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22 Neste capítulo e nos próximos que se seguem, o autor aborda o ensino da leitura. Lemov se
baseia no modelo americano de ensino e alfabetização e no debate que se trava naquele país sobre
diferentes metodologias de ensino da leitura. Em alguns aspectos, até mesmo pela óbvia diferença de
idioma, certos exemplos e referências não encontram paralelo na educação brasileira. Procuramos
adaptar os exemplos para a realidade nacional, mas, quando isso não foi possível, optamos por não
alterar estruturalmente o texto de Lemov, para que nossos professores possam se beneficiar da discus-
são proposta pelo autor.
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Tenho um amigo que cresceu ouvindo o pai falar do poder da leitura. Para
provar seu ponto de vista, o pai o tirou da escola por muitos meses, comprou
uma série de livros sobre construção civil - embora até então ele nunca tivesse
se dedicado seriamente a trabalhos manuais - e passou a construir uma casa,
da fundação ao telhado, com o filho a seu lado. Meu amigo lembra-se de se
sentar em uma pilha de tábuas à meia-luz : no início do dia, lendo intensamente
com o pai sobre hidráulica ou elétrica, às vezes relendo três ou quatro vezes as
passagens mais complexas.
As escolas, porém, passaram a ensinar leitura em um sentido cada vez mais
limitado: uma área específica de estudo. Capacitamos nossos professores da
área de linguagem e de literatura para trabalhar um assunto adicional chama-
do leitura. Certamente, há muito valor em pensar na leitura como uma área
separada, particularmente no ensino fundamental, onde a instrução específica
da leitura é uma alavanca essencial para gerar ganhos duradouros entre os
alunos. Mas eu defendo que o valor da leitura também está no ato de ler em si,
com os alunos lendo muito e de forma ampla como um objetivo fundamental
da escola. Não apenas os programas de literatura e as aulas de linguagem de
muitas escolas deixam de incluir a leitura propriamente dita (o ato de ler), mas
oportunidades potenciais de leitura brotam por toda parte nas auías sem se-
rem aproveitadas. Além disso, os professores raramente estão capacitados para
aprender a tirar vantagem dessas oportunidades.
O volume de leitura de alta qualidade que poderia ser coberto em um dia
escolar típico é igual, ou possivelmente superior, ao volume do que é lido em
uma "aula de leitura 1 '. Quando você considera quanta leitura de alta qualidade
os alunos poderiam ter fora da aula de linguagem ou literatura, esse potencial
inexplorado é enorme. Mas, com a prática atual, a maioria dos alunos simples-
mente não lê muito.
Pense em quatro das mentes mais brilhantes que já trabalharam e escreve-
ram em inglês: Abraham Lincoln, Fredrick Douglass, Jane Austen e Charles
Dickens. Todos foram educados de maneira semelhante, mas de uma forma
não usual. Cada um deles recebeu pouca ou nenhuma educação formal. Basi-
camente autodidatas, em um tempo em que educar-se a si mesmo significava
ler, tornaram-se famosos por efeito das habilidades e do conhecimento que
suas leituras privadas lhes ensinaram.
Não estou sugerindo que a educação desses quatro personagens seja um mo-
delo para a educação de hoje em dia. Mesmo assim, eles me lembram da capaci-
dade quase ilimitada da leitura diligente como forma de aprender. No caso dessas
quatro pessoas excepcionais e muitas outras, a leitura de fruição foi suficiente para
Por que todos os professores podem (e devem) ser professores de leitura 271
estimular e desenvolver raros génios. E, para o resto de nós também, pois somos
todos autodidatas em alguma medida, graças às leituras que fizemos.
Percorrendo em minha memória
as ideias que tive por causa de mi-
nhas leituras pessoais, sei muito bem Somos o que lemos e como
que elas me formaram tanto quan- lemos. NÕO há OUtíO atividdde
to minha educação formal. Somos capaz de gerar tanto valor
o que lemos e como lemos. Não há ptitirnrionnl
outra atividade capaz de gerar tanto
valor educacional. Mesmo assim, em
muitas escolas, os alunos passam muito pouco tempo lendo. Provavelmente,
lêem por menos de uma hora por dia. Mesmo nas aulas de literatura ou volta-
das para a leitura, é mais provável que falem sobre leitura ou que respondam
a perguntas sobre o que leram (ou não leram) do que efetivamente leiam. Para
sua dissertação de doutorado, uma colega acompanhou alunos em escolas pú-
blicas de Nova York e constatou que, em média, eles lêem cerca de 10 minutos
por dia. Pior: 40% deles simplesmente não lêem.
Tornar a leitura altamente produtiva e eficiente em sua sala de aula é uma habi-
lidade essencial, independentemente da disciplina ou do ano que você ensina. Este
capítulo explica como fazer isso, tanto na prática (como você pode assegurar-se de
que os demais alunos estão lendo junto com aquele que lê em voz alta) como em
termos de pedagogia (quais perguntas você deveria fazer e como e quando fazê-las).
