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As origens culturais e

políticas da Revolução Industrial1

Ademar Ribeiro Romeiro


Instituto de Economia da UNICAMP
arromeiro@gmail.com

Resumo
O objetivo principal do trabalho é mostrar a importância da herança político/cultural da Idade Média para explicar o processo
de crescimento econômico sustentado que resultou na Revolução Industrial. As ordens político-sociais medievais eram ordens que
possuíam uma abertura à introdução de inovações (tecnológicas, organizacionais e institucionais) inédita na história das civiliza-
ções. Essa abertura se devia à competição entre elas e, dentro delas, a existência de instituições e organizações independentes do
Estado. A ascensão dos Estados nacionais irá mudar muita coisa, porém o fundamental do legado medieval irá permanecer e será
decisivo para explicar a Revolução Industrial. Esse legado é um legado cultural/institucional - o Império da Lei, o individualismo,
as assembleias representativas, o respeito ao trabalho e às profissões (sobretudo a de comerciante) e o embrião de uma cultura de
crescimento econômico -, mas também o legado de um processo de acumulação de capital que permitiu um nível de produtividade
do trabalho superior ao de todas as civilizações até então.

Palavras-chave: Idade Média; Crescimento Econômico; Política/Cultura e crescimento econômico; Império da Lei; Indivi-
dualismo.
NO, N20; F00.

Abstract
The paper argues that the cultural and political legacy of the middle ages was crucial for the sustained economic growth which
led to the Industrial Revolution. The medieval social/political orders had an exceptional openness to innovations (technological,
organizational, and institutional) as compared to other contemporary civilizations. Such openness was due to the competition
among them as well as to the existence of multiple organizations which were independent of the State. The emergence of national
states would significantly change the medieval scenario but a legacy of fundamental cultural/institutional features of the middle ages
played a decisive role in the forthcoming Industrial Revolution: the Rule of Law, individualism, representative assemblies, the respect
for work and professions (notably that of merchant), and the embryo of a culture of economic growth. Another legacy was the process
of capital accumulation which created a higher level of labor productivity than those prevailing in any other civilization at that time.

Keywords: Middle Ages and Economic Growth; Culture/Politics and Innovations; Rule of Law; Individualism.

1 Artigo recebido em 20/10/2017. Aprovado em 05/03/2018.

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As origens culturais e políticas da Revolução Industrial

Introdução2 entanto, o “eurocentrismo” da narrativa aqui

A
apresentada não tem nenhuma conotação de va-
historiografia que permite compreen-
lor, mas apenas resulta da análise de fatos histó-
der melhor os fatores que levaram à
ricos. O fato de invenções de origem externa, em
eclosão da Revolução Industrial (RI)
especial da China, terem tido um grande impacto
na Europa aumentaram imensamente nas últi-
inovador na Europa e praticamente nenhum em
mas décadas. Um conjunto impressionante de
suas regiões de origem, mostra justamente o
trabalhos de especialistas em temas e períodos
caráter peculiar da dinâmica de inovações euro-
e, com base nestes, obras analíticas de fôlego
peia; do mesmo modo, o colonialismo deve ser
cujo estudo permite contribuir com clarificações
visto muito mais como uma consequência e não
e novos entendimentos. A análise histórica com-
como causa da trajetória de crescimento econô-
parada com base nesses trabalhos indica que na
mico sustentado na Europa3.
Europa Ocidental fatores político/culturais espe-
cíficos fizeram com que o processo civilizatório Para North, Wallis and Weingast (2009) e
que começa a partir do fim do Império Romano Acemoglu and Robinson (2012) os fatores deci-
tomasse um rumo distinto daquele nas demais sivos para explicar a ascensão europeia foram de
civilizações. A Revolução Industrial aí ocorreu ordem primordialmente institucional, os quais se
não por acaso. Ela foi o resultado de um processo consolidam na Inglaterra do século XVII criando
evolucionário impulsionado pela introdução de as condições para a emergência de uma ordem
inovações que começa na alta Idade Média e que social de acesso aberto ou de instituições polí-
se acelera fortemente no século XVIII. Capitalis- ticas inclusivas, condições necessárias para um
mo, Revolução Industrial e modernidade foram processo de crescimento econômico sustentado
fenômenos europeus, frutos de um amalgama que desemboca na RI. Por sua vez, McCloskey
peculiar de fatores político/culturais que pela (2006, 2010 e 2016) critica essa visão institucio-
primeira vez permitiu o rompimento de um “teto nalista. Seu argumento é de que nessa perspecti-
invisível” que até então havia bloqueado a conti- va as instituições surgem um tanto ad hoc como
nuidade do processo de crescimento econômico fator explicativo fundamental, quando na verda-
em todas as civilizações. de seriam parte de um processo que tem início
com uma mudança cultural decisiva trazida pela
De modo geral os autores que estuda-
a ascensão da burguesia e seus valores – as virtu-
ram esse processo histórico com tal perspectiva
des, a dignidade e a igualdade burguesas. Mokyr
– qual seja, a de um processo evolucionário pe-
(2016) segue na mesma perspectiva que este úl-
culiarmente europeu - foram chamados de “euro-
timo embora com o foco no fenômeno cultural
cêntricos” em um sentido negativo, seja porque
que representou a emergência de uma “cultura
atribuiriam à Europa qualidades excepcionais
do crescimento” a partir do século XVI.
que justificariam considera-la como superior a
todas as demais; e/ou porque ignorariam as con- O argumento aqui desenvolvido combina
tribuições de outras civilizações; e/ou ainda por- as duas perspectivas e propõe considerar também
que não levariam em conta o papel da exploração como relevante para explicar a RI o que ocor-
colonial. Cabe destacar nesse sentido as críticas 3 Hobson (2004) defende que a ascensão da Europa se deveu à assi-
milação de invenções orientais e ao imperialismo que permitiu a apro-
ao último grande trabalho de Landes (1998). No priação de recursos orientais sobretudo (terra, trabalho e mercados).
2 Baseado em Romeiro,AR.(2017). Agradecemos ao apoio recebido do Pomeranz (2000), por sua vez, considera que até 1800 o que estava
CNPq. Uma primeira versão foi apresentada no XII Congresso Brasi- ocorrendo na Europa era similar ao que ocorria em muitos outros luga-
leiro de História Econômica, 28-30 de agosto de 2017. Universidade res; a “grande divergência” começaria no século XIX quando a Europa
Federal Fluminense, Niterói. foi capaz de ter um “acesso privilegiado aos recursos ultramarinos”.

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reu na Idade Média. O legado desse período foi dos agentes dominantes dessas ordens políticas
fundamental. Como sugerem as análises de me- os fazem então reagir contra a introdução de
dievalistas como White (1962) e Gimpel (1975) inovações que os ameaçam; mesmo a população
entre outros, a Revolução Industrial no século em geral que sustenta essas ordens com trabalho
XVIII é muito mais o resultado de um processo penoso as vêm também como ordens ‘naturais’
evolucionário inédito que começa na Idade Mé- permanentes, depositárias de uma tradição (re-
dia quando surge pela primeira vez na história ligiosa, cultural, social) cuja legitimidade não
das civilizações uma “Civilização Mutante”, pode ser contestada.
expressão usada por Braudel (1979) para distin-
guir uma Civilização em permanente processo de As ordens políticas medievais possuíam
mudança devido a introdução incessante de ino- essa “qualidade intrínseca de instabilidade”, a
vações em contraposição a todas as demais até qual resultava de um amalgama de fatores cul-
então, onde predominava a fixidez, uma aversão turais e políticos que impedia a manutenção per-
a inovações vistas como perturbadoras de ordens manente de interesses estabelecidos: uma cultura
estabelecidas consideradas ideais. Como nota que favorecia ações transformadoras da natureza
Needham (1969, p.119), a Europa possuía algo em busca de maior conforto material dentro de
como uma “qualidade intrínseca de instabilida- uma ordem geral competitiva; a competição en-
de” (built-in quality of instability) em contraste tre as ordens feudais e, dentro delas, a existência
com a situação de “homeostase espontânea” na de instituições e organizações independentes do
China4. Estado que exerciam um contra poder com ini-
ciativas próprias. Uma situação excepcional que
Acemoglu e Robinson (2012) têm ra- oferecia um grau sem paralelo de liberdade a ini-
zão quando postulam que a história da riqueza ciativas inovadoras.
e pobreza das nações é a história de como foi
superada ou não a resistência inerente das or- O trabalho começa com uma análise dos
dens políticas ao processo de “destruição cria- fatores culturais (2) em duas subseções, uma
tiva” pela introdução sistemática de inovações. (2.1.) sobre a cosmovisão peculiar do período e
O crescimento econômico é subversivo dado que outra (2.2.) sobre a emergência do individualis-
sua continuidade depende da introdução contí- mo. Em seguida vem a análise dos fatores polí-
nua de inovações que impactam todas as esferas ticos/institucionais (3). A seção (4) é dedicada
de atividade da sociedade criando ganhadores e à análise dos atores e da dinâmica do processo
perdedores. Por esta razão, em todas as civiliza- evolucionário político/institucional/cultural, ten-
ções o necessário processo de introdução de ino- do sido subdividida 5 subseções: (4.1.) a pecu-
vações que as consolida como tais tende progres- liaridade dos Estados feudais na Europa; (4.2.)
sivamente a cessar à medida em que as ordens o papel de uma organização religiosa indepen-
dos grandes impérios que floresceram antes de Roma, cedo ou tarde,
políticas se consolidam5. Os interesses velados cresceram até um ponto considerado confortável e procuraram não
4 Ver Romeiro (2017) sobre as razões pelas quais o Estado chinês ir adiante. Similarmente, nos últimos dois séculos antes de Cristo, a
consciente e deliberadamente combateu a difusão de invenções que Roma republicana tinha atingido junto com sua forte expansão militar
poderiam ter revolucionado as atividades produtivas e que na Europa um nível semelhante de aventura empreendedora e comercial; mas as
tiveram um grande impacto. É preciso distinguir invenção de inovação. convulsões políticas que acompanharam este crescimento amedronta-
Inovação ocorre quando uma invenção se difunde com grande impacto ram os aristocratas fundiários que detinham originalmente o poder e
social e/ou econômico. É possível uma sociedade ser muito mais que acabaram vencendo. Augustus restaurou a paz e dedicou o Império
inventiva que inovadora, como foi a China; ou muito mais inovadora à tranquilidade agrícola e à busca do meio termo dourado, ‘aurea
que inventiva como a Europa, que acolhia com entusiasmo todo tipo de mediocritas’. A cada cidadão foi garantido o sentimento de segurança
invenções independentemente de sua origem. e de estar bem ajustado ao padrão de vida ao qual sua posição social
5 Como observa Lopez (1976, pos.67), tendo em vista o caso do Império dava direito, sendo desencorajado a buscar mais. Estabilidade, não
Romano, “o crescimento econômico...é perturbador e tende a perder oportunidade, era considerado o objetivo mais desejável”.
seu apelo uma vez que um equilíbrio satisfatório é atingido...Cada um

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dente; (4.3.) as universidades; (4.4.) as ordens vos, prevalecente em todas as civilizações.


