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VERBO JURÍDICO

CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM DIREITO MÉDICO

Francisco Lúcio Sátiro Maia Pinheiro

DESAFIOS DO MÉDICO NA RELAÇÃO COM O PACIENTE E COM SEU


TRABALHO: HUMANIZANDO QUEM É DESUMANIZADO

Morada Nova/CE
2021
Francisco Lúcio Sátiro Maia Pinheiro

DESAFIOS DO MÉDICO NA RELAÇÃO COM O PACIENTE E COM SEU


TRABALHO: HUMANIZANDO QUEM É DESUMANIZADO

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à Verbo Jurídico como
requisito parcial para a obtenção do grau
de especialista em Direito Médico.

Morada Nova/CE
2021
Francisco Lúcio Sátiro Maia Pinheiro

DESAFIOS DO MÉDICO NA RELAÇÃO COM O PACIENTE E COM SEU


TRABALHO: HUMANIZANDO QUEM É DESUMANIZADO

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à Verbo Jurídico como
requisito parcial para a obtenção do grau
de especialista em Direito Médico.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________
Prof. Nome Orientador

__________________________________________________________
Prof. Nome Professor

__________________________________________________________
Prof. Nome Professor
Dedico este trabalho à Deus, a minha
família e a todos os professores da Verbo
Jurídico que me auxiliaram no decorrer do
curso de especialização.
RESUMO

Os médicos e demais profissionais da saúde ganharam amplo destaque na


sociedade desde os primórdios da civilização. Contudo, com a pandemia de COVID-
19, toda a sociedade notou a ampla importância que se tem da atuação de médicos,
enfermeiros e demais profissionais da saúde. Nesse aspecto, é valiosa a discussão
acerca da relação existente entre médico e paciente e os aspectos que impactam
nessa questão. Com isso, o objetivo geral deste trabalho é analisar as variáveis e
aspectos consideráveis existentes na relação entre médico e paciente e os desafios
existentes. A metodologia de pesquisa utilizada foi a pesquisa qualitativa. Com isso,
a coleta de dados foi realizada com pesquisa bibliográfica em bases de dados
nacionais. Conclui-se este trabalho com a premissa que, existem diversos desafios
na relação entre médico e paciente, dentre estes como os pacientes e familiares
difíceis, as longas jornadas e condições de trabalho precárias, a desconsideração da
humanidade do médico e a sua consideração como uma espécie de máquina e não
como um profissional que é, acima de tudo, um ser humano.

Palavras-chave: Desafios. Humanização. Médico. Paciente.


ABSTRACT

Doctors and other health professionals have gained wide prominence in society since
the dawn of civilization. However, with the COVID-19 pandemic, society as a whole
noticed the broad importance of the role of doctors, nurses and other health
professionals. In this regard, the discussion about the relationship between doctor
and patient and the aspects that impact this issue is valuable. Thus, the general
objective of this work is to analyze the variables and considerable aspects that exist
in the relationship between doctor and patient and the existing challenges. The
research methodology used was qualitative research. Thus, data collection was
carried out with bibliographic research in national databases. This work concludes
with the premise that there are several challenges in the relationship between doctor
and patient, including difficult patients and family members, long hours and
precarious working conditions, disregard for the humanity of the doctor and his
consideration as a kind of machine and not like a professional who is, above all, a
human being.

Keywords: Challenges. Humanization. Doctor. Patient.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ……………………………………………………………………. 7

2 CONDIÇÕES DE TRABALHO …………………………..…………..………….. 11

2.1 DESVALORIZAÇÃO E PERDA SALARIAL ……………………..…………... 11

2.2 OS PACIENTES DIFÍCEIS E SEUS FAMILIARES ...........…………….…... 16

2.3 AS CONDIÇÕES DE TRABALHO DO MÉDICO ......……….….….…….….. 17

3 IMPACTOS FÍSICOS DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO DO MÉDICO …. 19

3.1 A SAÚDE E O BEM-ESTAR DO MÉDICO …………………………………... 19

3.2 PATOLOGIAS FÍSICAS QUE VITIMAM OS MÉDICOS ….………..………. 21

3.3 SUICÍDIO ENTRE MÉDICOS ..…….…..….…….…..………..……….……… 21

4 IMPACTOS EMOCIONAIS DERIVADOS DA ATUAÇÃO DO MÉDICO …... 23

4.1 AS EMOÇÕES DO MÉDICO …….….……..…..….…..…..….……..………... 23

4.2 PRINCIPAIS TRANSTORNOS QUE ACOMETEM OS MÉDICOS ……….. 26

4.2.1 Síndrome de burnout ……………………………………………………….. 27

4.2.2 Despersonalização/irrealização ……..……………….……..…….……… 29

4.3 IMPACTO DA PANDEMIA SOBRE A SAÚDE DOS MÉDICOS E


31
ENFERMEIROS ….…..….…..….…..…............…....……..….…..…….….……...

4.4 REPENSANDO O MEDICO COMO SER HUMANO ……..….….….….…... 34

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ……………………………………………………... 35

REFERÊNCIAS ......…………………………………………………………………. 37
7

1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é lançar um novo olhar sobre a já tão debatida


relação entre o médico – bem como outros profissionais de saúde – e o seu
paciente, abordando diversos aspectos um tanto negligenciados em boa parte dos
trabalhos que se propõe a analisar essa relação. Há muito se debate a relação
médico-paciente e já se reviu o paradigma que por muito tempo pautou essa relação
tendo o médico na condição paternalista de senhor da situação em face de um
paciente passivo e hipossuficiente.
Muitos trabalhos já foram feitos, obras várias foram escritas, incontáveis
artigos já se propuseram a abordar essa relação. Entretanto, tais trabalhos
geralmente pecaram seja pelo excesso ou seja pela omissão em relação a alguns
aspectos que regem esses encontros, ora focando em uma imagem estereotipada
do médico, ora omitindo certos traços e até mesmo a responsabilidade dos
pacientes que deveriam enfocar.
O presente trabalho nasceu para isso, fruto da escassez de uma análise mais
holística e detalhada da convivência entre os profissionais de saúde e seus
assistidos. Não almeja evidentemente, esgotar este tema, senão que deseja enfocar
em aspectos ainda não suficientemente abordados.
A análise da relação médico-paciente não pode ser bem-feita abordando
apenas em aspectos superficiais e unilaterais que pequem pelo enfoque mais
insistente em apenas um dos sujeitos dessa relação – geralmente o médico-
desconsiderando outros aspectos no outro sujeito desse encontro. A dinâmica dessa
relação exige que tanto o médico em suas mais variadas características seja levado
em consideração quanto o paciente nas suas, posto que no encontro entre os dois,
essas características e estados interferirão.
Os séculos XIX e XX viram uma mudança substancial na visão da interação
entre o médico e o paciente, uma mudança aliás bastante tardia tendo em vista que
a figura do médico passou milênios envolvida em uma espécie de áurea mística e ao
mesmo tempo foi seio de uma irônica contradição, em que o médico, depositário de
todas as esperanças dos que já dela se sentiam privados, era visto com ao última
ratio, além da qual nada mais poderia ser feito.
8

Por essa mesma razão, não poderia ou não seria desejável que falhasse em
seu múnus de curar, de sanar o sofrimento, de aliviar as dores e agruras daqueles
que à ele recorressem. Caso falhasse, especialmente na Primavera da Medicina que
ocorreu nas sociedades antigas, correria o risco não apenas de manchar sua
reputação, mas de perder a própria vida. De fato, os antigos códigos legais
abandonavam o médico à mercê da família do paciente, no casso de um prejuízo
causado a este pelo médico, numa espécie de vingança privada que tanto
caracterizou os códigos civis antigos.
O Iluminismo lançou novas luzes e perspectivas sobre todos os aspectos do
conhecimento humano, rejeitando a ideia de uma influência transcendente sobre a
vida, para se basear numa suposta razão, numa análise fria e racional das cosias e
dos seres e, ao passo que a Revolução Industrial dotava a Humanidade de novos
meios pelos quais investigar a natureza, a Medicina foi evoluindo tecnicamente com
mais velocidade do que a figura paternalista do médico foi sendo mudada.
A rapidez com que o conhecimento se multiplicou e foi disseminado,
proporcionando com que a Técnica evoluísse ponto de o corpo humano fosse visto
como algo a ser investigado com maiores pormenores não foi capaz de dar ao
médico um papel mais humanizado e igualmente dotado de humanidade, senão que
reforçou a figura do sujeito detentor do conhecimento absoluto, contra a qual o
paciente leigo não tinha sequer o direito de duvidar.
Tudo isso só veio a mudar recentemente, de meados do século XX para cá,
na primeira onda de reconfiguração da figura e da função do médico, bem como a
da liberdade e da maior autonomia da até então quase invisível figura do paciente.
Essa mudança seguiu o rastro dos questionamentos sobre o papel da Medicina e da
influência das doenças no cotidiano, do surgimento da discussão sobre Bioética que
marcaram a segunda metade do século XX.
A mudança na forma de ver a função do médico e a crescente autonomia do
paciente aumentou com o surgimento da internet em fins do século XX e
especialmente no início do século XXI, e continua acontecendo nos dias atuais, em
que a rápida transição entre uma descoberta e outra e a massificação da informação
continua elevando o paciente a um patamar decisivo na relação com o médico que,
9

