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O estranho de si mesmo:

Corpo e identidade em Orlando e Gregor Samsa

O pensamento em torno da construção da identidade e seu desdobramento no


corpo sujeito a essa identificação não pode se dar senão em relação aos agenciamentos de
poder que determinam padrões culturais, políticos, econômicos, linguísticos. O
atravessamento do corpóreo pelos processos identitários é também um atravessamento da
História, ou ainda, o modo como tudo o que é histórico atravessa e condiciona o
reconhecimento de um corpo. A partir das noções do despertar e do esquecimento
desenvolvidas por Walter Benjamin e Friedrich Nietzsche, além do conceito de estranho
(Unheimlich) trabalhado por Jean-Luc Nancy e pela teoria psicanalítica freudiana, o
presente texto propõe uma leitura de A Metamorforse, de Franz Kafka, e Orlando, de
Virgínia Woolf, apresentando a conflituosa vinculação entre identidade, cultura e
representações de poder presente nessas obras.
A articulação benjaminiana em torno do sono/sonho e do despertar poderá
servir à compreensão das imagens tão significativas do acordar de Gregor Samsa, na novela
kafkiana, e também de Orlando, no romance de Woolf. Para Benjamin, o despertar é o
momento do conhecimento histórico. Diretamente relacionado à imagem dialética, que une
o já ocorrido com o agora num relampejar, possibilitando a legibilidade de um instante
passado pelo presente, o despertar toma as imagens do saber inconsciente do sonho e as
devolve à consciência. Como uma lembrança que resgata o esquecido à superfície. Quando
Samsa acorda de sonhos intranquilos percebe a transformação de seu corpo num
monstruoso inseto. O reconhecimento de seu corpo metamorfoseado em algo desprezível
manifesta-se simultaneamente à indignação frente a sua vida condicionada e submetida a
dispositivos burocráticos, comerciais, familiares. Seu cotidiano determinado pelo emprego
insatisfatório, pela necessidade de quitar a dívida dos pais e por uma rotina automatizada na
ausência de afeto é ressaltado por sua condição presente. O corpo mutante, abjeto, é a
apresentação de um conhecimento histórico que se dá, a nível pessoal em Gregor, pela
percepção de sua anulação identitária dentro dos agenciamentos de poder1 que coordenam
sua vida. Numa leitura mais ampla, o despertar de Samsa é o entendimento kafkiano de

1 A expressão e de Gilles Deleuze e Félix Guatarri apresentada no ensaio “Ano zero – rostidade” (Mil platôs
vol.3) e se refere às inúmeras representações de poder que coordenam a vida social e individual como a
cultura, a língua, o estado político monetário, o princípio biológico de gênero, entre outros.
uma modernidade opressiva, que impede o desenvolvimento móbile e impreciso das
características individuais para fixar autômatos obedientes e alienados. O corpo
transformado em inseto é também a mutação que, há muito tempo ocorrida internamente no
homem subordinado pelo estado político-econômico-cultural, finalmente se dá no plano
físico, como se a própria corporeidade despertasse para o entendimento psicológico e
histórico desse sujeito.
Orlando por sua vez desperta duas vezes de um sono profundo de vários dias.
Na primeira, após a grande geada, engendra-se uma transformação, o início de uma
metamorfose que já se prenuncia ao longo de toda a narrativa.

“No entanto, suspeitava-se de que alguma transformação tivesse


acontecido na sua mente, pois, embora perfeitamente racional, ele
parecia mais grave e mais calmo em seus modos do que antes, parecia
guardar uma recordação imperfeita de sua vida passada.”(p32)

