia de estigma social, uma vez que
nos informando uma relação de comparação demonstrou que os participantes “responderam
(melhor que), mas se a frase for “se eu for gorda aos estímulos abstratos do mesmo modo que
eu não serei feliz, estamos identificando uma respondiam aos estímulos cujas “funções de
Crel de causalidade (se, então...) (Mizael & de estigma” magro e gordo foram determinadas,
Rose, 2017; Simões & Ferreira, 2021). demonstrando como o estigma pode ser estabe-
lecido sem o ensino direto de atributos depre-
RFT e a construção do Self ciativos a um grupo de indivíduos” (Mizael &
Uma moldura relacional que merece des- de Rose, 2017).
taque para o estudo do “self”, a partir da RFT, Atualmente, o modelo denominado hyper-
diz respeito às relações dêiticas que correspon- dimensional multilevel (HDML) vem se mostran-
dem à habilidade de interpretar e compreender do mais eficaz no que concerne à sua capacidade
não apenas os próprios pensamentos e emoções em atingir mais profundamente elementos de
como também pensamentos e emoções de ter- grande complexidade referentes à linguagem.
ceiros, assumindo uma perspectiva de acordo Duas das importantes contribuições propiciadas
com o contexto (Montoya-Rodríguez et al., 2017). pelo modelo HDML dizem respeito, em primei-
As molduras dêiticas envolvem três tipos de ro lugar, à ênfase em uma dica contextual que
molduras relacionais: pessoal (eu-você), espa- informa a função do comportamento que está
cial (aqui-ali) e temporal (agora-depois). Esse sendo mantido por determinado estímulo, isto
aprendizado elementar constitui-se na gênese é, se refere a quais funções de estímulo são se-
de todo o aprendizado posterior que envolverá lecionadas (ex., discriminação, eliciadora, moti-
contextos diferentes de tempos e espaços espe- vacional, reforçadora positiva ou negativa etc.).
cíficos (McHugh et al., 2019). A essas dicas ou contextos funcionais que são
Pesquisadores da área da RFT foram evocadas através do RRAA deu-se o nome de
desenvolvendo diferentes modelos conceitu- C-func. A segunda contribuição, que teve parti-
ais a partir do avanço de suas investigações, cular impacto para a clínica, foi a especificação
passando por diversas estruturas de análise. O de uma unidade de análise do comportamento
Implicit Relational Assessment Procedure (IRAP), verbal pelo modelo Relacionar-Orientar-Evocar
desenvolvido por Barnes-Holmes e colabora- (ROE). O relacionar refere-se a infinitas e com-
dores (Barnes-Holmes et al., 2006), deu passos plexas possíveis relações entre estímulos que
importantes na pesquisa básica para a compre- nós seres humanos conseguimos estabelecer.
ensão dos estigmas sociais. A partir do IRAP e de O orientar indica que um determinado estímulo
um modelo de estigmatização (Weinstein et al., é colocado em foco, isto é, um estímulo é perce-
2008), participantes selecionados para pesquisas bido e selecionado através do RRAA e por último,
eram diretamente treinados a relacionar indire- o evocar que se refere à função de um estímulo,
tamente linhas que se posicionavam na vertical indicando se é apetitivo, aversivo ou relativa-
e na horizontal com palavras associadas aos mente neutro (Simões & Ferreira, 2021). O olhar
tipos corporais “gordo” e “magro”. Os resultados para essas relações na linguagem a partir desse
obtidos apontaram para relações derivadas que novo modelo ampliou-se para a compreensão
da interação e modificação mútua entre Crel poderá se relacionar com outras redes rela-
e Cfunc, isto é, entende-se que Crel e Cfunc se cionais (Harte & Barnes-Holmes, 2021; Simões
afetam reciprocamente (Barnes-Holmes, 2020). & Ferreira, 2021). A partir do exposto acima,
Um modelo anterior ao HDML, o multi-di- podemos considerar que uma frase como “eu
mensional multi-level (MDML), já havia propos- sou uma mulher gorda” representa profundas e
to caracterizar o RRAA em quatro dimensões complexas relações que se combinam para cada
(coerência, complexidade, derivação e flexibi- um desses estímulos, isto é, inúmeras relações
lidade) e cinco níveis diferentes (implicação e molduras podem se seguir do estímulo “eu” e
mútua, molduras relacionais, redes relacionais, do estímulo “gorda” respectivamente (Harte &
relações entre relações e relações entre redes Barnes-Holmes, 2021; Simões & Ferreira, 2021).
relacionais), (Barnes-Holmes et al., 2004; Simões Esse novo modelo também permitiu novas
& Ferreira, 2021). Com relação às dimensões, a compreensões dos mecanismos existentes na
coerência diz respeito ao quanto uma resposta construção de um “self”. De acordo com Harte e
relacional está sobreposta funcionalmente a Barnes-Holmes (2021) a criança, desde muito pe-
padrões anteriores que foram reforçados pela quena, é constantemente solicitada a adotar uma
comunidade verbal. A complexidade, aponta perspectiva a partir da evocação e orientação
para a quantidade de tipos de relações envol- (em relação mútua entre si). “Metaforicamente
vidas e o nível de profundidade da descrição falando, o bebê vai aos poucos sendo arrasta-
e detalhamento. A derivação explica o tempo do verbalmente fora do jardim do Éden, com
de aprendizagem e de emissão de uma rela- uma perda gradual da inocência “não-verbal”
ção, ou seja, é uma relação recém aprendida (Harte & Barnes-Holmes, 2021). Quando os pais
ou já muito praticada na história de vida do ou cuidadores de um bebê apontam para seu
indivíduo. Enfim, a flexibilidade diz respeito ao brinquedo e perguntam “você quer o brinque-
potencial de modificação de uma resposta rela- do?”, ele está orientando/evocando o bebê na
cional a partir do seu contexto, isto é, responde direção (foco) do brinquedo, dando início ao
se ela muda facilmente, mostrando-se sensível estabelecimento de relações arbitrárias a partir
ao contexto ou não (Simões & Ferreira, 2021). da tomada de perspectiva.
Com relação aos níveis (implicação mútua, A resposta relacional dêitica é crítica no
molduras relacionais, redes relacionais, rela- sentido de se mostrar determinante em todas as
ções entre relações e relações entre redes rela- relações futuras que virão a ser estabelecidas na
cionais), para entendê-las, retomemos o nosso história de vida e suas interações com o mundo,
exemplo dos parágrafos anteriores quando em diferentes contextos, e é particularmente
sugerimos que para cada indivíduo uma mol- complexa porque compreende o responder
dura relacional se seguirá dos estímulos “gordo” às próprias respostas relacionais, isto é, vão
e “magro”. Podemos imaginar que para uma se formando níveis cada vez mais profundos
mulher, outra moldura se formará em sua histó- e complexos de respostas e relações (Harte &
ria de vida a partir do estímulo “mulher” trazen- Barnes-Holmes, 2021).
do relações que envolvam o comportamento de Uma questão muito abordada por Louise
regras aprendidas na história familiar e aquelas McHugh e colaboradores é a busca de respos-
reforçadas na sua comunidade verbal. Essas tas para a pergunta quem sou eu? colocada na
duas molduras podem se relacionar formando perspectiva de cada um de nós. E o que eles
uma rede relacional que, por sua vez, também têm demonstrado é que a partir do momento
que esse “self” vai se construindo, se derivando de mulheres acima do peso com indícios de au-
e entrando em relação com outros estímulos, toestigma relacionado ao peso.
formando as molduras, redes relacionais e a
relação entre eles, a resposta a essa pergunta Ambiente
vai se fundindo com histórias sobre nós, como A pesquisa de Rodrigues (2022) foi reali-
regras e crenças sobre o mundo e o mais impor- zada de forma virtual, por meio do WhatsApp,
tante é que muitas dessas crenças e regras que e-mail, Microsoft Forms e Microsoft Teams.
entram em relação com o “self” são muitas vezes
limitantes, impedindo que o indivíduo tenha Materiais
uma vida significativa e mais plena (Barnes- Computador, Diários Alimentares, papel,
Holmes et al., 2004; Harte & Barnes-Holmes, caneta, aplicativos Microsoft Forms, Microsoft
2021; McHugh et al., 2019). Teams e WhatsApp.
No que se refere especificamente ao au-
toestigma relacionado ao peso, Lillis e cola- Procedimento
boradores (2016) o definem como constantes O recrutamento das participantes foi re-
autocríticas depreciativas e ao desenvolvimento alizado a partir da divulgação da pesquisa por
de sentimentos de aversão e repulsa de um in- WhatsApp e e-mail. Os 53 voluntários receberam
divíduo por si mesmo, incorporando sua com- o link do Microsoft Forms com o primeiro Termo
preensão e percepção de como a sociedade o vê de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE) para
e o identifica, passando esse mesmo indivíduo concordar com a participação e, posteriormente
a reproduzir essa percepção consigo mesmo informaram peso, altura e responderam a Escala
(Lillis et al., 2016), isto é, no processo de cons- de Compulsão Alimentar Periódica (ECAP) e ao
trução do “self” em pessoas estigmatizadas, o Questionário de Autoestigma relacionado ao
foco se dirige para a criação de pensamentos e Peso (WSSQ). Dessa amostra, as mulheres acima
avaliações que reforçam sentimentos aversivos do peso que obtiveram maiores pontuações na
de desvalor e tristeza. ECAP e no WSSQ, seis aceitaram continuar par-
O presente estudo propõe uma interpreta- ticipando do estudo e receberam um link do
ção analítico comportamental, pautada na RFT, Microsoft Forms com o segundo TCLE. Em se-
de relatos verbais de autoestigma relacionados guida, as seis foram entrevistadas via WhatsApp
ao peso, identificados em diários alimentares de para obtenção de informações sobre histórico
mulheres acima do peso. pessoal e familiar. Quatro concluíram o estudo
e as duas (P1 e P2) que registraram com maior
Método frequência relatos indicativos de autoestigma
foram incluídas neste estudo.
Participantes As participantes preencheram o Diário
Alimentar diariamente por seis semanas. As
Foram objeto do presente estudo os rela-
informações solicitadas no Diário Alimentar
tos de autoestigma de duas mulheres adultas
foram: o que comia; duração da refeição; onde
com Índice de Massa Corporal (IMC) ≥ 25 (P1 e
e com quem comia; como classificava, de zero
P2) participantes de uma pesquisa conduzida
a dez, seu nível de fome, saciedade e satisfa-
anteriormente por Rodrigues (2022) que tinha
ção; acontecimento, sentimentos e/ou pensa-
como objetivo realizar avaliações funcionais de
mentos antes, durante e depois da refeição; e
episódios indicativos de compulsão alimentar
Comportamento em Foco, v. 15, cap. 6 | 104
Autoestigma do peso: interpretação analítico comportamental
Neves, Zorzetti, Rochael, Rodrigues, Castro, & Barbosa
Como tentativas de controle do peso já realizou para ela. A função apetitiva pode ser interpre-
jejum por até 15 horas durante o dia e utiliza tada como estando relacionada à fusão do eu
o sono e a ingestão de água como forma de se verbal (dêitico) ao sentimento de culpa, que ao
esquivar da fome. ser percebido, permite a evitação experiencial
A partir do relato dos dados de peso e das relações "sou gorda = sou nojenta" sendo o
altura, identificou-se que P1 apresentava índice sentimento de culpa, algo do qual ela se aproxi-
de massa corporal (IMC) de: 35,76 (Obesidade ma pensando ou falando, havendo uma função
severa grau 2) e a pontuação total obtida na emocional recorrente da qual o seu organismo
escala WSSQ foi de 54, em um total de 60 pontos, se aproxima, uma vez que funciona como re-
sendo 30 na subscala de autodesvalorização, e forçamento negativo para afastá-la do contexto
24 na de estigma social. Na ECAP a pontuação aversivo da rede relacional sentir-se nojenta.
foi 27 indicando compulsão alimentar grave. Em termos das dimensões da estrutura
No âmbito do HDML, e através das lentes HDML, a crença de P1 em sua própria inade-
do ROE em particular, os relatos de P1 (Figura 1) quação (ser gorda/nojenta) pode ser descrita
sugerem que os olhares de outras pessoas em como altamente coerente porque ela relata sen-
jantares com familiares, amigos ou no Burger sação de inadequação e exclusão, em função
Kings tem funções de orientação, ou seja, estas de estar acima do peso, desde a infância e que
situações/experiências são altamente salientes abrangem, até o momento atual, todas as áreas
para P1. Poderia se dizer que essas situações mais importantes de sua vida. A complexida-
participam das redes relacionais envolvendo o de pode ser considerada relativamente baixa
eu-dêitico (eu verbal), como eu-gorda/nojenta. porque está focada em molduras relacionais de
A orientação para essas situações, combinadas coordenação e condicionais. “se ficar sem comer
com as redes relacionais, evoca propriedades então vou emagrecer, ficar bonita e serei aceita”.
aversivas como nojo, vergonha, inferioridade, A derivação poderia ser descrita como baixa
autoaversão, restrição calórica e jejum. Em porque apresenta as mesmas suposições a res-
outras palavras, quando P1 vai ao Burger King peito do peso ao longo dos anos. A flexibilidade
e percebe que outras pessoas podem ver que também pode ser descrita como relativamente
ela está lá e está comendo fast food, ela rapida- baixa, pois P1 chega às mesmas conclusões em
mente interpreta essa situação como uma razão contextos diferentes: sempre feia, culpada, se
para se sentir nojenta o que, claro, é aversivo sentindo julgada por ser gorda e pelo que come.