por sua vez, é obrigado a se adequar a esse novo tipo de paciente, cada vez mais
informado.
A relação ficou mais complexa e dinâmica, na medida em que o paciente
muitas vezes não quer apenas um primeiro diagnóstico, mas vai atrás de uma
segunda e até uma terceira opinião, o que acaba por vezes, abalando o médico em
sua autoconfiança ou presumida autossuficiência entrando em cenas aspectos um
tanto negligenciados, como as emoções. Com isso torna-se necessário abordar a
relação entre os dois com novos olhos, tentando entender como aperfeiçoá-la em
benefício de ambos os atores, deixando de lado certas tendências maniqueístas e
até simplistas outrora abordadas.
Não é suficiente traçar os limites ou objetivos da atuação do profissional de
saúde na sua lida com o paciente, sem antes, considerar o próprio profissional em si
e no seu ambiente de trabalho. É preciso ir além e enfocar nos múltiplos fatores que
influenciam médicos, enfermeiros, dentistas, técnicos de enfermagem em seu
cotidiano, considerando as dificuldades, as emoções, o estresse, os limites físicos
dos profissionais diante de um sistema de saúde cada vez mais saturado,
especialmente se considerarmos o heroísmo com que se portaram esses
profissionais em tempos de Pandemia, diante de tanto sofrimento que ameaçava
não apenas a dignidade, mas a vida de milhões de pacientes.
Devido à incumbência de tratar com o bem jurídico vida, além de conforto e
bem-estar de pessoas, os profissionais de saúde, mormente os médicos, tem sido
exigidos cada vez mais, sem contar o fator concorrência que é natural em todos os
campos profissionais. Essa exigência, tanto na rede pública como na rede privada,
somada a aspectos comuns nesta última que é a superpopulação de pacientes a
serem atendidos, muitas vezes em condições de trabalho sofríveis tem gerado na
população médica de todo o mundo uma alta carga de estresse, doenças diversas e
desestímulo e isso precisa ser melhor abordado nos trabalhos científicos.
As pesquisas publicadas por diversos periódicos dão conta de que é cada vez
maior o impacto sobre a vida dos médicos dos diversos fatores da prática clínica
moderna, tais como novas tecnologias diagnósticas e terapêuticas, a pressão da
indústria farmacêutica, a mercantilização dos serviços médicos, assim como a perda
da autonomia, a diminuição da remuneração, a precariedade das condições de
10

trabalho, prejuízos para a saúde do médico, fora os casos de hiper exploração pela
mídia moderna dos casos de erro médico. Tudo isso contribui para um desgaste
cada vez maior dos profissionais, especialmente cobrados durante a Pandemia de
Sars-Covid.
Esses aspectos são muitas vezes negligenciados quando se quer falar da
relação médico-paciente, ao colocar o médico na posição de hiperssuficiente e o
paciente na condição inversa de hipossuficiente, cobrando-se um atendimento mais
humanizado do paciente, o que é legítimo, entretanto deixando de considerar com a
atenção necessária a própria humanidade do médico, condição essencial para que
se busque melhorar essa relação dando a ambos a satisfação buscada.
Os inúmeros estudos revisados sobre a situação psicológica e emocional dos
profissionais médicos diante das atuais condições de trabalho são suficientemente
robustos para elencar toda uma série de situações com as quais eles se defrontam e
atingem o desempenho de seu trabalho, desde a Síndrome de Burnout até a
violência contra os profissionais, o que causa desmotivação, esgotamento
psicológico e emocional e em muitos casos, pensamentos suicidas. O sentimento de
frustração pela quebra das expectativas diante das condições reais de trabalho, a
alta demanda pelos serviços em situação de pouca infraestrutura, a jornada de
trabalho excessiva também pode impactar fortemente os médicos e impedir um
melhor relacionamento com o paciente.
Com relação a cada um desses fatores, vários números importantes foram
obtidos nas pesquisas que mostram as principais patologias relacionadas ao
exercício da Medicina e cujo estudo contribuirá para que se chegue à compreensão
do que deve ser feito para que a relação entre o médico e seu paciente possa ser a
melhor possível, evitando desgaste para ambos além de buscar evitar ocorrência de
judicialização.
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2 CONDIÇÕES DE TRABALHO

2.1 DESVALORIZAÇÃO E PERDA SALARIAL

A opinião geral reinante na sociedade consagrou o exercício da Medicina


como uma das profissões liberais mais bem remuneradas que existem. Se em um
passado não muito distante isso foi verdade, nos dias atuais, a depender da área de
atuação e da região onde o médico atua, a realidade pode se apresentar totalmente
diversa. Não só existe desvalorização salarial de médicos, inclusive com os atrasos
de pagamento em municípios onde a gestão pública dos recursos em saúde é
deficitária, como há também uma distribuição desigual de profissionais por região.
Segundo informações veiculadas no Doctormed relativos a 2015, no Brasil
havia 399.692 médicos para uma população de 204.411.281 habitantes, o que
correspondia a 1,95 médicos para 1.000 habitantes. Na mesma época existiam nos
Conselhos Regionais de Medicina 432.870 médicos, na proporção de 2,11 médicos
para 1.000 habitantes. Essa diferença entre o número de médicos e de registros nos
Conselhos se dava em razão de inscrições secundárias de profissionais registrados
em mais de um estado da Federação.
Já em 2020 o número de médicos no Brasil, de acordo com o estudo
Demografia Médica Brasileira, era de 500 mil médicos sendo que informação
divulgada no site Revisamed dá conta que de 2010 a 2019 entraram no mercado de
trabalho cerca de 179.838 novos profissionais médicos. Esse crescimento foi
atribuído ao maior número de vagas nas escolas médicas existentes e à abertura de
novos cursos de Medicina. Em 100 anos o número de médicos cresceu 5 vezes
mais que a população. Mas com todo o crescimento, a distribuição desses
profissionais é bastante desigual. E essa desigualdade não raro se expressa no fator
da remuneração do profissional médico.
As capitais concentram geralmente o maior número de médicos. Essa
concentração sugere que essas cidades, por terem maiores recursos e
infraestrutura, além de uma maior população e potencialmente mais clientes, são
preferidas em comparação com cidades do interior, cujos municípios focam na rede
12

de Atenção Básica e por serem os menores entes da Federação, na maioria das


vezes dispõem de menos recursos para remunerar bem seus profissionais de saúde.
Em média nas capitais, existem 5,65 médicos para cada 1.000 habitantes,
enquanto o conjunto de cidades do interior contam com apenas 1,49 médicos para a
mesma proporção. A situação é bem mais dramática quando se fala dos estados da
Região Nordeste, onde no geral, os municípios do interior contam com apenas um
ou menos de um médico para cada 1.000 habitantes. A consequência previsível
dessa desigualdade é muitas vezes um único médico que em um posto de saúde
atende dezenas de pacientes todos os dias, com sobrecarga de trabalho,
remuneração nem sempre condizente, pouca ou quase nenhuma estrutura de
trabalho, o que favorece ao desenvolvimento de transtornos de diversos tipos.
Essa má distribuição no entanto, não evitou que, durante a Pandemia de
Covid-19, mais de 82% dos médicos brasileiros tenham sido afetados negativamente
em sua renda, segundo a pesquisa intitulada Impacto da Pandemia na Vida do
Médico, realizada pelo grupo Médicos Sem Jaleco. Especialmente no início da
Pandemia de Covid, e com a Agência Nacional de Saúde recomendando que
paciente, médicos, laboratórios, consultórios e instituições hospitalares adiassem
exames, consultas e cirurgias que não fossem urgentes, o sistema de saúde privado
especialmente, sofreu perdas em suas receitas.
Essas restrições advindas da Pandemia tiveram um imediato efeito negativo
tanto em nível institucional quanto em nível pessoal. De acordo com levantamento
feito pelo Sindicato dos Hospitais do Estado de São Paulo, num período de apenas 3
meses antes da suspenção pela ANS, da recomendação dada no início da
Pandemia, os planos de saúde deixaram de repassar o montante de R$ 18 bilhões
para o setor. Operações, consultas e exames foram adiados, com cerca de 60% das
cirurgias tendo sido suspensas, de acordo com o Colégio Brasileiro de Cirurgiões.
Os efeitos econômicos adversos gerados pela Crise Sanitária não atingiram
somente médicos, como outros profissionais na cadeia dos serviços de saúde. Dos
cerca de 38 milhões de usuários de planos de saúde, nada menos que 31 milhões
estão ligados aos planos empresariais. Levando-se em conta que no Brasil, grande
parte das empresas de todos os portes foram duramente afetadas com a crise,
13