monásticas; (4.5) as cidades independentes. Na
quinta seção (5), o objetivo é mostrar as conse- Para Le Goff (1990) as atitudes sociais
quências econômicas dessa dinâmica político/ que se desenvolvem neste período do processo
cultural. Por último (6.), as considerações finais. civilizatório ocidental foram decisivas. Em rela-
ção ao trabalho em especial o período medieval
Os Fatores Culturais foi capital. Partindo de uma situação herdada do
2.1. Uma Cosmovisão Peculiar mundo greco-romano de desprezo pelo trabalho
(incluindo o de engenheiros) e de uma concepção
A cosmovisão judaico-cristã, embora te-
pessimista do trabalho como maldição, punição,
nha tido sua origem no Oriente Médio, floresce
penitência, chega-se por caminhos múltiplos a
na Europa latina em todo seu potencial como fa-
uma valorização do trabalho e dos trabalhadores;
tor cultural importante para explicar o extraordi-
desenvolve-se um conceito próprio e um vocabu-
nário dinamismo inovador aí observado desde os
lário específico ao trabalho e aos trabalhadores.
primórdios do que veio a ser a Civilização Oci-
Os monastérios tiveram um papel crucial nesse
dental. Nessa visão o ser humano é visto como
processo, na solução do que pode ser conside-
o centro da criação divina, estando a natureza a
rado um conflito sócio-ideológico do trabalho a
seu serviço. Para White (1967) esse fato leva a
partir da regra de São Bento, ora e labora. O tra-
uma dessacralização da natureza, na medida em
balho seria penitência sim, mas uma penitência
que o lócus divino/espiritual é transferido da na-
bendita7.
tureza para Deus e os santos6, conferindo com
isso uma grande liberdade na sua manipulação. O conflito entre as duas grandes or-
E, como nota Mokyr (1990), manipular a nature- dens monásticas do tempo, Cluny e Citeaux,
za é a essência mesma do progresso tecnológico teve como uma de suas motivações precisamente
inovador. Outra característica dessa cosmovisão o peso relativo que se deveria atribuir a cada uma
é sua concepção linear do tempo, que pode ser dessas injunções beneditinas. No final vence a
regressiva, mas de modo geral era progressiva, visão (de Citeaux) do trabalho como dignificante
em direção a um mundo melhor, em contraste da pessoa humana, digno das bênçãos celestes
com as concepções cíclicas predominantes em como as representadas pelos santos padroeiros
outras civilizações, onde a ideia de progresso é das Corporações de Ofício. Estas corporações,
inexistente. Finalmente, o respeito pelo trabalho como será visto mais adiante, foram inovações
presente nos Antigo e Novo Testamento, que na organizacionais decisivas para as revoluções co-
Cristandade Latina Medieval assumirá, come- mercial e pré-industrial medievais. Oxele (1990)
çando pelos monastérios, um valor social ampla- assinala também que a consolidação no século
mente respeitado em contraste com a visão do XI do esquema mental das três ordens associada
trabalho como algo degradante, digno de escra- a três funções sociais, que justapunha a função
6 Em famoso trabalho publicado na Revista Science, White (1967) social do trabalho junto com as funções sociais
aponta essa dessacralização como a causa histórica da crise ecológica
atual. Nesse trabalho ele retoma algumas ideias publicadas ante- da oração e da proteção militar (oratores, bella-
riormente em seu influente livro de 1962, colocando uma ênfase que
parecia ser negativa em relação a esses fatores culturais. Reagindo a tores et laboratores), revela uma notável valo-
estas interpretações White procurou clarificar sua posição afirmando
que no antropocentrismo da cosmovisão judaico-cristã a natureza deve 7 A valorização do trabalho manual e da sua contrapartida inseparável,
servir sim à humanidade, porém deveria ser manejada diligentemente a ferramenta, gerou estórias milagrosas como aquela do milagre
(‘stewardship’) de modo a conservar sua capacidade de provimento operado pelo Prior de um monastério que teria, através da oração,
de meios de vida. E entende, como São Francisco de Assis, que ele recuperado uma ferramenta muito importante que havia caído no
propõe como Santo patrono do ambientalismo, que o direito de existir se tanque, fazendo-a voltar ao cabo de madeira da qual havia se soltado
estenderia a toda a criação independente de sua utilidade. (Le Goff,1990).

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rização do trabalho. Os laboratores começaram bém foram proibidas outras estratégias familís-
a aparecer de modo bem mais ativo no cenário ticas para manter a propriedade dentro do grupo
histórico através de organizações sociais de cam- familiar como o casamento das viúvas dentro da
poneses, artesãos e mercadores, que se agrupam família, o repúdio (divórcio) da mulher pelo ho-
em associações juramentadas por juramentos pú- mem, a concubinagem e a adoção de crianças na
blicos mútuos de ajuda e proteção recíprocas. falta de um herdeiro masculino. A mulher passou
a ter maiores direitos de propriedade e de parti-
Individualismo versus Familismo
cipação da vida pública8. Ao notar o papel das
Outro fator cultural fundamental é o ex- mulheres na conversão de reis pagãos, que foi
cepcionalismo europeu medieval no que concer- crucial na expansão do cristianismo na Europa
ne o processo de saída do tribalismo para formas - a começar pela conversão de Clovis, rei dos
de organizações sociais estatais. A efetividade Francos, no século VI, sob influência decisiva da
de um Estado depende do deslocamento em al- esposa Clotilde - , Pernoud (1980) se pergunta se
gum grau da lealdade dos indivíduos do grupo isto teria sido uma mera coincidência. Para ela o
familiar para o Estado. Entretanto, em todas as significativo número de casos semelhantes mos-
civilizações as instituições baseadas em territó- tra que não foi uma mera coincidência e sim o re-
rio e autoridade legal centralizada tiveram que sultado da forte atração que o cristianismo exer-
ser superpostas sobre sociedades onde o fa- cia sobre as mulheres ao proclamar e promover
milismo de origem tribal perdura – sociedades a igualdade de direitos entre homens e mulheres,
baseadas em linhagens agnáticas (patrilineares) tendo elas se tornado ativas evangelizadoras9.
(Fukuyama,F.2011). No caso europeu as redes de Por volta do final do século IV, sob influência do
relações familísticas como base do jogo político cristianismo, a lei civil romana já havia sido mo-
desaparecem com a emergência do feudalismo. dificada, tendo sido retirado o direito de vida e
Este desaparecimento se deveu a ação de duas morte do pai sobre os filhos, o que beneficiou em
forças agindo simultaneamente. A primeira foi especial as filhas que tendiam a ser sacrificadas
a capacidade de influência sociocultural de uma se já houvesse uma primogênita.
instituição religiosa que desde o final do Império
Romano difunde um novo padrão de casamen- É digno de nota também que esse
to na Europa Ocidental. Como mostrou Goody padrão de casamento promovido pela Igreja
(1983), o padrão mediterrâneo era fortemente não deve ter encontrado resistências por parte
patrilinear, resultando numa sociedade segmen- das tribos germânicas que invadiram o Império
tada em grupos endógamos com fronteiras rigi- Romano, a julgar pelas evidências disponíveis
damente definidas, e com uma certa preferência
8 Goody (1983) considera que a motivação da Igreja católica nessa tra-
para o casamento entre primos. Havia estrita jetória possa ter sido menos teológica do que institucional, na medida
em que ela seria a beneficiária maior da herança daquelas que morriam
separação de sexos e poucas oportunidades para sem deixar herdeiros. Por esta visão o status elevado da mulher na
Europa Ocidental teria sido um efeito colateral acidental dos interesses
a mulher ter propriedade ou participar da esfera da Igreja! Porém, a motivação teológica era extremamente importante,
uma vez que era o indivíduo que estava no centro de uma reflexão teoló-
pública. gica fundada no livre arbítrio. A mulher sem autonomia e liberdade no
casamento greco-romano batia de frente com essa base teológica
9 Além de Clotilde no que viria a ser a França, a conversão dos
No novo padrão de casamento promo- Lombardos no Norte da Itália se deveu em grande medida a Theodo-
linda, esposa do rei Agilulf; na Espanha Theodósia se casa em 573
vido pela Igreja católica a herança era bilateral com Leogivilde, Duque de Toledo, que restaurou a autoridade real, e
(pelo homem e pela mulher), o casamento inter o converteu ao catolicismo; na Inglaterra cerca de vinte anos depois,
Bertha de Kent obteve a conversão do rei Ethelbert; por toda a Europa
primos banida e a exogamia estimulada. Tam- as mulheres foram um fator decisivo na conversão dos povos pagãos ao
cristianismo. Ver Pernoud.(1980, 18-19).

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sobre certas características peculiares dessas so- A segunda força em ação na destruição
ciedades tribais. Entre essas características Jones das relações familísticas como base da organi-
(1987, 14,15) chama a atenção para a persistente zação social foi a forma peculiar do feudalismo
tendência em manter o crescimento da população europeu. Para Bloch (1949) o feudalismo, forma-
um pouco abaixo do que seria seu máximo de do “no cadinho fervente” de invasões e desor-
modo a manter terras disponíveis para pastagens dens imensas, foi uma desesperada resposta de
e florestas, tendo como resultado um padrão de autodefesa que exigiu encontrar formas de arti-
consumo (alimentar sobretudo - carne) acima culação entre grupos isolados não relacionados
daquele prevalecente na Ásia. Os indivíduos familiarmente (o sistema de vassalagem). Em
nestas sociedades tribais estavam dispostos a outras palavras, o feudalismo surgiu como uma
trocar, na margem, crianças por bens de modo a alternativa não familística de organização so-
manter um dado padrão de consumo, o que ‘em- cial. As estruturas familísticas já não ofereciam
poderava’ as mulheres. Com base no trabalho de uma proteção adequada na medida em que já se
Hajnal (1965), Jones nota como um elemento encontravam fortemente comprometidas pelas
distintivo europeu a prevalência de casamentos regras de casamento exogamicas definidas pela
mais tardios e de uma alta percentagem de indi- Igreja. A essência do feudalismo, portanto, foi a
víduos que não se casavam – as mulheres tinham submissão voluntária de um indivíduo a outro,
o direito a não casar! Os indivíduos eram esti- baseada não em relações de parentesco, mas na
mulados a formar algum pecúlio antes de casar troca de proteção por serviço.
e constituíam famílias nucleares, relativamente
independentes de círculos familísticos mais am- Desse modo, durante o período me-
plos, sendo que este padrão de comportamento dieval, antes do início da formação dos Estados
poderia ser retraçado desde o segundo milênio nacionais e séculos antes da Reforma, do Ilumi-
A.C. nismo e da Revolução Industrial, as sociedades
europeias no Ocidente já haviam se tornado
Desde cedo, portanto, a sociedade euro- muito mais individualistas do que qualquer so-
peia era individualista10 no sentido de que eram ciedade contemporânea a elas. Uma transforma-
os indivíduos e não suas famílias ampliadas ção que não resultou, portanto, destas grandes
(seus clãs) que tomavam importantes decisões mudanças modernizantes, mas, ao contrário, foi
sobre casamento, propriedade e outras questões um elemento importante para a explicar a ocor-
pessoais. Desse modo, as instituições de Estado rência das mesmas. Assim, a economia capita-
foram superpostas em sociedades onde os indiví- lista emergente não teve que enfrentar, como na
duos já gozavam de uma grande liberdade em re- China e na Índia, a resistência de grandes gru-
lação às obrigações sociais familísticas. Por esta pos familísticos corporativamente organizados
razão Fukuyama (2011, 231) considera apropria- com substancial propriedade a proteger, mas, ao
do dizer que na Europa o desenvolvimento social contrário, avançou em sociedades onde a pro-
precedeu o desenvolvimento político. priedade trocava de mãos rotineiramente entre
estranhos (não-parentes).
10 A falácia de Hobbes: a ideia de que os seres humanos eram
primordialmente individualistas e que eles resolveram se organizar em
sociedades como resultado de um cálculo racional de que a cooperação Os Fatores Políticos/Institucionais
social era a melhor maneira de atingir suas finalidades individuais.
O que ocorreu na verdade foi o inverso: foi o individualismo e não Outro elemento decisivo para explicar
a sociabilidade que se desenvolveu ao longo da história humana. E
ele só se mantém hoje porque foram desenvolvidas instituições que se a especificidade europeia foi a fragmentação do
sobrepõem aos instintos comunais naturais aos seres humanos. Ver
Fukuyama (2011, 29).

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poder. Esta situação de fragmentação de poder finido impessoalmente (a igualdade é impossível
decorreu de fatores geopolíticos (regiões e Esta- sem a impessoalidade), a formar organizações
dos em competição) bem como, dentro de cada sem o consentimento do Estado, o que asse-
Estado, de fatores que resultaram do entrela- gura a competição não violenta na política, na
çamento de elementos culturais e políticos que economia e em virtualmente em qualquer área
permitiram o surgimento de instituições e orga- de uma sociedade de acesso aberto. Na mesma
nizações independentes do Estado, condição im- linha, Acemoglu e Robinson (2012) apontam
prescindível para evitar a formação de regimes para emergência de instituições políticas inclu-
despóticos. A própria emergência dos Estados sivas, que substituem as instituições políticas
centralizados na Europa Ocidental ocorreu pos- extrativas prévias, como a causa fundamental da
terior e/ou concomitantemente com o surgimen- grande divergência em desenvolvimento entre a
to dos elementos constitutivos de uma ordem Europa e o resto do mundo. No entanto, para
político/social menos despótica e que se tornou ambos o período relevante de análise começa no
progressivamente mais democrática. final do século XVII, com a Revolução Gloriosa
na Inglaterra. Até então as ordens sociais exis-
Tal como a define Fukuyama (2011), tentes seriam fechadas, com a predominância de
uma ordem política plenamente democrática é instituições políticas extrativas.
aquela onde o Estado é efetivo, porém submetido
ao Império da Lei (Constituição e Judiciário in- Na verdade, como se vê, os elementos
dependente), dando origem a Governos Respon- constitutivos de uma ordem político/social de-
sabilizáveis (perante parlamentos, assembleias e mocrática evolveram de um modo excepcional
outros corpos políticos representantes de setores e precoce, bem antes do século XVII, levando à
mais amplos da população). Um Estado despóti- formação de entidades sócio-políticas (‘polities’)
co pode ser efetivo, mas é imprevisível em fun- de acesso relativamente aberto, com predomi-
ção das inclinações pessoais, dos caprichos, dos nância do individualismo no plano social e de or-
sucessivos déspotas. Ou, como no caso do preco- ganizações e instituições de caráter corporativo
ce e altamente despótico Estado Chinês, bastante independentes dos Estados em formação. É esse
previsível na sua aversão a mudanças no status excepcionalismo europeu na evolução da ordem
quo. Não há um mínimo de segurança e liberda- político/social que explica em grande medida
de necessárias para florescimento dos indivíduos sua criatividade tecnológica, organizacional,
e de iniciativas inovadoras. institucional e cultural. Capitalismo, Revolução
Industrial e Modernidade Democrática, não
De modo análogo, para North, Wallis e ocorreram aí por acaso. São os frutos de um
Weingast (2009) a ordem social mais compatí- mesmo e único processo.
vel com o florescimento dos indivíduos e de ini-
ciativas inovadoras é a Ordem Social de Acesso Processo este que começou no período
Aberto. Acesso aberto nos sistemas econômico e de formação do Feudalismo, entre os séculos V
político. O acesso aberto no sistema econômico e X, e que atinge uma primeira fase de maturi-
evita a manipulação de interesses econômicos dade entre os séculos XI e XIII, quando ocorre o
pelo sistema político. Por sua vez o sistema po- que pode ser considerado como revoluções pré-
lítico aberto permite a contestação do grupo no -industrial e comercial, impulsionadas por uma
poder através de meios constitucionais formais sequência de macro e micro inovações tecnoló-
prescritos. Todos os cidadãos têm o direito, de- gicas, institucionais/organizacionais e apoiadas