No que diz respeito aos dados de P2, em conseguiu contar para a mãe quando tinha 9
um total de 151 relatos, 85 foram referentes ao anos. A mãe a culpou e a xingou. P2 conta que
autoestigma e, desses, os 62 mais frequentes quando a sua irmã fazia algo errado, a mãe a
relacionaram-se a um padrão de culpa, raiva e culpava pelos erros da irmã. Atualmente, sen-
infelicidade, como ilustrado pelos trechos “raiva te-se culpada por não amar a mãe.
porque me sinto gorda.”; “Muito culpada.”; “in- Na entrevista P2 revelou participar do
feliz por estar gorda.”; “Quero comer até explo- grupo Comedores Compulsivos Anônimos. Em
dir neste momento."; "Não quero nem pensar”; relação a sua história em relação ao peso, a
“Me sinto muito culpada e tenho vontade de primeira vez que ficou 4,5 kg acima do peso
jogar tudo para o alto e comer o mundo...tudo foi com 12 anos. Aborrece-se muito por causa
porque estou me sentindo gorda”. dos seus excessos alimentares e da sensação de
Na entrevista P2 relatou ter 52 anos, um falta de controle. No seu histórico de dietas, já
filho de 24 anos e está no segundo casamen- perdeu 9 kg ou mais e os recuperou depois: 5
to há 10 anos. É administradora, trabalhando vezes ou mais.
na área da saúde mental em tempo integral. Os dados de peso e altura relatados por P2
Mantém bom relacionamento com os colegas indicam IMC = 34,72, classificado como obesi-
de trabalho, sendo que não tem boa relação dade moderada /grau1. A, pontuação total na
com sua chefe. Seus pais são falecidos e se se- escala WSSQ foi 46, em um total de 60 pontos,
pararam quando era jovem. Ela tem uma irmã sendo 21 pontos obtidos a subscala de autodes-
com quem não tem contato próximo. Faz trata- valorização, e 21 pontos na subscala de estigma
mento para depressão há 17 anos. Considera-se social. Na ECAP P2 obteve 39 pontos indicando
uma pessoa comunicativa e engraçada, porém compulsão alimentar grave.
compreende-se como uma pessoa reservada No âmbito do HDML, e através das lentes
nas suas relações sociais. Gosta de artesanato, do ROE (Figura 2) os relatos de P2 sugerem que
cinema, dançar, visitar parques, passear, ler e comer castanhas, carboidrato e a preocupação
de animais, tem gatos e cachorros em casa. em comer no padrão “desejado/correto” tem fun-
P2 relatou que não tinha uma boa relação ções de orientação. Essas situações participam
com a mãe quando esta era viva. Aos 4 anos das redes relacionais envolvendo o eu-dêitico
sofreu violência sexual por um vizinho e só (eu-verbal), como eu-culpada. A orientação para
essas situações, combinadas com as redes rela- experimentais com reflexões teóricas a fim de
cionais, evoca propriedades aversivas (S-: culpa, sistematizar a contribuição da análise do com-
infelicidade, raiva) e apetitivas (S+:compulsão, portamento para a abordagem do preconceito
comer chocolate, guloseimas). Em outras pala- racial e também apontaram para o grande poten-
vras, quando P2 come castanhas, carboidratos cial da análise do comportamento em oferecer
e se cobra comer da forma correta, ela rapida- subsídios teóricos e metodológicos à psicologia
mente se percebe culpada o que é aversivo para social, uma vez que a RFT tem oferecido signi-
ela. ficativas contribuições para a compreensão de
Em termos das dimensões da estrutura fenômenos sociais como preconceito e estigma.
HDML, a crença de P2 em sua culpa pode ser Acentuamos também o alinhamento
descrita como altamente coerente com o tema de nossa proposta com outros dados já en-
de vida: gorda, feia, culpada. A complexida- contrados em estudos prévios (Cheung et al.,
de pode ser considerada relativamente baixa 2004; Øktedalen et al., 2015; Velotti et al., 2017;
porque está focada em molduras relacionais de Elison et al., 2006) que verificaram “problemas”
coordenação e condicionais. A derivação po- do “self” quando contaminado por autodescri-
deria também ser descrita como relativamente ções rígidas e demasiadamente controlado por
baixa porque ela se culpa por não ter controle e regras.
se culpa por não gostar da mãe, apresentando Pesquisadores que se propuseram a in-
as mesmas suposições ao longo dos anos. A fle- vestigar a vergonha e bem-estar (Cheung et al.,
xibilidade pode ser descrita como relativamente 2004; Øktedalen et al., 2015; Velotti et al., 2017;
baixa, pois P2 chega as mesmas conclusões em Elison et al., 2006) identificaram a vergonha
contextos diferentes; errada, culpada, se sen- como estando diretamente relacionada às va-
tindo gorda e feia, sem controle do que come. riáveis que são importantes para o bem-estar
psicológico. O “self” aparece como gerador da
Discussão “vergonha” e, ao mesmo tempo, aquele que
experiência esse mesmo estado, gerando pen-
O presente estudo buscou contribuir com samentos e emoções relativos à vergonha. O
evidências empíricas acerca do potencial da comportamento de autogeração para explicar o
RFT para responder às questões relacionadas processo ativo e criador de pensamentos, senti-
ao autoestigma enquanto fenômeno social mentos e avaliações, só se faz possível a partir do
e verbal que entra em coerência com relatos foco do “self” em seus próprios comportamen-
que se relacionam com o “self” (Murthy et al. tos, gerando e alterando-os ao mesmo tempo.
(2021). Nosso estudo apresenta uma abordagem Esse processo fica claro no caso do julgar-se a
inédita, haja vista nenhum outro, tanto quanto si mesmo, comportamento esse que requer que
sabemos, parece ter examinado o autoestigma o “self” se movimente na direção de focar sua
do peso enfatizando o comportamento verbal atenção e consciência em seus próprios compor-
de mulheres com relatos de autoestigma e inter- tamentos, acentuando suas falhas (Cheung et al.,
pretando-os à luz da RFT que se mostra eficaz 2004; Øktedalen et al., 2015; Velotti et al., 2017;
quanto ao seu potencial em clarear os processos Elison et al., 2006). Murthy et al. (2021), bus-
subjacentes ao estigma e autoestigma do peso. cando examinar as relações entre relatos de
Mizael e de Rose (2017) apresenta- “self”, vergonha, bem-estar e inflexibilidade
ram estudo que buscou relacionar pesquisas psicológica, reiteraram que a vergonha pode
ser vivenciada tanto externamente quanto in- a nítida compreensão entre a relação do “self”
ternamente. Enquanto experiência interna, o consigo mesmo e com os outros. Os modelos
“self” vivencia sentimentos e pensamentos a HDML e ROE possibilitam ao terapeuta anali-
partir da própria autoavaliação que os classifica sar casos complexos e problemas crônicos cujas
como ruins, não dignos de amor ou “errados”. variáveis históricas e atuais se mostram mais
Já a vergonha, enquanto experiência externa, difíceis de serem consideradas na sua plenitu-
surge da relação do “self” com os juízos gera- de. No entanto, eles advertem que o HDML e o
dos por outros em uma sociedade, que quando ROE não devem ser vistos como uma espécie de
percebidos pelo “self” como julgados negativa- protocolo ou manual a ser seguido e sim como
mente (pelos outros), impulsionam sentimentos uma base para conduzir análises funcionais
e pensamentos que demonstram um senso de verbais na tentativa contínua de conectar a
desvalorização de si mesmo, isto é, do “self” ciência básica com a aplicação e prática dessa
(Murthy et al. 2021). ciência por meio do desenvolvimento de pro-
Em 2020, Barnes-Homes e colaboradores cessos comportamentais bem definidos.
publicaram um artigo cujo principal objetivo foi Do ponto de vista específico de interven-
apresentar as mudanças de foco da psicoterapia ções para o autoestigma do peso, a Terapia de
que resultaram do modelo da RFT e seus avan- Aceitação e Compromisso (ACT), um modelo psi-
ços nos últimos anos. Com particular destaque coterapêutico analítico-comportamental, que se
para o modelo HDML e ROE, os autores afir- fundamenta na RFT (Hayes et al., 2001)., vem se
maram que os novos modelos propostos pela mostrando promissora para reduzir o impacto
RFT possibilitaram à psicoterapia voltar-se para do autoestigma (Lillis et al., 2009, Lillis & Kendra,
os processos como “um campo de interações 2014; Potts et al., 2022; Weineland et al., 2012,),
comportamentais (verbais)” (tradução direta; com melhora na qualidade de vida de pessoas
Barnes-Homes et al., 2020), reintegrando os com sobrepeso e obesidade (Lillis et al., 2016;
fundamentos da análise do comportamento e Niemeier et al., 2012), diminuição de sofrimen-
distanciando-se ainda mais do modelo médico to psicológico e do índice de massa corporal
para o qual os comportamentos representam (IMC), aumento de flexibilidade psicológica
patologias e síndromes encobertas. (Levin et al., 2018; Lillis et al., 2009), melhora
Em uma proposta de articulação entre a na depressão, desordens alimentares, imagem
clínica, com especial foco nos processos psicoló- corporal (Berman et al., 2022) e aumento da
gicos, e os novos modelos de processos baseados tolerância ao sofrimento e aceitação geral e
na RFT, Barnes-Holmes e colaboradores (2020) específica do peso (Lillis et al., 2009).
trouxeram estudos de casos de clientes que Estudos que estão sendo desenvolvidos
apresentavam sintomas como ansiedade, fobias, acerca do autoestigma do peso podem se bene-
depressão persistente e medo da desaprovação ficiar do modelo interpretativo proposto nesse
do outro. A aplicação dos modelos HDML e ROE estudo em particular e demais investigações
na proposta de tratamento, demonstrou que o que ofereçam clareza conceitual do modelo
nível de precisão dos tratamentos pode ampliar da RFT e seu potencial suporte para análises
consideravelmente de modo a produzir as mu- clínicas, considerando, também, que possam,
danças comportamentais desejadas pelos tera- a partir disso, subsidiar a criação de novos ins-
peutas. Isso se dá, segundo os autores, porque trumentos e tecnologias para as intervenções
essa articulação entre os dois modelos permite clínicas.
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Análise Funcional de
tahcitammizael@gmail.com
Ana Karina C. R. de-Farias (2)
Microagressões Raciais1 akdefarias@gmail.com
Functional Analysis of Racial Microaggressions (1)
Universidade de São Paulo
(2)
Centro de Atenção Multiprofissional
Resumo Abstract
O número de estudos da Análise do The number of studies of racial and ethnic
Comportamento sobre relações étnico-ra- relations in behavior analysis has been
ciais tem crescido ao longo dos anos. Um growing over the years. A topic that has
tópico que ainda não foi abordado pela área é not been studied in this field refers to racial
o de microagressões raciais, as quais podem microaggressions, which can be defined as
ser definidas como ofensas sutis, que ocor- racial slurs who are subtle, daily and direc-
rem diariamente, sendo perpetradas por ted at non-White people, having as perpetra-
pessoas brancas e direcionadas a pessoas tors White individuals. Therefore, the aim
não-brancas. Nesse sentido, o objetivo desse of this study was to carry out a functional
trabalho foi realizar uma análise funcional analysis of racial microaggressions, based
de microagressões raciais, com base na taxo- on the proposal by Williams et al. (2021).
nomia proposta por Williams et al. (2021). It was possible to observe, after carrying
Foi possível observar, a partir das análises out the analyses, that the consequences for
realizadas, que as consequências para a po- non-White populations may be aversive
pulação não-branca, mesmo nos casos nos in the long run, even when the immedia-
quais há reforçamento positivo imediato, te consequence is positive reinforcement.
podem ser aversivas à médio e longo prazo, This shows the importance of conducting
o que mostra a importância desse tipo de this type of analysis and, consequently, of
análise e, consequentemente, do desenvol- developing measures that could lead, in the
vimento de medidas que possam levar, no future, to a reduction in this type of violen-
futuro, a uma redução nesse tipo de violên- ce that is perpetrated by White people.
cia que é perpetrada por pessoas brancas.
