Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
celular para começar o que havia se transformado em rotina diária: a caça virtual.
Entrou no Grindr, um aplicativo voltado para o público gay masculino, que localiza e
informa onde estão os cinquenta usuários mais próximos das redondezas. Além de
fotos, boa parte dos conectados no Grindr escolhe apelidos que servem como isca
virtual para atrair e filtrar pretendentes. Entre os mais comuns, estão Ativo, Passivo,
Versátil, Pra Já, Casal, Curioso, Dotado. Na sua conta no Grindr, E.R.P. optou por
apresentar-se com seu primeiro nome. E usou dois emojis – um anel de diamante e um
foguete.
Nas cerca de três semanas em que passaram juntos, R.M. adotou o consumo injetável
da metanfetamina. Os dois usaram a droga diversas vezes, tomaram Viagra, fizeram
injeção à base de prostaglandina, um vasodilatador aplicado direto no pênis, que é
capaz de sustentar uma ereção por quatro horas, e ainda chamaram outros parceiros
via Grindr para participar da maratona. O brasileiro e o australiano chegaram a ficar
quatro dias sem dormir. Viajaram para Ilha Grande, na Costa Verde fluminense, e
depois para São Paulo, sempre passando a maior parte do tempo dentro do quarto da
pousada ou do hotel praticando chemsex.
De volta ao Rio, E.R.P. levou R.M para o almoço de Natal com sua família, na Vila da
Penha. Havia mais de trinta familiares e amigos. Os dois chegaram de óculos escuros
para esconder as pupilas dilatadas, e não demoraram a começar a pensar em fantasias
sexuais. “Essa droga leva a pensamentos de vulgaridade, insanos. Bastou um tio me
dar um abraço para desejar Feliz Natal para eu pensar em transar com ele. Você
começa a ser controlado pelo sexo”, diz E.R.P. Encerrado o almoço, os dois voltaram
para Ipanema e para a rotina de sexo e droga. No dia 27 de dezembro, R.M. pegou um
avião para Jericoacoara, no Ceará. E.R.P. deixou-o no aeroporto e pegou um Uber para
a casa de sua mãe. O trajeto de 24 km foi um martírio. Ele teve alucinações. “Era como
se tudo que ficava para trás do carro estivesse em chamas”, recorda.
Ao chegar, nem precisou se explicar. Sua mãe, que trabalha numa loja de pneus e
recebe pensão do pai militar, olhou para o rosto suado do filho, para as manchas roxas
nos braços, e entendeu tudo. Disse que iria interná-lo numa clínica de reabilitação. Ele
concordou. Acompanhado pela mãe e o irmão caçula, deu entrada na Clínica Jorge
Jaber, localizada em um sítio com vista para a suntuosa Pedra da Rosilha, em Vargem
Pequena. “Boa parte dos dependentes de metanfetamina não chega na clínica de forma
espontânea”, diz Jaber. “Em geral, são socorridos em hospitais e chegam à reabilitação
de ambulância.” Em um ano e meio, aquela era a terceira fez que E.R.P. se internava no
mesmo lugar e pela mesma razão: a adição em metanfetamina. Dessa vez, a internação
foi voluntária.
O conceito de chemsex foi criado pelo assistente social e ativista australiano
David Stuart no começo dos anos 2000. Para ele, a definição de “sexo químico” é
restrita a quem usa, sempre com fins exclusivamente sexuais, as seguintes drogas
sintéticas: metanfetamina, mefedrona (essa droga, um defensivo agrícola, é pouco
popular no Brasil) e GHB (usada no golpe do Boa Noite, Cinderela). Não se aplica a
outras drogas, que podem levar o consumidor à prática sexual, como álcool e maconha,
mas não são ingeridas com esse fim específico. Outros pesquisadores, no entanto,
definem o chemsex como o sexo praticado sob efeito de qualquer substância – cocaína,
LSD, ecstasy, o que for.
Existem diversas razões para os homens que fazem sexo com homens serem os mais
afetados pelo avanço do chemsex. “Essa população enfrenta um estresse crônico por
toda a vida, tendo muitas vezes sofrido violências verbais e físicas. Muitos têm
problemas em se assumir para a família e para o trabalho”, avalia Branquinho.
