12 MARÇO 2020 I
SABADO *www.ssbado.pt V*7
FRANK SNOWDEN, HISTORIADOR DE EPIDEMIAS
“A REAÇAO DA CHINA
FOI MEDIEVAL”
Criámos um mundo globalizado em
I que os surtos vão ser mais fáceis. |
Vivemos em cidades com milhares
de pessoas e entramos num avião e
ncontrar uma máscara ci­
E
rúrgica à venda em Itália
em março de 2020 é quase
tão complicado como
comprar limões em 1973. Bizarro? Os
47 anos que separam estas ruturas
de stock têm uma coisa em comum-,
a histeria das epidemias. Quem faz
este paralelismo é Frank Snowden,
historiador norte-americano espe­
cialista em epidemias, que está neste
momento em Roma. Partiu para Itá­
lia antes do surto, para estudar os ar­
quivos estatais e os do Vaticano, e
hoje encontra-se a viver na primeira
pessoa a epidemia do coronavírus.
Não está infetado, toma as pre­
cauções normais e conta que o
ambiente é de tensão.
Depois de desaparecerem as
máscaras cirúrgicas, Frank
Snowden diz à SÁBADO que
existe uma espécie de "caça ao
paciente zero” por grupos naciona­
listas. "Estão a criar a ideia de que o
vírus foi trazido por emigrantes", diz.
Professor de História e de História da
Medicina na Universidade de Yale,
nos Estados Unidos, Frank Snowden.
que lançou o livro Epidemics and
Society: From the Black Death to the
Present (Epidemias e sociedade: da
peste negra ao presente, em portu­
guês). recorda que os mesmos com­
portamentos extremos ocorreram no
surto de cólera, em agosto de 1973.
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num instante corremos o mundo.r
Frank Snowden traça o retrato das
doenças mais infecciosas e o seu
1 impacto na sociedade.
Por Vanda Marques
Tudo começou em Nápoles, por
isso. quando um carro com a matrí­
cula dessa cidade aparecia em Roma,
Animais era apedrejado. O americano estava
Muitas das epide­ em Itália nessa época e ficou choca­
mias começaram
do. Mais ainda com a reação do en­
com a transmissão de
animais. “É uma das tão ministro da Saúde italiano, que
disse na televisão que bastava espre­
grandes questões na
sociedade moderna.
mer umas gotas limão na comida - o
Destruímos o habitat
de animais selvagens
transmissor tinham sido os mexilhões
e eles entraram em - que o ácido destruía o vírus.
contacto mais pró­
“Quando ouvi que tudo o precisáva­
ximo connosco.”
mos de fazer era espremer limão nos
mexilhões nem queria acreditar. Em
Roma, nesse ano, não conseguias en­
contrar limões. Nessa altura, quis
NO SURTO compreender como estas coisas
DE CÓLERA. aconteciam. As epidemias e as doen­
OS CARROS ças infecciosas trazem à luz a nossa
DE NÁPOLES vulnerabilidade. Acredito que todas
(ONDE TUDO as facetas da nossa vida são influen­
COMEÇOU) ciadas por epidemias. Como sobrevi­
ERAM APE­ vemos como espécie será determi­
DREJADOS nado pelas escolhas que fazemos."
— ------
Estas escolhas vão ser cada vez
mais importantes. Por exemplo:
quando a China começou a esconder
o Covid-19, em dezembro, e quando
decretou aquilo que Frank Snowden
definiu como um “quase medieval"
cordão sanitário. Os erros cometidos
pela China no início da epidemia po­
dem ter contribuído para o que vive­
mos agora, defende Snowden, que
define a atitude como trapalhona.
~ —
Porquê? “Uma quarentena trata-se
de saúde pública individual, de isolar
indivíduos com a doença ou suspeita,
para não a espalharem. Um cordão é
isolar um pedaço geográfico e faz
exatamente o oposto. Cortar a comu­
nicação é errado. Entre as duas da
manhã de 23 de janeiro e a imple­
mentação do cordão, às 10 horas,
cerca de 5 milhões de pessoas deixa­
ram Wuhan. Ao fugirem, levaram a
doença com eles."
Mas, depois desse começo confu­
so, Frank Snowden diz que a China
tomou as atitudes corretas para
controlar o surto. “Estamos todos
juntos nisto. Isto é uma guerra. De­
pois disso, os chineses foram efica­
zes a controlar a doença. O líder da
China, Xi (inping, assumiu que co­
meteu erros.”