Palavras-chave Keywords
1 O presente capítulo é derivado de uma palestra apresentada no XXXI Encontro Anual da ABPMC, em setembro de 2022, sob o título:
Microagressões raciais e análise do comportamento: articulações iniciais. Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
- FAPESP. Processo n. 2020/02548-07. Bolsa de pós-doutorado concedida à primeira autora.
113
Análise funcional e microagressões
Táhcita Medrado Mizael & Ana Karina C. R. de-Farias
2 Almeida (2019) define racismo como uma “forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta
por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo
racial ao qual pertençam” (p. 32).
3 Sabe-se que o termo “análise funcional” é utilizado, formalmente, para as circunstâncias nas quais uma ou mais avaliações/hipóteses
funcionais são colocadas à prova. Entretanto, levando em conta que o termo “análise funcional” é amplamente utilizado como sinônimo
de avaliação funcional, decidiu-se manter o termo “análise funcional”.
4 O movimento “Vidas Negras Importam”, ou “Black Lives Matter”, em inglês, é um movimento de ativismo com origens nos Estados
Unidos no ano de 2013 e formado por afro-americanos, cuja campanha é contra à violência direcionada às pessoas negras. O movimento
tem se expandido em outros países, como o Brasil. Para saber mais sobre o movimento, acessar: https://blacklivesmatter.com/
parar de reclamar de racismo e correr atrás a ilusão de inclusão e não pelas qualidades ou
das coisas/ir atrás dos seus sonhos”, “Nós temos talentos desse indivíduo; expectativa de que
as mesmas oportunidades”. um indivíduo entenda ou fale por todo seu
8) Racismo Reverso: Expressões de ciúme grupo étnico-racial. Essa ilusão fica clara em
ou hostilidade em torno da noção de que pes- tentativas como dizer “você, como negra, o que
soas não-brancas obtêm vantagens e benefícios acha dessa iniciativa?”, esperando que ela fale
injustos devido à sua raça. Pode-se observar, por todas as pessoas negras.
por exemplo, alguém dizer: “Os negros também 12) Conectando-se por meio de estereó-
oprimem os brancos”; ser branco e falar que tipos: Quando uma pessoa tenta se comunicar
sofreu “racismo reverso” em discussões sobre a ou se conectar com outra pessoa através do uso
existência e os danos do racismo para pessoas de fala ou comportamento estereotipado, para
não-brancas; criticar as ações afirmativas⁵, com ser aceito ou entendido. Pode incluir piadas
o argumento de que elas dão privilégios aos racistas, gírias e epitáfios como termos de ca-
negros. rinho. Exemplo: Falar “e aí, mano?”, somente
9) Patologizar a cultura minoritária ou para pessoas negras.
aparência: Quando as pessoas criticam outras 13) Exotização e erotização: Quando uma
com base em diferenças culturais percebidas pessoa não-branca é tratada de acordo com
ou reais na aparência, tradições, comporta- estereótipos sexualizados ou atenção às dife-
mentos ou preferências. Exemplo, dizer: “Você renças que são caracterizadas como exóticas de
seria a namorada perfeita se fosse branca”; não alguma forma. Isso é observado quando uma
contratar homem negro por ele usar dreads no pessoa branca se dirige a uma pessoa negra e
cabelo; dizer que religiões de matriz africana diz: “Posso tocar no seu cabelo? É tão diferen-
são “macumba” (no sentido de rituais que visam te!”; dizer “Negros são muito sensuais” sem que
fazer mal a outrem). a conversa seja sobre sensualidade ou temas
10) Cidadão de segunda classe / Ignorado relacionados; ver uma pessoa negra e falar:
e invisível: Quando as pessoas não-brancas são “Dança um funk/samba para mim”.
tratadas com menos respeito, consideração ou 14) Evitar e distanciar: Quando pessoas
cuidado do que o normalmente esperado ou não-brancas são evitadas ou medidas são to-
costumeiro. Isso pode incluir ser ignorado ou madas para evitar contato físico ou proximi-
ser invisível/não-visto. Alguns exemplos são dade. Como exemplos, não querer fazer dupla/
ser a única pessoa negra em uma loja e não grupo com pessoa negra em sala de aula ou
ser atendida, enquanto pessoas brancas são trabalho; em um ônibus cheio, ninguém se
atendidas; ser a única pessoa em um grupo de sentar em uma cadeira vazia ao lado de um
amigos chamada pela sua raça (“nega”, em vez homem negro.
do nome). 15) Exclusão ambiental: Quando a identi-
11) Tokenismo: Quando uma pessoa não- dade racial de alguém é minimizada ou torna-
-branca é incluída simplesmente para promover da insignificante pela exclusão de decorações,
5 De acordo com Feres Júnior. et al. (2018), ações afirmativas são “todo programa, público ou privado, que tem por objetivo conferir
recursos ou direitos especiais para membros de um grupo social desfavorecido, com vistas a um bem coletivo. Etnia, raça, classe, ocupação,
gênero, religião e castas são as categorias mais comuns em tais políticas. Os recursos e oportunidades distribuídos pela ação afirmativa
incluem participação política, acesso à educação, admissão em instituições de ensino superior, serviços de saúde, emprego, oportunidades
de negócios, bens materiais, redes de proteção social e reconhecimento cultural e histórico” (p. 13).
6 Blackface é a prática de pintar o rosto e/outra parte do corpo de preto para “parecer negro”. A prática se originou em peças de teatro/
shows de “comédia” onde os atores brancos se pintavam de preto para interpretar pessoas negras de maneira extremamente estereotipada
e racista.
7 Mais informações sobre a finalidade, o tipo e um passo-a-passo para realizar diferentes tipos de análises funcionais podem ser encon-
tradas em de-Farias, Fonseca e Nery (2018), Sturmey (1996/2022), Fonseca e Nery (2018), e Nery e Fonseca (2018).
|
que liberam as consequências). Possíveis processos, efeitos e impactos para pessoas brancas e pessoas não-brancas.
Na presença de uma
- Reforço negativo (esquiva): evitar
pessoa ou de um
insistência e confrontos
grupo de pessoas
Agradecer, sorrir, demons- Manter a interação, sentir que
negras “Você é uma negra
trar felicidade e ter enten- fez algo esperado ou correto na- - Sentir-se bem em curto-prazo; sentir-se mal em
de alma branca”
dido o “elogio” quele contexto (reforço positivo) longo-prazo, pois nunca será branca o suficiente para
Pessoa negra se
Análise funcional e microagressões
|
Consequências para a
Antecedentes para a Respostas da Processos e efeitos para a pessoa
pessoa branca /Respostas Impactos para a pessoa não-branca
|
Consequências para a
Antecedentes para a Respostas da
serem bem-vistos).
não-brancos.
122
Tabela 1 (continuação)
|
Consequências para a
Antecedentes para a Respostas da
2) Alguém descrever, em
pessoa negra para sentar-se ao modelos do seu grupo);
voz alta, seu comporta- 2) Sentir-se apoiado ou empoderado.
lado de pessoas
mento como racista
negras 2) Novamente, depende da história de vida
e de operações motivadoras atuais: punição
positiva (críticas) ou reforço positivo (as críti-
Análise funcional e microagressões
|
Consequências para a pessoa
Antecedentes para Respostas da Impactos para a pessoa
Nota. Esta tabela se refere às categorias 1, 2, 3, 5, 4, 6, 7, 8, 9, 10, 12, 13 e 14, descritas por Williams et al. (2021). Vale ressaltar que cada
indivíduo, branco ou não-branco, emite respostas diferentes, dependendo de sua história de vida e do contexto atual, incluindo modelos,
contato com pessoas brancas ou não-brancas, regras e autorregras, presença de determinada(s) pessoa(s) branca(s) ou não-branca(s) no
momento atual, operações motivadoras, etc.
124
Tabela 2
Possível análise molar (macroanálise) do padrão comportamental de microagressões raciais.
|
Comportamento em Foco, v. 15, cap. 7
Consequências que
Contextos fortalecem o padrão Consequências que enfraqueceriam o
Respostas que
atuais que (reforçadores positi- padrão (apresentação de punidores ou
caracterizam o História de aquisição
evocam as vos e/ou fuga-esqui- remoção/adiamento de reforçadores
padrão
respostas va de consequências positivos)
aversivas)
Modelos que apresentavam respostas semelhantes;
Regras apresentadas por figuras de autoridade;
Críticas (punição positiva) ou afasta-
Autorregras formuladas a partir do contato com pessoas não-
mento (punição negativa) por parte de
-brancas ou com contextos verbais e não-verbais de racismo;
pessoas antirracistas;
Ao longo da vida:
Respostas de empoderamento por parte
- ausência de palestrantes ou outras figuras de autoridade
Aceitação social; de pessoas não-brancas;
negros; Presença de
As categorias Pertencimento a
pessoas não-
definidas por um grupo; Risadas; Apresentação de dados que comprovem
- presença de Jesus na cruz nas escolas, hospitais e locais do -brancas;
Williams et Elogios ao seu posicio- a existência do racismo;
governo, mas nenhum símbolo de outras religiões ser permi-
al. (2021) namento (todas pro-
tido; Discussões
apresentadas vavelmente ligadas Ações afirmativas (e.g., aumento do
sobre raça e
anteriormente à sensação de estar número de pessoas negras com ensino
- ausência de imagens de pessoas negras nos livros de racismo.
certo) superior completo)
Biologia;
Afastamento de pessoas não-brancas
- prédios ou ruas com nomes de donos de pessoas escraviza-
(todas provavelmente ligadas à sensação
das (valorização dessas pessoas);
de estar errada, de constrangimento ou
Táhcita Medrado Mizael & Ana Karina C. R. de-Farias
Nota. São apresentadas algumas respostas características do padrão, possível história de aquisição dessa classe de respostas (respostas
fisicamente ou funcionalmente similares ou de equivalência), contextos atuais que evocam essas respostas e as consequências (as que
mantêm o padrão ou as que diminuiriam a sua frequência). Como ressaltado nas tabelas anteriores, cada indivíduo, branco ou não-branco,
emite respostas diferentes, dependendo de sua história de vida e do contexto atual, incluindo modelos, contato com pessoas brancas ou
não-brancas, regras e autorregras, presença de determinada(s) pessoa(s) branca(s) ou não-branca(s) no momento atual, operações moti-
vadoras, etc. Entretanto, em nosso cenário atual, é mais comum o reforçamento (positivo e/ou negativo) das respostas de microagressão
racial (por parte de pessoas brancas). Por isso, a escolha pela análise molar desse padrão.
Análise funcional e microagressões
Táhcita Medrado Mizael & Ana Karina C. R. de-Farias
Em segundo lugar, algumas pessoas outros fatores, facilitam com que essa popula-
negras, que ainda não passaram pelo proces- ção seja reforçada, mesmo em contextos nos
so de tornarem-se negras⁹ somado a ausência quais suas respostas podem ser prejudiciais.
de letramento racial podem não considerar as Por essa razão, é necessário que o letramento
microagressões raciais como ofensas, reforçan- racial seja uma realidade não só para a popula-
do-as positivamente no curto-prazo. Uma das ção não-branca, mas para todos. O letramento
características de uma pessoa com letramento racial inclui a educação sobre o processo de
racial é a habilidade de discriminar situações branqueamento da população e discussões
de racismo. Por viver em um país que vende a sobre branquitude, ou seja, sobre os privilégios
falsa ideia de democracia racial, a população simbólicos e materiais que a população branca
brasileira, de modo geral, não tem uma edu- recebe simplesmente por serem lidas como
cação sobre as relações étnico-raciais nem na brancas. O letramento racial também inclui a
escola, nem no trabalho, nem na universidade, aprendizagem sobre supremacia racial, a ideia
o que faz com que não saibam definir raça, de que os brancos são superiores e merecem
etnia e termos correlatos, tenham dificuldade melhores coisas do que os demais grupos ra-
de discriminar práticas racistas, invalidem rela- ciais (e.g., O’Brien, 2018; Schucman, 2014).
tos de pessoas não-brancas quando comentam Com relação à macroanálise realiza-
sobre episódios de racismo que viveram, entre da, esta permitiu verificar como a aquisição
outros (e.g., Mayorga, 2013; Meirelles et al., destes padrões comportamentais ocorre coti-
2018; Nascimento, 2016; Santana et al., 2018; dianamente e, portanto, como são necessários
Santos et al., 2012; Veiga, 2019). Entretanto, diversos esforços para que essas microagres-
apesar disso, em médio e longo prazo, as aná- sões sejam reduzidas em sua frequência. Ela
lises feitas neste trabalho mostram que tais situ- também permite ver a importância da visibili-
ações auxiliarão no fortalecimento de relações dade e representatividade, seja na mídia, nos
entre a população negra (e outras não-brancas) livros de Biologia ou em símbolos em escolas e
e atributos negativos (e.g., Hayes et al., 2001; hospitais. Por fim, podemos perceber a impor-
Mizael & de Rose, 2017; Sidman, 1994; Sidman tância de uma consequenciação que não seja
& Tailby, 1982) e, também, na manutenção da conivente com quaisquer práticas racistas.
estrutura racista da sociedade em que vivemos, Esse estudo parece ser o primeiro a reali-
sendo, portanto, prejudicadas, mesmo que não zar uma tentativa de análise funcional de mi-
consigam discriminar tal fato. croagressões raciais. Contudo, não é o primeiro
Em terceiro lugar, vale mencionar que o a realizar uma análise de comportamentos con-
fato de que as pessoas brancas sejam frequente- siderados racistas. Guerin (2005) realizou um
mente reforçadas por emitirem microagressões estudo que utilizou análises contextuais10/fun-
raciais não significa que a responsabilidade cionais para verificar possíveis funções de com-
pela mudança esteja nas pessoas não-brancas. portamentos considerados racistas. Inclusive,
Muito pelo contrário: o diferencial de poder, o seu foco foi no que o autor chamou de “práti-
modo como a sociedade está estruturada, entre cas racistas ‘mundanas’ ou ‘cotidianas’” (p. 47).