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numa ampliação do processo de acumulação de ção religiosa independente foi capaz de definir
capital na agricultura. Os principais atores que um campo de prerrogativas de poder espiritual
garantiram essa dinâmica foram os Estados feu- separado do poder temporal, bem como de jogar
dais, as cidades, a Igreja, os monastérios, as uni- um papel decisivo na definição e legitimação de
versidades e as corporações de ofício. uma lei maior à qual todos estavam subordina-
dos, incluindo o monarca. Ligadas a esta institui-
Os Estados feudais que se consolidam ção, porém com grande autonomia, cabe destacar
no final no século X eram Estados em equilí- os monastérios e as universidades. Os monasté-
brio instável, em competição entre si e com as rios embora também capazes de atuar direta-
cidades. Eram chefiados por reis eles próprios mente no jogo político de poder, têm seu papel
senhores feudais, sendo apenas “primus inter mais notável como verdadeiras empresas proto-
pares”. Eram suseranos de domínios senhoriais -capitalistas, centros de inovações de todos os
diversos, cujos respectivos vassalos possuíam, tipos, agrícolas e industriais. As universidades,
via de regra, relações de vassalagem com outros por sua vez, como centros autônomos de pensa-
senhores simultaneamente, os quais com o tem- mento e atuando corporativamente tiveram, por
po foram adquirindo controle pleno da terra que um lado, um impacto evolutivo sem paralelo no
passa a ser transmitida diretamente para os her- plano mais geral do embate de ideias e, por ou-
deiros. O poder real era, portanto, limitado pelo tro lado, um impacto no ordenamento jurídico ao
da aristocracia feudal, que se diferencia em alta formar toda uma categoria de especialistas legais
e pequena (gentry) nobreza, atuando através de que está na origem de um judiciário profissional
assembleias representativas. independente que irá consolidar o “Império da
Lei”.
As cidades, por sua vez, tinham uma go-
vernança própria que se torna independente, as Por último, cabe destacar as corporações
Comunas. Alternando alianças com as monar- de ofício, as Guildas. Tendo como origem con-
quias e a aristocracia feudal, se armando e sen- frarias de ajuda mútua de profissionais tiveram
do capazes de derrotar inclusive o Imperador, as também uma importante atuação no jogo po-
cidades medievais tiveram um papel na ordem lítico. Em especial na governança das cidades
política único na história das civilizações. Para em aliança com a Comunas. Para as atividades
começar, formavam uma espécie de fronteira industriais e comerciais foram decisivas. Nas
interna aos domínios senhoriais que ampliava a atividades manufatureiras a própria forma como
mobilidade do trabalho. Essa maior mobilidade, o trabalho foi organizado refletia uma mudança
por sua vez, exercia um impacto evolutivo per- de mentalidade histórica sobre seu valor, que era
manente nas relações entre senhores e servos. depreciado em todas as civilizações. Nessas cor-
Também, do ponto de vista econômico, elas ti- porações o trabalho e os trabalhadores, de todas
veram um impacto transformador decisivo ao as profissões, incluindo a de mercador, adquiri-
muito precocemente se engajar no comércio in- ram uma dignidade própria.
ternacional de modo diferenciado, o que permi-
tiu criar um enorme espaço de mercado que unia
Os Atores e a Dinâmica do
norte (Mar Báltico) e sul (Mar mediterrâneo) da Processo Evolucionário Político/
Europa e Ocidente e Oriente/África. Institucional/Cultural
Trata-se de um quadro político-insti-
A Igreja, por sua vez, como uma institui-
tucional de governança único: muito antes da

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consolidação do Estado moderno, na Europa me- maneira de fazer valer sua autoridade e manter as
dieval entre os séculos XI e XIII, Estados frag- comunicações num mundo fracionado em vilare-
mentados em competição entre si e dentro deles jos e feudos isolados. Um dos principais serviços
com múltiplas organizações independentes, ga- que o rei podia oferecer era um tribunal real de
rantiram algo próximo de uma ordem social de apelações para aqueles súditos insatisfeitos com
acesso relativamente aberto tal como a entendem as decisões dos tribunais senhoriais locais. Evi-
North, Wallis e Weingast (2009) e/ou da pre- dentemente era de todo interesse do rei expandir
valência de instituições políticas inclusivas tal a jurisdição de seus tribunais, na medida em que
como as definem Acemoglu e Robinson (2012). isto aumentava sua autoridade e prestígio, mas
São as condições necessárias para o florescimen- também pelo fato desses serviços serem pagos.
to dos indivíduos e de iniciativas inovadoras. É As cortes reais itinerantes tinham a vantagem de
sob a égide deste quadro cultural e político/insti- serem mais imparciais na medida em que pos-
tucional, e por causa dele, que um longo período suíam menos ligações com os litigantes do que
de crescimento econômico sustentado irá ocorrer as cortes senhoriais locais. Também apresenta-
até a crise do século XIV. Um processo de cres- vam vantagens procedurais como a capacidade
cimento “schumpeteriano”, na medida que teve de compelir os cidadãos a servirem como jurados
seu motor principal a introdução de inovações e, com o tempo, passaram a gozar de economias
técnicas, organizacionais e institucionais. O ca- de escala e de escopo. A administração da justi-
pitalismo foi a inovação institucional maior que ça requer trabalho especializado, executado por
resultou desse processo. pessoal mais qualificado tecnicamente.

4.1. A peculiaridade dos Estados É preciso ter claro que não se trata
feudais na Europa apenas de dispensar justiça, algo que cabia aos
A formação dos Estados feudais na governantes em qualquer civilização, mas de
Europa além de representar uma saída peculiar dispensá-la sob o ‘Império da Lei’. A Lei consti-
do tribalismo em função da eliminação do fami- tui-se de um corpo de regras abstratas de justiça
lismo, teve também de excepcional o fato de sua responsáveis pela coesão de uma dada comuni-
legitimidade estar fortemente condicionada pela dade. Nas sociedades pré-modernas a Lei era su-
habilidade de seus construtores em prover justi- posta ter sua origem numa autoridade superior a
ça. Nesse sentido, o crescimento do poder e da qualquer legislador humano, seja uma autoridade
legitimidade dos Estados europeus foi insepará- divina, um costume imemorial ou a natureza. A
vel da emergência do Império da Lei. Isso se de- Legislação, por sua vez, corresponde ao que hoje
veu, por um lado, às características do feudalis- é chamado de lei positiva, sendo uma função do
mo europeu; por outro, à existência de uma Lei poder político, ou seja, a habilidade do rei, do
superior legitimada por uma instituição religiosa senhor da guerra, do presidente ou do legislati-
independente com capacidade de faze-la valer. vo em elaborar e fazer valer novas regras com
A dinâmica deste processo resulta da base numa combinação de poder e autoridade.
própria estrutura dos Estados feudais, na qual os O “Império da Lei” existe somente quando um
reis nada mais eram que primus inter pares den- corpo de leis preexistente (baseado num texto re-
tro de uma ordem feudal descentralizada. Eles ligioso ou numa Constituição como nos Estados
passavam a maior parte do tempo viajando pelos modernos) é soberano em relação à legislação,
respectivos reinos uma vez que esta era a única significando que aqueles que detém o poder polí-

História e Economia Revista Interdisciplinar 83


As origens culturais e políticas da Revolução Industrial

tico são limitados pela Lei. A distinção entre Lei Na Índia a situação era completamente
e Legislação corresponde atualmente à distinção diversa. A religião Bramânica, que se desenvol-
entre leis constitucionais e leis ordinárias. A pre- veu no mesmo período de formação dos Esta-
valência do Império da Lei implica, portanto, dos indianos, foi capaz de subordinar a classe
uma limitação ao poder do Estado. político/guerreira à classe sacerdotal. A Lei era
fortemente enraizada na religião. Não havia um
É preciso considerar que as condições campo secular separado de elaboração de leis.
para o funcionamento apropriado do Império No entanto, a classe sacerdotal (Brahmins) não
da Lei vão além de aspectos institucionais e/ou era organizada dentro de uma Igreja de forma
procedurais. É necessário que esta seja percebi- hierarquizada como no Ocidente. Ela agia de
da como justa, não podendo haver exceções. Os forma fragmentada, dividida em espécies de
próprios reis, bem como os barões senhoriais, subclasses definidas pelas funções exercidas (os
não podiam estar acima da lei, uma lei cujo va- que conduziam os ritos de investiduras de reis,
lor derivava em última instância de uma sanção os que conduziam os funerais, etc.). Jamais se
religiosa. O Império da Lei no seu sentido mais subordinaram ao Estado, nem se transformaram
profundo significa, portanto, que existe um con- em funcionários, mas foram incapazes de ação
senso dentro da sociedade de que suas leis são coletiva através de uma hierarquia institucional.
justas, sendo que elas devem preexistir e balizar
o comportamento de quem quer que seja o go- Na área de domínio da Civilização
vernante em cada momento. A Lei é soberana e Islâmica, houve Império da Lei com base em
não o governante. Este último somente possui autoridade religiosa, mas não uma instituição
legitimidade na medida em que deriva seus po- religiosa independente do Estado. Havia a uma
deres da Lei. No passado a principal fonte de leis lei maior de origem divina claramente expressa
justas fora da esfera da ordem política era a reli- no Alcorão que deu origem a um corpo de leis
gião. No entanto, para que estas leis fossem aca- codificado – a Sharia. A legitimidade do poder
tadas pelos governantes era condição necessária temporal estava condicionada a aplicação da
que a autoridade religiosa tivesse se afirmado de lei islâmica. Desse modo, houve uma fusão dos
modo independente da autoridade política. poderes espiritual e secular em ordens políticas
teocráticas.
O Papel de uma organização
religiosa independente Na Europa Ocidental o Império da Lei
Na China a religião não refletia um con- foi institucionalizado num grau bem maior do
senso sociocultural, mas tendia a ser uma fonte que na Índia e no mundo islâmico, ou mesmo
de protesto social. O Estado chinês jamais re- do que na Europa Oriental. Além das especifi-
conheceu alguma fonte religiosa de autoridade cidades dos Estados feudais, o fator explicativo
superior à sua própria e sempre controlou facil- fundamental para esta diferença foi a presença de
mente toda classe sacerdotal que tenha existido. uma instituição religiosa que obteve um grau de
Portanto, nunca houve na China um Império da autonomia e influência sem paralelo com outras
Lei baseado em autoridade religiosa. Seguindo a civilizações. Após a queda do Império Romano e
tradição legalista, as leis primárias eram consi- o consequente enfraquecimento do poder políti-
deradas como leis positivas. Ou seja, a Lei era o co, a Igreja católica foi capaz de afirmar sua in-
que quer que o imperador decretasse. dependência. Esta independência foi se perdendo
na medida em que o poder político se recupera e

