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“O QUE É SER UCHINANCHU?

”: AS (RE)CONSTRUÇÕES DA IDENTIDADE
OKINAWANA NO PERIÓDICO UTINÁ PRESS

Ricardo Sorgon Pires1


Resumo
Ainda que haja um razoável número de trabalhos referentes à imigração japonesa no Brasil, pouco se
discutiu sobre a questão dos imigrantes de Okinawa (atualmente uma província insular no extremo sul
do Japão), os quais se configuraram como uma minoria étnica e cultural perante os japoneses de outras
regiões (algo já existente no Japão) nos locais de forte imigração, em especial no Brasil que foi o
maior desses. O caso dos okinawanos é de grande importância para se compreender de forma mais
acurada o complexo processo da imigração japonesa no Brasil, evitando visões simplistas,
romantizadas e, em última instância, preconceituosas, que percebem os japoneses como um grupo
homogêneo e harmônico.
Para o estudo dessa temática, pretendo refletir sobre a função exercida pelo jornal da comunidade
okinawana, o Utiná Press, uma vez ele é um meio de comunicação de grande relevância para os
processos de (re)afirmações da identidade desses imigrantes e seus descendentes no Brasil.

Palavras-chave: Imigração okinawana; identidade; periódico.

Introdução
Hoje em dia tornou-se completamente banal a afirmação que o Brasil é um país de
imigrantes e de que essa situação de contato, por vezes mais ou menos conflituosa, originou-
se desde o período colonial. Entretanto, muitos fluxos imigratórios no Brasil ainda são
praticamente desconhecidos e casos de preconceito, estereotipações negativas e mesmo
xenofobia ocorrem cotidianamente.
Vivemos, portanto, uma situação contraditória em um país que construiu sua
identidade e autoimagem partindo do pressuposto de ser um país acolhedor e miscigenado,
mas que, por outro lado, ainda convive com situações de preconceito derivadas, em grande
parte, do desconhecimento em relação a outros povos e culturas e da lentidão por parte do
poder público em incentivar e promover políticas voltadas à valorização do “outro”, no caso,
dos diversos grupos imigrantes aqui residentes (KERBAUY, 2007; MOREIRA, 2008).
Nesse sentido, há no Brasil um complexo cenário onde determinadas correntes
imigratórias são celebradas com orgulho, como é o caso da imigração alemã e outras
europeias, cuja louvação originou-se desde meados do século XIX em decorrência da
idealização de uma elite racista, eurocêntrica e que, por estar pautada nos princípios da
eugenia e do darwinismo social, via nesse modelo de imigração a salvação para um Brasil
mestiço, atrasado e escravista.
Outras correntes imigratórias construíram positivamente sua identidade a partir de
processos mais complexos como, por exemplo, os japoneses, que o fizeram em grande parte