Mulheres lésbicas e transexuais também atravessam problemas semelhantes, mas não
estão entre os adeptos do chemsex. Por quê? São múltiplas as razões e, entre elas, está o
fato de que os aplicativos voltados para o público gay masculino são muito mais
numerosos, a exemplo do próprio Grindr, com 11 milhões de membros. “Os aplicativos
de encontros são facilitadores para o uso dessas drogas. Você usa determinado emoji e
se conecta com pessoas com o mesmo propósito”, afirma Branquinho. “Sem falar que
alguns fetiches afloram com o uso da metanfetamina, as pessoas se sentem mais
potentes e com menos dor física.”
Além dos aplicativos de encontros, há uma questão cultural. Vivian Salles Alvarez,
especialista em psicopatologia e saúde pública pela USP e cuja tese de mestrado versou
sobre “masculinidade e prevenção”, aponta que os homens, não importa a orientação
sexual, são socialmente estimulados a contar vantagens sexuais. “O ideal cultural de
masculinidade é o que se convencionou chamar de ‘masculinidade hegemônica’,
modelo em que os homens aprendem que a valorização da atividade sexual é o que
legitima a identidade masculina”, diz Alvarez. Por isso, desde cedo, os homens são
ensinados e incentivados a experimentar uma sexualidade intensa, seja pela
comparação do tamanho do pênis e pelo volume de ejaculação, seja pelo número de
parceiros e o desempenho sexual.” Ela conclui: “Nesse sentido, fica fácil entender como
a metanfetamina teve tanta adesão entre homens que fazem sexo com homens.”
Por tudo isso, o sexo químico já preocupa profissionais de saúde. “Tem de trabalhar
com redução de danos. O chemsex é uma realidade, e se não for feito um trabalho sério
pode se tornar uma questão de saúde pública”, alerta Bernardo Porto Maia,
infectologista do Instituto Emílio Ribas, em São Paulo. Uma forma de reduzir danos é a
profilaxia pré-exposição ao HIV (PrEP HIV). É uma pílula com dois antivirais –
tenofovir e entricitabina – que, quando tomada diariamente, evita a contaminação pelo
vírus HIV, mesmo no sexo sem camisinha com alguém soropositivo.
A PrEP, distribuída pelo SUS desde 2017, corre risco de ser negligenciada
no chemsex porque, sob o efeito da metanfetamina, o usuário pode esquecer de tomar o
remédio, expondo-se a todo tipo de doença. A PrEP previne o HIV, mas não outras
infecções sexualmente transmissíveis, como sífilis ou hepatites virais. “Como nossa
experiência mostra que o chemsex tem crescido muito no Brasil nos últimos anos,
sobretudo entre homens na faixa etária de 15 a 24 anos, já se tornou protocolo médico
perguntar aos que usam PrEP se eles fazem sexo químico. É um fator extra de
vulnerabilidade e precisa de maior atenção”, diz Maia.
o Denver se parece com qualquer motel barato do Centro de São Paulo. São três
andares modestos, uma fachada cinza-chumbo e um letreiro discreto, mas com uma
garagem diferente: não tem portas e, portanto, contrariando a praxe dos motéis, não
oferece qualquer privacidade aos usuários. Justifica-se: o entra e sai do Denver não se
dá a bordo de automóveis. Quase todos entram a pé e sozinhos.
Lá dentro, há uma feira permanente de metanfetamina. Os praticantes
do chemsex alugam um quarto – paredes recém-pintadas de amarelo e bege, piso frio e
um cheiro permanente de cigarro – e procuram parceiros hospedados nos demais
quartos ou convidam usuários do Grindr que estejam hospedados em outras suítes no
mesmo estabelecimento. “Eu estava na casa de uma pessoa consumindo Crystal, abri o
Grindr e um cara me convidou para ir ao Denver”, recorda o médico c.a., de 27 anos.
Ele pegou um Uber, foi até o motel e descobriu um universo paralelo nos corredores e
quartos.
A piauí procurou os donos do Denver. O estabelecimento não tem rede social, nem
site, nem telefone disponível na internet. Na recepção, a reportagem obteve um cartão
de visita, que traz um site e um e-mail – mas nenhum funciona. O site não dá acesso, o
e-mail volta. Na Junta Comercial, o nome de Djalma de Souza Rocha aparece como um
dos sócio-administradores. Em conversa com a piauí, ele disse que nunca soube do
consumo de metanfetamina no motel e que sequer sabia da existência da droga, mas
prometeu ficar atento. “Vamos vigiar mais agora para ver o que está rolando lá
dentro.”
O Grindr está entre os aplicativos mais usados pelo público gay no mundo.