84 História e Economia Revista Interdisciplinar


cada vez mais a nomeação de Bispos e mesmo firmar como um poder político autônomo, de-
Papas passou a ser prerrogativa dos poderes polí- pendia certamente da peculiar situação de frag-
ticos locais e regionais, além do próprio impera- mentação política da Europa ocidental, fragmen-
dor. No entanto, no final do século XI a Igreja foi tação esta que se exacerba novamente após o fim
capaz de novamente, e de forma incisiva, afirmar da centralização carolíngia de Carlos Magno no
sua independência dos poderes seculares. século IX. Esta fragmentação permitia à Igreja
buscar proteção contra ameaças seja do Impera-
Esta capacidade, sem dúvida, depen- dor, seja de qualquer outro senhor da guerra, nos
deu naquele momento da energia, tenacidade respectivos rivais. Os reis do reino Normando
e determinação de um homem como o monge na Sicília tiveram um papel decisivo de apoio à
Hildebrando que se tornou Papa em 1073 sob Igreja contra Henry IV e seu filho Henry V, im-
nome de Gregório VII. Ele estava determinado peradores do Sacro Império Romano Germânico.
em acabar com a corrupção e o rentismo (“rent
seeking”) que este sistema de nomeações promo- Para Fukuyama (2011), além de con-
via, reforçado pelo fato de que o casamento era tribuir para o processo de consolidação da ins-
permitido aos religiosos e que podiam legar aos titucionalização da Igreja como poder político
filhos a propriedade que deveria ser da Igreja. A autônomo, como organização de grande comple-
obrigatoriedade do celibato resolve este último xidade e capacidade de adaptação, o conflito em
problema. Para resolver o primeiro era neces- torno do direito às nomeações (conflito da inves-
sário atacar diretamente o direito de nomeação tidura) teve como consequência uma separação
de Bispos e padres pelos poderes seculares, con- mais clara dos domínios dos poderes espiritual
ferindo-os com exclusividade à própria Igreja. e temporal, abrindo assim o caminho para a
Mais ainda, ele defendia a supremacia legal dos emergência do Estado secular moderno. Depois
papas sobre todos os cristãos, incluindo o impe- de um longo e conflituoso processo, atingiu-se
rador (que poderia ser deposto). um compromisso sobre os respectivos e separa-
dos domínios dos poderes espiritual da Igreja e
A reação do Imperador Henry IV foi temporal do Estado, divisão esta de trabalho que
de tentar depor o Papa, que revidou excomun- estabeleceu as bases para o surgimento e conso-
gando-o. A excomunhão teve por efeito levar lidação do Estado secular.
o imperador em 1077, em episódio histórico, a
humildemente de pés descalços no inverno pedir Por último, este conflito foi importan-
perdão a Gregório VII que o esperava na fortale- te para o desenvolvimento tanto da Lei como
za de Canossa (norte da Itália). No entanto, esse do Império da Lei na Europa. Para o desenvol-
conflito sobre o “direito de investidura” somen- vimento da Lei na medida em que este conflito
te terminará em 1122, depois de muitas idas e estimulou os esforços da Igreja para ganhar le-
vindas (Gregório VII morreu no exílio em 1085) gitimidade através da formulação de um cânon
com a Concordata de Worms, através da qual o legal sistemático, o direito canônico. Para o
imperador Henry V, filho de Henry IV, reconhe- desenvolvimento do Império da Lei na medida
cia o direito da Igreja nas investiduras (nomea- em que a Igreja foi capaz de criar um domínio
ções) e esta, por sua vez, reconhecia o direito do separado e bem institucionalizado de autoridade
Imperador numa série de matérias temporais. A espiritual com jurisdição universal. Como assi-
capacidade de a Igreja levar adiante a política de nala Fukuyama (2011), trata-se de uma situação
independência iniciada por Gregório VII, de se historicamente inédita em que o Império da Lei

História e Economia Revista Interdisciplinar 85


As origens culturais e políticas da Revolução Industrial

se afirma na sociedade europeia não somente an- sidades burlavam abertamente as restrições da
tes do advento de governos democráticos e res- Igreja sobre a dissecação de cadáveres, Schach-
ponsáveis, como também do próprio processo de ner (1938, 3) constata que:
formação dos estados nacionais centralizados a
partir do século XV. Por essa razão, mesmo os A universidade era a querida, a criança
mimada, de todos, do Papado e do Império, do
Estados mais absolutistas na Europa jamais atin-
rei e da municipalidade. Privilégios eram con-
girão o nível de poder despótico dos “despotis-
cedidos para as orgulhosas universidades num
mos orientais”.
fluxo dourado contínuo; privilégios que não
As Universidades tinham contrapartida, nem antes, nem depois,
nunca. Nem mesmo as hierarquias sagradas da
No esforço de busca de fontes da lei Igreja tinham tantas isenções quanto o pobre
que pudessem fortalecer a reivindicação de ju- universitário pedinte que solicita a proteção de
risdição universal em determinadas matérias, uma Universidade. As municipalidades compe-
os sucessores de Gregório VII redescobriram o tiam violentamente pela honra de sedia-las en-
Código Justiniano no final do século XI. A partir tre seus muros; reis escreviam cartas de sirenes
de então, até os dias de hoje, este Código perma- para atrair grupos de ‘scholars’ descontentes
nece como base das leis civis praticadas em toda dos domínios dos rivais; Papas intervinham
a Europa continental e nos países colonizados ou com linguagem de ameaças para compelir a
influenciados por ela. O vigor deste “revival” do realeza a respeitar a inviolabilidade dessa ins-
tituição favorita.
direito romano resultou em grande medida do
fato de que os estudos legais haviam sido esta-
O novo currículo legal da Universi-
belecidos sobre novas bases institucionais com
dade de Bolonha atraía estudantes de toda Eu-
a “invenção” da Universidade moderna, come-
ropa. Logo as demais universidades começam a
çando em Bolonha em 1088, a partir das escolas
competir fortemente nesse domínio, com desta-
das Catedrais. A diferença fundamental da Uni-
que para a Universidade de Paris. Desse modo,
versidade em relação aos demais tipos de insti-
o sofisticado sistema legal do Código Justinia-
tuições de ensino superior na Europa e em outras
no pôde ser usado como modelo para a lei nas
sociedades, estava na liberdade e autonomia de
diversas regiões. Depois de um período inicial
pesquisa, de debate. Autonomia garantida por
de reconstrução e reprodução do direito romano,
todas as instâncias de poder. Em 1158, o Impera-
gerações de “scholars” foram mais longe na bus-
dor Federico I promulga uma “Constitutio Habi-
ca dos fundamentos intelectuais da lei, indo até
ta” (lei orgânica da universidade) que transforma
os filósofos gregos. Os filósofos clássicos como
praticamente a Universidade de Bolonha em uma
Aristóteles consideravam que a tradição legal re-
Cidade Estado. As municipalidades disputavam
cebida deveria ser submetida à razão humana e
entre si o privilégio de sediar uma universidade.
confrontada com padrões mais universais de ver-
O papado defendia a autonomia das universida-
dade. Nesse sentido, a recuperação da tradição
des frente aos poderes estabelecidos, além de
filosófica clássica nas universidades europeias,
respeitar a autonomia de pesquisa mesmo quan-
sobretudo pelo trabalho de São Tomás de Aquino
do esta confrontava a doutrina e/ou orientações
na Universidade de Paris, encorajou sucessivas
da Igreja.
gerações de comentadores legais a irem além da
reprodução mecânica de um corpo de leis exis-
Refletindo sobre o fato de que as univer-
tente, para refletir racionalmente sobre as fontes

86 História e Economia Revista Interdisciplinar


da lei e como ela poderia ser aplicada em novas monastérios em modelos para a solução de pro-
situações. blemas técnicos não agrícolas, desde o reforço e
manutenção de diques na Hollanda passando por
Uma classe separada de especialistas le- técnicas de perfuração de poços e de construção
gais emerge das corporações universitárias, e que de pontes11, até atividades industriais variadas
passa a agir de modo análogo a uma corporação que tenderam a se tornar especialidades de cada
de ofício no aperfeiçoamento da sua “arte”. Com mosteiro. Evoluiram para se transformarem em
o tempo tanto as autoridades religiosas como as empresas proto-capitalistas, onde o trabalho era
laicas vieram a compreender que deveriam con- valorizado, porém não o trabalho pesado e repe-
fiar no conhecimento de especialistas legais ao titivo ! O que era valorizado era muito mais o tra-
tomar decisões, em especial na esfera comercial balho criativo, incluindo o dos engenheiros que
onde contratos e direitos de propriedade eram inventavam formas de torná-lo menos penoso12.
fundamentais.
Um documento do século XIII sobre o
A partir da reforma gregoriana a Igreja papel da energia hidráulica na mecanização dos
pouco a pouco adquire uma estrutura de Estado, trabalhos no monastério cisterciense de Clair-
com uma legislação própria, o Direito Canônico, vaux dá uma ideia notavelmente clara do nível
e uma burocracia profissional, similar à que se de mecanização atingida e do entusiasmo pela
desenvolvera na China séculos antes. A reforma sua adoção:
gregoriana ofereceu não somente um modelo bu-
rocrático e legal para os novos Estados centrali- Um braço de rio, atravessando as nu-
zados que começam a emergir na Europa, como merosas oficinas da Abadia, se faz benzer em
também estimulou o surgimento de uma plura- todo lugar pelos serviços que proporciona...o
lidade de novas formas legais relativas a distin- rio se lança inicialmente com impetuosidade so-
tos domínios – o feudo, a cidade, o comércio de bre o moinho, onde se torna muito agitado e se
longa distância, o que motivou a competição contorce, tanto para moer o grão sob o peso das
entre jurisdições. Particularmente importante pedras molares, como para agitar a peneira que
foi a ascensão das cidades independentes para o separa a farinha da palha. Ei-lo em seguida no
desenvolvimento da lei comercial em função da compartimento vizinho ; ele enche a caldeira e
sua dependência em relação ao comércio exter- se entrega ao fogo que o cosinha para preparar a
no. Assim, o Império da Lei existiu antes do po- cerveja dos monges se a colheita de uvas foi não
der político se concentrar nas mãos de governos foi boa. O rio não desiste. Os moinhos de prensa-
centralizados. gem de tecidos os chama por seu turno. Ele que

As Ordens Monásticas 11 Uma ordem monástica como dos Cartuxos, por exemplo, furou o
primeiro posso suficientemente profundo através do estaqueamento de
tubos de ferro de poucos centímetros de diâmetro, de modo que a água
Os monastérios tiveram um papel pio- não precisava ser bombeada, subindo sob pressão subterrânea. Foi o
primeiro poço “artesiano” da história e cujo nome deriva da região
neiro na busca sistemática por inovações de de Artois onde se localizava o monastério. No caso das pontes uma
ordem monástica especializada foi constituída, a Ordem dos ‘Irmãos da
todo tipo, em especial os da ordem de Citeaux. Ponte’, que tendiam a construir pontes cobertas de instalações como
moinhos e residências. Ver Gies1994, 112 e 148-149)
Como vimos acima, esta ordem venceu a bata- 12 O desdenho dos intelectuais da antiguidade pelo trabalho não se
lha « sócio-ideológica » em favor da visão do limitava ao trabalho manual. Nos Gorgias, Platão já assinalava o
desprezo do filósofo pelo engenheiro: « Il n’en est pas du tout moins
trabalho como dignificante para o homem. De vrai que toi, tu es pour lui plein de mépris, ainsi que pour l’art qui
est le sien; que ce serait en manière d’opprobre que tu le traiterais de
modo geral, além de fazendas modelo as novas mécanicien, et que tu ne consentirais ni à donner à son fils la main de
ta fille, ni à prendre pour toi la sienne ». Platon, Gorgias, 512c. Apud.
ordens monásticas transformaram também seus Gimpel, (1975, 8).