1
Doutorando em História Social na Universidade de São Paulo (FFLCH/NEHO). Contato:
ricardosorgon@hotmail.com.
devido ao rápido desenvolvimento econômico do Japão após a Segunda Guerra Mundial.
Como afirma Lesser (2001), os japoneses utilizaram-se dos discursos positivos sobre o Japão
e sobre os japoneses para construírem e negociarem sua identidade étnica, cultural e nacional,
uma vez que os brasileiros não consideravam esses imigrantes e descendentes como nipo-
brasileiros, mas sim, como japoneses, os “japoneses do Brasil”, como se esse grupo, mesmo
após várias gerações fora do Japão, ainda fosse, em termos de identidade, etnia e cultura,
composto por japoneses.
Outras imigrações, sobretudo as mais recentes, como as de bolivianos, haitianos,
angolanos e chineses, são frequentemente marcadas pelo preconceito, intolerância e
discriminação por questões que variam desde a desvalorização cultural, o racismo, ainda que
de forma camuflada, até a clássica e enganosa preocupação com a disputa pelo mercado de
trabalho.
Além da falta de conhecimento e de valorização desses grupos imigrantes, ainda é
incipiente no Brasil, e aqui me refiro, sobretudo, ao universo acadêmico, a percepção de que
esses diversos conjuntos de imigrantes, inclusive os mais altamente conceituados como os
alemães e os japoneses, não são grupos homogêneos e de que a sua trajetória linear,
progressiva e vitoriosa deriva da predominância de discursos de cunho apologético formulado
pelas próprias comunidades imigrantes e endossadas, muitas vezes de forma ingênua, por
trabalhos acadêmicos.
Sem a pretensão de ir além nessas questões que demandam um espaço muito maior
para serem adequadamente debatidas, esse artigo tem como objetivo refletir sobre um grupo
imigrante ainda muito pouco conhecido no Brasil, tanto em âmbito acadêmico como fora dele.
Trata-se, no caso, dos okinawanos, considerados aqui como um grupo étnico minoritário
dentro da imigração japonesa.
Os okinawanos formaram-se historicamente como um povo diferenciado dos
japoneses do arquipélago principal (formado por quatro ilhas maiores). Okinawa, que na
língua nativa da ilha é uchina, foi um reino parcialmente independente durante os séculos
XIV e XIX (reino de Ryûkyû), quando finalmente foi derrubado e anexado pelo Império do
Japão com o nome de Okinawa ken (Província de Okinawa) em 1879 (YAMASHIRO,1993;
KERR, 1964).
Por ter sido um reino cuja economia girava em torno do comércio de intermediação
com todo o Sudeste Asiático e parte do Pacífico, envolvendo lugares diversos como China,
Japão, Coreia e as atuais Indonésia, Filipinas e Malásia, é natural que esse pequeno
arquipélago (as ilhas Ryûkyû) tenha formado uma cultura híbrida e muito diversificada
advinda dos intensos contatos com essas regiões.
Essa situação modifica-se após a anexação de Ryûkyû pelo Japão, o qual, motivado
pelas políticas nacionalistas do Período Meiji (1867-1912), inicia uma política de intensa
japonização de modo a substituir, progressivamente, a língua, tradições, hábitos e práticas
culturais típicas de Okinawa pela japonesa, que, por sua vez, também estava sendo construída
naquele momento por uma intensa política de padronização cultural que visava eliminar ou
diminuir as fortes diversidades regionais japonesas. Assim, nesse processo de definição do
que seria a cultura japonesa, e, por extensão, do povo japonês, é imposto aos okinawanos a
obrigação de tornarem-se japoneses (KERR, 1964; HOOK; SIDDLE, 2003).
Em decorrência desse processo de japonização e perseguição às tradições não-
japonesas, os okinawanos sofreram situações de preconceito devido a sua diferença física e
cultural. Esse período coincide com a imigração japonesa e okinawana que resultou das
intensas e autoritárias transformações econômicas pró-industrialização que chegaram a ser
brutais para com os camponeses que eram a maioria dessas populações. Entretanto, a pressão
econômica foi mais intensa sobre Okinawa, que era a província mais pobre, fazendo com que
a emigração de sua população fosse, durante todo o período, proporcionalmente muito maior
em comparação com as demais províncias japonesas (KIMURA, 2003; HENSHALL, 2008).
É importante destacar que essa situação de preconceito cruzou os oceanos e se
reproduziu nos locais que receberam imigrantes japoneses e okinawanos. Curioso notar que
essa discriminação, muitas vezes, se fez mais intensa e foi mais longeva nos países de
imigração do que no próprio Japão. Em parte, isso foi resultado da reprodução, pelos
descendentes, da educação nacionalista e xenófoba que os primeiros imigrantes japoneses
receberam. Assim, enquanto no Japão do pós-guerra esse modelo nacionalista e
preconceituoso se modificou, aqui, muitos imigrantes continuaram a reproduzir esses antigos
valores.

