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A IA veio para ficar, crescer e

se multiplicar
Publicado em 19 maio, 18

por Lucia Santaella

[Abstract]:

“Judging by its recent advances, there is little doubt that, sooner or later, AI should cover many
of the competencies we have hitherto considered to be exclusive privileges of humans. It is not
the recent advances in AI alone that can justify the above prognosis and justify even more the
title of this brief article that advocates the growth and multiplication of AI. Where is the
justification for the growth of AI, including the one that is capable of dealing with the usual
criticism that hastily conceals, with the label of “technological determinism”, its prejudices
against any advances in technology? In explaining why and how human intelligence grows, this
article aims to provide answers to the postulation of the growth of artificial intelligence,
conceived as an enhancement of human intelligence itself.”

Não é preciso ser um especialista em Inteligência artificial (IA) ou conviver com especialistas
para perceber que seus avanços, nos últimos anos, chegam a ser desconcertantes. Embora
esteja na crista da onda tecnológica, que hoje poderíamos melhor chamar de tsunami
tecnológico, a IA tem uma história cuja especificidade remonta a meados do século 20. Para os
iniciantes e também para aqueles que, sem conseguir esconder seus preconceitos,
pressupõem que se trata de moda passageira, há algumas volumosas obras que tratam da
história da IA e dos principais tópicos que vêm sendo estudados e realizados empiricamente.

Muito visitado e citado é o livro de Russell e Novig (2010, cuja primeira edição remonta a 1994)
que trata a IA sob o prisma do agente inteligente, com ênfase nos inputs, ou seja, nos
estímulos perceptivos que esse agente recebe do ambiente, e nos outputs, quer dizer, nas
ações por ele performatizadas nesse mesmo ambiente. Assim, a IA tem por tarefa representar
as diferentes funções que mapeiam a sequência de perceptos que levam a ações, tais como
“agentes reativos, planejadores em tempo real, sistemas teoréticos de decisões etc. (p. viii). O
livro começa com as fundações da IA, caminha por seu desenvolvimento histórico, avança por
um numeroso elenco de conceitos nela implicados, para terminar em questões filosóficas,
inclusive éticas.

Um segundo livro indicado para aqueles que desejam começar a se inteirar do assunto, é The
quest for artificial intelligence. A history of ideas and achievements, de Nilsson (2010), uma
espécie de Bíblia sobre o desenvolvimento da IA década a década, de meados do século 20
até a data da publicação da obra.

A noção que o autor tem da IA é muito generosa, baseada em uma definição bem ampla da
mente e da inteligência. Para ele, a inteligência é uma qualidade ou atributo que habilita uma
entidade a funcionar apropriadamente e com alguma previsão no seu ambiente. A partir disso,
são muitas as entidades que podem possuir a qualidade da inteligência: humanos, animais e
algumas máquinas. Não é por acaso, portanto, que nossos celulares são chamados de
telefones inteligentes, o que, de fato, são. Difícil negar.

Outra ideia bastante interessante do autor é que a inteligência se atualiza nessas variadas
entidades em um continuum de gradações que vão das mais rudimentares às mais complexas.
No extremo da complexidade, por enquanto, encontra-se o ser humano capaz de raciocinar,
atingir seus objetivos, compreender e gerar linguagens, processar interpretativamente a chuva
ininterrupta de perceptos que recebe, provar teoremas matemáticos, jogar games desafiantes,
decodificar e sintetizar informações, criar arte e música e inventar histórias geradas na
imaginação, tudo isso adaptado ao contexto ou ambiente em que age, inclusive capaz de
prever dedutivamente algumas das consequências de suas ações, sem deixar de saber
contornar a situação quando, por um motivo ou outro, a dedução falha.

Se levarmos em consideração as diferenciadas facetas implícitas na inteligência e tomarmos a


ampla definição de IA, dada por Nilsson, como envolvendo todas as atividades voltadas para
tornar as máquinas inteligentes, não é difícil perceber a enorme complexidade da agenda que
a IA tem pela frente. Entretanto, a julgar por seus avanços recentes, restam poucas dúvidas
acerca do fato de que, mais cedo ou mais tarde, a IA deverá abranger muitas das
competências que até agora julgamos serem privilégios exclusivos dos humanos.