História e Economia Revista Interdisciplinar 87


As origens culturais e políticas da Revolução Industrial

estava ocupado em preparar a comida dos mon- Veneza era politicamente independente, mas
ges, pensa agora em suas vestimentas. Ele não tinha como suserano o Imperador Bizantino,
recusa nada que lhe pedem. Ele eleva ou abaixa ao qual fornecia apoio naval e intermediava as
alternativamente estes pesados pilões, estes mar- trocas com o Império (Carolíngio) no Ociden-
telos, ou melhor dizendo, estes pés de madeira, te. Mantinha também relações comerciais com
poupando assim aos monges de grandes fadi- o mundo islâmico no oriente médio e norte da
gas...quantos cavalos se esgotariam, quantos ho- África. Um próspero triangulo comercial: bens
mens fatigariam seus braços neste trabalho que de luxo orientais (principalmente, especiarias,
faz por nós este gracioso rio, ao qual nós deve- seda e joias) e “commodities” ocidentais (ferro,
mos nossas vestimentas e nossa comida. Quando madeira, suprimentos navais e escravos); além
ele faz girar de um movimento acelerado tantas de mercadorias “venezianas” (sal das suas la-
rodas rápidas, ele sai espumando, como se esti- gunas e vidro). A posição de Amalfi era similar,
vesse moído. Ao sair daí, ele entra no curtume, mudando apenas os tipos de mercadorias produ-
onde ele prepara o couro necessário ao calça- zidas localmente: tecidos, produzidos localmente
mento dos monges ; ele mostra aí tanto atividade em quantidades fora do comum, e óleo de oliva.
como cuidado, pois ele se divide em numerosos Mas era menos independente politicamente do
pequenos braços para visitar diferentes serviços, que Veneza por não ter a proteção do mar contra
procurando diligentemente por todo lugar aque- os senhores feudais circundantes.
les que têm necessidade de seus serviços, que se
tratasse de cosinhar, tanar, quebrar, molhar, lavar Na medida em que o progresso de Vene-
ou moer , não recusando jamais seu serviço. En- za e Amalfi estava deslocando o centro de poder
fim, para completar sua obra, ele leva embora as naval e econômico para península italiana, dois
imundices deixando tudo limpo.13 portos do outro lado se juntaram a elas, Genova e
Pisa, depois de terem conseguido conjuntamente
As Cidades Independentes expulsar os mulçumanos da Córsega e da Sar-
O caráter distintivo único das cidades denha, acabando com os saques e devastações
medievais na Europa ocidental resultou de um que sofriam. Nestas cidades virtualmente todos
processo que começou com as cidades portuárias os habitantes eram homens livres e participavam
italianas na costa do Adriático e foi se estenden- de algum modo, mesmo que modestamente, das
do pelo interior sob lideranças destas. Segundo assembleias municipais e em atividades admi-
Lopez (1976), estas cidades, como era comum, nistrativas menores. Desde meados do século
mantinham ligações de vassalagem com mais de VIII mercadores aí serviam no exército em pé
um suserano, no esforço de se manterem relati- de igualdade com senhores fundiários com renda
vamente independentes. A diferença, entretanto, equivalente e todos os cidadãos eram responsá-
é que estas cidades portuárias, com destaque para veis pela defesa das muralhas.
Veneza e Amalfi, mantinham ligações com o Im-
pério Bizantino. Isto explica, provavelmente, o Os filhos mais novos da nobreza feudal
fato extraordinário de que suas elites, incluindo circundante encontravam nas cidades italianas
as que possuíam terras, desde muito cedo par- uma oportunidade econômica no comércio, bem
ticipavam ativamente do comércio marítimo14. como de continuar exercendo a atividade para
a qual foram educados a vida toda: o combate
13 Descriptio Monasterii Claraevallensis, Migne, Patr. Lat., t.185, 570
A-571 B. Apud Gimpel (1975, 11-12). militar nas lutas frequentes contra piratas, “in-
14 Já no começo do século IX o testamento do Doge veneziano Justinia-
no Partecipazio mencionava entre seus bens uma soma substancial in- vestida em empreendimentos ultramarinos. Ver Lopez, (1976, pos.829).

88 História e Economia Revista Interdisciplinar


fiéis”, cidades concorrentes e na “abertura” de dependentes, desde os longos séculos de violên-
mercados. Comerciantes e nobreza fundiária cia e distúrbios da Alta Idade Média. Alternando
se fundiram, inclusive literalmente através do alianças com diferentes suseranos, sobretudo
casamento, sendo vistos conjuntamente a partir com as monarquias em suas disputas contra os
do século XII como pertencentes à categoria dos senhores feudais, as cidades foram conquistando
“magnatas” que se distinguiam dos “populares” graus variados de autonomia. Funcionando cada
pela renda e não por títulos de nobreza. Por esta vez mais como uma fronteira interna aos domí-
razão era comparativamente mais fácil para a po- nios agrários feudais, tiveram um papel decisivo
pulação urbana como um todo depor ou comprar na dissolução dos laços de servidão ao oferecer
o senhor feudal suserano da cidade e estabelecer abrigo e oportunidades aos que abandonavam a
o próprio governo comunal, sob a direção dos servidão no campo. Também a monetização da
magnatas, mas com participação em graus varia- economia promovida pela expansão comercial
dos de todos os cidadãos. torna mais embaçada a distinção entre servidão
e arrendamento livre, na medida em que ambos,
Foi bem mais difícil para as cidades do servos e arrendatários livres, passaram a ter obri-
interior conquistarem sua independência dos se- gações em dinheiro, acelerando o movimento em
nhores feudais cuja cavalaria pesada era inicial- direção à liberação geral.
mente superior às forças da burguesia compostas
de falanges ainda pouco numerosas de lanceiros Como assinala Lopez (1976), a revo-
apoiadas por arbaleteiros. Com o tempo, o acu- lução comercial-urbana na Europa medieval
mulo de capacidade militar permitiu-lhes forçar permitiu, de modo inédito na história das civi-
os senhores locais a se tornar membros das co- lizações, a liberação da renda agrícola para in-
munas como única alternativa à ruina total. Em vestimento nos negócios e viabilizou operações
1176 a Liga das cidades Lombardas venceu em de crédito mais flexíveis, dois importantes obs-
Legnano o senhor supremo da Itália, o Impe- táculos que impediam o crescimento econômico
rador Frederico Barbavermelha, conquistando na antiguidade. A forte expansão do crédito foi
completa independência; a partir de então seu o grande lubrificante desta revolução num con-
elo de vassalagem com o Imperador se tornou texto inflacionário e de escassez de moedas. Esta
apenas nominal. Pouco tempo depois as cida- expansão foi obtida através de novas formulas
des da Toscana atingiram o mesmo status sem de parcerias e outros arranjos para dividir riscos
ter que lutar. No século XII as comunas italianas e lucros, os quais resultaram, segundo Lopez
haviam se tornado essencialmente “governos de (1976, pos.951), da insistência da Igreja de que
mercadores, por mercadores e para mercadores” os empréstimos eram pecaminosos a menos que
(Lopez, 1976). fossem concedidos sem juros no espirito da cari-
dade (“grátis e amore Dei”) e da mesma atitude
A ascensão das cidades italianas e a de cooperação que envolvia a colaboração de
revolução comercial-urbana que lideraram não homens de todas as classes na luta política que
teriam ocorrido sem uma resposta à altura por levou no final a ascensão das comunas indepen-
parte da sociedade feudal em que estavam inse- dentes. O desenvolvimento dos contratos comer-
ridas. As cidades eram parte importante de um ciais foi tão crucial na história do comercio como
processo evolucionário institucional de forma- aquele das ferramentas e técnicas na história da
ção dos Estados feudais, caracterizado pela dinâ- agricultura.
mica de múltiplas organizações corporativas in-

História e Economia Revista Interdisciplinar 89


As origens culturais e políticas da Revolução Industrial

O desenvolvimento bancário e financeiro para outro que se dispõe a viajar para realizar um
foi praticamente um subproduto da expansão do negócio. O primeiro assume os riscos do capital
comércio internacional. O que banqueiros locais e tem direito a ¾ dos lucros; o segundo assume
de depósitos não podiam fazer – tinham um capi- os riscos do trabalho, sendo o único responsável
tal limitado, eram regulados pelas municipalida- pelas transações comerciais efetuadas, e fica com
des e corriam o risco de serem processados por ¼ dos lucros. A notar que esse mesmo comer-
tribunais eclesiásticos por usura – era mais fácil ciante que avança um capital a outro, também
para os comerciantes engajados no comercio in- faz o inverso, recebendo capital de outros co-
ternacional. As operações no exterior juntamente merciantes para investir em viagens de negócios.
com as inovações contratuais que introduziram Nos primeiros contratos se exigia que a presta-
os permitia legitimamente praticar as mesmas ção de contas fosse apoiada em alguma espécie
operações de crédito em conexão com suas ativi- de prova sobre o valor dos lucros auferidos, mas
dades comerciais: eles aceitavam depósitos que com o tempo os negócios fluíam na base da con-
pagavam juros, ampliando subsequentemente fiança mútua. Progressivamente as atividades co-
os empréstimos com juros maiores sem risco de merciais se tornam rotineiras, com a competição
serem condenados pela Igreja. Eles se benefi- reduzindo a taxa de lucro. Os comerciantes mais
ciavam plenamente de instrumentos inovadores experimentados podiam dirigir seus negócios
como as letras de câmbio para cobrar os juros sem viajar, através de empregados e agentes co-
que quisessem. Estas consistiam em contratos merciais. No começo do século XIV na Itália a
pelos quais uma parte recebia de outra um avan- taxa média de juros dos empréstimos comerciais
ço em moeda local e prometia pagá-lo de volta havia caído para 8 a 12%. Na Alemanha a taxa
em outra moeda em outro local. Ostensivamente, legal ainda era de 43% (em Nuremberg).
o objetivo principal deste tipo de contrato era for-
necer a uma segunda parte dinheiro no exterior, Durante o século XIII o centro de gravi-
poupando-a do risco e do custo de viajar carre- dade do comércio no mediterrâneo se deslocou
gando o dinheiro local. Nesse esquema a primei- definitivamente para os “quatro grandes” do cen-
ra parte tinha direito de cobrar pelo serviço de tro e do norte da Itália: Veneza, Milão, Florença
garantir a transferência dos fundos e de fazer o e Genova15. No restante da região mediterrânea
câmbio para outra moeda. Dado que transcorria somente os comerciantes catalães conseguiram
um certo período de tempo entre o avanço em concorrer com os italianos e no começo do sé-
moeda local e o pagamento em moeda estrangei- culo XIV controlavam uma parte importante do
ra, a transação envolvia na verdade um emprésti- comércio internacional de longa distância. No
mo da segunda parte para a primeira, pelo qual a Norte, o fim das invasões e a expansão agrícola
primeira parte pagava um juro escondido na taxa a partir do século X, também tornaram possível,
de cambio. como na Itália, a um certo número de cidades
da Alemanha desenvolver seu próprio comércio
A commenda foi outra inovação con- local e de longa distância (no Báltico), desafiar
tratual de extrema importância. Foi o mais próxi- a autoridade do imperador e de seus vassalos e,
mo antecedente medieval da moderna sociedade com o tempo, construírem seu império comercial
anônima e, como muitas outras, envolvia alguma e colonial. Os principais produtos comercializa-
forma de crédito. Na sua forma mais simples, um dos neste “mediterrâneo” do Norte eram fibras,
comerciante de uma cidade avança um capital 15 Em 1293 o comércio marítimo de Genova era 3 vezes maior que toda
a renda do reino da França.

90 História e Economia Revista Interdisciplinar


grãos, madeira, resinas, alcatrão, mel, cera, pe- ferro e, sobretudo, tecidos de linho e de lã.
les, metais preciosos e semipreciosos, lã, sal e
arenque salgado. No canto ocidental do Báltico Lopez (1976, pos.1369) considera que
os ingleses e holandeses conseguiram contro- “talvez o subproduto mais notável da crescente
lar o comércio, sendo que muitas commodities maturidade da expansão comercial tenha sido a
das regiões atlânticas, como o vinho gascão e o consolidação das colônias comerciais e a cres-
ferro basco, eram comercializados por comer- cente dependência dos comerciantes internacio-
ciantes locais; a navegação de cabotagem de nais em relação a agentes baseados no exterior”.
curta distância era um negócio de todos. Prati- Na verdade, este não foi um subproduto, mas
camente toda a produção do interior distante do um fator decisivo da expansão comercial o qual,
mar era comercializada nos centros regionais por sua vez, só foi possível devido a duas inova-
e levada para os centros principais por comer- ções organizacional/institucionais: a Comuna e o
ciantes locais. Nestes os comerciantes italianos sistema de responsabilidade comunitária. Essas
predominavam. duas inovações proveram uma governança de
Estado peculiar diante da ausência de Estados
As feiras de Champanhe eclipsaram centralizados, garantindo uma governança rela-
todas as demais a partir do final do século XII tivamente democrática, capaz de garantir direi-
até o começo do século XIV. Elas deveram seu tos de propriedade, e garantindo ao comerciante
sucesso ao fato que elas inovaram ao funcionar envolvido no comércio de longa distância duas
em rotação entre as cidades do local durante todo condições essenciais para a expansão de suas ati-
o ano, servindo principalmente como centro de vidades comerciais: a possibilidade de empregar
trocas monetárias e de mercadorias para merca- agentes no exterior sem ser enganado (problema
dores que para lá convergiam de toda a Europa e principal-agente) e evitar que os governantes de
não estavam interessados em negócios locais. As outras jurisdições agissem predatoriamente.
mercadorias eram representadas por amostras, no
máximo; e a moeda quase que inteiramente subs- A Comuna se constituía em uma associa-
tituída por instrumentos de crédito. Entram em ção voluntária juramentada temporária, dirigida
declínio quando os italianos começaram a ir di- por cônsules que eram eleitos por um período li-
retamente com seus navios aos portos do mar do mitado por um parlamento composto de todos os
Norte, lá estabelecendo escritórios permanentes. cidadãos de “pleno direito”. Era uma comunida-
de auto-governada que ocupava uma área cinza
No eixo comercial norte-sul/oriente (o entre o Estado e as comunidades. Era similar a
Levante), através da Itália, as principais merca- uma comunidade na medida em que se caracte-
dorias provenientes do Levante podem ser agru- rizava pela familiaridade pessoal intra-comuni-
padas em dois grupos de matérias primas de alto tária. Mas também era similar a um Estado dado
valor: 1-) especiarias (temperos, em especial a que possuía um monopólio geograficamente lo-
pimenta que também era um conservante, produ- calizado sobre o uso legal de poder coercitivo.
tos medicinais e tintas de tecido); 2-) seda bruta,
pedras preciosas, marfins. Do Norte as mais ex- O sistema de responsabilidade comuni-
portadas inicialmente eram os metais não precio- tária, por sua vez, resultado de uma associação
sos e a madeira; mas cedo uma crescente e varia- das comunas com as guildas comerciais, foi ca-
da lista de produtos industriais começou a entrar paz de coordenar a ação coletiva de um grupo
em cena: vidro, armas e outras mercadorias de de interesses, como os dos mercadores de uma