A comunidade okinawana no Brasil


Como visto, os imigrantes japoneses e okinawanos transpuseram uma situação de
preconceito originária do Japão para os países que os receberam como colonos. Contudo,
houve uma mudança significativa nessa relação com o fim da Segunda Guerra Mundial, uma
vez que antes dessa a grande preocupação dos imigrantes japoneses, como um todo, era
conseguir um bom dinheiro e retornar para sua terra natal. Processo que raramente ocorreu,
pois os cafezais não eram “árvores que davam dinheiro” e pouquíssimos retornaram ao Japão
(ASSOCIAÇÂO OKINAWA KENJIN DO BRASIL, 1998, 2008; LESSER, 2008).
Sendo Okinawa a província mais pobre, seus imigrantes vinham com mais
dificuldades que os demais japoneses e, geralmente, com dívidas a pagar para as Companhias
de Imigração ou para agências de empréstimos. Devido a isso, havia uma grande pressão para
os imigrantes okinawanos remeterem rapidamente o dinheiro conseguido para os familiares na
terra natal (os quais, muitas vezes, também passavam por dificuldades). Quando viam que a
realidade dos cafezais não correspondia com o prometido, a maioria dos imigrantes fugia das
fazendas em busca de trabalhos mais bem remunerados (KIMURA, 2003).
As fugas também ocorreram entre os outros japoneses, porém, os okinawanos
compunham o maior número, até mesmo porque eles eram a maioria, em média, 10 a 12 % do
total em termos de origem provincial. O governo japonês (interessado em manter o fluxo
emigratório) utilizou os okinawanos como bode expiatório acusando-os como responsáveis
pelas fugas, e com isso, em acordo com o governo do Estado se São Paulo, a imigração
okinawana foi proibida entre os anos de 1912 e 1917 e restrita entre 1919 e 1926, sendo
liberada somente em 1936 (quando já estava em vigor a “Lei de cotas” do governo Vargas 2)
(KIMURA, 2003).
Pode-se apenas imaginar o impacto dessas medidas sobre a população de Okinawa em
um momento onde a imigração japonesa já havia sido proibida ou fortemente restringida, por
questões de preconceito racial, em países como EUA, Canadá, Peru, México e Austrália
(DEZEM, 2003). Diante disso, se formam no Brasil diversas associações okinawanas com o
intuito de levantar essas proibições através de pressões sobre o Consulado Japonês. Essas
associações também cumpriam o papel de ajudar os imigrantes a arranjar empregos, resolver
pendências trabalhistas, auxiliar na comunicação com os brasileiros e formar poupanças
coletivas para compra de bens ou atividades de ajuda mútua.
Nesse momento, a estratégia dos imigrantes okinawanos para conseguir seus objetivos
era a de “se tornar japonês”, evitando ao máximo a prática de costumes relacionados à
Okinawa (como, por exemplo, o uso de roupas, a realização de festas, o costume de
embriagar-se em datas de nascimentos e casamentos de pessoas da comunidade e o uso da
língua okinawana (uchinaguchi)) que poderiam causar situações de preconceito e conflito

2
Como afirma Endrica Geraldo: “Na Constituição de julho de 1934, o parágrafo 6 do artigo 121 determinava
que restrições deveriam ser impostas à entrada de imigrantes com o objetivo de garantir a “integração étnica e
capacidade física e civil do imigrante”. Essas restrições estipulavam o limite anual, para cada nacionalidade, de
dois por cento do número total dos respectivos membros já fixados no Brasil nos cinqüenta anos anteriores à
aprovação da lei” (GERALDO, 2009, p. 176).
com os japoneses. Vale lembrar que o governo japonês justificava o “mau comportamento”
dos imigrantes okinawanos pela diferença de costumes, afirmando que eles ainda não haviam
aprendido a ser verdadeiros japoneses.
Desse modo, até a Segunda Guerra, os okinawanos evitaram mostrar publicamente
suas peculiaridades culturais, restringindo-as ao ambiente doméstico ou a ocasiões específicas
(nascimentos, velórios e algumas festas). Ademais, como pretendiam retornar ao Japão, era
importante ensinar aos filhos a língua e os costumes japoneses para que não sofressem
preconceitos no país natal. As associações okinawanas reforçavam esse quadro apostando na
japonização como forma de permitir o fluxo imigratório dos naturais de Okinawa.

