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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

ISADORA DA CUNHA BENAION

RESENHA V
Será possível um ato desinteressado?

Manaus
2023
Bordieu intitula o quinto capítulo do seu livro, Razões Práticas, com a pergunta
“Será possível um ato desinteressado?”. Quando o autor realiza essa indagação, este se
refere a atitudes, atos, comportamentos, entre outros; realizados pelos agentes sociais que
constituem a sociedade. Ora, os agentes realizam tais atos ou performam tais
comportamentos sem um interesse prévio? Nesta primeira parte do capítulo, o prefácio,
Bordieu chama a atenção para o fato da sociologia postular que os agentes fazem algo
baseado em uma razão para aquilo, ou seja, “[...] os agentes sociais não realizam actos
gratuitos”. (BORDIEU, 1996, p. 106). O autor explica que a palavra “gratuito” é algo que
se refere a ideia de um ato que não tem razão, onde não há interesse. Em um segundo
sentido, gratuito remete a algo que não é lucrativo, que nada custa. Para Bordieu,
“sobrepondo os dois sentidos, identificamos a investigação da razão de ser um
comportamento com a explicação desse comportamento pela busca de fins económicos.”
(BORDIEU, 1996, p.106).

Em seguida, Bordieu apresenta o termo illusio, a qual é uma palavra latina


derivada da raiz de ludus, que significa jogo. Sendo assim, illusio quer dizer “estar
envolvido pelo jogo, de estar investido no jogo, que o jogo compensa, que vale a pena
jogar”1. O autor associa essa illusio com o interesse, pois nessa relação há o
reconhecimento que o jogo social tem sua importância, que os agentes que fazem parte
do jogo se importam com o que acontece nele, ou seja, “é reconhecer o jogo e reconhecer
os objectos em jogo”2. Se o jogador não possui conhecimento das estruturas do jogo, logo
jogar não possui sentido. Entretanto, se o jogar detém o entendimento sobre o jogo e sua
estrutura, “[...] tudo nos parecerá evidente e a própria questão de sabermos se o jogo vale
a pena deixará de se pôr.” (BORDIEU, 1996, p.107). Sendo assim, essa relação se torna
quase que automática, o interesse se solidifica porque o jogo e suas regras já foram
impostos na mente e no corpo do jogador, na “forma daquilo a que se chama o sentido do
jogo.”3

Bordieu chama a atenção para o fato de a noção de interesse ser contrária à de


desinteresse, e ao mesmo tempo, também à de indiferença. Para o autor, é possível o
jogador está interessado no jogo ao mesmo tempo que não está (desinteressado). Já o
sujeito que está indiferente está alheio a tudo, “acha tudo igual, nem movido nem
comovido”4. Sendo assim, a illusio se refere ao fato de alguém investir no jogo, e isso só
ocorre para as pessoas que estão inseridas nesse jogo, possuindo o conhecimento das
estruturas dele. Desta forma, Bordieu ressalta que é possível, também, recorrer ao termo
de investimento “no duplo sentido da psicanálise e da economia”5. Portanto, a illusio se
refere ao investimento no jogo, e ela ocorre em todo campo social, seja ele científico,
artístico, burocrático ou político. Mesmo que dois jogadores ocupem posições opostas
dentro de um campo, Bordieu reforça que há um acordo entre eles, um entendimento de
que “vale a pena lutar a propósito das coisas que estão em jogo no campo.”6

Para Bordieu, quem não é participante do jogo, o vê como algo ilusório, ao


contrário do jogador que possui conhecimento sobre tal, este não tem interesse em deixar
de jogar pois já está inserido dentro desse universo. O autor faz uma associação com um
jogador de tênis, o qual não está onde a bola está, mas sim onde ela irá cair. Sendo assim,
“coloca-se e faz colocações não onde está o ganho, mas onde o ganho vai estar.”7 Com
esse “gancho”, Bordieu traz à tona a questão do utilitarismo e da relação dos agentes e os
campos com essa visão. Para o autor, uma primeira hipótese se refere aos jogadores
buscarem o utilitarismo com a intenção de obterem “o máximo de eficácia pelo menor
custo.”8 Uma segunda hipótese, a qual ele chama de antropológica, se refere aos jogadores
agirem com um interesse econômico, visando um ganho monetário. O autor recusa essas
duas hipóteses e busca mostrar o porquê de sua discordância.