conclui-se que o aumento do desemprego está diretamente associado à diminuição


dos clientes dos serviços de saúde.
Esse impacto inclusive foi constatado em clínicas de grande e de médio porte,
as quais cogitaram em demitir cerca de 350 mil enfermeiros, auxiliares e técnicos de
Enfermagem, além de outros profissionais, a fim de conseguir uma redução de
gastos para compensar os efeitos da crise, prevendo um reavivamento da demanda
após o fim da Pandemia. Se a situação da renda dos profissionais de Saúde não era
das melhores antes da Crise de Covid, essa por sua vez, agravou o problema para
além dos problemas estruturais habituais, especialmente no sistema de saúde
pública.
Entre os médicos, o estudo do grupo Médicos Sem Jaleco constatou que a
perda média da receita girou em torno de 44% se comparada à situação pré-Crise,
enquanto quase metade dos médicos teve uma redução de ganhos maior do que
50% se comparados à situação anterior. Já outra pesquisa, esta feita pela
Universidade Federal de São Paulo, contatou que principalmente os profissionais
das áreas de Ortopedia e Traumatologia, 98% tiveram perdas financeiras, tendo sido
realizada com cerca de 900 médicos. Sem falar de outros fatores, como questões de
caráter tributário, em que médicos, segundo artigo publicado no jornal Estadão,
cerca de 89% dos médicos estariam pagando impostos a mais do que deveriam.
Vale observar que os médicos no Brasil não possuem um piso salarial
unificado e definido em todo o país, além de estarem sujeitos a uma remuneração
bastante irrisória durante o seu período de residência. Com toda a pressão que
recebem diante das situações reais demandadas pela população, privados de maior
tempo social para lazer, os médicos residentes veem-se submetidos também à
restrição de renda, recebendo bem abaixo do que deveria receber. em 2020 a
Federação Nacional dos Médicos, por exemplo, em sua luta pelo piso salarial
desses profissionais, recomendava um piso de R$ 15. 274,00 para 5 horas de
trabalho diário, e um valor mínimo para consultas de R$ 187,49.
Em uma análise superficial, pode parecer um bom salário, sobretudo se
comparado a pisos salariais de outras categorias, mas um olhar mais atento para a
situação nas diversas regiões do país mostra que os ganhos médios andam bem
longe do montante dessa recomendação. Especialmente considerando regiões
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historicamente menos desenvolvidas, como o Norte e o Nordeste, com municípios


mais carentes para o médico que atua no SUS e com poder aquisitivo relativamente
muito menor se comparado às regiões mais economicamente mais desenvolvida,
para o médico que atua na rede privada, que geralmente também trabalha na rede
pública para complementar a renda.
Os médicos que trabalham no SUS por exemplo, são submetidos à uma
tabela de pagamento estabelecida pelo próprio Sistema, com valores fixos. Um
médico Clínico Geral por exemplo, ganhava cerca de R$ 12,00 por consulta em
2020 trabalhando pelo SUS, enquanto a estimativa para a rede privada era de R$
60,00. A maioria dos médicos depois de formados procuram o SUS porque abrir um
consultório pode não ser tão vantajoso como construir uma carreira com a
experiência que o SUS oferece, ainda que pague menos. Enquanto seus
consultórios não estão consolidados, é necessário para os recém-formados
começarem a atender pelo SUS, mesmo com tamanha diferença de remuneração.
Analisando as diferenças regionais, fica evidente a disparidade salarial entre
os profissionais médicos. De acordo com o site Cadastro Geral de Empregados e
Desempregados com dados de 2020, na Região Sudeste, um médico pediatra tinha
rendimentos mensais da ordem de R$ 8.055 trabalhando 20 horas por semana. No
Rio de Janeiro esse valor era de R$ 4.951,00 apenas. Já na Região Nordeste, um
médico cardiologista da Bahia recebia R$ 5.215,00 e um de Pernambuco recebia R$
3.032,00 para trabalharem ambos em regime de 20 horas semanais. Como se pode
notar, a diferença pode ocorrer dentro da mesma região.
Um médico psiquiatra da Região Sul, de acordo com dados do Caged,
percebia em 2020 R$ 5.280,00 para um regime de trabalho de 25 horas semanais
no Rio Grande do Sul. O mesmo especialista recebia no Paraná algo em torno de
R$ 7.935,00 trabalhando 6 horas a menos. Já na Região Norte, um clínico geral
trabalhando no Amazonas recebia por 30 horas semanais de trabalho a quantia de
R$ 5.797,50 e o mesmo profissional trabalhando no Pará tinha seus rendimentos
diminuídos para R$ 4. 356,00. No Distrito Federal, na Região Centro-Oeste,
geralmente associada com uma maior qualidade de vida e condições estruturais
melhores, um ginecologista poderia perceber R$ 6.629,34 para trabalhar 23 horas
15

por semana enquanto que no Estado de Goiás, o mesmo profissional recebia R$


6.280,00.
Como se pode deduzir, toda essa disparidade é o produto da carência, no
Brasil, de um piso salarial unificado para os médicos. Essa reivindicação,
relativamente antiga, produto de uma busca pela melhoria e estabilidade salarial dos
médicos de todo o país, é defendida no Brasil pela Federação Nacional dos
Médicos, que todos os anos, recomenda o mínimo pagamento digno para os
profissionais, e lamenta a negligência do Poder Legislativo frente às propostas
levantadas, mas que de fato, não são levadas a termo pelos parlamentares em
votação para decidir esse assunto.
Exemplo dessa realidade são as duas propostas de lei que foram elaboradas
em torno do piso salarial dos médicos, mas que a falta de interesse parlamentar
consubstanciada na lentidão na apreciação da matéria impediu a concretização
dessa reivindicação. O que antes era definido em lei, agora busca um parâmetro
unificado. De fato, historicamente o piso salarial era definido pela Lei número
3.999/61, o qual era vinculado ao valor do salário mínimo vigente. Com a
promulgação da Constituição de 1988 essa situação mudou, e o valor passou a ser
calculado com base na variação da inflação. Em 1961 a renda do médico fixada pela
Lei 3.999/61 era a de três salários.
Duas alterações na referida Lei foram propostas nas legislaturas de 2015 e de
2019, sendo a de 2015 o projeto de Lei 765/2015 de autoria do Deputado Benjamim
Maranhão que estabelece o piso salarial em R$ 10.513,00, mas a falta de interesse
parlamentar fez com que a proposta fosse arquivada. Em 2019 o PL foi reavivado
com alterações pelo parlamentar Dr. Jaziel, dessa vez estabelecendo como
parâmetro o Piso definido em 2018 pela Federação Nacional dos Médicos, e que
estipula um valor de R$ 14.134,58 para a mesma carga horária estabelecida no PL
anterior, de quatro horas diárias ou vinte horas semanais, para as redes pública e
privada. O valor de referência da Fenam atual é de R$ 16.106,38.
A dificuldade de estabelecer um piso salarial cria distorções que geram
impactos negativos no atendimento principalmente das populações mais
vulneráveis, havendo municípios que fixam um valor até abaixo dos irrisórios três
salários mínimos fixados na antiga Lei 3.999/61. De acordo com o portal do
16

Sindicato dos Médicos do Distrito Federal- Sindmed, que tratava a respeito do tema,
em 2019 o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul- Cremers anulou
judicialmente um concurso público realizado pela prefeitura de Bagé, cujo edital
estabelecia o irrisório valor de R$ 1,3 mil para uma carga horária de 20 horas
semanais e em 2020 , conseguiu anular outro concurso, dessa vez o do município
de Santa Maria, que estabelecia um valor de R$ 1.453,06 para as mesmas 20 horas
semanais.
As distorções criadas pela falta do aludido Piso criam situações de falta ou
escassez de médicos em muitos lugares, pois enfrentar uma grande e cansativa
demanda de pacientes em municípios que, além de não possuírem uma adequada
estrutura de atendimento que dê aos médicos condições dignas de trabalho e aos
pacientes condições dignas de atendimento, também pagam um salário que é
totalmente incompatível para a função exercida pelo médico. A ação desses
profissionais no enfrentamento da Pandemia de Covid-19 mostrou que ao contrário
da prática de muitos municípios e estados, que se permitem pagar um salário
indigno da função de lidar com vidas humanas mas também abaixo dos índices de
inflação que provocam perda de poder de compra por parte do profissional, é
necessário que se tenha um Piso unificado. e não apenas eles, como os demais
profissionais que o auxiliam no front de batalha pela saúde.