A afirmação cultural da comunidade okinawana no pós-guerra


A Segunda Guerra Mundial foi um divisor de águas para a comunidade japonesa no
Brasil como um todo e, em especial, para a comunidade okinawana. O fim do conflito
mundial e seu desfecho (derrota do Japão) demoliram as esperanças dos imigrantes japoneses
e de seus descendentes de retornarem ao país natal, tornando certa e definitiva a sua
permanência no Brasil. Essa mudança foi radical, pois como não viam mais sentido em
poupar dinheiro para o retorno ao Japão a maioria dos imigrantes decide investir em
atividades de longo prazo (compra de terras agrícolas, imóveis e pequenos negócios) e na
educação dos filhos, assim, há um gradual processo de urbanização, escolarização e,
consequentemente, de ascensão social (LESSER, 2008; CARDOSO, 1995).
Com a retomada da imigração japonesa no pós-guerra (após 1952), chegam imigrantes
com novas características. A maioria vinha ao Brasil com a intenção de residência
permanente. Muitos já tinham maior grau de escolaridade, eram procedentes de ambientes
urbanos e possuíam uma formação cultural e educacional diferente dos imigrantes de outrora,
que tinham nível escolar elementar, haviam sido criados em um ambiente autoritário e
nacionalista e provinham das zonas rurais.
São esses novos imigrantes com formação e perspectivas diferentes que,
progressivamente, ocuparam os cargos de direção das associações japonesas e okinawanas.
Essas, por sua vez, mudaram radicalmente de características deixando de cumprir suas antigas
funções, uma vez que os imigrantes se inseriam mais profundamente na sociedade majoritária
e o próprio fluxo imigratório japonês foi diminuindo até extinguir-se nos anos 1970 como
resultado da frenética reconstrução e recuperação econômica japonesa.
Nesse momento, as associações passam a ter objetivos voltados, em especial, à
preservação e divulgação cultural, à promoção recreativa e esportiva, com vistas a tornarem-
se locais dedicados a aproximar e fortalecer os laços de sociabilidade entre os filhos e netos
dos imigrantes. Apenas no final da década de 1980 as associações novamente voltam a tratar
de questões de trabalho e imigração, porém, no sentido inverso, ligado ao movimento
dekassegui.
Especificamente no caso dos okinawanos, desde meados dos anos 1950, mas,
sobretudo, a partir de 1970, há uma nova posição adotada pela associação okinawana e pela
comunidade no sentido de valorizar diversos costumes e práticas culturais. Vários motivos
podem ser apontados para essa mudança radical. Primeiramente, a derrota japonesa significou
a implosão do mito da superioridade racial e cultural dos japoneses perante os demais povos
asiáticos fazendo com que os preconceitos contra os coreanos, taiwaneses, okinawanos, e
principalmente, os chineses (tidos como culturalmente próximos dos okinawanos) perdessem
legitimidade, (ainda que continuassem ocorrendo, embora que de forma mais branda e
dissimulada) abrindo espaço para concepções mais tolerantes sobre a diversidade cultural.
Também é importante destacar que a perda da perspectiva, pelos okinawanos, de se
“tornarem japoneses” (uma vez que não haveria o esperado retorno ao Japão) teve como
efeito colateral o incentivo à aceitação das diferenças perante os demais japoneses e o
interesse no “retorno” de suas “raízes” culturais. Destarte, como ocorreu uma progressiva
ascensão social dos okinawanos, a questão da afirmação identitária e cultural, que até então
era vista como trivial diante das dificuldades práticas ligadas à subsistência e ao mundo do
trabalho, tornou-se cada vez mais relevante e digna de atenção.
Nesse sentido, foram abertas diversas escolas e associações de preservação de danças e
músicas okinawanas de diversos estilos, tais como o minyô e o koten, além do taiko de estilo
okinawano (SATOMI, 1998). Tais expressões artísticas adquiriram maior visibilidade e
presença na comunidade okinawana devido à realização de diversos eventos artísticos e
culturais, especialmente em São Paulo, os quais desempenhavam importante papel de
agregação e de fortalecimento dos laços de solidariedade, estando presentes até hoje.
É visível, portanto, o contraste com a situação de antes da Segunda Guerra, visto que
após essa, sobretudo depois da década de 1970, a comunidade okinawana começa a perder o
receio e a vergonha de sua herança cultural passando a afirma-la de forma positiva. Esse
processo não pode, todavia, ser entendido como um “resgate” da cultura okinawana tal como
ela existia em Okinawa, ainda que seja esse o discurso sustentado pela comunidade.
Nenhum processo de deslocamento permite um posterior “retorno às raízes” devido às
intensas e irreversíveis mudanças causadas pela imigração, a qual é considerada um “fato
social completo” (SAYAD, 1998, p. 15). A cultura okinawana que passou a ser valorizada e
promovida deve ser pensada enquanto algo que foi, e ainda é, (re)construído e (re)arranjado
de acordo com os objetivos da comunidade, em especial, como parte do delicado e sempre
inacabado processo de construção.
Com relação a essa questão do complicado processo de negociação identitária perante
os brasileiros, cabe mencionar que os okinawanos seguiram um caminho bastante distinto
daquele trilhado pelos demais imigrantes japoneses, os quais partiram da premissa,
popularizada pelo “milagre econômico” do Japão, de que os “nossos japoneses” (e não nipo-
brasileiros) possuíam as mesmas características positivas que passaram a serem atribuídas aos
“japoneses do Japão”, como sérios, pontuais, honestos, trabalhadores, sóbrios, dedicados,
higiênicos, estudiosos e diligentes. Com isso, esses nipo-brasileiros foram (e ainda são)
considerados por muitos como sendo os “melhores brasileiros” (LESSER, 2008).
Por outro lado, tendo em vista que muitas dessas “qualidades nipônicas” eram
características que os próprios japoneses afirmavam que os okinawanos não possuíam, uma
vez que os julgavam como preguiçosos, beberrões, grosseiros e sujos, pode-se indagar quais
foram as estratégias que eles utilizaram, e ainda utilizam, para “negociar” de igual forma sua
identidade e seu espaço na sociedade brasileira.
Em contraste com a situação dos demais imigrantes japoneses, me parece que os
okinawanos nas últimas décadas reformularam esse discurso que os inferiorizava perante os
demais nipônicos de modo a construir uma imagem positiva de si partindo da ideia de que, ao
contrário dos japoneses, os okinawanos seriam semelhantes aos brasileiros, não em suas
características negativas, mas por serem mais festeiros, calorosos, amistosos, informais,
despreocupados, felizes, etc.
Nas entrevistas que realizei com membros da comunidade, muitos relataram que os
okinawanos são parecidos com os nordestinos brasileiros, que sofrem preconceito pelos
“sulistas” com base em argumentos semelhantes aos que os japoneses utilizavam para
discriminar os okinawanos. Por intermédio dessa analogia, o objetivo é inventar uma certa
brasilidade ao sugerir que Okinawa seria o “Nordeste do Japão”, não geograficamente, mas
em termos políticos e socioculturais, do mesmo modo como o “Nordeste” é pensado em São
Paulo e em outros estados do Sudeste e Sul, ou seja, muito mais do que apenas uma região
geográfica.
De qualquer modo, essa questão do processo de construção identitária pelos
okinawanos é bastante complexa e múltipla. Pretendo, aqui, apenas olhar por meio de uma
pequena fresta parte desse amplo e extremamente maleável processo, centralizando minha
análise no único jornal voltado exclusivamente para a comunidade okinawana no Brasil, o
Utiná Press.