9 Para saber mais sobre o tornar-se negro, ler o trabalho de Souza (1983).
Nesse sentido, seriam possivelmente práticas As pessoas negras e outras não-brancas, com
muito semelhantes às chamadas de microa- base na frequência e cronicidade com a qual
gressões raciais. recebem tais microagressões, desenvolvem um
A análise feita pelo autor revela que o repertório de esquiva (experiencial) que acaba
comportamento de fazer piadas, por exem- não sendo benéfico para suas vidas. Portanto,
plo, pode ter as seguintes funções: “tentando análises sobre os impactos desse repertório
incluir; tirando sarro; uso irrefletido de este- de esquiva sobre a saúde mental de pessoas
reótipo; proporcionando ao alvo uma chance negras e outras não-brancas seria também
de se destacar; evitando uma situação incerta muito importante.
ou difícil; melhorar o status do próprio grupo; Por fim, fizemos uma breve tentativa de
supondo que você queira isso; tentando machu- analisar as consequências das microagressões
car” (p. 59). Diferentemente do nosso trabalho, raciais para as pessoas negras, e os resultados
o foco de Guerin (2016) foi em mostrar como mostraram diversos caminhos para a pesquisa:
topografias similares podem ocorrer sob dife- equivalência de estímulos/Teoria das Molduras
rentes funções e, portanto, quando pensamos Relacionais e fortalecimento da relação negro-
em intervenções, essas funções devem ser le- -negativo, diversas sensações consideradas
vadas em conta, de modo que uma intervenção negativas (e.g., mal-estar, sensação de menos-
em uma pessoa que fez uma piada racista por -valia, sensação de baixa autoestima), efeitos da
“uso irrefletido de estereótipo” seja diferente mídia (não se sentir representado), etc. Todas
de uma intervenção feita para um indivíduo essas hipóteses podem gerar linhas de pesquisa
que “queria machucar” outro. importantes para o entendimento destes efeitos
A proposta de Guerin (2016) é interes- a nível comportamental, como também para a
sante e, de certo modo, este trabalho pode ser busca de mudanças que levem à melhoria da
considerado uma continuação que olha mais saúde mental das populações não-brancas que
especificamente para um dos diversos tipos sofrem cotidianamente com as microagressões
de práticas racistas, as microagressões raciais, raciais.
verifica as possíveis funções utilizando também
os processos comportamentais e, além disso, Conclusão
pontua também possíveis consequências para
as populações não-brancas. As análises funcionais realizadas neste
Nesse sentido, estudos futuros poderiam estudo permitiram observar, grosso modo,
planejar intervenções diferenciais, a depender que as consequências das microagressões são,
das funções identificadas nos comportamen- geralmente, reforçamento positivo para quem
tos racistas, ou comparar o efeito de interven- emite a microagressão. Diferentemente, para
ções diferenciais com um modelo “padrão”. a população não-branca, mesmo nos casos nos
Adicionalmente, e especificamente com relação quais há reforçamento positivo imediato, estes
às microagressões raciais, seria interessante, levam possivelmente a consequências aver-
a partir de observações ocorridas no contexto sivas à médio e longo prazo. Nesse sentido, é
brasileiro, verificar e aprimorar as análises fun- muito importante o desenvolvimento de me-
cionais propostas aqui e, futuramente, planejar didas que possam levar, no futuro, a redução
maneiras de reduzir a frequência e impacto nesse tipo de violência que é perpetrada por
dessas microagressões em pessoas não-brancas. pessoas brancas.
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Resumo Abstract
A combinação do procedimento matching-to-sam- The combination of the matching-to-sample
ple ao responder por exclusão foi avaliada para procedure and responding by exclusion was
verificar se promove a aprendizagem da leitu- evaluated to verify whether it promotes lear-
ra e escrita de palavras e se essa aprendizagem ning to read and to write words and whether
contribui para alteração de comportamentos de this learning contributes to changing social
interação social. Participou um estudante do 5º interaction behaviors. The participant was a
ano do Ensino Fundamental. Na Fase 1, avalia- fifth-grade elementary school student. In Phase
ram-se comportamentos de interação social. Na 1, we evaluated social interaction behaviors.
Fase 2, avaliou-se o repertório inicial de leitura. In Phase 2, we assessed the initial reading re-
Foram realizadas 18 sessões de ensino de leitura pertoire and conducted 18 reading and writing
e escrita e testes das relações emergentes. Na teaching sessions, and tested emerging relations.
Fase 3, avaliaram-se a leitura das palavras de In Phase 3, we evaluated the reading of teaching
ensino e de generalização, e os comportamen- and generalization words and social interaction
tos de interação social. Na Fase 1, o participante behaviors. In Phase 1, the participant presented
apresentou isolamento social; na Fase 2, leu uma social isolation behaviors; in Phase 2, read one
de 31 palavras; na Fase 3, leu as 30 palavras de of 31 words; in Phase 3, read the 30 teaching
ensino e as 21 palavras de generalização, assim words and 21 generalization words, as well as
como apresentou redução do isolamento social. show a decrease in social isolation behaviors.
O procedimento foi eficaz na aprendizagem de The procedure was effective in learning to read
leitura e escrita de palavras e contribuiu para and write words and contributed to an increase
o aumento de comportamentos de interação in social interaction behaviors.
social.
Palavras-chave Keywords
1 O presente capítulo é derivado de um simpósio apresentado no XXXI Encontro Anual da ABPMC, em setembro de 2022, sob o título:
Matching-to-sample (MTS) e o responder por exclusão no ensino de leitura de palavras: um estudo com uma criança com dificuldades de
aprendizagem e de interação social. O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - Brasil (CAPES) - Código de financiamento 001.
129
Aprendizagem de leitura e Interação social
Ednéia Aparecida Peres Hayashi, Luciana Parisi Martins Yamaura, & Verônica Bender Haydu
Em nosso meio acadêmico é muito comum para aumentar a probabilidade de não apren-
observar crianças que não aprendem a ler e a derem esse tipo de repertório. Essas crianças,
escrever com recorrente fracasso (Mendonça muitas vezes, comportam-se de forma passi-
& Kodama, 2016), o que provavelmente coloca va e sem iniciativa e podem vir a se recusar a
as pessoas envolvidas, como as crianças e suas participar das atividades escolares. Assim, as
famílias, em situações constrangedoras e aver- crianças que não aprendem a ler e a escrever
sivas. Isso porque, segundo Oliveira (1992), o enfrentam não só problemas escolares, mas
próprio sistema escolar atribui ao estudante e também de adaptação ao meio social.
a sua família a responsabilidade pelo fracasso Pesquisas baseadas em princípios da
no processo de aprendizagem. De acordo com Análise do Comportamento têm contribuído
Oliveira (1992), os estudantes que não conse- para a compreensão dos processos envolvi-
guem acompanhar as atividades acadêmicas, dos na aprendizagem de leitura e de escrita,
em sua maioria, são considerados incompeten- produzindo resultados que podem ser úteis
tes e incapazes de atender à demanda da escola. ao desenvolvimento de estratégias de ensino
Frente ao descrédito e à marginalização, muitos eficazes e eficientes. No estudo pioneiro de
abandonam os estudos, aumentando a taxa de Sidman (1971), um jovem com microcefalia que
evasão escolar; outros podem apresentar com- já sabia escolher uma figura diante do nome
portamentos como indisciplina e agressividade ditado e dizer o nome diante da figura, foi sub-
ou baixo nível de interação social, passando a metido a um procedimento de ensino, em que
fazer parte do grupo designado “população de- ele aprendeu a relacionar palavras ditadas a
safiadora”. Essas situações, podem, no entanto, palavras impressas, num total de 20 palavras.
ser evitadas ou os problemas podem ser redu- Após esse ensino, o participante foi capaz de
zidos por meio de intervenções que promovam escolher a palavra impressa diante da figura
a aprendizagem dos repertórios acadêmicos. correspondente e escolher a figura diante da
Na avaliação dos professores, de acordo palavra impressa correspondente. Além disso,
com Marturano e Loureiro (2003), estudantes foi capaz de nomear as palavras impressas.
com “dificuldades de aprendizagem” são ava- Sidman concluiu que o participante aprendeu
liados como inquietos, briguentos, inibidos e leitura com compreensão.
sem iniciativa, com déficits nas habilidades de A partir do experimento realizado por
desenvolver e manter amizades, encerrar con- Sidman (1971), muitos estudos foram desen-
versação e interagir com colegas. Esses déficits volvidos por analistas do comportamento, em
podem ser observados durante o processo de que o modelo de formação de classes de es-
aprendizagem da leitura e da escrita, porque tímulos equivalentes foi demonstrado como
esses comportamentos são importantes para o sendo apropriado para ensinar leitura e escrita,
ajustamento das pessoas em nossa sociedade. inclusive em casos nos quais os participantes
Crianças que não aprendem a ler e a escrever, não haviam aprendido a ler por meio de mé-
segundo Condemarim e Blomquist (1989; ver todos tradicionais de ensino (ver revisões em
também Silva et al., 2014), geralmente exibem Albuquerque et al., 2021; Belisle et al., 2020;
um padrão comportamental típico, que envol- Hübner et al., 2014, Moroz et al., 2017). Em
ve desinteresse pela leitura, vindo a ter pouco alguns dos estudos, por exemplo, Bagaiolo
contato com material impresso, o que contribui e Micheletto (2004), de Rose et al. (1996),
2 Matching-to-sample é um procedimento em que determinado estímulo é apresentado como modelo e dois ou mais estímulos de compa-
ração como escolhas. A seleção do estímulo de comparação que vai com o modelo (S+), seja ele arbitrário ou não arbitrário, produz uma
consequência com valor reforçador ou um feedback positivo, enquanto a seleção do estímulo de comparação que não vai com o modelo (S-)
não produz essa consequência ou um feedback negativo. A função dos estímulos de comparação depende do estímulo-modelo apresentado,
isto é, são condicionais ao estímulo-modelo. Sidman (1994, Capítulo 5) faz uma crítica ao uso da expressão matching-to-sample na descrição
do procedimento de formação de classes de estímulos equivalentes, mas mantivemos essa expressão no presente capítulo por ser ela a mais
comumente utilizada na literatura sobre esse tema.
3 A educação básica no Brasil é dividida em ciclos. O Ciclo I equivale aos cinco primeiros anos de estudo, o Ciclo II acontece do 6º ao 9º ano do
Ensino Fundamental e o Ciclo III congrega o 1º, 2º e 3º ano do ensino médio. De acordo com a progressão continuada, o estudante é avaliado ao
longo e ao final de um ciclo. Nesse sistema, espera-se que o estudante desenvolva habilidades, competências e conhecimentos específicos.
Tabela 1
Palavras de ensino e palavras de generalização utilizadas em cada passo.