Lançado em 2009, seu objetivo era mesmo servir como plataforma para conectar a
comunidade gay, mas tornou-se também outra coisa: hoje, é um ambiente privilegiado
– ainda que não seja o único – para o chemsex. Ali, os traficantes de metanfetamina
vendem seu produto e os usuários, por sua vez, combinam entre si o consumo do
estimulante para a prática sexual. Quem acessa o Grindr no bairro dos Jardins, em São
Paulo, ou em Copacabana, no Rio de Janeiro, encontra traficantes com facilidade.
Em junho do ano passado, dois homens – Jonathan Soares Silva e Saulo Mateus
Noronha – foram presos dentro de um apartamento em Copacabana por tráfico de
metanfetamina. Eles usavam o Grindr como ferramenta de vendas. A investigação
policial começou a partir de denúncia dos moradores, que desconfiaram do excesso de
movimento no apartamento suspeito. Foi a segunda prisão dos dois homens por tráfico
da droga. A primeira ocorreu em 2020. (Fora do universo digital, o tráfico também se
espraia. Em outubro, a polícia de Mato Grosso do Sul apreendeu 12 kg de
metanfetamina escondida em sucata de vidro na carroceria de um caminhão, em
Campo Grande. “Estamos perto da Bolívia e do Paraguai, grandes produtores de
maconha e cocaína. Metanfetamina, no entanto, foi a primeira apreensão por aqui”, diz
o delegado Hoffman D’Ávila Cândido e Souza, diretor da Delegacia Especializada de
Repressão ao Narcotráfico.)
Com o Grindr, além da droga, também ficou mais fácil encontrar parceiros que têm
objetivos em comum. O médico C.A. percebe a diferença. Ele começou a usar
metanfetamina quando fazia residência médica, em março de 2020. Numa balada
depois de um show da australiana Kylie Minogue, conheceu um casal na pista de
dança, que o convidou para um ménage. Ele aceitou, lhe ofereceram metanfetamina, ele
gostou e, semanas depois, já estava procurando parceiros no Grindr para o chemsex.
“Só que, há dois anos, as pessoas não colocavam emojis dizendo que gostam de
Crystal”, diz. “O assunto surgia na conversa. Agora, está tudo mais às claras.”
P ara fazer essa reportagem, a piauí entrevistou três adeptos do chemsex, mas
eles pediram para ficar anônimos, tanto pelo preconceito sexual quanto pelo estigma
da dependência química. A exceção foi Eduardo Albuquerque, de 26 anos, criado pelos
avós numa família modesta na região da Represa de Guarapiranga, em São Paulo.
Quando tinha 18 anos, enrolou-se para pagar a prestação de um celular e aceitou a
sugestão de um amigo de abrir um perfil no Grindr e oferecer serviços como garoto de
programa. Começou cobrando 80 reais, mas a procura cresceu. Logo já cobrava 250
reais e, com o sucesso, ele e seu namorado criaram um novo perfil no Grindr e no
Twitter, o “Irmãos Dotados”, que, além de oferecer programas, vendia vídeos eróticos
por WhatsApp.
A iniciativa deu certo. “Nós éramos fisicamente parecidos, e a verdade é que a questão
do incesto mexe com o fetiche de muita gente”, conta. A demanda foi tão alta que
criaram um blog para divulgar os vídeos. Hoje, Albuquerque trabalha como ator
pornô, diretor e presidente da produtora Irmãos Dotados. A empresa lança quatro
novos filmes por mês, emprega quinze pessoas e conta com 3 mil assinantes, que
pagam mensalidade de 39,90 reais para ter acesso a toda base de filmes da empresa.
Sua vida financeira estava equilibrada quando decidiu experimentar drogas sintéticas
em festas de música eletrônica. Primeiro, o ecstasy. Chegou a tomar seis comprimidos
em uma só balada. Depois de uma depressão severa, migrou para o GHB. “Cheguei a
acordar mais de três vezes em enfermarias de festas por desmaiar após exagerar na
dose dessa droga”, diz. Na última ocasião, quebrou três dentes de porcelana durante a
crise de tremedeira e ansiedade. Mais uma vez, mudou de droga.