Lembrança e passado se aproximam novamente, mas num gesto imperfeito. O


esquecimento necessário, iluminado por Nietzsche na Segunda consideração intempestiva e
mais tarde na Genealogia da Moral, é a força através da qual o homem é capaz de se livrar
do peso do passado. Trata-se, no entanto, de um esquecimento ativo, diretamente
relacionado a uma perspectiva anacrônica da história, que diferentemente do pulso linear da
historiografia tradicional, recorta e revisita essa de forma imprevista: é preciso esquecer
para lembrar, mas não a lembrança opressiva e regular que o homem postula num valor
inigualável da memória, mas sim a recordação imperfeita, recortada pelo gesto de esquecer.
A noção nietzschiana do esquecimento como única possibilidade humana de felicidade, a
articulação do histórico e do a-histórico “necessários à saúde de um povo e de uma
cultura”, está intimamente ligada ao despertar e à imagem dialética sustentada por Walter
Benjamin. Para que haja resgate da memória, do fato passado num clareamento do presente,
é preciso que exista também zonas de sombra, esquecimento. Caso contrário, tudo será
apenas o fato passado, uma massa amorfa e sem sentido que não pode ser ressignificada e
reorientada para o agora. A transformação de Orlando, sua recordação imperfeita é na
realidade um agir histórico personificado pelo aristocrata. A experiência de solidão cunhada
pelo personagem após despertar do sono profundo trata também da leveza do
esquecimento, do afastamento da moralidade dos costumes: viver na solidão é não ser servil
à tradição, é poder perceber os equívocos da vida comunitária, sem obedecer a suas regras
sociais, sem precisar sublinhar sua memória. Na solidão deslocada das obrigações
socioculturais, a visão é ampliada e o indivíduo distingue-se daquele que obedece e se
anula pelo dever a ser cumprido.
O segundo despertar de Orlando durante a guerra no Oriente Médio talvez seja
o ponto central da narrativa de Woolf. A personagem se transforma numa figura do sexo
feminino – a mudança de sexo ocorre, mas a identidade permanece:

Podemos aproveitar esta pausa na narrativa para fazer certas


declarações. Orlando tinha se transformado numa mulher — não há
como negar. Mas, em todos os outros aspectos, Orlando permanecia
exatamente como era antes. A mudança de sexo, embora alterando seu
futuro, nada fizera para alterar sua identidade. (p 59)

A transformação física de Orlando se dá com naturalidade e aponta a presença


de um devir-mulher já insinuado ao longo do romance: há em Orlando-homem a mulher
que esse se torna, numa coexistência, contra os princípios da moral e dos costumes que
afundam as diferenças em castrações identitárias. Como dirá Maria dos Remédios de Brito
“o que se encontra em Woolf, na obra Orlando, é uma espécie de resistência aos
enclausuramentos identitários, ou essencializações” (p 6). No momento de sua mutação,
três figuras santas – a Castidade, a Pureza e a Modéstia – tentam evitar o despertar de
Orlando em seu devir-mulher, negar a invasão da diferença. Representantes das “virgens e
dos homens de negócio; advogados e doutores; os que proíbem, os que negam”, as três
figuras simbolizam uma identidade cultural regida por agenciamentos de poder que
obrigam o encaixotamento das identidades individuais a partir de padrões pré-determinados
de comportamento e aparência.

O tema da verdade criticada por Woolf mostra que o sistema de


julgamento e punição arrasta o corpo para a docilidade, à
sujeição, à castração e à vergonha. Um corpo gestado pelo
sistema do julgamento é aterrorizado por todas as
experimentações de culpa, o que leva o homem a uma eterna
infantilização, deixando-se emoldurar (BRITTO, 2014, p. 9)

A consideração de Britto pode se ampliar para um entendimento da mutação


tanto em Orlando como em Gregor Samsa. Se a personagem de Woolf irrompe em seu
devir-mulher contra o desejo da moral e dos costumes, sem vergonha da alteração em seu
corpo, e seu despertar é portanto um modo de resistência, por outro lado, a transformação
de Samsa é uma concessão final, desse corpo submetido ao “sistema de julgamento e
punição”, e que é arrastado à “docilidade, à sujeição, à castração e à vergonha”. Todos
esses processos acometem a Gregor, o imbuem de culpa, o emolduram. A mutação, ainda
que lhe ocorra o lampejo de sua condição degradante quando se questiona sobre seu
trabalho infeliz e sobre a falta de afetividade da família, é uma efetivação desse corpo que
há muito era sujeitado pelos dispositivos culturais e pelas figuras de autoridade e,
simultaneamente, é a única possiblidade de sair desse corpo infeliz, de se tornar qualquer
outro. Como dirá Ricardo Piglia, Kafka registra a tensão entre identidade, cultura e estado
autoritário.