2.2 OS PACIENTES DIFÍCEIS E SEUS FAMILIARES

O encontro médico geralmente constitui uma fonte de satisfação mútua.


Existem, porém, pacientes que evocam em nós, médicos, emoções negativas, como
raiva, culpa, ódio e até depressão. Esses pacientes visitam o médico com mais
frequência do que a média, com uma variedade de problemas agudos e crônicos,
recebem mais prescrições, fazem mais exames e são encaminhados com mais
frequência para obter uma “segunda opinião” ou aconselhamento de vários
especialistas. Alguns os chamam de pacientes com "sofrimento cardíaco". Muitos
desses pacientes têm uma 'pasta grossa' no consultório médico (KOVÁCS, 2010).
Ao longo dos anos, várias tentativas foram feitas, algumas delas em estudos
de diferentes tipos, para descrever o paciente difícil. Existem quatro tipos de
17

pacientes difíceis: o exigente, o manipulador, o negador e o autodestruidor. Outros


pesquisadores relataram pacientes com sintomas de somatização como sendo
difíceis, ou seja, aqueles pacientes para os quais os médicos não encontram uma
base orgânica para o problema (SALDANHA; BADCH; CRUZ, 2013).
Várias condições sociais e médicas foram consideradas difíceis para os
médicos. Doenças mentais, alcoolismo, uso de drogas, obesidade e doenças
músculo-esqueléticas eram as condições médicas mais difíceis para os médicos,
enquanto pessoas sujas e fedorentas, comportamento agressivo, raiva e hostilidade,
falta de cooperação no tratamento e exploração do sistema de saúde eram as
condições sociais mais difíceis (STEINMETZ; TABENKIN, 2001).
Cada vez mais médicos reconhecem que o problema é o encontro médico, a
interação entre o médico e seu paciente, e não apenas o próprio paciente. A
dificuldade pode derivar da personalidade do médico, do seu sistema de estilo de
trabalho e de crença, de diferenças culturais entre ele e seu paciente, do caráter e
comportamento do paciente e de circunstâncias externas que afetam o encontro
(HINCHEY; JACKSON, 2011).

2.3 AS CONDIÇÕES DE TRABALHO DO MÉDICO

Embora a medicina seja uma ocupação de alto status e alta qualificação, que
tradicionalmente oferece acesso a empregos de boa qualidade e salários
relativamente altos, continuar a fornecer esses benefícios no contexto de uma
recessão econômica e período de austeridade é um desafio. Os sistemas de saúde
e os empregadores de saúde devem se adaptar às expectativas de hoje sobre o que
constitui um trabalho médico de boa qualidade, e fazê-lo dentro das restrições de
financiamento, relacionadas a austeridade e/ou, aquelas resultantes de
subfinanciamento histórico de longo prazo (HUMPHRIES et al., 2018).
A qualidade do trabalho é a medida em que um trabalho tem fatores
relacionados ao trabalho e relacionados ao emprego que promovem resultados
benéficos para o empregado, particularmente bem-estar psicológico, bem-estar
físico e atitudes positivas. Os empregos de boa qualidade também beneficiam os
18

empregadores, aumentando a estabilidade média e a produtividade (FELSTEAD et


al., 2019).
Organização do trabalho (incluindo demandas e recursos), salários e sistemas
de pagamento, segurança e flexibilidade (por exemplo, contratos, horas de trabalho
e flexibilidade), habilidades e desenvolvimento (por exemplo, uso de habilidades,
treinamento) e engajamento (por exemplo, consulta e voz) foram identificados como
cinco dimensões principais que afetam a qualidade do emprego. Os empregos são
normalmente classificados como de boa, moderada ou má qualidade, embora as
características do emprego possam variar entre os empregadores e o mesmo
emprego possa ser bom em alguns aspectos, mas não em outros (HOLMAN, 2013).
Uma variante da saúde de um trabalho extremo, desenvolvida por meio de
pesquisas com gestores de hospitais, é caracterizada por longas horas e presença
física; prazos apertados e um ritmo de trabalho rápido; fluxo de trabalho imprevisível;
escopo desordenado de responsabilidade; Disponibilidade 24/7; e responsabilidade
pela equipe de mentoria (GRANTER et al., 2015).
Outras dimensões específicas de cuidados de saúde de um trabalho extremo
identificadas incluem tomar decisões de vida ou morte, administrar prioridades
conflitantes e mutáveis, ser obrigado a fazer mais com menos recursos, responder a
órgãos reguladores e combater um clima de negatividade. Aqueles que têm
empregos extremos podem ser motivados e desafiados por esta forma de trabalho,
desfrutando dos altos salários, reconhecimento, status, poder e alegria que
acompanham o trabalho extremo (GRANTER et al., 2019).
No entanto, empregos extremos também podem ter um impacto negativo no
bem-estar dos funcionários e nas relações familiares, com metade daqueles em
funções extremas indicando que não querem continuar trabalhando sob tal pressão.
Isso levou a um reconhecimento dos riscos associados ao trabalho extremo e
sugestões de que trabalhos extremos - ou trabalho extremo - são insustentáveis a
longo prazo (GRANTER et al., 2015).
19

3 IMPACTOS FÍSICOS DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO DO MÉDICO

3.1 A SAÚDE E O BEM-ESTAR DO MÉDICO

Se existe uma constatação que, de tão óbvia, deixa de ser percebia ou é


insuficientemente considerada no meio social é esta: o médico é ser humano e,
portanto, também é paciente. É igualmente vulnerável, embora o imaginário popular
que concebe o médico há milênios como aquele que vai solucionar os mais graves
problemas de saúde dos outros, seja quase incapaz de ver nesse profissional, as
vulnerabilidades que na vida real, muitas vezes o acomete. É como se ainda
houvesse algum resquício daquela imagem estereotipada milenar do agente com
poderes de curar a dor e o sofrimento.
Em pouco mais de 100 anos, a expansão das escolas de Medicina e a maior
proximidade desses profissionais com o meio popular se encarregou de
gradualmente, humanizar, por assim dizer, a figura do médico e tirar a aura mítica
que a cobria para revelar o inevitável: o médico é não apenas passível de errar,
como também de ficar doente. Não apenas fica doente, morre ao tratar a doença
alheia, como vimos recentemente na Pandemia, em que inúmeros valorosos
profissionais, no cumprimento do seu múnus na tirânica luta contra o vírus Sars-
Covid, contaminaram-se e faleceram como quaisquer pacientes que, por eles, eram
tratados.
Com o avanço da Medicina associado ao desenvolvimento de novas
tecnologias, apresentou-se diante do médico um novo panorama, cada vez mais
complexo e desafiador de sua antiga autonomia, uma realidade capaz de provocar
no profissional não apenas questionamentos, como também criar insegurança,
sentimento de impotência, dissociação consigo mesmo e com os outros. Transtornos
variados de ordem psíquica e doenças físicas são cada vez mais observados nesses
profissionais, fatores capazes de influenciar concretamente na capacidade de
trabalho do médico como na relação médico-paciente e com os colegas de
profissão.
Da jornada de trabalho excessiva, principalmente no sistema público de
saúde, com intensa demanda especialmente na Atenção Básica, passando por
20

condições de trabalho precárias até pacientes super informados capazes de agir


ativamente desafiando o conhecimento e a autonomia do médico e a relação com
pacientes e familiares difíceis, desembocando em casos cada vez mais comuns de
violência contra médicos, tudo influi para considerarmos igualmente as condições de
bem-estar e de saúde desses profissionais na elaboração de políticas de trabalho e
assistência adequada para almejar garantir aquele direito à saúde insculpido na
Constituição e que é um direito não só do paciente, como também, do médico.
Se é verdade que a exaustão do trabalho contribui para o aparecimento de
patologias mentais que se irá abordar a seguir, também é verdade que inúmeras
doenças de ordem físicas são desenvolvidas e tem impacto inclusive de ordem
econômica tanto na rede pública como na privada quando, por exemplo, a alta
rotatividade surgida da falta e estrutura digna de trabalho e de salários precários
fazem com que médicos migrem para outras regiões provocando escassez em
determinados lugares, ou quando eles, por motivo de saúde, se ausentam para
tratamento das patologias adquiridas no consultório ou mesmo se afastam
definitivamente da profissão.
Para além desses fatores inerentes ao exercício da Medicina, há também
outros que serão abordados, tendo como exemplo necessário a má gestão nos
recursos de Saúde Pública, que provocam desde sempre os seculares problemas no
oferecimento dos serviços e por vezes sucateiam a estrutura local do sistema,
originando pacientes desrespeitados em seus direitos e médicos insatisfeitos com o
que tem a oferecer dentro dessa estrutura.
Uma gestão pública mal elaborada tem o condão de afetar negativamente a
qualidade dos serviços públicos prestados, de forma ainda mais abrangente do que
a má gestão dos recursos de uma clínica ou hospital particulares e uma deficiência
maior pelo maior número de pacientes atendidos, por causa da característica de
universalidade do Sistema. Com isso, cria-se uma ponte para problemas variados no
atendimento da demanda que afeta imediatamente os profissionais e os assistidos,
nas esferas física e psicológica.