Passos Palavras de Ensino Palavras de Generalização
1 bolo*, galinha, chave chaga, bolinha
2 prego, palhaço preço, chapa
3 olho, cachorro galho, velho
4 bicicleta, cobra cabra, gorro
5 quadrado, toalha abraço, quadro
galinha, chave, prego, palhaço, olho, cachorro, chaga, bolinha, preço, chapa, galho, velho,
6
bicicleta, cobra, quadrado, toalha cabra, gorro, abraço, quadro
7 flor, estrela flecha, bicho
8 blusa, microfone crocodilo, neblina
9 passarinho, caminhão caminho, canhão
10 guarda, igreja água, bagre
11 folha, tigre grelha, gralha
galinha, chave, prego, palhaço, olho, cachorro, bi- chaga, bolinha, preço, chapa, galho, velho,
cicleta, cobra, quadrado, toalha, flor, estrela, blusa, cabra, gorro, abraço, quadro, flecha, bicho, cro-
12
microfone, passarinho, caminhão, guarda, igreja, codilo, neblina, caminho, canhão, água, bagre,
folha, tigre grelha, gralha
13 mulher, astronauta colher, trono
14 coelho, tocha alho, chato
15 livro, banheira livre, banheiro
16 chapéu, frutas chaminé, frito
17 cruz, agulha cru, falha
galinha, chave, prego, palhaço, olho, cachorro, bi- chaga, bolinha, preço, chapa, galho, velho,
cicleta, cobra, quadrado, toalha, flor, estrela, blusa, cabra, gorro, abraço, quadro, flecha, bicho, cro-
18 microfone, passarinho, caminhão, guarda, igreja, codilo, neblina, caminho, canhão, água, bagre,
folha, tigre, mulher, astronauta, coelho, tocha, grelha, gralha, colher, trono, alho, chato, livre,
livro, banheira, chapéu, frutas, cruz, agulha banheiro, chaminé, frito, cru, falha
Nota. * = Palavra definida (lida corretamente no pré-teste). Nos demais passos, cada palavra ensi-
nada era usada como palavra definida do passo subsequente.
Tabela 2
Fases, passos, procedimento e número de palavras de ensino e de generalização em cada passo.
Fases Passos Procedimento Nº de palavras
Contato inicial.
Aplicação dos inventários.
1 -
Observação de categorias de comportamentos
de interação social
- Pré-teste 31
- Pré-ensino 30
Ensino das relações AC, CE; testes das relações Uma de ensino definida, duas de ensino
1
BC, CB, BD, CD e AF indefinidas, duas de generalização
2 Idem ao anterior com outras palavras Idem ao anterior
3 Idem ao anterior com outras palavras Idem ao anterior
4 Idem ao anterior com outras palavras Idem ao anterior
5 Idem ao anterior com outras palavras Idem ao anterior
10 de ensino definidas.
6 Teste extensivo de generalização (leitura)
10 de generalização.
Sonda de leitura; ensino das relações AC, CE, Uma de ensino definida, duas de ensino
7
CF; testes das relações BC, CB, BD, CD e AF indefinidas, duas de generalização
2 8 Idem ao anterior com outras palavras Idem ao anterior
9 Idem ao anterior com outras palavras Idem ao anterior
10 Idem ao anterior com outras palavras Idem ao anterior
11 Idem ao anterior com outras palavras Idem ao anterior
12 Teste extensivo de generalização (leitura) 20 de ensino definidas 20 de generalização
Sonda de leitura; ensino das relações AC, CE, Uma de ensino definida, duas de ensino
13
CF; testes das relações BC, CB, BD, CD e AF indefinidas, duas de generalização
14 Idem ao anterior com outras palavras Idem ao anterior
15 Idem ao anterior com outras palavras Idem ao anterior
16 Idem ao anterior com outras palavras Idem ao anterior
17 Idem ao anterior com outras palavras Idem ao anterior
30 de ensino definidas.
18 Teste extensivo de generalização (leitura)
30 de generalização.
Reaplicação dos inventários.
3 Observação de categorias de comportamentos -
de interação social.
Fase 1 - Contato inicial, aplicação dos in- realizadas três sessões de 10 minutos na situa-
ventários e observação de categorias de com- ção do intervalo, sendo registrada a frequência
portamentos de interação social. Inicialmente das categorias comportamentais estabelecidas.
houve um encontro com a mãe do participante, Tais sessões foram realizadas durante três dias
em uma sala do Colégio, para esclarecer os ob- consecutivos.
jetivos da pesquisa e solicitar sua assinatura no Fase 2 - Programa de ensino de leitura e
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido escrita de palavras. O programa de ensino de
(aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da leitura e escrita de palavras foi composto por
instituição das autoras). Após a mãe concordar pré-teste, pré-ensino, procedimento de ensino
com a pesquisa, foi solicitado que respondesse de leitura e escrita, testes das relações emer-
o CBCL. Em seguida, houve um encontro com gentes, sondas de leitura, e testes extensivos
a professora, em que ela respondeu o TRF. A de leitura. Os procedimentos de matching-to-
professora informou quais eram os tipos de di- -sample (MTS) e o responder por exclusão foram
ficuldades da língua na leitura e escrita de Rui, combinados para o ensino das relações AC (pa-
tendo-se verificado que eram, principalmente, lavra ditada como modelo e palavras impressas
palavras com ch, lh, nh e r em encontros conso- como comparação), CE (palavra impressa como
nantais, como em pedra. modelo e construção dela com letras) e CF (pala-
Com a finalidade de observar e registrar vra impressa e escrita da palavra – cópia). Após
os comportamentos do participante definidos o ensino, testou-se a emergência das relações
como sendo de interação social, foi feita uma CB (palavra impressa como estímulo-modelo e
sessão de observação direta dos comportamen- figura como comparação), BC (figura como es-
tos apresentados por Rui no período do interva- tímulo-modelo e palavra impressa como com-
lo entre as aulas (recreação), no pátio do Colégio. paração), BD (figura como modelo e nomeação
Escolheu-se esse horário por ser uma situação da mesma), CD (palavra impressa e nomeação
na qual os estudantes não estavam envolvidos - leitura) e AF (palavra ditada como estímulo-
com atividades acadêmicas, sendo mais pro- -modelo e escrita - ditado).
vável a observação de interações espontâneas Pré-teste. Teste de leitura que objetiva-
entre eles. Foram anotados de forma cursiva os va o estabelecimento da linha de base e que
comportamentos relacionados à interação de consistia na apresentação de 31 palavras im-
Rui com outros estudantes, além de comporta- pressas, individualmente, em folha de papel,
mentos de isolamento. Após esse registro ela- solicitando-se a leitura de cada uma. Não havia
borou-se uma lista de categorias comportamen- consequências para as repostas durante o teste.
tais referentes a comportamentos de interação, A única palavra lida pelo participante foi bolo.
com base na proposta de del’Homme, Sinclair A partir desse pré-teste, as 30 palavras não lidas
e Kasari (1994). Tais categorias foram: perma- foram selecionadas para o programa de ensino
nece sozinho; permanece calado, na presença de (ver Tabela 1).
meninos; aproxima-se de meninos; aproxima-se Pré-ensino. Figuras correspondentes
de meninas; conversa com meninos; conversa às palavras selecionadas para o programa de
com meninas; conversa com adultos; meninas ensino eram apresentadas uma a uma e solici-
se aproximam de Rui; meninos se aproximam de tava-se ao participante que as nomeasse. Esta
Rui; empurra ou dá “rasteira” em outros meninos; etapa teve como objetivo verificar se ele era
brincadeiras com meninas. Em seguida, foram capaz de nomear corretamente as figuras. Se ele
apresentasse erro, a pesquisadora dizia o nome definido, permitindo a escolha da palavra im-
correto. No caso de acerto, passava-se para a pressa que correspondesse ao estímulo-modelo,
próxima figura, sem apresentar consequências. por exclusão. O procedimento do ensino das
Procedimento de ensino de leitura e relações AC nos passos subsequentes era igual
escrita (matching-to-sample e o responder ao descrito aqui.
por exclusão). Consistiu em 18 sessões (aqui O ensino da relação CE (palavra impressa
denominadas passos), com duração aproxima- como estímulo-modelo e construção da pala-
da de 60 minutos cada, realizadas duas vezes vra com letras) consistia em apresentar ini-
por semana. Nos Passos 1, 2, 3, 4, 5, 7, 8, 9, 10, cialmente a palavra BOLO (estímulo-modelo
11, 13, 14, 15, 16 e 17 eram ensinadas duas definido) e letras impressas que compõem a
palavras de ensino, uma por vez, sendo um dos palavra como estímulos de escolha aleatoriza-
estímulos de escolha uma palavra definida. O das em diferentes posições. As palavras foram
MTS com a condição de emitir respostas por ensinadas uma a uma, solicitando-se que a pa-
exclusão (AC) era seguido pela construção de lavra apresentada como estímulo-modelo fosse
palavras (CE) e o ensino da relação CF (cópia – formada com essas letras, com duas tentativas
introduzida a partir do Passo 7), seguidos pelos para cada estímulo-modelo. Cada resposta
testes de equivalência (BC, CB, BD, CD e AF). Os correta era seguida de consequências verbais
Passos 6, 12 e 18 consistiram em testes exten- como as descritas anteriormente. Sondas de
sivos de leitura. leitura da palavra ensinada no Passo anterior
O ensino da relação AC (palavra ditada eram realizadas no início de cada passo.
como estímulo-modelo e palavras impressas O ensino da relação CF (palavra impres-
como estímulos de comparações) foi iniciado sa como estímulo-modelo e cópia manuscrita)
com a apresentação da palavra ditada bolo (es- foi introduzido a partir do Passo 7. Justifica-se
tímulo-modelo definido) e duas palavras im- devido ao fato de que o participante não estava
pressas como estímulos de comparação, sendo conseguindo ler todas as palavras de generali-
uma o estímulo definido BOLO. As respostas zação dos passos até então executados. Diante
corretas eram seguidas de consequências ver- da palavra impressa correspondente às pala-
bais como: “muito bem”, “é isso mesmo”, e as vras de ensino, era solicitado ao participante
respostas incorretas não tinham consequência. que escrevesse a palavra (cópia). Cada palavra
Após cada acerto ou erro, passava-se à tenta- era apresentada separadamente após o ensino
tiva seguinte. A palavra cuja resposta estava da relação CE. Era feita uma única tentativa
incorreta, era reapresentada no final do passo. com cada palavra.
Depois de seis tentativas corretas, mudando Os testes das seguintes possíveis relações
as posições das palavras impressas, a pala- emergentes foram realizados: BC, CB, BD, CD,
vra de ensino nova era apresentada por seis AF. Nos testes não havia consequências para
tentativas como estímulo-modelo. No caso de as respostas. O Teste BC, por exemplo, iniciou
ser emitida uma resposta incorreta, toda essa com a apresentação da figura definida como
parte do Passo era repetida, até atingir 100% estímulo-modelo e duas palavras impressas
de acerto. Após o primeiro pareamento, uma como comparação. Eram apresentadas seis
segunda palavra de ensino nova (indefinida) tentativas para cada estímulo-modelo. Em
era introduzida, sendo a palavra de ensino seguida, dava-se início ao novo pareamento.
do Passo anterior apresentada como estímulo No Teste CD, cada palavra de ensino e cada
Tabela 3
Porcentagem de respostas corretas nos testes realizados no final de cada passo do procedimento
de ensino.
Relações Testadas
CD
Passo
BC CB BD Pal. de Pal. de AF
Ensino Generalização
1 100 100 100 100 50 -
2 100 100 100 100 50 0
3 100 100 100 100 75 100
4 95 100 100 100 0 0
5 100 100 100 100 25 0
7 100 100 100 100 0 50
8 100 100 100 100 100 100
9 100 100 100 100 50 100
10 100 100 100 100 100 100
11 100 100 100 100 75 100
13 100 100 100 100 50 50
14 100 100 100 100 100 100
15 100 100 100 100 100 50
16 100 100 100 100 75 100
17 100 100 100 100 75 100
120
houve um aumento do número de respostas
100
corretas, sendo que de 18 palavras apresenta- 80
das somente duas foram lidas incorretamente. 60
20
10 car com outras crianças. Na categoria referente
0
to a s
sã
o
ia
is to ão nt
e
iv
o à “comportamento delinquente” ocorreu um
en át
ic s c en nç e s
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ep a sS ns e
A
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gr pequeno aumento no escore, embora continue
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ix
sendo classificado na faixa não-clínica. Esse au-
a
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u sie Pr m
a bl Co
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A Pr
Pr
o b
mento está relacionado à informação fornecida
pela mãe de que a preferência de Rui após in-
Pré-intervenção Pós-intervenção
tervenção passou a ser a de estar na companhia
90
TRF de crianças mais velhas. Na avaliação inicial, a
80
70 mãe respondeu que ele preferia a companhia
60
de crianças mais novas. Quanto aos resultados
50
40 do TRF, verifica-se que houve diminuição de
30
13 pontos no escore referente ao isolamento,
Escores
20
10 passando da faixa clínica para a não-clínica. De
0
s is te
acordo com o relato da professora, Rui estava
to a ão ia to ão n iv
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apresentando, após a intervenção, um número
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maior de verbalizações e estabelecendo novas
s m D
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A
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em Pr amizades.