Poderíamos dizer que a função do estado, a função disso que


geralmente se chama de a inteligência do estado é no imaginário
contemporâneo a de reconstruir e vigiar a verdade dessas vidas
falsas – a memória pessoal está nas mãos do estado. (PIGLIA,
1991, p.65)

Gregor sofre a metamorfose em inseto, nesse estranho desprezível, perde o dom


humano da linguagem, quando na verdade a sua figura enquanto homem, provedor da
família, caixeiro-viajante, já estava impossibilitada de falar por si, de formar posições que
compusessem alguma identidade individual. Sua transformação apresentada tão
rapidamente na primeira sentença do texto de Kafka, deriva, na realidade, de um processo
de animalização anterior que seu enfado com a vida e sua incapacidade de agir contra o
peso das exigências já anunciava: um animal domesticado pelo poder.

Também em Orlando é preciso assinalar uma relação condicionante entre a


cultura, o estado e a identidade. Ainda que esse (ou essa) apresente uma forte resistência às
delimitações identitárias, a personagem vive inúmeros momentos de adaptação à sua
condição de mulher: o modo de se portar, como caminhar na rua, como sorrir e dissimular,
ser obediente, casta, enfeitada - o que lhe é permitido fazer e o que não. A figura escrita por
Woolf percebe, então, após sua metamorfose, o modo infinitamente mais opressivo com
que a sociedade e seus princípios culturais determinavam o papel das mulheres. Desses
padrões sociais deriva também a desqualificação da mulher frente ao estado: essa não pode
ter posses sem associar-se a um marido ou tendo um filho, tampouco pode se articular
perante à lei. Entre resistir e adaptar-se, Orlando arma uma outra tensão e concebe as
identidades como significantes mutáveis, propondo uma nova tradição (ou traição?) na qual
as características de homens e mulheres não se impõem culturalmente.

Jean-Luc Nancy em seu ensaio “El Intruso” discorre sobre o transplante de


coração que se efetivou em seu corpo. A experiência que se estendeu em um longo período
de adaptação é lida a partir das inúmeras peripécias médicas que visam solucionar o
problema cardíaco e as recorrente consequências geradas pelo órgão transplantado. Sua
perspectiva é daquele que percebe a intrusão, que reconhece o estranho que se instala em
seu corpo. Nancy coloca que “a estranheza não tinha que vir de fora pois havia surgido
dentro”: o coração - o mais íntimo e próprio, onde simbolicamente se resguarda o precioso
e o afetivo – se convertia em seu estranho. Para que o novo órgão fosse suportado pelo
corpo, fez-se necessária a diminuição da imunidade, o que o autor compara à própria
identidade. Assim, ele retorna a si mesmo como intruso, estranho, a uma identidade
diminuída, que já não reconhece.