3.2 PATOLOGIAS FÍSICAS QUE VITIMAM OS MÉDICOS


21

No transcorrer de sua rotina no atendimento à população da rede pública e


aos usuários da rede privada, o médico está não apenas sujeito ao desenvolvimento
de doenças ou transtornos de natureza psicológica. Há possibilidade também, do
desenvolvimento de diversas lesões físicas advindas da prática médica, para além
da mera hipótese de acidente de trabalho. Vimos, especialmente no auge da
Pandemia de Sars- Covid, um aumento exponencial da já grande exposição a
agentes biológicos a que muitos profissionais são submetidos diariamente.
Se, de acordo com a pesquisa feita pelo Sindicato dos Médicos de Minas
Gerais e divulgada no site da Federação Nacional dos Médicos, antes da Pandemia
já havia um percentual tão grande de médicos que se diziam exaustos, após o início
do problema o quadro só veio a se agravar, de acordo com estudo feito pela Fiocruz.
Fatores como a alta transmissibilidade do vírus, a inexistência de um tratamento
comprovado, a falta de testes, a necessidade de isolamento social e com três vezes
mais chances de contrair a doença que a população
Some-se a isso o fato que no Brasil não existe uma política pública eficiente
destinada à atenção e à proteção da saúde física, psicológica e emocional dos
médicos, o que na outra ponta, desfavorece um melhor atendimento aos pacientes
que procuram ajuda. A estrutura física de trabalho, particularmente na esfera
pública, é historicamente sofrível para dizer o mínimo, e com o surgimento da
Pandemia, mesmo com o aporte de recursos para os entes federativos, a situação
prática não melhorou e questões de ordem política também agravaram a situação.
Na pesquisa da Fiocruz trazida à baila em 2020 foram apresentados dados que
expressam essa realidade. Segundo ela, 95% dos médicos se diziam exaustos.

3.3 SUICÍDIO ENTRE MÉDICOS

De fato, esse é um tema por demais urgente que vem alarmando pelos dados
que estão sendo levantados em estudos iniciais sobre o delicado tema. O portal
Medscape por exemplo, ainda no ano de 2018 publicava notícia dando conta de que
dentre todas as categorias profissionais nos Estados Unidos, os médicos eram os
que detinham a maior taxa de suicídio, com cerca de uma ocorrência por dia, mais
do que o dobro da taxa entre a população em geral. Já o portal Hospitais Brasil em
22

2021 noticiava que o suicídio entre médicos e estudantes de Medicina está


aumentando.
Um postulante à profissão de médico enfrenta situações difíceis desde que
começa a sua preparação para o vestibular, um dos mais, senão o mais difícil
processo seletivo entre os estudantes. Uma vez aprovado e ingressando na
faculdade, tem início uma nova rotina de intensos estudos que tomam o dia inteiro
do aluno e daí por diante, o futuro médico pouco descanso tem. Serão muitos anos
de árdua preparação, justificada aliás, tendo em vista a função a que se destina.
Nesse processo desgastante, fatores como disciplina, persistência, força de vontade
e muita motivação são os sustentáculos indispensáveis à obtenção do diploma e
depois, à especialização na residência médica.
O trabalho exaustivo, a eventual má remuneração, a alta demanda de
pacientes, as horas mal dormidas, as crises de insônia, o estresse e todos os fatores
que contribuem para transtornos já abordados, não raramente cumulados uns com
os outros, são também gatilhos capazes de propiciar não apenas a depressão e
angústia, mas ideias suicidas, pela falta de um equilíbrio emocional e psicológico do
profissional.
Segundo publicado no portal Pebmed, uma estimativa da American
Foundation for Suicide Prevention informa que, em média, 300 a 400 médicos
cometem suicídio no mundo todos os anos, sendo fatores de influência os
transtornos do Eixo I como humor, uso de drogas e álcool, fatores psicossociais,
estilo cognitivo e características particulares de personalidade. Os transtornos do
Eixo I são observados com bastante frequência em mulheres. A notícia diz ainda
que em pesquisa realizada em 2006, mais de dois terços dos médicos reportaram
Burnout e quase um terço reportaram depressão.
O abuso de álcool e drogas atingiram entre 20% e 40% dos médicos que
cometeram suicídio. As mulheres se mostraram mais propensas, inclusive em
pesquisa feita com 114 médicos que discutia a racionalidade de tal ato, sendo que
para nada menos que 61% desse total acreditavam que sob certas circunstâncias, o
suicídio seria uma opção racional. Já os fatores psicossociais relacionados com o
suicídio podem ser encontrados na tensão da profissão, na falta de apoio pessoal.
23

4 IMPACTOS EMOCIONAIS DERIVADOS DA ATUAÇÃO DO MÉDICO

4.1 AS EMOÇÕES DO MÉDICO

A bioética contemporânea e a literatura médica destacam os efeitos positivos


da empatia para o atendimento ao paciente. Muito pouca atenção, entretanto, tem
sido dada ao impacto da exigência de empatia nos próprios médicos. Espera-se que
os médicos tenham empatia com seus pacientes, mas o efeito dessa exigência em
seu bem-estar emocional raramente é reconhecido (GREENFIELD et al., 2012).
O profissionalismo médico coloca o bem-estar dos pacientes em primeiro
plano; no entanto, as necessidades dos médicos também devem ser consideradas.
A empatia requer um certo nível de envolvimento emocional por parte do médico,
mas os recursos emocionais e as habilidades necessárias para a empatia nem
sempre estão disponíveis para os médicos. A profissão médica é um ambiente
emocionalmente desafiador, o que favorece a imagem do médico desapegado
emocionalmente.
Muitas vezes, na prática, a expressão aberta de sentimentos é percebida
como fraqueza, atitude que deixa pouco espaço para a busca ativa do bem-estar
emocional. Os médicos se deparam constantemente com situações angustiantes,
que podem levar à depressão, esgotamento e, consequentemente, à perda da
capacidade de empatia. Para que a empatia floresça na profissão médica, os
médicos devem sentir-se capazes de lidar com suas emoções sem medo de serem
criticados ou estigmatizados como fracos (LORENZETTI et al., 2013).
O profissionalismo médico define os tipos de habilidades e conhecimentos
exigidos pelos médicos e articula seus valores, deveres e obrigações profissionais.
Ajuda os médicos a navegar por decisões difíceis exigidas por sua profissão e
oferece a eles um guia de boas práticas. Em outras palavras, o profissionalismo
pode ser descrito como a “bússola prática e moral” dos médicos.
Dois valores básicos para médicos são competência clínica e empatia. Ambos
os valores são elementos importantes da boa prática médica; entretanto, em muitos
países ocidentais, há uma tendência a favorecer o médico tecnicamente hábil,
racional e emocionalmente imparcial, em vez do médico compassivo ou empático. A
24

expressão ativa de compaixão no cuidado médico é frequentemente vista como um


requisito supererrogatório ou mesmo percebida como fraqueza. Os médicos desde o
início de seu treinamento são ensinados que “as habilidades técnicas são
[consideradas] fundamentais, enquanto as habilidades interativas (se forem
encorajadas) são secundárias” (STREET; HAIDET, 2011).
Vários são os argumentos a favor do distanciamento emocional dos médicos.
Sanchez-Reilly et al. (2013) demonstraram como os médicos aprendem durante
seus estudos a desenvolver o desapego emocional a fim de manter a objetividade
científica e médica ao lidar com situações angustiantes. Por outro lado, o apego
emocional aos pacientes é frequentemente visto como adverso à boa prática clínica.
Um exemplo disso são as diretrizes do General Medical Council,
aconselhando os médicos a não tratar membros de suas famílias ou outras pessoas
com as quais tenham um relacionamento pessoal próximo. O forte envolvimento
emocional e a superidentificação com os pacientes têm sido associados a uma
tendência de supertratar sem considerar os efeitos colaterais (SANCHEZ-REILLY et
al., 2013).
Além disso, o distanciamento emocional permite ao médico manter a
compostura diante de situações emocionalmente difíceis e orientar e apoiar o
paciente durante elas. Um médico que se desmancha e chora na frente de um
paciente não pode cumprir esse papel. Isso coloca o paciente em uma posição
incômoda, na qual ele pode se sentir obrigado a apoiar e confortar o médico, e não o
contrário. Os médicos também precisam manter um distanciamento emocional para
se proteger de situações estressantes que enfrentam em seu trabalho diário. A
incapacidade de controlar as emoções na prática médica é frequentemente
percebida como falta de profissionalismo (CASTELHANO; WHABA, 2020).
No entanto, proteger-se de angústia emocional desconectando-se
abertamente de outras pessoas, o que pode ser descrito como apatia, pode colocar
em risco a assistência médica. Riess et al. (2012, p. 1281) afirmam que “com o
crescente distanciamento surge uma atitude de fria indiferença às necessidades dos
outros e um insensível desprezo pelos seus sentimentos”, o que pode resultar na
despersonalização do paciente.
25