O norte-americano, que estudou
todas as grandes epidemias da His­
tória - da peste bubónica (séc. XIV,
quando morreram 100 milhões) à
gripe espanhola (em 1918, morre­
ram mais de 50 milhões) -, defen­
de que as grandes mudanças da
humanidade se devem em grande
parte às doenças infecciosas. Os
exemplos sucedem-se. A primeira
grande revolução de escravos teve
sucesso graças a uma epidemia. Os
escravos do Haiti - que no séc. XIX
era uma colónia francesa chamada
Saint-Domingue - conseguiram a
sua independência por causa da
febre-amarela.
Vender os EUA e dar terrenos
"Durante a Revolução Francesa, co­
meçou a maior e mais organizada re­
belião de escravos da história no
Haiti. Mas, em 1802, Napoleâo en­
viou uma enorme armada para repri­
mir a revolta e tudo falhou porque os
soldados apanharam febre-amarela.
0 comandante francês escreveu a
Napoleâo a explicar-lhe que 80%
dos seus marinheiros tinham mor­
rido de febre-amarela. E os ou- Á vel. do ponto de vista
tros 20% estavam a convalescer ,
de varíola. "Afeta todas
e não podiam lutar." Napoleâo as partes do corpo, com
decide então desistir. Ao fazê-lo, dores e comichões insu­
o Haiti tomou-se no primeiro país
colonizado independente e sem
escravatura. O historiador explica
ainda que Napoleâo desistiu da sua
aspiração de manter o poder na
América do Norte. "Ele vendeu os
terrenos franceses que tinha no esta­
do do Louisiana a Thomas Jefferson,
Presidente dos Estados Unidos. É
uma mudança enorme."
Snowden dá mais exemplos: como
a peste bubónica influenciou a filoso­
fia. “Foi assustadora e desconhecida.
Os doentes tinham dores horríveis e
bolhas do tamanho de laranjas, que
surgiam debaixo da pele. Tinham fe­
bres altas e alucinavam tanto que se
Frank suicidavam." Foi de tal forma terrível
Snowden - os ricos fugiram e houve registos de
O professor uni­ mulheres e maridos que abandona­
versitário de Yale vam os filhos - que toda a sociedade
já recebeu vários e a economia colapsaram. “Parecia o
prémios pela sua fim do mundo.” Começaram até a
obra. Um deles questionar Deus. “Como podia deixar
da American morrer tantas crianças? Levantaram
Association questões quase agnósticas e volta­
for the History ram-se para santos mais humanos,
of Medicine como a Virgem Maria."
Outra mudança foi ter-se percebi­
do que a quarentena era uma forma
eficaz de se evitar o contágio, o que
levou a começar a pensar em me­
Varíola didas de saúde planeadas. O im­
Snowden conta que
a doença mais terrí­
pacto económico foi de tal forma
grande - metade da população eu­
do doente, foi o surto ropeia morreu - que tiveram de
mudar de atitude. “Começaram a
dar terrenos às pessoas, para não
portáveis. As pessoas deixarem as terras. E ao fazê-lo
coçavam tanto
os olhos que
transformam a sociedade."
Sempre que se acha que se ultra­
cegavam."
passou uma enorme pandemia, pa­
recem surgir novos desafios. “A gripe
espanhola, por exemplo, nunca foi
esquecida pelas autoridades, ficou a
O pairar como o pior pesadelo que os
Itália é o local
europeu com mais mantém acordados de noite", expli­
casos. Por esse ca. "Muitos levantam a questão: o
motivo, todo o coronavírus será como a gripe espa­
país está de qua­
rentena e as más­ nhola? Não sou pessimista, mas isso
caras esgotaram mostra o grau de incerteza que existe
com novas doenças, não sabemos
quão virulentas são e quantas pes­
soas vão matar."
Na gripe espanhola, um dos gran­
des erros que se cometeram foi não
dar apoio aos doentes. “Não havia
sítio para os pôr. Os médicos adoe­
ciam e não sabiam o que fazer." Para
o especialista, o país menos prepara­
do para enfrentar o coronavírus no
Ocidente é sem sombra de dúvida os
Estados Unidos. “Com hospitais pri­
vados, não sabes a extensão do vírus,
muitas pessoas não se protegem tão
bem e continuam a ir trabalhar.
Como é uma medicina virada para o
lucro, não há capacidade para multi­
dões, nem treino ou preparação para
lidarem com grandes números de
pacientes ao mesmo tempo. Diria
que não existe um plano geral.” O
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