História e Economia Revista Interdisciplinar 91


As origens culturais e políticas da Revolução Industrial

cidade, evitando os conflitos internos ao grupo esforços intencionais coordenados de muitos in-
e, ao mesmo tempo, tornando possível o esta- divíduos não relacionados por ligações de paren-
belecimento de atividades comerciais de longa tesco. As estruturas sociais criadas através destes
distância entre agentes econômicos não relacio- esforços não dependiam da participação de um
nados por ligações de parentesco e com direitos membro em particular, sendo autogovernadas e
de propriedade assegurados vis-à-vis a Estados baseadas nos interesses mútuos de seus partici-
potencialmente predadores. No sistema de res- pantes. Elas eram autogovernadas no sentido de
ponsabilidade comunitária, o tribunal de uma que seus membros participavam na especificação
comuna responsabilizava todos os membros de das regras que regulavam suas atividades. Esta
outra comuna pelo dano causado por um de seus participação é que tornava as regras legítimas.
membros. Se o tribunal da Comuna do fraudador Em outras palavras, corporações econômicas e
se recusasse a compensar a parte lesada, o tribu- políticas foram centrais para a estrutura institu-
nal da Comuna do fraudado ordenaria o confisco cional em que se baseou a expansão comercial
da propriedade de quaisquer dos membros da medieval.
Comuna do fraudador presentes na sua jurisdi-
ção para compensar o fraudado. O único modo Nesse sentido, para Greif (2006), a visão
da Comuna do fraudador evitar a compensação tradicional de que o surgimento do Estado cen-
seria não ter negócio algum com a Comuna do tralizado foi uma precondição para a expansão
fraudado. Mas isto poderia representar um cus- dos mercados deve ser revista à luz da história
to muito elevado. Portanto, o comportamento do sistema de responsabilidade comunitária: este
mais sensato do tribunal de uma Comuna seria sistema é que possibilitou a expansão dos mer-
dispensar uma justiça imparcial, punindo seu cados, expansão esta que deu origem a uma de-
próprio membro fraudador de um membro de manda institucional que influenciou o desenvol-
outra comuna. Este sistema de reponsabilidade vimento de instituições estatais/governamentais
comunitária transformou as comunas em organi- baseadas na lei. Nos lugares onde os futuros Es-
zações de vida perpétua, as quais internalizavam tados nacionais puderam responder a esse desa-
o custo da fraude cometida por qualquer um de fio de ampliação do seu papel, mas mantendo-se
seus membros contra os membros de outra co- constrangidos a não abusar dos direitos, como no
munidade. 16 caso inglês, os mercados prosperaram.

Acumulação de Capital e Produti-


Portanto, o binômio Guilda/Comuna re-
solveu na Europa pré-moderna o problema da
vidade do Trabalho
troca impessoal, caracterizada pela separação A revolução comercial promovida pelas
entre quid e quo através de fronteiras jurisdicio- cidades independentes vai impactar fortemente
nais, por meio de uma instituição capaz de fazer os setores agropecuário e manufatureiro, eles
valer as regras (self-enforcing). Ordem privada, próprios possuidores de uma dinâmica evolucio-
baseada em instituições capazes de fazer valer nária progressiva.
as regras por elas criadas, foi a marca distinti-
va da expansão comercial medieval, sendo que
este quadro não resultou, como pensavam Hayek
e Friedman, de uma “ordem espontânea” entre
Uma Revolução Pré-Industrial17
17 Optamos por empregar a expressão pré-revolução industrial em
vez de revolução na medida em a divisão do trabalho era basicamente
agentes econômicos, mas sim foi o produto de setorial/regional e não no próprio processo produtivo. Este era ainda
16 ver: Greif (2006). largamente artesanal nos processos onde não fosse possível mecanizar,

92 História e Economia Revista Interdisciplinar


A enorme ampliação do espaço comer- partes do processo começa a se impor naqueles
cial possibilitada pelo sistema de responsabili- setores mais dinamicos como o textil. A produti-
dade comunitária, unindo comercialmente todo vidade do trabalho aí foi elevada ao máximo pos-
o espaço europeu mais o comércio internacional sível pela parcelização das tarefas : a produção
com o oriente e norte da África, teve por efeito de uma peça de pano passava por 26 operações
um significativo aumento de produtividade ao distintas, cada uma executada por um trabalha-
estimular e tornar possível especializações regio- dor especializado (Gimpel, 1975).
nais. O próprio processo produtivo, por sua vez,
vai sofrer continuas modificações tendentes a au- Para Lopez (1976), do mesmo modo que
mentar a produtividade do trabalho. Inicialmente a indústria têxtil baseada no algodão sobretudo
as Guildas, organizações corporativas de ofício iniciou a Revolução Industrial no século XVIII,
(uma importante inovação institucional), tiveram a indústria têxtil baseada na lã iniciou a Revolu-
um papel central na organização do trabalho e ção Pré-Industrial medieval no século XII. Uma
no aperfeiçoamento dos métodos produtivos. das razões para este fato está exatamente em que
Elas tinham a mesma origem de suas congeneres a produção de têxteis era dividida em operações
comerciais, nas confrarias de ajuda mutua, com especializadas a cargo de diferentes Guildas,
seus respectivos santos padroeiros, que caracteri- mas que, em função da interdependência entre
zavam a vida social em evolução nas cidades. Na elas, pouco a pouco são integradas numa única
Corporação de Oficio o trabalho era estruturado unidade gerencial. Cada operação pode ser ace-
hierarquicamente, dos aprendizes até o mestre lerada por meio de inovações relativamente sim-
superior, mas a mobilidade era aberta ao talento ples – a tecedora a pedal no lugar da tecedora
e a dedicação. A corporação estabelecia os níveis manual e a fiação com a roca no lugar da fiação
de qualidade do produto e o preço justo para ga- manual. Em segundo, o fato de que a flexibili-
rantir a remuneração adequada de toda a hierar- dade e o peso tanto das matérias primas como
quia de artesãos. Sob esta forma de organização dos produtos acabados permitem minimizar o
a qualidade artesanal dos trabalhos atingiu níveis impacto dos custos de transporte decorrentes da
muito elevados, como o testemunha o Museu da concentração da produção nos lugares mais favo-
Ferramenta de Dijon, com sua enorme coleção ráveis em termos de disponibilidade de mão de
de ferramentas especializadas de todos os tipos obra e de capacidade empreendedora, como nos
para os acabamentos os mais aperfeiçoados. países baixos em especial.

No entanto, a expansão dos mercados A indústria da seda na Itália não ficou


puxada pela Revolução Comercial irá pouco a muito atrás da indústria da lã nos países baixos.
pouco destruir esta estrutura por dentro e por Também a produção de tecidos de linho, espe-
fora. Por fora pelo sistema de « putting-out », cialmente para a roupa de baixo (‘lingeries’),
que consistia em deslocar a produção para os teve importância equivalente, sendo os princi-
vilarejos rurais fora da juridisção das Guildas. pais centros produtores na Suíça e no vale do
Por dentro, na medida em que a superior pro- Reno alemão. Novos produtos têxteis mais bara-
dutividade possibilitada pela parcelização do tos como o fustão foram também desenvolvidos
trabalho artesal em operações especializadas de a partir de uma mistura de algodão e lã. Por volta
de 1200 uma peça de fustão custava um vigésimo
embora já a partir da segunda metade do século XIII a produção
capitalista fora do controle das Guildas cresce rapidamente, e onde de uma peça de lã de boa qualidade. A produção
a divisão do trabalho interno se aprofunda numa relação de trabalho
propriamente capitalista. têxtil medieval com base no putting-out chegou

História e Economia Revista Interdisciplinar 93


As origens culturais e políticas da Revolução Industrial

perto da indústria têxtil inglesa nas vésperas da ser praticado durante séculos sem degradar a flo-
Revolução Industrial. resta. Nesse sistema de cultivo, a produtividade
do trabalho é relativamente elevada. Certamente
Expansão Agropecuária e
superior àquela obtida com o sistema de cultura
Produtividade do Trabalho permanente que lhe irá suceder. Essa diferença
A dinâmica de inovações no setor agro- se deve principalmente, aos menores custos do
pecuário não poderia deixar de ter um impacto trabalho de preparo do solo e de controle de er-
evolucionário decisivo numa sociedade pesada- vas daninhas.
mente rural. A ruralidade feudal se forma durante
os longos séculos de perturbações e violências da O estado estrutural do solo coberto pela
Alta Idade Média, desde a queda do Império Ro- floresta permite que seja semeado imediatamente
mano. Em termos de sistemas de produção a vio- após a queimada, em um modo que hoje é co-
lência leva ao abandono da agricultura itinerante nhecido como plantio direto, poupando o traba-
em benefício de uma agricultura permanente: em lho de preparação. Além disso, clareiras abertas
busca de proteção as populações vão se fixar nas para cultivo na floresta não são invadidas por
diversas regiões em torno de um chefe guerrei- ervas daninhas. Desse modo, no terreno flores-
ro18. As condições ecológicas para a agricultu- tado basta o fogo uma única vez para ter o solo
ra que resultam desta fixação populacional são pronto para o cultivo. Tudo indica, ainda, que o
radicalmente distintas daquelas da agricultura rendimento da terra também era superior àquele
itinerante. No meio florestal a agricultura itine- obtido com os sistemas de cultura permanente,
rante consiste basicamente em preparar o campo graças aos nutrientes minerais presentes nas cin-
de cultura queimando uma parte da floresta. O zas. Em campo aberto permanente, além de um
fogo limpa o terreno, elimina uma série de para- custo mais elevado para manter a fertilidade do
sitas e micro-organismos nocivos, além de tornar solo, acrescente-se o custo extremamente eleva-
disponíveis para as culturas os elementos mine- do para controlar ervas daninhas. Em um terreno
rais contidos na matéria orgânica florestal, que coberto por ervas invasoras (gramíneas), o fogo
voltam ao solo através das cinzas. pode ter apenas um papel complementar, sendo
necessário um penoso trabalho de controle mecâ-
O solo assim aberto é cultivado durante nico. Como observa Sigaut (1975, 167), “o maior
alguns anos, enquanto suas reservas de nutrien- inimigo do agricultor de outrora não era a árvore,
tes permitirem. Uma vez esgotado, ele é abando- mas sim o capim”. Assim sendo, seria realmente
nado pelos agricultores durante um período de incompreensível o abandono pelos agricultores
tempo suficientemente longo para que a floresta do sistema de cultura itinerante em favor do sis-
se recupere. Esse período de recuperação da flo- tema de cultura permanente mais trabalhoso se
resta varia em função do clima. Nas regiões tro- algo não os houvesse constrangido a fazê-lo.
picais ele é mais rápido do que nas regiões mais
setentrionais. Na Europa do Norte, esse período O sistema de cultura permanente que su-
parece ter variado entre 30 e 35 anos. Desde que cede o sistema de cultura itinerante na Europa do
o período de recuperação necessário seja res- Norte ficou conhecido por sistema de “pousio”
peitado, esse sistema de cultura é perfeitamente (jachère). Para Sigaut (1977), esse método seria
equilibrado do ponto de vista ecológico, podendo uma alternativa econômica à capina manual no
controle das ervas daninhas durante todo o pe-
18 Mancur Olson (2000) procurar mostrar como este era um resultado
previsível por ser a solução mais eficiente de defesa. ríodo de crescimento dos cultivos. A lógica eco-