O NHS nos últimos anos têm colocado muita ênfase no cuidado compassivo
em várias diretrizes e recomendações. Essas recomendações destacam a
importância da empatia e da compaixão como requisitos fundamentais do
profissionalismo em saúde, ao afirmar: “O mais importante de tudo, o NHS poderia
empregar centenas de milhares de funcionários com as habilidades tecnológicas
certas, mas sem a compaixão de cuidar, então nós terá falhado em atender às
necessidades dos pacientes” (CASTELHANO; WHABA, 2020).
No entanto, na prática, é difícil para os médicos encontrarem o equilíbrio certo
entre ser o profissional tecnicamente qualificado e o profissional objetivo, ao mesmo
tempo que estão emocionalmente engajados, mas não se identificam
excessivamente com o sofrimento do paciente.
Mesmo quando os médicos tentam conscientemente se abster de se envolver
emocionalmente com seus pacientes, poucos permanecerão não afetados pela
exposição regular ao sofrimento, doença e morte dos pacientes. Negligenciar tais
emoções pode impactar seriamente a saúde e o bem-estar psicológico desses
profissionais. Os médicos podem sofrer de exaustão emocional, esgotamento,
depressão ou mesmo tentativa de suicídio.
Um estudo recente que incluiu 14.000 médicos na Austrália descobriu que os
profissionais médicos são mais propensos a sofrer de transtornos mentais e
depressão do que a população em geral; uma das principais razões é que “médicos
e estudantes de medicina estão sob imensa pressão e lidam regularmente com a dor
e a morte” (CASTELHANO; WHABA, 2020).
Outro estudo examinando como o sofrimento e o bem-estar se relacionam
com a empatia mostrou que o aumento do sofrimento pessoal e profissional e a
exaustão emocional estão correlacionados com pontuações mais baixas de empatia
emocional. Sugere-se que os esforços para promover a empatia devem considerar
essas correlações (EICHBAUM, 2014).
O não envolvimento com as emoções – as próprias emoções, mas também o
envolvimento emocional com o outro – tem dois efeitos adversos; Em primeiro lugar,
afeta negativamente os médicos como pessoas, ao aumentar o seu stress e
ansiedade, tornando-os mais sujeitos ao sofrimento mental e ao esgotamento
emocional.
26

Em segundo lugar, afeta os médicos como profissionais, pois não lhes


permite cuidar de seus pacientes de forma adequada e eficaz. Esses dois aspectos
do médico estão integralmente conectados. Se estamos preocupados em promover
as melhores práticas em cuidados médicos, então prestar muito mais atenção ao
médico como pessoa e cuidar de seu bem-estar emocional e psicológico também
deve se tornar uma prioridade.

4.2 PRINCIPAIS TRANSTORNOS QUE ACOMETEM OS MÉDICOS

De acordo com estudo de revisão feito por Mariana Evangelista et al. (2016) o
impacto que a rotina de trabalho tem sobre as condições psicológicas do médico
vem sendo estudado e cada vez mais vem se constatando os resultados prejudiciais
dessa pressão intensa em diversas partes do mundo, sendo que em algumas
especialidades da Medicina esse impacto é naturalmente maior que em outras.
Pouca remuneração percebida em muitos casos, o que impulsiona o profissional a
procurar mais de um vínculo empregatício para complementar a renda, as horas
excessivas de trabalho que provocam estresse, o isolamento social e a falta de mais
horas para lazer e vida social são fatores imediatamente ligados ao desenvolvimento
de transtornos.
Tratando-se da atuação na esfera pública, os profissionais médicos se
deparam além de poucas condições de trabalho, com acentuada burocracia, intensa
demanda de pacientes com filas superlotadas, escassez de recursos e insumos para
atendimento de urgência e emergência, pacientes irritadiços e por vezes, violentos,
os quais transferem para o médico as frustrações de não terem sido atendidos com
a presteza que consideram adequada à gravidade de seus casos além de, com
frequência cada vez maior, questões judiciais e processos éticos nos Conselhos
Regionais.
Tudo isso é um sistema de elementos conectados que montam aos poucos, o
quadro propício ao surgimento de problemas de ordem psicológica nos profissionais,
tendo uma natureza de duplo prejuízo, pois um profissional motivado e descansado
tem um rendimento e uma qualidade no atendimento muito maior do que um médico
submetido à estressante rotina principalmente em uma unidade básica de saúde ou
27

mesmo em um grande hospital com demanda ainda maior e recursos


comprometidos.
O desenvolvimento dessas patologias impacta diretamente em todos os
sentidos possíveis: a vida do médico, a solução do problema de seu paciente, a
efetividade do emprego dos recursos, as relações pessoais com os colegas de
trabalho, as questões jurídicas, as relações de trabalho, etc. Veremos a seguir os
problemas psicológicos e físicos que mais vitimam esses médicos. Primeiro irá ser
abordado os mais recorrentes transtornos e a seguir, as patologias de ordem física
que comprometem o trabalho deles.

4.2.1 Síndrome de burnout

A Síndrome de Burnout é também conhecida como Síndrome do


Esgotamento Profissional. Acomete médicos de todas as áreas, mas tendo algumas
delas com maior incidência. Também acomete com frequência médicos do sexo
feminino, solteiras e jovens. Médicos submetidos a altos níveis de estresse e a
pressão no ambiente de trabalho tem propensão de sofrer dessa síndrome, de
acordo com notícia acerca de estudo feito em 2012, veiculada no portal Pebmed.
No Brasil, em fins da década de 1990, o Ministério da Saúde, por meio da
Portaria número 1.339, incluiu a Síndrome de Burnout na lista de doenças
relacionadas ao trabalho. Na década seguinte, ela foi inserida na Lista B da
Previdência Social sob a classificação de transtornos mentais e do comportamento
relacionados com o trabalho. Trata-se de um problema de saúde pública que afeta
especialmente os profissionais expostos à estresse intenso, e que pode acarretar
inúmeros problemas.
Os sintomas mais recorrentes da Síndrome de Burnout são a perda de
entusiasmo, o distanciamento emocional, exaustão, perda do sentimento de
realização pessoal e até sentimentos de cinismo. É evidente que um médico
acometido por essa síndrome terá muito pouco estímulo para a empatia com o seu
paciente, o que poderá prejudicar a relação e fazer com que o paciente entenda
como se o médico se tornasse muito distante do seu problema, até mesmo
28

desinteressado, agindo quase de forma mecânica ao diagnosticar o problema a ele


apresentado.
Elementos como fadiga, irritação, inflexibilidade, falta de empatia com os
colegas de trabalho foram sintomas identificados na Síndrome de Burnout podem
ser englobados numa falta geral de energia emocional que seja suficiente para uma
maior capacidade de entusiasmo e empatia para com a profissão e para com os
colegas de trabalho, mas não somente com eles. Existem outros elementos
associados, como por exemplo, a despersonalização.
Em um ambiente de trabalho intenso, especialmente se somado à uma longa
jornada de trabalho, a possibilidade de desenvolver a Síndrome de Burnout é muito
grande, inclusive com tendência a ocasionar quadros depressivos. Wada et al.
(2010) e Tomioka et al.(2011) identificaram a relação direta entre quadro depressivo
e a falta de folgas do trabalho em médicos submetidos às longas jornadas de
plantão e sobreaviso. Tais jornadas longas provocam isolamento social e privação
de horas adequadas de lazer, provocando cansaço mental.
Considerando-se que no sistema de saúde brasileiro, principalmente no SUS,
a realidade é de hospitais e postos de saúde da Atenção Básica com massivo
atendimento, muitas vezes com um número reduzido de médicos -as vezes um só- o
estresse resultante de plantões prolongados pode ser um gatilho para a Síndrome
de Burnout, como ao mesmo tempo um potencializador caso ela já esteja instalada
no profissional, prejudicando seu desempenho e níveis de atenção.
Diante desse quadro em que a atenção é prejudicada, a demanda de
atendimento é alta e a infraestrutura de trabalho nem sempre é satisfatória, poderão
ocorrer situações não apenas de esgotamento emocional ou psicológico, como até
erros médicos ou negligência que poderão descambar na judicialização da relação
entre o médico e seu paciente, por provocar nesse último, a indignação por causa da
percepção de que o médico não foi atencioso o suficiente para com o seu problema,
especialmente aquele tipo de paciente mais exigente e que gosta de buscar
informações sobre os sintomas que está experimentando antes de se dirigir ao
médico.
Essa situação pode agravar mais ainda a situação do profissional caso esteja
já submetido a condições desequilibradas de trabalho, ocasionando inclusive,
29