O jornal Utiná Press e as (re)construções da identidade okinawana


O jornal Utiná Press, de circulação mensal, tem sua origem em 1996 com o nome
Utiná News. Trata-se de um empreendimento particular que, apesar de não ter nenhuma
ligação direta com a Associação Okinawa Kenjin do Brasil (AOKB), sempre foi voltado para
a comunidade okinawana, em especial para a tarefa de divulgar os eventos da comunidade e
trazer informações sobre a cultura de Okinawa. De fato, sabe-se que os periódicos impressos
foram um importante sustentáculo para diversos grupos imigrantes, principalmente nas
primeiras décadas da imigração (SATO, 2009; ESCUDEIRO, 2005).
No caso dos okinawanos, todavia, essa tarefa é de grande importância, tendo em vista
que, ao contrário das demais associações provinciais japonesas, existem no Brasil 44 subsedes
de Okinawa, a maioria no Estado de São Paulo, além da associação central (AOKB) e do
Centro Cultural Okinawa do Brasil (CCOB). Devido a esse grande número, muitos eventos,
encontros e atividades das associações acabavam não sendo adequadamente divulgados.
Em 1998, o jornal adota o nome atualmente em uso. Evidentemente, as características
do jornal, tanto de conteúdo quanto de questões técnicas e editoriais, foram se modificando de
acordo com as necessidades do momento, os recursos disponíveis e as demandas dos leitores.
Não cabe entrar em detalhes quanto a essa questão, mas vale mencionar algumas mudanças
importantes como, por exemplo, o fato de que em 2005 foi a última vez que o jornal publicou
edições bilíngues3. A partir daí, o jornal passou a ser totalmente em português. Esse fato
demonstra que o jornal é voltado não para os imigrantes, mas sim para os descendentes, em
especial para aqueles de meia idade, em torno de trinta a cinquenta anos, muitos dos quais já
não sabem a língua japonesa.
Em seus primeiros anos, o jornal tinha cerca de oito páginas, e hoje varia de trinta a
quarenta. Aumentou não apenas o número de anúncios (que são a maior fonte de renda do
jornal), como também ao incremento de informações e notícias sobre a comunidade e a
cultura okinawana, bem como a quantidade de eventos realizados, que tiveram um boom após
o Centenário da Imigração Japonesa em 2008.