Pr
Os dados do registro da observação re-
Categorias comportamentais
alizadas na situação do intervalo das aulas
Figura 2. Escores no CBCL (parte superior da são apresentados na Tabela 4, na qual pode-se
figura) e no TRF (parte inferior da tabela) nas verificar que um maior número de compor-
fases de pré e pós-intervenção, a partir das res- tamentos relacionados ao isolamento, como
postas dadas pela mãe (CBCL) e a professora do permanecer sozinho no horário do intervalo
participante (TRF). ou estar na companhia de outros meninos, mas
permanecer calado, eram apresentados pelo
Os dados referentes aos inventários CBCL e TRF participante e que as brincadeiras e diálogos
respondidos antes (Fase 1) e após (Fase 3) o pro- ocorriam mais frequentemente com meninas.
cedimento de ensino pela mãe e a professora Após a intervenção houve redução na emissão
de Rui encontram-se, respectivamente, na parte de comportamentos de isolamento, além de
superior e inferior da Figura 2. Para a classifi- aumento de diálogo com meninos. O aumento
cação dos resultados considerou-se, conforme na emissão de comportamentos de empurrar
Achenbach (1991), que escores acima de 71 e dar “rasteira” pode estar relacionado ao fato
correspondem à faixa clínica, isto é, que requer de que Rui passou a interagir mais com os me-
intervenção terapêutica, e abaixo de 66 à faixa ninos, o que antes não ocorria. De forma geral,
observa-se que houve aumento de interação sessões de uma hora, a aprendizagem de leitura
social de Rui com outros meninos e com adultos. de 30 palavras de ensino com encontros conso-
nantais, bem como a leitura de 21 palavras de
generalização. Além disso, houve aumento na
Tabela 4
frequência de comportamentos de interação
Frequência de comportamentos de interação
social de Rui no contexto familiar e escolar,
social.
conforme dados dos inventários CBCL e TRF,
Frequência de
assim como a partir das observações realizadas
Categorias de Comportamentos
Comportamentos nos intervalos das aulas.
Antes Após
I I O programa desenvolvido, que repro-
Permanece sozinho 12 6 duziu em parte o que foi proposto por de
Permanece calado, Rose et al. (1989), permitiu a aquisição de rela-
11 4
na presença de meninos ções entre palavras ditadas e palavras impres-
Aproxima-se de meninos 0 3 sas com 100% de acertos em todos os passos do
Aproxima-se de meninas 0 0
Ensino AC. Nos testes das relações CB e BD, Rui
Conversa com meninos 5 25
acertou 100% em todos os passos e nos testes
Conversa com meninas 6 0
da relação BC apresentou um erro no Passo 4.
Conversa com adultos 0 2
Esses resultados corroboram os estudos como
Meninas aproximam-se dele
(sem diálogo)
0 2 o de Rose et al. (1989), Melchiore et al. (1992) e
Meninos aproximam-se dele
Sidman (1971), demonstrando que o ensino de
5 2
(sem diálogo) pelo menos duas relações condicionais leva à
Empurra ou dá “rasteira” em emergência de relações que não foram direta-
3 6
meninos
mente ensinadas, o que caracteriza a produti-
Brincadeiras com meninas 8 2
vidade do ensino.
Legenda: I = Intervenção. A aprendizagem com um baixo número
de respostas de escolha incorretas foi provavel-
Discussão mente decorrente do arranjo de contingências
estabelecido nas tentativas de ensino em que
Este estudo visou avaliar se o ensino re- o responder por exclusão foi viabilizado. Um
alizado por meio do procedimento MTS com- estímulo definido era apresentado como estí-
binado ao arranjo de contingências que via- mulo-modelo e o participante pôde excluir o es-
bilizam o responder por exclusão promoveu tímulo de comparação indefinido, escolhendo
a aprendizagem de leitura e de escrita, bem o estímulo de comparação definido. A exclusão
como verificar se houve alteração no padrão desse tipo, de acordo com de Rose et al. (1996),
de comportamentos de interação social após é uma forma de garantir que o controle de es-
essa aprendizagem. A avaliação do repertório tímulos não seja feito, exclusivamente, pelo
inicial de leitura demonstrou que o participante estímulo negativo.
leu corretamente apenas uma palavra das 31 A leitura de palavras de generalização
apresentadas no teste. Verificou-se ainda que o provavelmente foi facilitada pelo ensino de
ensino de leitura e escrita por meio da combi- construção de palavras. Para construir corre-
nação dos procedimentos de matching-to-sam- tamente as palavras deve-se prestar atenção a
ple e de escolha por exclusão promoveu, em 18 cada letra e sílaba. Esse procedimento ajuda a
discriminar essas letras e sílabas quando apa- Contudo, espera-se que o fato de ter havido um
recem nas palavras novas, indicando o controle aumento no envolvimento do participante nas
por unidades textuais mínimas. A leitura de pa- atividades em sala de aula contribua para de-
lavras de generalização depende também do senvolver a fluência necessária.
número de palavras ensinadas em que a posi- Antes da intervenção verificou-se que
ção das sílabas tenha sido variada (D’Oliveira Rui apresentava comportamentos de isolar-
& Matos, 1993), o que pode ser uma das expli- -se e quietude, permanecendo, no contexto
cações para o baixo índice de acertos nos testes de intervalo, a maior parte do tempo sozinho
iniciais de leitura de palavras de generalização ou quando estava com outros meninos ficava
do participante do presente estudo. No entanto, calado. A interação social mais frequente era
verificou-se que após alguns passos, o partici- com meninas. No meio familiar, segundo dados
pante leu as palavras tigre, mulher e cruz que da mãe, recusava-se a falar grande parte do
seriam ensinadas naqueles passos (11, 13, e 17). tempo. Após a intervenção, houve um aumen-
Essas palavras não são compostas por sílabas to de interação social com outros meninos e
que foram anteriormente ensinadas no pro- redução de comportamentos de isolamento e
grama, mas todas as letras, com exceção do z, quietude, conforme os dados dos inventários
e o encontro consonantal lh, faziam parte das e os dados das sessões de observação. Além
palavras de ensino anteriores. Isso pode indi- disso, a mãe de Rui relatou que ele passou a
car que estava começando a ocorrer o controle conversar mais com a família e brincar com os
pelas letras e não somente pelas sílabas. Além vizinhos, além de brincar com crianças mais
disso, deve-se considerar que Rui possuía um velhas. Esse resultado corrobora os dados do
repertório inicial de leitura adquirido em sala estudo de Marturano e Loureiro (2003), o qual
de aula o qual, provavelmente, contribuiu para demonstrou que estudantes com “dificulda-
esses resultados. O comportamento de escrever des de aprendizagem” são avaliados como in-
corretamente diante do estímulo oral (ditado) quietos, briguentos, inibidos e sem iniciativa,
passou a ocorrer com a introdução, no Passo 7, com déficits nas habilidades de desenvolver e
da tarefa de copiar a palavra. Esse resultado manter amizades, encerrar conversação e in-
está de acordo com Skinner (1957), que propôs teragir com colegas. A aprendizagem de leitura
que as habilidades de leitura e escrita são re- permite aos indivíduos novas interações com
pertórios distintos. o ambiente à medida que possibilita contato
Com base nos relatos apresentados pela com novas contingências de reforço (Rosales-
professora, a aprendizagem da leitura contri- Ruiz & Baer, 1997). Rui estava no 5º ano e as
buiu para aumentar a participação de Rui na habilidades de leitura e escrita de palavras são
sala de aula, em atividades que envolviam esse adquiridas, pela maioria das crianças, no 1º
tipo de repertório. Houve também um melhor ano, o que provavelmente contribuiu para o
desempenho e maior envolvimento em tarefas desenvolvimento de comportamentos denomi-
de escrita em sala de aula. Como o trabalho foi nados de autoestima rebaixada, por exemplo,
desenvolvido em um espaço curto de tempo e o isolamento social (Matos, 1992). O fato de Rui
somente com palavras, houve melhora na lei- ter conseguido adquirir uma habilidade básica,
tura de palavras, mas não necessariamente na levou-o a se envolver nas atividades de sala de
fluência da leitura de palavras e de sentenças, o aula.
que requereria um procedimento mais extenso.
(1)
Universidade Federal de São Carlos
(2)
University of Virginia
(3)
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(4)
Queens College
Resumo Abstract
Revisamos a literatura atual sobre a Interview- We reviewed the current literature on the
Informed Synthesized Contingency Analysis Interview-Informed Synthesized Contingency
(IISCA; Hanley et al., 2014) para identificar di- Analysis (IISCA; Hanley et al., 2014) to identi-
ferentes modificações procedimentais desse fy different procedural modifications with this
modelo de análise funcional. O formato de aná- functional analysis format. The IISCA functional
lise funcional IISCA possui várias características analysis format has several key characteristics,
principais, como aplicação rápida, possuindo such as quick application, having only two con-
apenas duas condições (teste e controle), fazen- ditions (test and control), the use of synthesized
do uso de contingências sintetizadas e utilizan- contingencies and mathched condition. Since
do condições pareadas. Desde 2014, o IISCA foi 2014, the IISCA has been modified to address
modificado para abordar diferentes contextos different clinical settings, such as the treatment
clínicos, como o tratamento de problemas de of problem behavior in a trauma-informed
comportamento em uma abordagem de aten- care approach, the assessment and treatment
dimento informado sobre o trauma, avaliação of severe problem behavior, or in a very brief
e tratamento de problemas graves de compor- single-session format. In this review, we discuss
tamento ou em um formato muito breve de the how the IISCA has been modified for use in
sessão única. Esta revisão discute como o IISCA different clinical models.
foi modificado para uso em diferentes modelos
clínicos.
Palavras-chave Keywords
1 O presente capítulo é derivado de um simpósio apresentado no XXXI Encontro Anual da ABPMC, em setembro de 2022, sob o título:
Diferentes tipos de aplicação da Análise Funcional IISCA.
145
IISCA modifications
Felipe Magalhães Lemos, Rachel Metras, Henrique Costa Val, & Joshua Jessel
Ainda que não haja relação causal entre não exijam muita tecnologia para serem con-
comportamento-problema e diagnósticos duzidas e são relativamente simples de imple-
como transtorno do espectro autista (TEA) mentar (Oliver et al., 2015; Roscoe et al., 2015).
(Weiss et al., 2012) e deficiência intelectual No entanto, esse tipo de avaliação não possui
(Simó-Pinatella et al., 2017), comportamentos boa validade para informar a função de
como birras, agressão, automutilação e desti- comportamentos-problemas, sendo que
tuição de propriedade ainda são predominan- apenas levantam hipóteses e muitas vezes
tes entre essas populações. Quase todas (94%) levam a falsos positivos (Camp et al., 2009;
as pessoas com autismo (Jang et al., 2011) e Contreras et al., 2022; Lerman & Iwata, 1993;
93,7% das pessoas diagnosticadas com TEA e Thompson & Iwata, 2007). A metodologia de
deficiência intelectual (McTiernan et al., 2011) avaliação mais precisa disponível para avaliar
apresentaram uma ou mais formas de com- esse tipo de comportamento é a análise funcio-
portamentos-problema. Esses comportamen- nal (Beavers et al., 2013; Hanley et al., 2003).
tos podem afetar negativamente a pessoa com Esta ferramenta analítica comportamental
TEA ou deficiência intelectual e impedi-la destina-se a manipular experimentalmente
de se envolver significativamente com suas estímulos antecedentes e consequentes que
comunidades. Portanto, o comportamento- possam influenciar a ocorrência do com-
-problema é muitas vezes uma das maiores portamento-problema (Nohelty et al., 2021).
preocupações para os pais e professores de Dado que a análise funcional é a tecnologia
pessoas com autismo (Kokkinos & Kargiotidis, mais precisa, seria razoável suspeitar que
2016; Walsh et al., 2013; Westling, 2010). seria amplamente utilizada por outros pro-
Ao longo dos anos, os pesquisadores fissionais certificados, mas pesquisas recen-
propuseram muitos métodos diferentes para tes apontam que apenas cerca de 10% dos
avaliar as condições sob as quais o compor- participantes (analistas do comportamento e
tamento-problema pode ocorrer, entre eles professores) relatam usar análises funcionais
as avaliações indiretas (entrevistas ou formu- na maioria das vezes em que precisa tratar
lários preenchidos sem a observação direta comportamento-problema (Oliver et al., 2015;
do comportamento), avaliações descritivas e Roscoe et al., 2015). Esses achados foram re-
análise funcional (Cooper et al., 2019). Um plicados por (Lemos et al., s.d.), que consta-
dos métodos de avaliação mais acessíveis é tou que apenas aproximadamente 25% dos
a avaliação funcional descritiva, que requer profissionais brasileiros (analistas do com-
que um clínico colete dados anedóticos sobre o portamento, psicólogos, professores, fonoau-
comportamento-problema de um participante diólogos e outros) relatam usar na maioria
por meio de observações diretas enquanto o das vezes a análise funcional para informar
avaliador registra os eventos antecedentes e os tratamentos de comportamento-problema.