pensamentos suicidas além de todos os outros fatores relacionados com a Síndrome


de Burnout, como a depressão. Em estudos realizados por Wang et al. (2010) foi
constatada uma incidência de 63,5% dos médicos chineses acompanhados
apresentaram sintomas depressivos, um índice duas vezes mais alto do que a média
da população asiática.
Os impactos negativos desses fatores podem ser vistos no fato de que há
uma deterioração não somente na relação com o paciente, mas também com os
colegas profissionais e outros profissionais de saúde, como também um aumento no
número de rotatividade no emprego, amento no número de exames
complementares, aposentadoria antecipada, utilização de seguro por invalidez. Há
um aumento na insatisfação e com isso uma falta da capacidade de entrosamento,
de entusiasmo e de um interesse sincero pelos sofrimentos do outro.
No Brasil, segundo estudo de Torres et al. (2011) que entrevistou 1.224
médicos egressos de uma faculdade de medicina, apesar de cerca de 66,1%
considerarem satisfação com sua vida profissional, 56,3% consideraram estar
sujeitos a níveis médio, alto ou muito alto de estresse pelo fato de lidarem com
mortes, 54,7% por lidarem com pacientes graves, 27,7% por lidarem com a
comunicação com o paciente e familiares além de alarmantes 31,1% por lidarem
com processos civis. A comunicação com familiares e principalmente com pacientes
difíceis também é altamente estressante e pouco é abordada nos estudos que se
faz.

4.2.2 Despersonalização/irrealização

Nos diversos sintomas associados à Síndrome de Burnout, destacam-se a


ação de elementos como a exaustão física, exaustão a emocional bem como a
despersonalização, que tem grande influência sobre como os médicos se sentem
em relação ao seu trabalho e sobre como veem a si mesmos. Especialmente a
despersonalização e o consequente desinteresse ou frieza diante das situações
mais ou menos graves com as quais o médico residente tem que lidar, é capaz de
fazer o médico ficar mais desatento com o paciente, podendo ocasionar situações
30

de risco, de erro médico em que a saúde e a integridade do paciente podem ser


afetadas.
A despersonalização é entendida como um transtorno dissociativo que
consiste em um processo de sentimentos recorrentes de distanciamento do próprio
corpo ou de processos mentais, como se o acometido fosse um observador externo
da própria vida ou de estar dissociado de um determinado ambiente, ocorrendo a
desrealização. Nesse caso, ao se sentir dissociado do ambiente de trabalho, o
profissional pode desinteressar-se pelos problemas de seu paciente,
comprometendo a assistência, com potencial de ocorrência de erros e inclusive da
ocorrência de um processo ético ou mesmo um processo judicial que poderia ser
ainda pior para o profissional médico.
Em seu artigo sobre o tema, Vencato da Silva et al. (2016) assinala que a o
portador de Despersonalização geralmente se sente desconectado de seus próprios
sentidos e mais que isso, de seu próprio corpo, como se não pertencesse à este,
configurando distorções somatosensorriais. É um fenômeno que acomete a nada
menos do que 80% dos pacientes psiquiátricos e em 12% desses pacientes, a
Despersonalização acomete de forma mais severa e persistente. Nos Estados
Unidos, o fenômeno ocorre em 2,4% da população geral; no Reino Unido, esse
percentual é de entre 1-2% e na Alemanha o índice é 1,9% de pessoas acometidas
por Despersonalização.
O transtorno é associado a situações de estresse intenso, uso de
psicotrópicos, fadiga e se manifesta como uma resposta a situações de pressão no
cotidiano. Em estudantes de Medicina, o fenômeno ocorre já durante o curso e se
liga a fatores comuns ao cotidiano dessa área como a falta de tempo livre, a alta
pressão que os exames provocam, dificuldades financeiras e o contato com os
doentes e familiares.
No Brasil, o estudo de Vencato et al. (2016) também examinou estudantes de
uma escola de Medicina, a da Universidade Federal de Roraima, centrada numa
metodologia de aprendizagem mais ativa, em que o tempo inteiro os alunos são
estimulados desde o primeiro ano à prática semanal no âmbito da Atenção Básica.
Dos 230 alunos do curso, foram analisados 96 estudantes de Medicina de diversos
31

períodos do curso, sendo a maior parte -mais especificamente 52%- estudantes do


sexo feminino, com idade média de 24,4 anos.

4.3 IMPACTO DA PANDEMIA SOBRE A SAÚDE DOS MÉDICOS E ENFERMEIROS

A rotina de trabalho habitual dos médicos, principalmente na rede pública,


com suas filas enormes, poucos profissionais para atendimento na Atenção Básica,
falta de recursos suficientes para o atendimento satisfatório a todos, foi bruscamente
alterada no ano de 2020 pelo aparecimento do Sars-Covid-2 e sua rápida
disseminação pelo mundo inteiro, com altíssima taxa de letalidade. Não tanto pelo
ineditismo, visto que esse tipo de vírus já havia aparecido antes, mas pelo caráter
pandêmico, pela rapidez na disseminação e em tempos modernos, pelo nível de
letalidade que ceifou milhões de vidas nos cinco continentes. Em julho de 2021, a
Universidade Johns Hopkins calculava que já haviam morrido cerca de 3,5 milhões
de pessoas, mas o jornal The Economist afirmou que esse número poderia ser
quatro vezes maior e chegar aos 13 milhões.
O número de médicos mortos no Brasil, segundo divulgado no site do CFM, é
de 893 pessoas e se somarmos a isso o número de enfermeiros, passa facilmente
das mil pessoas. O Estado com menos médicos mortos foi o Amapá, com 6
profissionais falecidos, e o Estado com o maior número de médicos falecidos foi o
Rio de Janeiro, com 107 médicos. O portal Pebmed indica que um terço dos
enfermeiros mortos no mundo em decorrência da luta contra a Pandemia, é do
Brasil.
De acordo com estudo de Irena Durpat e Géssyca Melo (2020) logo após o
primeiro surto de Covid, cerca de 3.300 profissionais de saúde haviam sido
infectados só na China. Na Itália, grande foco de Covic na Europa e um dos países
que mais sofreram com a doença, foi confirmado o astronômico número de 16.991
médicos infectados por Covid até meados de abril de 2020. Se considerarmos a
população da China com a população da Itália, o percentual naquela altura era muito
maior no país europeu em relação ao país asiático, epicentro da Pandemia. Nos
Estados Unidos foram infectados 62.000 médicos, enfermeiros e outros profissionais
32

até maio e no Brasil, até o dia 15 de agosto já haviam sido confirmados nada menos
que 257.156 infectados.
Embora as duas categorias profissionais tenham sido bastante afetadas por
seu contato direto com o problema, os enfermeiros foram ainda mais impactados
que os médicos. Segundo o estudo mencionado, as categorias profissionais mais
atingidas eram as seguintes: técnicos ou auxiliares de enfermagem em 88.358
pessoas, representando 34,4%; foram contabilizados 37.366 enfermeiros, o que
representa 14,5% e 27.423 médicos, ou 10,7% dos profissionais infectados pelo
Coronavírus. Os enfermeiros, portanto, são a categoria mais afetada e junto com os
médicos, enfrentaram outros problemas como falta de equipamentos de proteção
individual, jornada excessiva de trabalho, estresse psicológico, negligência em
proteger adequadamente a saúde desses profissionais.
Todos os dados coletados, seja em relação a médicos, seja em relação a
enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem sugerem a necessidade de uma
mudança de postura e a elaboração de políticas de cuidados com a saúde desses
profissionais que, pela natureza de seu trabalho, acabam comprometendo sua
própria saúde no enfrentamento das doenças de seus pacientes, o que é bastante
potencializado em situações como a da Pandemia. Por ser, especialmente a Saúde
Pública, estruturada em um sistema, os muitos elementos que compõem essa
engrenagem precisam funcionar bem e em estreita sintonia uns com os outros, o
que significa dizer que se um dos elementos funciona mal, todo o sistema tem seu
desempenho comprometido.
É por isso que, se do lado dos profissionais de saúde não houver um cuidado
maior com a sua saúde, condições de trabalho digno, salários coerentes e efetivo
descanso, não há como esperar na outra ponta, que o paciente, especialmente o
paciente mais vulnerável, tenha acesso à excelência que o sistema de saúde tem o
potencial para oferecer, se for administrado de forma correta e inteligente.
Caso contrário, se mesmo com o arrefecimento da Pandemia, não forem
tomadas medidas concretas, ver-se-á os casos de transtornos evoluírem cada vez
mais para casos mais graves, não se limitando à Síndrome de Burnout e
Despersonalização, mas casos de depressão e as tendências ao suicídio. Esse é
um dado ainda pouco estudado no Brasil e sobre o qual pouco se debruçam os
33