A experiência tratada por Nancy parece tanger os processos de mutação vividos


tanto por Samsa quanto por Orlando. Quando Gregor se percebe metamorfoseado, é o
corpo, esse templo, espaço de reconhecimento do humano e abrigo de uma identidade, que
se transformou em seu estranho. Se em Nancy, é o coração que vem do outro mas se instala
dentro que implica a estranheza, os processos opressivos de imposição sociocultural e
político-monetária que se dão desde o nascimento do personagem kafkiano, como se de fato
nascessem no interior do indivíduo e não fossem trazidos de fora, criam nele mesmo um
intruso, por muito tempo acomodado na sujeição dócil. Gregor, que nunca ficou doente
necessitando faltar ao trabalho, acorda, então nessa debilidade maior – a metamorfose. A
doença, que não se exterioriza no corpo físico durante os cinco anos de emprego, carcome
Samsa por dentro: é interna, o intruso está em si, no próprio corpo e na própria identidade,
intruso que surge desde as condições impostas em seu nascimento, pelo estado e pela
cultura. Até que por fim o expõe. Como dirá Nancy, “a verdade do sujeito é sua
exterioridade e seu excesso: sua exposição infinita. O intruso me expõe excessivamente.” A
mutação de Gregor ocorre em seu próprio quarto: a vida que leva no cumprimento de
funções familiares, seu trabalho indesejado é a constituição de um corpo estranho em si
mesmo, até que esse se coloca à mostra: o sujeito submetido é escória, é inseto. Resgatando
a noção freudiana, pode-se dizer que o Unheimlich – estranho, desconhecido, assustador,
não-familiar, sobrenatural, inquietante, o que deveria ter permanecido secreto e oculto mas
veio à luz - contém em si o Heimlich – íntimo, familiar, pertencente à casa, conhecimento
místico e alegórico, afastado do conhecimento, oculto da vista. Nesse sentido, desdobrando
a leitura da novela de Kafka e do relato de Nancy, a metamorfose de Samsa nesse estranho
corpo é o apontamento de uma zona familiar recalcada, de um entendimento mais profundo
e inconsciente de sua realidade, mas que só reaparece – só vem à luz – como o
sobrenatural. Ou ainda, na perspectiva da família de Gregor, o estranho é o que está na
casa, na família, no íntimo.

Orlando, por sua vez, como afirma o biógrafo na última parte do livro, possui
múltiplos eus que se alternam e convivem em diferentes perspectivas e conflitos. Para além
do homem que era e da mulher que se tornou, inúmeras camadas, vezes estranhas, vezes
familiares disputam esse corpo que atravessa a história. O menino que açoita com prazer
um negro, o amante dos animais, a mulher que odeia afazeres domésticos e o homem que
não tem ânsias de poder. Há sempre um estranho e um conhecido insinuado por toda a
narrativa na incompatibilidade – e convivência - do rapaz que lê poesia na solidão
obstinadamente e a mulher que se dá aos festejos febris da sociedade. O coração é aí
também o próprio estranho: o que é a vida, o que é o amor? A personagem se pergunta
repetidamente. Esse sentimento mais interior e profundo da vivência, do amor, é
simultaneamente o oculto, o inquietante. Como dirá Nancy:

O intruso não é outro que não eu mesmo e o homem mesmo.


Não é outro que o mesmo que não finda nunca de se alterar,
afiado e esgotado ao mesmo tempo, despojado e
sobrecarregado, intruso no mundo como em si mesmo
(NANCY, _____, p.140)

A identidade pessoal de um sujeito é antes de tudo fluida, variante, móbile e o corpo


em suas constantes mutações é a chave dessa identidade. O rosto, por outro lado, como colocará
Deleuze e Gautarri no ensaio Ano zero – rostidade, está sempre sendo agenciado,
compartimentalizado em padrões comportamentais de gênero, classe, tribo, paisagens. São os traços
de uma identidade cultural imponente e determinante que se desdobram a partir de dispositivos de
poder – o estado, o sistema político monetário, a tradição, a língua. Nesse sentido, há sempre um
duplo estranho que cresce dentro do humano: esse que lhe é imposto pelos sistemas, que é cultivado
como uma verdade do sujeito mas que lhe chega do exterior, porém de modo tão justo ao
nascimento que lhe parece próprio; e o estranho que arma um angustiante embate contra essas
forças opressivas, que dá ao indivíduo uma faísca visionária de sua sujeição, e que lhe é, na
perspectiva freudiana, anteriormente familiar, esse sim interior, o estranho de si mesmo.

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