“Em janeiro de 2022, um amigo me convidou para fumar Tina”, recorda. Ele estava em
uma festa eletrônica no Rio de Janeiro. Fumou, mas não aconteceu nada. Uma semana
depois, em outra festa eletrônica, agora em Búzios, fumou metanfetamina pela
segunda vez. “Desta vez, gostei, infelizmente. Senti um bem-estar e uma conexão
sexual com as pessoas.” A partir de então, passou a comprar a droga com traficantes
online que entregavam em seu endereço. Ficava trancado por cinco, sete dias. “Nesse
tempo, em que eu não dormia, só fazia sexo, ficava o tempo todo no aplicativo para
chamar mais gente para vir em casa, pois nunca é suficiente.” Todos os contatos com
parceiros de metanfetamina eram feitos pelo Grindr. “A metanfetamina virou o crack
do público gay: não tem uso recreativo e está em ascensão.” Ao longo de cinco dias,
chegava a receber entre 10 e 15 parceiros em casa. Certa vez, uma bolsa Gucci sumiu.
Ele se recrimina pelo que fez. “Assim como falam dos carimbadores de HIV, de
pessoas soropositivas que transam sabendo que podem transmitir o vírus, existem os
adictos em Crystal, que oferecem a droga sabendo que a pessoa irá se viciar”, diz ele.
“É horrível isso, mas o viciado quer ter mais gente por perto usando para poder
transar. Não se importa se isso vai detonar a vida da pessoa.” Por ter aversão a agulha,
ele nunca usou a versão injetável.
Depois de uma internação hospitalar em que chegou vomitando e com crise de pânico,
Albuquerque finalmente percebeu que seu corpo estava intoxicado e resolveu parar.
“Eu pensei que ia morrer ou enlouquecer no hospital. Foi ali que cheguei no meu
limite”, diz ele. Foi medicado, retomou a terapia. Está limpo há oito meses, continua
com terapia e psiquiatra, mas carrega sequelas. Passou a conviver com crises de
ansiedade e síndrome do pânico com maior intensidade. Sem conseguir dormir com
sudorese e taquicardia, ele conta que já chegou a apagar tomando cinquenta gotas de
um ansiolítico bastante popular.
potente para o Exército. Na Segunda Guerra Mundial, doses elevadas eram dadas aos
pilotos kamikaze. Desde os anos 1930, a Alemanha nazista fabricava o Pervitin,
comprimido de metanfetamina que foi largamente usado na Segunda Guerra para
manter os soldados acordados e operantes. As tropas da Wehrmacht recebiam as
cápsulas como parte das refeições, o que levava alguns soldados a um furor maníaco.
Na década de 1950, a droga passou a ser prescrita para tratar depressão. Caiu no gosto
de estudantes universitários e caminhoneiros, que usavam a metanfetamina como
estimulante para se manterem acordados por mais tempo. Na década seguinte, deu-se
então um boom no consumo da droga na forma injetável, criando um problema de
saúde pública, de tal modo que, nos anos 1970, foi proibida nos Estados Unidos. Desde
os anos 1990, pequenos e grandes traficantes, incluindo os cartéis mexicanos,
produzem a droga em laboratórios caseiros.
Com seu grande poder de adição, a metanfetamina age no sistema nervoso central e,
segundo os médicos, cria dependência rapidamente. Seu efeito dura de 9 a 12 horas.
Além do aumento da libido, causa euforia, sensação de poder e perda de apetite. “Já
perdi 4 kg em uma semana usando Crystal, simplesmente por não comer nada”, diz
Eduardo Albuquerque. Antes de começar as festas em sua casa, ele comprava o “kit
Tina”: iogurte e vitaminas de Whey Protein, tudo pastoso. “Eu me obrigava a comer
para não passar tão mal.”
No Brasil, a metanfetamina é uma droga bastante cara, mas o preço está caindo. Custa
400 reais o grama em cidades como Rio e São Paulo, ao passo que 1 grama de cocaína
ou MDMA, outra droga sintética, custa em torno de 100 reais. “Há dois anos, o grama
do Crystal saía por 500 reais. No último ano, já vi gente oferecendo por 350. Está se
popularizando cada vez mais”, diz Eduardo Albuquerque.
Na mesma noite em que a piauí esteve no Denver, um usuário do Grindr que apareceu
na timeline fez eco à preocupação de E.R.P. “PrEP não previne hepatites e outras ISTs”,
escreveu, mencionando a sigla de Infeções Sexualmente Transmissíveis, que substituiu
a antiga DST, que usava “doenças” em lugar de “infecções”. E prosseguiu: “Cuidado,
camisinha é proteção. Sabe a tal da Tina? Vai roubar o seu dinheiro, a sua vida” – e,
para não ser censurado pela rede social com o uso de uma palavra forte, meteu um
número no meio – “vai te m4tar rápido, te fazer refém.”
Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_199 com o título “Tesão doido”.