94 História e Economia Revista Interdisciplinar


nômica dessa escolha é a seguinte: na impossi- ervas daninhas (capim), o novo arado19, ao con-
bilidade de se obter fertilizantes em quantidade trário do arado da antiguidade que apenas sulca-
suficiente de fora do espaço agrícola, o terreno va a terra, revira o solo de modo a expor ao sol
cultivado recebe uma fertilização incompleta, as raízes das ervas daninhas. Nesse novo sistema
proveniente do esterco dos animais e dos restos de cultura permanente, o terreno foi dividido
de cultura, insuficiente para repor os elementos inicialmente em duas partes (sistema de rotação
minerais retirados com a colheita. Nessas condi- bienal), sendo que uma permanece em “pousio”.
ções, o rendimento da terra é limitado pela pouca No período seguinte, a cultura troca de lugar,
quantidade de elementos fertilizantes liberados a permanecendo em “pousio” a faixa que fora
cada ano por mecanismos físico-químicos natu- cultivada no período anterior. Esse período de
rais. Segundo experimentos realizados na Esta- “pousio” foi confundido por um grande número
ção Experimental de Rothamsted na Inglaterra, de autores20 com um período de “descanso” para
o rendimento médio que se pode esperar nesse que o solo recupere a fertilidade. Nesse caso, a
caso é de cerca de 10 quintais por hectare ao ano lógica de alternância de cultivos seria análoga
(no caso do nitrogênio ser o fator limitante). àquela da agricultura itinerante, mas com o pe-
ríodo de “descanso” reduzido para apenas um
Dada essa produtividade da terra, havia ano. Na verdade, como precisa Sigaut (1977),
dois procedimentos alternativos para controlar as essa ideia vai contra o próprio sentido etimológi-
ervas daninhas: o primeiro consistia em semear co da palavra “jachère”, usada para caracterizar
os cereais todos os anos sobre todo o terreno, o sistema na França e que quer dizer trabalhar a
para colher 10 quintais por hectare ao preço de terra. Durante todo o período de “pousio” a ter-
numerosas capinas necessárias para controlar as ra é trabalhada. Essa divisão do terreno em fai-
ervas daninhas que, nessas condições, não ces- xas entre as quais se alterna o cultivo faz parte,
sariam de rebrotar. O segundo era o sistema de portanto, de uma técnica de preparo do solo. Na
“pousio”, que consiste em semear sobre uma Europa do Norte úmida seu papel primordial era
parte do terreno a cada ano, de modo a dispor de controlar as ervas daninhas.
tempo suficiente para limpar das ervas daninhas
da parte do solo em “repouso”. Nesse caso, em Quanto à fertilização do campo de cul-
vez de colher 10 quintais por ha ao ano, obter- tura, esta representava efetivamente um gran-
-se-ia o dobro (20 quintais por ha) a cada dois de problema a resolver. Na impossibilidade de
anos. O produto é o mesmo, mas o trabalho gasto contar com fontes exógenas de nutrientes em
no controle de ervas daninhas e na semeadura é escala significativa, as técnicas de fertilização se
menor. Portanto, o sistema de “pousio” não teria 19 Ele é composto de 3 partes fundamentais: uma lâmina vertical,
outra horizontal inclinada, que tem por funções cortar e levantar o solo
sido a única resposta técnica possível para en- e uma aba curva fixada na parte superior, cuja função é fazer girar
em 180 graus o solo cortado. Mazoyer (1977) sustenta que sem esse
frentar os problemas ecológicos da agricultura instrumento não teria sido possível a prática de um sistema de cultura
permanente na Europa do Norte. O arado da antiguidade utilizado na
em campo aberto, mas sim a resposta mais eco- Bacia do Mediterrâneo, que apenas sulca o solo, não serve para romper
o denso tapete herbáceo e controlar a rebrota nos solos pesados e
nômica, ou seja, menos trabalhosa. úmidos da Europa setentrional.
20 Ver, entre outros autores, Bloch, (1976), Boserup (1970). Laurent,.
(1976) e Dovring (1965). Em especial Boserup (1970), que considera
Nessa busca por aumentar a produtivida- que o sistema de cultura medieval de faixas alternadas de “pousio”
teria sido o resultado do progressivo encurtamento do período de
de do trabalho a invenção do arado medieval, ou repouso necessário para a recuperação da floresta na agricultura
melhor da charrua, representou um salto decisi- itinerante. Desse modo, não teria existido ruptura, mas simplesmente
uma diminuição progressiva dos rendimentos à medida que se reduzia
vo. Concebido primordialmente para controlar o tempo de “repouso” da terra, até o ponto em que os agricultores
“teriam percebido” que com a introdução do arado poderiam impedir a
continuidade dessa queda dos rendimentos por hectare.

História e Economia Revista Interdisciplinar 95


As origens culturais e políticas da Revolução Industrial

baseavam na transferência de matéria orgânica de atrelamento anterior representava (literalmen-


das terras circundantes para o campo sob cultura te) um verdadeiro “ponto de estrangulamento”
permanente. Essa transferência era feita de duas que impedia o uso mais eficiente do novo instru-
maneiras: seja diretamente, através da coleta da mento agrícola22.
vegetação (étrepage), seja indiretamente, através
dos intestinos dos animais. A penúria da forra- White (1962) considera que essas inven-
gem disponível nas parcelas em “pousio” (restos ções combinadas dão origem a uma revolução
de cultura, ervas daninhas arrancadas) forçava os agrícola entre os séculos VII e IX comparável
camponeses a completar a alimentação do gado àquela que irá ocorrer nos séculos XVIII e XIX.
soltando-o nos bosques e pastagens naturais cir- O ponto culminante desse processo será atingi-
cundantes e recolhendo-o para o pernoite nos do com a passagem do sistema de rotação bienal
campos de cultura (“parcage de nuit”) de modo para o sistema de rotação trienal. Nesse último,
a aproveitar as dejeções noturnas. As perdas de a parcela a ser cultivada passa a ser dividida em
elementos minerais eram elevadas, especialmen- três faixas, sendo uma semeada normalmente
te de nitrogênio. com um cereal de inverno (trigo ou centeio) no fi-
nal do outono, outra permanecendo em “pousio”
5.1. Dinâmica da Mudança e a terceira, esta é a novidade, semeada no co-
Técnica meço da primavera com um cereal menos nobre
A invenção do arado pesado (charrua) como alimento humano (aveia, principalmente),
tornou possível trabalhar com mais eficiência, mas também menos exigente em nutrientes que
em termos da produtividade do trabalho, os solos o trigo. Desse modo, em vez de produzir somen-
pesados do norte da Europa. Foi uma resposta te sobre metade da parcela a cada ano, passa-se
tecnológica a uma mudança radical das condi- para 2/3 da área total, o que representa um ganho
ções agroecológicas ocasionada pela passagem de área de 34% em relação ao sistema de rotação
da agricultura itinerante para a agricultura per- bienal, para uma mesma quantidade de trabalho.
manente. Esse instrumento torna possível uma
Do ponto de vista do calendário agrícola,
preparação mais eficiente e rápida do solo. No
os dois sistemas apresentam as seguintes fases
entanto, seu uso plenamente eficaz é limitado
básicas do trabalho: no sistema bienal, semeadu-
quando atrelado a bois. O cavalo é o animal de
ra do cereal de inverno sobre a faixa que havia
tiro ideal por ser mais rápido. O problema é que
sido trabalhada durante o período de “pousio”,
o cavalo tinha uma capacidade de tração muito
aração do solo da faixa em “pousio” e colheita;
inferior àquela do boi, não apenas por ser me-
no sistema trienal, semeadura do cereal de inver-
nos forte21, mas principalmente devido ao siste-
no na faixa que havia sido trabalhada durante o
ma de atrelagem utilizado até então. Tratava-se
período de “pousio”, a aração do solo da faixa
de um sistema no qual o ponto de apoio para o
em “pousio”, semeadura da cultura de primavera
esforço de tração se localizava no pescoço do
na faixa que no período anterior havia sido cul-
animal, comprimindo a jugular. A solução para
tivada com culturas de inverno e duas colheitas.
esse problema foi a invenção do “colar” de ca-
valo (“horse collar”), um sistema de atrelamento
Para que esse novo calendário do traba-
que deslocava o ponto de apoio para o peito (ou
lho agrícola fosse exequível, o preparo do campo
“ombros”) do cavalo. Nesse sentido, o sistema
22 Com o cavalo torna-se possível também empregar grades dentadas
21 Essa deficiência será solucionada através da seleção de raças de destinadas a afinar o horizonte superficial do solo cujo uso eficaz só é
cavalos mais pesados e fortes. possível a partir de uma certa velocidade.

96 História e Economia Revista Interdisciplinar


para o plantio da cultura de primavera tinha que um ruminante, tem necessidade de complemen-
ser executado muito rapidamente, caso contrário tar sua alimentação com cereais. Com o sistema
não haveria tempo para que os grãos estives- de rotação bienal, a produção de cereais não era
sem maduros no final do verão. Como se nota, suficientemente grande para alimentar homens e
no novo sistema o trabalho é melhor distribuído animais. Com o sistema trienal, a cultura da pri-
ao longo do calendário agrícola, mas é também mavera, geralmente a aveia, será destinada quase
mais preciso e mais intensivo, necessitando de que exclusivamente para alimentar os cavalos. A
um conjunto de instrumentos de preparo de solo expansão do rebanho equino, por sua vez, terá
mais rápidos e possantes, o que somente poderia importância decisiva no desenvolvimento da
ser obtido com o uso do cavalo como animal de Europa.
tração. Apesar do fato desse novo conjunto de
aração ser conhecido desde o século VIII, sua A começar pelo estímulo a uma série
difusão mais ampla, juntamente com o sistema de atividades manufatureiras de ´produção dos
de rotação trienal, só adquire maior velocidade equipamentos relacionados ao uso eficiente do
a partir do final do século X. Segundo White cavalo. Dentre essas atividades, cabe mencionar
(1962), isto se deveu ao fato de que a mudança a metalurgia na produção de ferraduras, sem as
para o sistema trienal esbarrava nos interesses quais o uso intensivo do cavalo se tornava prati-
estabelecidos sobre a divisão das terras. Entre- camente inviável. Outro elemento de transforma-
tanto, este quadro fundiário sofreu um forte im- ção decisivo foi o emprego do cavalo no sistema
pacto com as grandes invasões Vikings do século de transporte, possibilitando a substituição do
IX e X, fazendo com que no final do século X lento carro de boi por toda uma gama de equi-
houvesse grandes áreas devastadas a serem re- pamentos (carroças, carroções, charretes, etc.)
povoadas, o que facilitou a adoção do novo sis- destinados a múltiplos e variados usos. A melho-
tema. É preciso considerar ainda o estímulo pro- ria da capacidade de transporte, por seu turno,
veniente da mudança climática favorável no final teve múltiplos impactos positivos, a começar por
do milênio23 e da forte expansão do comércio. Ao aqueles no próprio sistema produtivo agrícola,
aproximar-se o fim do primeiro milênio o lon- ao tornar possível a aplicação mais sistemática
go ciclo deflacionário e de declínio demográfico de corretivos de solo como o calcário, além de
que caracterizou esse período desde a queda do alguns tipos de fertilizantes químicos naturais.
Império Romano, se revertem (o custo de vida
Além disso, como assinala Mazoyer
quadruplicou na Inglaterra entre 1150 e 1325).
(1977, p. 31), sem o transporte de várias tone-
Está claro que não era possível implantar ladas de forragem, de palha e de esterco por
o sistema de rotação trienal sem a possibilida- cabeça de animal de grande porte por ano, não
de de empregar o cavalo como animal de tração teria sido possível estabular e alimentar o gado
pesada. No entanto, o inverso também era verda- no inverno e, por conseguinte, aumentar a produ-
deiro, isto é, a expansão significativa do rebanho ção animal e distribuir os fertilizantes orgânicos
equino para uso nas mais variadas atividades na produzidos24. Até então, como foi mencionado, o
Europa só se tornou possível com a difusão do método de fertilização consistia na transferência
sistema trienal. Isto porque o cavalo, não sendo de matéria orgânica, direta ou indiretamente, dos
23 Houve uma mudança climática importante provocada pelo movi- 24 Holmstrom, citado por Usher(1954), faz as seguintes estimativas
mento do ciclo glacial. Esse movimento depois de haver se expandido sobre a capacidade de diversos meios de transporte: Homem 1.750
entre os séculos V e VIII, tornando o clima ruim, começou a refluir toneladas por Km ao ano; Pequenos animais 1.600; Animais de grande
abrindo uma temporada climática mais amena e favorável à agricultura porte 3.600; Carros puxados por bois 8.650; Carros puxados por
que durou até o final do século XIII. cavalos 15.000.