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De acordo com os editores, o casal Vanessa e Marcelo Tinen, que foram entrevistados por mim, o jornal não
teve todas as edições anteriores a 2005 publicadas em japonês e em português tendo havido alternâncias com
alguns anos só em português e em outras edições bilíngues.
O jornal, que já foi gratuito, pode ser recebido por qualquer pessoa mediante uma
assinatura anual a preço módico. Atualmente a distribuição, que a princípio era apenas para o
Estado de São Paulo, atinge vários estados como Goiás, Paraná, Mato Grosso do Sul, DF, e
Minas Gerais e até mesmo o exterior com alguns leitores nos EUA e em Okinawa. Ainda que
não muito significativo em termos numéricos, esse alcance nacional e internacional demostra
a importância do periódico enquanto articulador de uma comunidade que procura construir e
manter laços com outras comunidades okinawanas e, principalmente, com Okinawa.
Com relação ao conteúdo do jornal e a sua contribuição no processo de divulgação e
(re)invenção de uma cultura okinawana, é relevante mencionar quais são as colunas fixas
presentes desde as primeiras edições. De acordo com o próprio site do jornal são as seguintes:
Aprendendo o Dialeto – um espaço dedicado ao aprendizado do dialeto
okinawano, comparando-o à língua japonesa, com traduções em português.
Calendário de eventos – pelo fato de nossa comunidade possuir 44
subsedes espalhadas por todo o Brasil, esta seção tornou-se obrigatória em
nossas páginas, onde são divulgados todos os eventos culturais, sociais e
esportivos da comunidade.
Ponto de Encontro – Destina-se às pessoas que se encontram sozinhas, em
busca de sua “alma gêmea”. O jornal já contribuiu com diversas uniões entre
casais.
Sosen Suuhai – O tradicional culto aos antepassados no estilo da cultura de
Okinawa é abordado nesta coluna. Explicações sobre esta tradição, sobre sua
importância e suas formas de cultuar os antepassados são os temas principais
desta seção.
Massandôo – este nome, que no dialeto de Okinawa equivale à expressão:
“humm, que saboroso!!!”, é o título de uma seção destinada à culinária.
Trata-se de uma página em que, a cada edição, convidamos um leitor (a)
para ensinar algum prato de sua preferência e/ou especialidade, sendo
acompanhada com um pequeno perfil do colaborador (a).
Uchiná nu Shima - Seção que traz um pouquinho da história, dos aspectos
culturais e geográficos de cada região de Okinawa. Traz também algumas
curiosidades locais e dicas de visitação. (Disponível em:
http://www.utinapress.com.br/page_2.html)
Essa divisão temática utilizada pelo jornal é extremamente interessante e fornece
muitas informações sobre quais os elementos selecionados pela comunidade como os mais
significativos para a demarcação de sua identidade cultural. Como sempre ocorre no processo
de negociação identitária de grupos imigrantes, determinados elementos são descartados,
fortemente marginalizados ou alterados, enquanto que outros, considerados como
fundamentais para a demarcação da “fronteira” étnica e cultural, são valorizados, preservados
(ainda que algumas alterações sejam inevitáveis) e tidos como não negociáveis, visto que tais
elementos são os escolhidos como responsáveis pela constituição de uma memória e
identidade coletiva (POUTIGNAT; FENART-STREIFF, 1997).
No caso, é possível ver quais são esses elementos que a comunidade okinawana
procura preservar e divulgar por considerá-los como de suma importância para sua
identificação. Primeiramente, a questão da língua okinawana, por vezes chamada de dialeto4,
a qual, curiosamente, é falada e compreendida por muito mais pessoas aqui no Brasil, em
termos proporcionais, do que em Okinawa, onde a língua japonesa padrão é predominante. É
possível encontrar, inclusive, escolas que ensinam somente a língua okinawana em bairros de
grande concentração desse grupo, como na Vila Carrão.
A culinária diferenciada de Okinawa também se faz presente. Suas peculiaridades
perante a comida japonesa advêm das grandes diferenças geoecológicas desse arquipélago
tropical, bem como devido ao contato com países como a China e a Coreia. Assim, os
okinawanos consomem diversos alimentos não associados com a culinária japonesa, como a
carne de porco, presente no Okinawa soba5 e no tebichi6, o hija nu shiru7; algumas frituras,
como o sata andagui8; e outros pratos que usam ingredientes típicos, especialmente o goya
chanpuru9 que é tido como um dos pratos mais tradicionais de Okinawa.
Também são enfatizadas as diferenças religiosas. Em Okinawa não houve grande
penetração do budismo e do shintô, assim, predominou a tradicional religiosidade pautada no
culto aos ancestrais por meio dos butsudan (altares domésticos) e na presença, em
determinadas circunstâncias, das yuta (termo geralmente traduzido por “xamãs”). A
religiosidade okinawana no Brasil é muito rica e complexa e sua história foi marcada por