Não são os avanços recentes da IA apenas que podem justificar o prognóstico acima e
justificar, mais ainda, o título deste breve artigo que preconiza o crescimento e multiplicação da
IA. Onde se encontra a justificativa, inclusive aquela que seja capaz de fazer frente às
costumeiras críticas que apressadamente ocultam, com o rótulo de “determinismo tecnológico”,
seus preconceitos contra quaisquer avanços das tecnologias? Passemos à justificativa.
Como e por que a inteligência cresce

Trata-se de afirmação insofismável que o ser humano é um ser de linguagem. Cada vez mais,
especialmente depois do desenvolvimento dos animal studies, trata-se de um truismo afirmar
que outros animais também estão dotados de linguagem: formigas trabalham, abelhas
dançam, raposas mentem, cachorros são leais e afetuosos etc. A primeira diferença em
relação ao humano, entretanto, encontra-se no fato que, enquanto as linguagens dos animais
são estáveis, a linguagem humana é evolutiva, transforma-se, adapta-se, cresce em
complexidade. Deixemos essa primeira diferença para ser discutida mais à frente e passemos
para a segunda diferença: o humano é o único animal que fala. Por que e como fala?

A fonte da fala está certamente no cérebro, mas a fala se articula por meio de um conjunto de
orgãos instalados no próprio corpo: o aparelho fonador. Como o nome mesmo diz, “aparelho”,
o que se tem aí é uma espécie de tecnologia habilitada para dar expressão, externalizar o que
é germinado na fonte, o cérebro. Ambos, cérebro e aparelho, estão de tal forma conectados
até se tornarem inseparáveis, o que nos permite perceber que o aparelho fonador funciona
como uma tecnologia da inteligência, uma tecnologia cognitiva como são também cognitivos
um microscópio, um telescópio, uma câmera fotográfica, uma televisão e, hoje, um
computador.

A partir disso, pode-se extrair a máxima ou até mesmo o axioma de que, sem linguagem, não
há cognição. Mas a cognição depende da linguagem tanto quanto a linguagem depende de
alguma tecnologia na qual se materializar, na qual a linguagem toma corpo. Eis aí uma das
chaves da comunicação tanto humana quanto não humana, com a diferença de que, o humano
não é só loquens, mas também talentosamente faber, quer dizer, o animal humano constrói
tecnologias que funcionam como suportes externos e socializados para novas linguagens.
Quando digo linguagem, evidentemente, o termo não se reduz à linguagem verbal que, hoje,
mais do que nunca, é apenas uma dentre uma diversidade de outras linguagens: visuais,
sonoras, gráficas, notacionais, simbólicas, hipermídia, linguagem de máquina, linguagem de
programação, linguagem algorítmica etc., todas elas dispondo dos devidos suportes
tecnológicos nos quais tomam corpo: livros, papel, telas, gramofone, máquina fotográfica,
filmes, fitas magnéticas, rádio, TV, computador etc.

Aqui encontramos o ponto para retornar à primeira diferença deixada mais atrás e que nos
conduz a uma outra máxima: as linguagens humanas evoluem e, no processo de sua
evolução, crescem e se diversificam. A inteligência é como a vida, cresce e se multiplica,
tomando conta de todo o espaço disponível. Tanto uma quanto a outra, portanto, não podem
parar de crescer. No caso da inteligência, como se dá seu crescimento? Se a cognição é
inseparável da linguagem, então, a inteligência cresce nas linguagens que o ser humano
produz e reproduz, todas elas amplificações de sua capacidade cerebral.

A extrassomatização da inteligência

Desde muito cedo, o ser humano buscou superar tanto a fragilidade do seu cérebro mortal
como depositário da memória quanto a contingência da fala evanescente e fugaz: começou a
gravar imagens nas grutas para driblar a dissipação da memória no tempo. Do mesmo modo,
inventou formas de escrita pictográficas, ideográficas, hieroglíficas como meios de preservação
externa, socializada, dos seus modos de conhecimento do mundo. Tais fatos têm me levado a
afirmar (Santaella, 2003) que, por meio das linguagens, aí se deu o início do crescimento do
cérebro humano, de sua capacidade cognitiva e, consequentemente, de sua inteligência fora
do corpo biológico, mas devidamente a ele integrado pelos próprios fios do pensamento e da
inteligência suportados pelas linguagens.

Tanto é assim que grandes saltos em tal direção foram se dando no Ocidente a partir da
implantação, no mundo grego, da escrita alfabética e seus suportes de inscrição que vieram se
exponenciar com a invenção de Gutenberg. Embora a propagação dos livros tenha
impulsionado consideravelmente a exossomatização da inteligência, seu ponto de expansão e
aceleração viria com as tecnologias de linguagem trazidas pela revolução industrial: máquina
fotográfica, fonógrafo, cinematógrafo, seguida pela revolução eletroeletrônica de que
resultaram o rádio e a TV. O que é importante notar é que, nessas máquinas, que chamo de
sensórias (amplificadoras dos sentidos da visão e audição) transitam linguagens e, nestas,
constituem-se novas formas de cognição que ampliam a inteligência humana. Entretanto, essa
ampliação só viria alcançar seu cume evolutivo com as máquinas cerebrais, a saber, os
computadores.