debates. Mas como se pode ver a seguir, os casos de depressão e suicídio entre
profissionais de saúde são uma realidade concreta, crescente e preocupante.
O estudo de Katarina dos Santos et al. (2020) feito com 490 enfermeiros
relativo à incidência de depressão nesses profissionais constatou que 86,7% são do
sexo feminino, e tinham renda entre três e quatro salários, o que indica uma baixa
remuneração e pouca visibilidade profissional da classe. Do total de enfermeiros
analisados, 30,4% deles relatou teve diagnóstico de algum transtorno mental nos
últimos 12 meses e 39,6% sofreram com ansiedade em níveis moderados ou
severos e 38% informaram terem tido sintomas de depressão em nível moderado ou
severo.
Os elementos importantes associados com a ansiedade são os mais variados,
incluindo a cor parda, o trabalho em vínculo empregatício privado, ou mesmo ter
vínculo tanto público como privado-aumentando a jornada de trabalho-, sintomas de
síndrome de Burnout, desenvolver seu trabalho sem condições dignas para
enfrentar a Pandemia, embora esses fatores tenham sido atenuados com práticas
corpo-mente e conversas com familiares e amigos. Curiosamente, trabalhar não
apenas na esfera pública, como no serviço privado e que onde não houve estrutura
adequada para o enfrentamento de Covid teve papel notável no desenvolvimento de
quadro depressivo.
Como auxiliares diretos dos médicos, os profissionais de enfermagem estão
direta e igualmente expostos a agentes biológicos e contaminação, bem como ao
desenvolvimento a Síndrome de burnout e depressão, enfrentando ainda mais do
que os médicos, o sofrimento mental decorrente não só da atividade que praticam,
mas também a falta de reconhecimento profissional. Enquanto médicos não tem um
Piso unificado no país, o que gera desigualdades na distribuição dos profissionais
por região do país, também os enfermeiros lutam por reconhecimento e pelo Piso da
classe. Todos esses fatores ligam-se para o desenvolvimento de quadros
sintomáticos de depressão.

4.4 REPENSANDO O MEDICO COMO SER HUMANO


34

É preciso apontar a quantidade de vítimas que carecem de um atendimento


de qualidade, pois, diversas são as causas que levam um indivíduo a buscar
atendimento emergencial, variando desde um mal súbito, doenças graves, traumas,
entre outros, podendo, até mesmo, ocasionar morte antes da chegada ao hospital.
Esse aspecto é crucial, pois pacientes com quadros clínicos como estes precisam de
atenção imediata, sendo imprescindível o atendimento otimizado do enfermeiro.
Conforme o entendimento de Galvão (2013) é necessário que as decisões
tomadas pelo profissional sejam baseadas nas habilidades necessárias para a
preservação da vida do paciente. Importante ressaltar que, o respeito ao paciente é
crucial para que assim o atendimento possa ser realizado com qualidade e
competência.
Os profissionais de saúde são os verdadeiros soldados da linha de frente em
todo o mundo contra COVID-19 e/ou qualquer outra situação semelhante. Porém,
cuidar dos pacientes é dever profissional dos profissionais de saúde, mas seu lazer
e descanso também são muito importantes.
A súbita pandemia de coronavírus esticou os recursos médicos em todo o
mundo até o limite. Muitos países que estão sendo duramente atingidos pela doença
enfrentam uma escassez imensa de profissionais de saúde, ventiladores e
necessidades básicas como máscaras, luvas e equipamentos de proteção individual.
Enfrentar uma doença de tal proporção e tal natureza requer uma grande quantidade
de bens e recursos.
Os profissionais da saúde sempre estiveram em evidência. Contudo, a sua
valorização foi ampliada em razão da pandemia de COVID-19 no mundo desde
dezembro de 2019. Médicos, enfermeiros e outros profissionais enfrentaram a
pandemia quando ainda não se tinham muitas notícias sobre o funcionamento do
vírus, nem um meio de tratamento, apenas a prevenção.
Nesse aspecto, destaca-se a importância de enxergar o médico como um ser
humano. Assim como seu paciente carece de cuidados, também deve ser
dispensado o mesmo cuidado ao médico. É um ser humano com vontades, desejos,
necessidades e urgências, as quais devem ser consideradas pelo Estado, a
sociedade como um todo e também pelos seus pacientes.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Globalmente, as queixas de um paciente sobre as habilidades de


comunicação dos médicos são registradas no topo das listas de queixas analisadas.
É fundamental tratar o paciente, não só a doença. A tecnologia moderna torna as
habilidades do médico voltadas para o tratamento da doença com menos ênfase no
próprio paciente. Consequencialmente, os sintomas da doença são temporariamente
aliviados, enquanto a raiz do problema ainda está presente.
Um médico que analisa a história de seu paciente de maneira semelhante a
um advogado que faz o interrogatório e dá pouca atenção às respostas de seu
paciente está condenado a ser um péssimo clínico. Muitos médicos relutam em
melhorar a comunicação, que é um dos elementos cruciais do tratamento.
Apesar dos esforços de algumas universidades médicas para reformar seus
currículos de medicina e implementar habilidades de comunicação, parece que
muitos médicos não parecem construir relacionamentos eficazes com seus
pacientes. Como as clínicas ficaram mais lotadas, com um aumento no
encaminhamento a especialistas, a exposição médico-paciente diminui à medida
que as consultas tornam-se mais curtas, e os pacientes são frequentemente
expostos a médicos diferentes.
Infelizmente, os pacientes estão cada vez mais distantes de seus médicos.
Eles têm mais acesso do que nunca às informações médicas. Eles têm muito mais
conhecimento sobre patologia e modos de terapia e frequentemente expressam seu
desejo de participar das decisões de tratamento.
Para atender quem sofre, o médico deve possuir não só o conhecimento
científico e as habilidades técnicas, mas também a compreensão da natureza
humana. O paciente não é apenas um grupo de sintomas, órgãos danificados e
emoções alteradas. O paciente é um ser humano, ao mesmo tempo preocupado e
esperançoso, que busca alívio, ajuda e confiança. A importância de uma relação
íntima entre paciente e médico nunca pode ser exagerada, pois na maioria das
vezes um diagnóstico preciso, assim como um tratamento eficaz, depende
diretamente da qualidade dessa relação.
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Ao considerar um relacionamento que se baseia na participação mútua de


dois indivíduos, o termo “relacionamento” não se refere a estrutura ou função, mas
sim a uma abstração que abrange as atividades de dois sistemas ou pessoas em
interação. A qualidade aparente e intrínseca dessa relação única entre médico e
paciente permite que duas pessoas, antes desconhecidas uma da outra, se sintam à
vontade com grau variável de intimidade. Essa relação, com o tempo, pode se
desenvolver para permitir que o paciente transmita assuntos altamente pessoais e
privados em um ambiente seguro e construtivo.
A sociedade defendeu uma mudança na relação médico-paciente do modelo
de cooperação-orientação para participação mútua, em que o poder e a
responsabilidade são compartilhados com o paciente. As consultas centradas no
paciente refletem o reconhecimento das necessidades e preferências dos pacientes,
caracterizadas por comportamentos como encorajar o paciente a expressar ideias,
ouvir, refletir e oferecer colaboração. Desse modo, a medicina centrada no paciente
estimula um envolvimento muito maior do paciente no cuidado do que geralmente
associado ao modelo biomédico.
Enfatiza-se a importância de aspectos da relação médico-paciente, incluindo
(a) a percepção do paciente sobre a relevância e a potência das intervenções
oferecidas, (b) concordância sobre os objetivos do tratamento, e (c) componentes
cognitivos e afetivos, como o vínculo pessoal entre médico e paciente e percepção
do médico como atencioso, sensível e solidário.
Assim, uma maneira amigável e simpática pode aumentar a probabilidade de
adesão do paciente ao tratamento. Por outro lado, as respostas emocionais
negativas de qualquer uma das partes (por exemplo, raiva, ressentimento) podem
servir para complicar o julgamento médico (causando erro de diagnóstico) ou fazer
com que os pacientes deixem de fazer o tratamento. Um entendimento comum dos
objetivos e requisitos do tratamento é crucial para qualquer terapia, seja física ou
psicológica.
A medicina centrada no paciente é “medicina para duas pessoas”, em que o
médico é um aspecto integrante de qualquer descrição. O médico e o paciente estão
influenciando um ao outro o tempo todo e não podem ser considerados
separadamente.
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