consequentes possivelmente relacionados ao Quando perguntados por que eles não esta-
alvo (Britto et al., 2020). As avaliações descriti- vam usando análises funcionais em suas prá-
vas são o formato de avaliação funcional mais ticas, os participantes da pesquisa americana
utilizado nos Estados Unidos, talvez porque relataram que as barreiras mais significativas
2 O uso dos termos “tecnológico” e “tecnologia”, ao longo do texto, se refere aos recursos tecnológicos como computadores, softwares e
robôs. Outro uso comum destes termos é para se referir a procedimentos e técnicas desenvolvidas no âmbito da Análise do Comportamento
Aplicada.
muitas vezes os gráficos demonstram baixa di- reforçadores (positivos e negativos) são libera-
ferenciação entre uma função e outra, levando dos apenas contingentes à ocorrência de com-
a reaplicações para ter resultados claros. portamentos-problema. Condições pareadas
Procedimentos informados: todos os reduzem as confusões ao eliminar variáveis
estímulos e respostas programados na IISCA estranhas entre as condições, ou seja, ao invés
devem ser indicados na entrevista (deve ser de usar uma condição de controle com acesso a
sempre realizada) e/ou observados durante itens menos preferidos para testar uma condi-
um período de observação estruturada. Isso ção de demanda, a IISCA utiliza uma condição
quer dizer que a análise funcional é indivi- de controle com acesso a atenção de qualida-
dualizada para cada participante, e não é um de sem demanda para testar uma condição de
conjunto geral de procedimentos. Em teoria, teste sem atenção e com demanda.
existem tantas condições diferentes de teste e Classe de contingência aberta: uma
controle na IISCA quanto há clientes sendo en- classe de contingência aberta deve incluir
caminhados para análises funcionais. Atentar todas as topografias de comportamento-pro-
aos detalhes únicos das experiências de cada blema ou precursor (aquele comportamento
participante pode melhorar a validade ecoló- que ocorre antes do mais severo e que está
gica e, potencialmente, a precisão da análise. funcionalmente relacionado ao alvo) que os
Contingências sintetizadas: as contin- cuidadores relatam podendo co-ocorrer na
gências são sintetizadas da mesma forma que análise funcional. Qualquer dessas topografias
são relatadas como ocorrendo naturalmente, devem ser reforçadas na primeira instância de
o que pode aumentar a validade ecológica qualquer ocorrência. Especificar apenas uma
da análise. As contingências sintetizadas pro- topografia de comportamento-problema ou
gramadas na IISCA incluem frequentemente analisar a relação precursora antes da análise
reforço negativo e positivo. Por exemplo, se funcional parece ser desnecessário. Em recente
um pai relata que seu filho grita sempre que é pesquisa Warner et al. (2020) demonstrou que
solicitado a parar de brincar com seus brinque- comportamentos relatados como co-ocorrentes
dos e iniciar suas tarefas, a condição de teste quando incluídos na IISCA poderiam melhorar
em um IISCA emularia esse contexto, pedindo a segurança durante a análise funcional com
à criança para começar as tarefas e parar de eficiência para indicar a função sintetizada do
brincar, em seguida, permitindo que a criança comportamento-problema, sem perder quali-
mantenha o acesso a seus brinquedos e evitasse dade no controle.
as tarefas contingentes aos gritos. Neste exem-
plo, gritar leva ao reforçador negativo quando A entrevista
as tarefas são removidas e ao contato com o O componente de entrevista da IISCA
reforçador positivo quando os brinquedos são reúne informações sobre o comportamento-
reapresentados. -problema do participante, incluindo quais
Condições pareadas: a única diferença eventos ou situações parecem desencadear o
entre as condições de teste e controle é a con- comportamento e quais consequências tendem
tingência programada. Durante a condição de a seguir essas respostas. As informações coleta-
controle, os participantes mantêm o acesso a das na entrevista podem então ser usadas para
todos os reforçadores putativos incontingen- desenvolver uma hipótese sobre a função do
temente. Durante a condição de teste, todos os comportamento-problema. A hipótese é então
min (Jessel et al., 2018). Esse formato consiste 0.20 Sessão Única
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Thompson, R. H., & Iwata, B. A. (2007). A com-
parison of outcomes from descriptive
Resumo Abstract
Propõe-se apresentar, para fins de ampla discus- It is proposed to present, for the purposes of ex-
são e escrutínio pela comunidade de analistas do tensive discussion and scrutiny by the commu-
comportamento e de envolvidos no atendimento ao nity of behavioral analysts and those involved in
transtorno do espectro do autismo (TEA) e outros the care of autism spectrum disorder (ASD) and
atrasos no desenvolvimento, um modelo desenvol- other delays in development, a model developed
vido no Brasil de atendimento terapêutico analítico- in Brazil of analytical-behavioral therapeutic care
-comportamental em educação física que configure in physical education that configures the transdis-
a estrutura transdisciplinar. Especificamente, obje- ciplinary structure. Specifically, the objective is to
tiva-se descrever operacionalmente o processo de operationally describe the process of individuali-
prescrição particularizada de exercícios físicos por zed prescription of physical exercises by physical
profissionais de educação física (PEF), que possam education professionals (PEF), who can compose
compor equipes terapêuticas ABA de atendimento ABA therapeutic teams of attendance to ASD, taking
ao TEA, tomando como referência objetivos levan- as reference objectives raised from the behavioral
tados a partir da avaliação comportamental de evaluation of development VB-MAPP. To this end,
desenvolvimento VB-MAPP. Para tanto, contextu- the role of PEF is contextualized in a proposal of
aliza-se o papel de PEF em uma proposta de sua its composition in the structure of inter and trans-
composição na estrutura de atendimento inter e disciplinary care, its importance and collaborative
transdisciplinar, sua importância e possibilidades possibilities, as well as the decision-making pro-
colaborativas, bem como o processo de tomada de cess on the target behaviors of the intervention,
decisão sobre os comportamentos-alvo da interven- documentation and performance records and the
ção, documentação e registros de desempenho e contingencies of reinforcement as a function of the
as contingências de reforçamento em função dos performances of these target behaviors during the
desempenhos destes comportamento-alvo durante practice of physical.
prática de exercícios físicos.
Palavras-chave Keywords
atividade física; linguagem; avaliação do desenvol- Physical activity; language; developmental evalua-
vimento; prática interdisciplinar; análise do com- tion; interdisciplinary practice; analysis of applied
portamento aplicada. behavior.
1 O presente capítulo é derivado da combinação de duas apresentações realizadas no XXXI Encontro Anual da ABPMC - Palestra “Análise
funcional na seleção de comportamentos-alvo para intervenção transdisciplinar em educação física ao TEA”, realizada dia 09/09/22, e
Simpósio “Experiências nacionais de atendimento inter e transdisciplinar ABA ao TEA: interação Psicologia, Terapia ocupacional e Educação
Física”, ocorrido dia 08/09/22.
159
Exercício físico na terapia do autismo
Chereguini, Pires, Leão, Ribeiro, Galvão, Assis, & Ohara
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é Embora possa ser difícil discriminar quais
caracterizado por déficits persistentes na comu- comportamentos estão relacionados a qual
nicação e interação social e por padrões restri- condição, didaticamente o alvo do tratamento
tos e repetitivos de comportamentos, interesses do TEA se configura pelo ensino dos compor-
ou atividades (DSM-5; American Psychiatric tamentos que abordam particularizadamente
Association [APA], 2014). Comumente indiví- os core features de cada pessoa com autismo,
duos com TEA apresentam uma diversidade ou seja, os prejuízos associados à essas carac-
de prejuízos associados à essas características terísticas principais que tipificam o transtorno.
principais, conhecidas como core features, que Em razão da complexidade da sintomatologia
sob livre tradução poderíamos entender como e da onipresença de comorbidades nessa po-
“principais características” ou as “característi- pulação, o sucesso do tratamento exige colabo-
ca que tipificam o transtorno” (Braga-Kenyon, ração interdisciplinar (La France, et al, 2019),
Kenyon & Guilhardi, 2015; Ahearn & Tiger, entre profissionais com diferentes formações
2013; Bowman, Suarez & Weiss, 2021), as (Bownan et al., 2021; Cox, 2012; Kelly & Tincani,
quais guiam a seleção dos objetivos de atua- 2013; Koening & Gerenser, 2019; Newhouse-
ção de profissionais de diferentes formações Oisten, et al., 2017; Rogers, 2001).
acadêmicas ou domínios de conhecimento Na composição dessa equipe, a literatu-
(Kwee et al., 2009). ra da área destaca a atuação de profissionais
Associados aos core features, pessoas com da análise do comportamento, psicologia,
TEA frequentemente apresentam comorbida- terapia ocupacional, fonoaudiologia, saúde -
des psiquiátricas como, por exemplo, trans- como enfermeiros, dentistas, fisioterapeutas,
torno de ansiedade, transtorno depressivo, nutricionistas, medicina, incluindo pediatras,
transtorno de oposição desafiante, transtorno neurologistas, psiquiatras, além de, educadores
de conduta, transtorno de déficit de atenção e especiais, assistentes sociais e de conselheiros
hiperatividade, transtorno de toque, transtorno de saúde mental (Braga-Kenyon et al., 2015;
obsessivo-compulsivo e transtorno de humor Cox, 2012; LaFrance et al., 2019). Isso posto,
(LaFrance et al., 2019). Além das referidas constata-se a ausência de profissionais de edu-
comorbidades, diversas condições de saúde cação física (EF) nas descrições de equipes de
também podem se combinar aos core features, intervenção, embora muitas áreas de desenvol-
tais como complicações gastrointestinais, trans- vimento possam ser atendidas por estes profis-
torno de sono, transtornos convulsivos, entre sionais. A ausência de citação destes profissio-
outros (Bowman et al., 2021; Dillenburger, nais na equipe pode se dever ao fato de que as
2011; LaFrance et al., 2019; Strunk et al., 2017). principais pesquisas sobre o assunto não são
A ocorrência dessas várias condições conco- produzidas no Brasil e também por esta forma-
mitantes geram um impacto significativo no ção acadêmica e currículo de graduação em EF
padrão comportamental e nas funções cog- não existir na maioria dos países na América
nitivas dessas pessoas. Todo esse quadro se do Norte, Europa e Ásia. Além disso, o êxito do
estabelece de forma combinada e deve ser alvo tratamento também demanda que os profissio-
de atendimento (Braga-Kenyon et al., 2015; nais estejam capacitados (Freitas, 2022) e atu-
Dillenburger, 2011; LaFrance et al., 2019; ando de forma entrelaçada e harmônica para
Strunk et al., 2017), aumentando, assim, o de- abordar tanto as core features como os quadros
safio clínico (LaFrance et al., 2019). associados ao TEA (Cox, 2019; Kelly & Tincani,
2013; LaFrance et al., 2019; Strunk et al., 2017; possível encontrar desde atendimentos desco-
Koening & Gerenser, 2019; Bowman, Suarez & nectados ou desarticulados a equipes interdis-
Weiss, 2021). Ainda que haja quase consenso ciplinares totalmente coordenadas e integradas
de que esses profissionais necessitam estar qua- (LaFrance, et. al., 2019). D'Amour et al. (2005)
lificados, observa-se que, no Brasil, os cursos descreveu esse espectro de colaboração como
de graduação contemplam pouca ou quase ne- um continuum de autonomia profissional va-
nhuma formação a respeito do TEA ou sobre riando em graus de interdependência
o atendimento em equipe voltado para o TEA Termos como atendimento "multidisci-
(ABPMC, 2017; La France et al., 2019). plinar", "interdisciplinar" e "transdisciplinar"
De acordo com Bowman et al. (2021), são frequentemente usados para se referir
esses profissionais podem encontrar oportu- às configurações dessas equipes e de suas
nidades de trabalhar em colaboração para me- práticas colaborativas interprofissionais
lhorar os resultados educacionais e de saúde de (D'Amour et al., 2005). Bowman, et al. (2021)
indivíduos com TEA. A colaboração em equipe destacam que, embora esses termos possam
(Dillenburger et al. 2014; Smith, 2014) tem sido ser erroneamente usados como sinônimos,
descrita como uma configuração essencial no cada termo indica um grau diferente dentro
tratamento. A colaboração coesa, no entanto, de um espectro de colaboração entre os profis-
nem sempre é facilmente alcançada, e muitos sionais da equipe. O termo “interprofissional”
indivíduos acabam recebendo serviços de es- é descrito como genérico, referente a todos os