O capítulo também contém orientação especialmente útil para professores das áreas
de linguagem e literatura, cuja meta é usar essas técnicas como "estratégias" para
tornar os alunos "leitores" para além do domínio de um texto específico.
Embora tenha tentado prover orientação tanto para professores em geral como
para professores de linguagem e literatura, chamo a atenção para duas premissas
fundamentais deste capitulo: todos os docentes de uma escola devem ser profoss"^
de leitura, e as técnicas que servem para professores de todas as áreas podem ser
ainda mais produtivas para os que lecionam linguagem e literatura. Estes, em mui-
tos casos, são altamente capacitados na arte da interpretação e da análise de texto,
mas pecam por falta de preparo para ensinar alguns aspectos elementares da leitu-
ra. Em outras palavras, podem cair na armadilha que ameaça muitos especialistas
(cirurgiões cardíacos ou analistas de dados, por exemplo): perder a visão do básico.
Este capítulo propõe trazer o básico de volta à cena. Como me disse um excelente
professor: "Sou formado como professor de linguagem e literatura e sou muito bom
para ensinar as crianças a interpretar o que lêem. Mas não tenho ideia do que fazer
se a criança não consegue ler uma única palavra".
272 Aula nota 10
A compreensão tem uma posição peculiar nesta lista, porque requer não
apenas um conjunto de habilidades intrínsecas a ela, mas também o domínio
das outras três habilidades anteriores: você ensina decodificação, fluência e
vocabulário para possibilitar uma compreensão sólida. No entanto, quando
a compreensão não funciona, pode ser que os alunos não tenham consegui-
do fazer certas inferências ou distinguir detalhes triviais dos essenciais; mas
também é possível que eles simplesmente não consigam ler uma passagem au-
tomaticamente e com fluência suficiente que lhes permita usar sua capacidade
de raciocínio para entender suas sutilezas. Eles podem estar mobilizando tanta
capacidade mental para simplesmente decodificar as palavras que não conse-
guem lembrar o começo do parágrafo (ou da oração) quando chegam ao fim.
É importante lembrar que todos os alunos enfrentam esse desafio. No primei-
ro ano do mestrado em literatura, meus colegas e eu estávamos tão ocupados
tentando entender o vocabulário específico da área e decifrar a sintaxe impene-
trável da escrita académica que a nossa capacidade de compreensão desabou -
não porque não conseguíssemos entender as ideias, mas porque a apresentação
delas - as características do género e o léxico específico - impunha barreiras à
fluência, à decodificação e ao vocabulário. A forma como as palavras são apre-
sentadas pode impor tais barreiras a qualquer leitor, não importa quem, e às
vezes os autores o fazem deliberadamente (os romances de William Faulkner e
de Gabriel Garcia Márquez são bons exemplos).
A informação na Parte Dois deste livro concentra-se de forma abrangente em
tornar a leitura mais eficiente e rigorosa em qualquer sala de aula e para qualquer
propósito - quer se esteja lendo Cachinhos Dourados e os Três Ursinhos, Platão, o
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fábrica de celulares renderia mais do que usar o dinheiro para expandir a nossa
fábrica de computadores?" A decisão é entre o retorno que você já conhece (de
sua fábrica de computadores) e o potencial de um novo projeto (celulares). Se
você tivesse uma taxa de retorno de 8% na fábrica de celulares, ainda assim não
teria sentido investir nela se a sua taxa de retorno para a expansão da fábrica
de computadores fosse 10%. Só porque você seria capaz de ganhar algum di-
nheiro investindo em celulares, isso não significa que você deva fazê-lo.
Como professores, nós também gerenciamos recursos finitos - neste caso,
o tempo -, mas raramente pensamos dessa forma. Perguntamo-nos se nossas
atividades resultaram em aprendizado. Mas esta não é a pergunta certa. A
perguntacerta é se as atividades que propomos em classe oferecem um retor-
no que exceda nossa taxa mínima de retorno - ou seja, dão mais retorno de
aprendizado por minuto investido do que a melhor alternativa de uso do tempo
em classe. Só que raramente perdemos tempo em estabelecer a melhor e mais
confiável taxa mínima de retorno. Nas salas de aula de muitos dos professores
em que este livro se baseia, a leitura produtiva (que vou definir daqui a pouco)
oferece uma taxa mínima de retorno excepcionalmente boa e confiável. E uma
atividade de alta qualidade (quando realizada eficientemente), que pode ser
conduzida em qualquer sala de aula, a qualquer tempo e com muito pouca
preparação adicional. Você sempre pode investir qualquer período de tempo,
curto ou longo, em leitura produtiva e colher um retorno bom e previsível.