Se, por limitações físico-biológicas, o crescimento do cérebro não podia se dar dentro da caixa
craniana, a inteligência humana tratou de se desenvolver fora do corpo humano,
extrassomatizada sub specie de linguagens que foram se sofisticando cada vez mais nas
máquinas replicadoras das funções sensório-motoras próprias da revolução eletromecânica,
passando pela eletroeletrônica até atingir as tecnologias da inteligência da revolução
teleinformática.

Enquanto as linguagens geradas em suportes eletromecânicos, especialmente a foto e o


cinema, e as linguagens geradas em suportes eletroeletrônicos, especialmente, as
radiofônicas e televisivas, são linguagens voltadas prioritariamente para a ampliação de um
tipo de específico de inteligência, aquela do infotenimento comunicacional; enquanto a própria
internet e suas redes sociais estão ainda direcionadas para o infotenimento agora
incrementado pela interatividade e compartilhamento, com a inteligência artificial, as máquinas
cerebrais estão atingindo um ponto de magnitude de tal ordem em que são simulados e
emulados os atributos mesmos constitutivos da inteligência em si. No estado da arte em que
hoje estamos, seria difícil encontrar prova maior do que essa do vetor para o crescimento da
inteligência humana. É diante disso que podemos afirmar, sem muitos titubeios, que a
inteligência artificial veio para ficar, crescer e se multiplicar.

Sinais de alerta

Dito isso, para finalizar, dois sinais de alerta precisam ser levantados. O primeiro deles diz
respeito à desmontagem do argumento que vê nesse crescimento um mero determinismo
tecnológico. No seu Evolution of the modern mind, Merlin Donald (1991) considera como a
mais recente etapa nos ciclos evolutivos da espécie humana as extensões da capacidade
simbólica ou memória externalizada como ele as chama, isto é, as formas de escrita e de
imagens, seguidas pela hiperprodução técnica de imagens e sons e, então, pelas tecnologias
teleinformáticas,. A essa sequência hoje se acrescentam todos os recursos da internet, a
computação em nuvem, a internet das coisas, o big data e, certamente, o estágio atual da
inteligência artificial.
De fato, em nenhuma fase de sua evolução, o humano esteve dependente apenas do orgânico
ou do instintivo. Não há uma dicotomia entre natureza e cultura, pois a sociedade humana se
formou no processo gradativo de artificialização do mundo. Portanto, a ciborgização
generalizada atual nada mais é do que a continuação inelutável da saída do humano da
natureza na construção de outras naturezas artificiais. De resto, a natureza sempre
demonstrou uma maleabilidade para o artificial, de modo que as fronteiras entre natureza e
cultura, entre organismo e máquina têm de ser continuamente redesenhadas em concordância
com fatores históricos complexos.

O segundo sinal de alerta consiste no fato de que, o inegável crescimento da inteligência é


uma postulação que pode ser historicamente comprovada. Entretanto, seria arriscado passar a
tal postulação um julgamento de valor que tende para a euforia. Embora a inteligência artificial,
de fato, possa facilitar e incrementar tarefas humanas e aperfeiçoar os serviços prestados
pelas corporações e os governos, apresenta-se aí um campo que merece e exige ser tratado
com a arte do cuidado e com precauções éticas. Isto porque a inteligência artificial, tanto
quanto quaisquer outras tecnologias, não está apartada da inteligência humana. Esta, longe de
ser alimentada pela razão pura, como queria Kant, ao contrário, é sobredeterminada pelo
inconsciente. Ora, o inconsciente é traiçoeiro, de modo que tudo que diz respeito ao humano
fica, de saída, marcado pelas insígnias das ambivalências, paradoxos e contradições. Por isso,
há que se adensar a arte do cuidado.

Referências

DONALD, Merlin (1991). Origins of the modern mind. Three stages in the evolution of culture
and cognition. Cambridge, MA: Harvard University Press.

NISSON, Nils J. The quest for artificial Intelligence. A history of ideas and achievements.
Cambridge University Press, 2010.

RUSSELL, Stuart J.; NORVIG, Peter. Artificial intelligence. A modern approach. 3a. ed. New
Jersey: Prentice Hall, 2010.

SANTAELLA, Lucia. A semiose do pós-humano. In Culturas e artes do pós-humano. Da cultura


das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003, pp. 209-230.
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