História e Economia Revista Interdisciplinar 97


As origens culturais e políticas da Revolução Industrial

bosques e campos circundantes para a terra de nas costas dos homens utilizado maciçamente
cultura. As perdas eram elevadas. Com a estabu- em outras grandes civilizações como a Chinesa e
lação torna-se possível aproveitar integralmente a Hindu. Portanto, o aumento do rebanho equino
as dejeções dos animais que, além disso, passa- representa uma forma superior de, literalmente,
ram a ser tratadas por métodos de compostagem acumulação de capital25 qualitativamente distinta
que evitam as perdas de nutrientes, especialmen- daquela baseada em outros tipos de rebanhos.
te de nitrogênio. Em consequência, os rendimen-
tos por hectare evoluem para dobrar com o tem- Esse tipo de encadeamento entre téc-
po, compondo-se com a expansão de um terço da nicas é um fenômeno recorrente na história do
área cultivada com o sistema trienal para resultar progresso técnico. Via de regra, as técnicas não
num aumento muito significativo da produtivida- são isoladas umas das outras, mas articuladas
de do trabalho agrícola. num conjunto coerente; desse modo, basta que
um dos elos se altere para que uma série de dese-
É preciso considerar ainda que a quilíbrios apareçam, induzindo o surgimento de
verdadeira revolução no sistema de transporte novas técnicas para supera-los. O novo sistema
proporcionada pelo cavalo teve impacto produtivo que assim surge tem, por seu turno,
inclusive sobre a distribuição geográfica da impactos em outros setores da economia, cuja
população, levando ao que ficou conhecido evolução vai desempenhar um papel importan-
como um processo de “vilagelização”: essas te na própria difusão e desenvolvimento ulterior
maiores facilidades de transporte permitiram desse novo sistema produtivo, bem como da eco-
aos camponeses habitar em vilas e se deslocar nomia como um todo. A passagem para o siste-
diariamente para os campos. Isto facilitou a ma de rotação trienal não resultou, portanto, da
defesa das comunidades agrícolas, que tenderam pressão demográfica como tem sido assumido26
a se concentrar em vilas em torno de uma e sua generalização elevou a produtividade geral
igreja que servia de «casa de Deus e abrigo dos do trabalho agrícola. O novo sistema de rotação
homens» (lugar de reunião, de refúgio e mesmo trienal não exigia mais braços do que os já dis-
de celeiro em casos de colheitas excepcionais) poníveis, mas sim um meio de trabalhar mais
(Bloch,1976). Os impactos socioeconômicos e rapidamente a terra. As novas bocas a alimentar
sobretudo culturais e psicológicos desse processo não eram a dos homens, mas principalmente as
são incalculáveis. dos cavalos. E mesmo tendo em conta que estes
poderiam consumir quase inteiramente a nova
Em resumo, a partir da invenção do ara- produção de cereais, havia todo o interesse em
do, pode ser retraçada toda uma cadeia de inova- introduzir o novo sistema pelo simples fato de
ções e melhorias que desenvolveram a infraestru- poder alimentar mais cavalos, esses fantásticos
tura e a capacidade de transporte da coletividade, meios de trabalho, de transporte, além de temí-
aumentando seu potencial de acumulação de veis armas de guerra.
capital e dando origem ao que Mazoyer (1977)
chamou de “cultura atrelada”. Braudel (1979) Cabe acrescentar ainda que, com respei-
assinala como um dos elementos marcantes do to ao nível de vida do campesinato feudal, a di-
dinamismo da civilização europeia justamen- fusão desse conjunto de inovações proporcionou
te a utilização maciça do cavalo como meio de aos camponeses uma ração alimentar cotidiana
transporte humano e de carga, em contraste com 25 A origem da palavra capital é rebanho, “cheptel” em francês.
26 Ver Parrain (1942), Slicher van Bath (1966) e, especialmente, Bose-
o esforço sobre-humano que exigia o transporte rup (1967) e North. e Thomas (1973).

98 História e Economia Revista Interdisciplinar


altamente satisfatória, que incluía normalmen- ção se combinou com o crescimento da produção
te a carne. É totalmente falsa, portanto, a ideia local e com a progressiva substituição do artesa-
ainda prevalecente, pode-se dizer “popular”, de nato rural pelo artesanato urbano. O crescimento
que quanto mais se recua no tempo em direção à do excedente por unidade de trabalho tem impac-
Idade Média, mais se aprofunda a miséria. Como tos dinâmicos muito distintos dos impactos do
observa Braudel (1979, tomo 1, 163), o que se aumento da massa de excedente trazido apenas
passa e justamente o contrário. A deterioração pelo crescimento populacional: acirra a disputa
das condições de vida da massa camponesa co- entre servos e senhores pelo seu controle e esti-
meça a partir do final do século XIII, em fun- mula processo de diferenciação social do campe-
ção do esgotamento da fronteira agrícola com o sinato, dando origem a uma classe de capitalistas
desflorestamento quase que completo, associado agrários. O desenvolvimento do comércio acele-
a uma nova mudança climática, desta vez des- ra ainda mais esse processo interno, modifican-
favorável. O privilégio da “Europa carnívora” do os hábitos de consumo do senhor feudal ao
(l’Europe carnivore), segundo sua expressão, só aumentar a quantidade e diversidade das merca-
será restabelecido (para os camponeses) com a dorias à sua disposição, o que não só acelera a
generalização do sistema de rotação de cultu- difusão das prestações em dinheiro, como contri-
ras de tipo Norfolk ao longo do séculos XVIII bui para sua ruína ao leva-lo a uma dependência
e XIX. crescente do crédito27. O desenvolvimento das
cidades também acelera a dissolução do sistema
5.2. Acumulação de Capital
na medida em que aumenta o poder de barganha
Agropecuário e Capitalismo dos servos face aos senhores ao oferecer uma
Além dos impactos transformado- alternativa de trabalho e abrigo. Nos termos de
res dinâmicos inerentes ao tipo de acumulação Kula (1977), o “coeficiente de opressão praticá-
de capital puxada por inovações da agricultura vel” se reduz em benefício dos servos28.
feudal, no contexto institucional/organizacional
existente essa acumulação se conecta com a ex- É preciso não perder de vista que o
pansão manufatureira e comercial. A Revolução feudalismo europeu evolui na maior parte do
Comercial capitalista iniciada pelas cidades ita- tempo num contexto de escassez de trabalho.
lianas no século IX não teria tido a amplitude que Até o século X entretanto, período de formação,
teve sem uma resposta à altura do mundo agrário a escassez de trabalho agropecuário (e seu pre-
feudal. Essa resposta implicou a progressiva re- ço) é contrabalançada pela escassez de trabalho
dução dos laços de servidão nas relações entre militar: a situação de extrema insegurança obri-
camponeses e senhores em benefício de formas ga os camponeses a se colocarem sob proteção
contratuais não servis, que desde sempre coexis-
27 “(...) joga também contra o senhor o luxo crescente da vida
tiram com o sistema de relações de servidão, mas moderna, que ele quer alcançar a todo preço. Do mesmo modo que o
camponês, o senhor faz a felicidade dos usurários burgueses” (Braudel,
que vão assumindo um papel preponderante. 1979, tomo 2, p. 226).
28 Segundo Kula (1977), o limite fisiológico à exploração dos servos
pelos senhores feudais é modificado pelo coeficiente de opressão
Vilar (1975) observa que foi somente a praticável, sendo definido este como o limite social da carga que é pos-
sível impor aos camponeses num dado quadro institucional, tendo em
partir do século XI - período em que esta evolu- conta os rendimentos do trabalho, a correlação das forças sociais e as
possibilidades de fuga e sabotagem. E preciso ter em conta, entretanto,
ção tecnológica, socioeconômica e institucional que a análise de Kula se refere à Europa Central, num período em que
se difunde o que ficou conhecido como “segunda servidão”. Esse fenô-
chega à sua maturidade - que se generalizou o meno constituiu-se de uma re-imposição de obrigações feudais (sem os
grande comércio internacional e que sua penetra- deveres) pelas elites agrárias dessa região para aumentar a extração de
excedentes de grãos destinados à exportação para a Europa ocidental
em expansão urbana e industrial.

História e Economia Revista Interdisciplinar 99


As origens culturais e políticas da Revolução Industrial

de um chefe de guerra. A partir do século XI, prestações em produtos e finalmente em dinhei-


quando cessam as grandes invasões, a fronteira ro. Certamente, isso teve um impacto profundo
agrícola se abre ampliando disponibilidade de nas relações entre servos e senhores; as rela-
terras as serem cultivadas. Portanto, cai o valor ções pessoais entre servos e senhores são pouco
do trabalho militar e aumenta o valor do trabalho a pouco substituídas por relações impessoais e
agropecuário. É o momento de grande expansão objetivas. Takahashi (1972) observa também que
dos monastérios que não contavam praticamente a transformação das prestações em trabalho em
com proteção militar. A disputa por mão de obra prestações monetárias fixas, como rezava a juris-
se acirra, tornando cada vez mais difícil para um prudência, se constituiu também num fator im-
senhor feudal manter o controle de um excedente portante de transformação das relações feudais,
que se amplia em função do progresso técnico. na medida em que a produtividade aumentou e
a moeda se desvalorizou com a inflação, benefi-
As deserções eram numerosas e conti- ciando os servos e, por conseguinte, reforçando o
nuas. Frequentemente era o êxodo de toda uma processo de diferenciação social no seio do cam-
aldeia, ou mesmo de todo um cantão, quando o pesinato e a decadência dos laços de servidão.
senhor se mostrava inflexível. Por exemplo, no Uma parte da classe senhorial conseguirá esca-
século XII os habitantes da ilha de Ré desertaram par da ruina transformando-se em capitalistas
em massa por causa da severidade do senhor, agrários ou comerciais30.
vendo-se este obrigado a fazer concessões a fim
de reter alguma mão de obra. Os senhores, por Considerações Finais
sua vez, procuravam fazer acordos de assistência Após a queda do Império Romano, a
mutua para a captura de servos fugitivos. Porém, nova ordem política que se afirma lentamente
as “forças de mercado” tenderam a prevalecer na Europa do Norte foi uma ordem política frag-
de modo que, não obstante tratados e mutuas mentada em Estados feudais eles próprios carac-
promessas, o comportamento oportunista se ge- terizados pela fragmentação do poder entre di-
neraliza em uma efetiva concorrência para atrair versas instituições e organizações (corporações):
e seduzir os servos do domínio vizinho, o que monarquia, aristocracia feudal, Igreja, cidades
implicava necessariamente ter que fazer certas independentes, monastérios, universidades e
concessões para não perder a mão de obra. Em corporações de ofício. Esta ordem política frag-
muitas regiões na França os senhores se viram mentada se combina com dois traços culturais
obrigados a vender franquias em troca de uma distintivos: (a) uma cosmovisão, judaico-cristã,
renda, levando à formação de comunas rurais caracterizada por uma concepção linear, progres-
através de associações de aldeias que possuíam, siva, do tempo, onde a natureza é uma criação di-
de modo similar ao das cidades, prefeitura e ju- vina que os homens devem manejar em benefício
risdição próprias (ver Dobb, 1974, 65/66)29. próprio e o trabalho visto inicialmente como uma
penitência, mas que evolui para ser visto como
O primeiro passo no caminho para a uma atividade dignificante; (b) a afirmação e
emancipação dos servos foi dado quando as prevalência do individualismo em contraposição
prestações em trabalho, que caracterizam o sis- ao familismo predominante nas demais civiliza-
tema dominial clássico, foram transformadas em
29 Tem razão Sweezy (1972, p.40), em sua polêmica com Dobb, ao 30 Para os autores marxistas de maneira geral, Takahashi é uma das
afirmar que “o declínio do feudalismo na Europa ocidental se deveu exceções, o dogma da “acumulação primitiva” os impede de admitir um
à incapacidade da classe governante para conservar o controle processo de acumulação ‘originária’ de capital que não fosse através
sobre, e consequentemente para superexplorar, a força de trabalho da “das crises, violências, desequilíbrios, açambarcamentos e usuras que
sociedade”. marcam o fim do regime feudal”...Ver: Vilar, (1975, 39).

100 História e Economia Revista Interdisciplinar


ções, condição indispensável para a evolução de ções “schumpeterianas” vai continuar e levar à
uma sociedade baseada em contratos entre não Revolução Industrial no século XVIII.
parentes. Esse amalgama de fatores culturais e
políticos produziu uma situação civilizacional
inédita em termos de abertura à introdução in-
cessante de inovações culturais, políticas, orga-
nizacionais e tecnológicas.

Do ponto de vista econômico pode-se


dizer que um dos resultados mais expressivos
do ambiente político/institucional e cultural que
caracteriza o período foi o aumento da produtivi-
dade marginal do trabalho em marcado contraste
com, por exemplo, o caso da China. A começar
pelo principal setor produtivo, a agropecuária,
mas se estendendo a todos os demais. A grande
crise do século XIV encerra uma fase no proces-
so evolutivo europeu, mas a retomada do cresci-
mento no século XV é estimulada pela formação
de Estados centralizados em competição entre si.
Além disso, foi decisivo que essa retomada te-
nha partido de um legado medieval importante:
a começar por um nível comparativamente ele-
vado de acumulação de capital físico (sobretudo
aquele representado pela vasta rede de moinhos
eólicos e hidráulicos e pelo rebanho equino);
mais decisivo ainda, a formação de Estados cen-
tralizados não eliminou inovações culturais e
institucionais fundamentais geradas no período
medieval: o Império da Lei, o individualismo, as
assembleias representativas capazes de limitar
o poder dos governantes, o respeito às profis-
sões, o embrião de uma cultura do progresso, do
crescimento.

Desse modo, embora com a ascensão


dos Estados nacionais centralizados muitas das
organizações medievais que tiveram papel im-
portante no dinamismo inovador desse período
vão desaparecer ou perder em grande medida
sua autonomia - como as corporações de ofício,
as cidades autônomas, a própria Igreja -, o mo-
vimento evolucionário impulsionado por inova-

História e Economia Revista Interdisciplinar 101


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