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Positivismo lógico e teorias da verdade

Um dos capítulos mais importantes da história do positivismo lógico é a


chamada controvérsia acerca das sentenças protocolares (Protokollsätze).
Essencialmente, trata-se de uma disputa sobre as bases do conhecimento empírico.
Apesar de não haver consenso a respeito de quais exatamente são essas sentenças, para
os positivistas lógicos está claro que sentenças protocolares são sentenças primitivas
que dizem respeito diretamente à experiência. Ou, para usar uma metáfora cara aos
filósofos positivistas: as sentenças protocolares são o alicerce sobre o qual se arvora
todo o edifício da ciência. A própria metáfora, na medida que parece sugerir algo como
uma estrutura fundacionista, desde logo evidencia o cerne da disputa: o problema da
justificação das sentenças protocolares.

De um ponto de vista historiográfico, a disputa é travada principalmente entre


Moritz Schlick (mais afeito ao fundacionismo e defensor de uma teoria da verdade
como correspondência) e Otto Neurath (declaradamente coerentista tanto em matéria de
justificação epistêmica quanto em relação à definição de verdade). Uma terceira figura
cuja contribuição é de maior importância para o debate é Rudolf Carnap, que ocupa uma
posição intermediária entre os dois extremos da disputa (ainda que, segundo alguns
intérpretes, tenda mais para o lado de Neurath). Feita essa nota historiográfica, no que
se segue, por razões de espaço e para maior sistematicidade da exposição, a disputa será
em grande parte despersonalizada e me concentrarei sobretudo em mostrar como a
querela sobre as sentenças protocolares se torna uma discussão acerca de diferentes
teorias da verdade; ao final, apresento brevemente a maneira como Carnap procura
resolver a disputa a partir da distinção entre verdade e confirmação.

Sentenças protocolares e a definição de verdade

O positivismo lógico notabilizou-se por levar adiante um programa filosófico de


reconstrução racional do conhecimento científico com um viés profundamente
antimetafísico. Nesse contexto, não é de se admirar que os positivistas tenham se
esforçado para abandonar conceitos metafisicamente inflacionados, como é o caso do
conceito clássico de verdade como correspondência entre as sentenças e a realidade.
Nesse sentido, para os positivistas lógicos, em vez de fatos, opta-se inicialmente por se
falar apenas em sentenças; assim, no que tange à verdade dos enunciados, em vez de
correspondência entre sentenças e fatos, fala-se em concordância entre sentenças e
sentenças protocolares, que nada mais são que sentenças primitivas nas quais se assenta
o restante do conhecimento. Assume-se, portanto, que existem sentenças elementares
cuja verdade garante o estatuto epistêmico de todas as outras sentenças não-protocolares
que ocorrem no discurso científico.

Pois bem, é precisamente a pergunta sobre o fundamento epistêmico das


próprias sentenças elementares que faz surgir a controvérsia a respeito das
Protokollsätze. Notadamente, o problema que surge, na forma como se desenha, admite
tanto uma abordagem fundacionista quanto uma abordagem coerentista. Por um lado,
pode-se considerar que as sentenças protocolares são sentenças não-científicas, isto é,
sentenças que fazem parte de uma linguagem exterior ao sistema da linguagem da
ciência, ou, por outro lado, pode-se considerar que as sentenças protocolares são
sentenças internas ao sistema da ciência. No primeiro caso, sentenças protocolares não
são mais que postulados definidos por convenção a fim servir como fundamento à
linguagem da ciência; no segundo caso, as sentenças protocolares não se distinguem de
outras sentenças que ocorrem no interior do sistema da ciência, e o que garante sua
verdade é coerência e concordância com as outras sentenças do sistema.

Ambas as abordagens constituem dois modos de estruturar a linguagem da


ciência. O problema é que, em ambos os casos, as sentenças protocolares acabam por
ser entendidas como sentenças arbitrárias ou, o que é potencialmente mais grave, como
sentenças corrigíveis. Enquanto a abordagem fundacionista, ao interpretar as sentenças
protocolares como postulados, reduz a verdade à mera convenção, a abordagem
coerentista, ao realocá-las no interior do sistema da ciência, retira das sentenças
protocolares o estatuto de sentenças fundantes e as torna sentenças tão falseáveis quanto
quaisquer outras. Ou seja, precisamente as sentenças cuja função seria garantir a
legitimidade epistêmica do conhecimento acabam, elas próprias, epistemicamente
vulneráveis. Nesse sentido, tanto uma quanto outra abordagem acaba por criar um
cenário onde a definição de verdade ao fim e ao cabo só se justifica em termos
coerentistas (ou, o que é pior, convencionalistas).

Ora, o fato é que, aos olhos de parte dos positivistas mais conservadores (leia-se,
Moritz Schlick), isso significaria introduzir na ciência um relativismo simplesmente
intolerável. Se, no fim das contas, a verdade é compreendida como uma questão de
coerência ou convenção, então, no mais extremo dos casos, não haveria nenhum critério
que nos permitiria discernir uma teoria científica de uma narrativa fantástica qualquer,
como por exemplo a teoria dos antigos astronautas. Embora claramente hiperbólico, o
exemplo chama a atenção para um problema importante suscitado pela discussão acerca
das sentenças protocolares: espera-se — e essa não seria uma expectativa qualquer, mas
parte da compreensão normativa de investigação e método científico — que a ciência
proporcione descrições ou explicações adequadas ou em conformidade com os fatos;
ora, a ideia de que as sentenças que estabelecem os princípios elementares do sistema da
ciência estão sujeitas à revisão e falseabilidade simplesmente não é condizente com essa
maneira básica como se compreende a atividade científica, pois equivaleria a aceitar que
os fatos são, de alguma forma, revisáveis.