Para Bordieu, o comportamento humano não visa um resultado. Os agentes sociais


que possuem o conhecimento sobre o jogo não necessitam incorporar fins para seus
objetivos. Aqueles que possuem o “sentido do jogo, o jogo na pele”9 fazem isso por meio
do habitus, ou seja, esse jogador está sempre pronto para jogar. Aqueles que não possuem
o habitus, não dispõem dos conhecimentos sobre a estrutura do jogo. Em seguida, Bordieu
entra na questão da diferença entre protensão e projeto, o primeiro termo se refere a algo
que ainda não é futuro, enquanto o segundo termo é entendido como aquilo que coloca
futuro como futuro. O autor exemplifica que um jogador “não põe o futuro no interior de
um projeto”10, o jogador na verdade, “determina-se em função de um quase-presente
inscrito no presente.”11 Portanto, o autor conclui que os agentes podem estar dispostos a
adentrar o jogo sem, necessariamente, ter como objetivo final qualquer ganho específico.
Para reforçar sua postura, Bordieu dá um exemplo mostrando que agentes que possuem
o sentido do jogo e que sabem que é preciso agir de maneira “desinteressada” para ter
sucesso, agem de “maneira espontaneamente desinteressada, ações em conformidade com
os seus interesses.”12

No que tange ao termo economismo, ao qual se refere “as leis de funcionamento


de um dos campos sociais entre outros, a saber o campo econômico, valem para todos os
campos”13, para o autor, isso é improvável, visto que com o avanço do sistema capitalista,
faz com que surjam novos universos (campos) que possuem leis próprias. Sendo assim, o
economismo, como já dizia Durkheim, só era aplicável nas “sociedades arcaicas”, onde
os campos não eram diferenciados. Visto isso, com o surgimento de tantos universos que
são regidos por uma legislação própria, os interesses de determinados indivíduos não
coincidem com os interesses de outros. Dessa forma, a noção de interesse se fragmenta,
pois há demasiados universos com leis fundamentais diferentes. Cada campo é
responsável por produzir uma forma de interesse, ocasionando – do ponto de vista de
outro campo – algo que possa parecer desinteresse. Por conta disso, para Bordieu, para
que seja possível desenvolver uma sociologia desses universos os quais possuem o
desinteresse como lei fundamental, é preciso que “exista uma forma de interesse que
possamos descrever”14. Dessa forma, seria necessário se desfazer do capital simbólico
(econômico, cultural, escolar ou social).

Em seguida, Bordieu regressa ao tema do desinteresse, retomando sua questão


“Serão possíveis comportamentos desinteressados, e, se o forem, como e em que
condições?”15 Para tentar responder a questão, o autor cita um exemplo de Nobert Elias,
no início de “A sociedade de Corte”, onde um duque deu uma bolsa cheia de escudos ao
filho, ao decorrer de seis meses o pai pergunta ao filho o que fez com a bolsa, o filho
responde – com orgulho – que economizou o dinheiro, o nobre, então, joga a bolsa pela
janela. Por meio disso, Bordieu mostra que o nobre, além de dar ao filho uma lição de
desinteresse, de gratuitidade e de nobreza, também deu uma lição referente a colocação,
de investimento do capital simbólico. O autor chama isso de “Noblesse oblige”, a qual
exprime que

é a nobreza que proíbe ao nobre de fazer certas coisas, ao mesmo tempo que o
exorta de fazer outras. Porque faz parte de sua definição, de sua essência,
superior, se desinteressado, generoso, o nobre não pode deixar de o ser, “é uma
coisa mais forte do que ele”. (BORDIEU, 1996, p. 115).

Bordieu chama isso de habitus “desinteressados”, habitus antieconômicos, onde


há uma disposição do indivíduo em recalcar seus interesses reais. Apesar disso, o autor
reforça que

Nem por isso, sem dúvida, universos sociais onde o desinteresse é a norma
oficial são regidos apenas pelo desinteresse: por detrás da aparência de
piedade, de virtude, de desinteresse, há interesse subtis, camuflados, [...] Dito
isto, não se vive impunemente sob permanente invocação da virtude, porque
há mecanismo e existem sanções que recordam aos agentes a obrigação do
desinteresse.

Por fim, Bordieu faz uma reflexão sobre os “ganhos da universalização”, onde o
autor versa sobre como a parte dominante da sociedade se aproveita do advento da
universalização em prol de um benefício próprio, “a cultura universal é a cultura dos
dominantes”16. O autor ressalta, que todos os elementos celebrados pelos dominantes (a
cultura, o desinteresse, o puro, a moral kantiana etc.) só podem ser legitimados por se
beneficiarem de um reconhecimento universal, o qual gera, consequentemente, “uma
forma de ganho simbólico”17. Sendo assim, Bordieu avalia que há um progresso da razão
em decorrência do interesse na universalização, e que cabe a sociologia se aliar a serviço
dos dominantes ou se submeter a imparcialidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORDIEU, Pierre. “Será possível um ato desinteressado?”. In: Razões práticas: sobre a
teoria da ação. Papirus Editora, 1996. Disponível em:
<https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/1893> Acesso em: 13/09/2023.

1
Bordieu, 1996, p. 106
2
Bordieu, 1996, p. 107
3
Bordieu, 1996, p.107
4
Bordieu, 1996, p. 107
5
Bordieu, 1996, p.107
6
Bordieu, 1996, p.107
7
Bordieu, 1996, p.108
8
Bordieu, 1996, p.109
9
Bordieu, 1996, p. 110
10
Bordieu, 1996, p. 111
11
Bordieu, 1996, p. 111
12
Bordieu, 1996, p. 112
13
Bordieu, 1996, p. 112
14
Bordieu, 1996, p. 113
15
Bordieu, 1996, p.114
16
Bordieu, 1996, p. 117
17
Bordieu, 1996, p. 118

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