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Apesar de ser reconhecida pela Unesco desde 2009 como uma das seis línguas oficiais das Ilhas Ryûkyû, o
tema é ainda controverso e envolve sérias questões políticas, visto que alguns pesquisadores no Japão ainda a
denominam como sendo um dialeto do japonês. Muitos imigrantes okinawanos no Brasil seguem essa
perspectiva devido à educação recebida no Japão. (BAIRON, Fija; BRENZINGER Matthias; HEINRICH,
Patrick, 2009).
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Soba é um de um tipo de sopa comum em várias regiões do Japão, porém, o Okinawa soba possui algumas
peculiaridades, como por exemplo, o uso de costelinha de porco (sôki), a preferência pelo macarrão de trigo (o
mesmo usado nos pratos de udon) ao invés do de trigo sarraceno, além de outros condimentos típicos de
Okinawa.
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Muitas vezes usado no soba (tebichi soba), o tebichi (pé de porco) geralmente é fervido lentamente e por
bastante tempo para ficar macio. Entretanto, ele também pode ser servido em outros pratos (geralmente cozido)
junto com legumes e temperos.
7
O hija no shiru (sopa de cabrito) também é encontrado em festas okinawanas no Brasil. Antigamente esse prato
só era servido em ocasiões especiais devido ao alto custo e dificuldade em prepará-lo. Por seu gosto bastante
forte essa sopa não tem uma aceitação tão grande quanto o Okinawa soba ou o sata andagui.
8
Trata-se de um prato muito comum em Okinawa e no Brasil, de aparência e sabor semelhantes ao bolinho de
chuva. Apesar da aparente simplicidade, há muitas variações sutis no modo de preparo e o procedimento
adequado de fritura do sata andagui requer certa prática.
9
O goya chanpuru é um dos pratos mais característicos de Okinawa por utilizar um ingrediente típico desse
arquipélago o goya (traduzido como “melão de São Caetano” assemelha-se a um pepino rugoso e com saliências
arredondadas de gosto bastante amargo). O nome desse prato significa “mistura de goya” e trata-se de um
refogado feito com esse legume, carne de porco (às vezes se usa fiambre enlatado), tofu, ovos e outros temperos
como o shoyû.
contatos, relações e hibridizações com o catolicismo e mesmo com o candomblé e a umbanda
(MORI, 2007).
A necessidade de manter uma relação de proximidade com a terra natal também se faz
presente. O jornal frequentemente traz notícias de Okinawa, bem como a respeito das
comunidades okinawanas de outros países, notadamente para informar sobre a realização de
eventos comemorativos e encontros, como os promovidos pela WUB 10, além do grande
evento que congrega okinawanos do mundo inteiro, realizado a cada cinco anos em Okinawa,
o Uchinanchu Taikai, ou Encontro Mundial dos uchinanchus (okinawanos). Esses eventos
internacionais e a rede de contatos entre as diversas comunidades e dessas com Okinawa
fazem com que os okinawanos construam cada vez mais sua identidade e cultura por meio de
uma rede transnacional e glocal (SOUZA, 2009).
Por fim, a seção “ponto de encontro” também indica uma situação muito interessante.
Durante décadas, a comunidade japonesa residia em colônias e devido ao isolamento, à
dificuldade de comunicação e interação com os brasileiros (marcada por preconceitos
recíprocos) e mesmo em decorrência de uma formação etnocêntrica e xenófoba recebida no
Japão pré-guerra, os casamentos endogâmicos eram a norma geral. Haviam também, muitas
vezes, restrições para o casamento de famílias japonesas com okinawanas (VIEIRA, 1972).
Ainda que hoje em dia a situação tenha se modificado e casamentos de okinawanos
com japoneses ou com não descendentes sejam a maioria, muitos ainda buscam parceiros e
parceiras dentro do próprio grupo étnico. Ao ler as mensagens dos participantes da “seção de
encontros”, é perceptível que enquanto alguns buscam relacionamentos com “orientais” ou
“japoneses” outros especificam que buscam “uchinanchus”. Em alguns casos, os interessados
dizem que procuram pessoas apenas para amizade, mas querem que sejam okinawanos. Tal
fato demonstra que, para esses, a questão étnica é tão forte que os levam a julgar os
okinawanos não apenas como parceiros mais adequados, mas também como amigos.
Na realidade, o Utiná Press apenas publica as mensagens de pessoas inscritas em um
site de relacionamentos, cujo nome, em si, já é muito significativo, miaieletronico.com.br.
“Miai” é o termo em japonês para “casamento arranjado”, em oposição a ren’ai, ou
“casamento por amor”, termo surgido após a Segunda Guerra. Desse modo, sites como esse
são formas e tentativas de se (re)inventar uma forma de relacionamento parcialmente
endogâmico, porém não mais arranjado (algo que soa de modo negativo), apenas mediado ou