pecialistas que não estão efetivamente se co- modelos que envolvem dois ou mais profissio-
municando ou coordenando tratamentos em nais representando diferentes disciplinas, tra-
diferentes profissões (LaFrance, et al., 2019), balhando no tratamento ou em avaliação junto
além disso, confusões sobre o que deve defi- a um cliente, não necessariamente de forma
nir as configurações de equipe de intervenção compartilhada, já os termos como “multidisci-
comumente ocorrem. Salientamos que a força plinar”, “interdisciplinar” e “transdisciplinar”
desses sistemas de apoio, ou configurações de referem-se a modelos específicos de colabora-
equipe, não consiste apenas na experiência e ção. O termo multidisciplinar abarca profissio-
capacitação dos profissionais individualmente, nais de áreas diferentes que atuam de forma
mas também, e principalmente, no grau em que individual e os objetivos são específicos dentro
os profissionais de diferentes disciplinas colabo- de suas disciplinas e, desta forma, há limita-
ram entre si para fins convergentes (Gerenser ções em compreender fenômenos que afetam
& Koenige, 2019). O formato que configura as diretamente o cliente em vários aspectos coti-
relações entre os profissionais que dão suporte dianos (Bowman et al., 2021). Os profissionais
à pessoa com TEA afeta diretamente os resulta- trabalham em paralelo com ênfase no desen-
dos das intervenções (Brodhead, 2015; Luiselli, volvimento solitário de metas e intervenções
2015; The Council of Autism Service Providers (Choi & Pak, 2006), em vez do processo cola-
[CASP], 2022) podendo, em determinadas oca- borativo (Collin, 2009; D’Amour et al., 2005;
siões, não somente não ser eficaz, mas poten- Thylefors et al., 2005). No Brasil é possível
cialmente prejudicial. Isso posto, observa-se um encontrar profissionais atuando desta manei-
espectro no que tange a funcionalidade dessas ra, onde os profissionais definem os objetivos
equipes, indicando a existência de vários níveis de intervenção unicamente segundo suas
de colaboração (Bowman, et al., 2021), onde é expertises, independentemente das possíveis
profissional, sua expertise e experiência. Além e ter duração média de 15 a 20 minutos. Dessa
disso, considerando o componente transdis- forma, o manuseio do exercício como ante-
ciplinar, sua atuação deve ser norteada sob a cedente, colabora com outras práticas profis-
perspectiva conceitual e metodológica analíti- sionais que, imediatamente após ao exercício,
co-comportamental. Dessa forma, a definição poderão ter acesso aos efeitos dessa estratégia
dos objetivos em termos comportamentais, re- (Chereguini et al., 2020). A segunda função,
gistros e tomadas de decisões analíticas, bem utilizar a prática do exercício como consequ-
como a aplicação de procedimentos baseados ência reforçadora, é possível através de jogos,
em ABA devem estar contemplados. Para tanto, brincadeiras, esportes, identificar os níveis de
recomenda-se que sua atividade seja supervisio- preferência do sujeito e utilizar as atividades
nada por analista do comportamento (ABPMC, de maior engajamento, com o objetivo de re-
2017) responsável pelo caso que constitui essa forçar comportamentos-alvo da intervenção
função e com devida capacitação. Entretanto, (Chereguini et al., 2022). Seguindo com o exer-
considerando que comumente analistas do cício físico como contexto para generalização,
comportamento podem pouco conhecer sobre a prática aqui permite a emissão de comporta-
as diversas possibilidades de atuação de profis- mentos ensinados em intervenção para outros
sionais de EF, para fins melhorar a comunicação ambientes naturais. Tal função (generalização)
entre estes envolvidos pode ser possível consi- é fundamental para que os comportamentos
derar a necessidade de um(a) supervisor(a) da alvos sejam amplamente adquiridos e acon-
área de EF, ou seja, com domínio em ABA ao teçam em mais de um ambiente, com várias
TEA e formação acadêmica em EF. pessoas diferentes para além do ambiente clí-
Chereguini et al. (2022) descrevem quatro nico (Chereguini et al., 2022). E, por último, o
formas de manipular o exercício físico com o treino direto de comportamentos-alvo através
intuito de intervir sobre os core features mas do exercício físico. Nesta modalidade, os com-
também condições associadas ao TEA: exercício portamentos desejados serão oportunizados
físico com função antecedente, exercício físico por meio dos exercícios físicos. Isto posto, o
com função consequente, exercício físico como exercício físico recebe a função de meio, e não
contexto para generalização e o treino direto de finalidade, nas funções de contexto para ge-
das habilidades por meio do exercício físico. O neralização e também no contexto para treino
uso de exercício físico como antecedente tem se direto. O profissional que se propõe a mani-
destacado na diminuição de comportamentos pular o exercício com função de treino direto
estereotipados, possíveis comportamentos-pro- terá como prioridades a redução dos prejuízos
blema e para aumento de habilidades de pron- observados no espectro e utilizará de técnicas
tidão para a aprendizagem da pessoa com TEA comportamentais para o ensino de habilida-
(Neely et al., 2015) e, dessa forma, funcionando des. Esse formato aproxima a educação física
ora como uma operação motivadora abolidora, de outras terapias e permite que a transdisci-
para comportamentos estereotipados e com- plinaridade ocorra de forma mais eficiente.
portamentos-problema, e ora como motivadora Dessa forma, o exercício físico se torna uma
estabelecedora, para aumento de habilidades oportunidade para a intervenção aos compor-
de prontidão (Chereguini et al., 2022). Para tamentos-alvos (Chereguini et al., 2022).
acesso aos efeitos mencionados, o exercício deve Na escolha de comportamentos-alvo,
ocorrer entre média e média alta intensidade, considerando o repertório comportamental do
Key: Score Data Cor Avaliador Key: Score Data Cor Avaliador
Nome de Cliente Caso fictício Teste 1: 37,5 1/1/01 Supervisora Nome de Cliente Caso fictício Teste 1: 37,5 1/1/01 Supervisora
Idade qdo testado 1 2 3 4 Teste 3: Idade qdo testado 1 2 3 4 Teste 3: 56 1/2/02 Supervisora
LEVEL 3 LEVEL 3
Mand Tact Listener VP/MTS Play Social Reading Writing LRFFC IV Group Ling. Math Mand Tact Listener VP/MTS Play Social Reading Writing LRFFC IV Group Ling. Math
15 15
14 14
13 13
12 12
11 11
LEVEL 2 LEVEL 2
Mand Tact Listener VP/MTS Play Social Imitation Echoic LRFFC IV Group Ling. Mand Tact Listener VP/MTS Play Social Imitation Echoic LRFFC IV Group Ling.
10 10
9 9
8 8
7 7
6 6
LEVEL 1 LEVEL 1
Mando Tato Ouvinte VP/MTS Brincar Social Imitação Ecóico Vocal Mando Tato Ouvinte VP/MTS Brincar Social Imitação Ecóico Vocal
5 . 5 .
4 4
3 3
2 2
1 1
tem-se a avaliação de transição (que examina Seleção de Metas para o Plano de Ensino
a capacidade de uma criança aprender em um Individualizado
ambiente educacional menos restritivo em 18
habilidades diferentes), a análise de tarefas (que A proposta do uso do VB-MAPP por uma
fornece uma análise adicional de cada marco na equipe inter e transdisciplinar perpassa pela
forma de uma lista de verificação que contém identificação dos alvos principais, identificados
mais de 900 habilidades específicas) e, por fim, o pela Avaliação de Marcos, e complementado
Nivelamento do Currículo e Estabelecimento dos por alvos menores, se necessário, encontrados
Objetivos do PEI (que fornece recomendações na Análise de Tarefas e Habilidades de supor-
para o desenvolvimento de programas com base te. Junto a isso, a seleção dos alvos também é
nos perfis resultantes da aplicação do VB-MAPP). composta como produto das análises do perfil
O VB-MAPP pode ser usado em uma varie- que a Avaliação de Barreiras e de Transição, ao
dade de ambientes educacionais para estabele- identificarmos focos específicos em redução de
cer metas de aquisição de linguagem e objetivos barreiras ou déficits e no tipo de ambiente ou
acadêmicos, porém, deve ser administrado por estrutura de ensino que melhor oferecerá con-
profissionais capacitados e treinados em Análise dições de aprendizagem.
do Comportamento e comportamento verbal Ao observarmos a imagem à esquerda da
(Sundberg, 2014, Martone, 2017). De acordo com Figura 1, identificamos que a maior parte dos
tal indicação, sugerimos que o processo avalia- itens do nível 1 foi alcançada e quase nenhu-
tivo seja liderado pelo(a) supervisor(a) do caso. ma dos demais níveis. Dentre as habilidades
que foram avaliadas, os principais déficits são que ela fornece e que possam compartilhar de
encontrados em socialização, brincar indepen- forma segura e responsável todas essas informa-
dente e ecoico. Na comparação das imagens da ções coletadas, para composição no currículo de
esquerda e do centro é possível identificar evo- ensino e seleção das intervenções com coerência.
lução em quatro momentos, verificar o impacto
da intervenção em domínios que nas primeiras Prescrição de exercício físico como intervenção
avaliações estavam com maior defasagem. Com direta a partir do VB-MAPP
a informação do intervalo entre as avaliações,
poderíamos verificar a taxa de aprendizagem. A proposta do Modelo ExerCiência orien-
Para um profissional treinado em interpre- ta que, ainda que profissionais de EF possam
tar os gráficos de resultados do VB-MAPP, as ima- aprender a aplicar a avaliação, o desejável é que
gens na Figura 1 poderiam indicar a necessidade possam focar esforços em outras partes do pro-
de intervenção em vários alvos e a priorização cesso. Sob a lógica de atendimento em equipe,
de algumas áreas em relação a outras. Sobre a enquanto determinados profissionais, possivel-
Avaliação de Barreiras, a partir de sua análise mente supervisor(a) do caso, realizam aplicação
poderíamos inferir sobre outras necessidades da avaliação, outros possam focar atenção na
de intervenção que a equipe encontrou para interpretação dos resultados para então plane-
além dos alvos de marcos, e relacionando aos jar suas atividades baseadas nas suas expertises
resultados das seguintes avaliações na imagem profissionais. No caso de profissionais de EF, na
central da Figura 1, que podem ter influenciado prescrição de exercícios físicos que oportuni-
em uma menor taxa de aprendizagem ou menor zem os comportamentos-alvo determinados a
evolução em mais comportamentos previstos partir do VB-MAPP. Sob condições do Modelo
pelo protocolo. Altas pontuações em repertórios ExerCiência de intervenção, orienta-se que os
que avaliam impactos como comportamentos profissionais acessem e interpretem os relató-
inadequados, controle instrucional, generali- rios de avaliação de desenvolvimento a partir
zação, responder por “chute”, dependência de VB-MAPP, para planejar as atividades que irão
dicas, por exemplo, são indicados como áreas de oportunizar a aprendizagem, seja por exercícios
prioridade, pois geralmente implicam em gran- físicos, jogos, brincadeiras, e movimentos espor-
des dificuldades na eficácia das intervenções. tivos, a fim de alcançar comportamentos-alvo da
A resumida análise realizada acima, de- intervenção. Posto isso, as condições de ensino
monstra a riqueza de informações e possibili- envolvem treino direito com a manipulação de
dades de planejamento advindas do VB-MAPP, situações antecedentes no contexto de exercí-
que podem ser compartilhadas e comunicadas cio físico, e contingências de reforçamento para
entre todos os membros da equipe através de treino direto desses comportamentos e/ou para
seus recursos visuais. No entanto, para que a contexto de generalização de repertórios recém
equipe de profissionais e terapeutas envolvidos adquiridos que podem ser desempenhados em
no atendimento inter e transdisciplinar possam outros ambientes.
tomar melhores decisões sobre os objetivos de A manipulação de variáveis antecedentes
intervenção proporcionados pela aplicação e consequentes ocorre em função do desem-
desta avaliação, é imprescindível que compre- penho dos comportamentos-alvo previamente
endam as funcionalidades de cada componente, selecionados a partir da avaliação do VB-MAPP,
que saibam interpretar as ferramentas visuais e não necessariamente em função do alcance
DIA
MÊS
ANO
DIA
MÊS
ANO
DIA
MÊS
ANO
DIA
MÊS
ANO
exercício...
REDES SOCIAIS
DO MODELO
EXERCIÊNCIA
identidade Direita-
Esquerda
Atenção 0
compartilhada
0
Noção de 0
0
Ouvinte distância/ 0
Ex: cores
F I F I 1 Seguiu o planejado, mas tenho alguma DÚVIDA
de pessoas
2 Alguma(s) intercorrência(s), mas gerenciei
F I F I
3 Intercorrências, gerenciei, mas não sei se fiz certo
F I F I
Discriminação
4 Problema grave e/ou parcialmente gerenciado
Ecóico
F I 5 FORA total do meu controle E/OU preciso orientação URGENTE
condicional
Intraverbal Tolerar mudança quase-
de rotina ou de identidade
interesse restrito
Figura 3. Ilustração de atividade de passar bola que pode ser ocasião para ensino de diversos com-
portamentos-alvo diferentes e um modelo de folha de registro de desempenho.
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