Além disso, sabendo que pode sempre fazer algum tipo de leitura produtiva
- com qualquer turma, a qualquer hora -, você pode examinar criticamente
seus outros investimentos do tempo: eles excedem o valor de leitura? Será que
oferecem um retorno potencialmente melhor, mas com mais riscos e, portanto,
deveriam ser equilibrados por investimentos mais confiáveis? À medida que
você se faz essas perguntas, é bem capaz de descobrir que a leitura supera al-
guns de seus outros investimentos de tempo. Com certeza, não todos; mas pro-
vavelmente alguns deles não excedem a sua taxa mínima de retorno (ou seja,
você não pode confiar que terão uma produtividade maior do que a leitura).
Seria mais inteligente deixar os alunos lerem de maneira produtiva.
Antes de continuar, é melhor eu fazer uma pausa aqui e definir o termo
leitura produtiva mais especificamente, porque é essencial para esta discussão.
Neste livro, defino leitura produtiva como leitura que é verificável, moderada-
mente expressiva e altamente potencializável. Por verificável quero dizer que os
professores conseguirão avaliar de forma confiável se os alunos estão de fato
lendo (em vez de olhar figuras, por exemplo, ou olhar pela janela, sonhando
acordados, no momento em que deveriam estar lendo) e lendo eficientemente
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24 "Re-Thinking Self-Esteem: Why Non-Profits Should Stop Pushing Self-Esteem and Start En-
dorsing Self-Control" (Repensando a autoestima: porque as ONGs deveriam parar de se preocupar
com autoestima e começar a promover o autocontrole), publicado na Stanford Social Innowtion Re-
view, edição do inverno de 2005.
278 Aula nota 10
Uma vez dominada a técnica Controle o jogo, e com você conseguindo es-
tabelecer leituras totalmente potencializadas e produtivas, você pode passar
a usar essa habilidade como seu padrão de taxa mínima de retorno e rigoro-
samente avaliar se suas atividades em sala de aula excedem esse valor. Tenho
certeza de que você vai achar muitas. Você vai fazer muito mais do que sim-
plesmente leitura, mas sempre levará em consideração a sua taxa mínima de
retorno comparando-a com a de outras atividades. Daí para a frente, à medida
que os alunos amadurecem e se tornam mais proficientes, a definição de leitura
produtiva pode mudar: leitura individual silenciosa, não verificada explicita-
mente, pode se tornar mais frequente, por exemplo.
As habilidades descritas neste capítulo são essenciais, porque podem aju-
dar você a levar seus alunos a um ponto em suas vidas escolares em que a
leitura independente de alto valor se torna possível e, portanto, passa a ter
sentido aumentar o valor dessas sessões. Além disso, a maioria das escolas
públicas provavelmente não consegue levar os alunos a esse ponto em que sua
leitura independente é totalmente significativa e produtiva. Nessas escolas, a
leitura é vitima de problemas logísticos causados por verificação pobre e baixa
potencializaçao. Espero que sua sala de aula atinja o ponto em que a técnica
Controle o jogo torna-se desnecessária e menos produtiva do que a simples
leitura silenciosa. Será um dia feliz quando mais salas de aula não precisarem
gerenciar a leitura desse jeito. Mas é meihor você não partir da premissa de
que você já tem essa sala de aula, sem antes ensinar esse comportamento leitor
a seus alunos.
Além disso, manter a duração imprevisível permite que você trate do pro-
blema criado por um mau leitor primário de maneira não invasiva. Um leitor
primário com dificuldades para ler um longo parágrafo põe em risco o enga-
jamento e a concentração de todos os leitores secundários, que podem perder
o fio da meada ou o curso da narrativa. Isso reduz a potencialização. Se você
tiver pedido a ele para ler um parágrafo inteiro, não poderá interrompê-lo no
meio do parágrafo e, mais tarde, pedir que leia um trecho mais fácil, sem que
isso fique óbvio. Se você não especificar a duração da leitura, você pode en-
curtá-la ou alongá-la na medida das necessidades, no interesse tanto do leitor
primário como do resto da classe.
e lê duas antes de pedir a João para ler as próximas seis sentenças, ler uma e passar
a bola para Clara. O benefício deste método é que a história avança rapidamente e
mantém a linha da narrativa viva, enquanto intercala trechos de leitura dos alunos
com a leitura do professor, de melhor qualidade expressiva, maximizando a com-
preensão. Defendo o uso discricionário de pontes quando é importante manter viva
a linha da narrativa e criar oportunidades para emulação. Em geral, quanto mais
difícil o texto, mais você deve considerar o uso das pontes. Mas você não precisa,
necessariamente, usar pontes o tempo todo.
"Dedo no livro: feche o livro", diz Roberto, quando prepara seus alunos
para discutir O Fantasma da Ópera, preparando-os também para voltar efi-
cientemente ao livro quando a discussão acabar. A escola Leadership Prep's
Hannah Lofthus usa uma expressão similar ("dedo congelado") com seus alu-
nos de 3° ano, mostrando a eles como marcar o lugar em que a leitura foi
interrompida.
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