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Worldwide Uchinanchu Business Association. Associação voltada para realização de parcerias de negócios e
promoção de “networks” entre os okinawanos e descendentes ao redor do mundo.
articulado, sendo que tal mediação não é mais feitas pelos pais, mas sim, por meio de um
banco de dados eletrônico.
Evidentemente, uma análise sobre os editoriais e as matérias mensais e especiais (anos
comemorativos, coberturas de grandes eventos) levantariam muitas outras questões relevantes
para a discussão do processo de construção identitária dessa comunidade. Todavia, limitei
minha análise a apresentar o jornal e suas colunas fixas, entendendo-os como fatores
importantes no esforço de (re)formulação dos discursos sobre a cultura e a identidade
okinawana, especialmente em São Paulo onde a abrangência do jornal é maior.

Considerações finais
A intenção desse artigo foi destacar algumas peculiaridades de um grupo minoritário
dentro da imigração japonesa, os okinawanos, mostrando como foi diverso o caminho trilhado
por eles para a negociação de sua identidade étnica e cultural no Brasil em comparação com a
maioria dos imigrantes japoneses. A análise privilegiou o principal veículo de comunicação
escrita dessa comunidade no Brasil, o jornal Utiná Press, um a vez que ele atua como um
importante mecanismo para a articulação desse grupo, sendo também um lócus onde se é
possível observar as (re)formulações culturais e identitárias desse grupo desde meados dos
anos 1990.
É importante ter em mente que a construção e negociação da identidade de qualquer
grupo imigrante se dão sempre de forma complexa e estão em constante mutação. Assim, é
necessário estar atento às afirmações simplistas e reducionistas sobre esses processos, uma
vez que tais afirmações quase que certamente carregam, ainda que implicitamente, intenções
apologéticas ou depreciativas.
Quebrar a suposta harmonia, homogeneidade e os pré(conceitos) sobre os grupos
imigrantes, tanto daqueles vistos positivamente pela sociedade como vencedores, quanto
daqueles tidos como marginalizados e fracassados, pode ser um dos vários caminhos
possíveis para se desmontar e combater os injustos e errôneos argumentos que privilegiam
apenas determinados grupos. A longo prazo, esse processo pode, quem sabe, contribuir, ainda
que minimamente, para a construção de uma sociedade realmente comprometida com uma
prática mais democrática e tolerante em relação à rica diversidade cultural e étnica aqui
existente, de modo que a afirmação do Brasil como um país acolhedor não seja apenas um
discurso e um rótulo conveniente, porém refutados, na prática, pela existência de muitos
“porém” e “exceções”.
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