A solução de Carnap

Inicialmente Carnap adotava a abordagem fundacionista, isto é, ele acreditava


que as sentenças protocolares eram, em último caso, definidas por convenção pela
comunidade de cientistas. Mais tarde, porém, ele revisita a disputa acerca das sentenças
protocolares tendo por pano de fundo a terminante distinção entre o conceito de verdade
e a prática da confirmação. De primeira importância para a abordagem de Carnap é a
definição semântica de verdade levada a termo por Alfred Tarski. Abstraindo aqui de
uma caracterização pormenorizada, será suficiente dizer que Tarski propõe o esquema
T, segundo o qual

x é verdadeira se e somente se p,

onde x é o nome de uma sentença e p é a própria sentença nomeada. Exemplo:


“’o livro está sobre a mesa’ é verdade se e somente se o livro está sobre a mesa”. Ou
seja, a definição de Tarski estabelece que verdade é um conceito primitivo e que, por
isso, para defini-la é preciso distinguir entre a linguagem sobre a qual se fala e a
linguagem que se usa para fazer a definição. Carnap considera a definição de Tarski
satisfatória, mas ao mesmo tempo reconhece que ela é apenas isso: uma definição
lógico-semântica. Por essa razão, Carnap julga ser necessário ter também presente a
distinção entre o conceito de verdade, que diz respeito à sua definição lógico-semântica
conforme proposta por Tarski, e a ideia pragmática de confirmação, que diz respeito aos
critérios pelos quais se estabelece que uma sentença é de fato verdadeira. No que tange
à definição de verdade, diz Carnap, trata-se de um conceito independente do tempo, no
sentido de que é estabelecido logicamente; já no que tange ao conceito de confirmação,
trata-se de um conceito temporalmente dependente, no sentido de que depende de
métodos de verificação e prova que precisam ser realizados na experiência.

Ou seja, enquanto o conceito de verdade pertence à metalinguagem, não estando


sujeito a nenhum tipo de revisão, o conceito de confirmação, i. é, o reconhecimento
prático de uma sentença como verdadeira, na qualidade de uma operação empírica, é
notoriamente falível, estando, portanto, sujeito à correção. Exemplo (emprestado de S.
Haack): estabelecer a definição de febre (temperatura corporal acima de 37,5ºC) não é o
mesmo que estabelecer os procedimentos através dos quais podemos saber/confirmar
que alguém está com febre (medição por meio de um termômetro a base de mercúrio na
axila, etc). Desta maneira, para ser confiável e racionalmente aceito, o conceito de
confirmação, em contraste com o conceito de verdade, requer ainda a satisfação de ao
menos duas condições: 1. confrontação com os fatos; 2. concordância com outras
sentenças do sistema da ciência.

A primeira condição vem em resposta à desconfiança expressa pela ala


correspondencialista dos positivistas que afirmavam que aceitar a corrigibilidade de
sentenças protocolares no fim das contas acabaria por provocar uma separação entre a
linguagem da ciência e a realidade dos fatos. A ideia de Carnap é que a “confrontação
com os fatos” não é senão uma operação de observação empírica que permite aferir se
uma sentença está formulada segundo o que é observado na experiência. Além disso, a
ideia de uma confrontação com os fatos evitaria formulações metafisicamente
carregadas e que podem facilmente levar a aporias, como era o caso da fórmula
correspondencialista “comparação entre uma sentença e a realidade”. Nesse sentido,
dizer que a sentença “o paciente x está com febre” foi confrontada com os fatos
significa que x passou por um exame clínico a tal e tal hora, e que foi constatado,
mediante aferição de temperatura, o estado febril.

Embora a confrontação com os fatos seja uma condição necessária para a


confirmação de uma sentença, ela sozinha não é suficiente. Uma segunda condição é o
estabelecimento da concordância entre a sentença a ser confirmada e as sentenças já
estabelecidas no sistema da ciência. Ou seja, para constar como uma sentença
empiricamente confirmada é preciso que a nova sentença não esteja em conflito com
nada que se sabe (que já foi confirmado) até então. No caso do exemplo da febre, a
sentença “x está com 37,9ºC medidos no termômetro de mercúrio” é confirmada ao ser
comparada com sentenças já estabelecidas no interior da ciência, como “o mercúrio é o
único metal líquido em baixas temperaturas que se expande à medida que é aquecido”,
etc.

Assim, enquanto a primeira condição carrega um claro elemento


correspondencialista, a segunda estabelece um critério claramente coerentista. Nesse
sentido, Carnap procura solucionar o problema das sentenças protocolares, primeiro, ao
distinguir entre o conceito semântico de verdade e o conceito prático de confirmação e,
depois, ao reunir elementos de ambos os lados da disputa tornando-os condições
necessárias do conceito de confirmação. Desta forma, ao mesmo tempo que aceita que
as sentenças protocolares são de alguma forma falseáveis, ele estabelece critérios
robustos capazes de garantir a legitimidade epistêmica das sentenças que ocorrem no
discurso da ciência.

Referências
CARNAP, R. Über Protokollsätze. Erkenntnis. 1932.
CARNAP, R. Truth and Confirmation. 1949.
PIZUTTI, P; LISTON, G. Círculo de Viena e Teorias da Verdade. Synesis, 2021.

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